SILVA, Katiene Nogueira da. “A gestão do tempo e do espaço na escola” , texto didático produzido para a disciplina “A gestão do tempo e do espaço na escola” do Curso Gestão da Escola para Diretores, Programa REDEFOR, SEE/USP, São Paulo: 2010/2011 (www.redefor.usp.br, acesso em x/x/xx)
“A gestão do tempo e do espaço na escola”
Katiene Nogueira Nogueira da Silva Silva
Prezados cursistas, nesta disciplina abordaremos a gestão do tempo e do espaço na escola, a utilização do espaço e as relações com o tempo, tanto do ponto de vista legal, a partir de documentos que visam a organizar o trabalho na escola, quanto do ponto de vista teórico, a partir de textos que nos ajudam a compreender a questão. questão.
Temporalidades da nossa vida O tempo é um dos elementos que constitui o nosso cotidiano e ele adquire diferentes concepções na sociedade, que podemos chamar de temporalidades. As temporalidades impõem um ritmo à nossa vida e regulam o nosso cotidiano (PINEAU, 1989). Entendemos por temporalidades t emporalidades as diferentes modalidades de experimentação do tempo pelas pessoas. Há diferentes marcações do tempo no espaço social como, por exemplo: o tempo da escola, o tempo do trabalho, o tempo do lazer. As ideias sobre o tempo não são inatas, elas foram construídas a partir da reflexão sobre a ação. Se hoje em dia podemos pensar em nossa rotina como algo “natural”, ao olharmos para o passado é possível compreender que ela foi construída de modo a garantir que diversas operações sociais pudessem ocorrer com regularidade. Para que a sociedade se organizasse era necessário que a vida das pessoas também estivesse organizada e obedecesse a um determinado ritmo, com horários determinados para acordar e para dormir, para estudar, para comer, para trabalhar, independente da vontade e da disposição que as pessoas tivessem para acordar, para comer, para trabalhar, etc. Assim,
embora existam diferenças entre o tempo físico – aquele passar do tempo comum a �
todos – e os tempos individuais – aquele sentido de um modo diferente por cada pessoa – todos são levados a obedecer a um mesmo ritmo estabelecido pelo calendário e pelo relógio. Mas como experimentamos o tempo? Às vezes, quando estamos em um momento difícil, não temos a sensação de que o tempo está demorando a passar? Se, por acaso, trancamos a chave dentro do carro e temos um compromisso importante, estamos atrasados e aguardamos a chegada do chaveiro, não parece que o intervalo entre o aparecimento deste problema e a solução levou uma “eternidade”? Ou então, quando vivenciamos uma situação que nos dá muito prazer, não é comum sentirmos que o tempo passa rápido demais? Depois de dias de trabalho intenso, não é comum sentirmos que o final de semana “passou voando”? Portanto, se contarmos no relógio o período de uma hora, de acordo com a atividade que estivermos realizando somos capazes de sentir o tempo passando de maneiras muito distintas. Durante a nossa infância, a entrada na escola é um evento que marca a nossa história de diversas maneiras, afetando diretamente a nossa relação com o tempo e com o espaço – como veremos adiante. Quanto ao tempo, é na escola que experimentamos o sentimento da rotina imposta por um espaço público, exterior à nossa casa: é nela que vivenciamos a nossa primeira experiência em uma rotina imposta pelo tempo no espaço público. É lá que aprendemos a obedecer a um ritmo diferente daquele imposto por nossa família. Na escola, todas as atividades são reguladas: há um
tempo para brincar, o recreio, há um tempo para comer, o intervalo, há um tempo para aprender, a aula. Há um horário específico para chegar e outro para ir embora. Além desse ritmo que a escola impõe ao nosso cotidiano, quando iniciamos a nossa escolaridade, os anos das nossas vidas também passam a ser estruturados de outra maneira a partir deste evento: a nossa disponibilidade para viajar, passear e visitar os familiares que moram longe passa a existir que acordo que o período no qual não precisaremos ir à escola - as férias. Na infância e na juventude, no período em que freqüentamos a escola experimentamos uma relação com o tempo semelhante àquela que vamos sentir na idade adulta, com relação ao tempo do trabalho: aprendemos a
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todos – e os tempos individuais – aquele sentido de um modo diferente por cada pessoa – todos são levados a obedecer a um mesmo ritmo estabelecido pelo calendário e pelo relógio. Mas como experimentamos o tempo? Às vezes, quando estamos em um momento difícil, não temos a sensação de que o tempo está demorando a passar? Se, por acaso, trancamos a chave dentro do carro e temos um compromisso importante, estamos atrasados e aguardamos a chegada do chaveiro, não parece que o intervalo entre o aparecimento deste problema e a solução levou uma “eternidade”? Ou então, quando vivenciamos uma situação que nos dá muito prazer, não é comum sentirmos que o tempo passa rápido demais? Depois de dias de trabalho intenso, não é comum sentirmos que o final de semana “passou voando”? Portanto, se contarmos no relógio o período de uma hora, de acordo com a atividade que estivermos realizando somos capazes de sentir o tempo passando de maneiras muito distintas. Durante a nossa infância, a entrada na escola é um evento que marca a nossa história de diversas maneiras, afetando diretamente a nossa relação com o tempo e com o espaço – como veremos adiante. Quanto ao tempo, é na escola que experimentamos o sentimento da rotina imposta por um espaço público, exterior à nossa casa: é nela que vivenciamos a nossa primeira experiência em uma rotina imposta pelo tempo no espaço público. É lá que aprendemos a obedecer a um ritmo diferente daquele imposto por nossa família. Na escola, todas as atividades são reguladas: há um
tempo para brincar, o recreio, há um tempo para comer, o intervalo, há um tempo para aprender, a aula. Há um horário específico para chegar e outro para ir embora. Além desse ritmo que a escola impõe ao nosso cotidiano, quando iniciamos a nossa escolaridade, os anos das nossas vidas também passam a ser estruturados de outra maneira a partir deste evento: a nossa disponibilidade para viajar, passear e visitar os familiares que moram longe passa a existir que acordo que o período no qual não precisaremos ir à escola - as férias. Na infância e na juventude, no período em que freqüentamos a escola experimentamos uma relação com o tempo semelhante àquela que vamos sentir na idade adulta, com relação ao tempo do trabalho: aprendemos a
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obedecer a um ritmo que não é o nosso, que é o da instituição na qual estamos inseridos, seja a escola, seja o trabalho, mas que passa a estruturar a nossa vida. O tempo na escola de outros tempos E a escola brasileira existiu sempre assim? Não, no Brasil, até o início do século XIX a educação das crianças era realizada principalmente em casa ou na comunidade, fato conhecido como socialização endógena ou socialização primária. A partir de então, a educação das crianças passou a ter um lugar próprio para acontecer: as escolas, que inicialmente eram chamadas como “escolas de primeiras letras” ou “escolas isoladas” e, posteriormente, surgiram os grupos escolares, que foram os primeiros edifícios construídos para funcionarem como instituições escolares (FARIA FILHO, 1996; HILSDORF, 1996; SOUSA, 1996). A socialização realizada nestes casos é conhecida como exógena ou secundária, por ocorrer fora do ambiente familiar. Até meados do século XIX, como a sociedade precisava principalmente da cultura oral para a sua manutenção, a socialização primária, realizada no lar, era suficiente para garantir às pessoas o aprendizado de que precisavam para sobreviver, conviver umas com as outras, trabalhar e formar uma família. Com a organização dos Estados modernos e também da burocracia criada junto com eles, a cultura oral passou dar lugar em importância à cultura escrita. Assim, a escolarização foi aos poucos se tornando cada vez mais necessária para a sobrevivência, para o trabalho e para a vida das pessoas. Isso porque os contratos e os documentos passaram a multiplicar-se e a necessidade de que as pessoas aprendessem a escrever para produzi-los, obedecê-los e assiná-los também. Desta forma, a escola passou a ser considerada a instituição que seria capaz de oferecer às pessoas os elementos de que necessitavam para manutenção da vida em sociedade, nela as pessoas aprenderiam a ler, a escrever e a contar (FARIA FILHO, 1996). Se no século XIX os tipos de educação ministrados eram múltiplos e diversos, no início do século XX começou a existir um sistema de ensino unificado, sistematizado, gratuito e obrigatório. Nesse momento o Estado encarregou-se da educação formal, substituindo a Igreja. O poder, nessa época conhecida como “moderna”, tornou-se exclusividade do Estado, que legitimava a sua autoridade através de regras, da magnificência da arquitetura dos edifícios, do currículo formal e da organização dos sistemas e ensino. A legitimação do poder do Estado ocorre através da adoração aos símbolos pátrios – a bandeira, o hino, fazendo com que a interioridade de cada um seja �
voltada para uma abstração. Enfim, tal legitimidade é construída através de todos os objetos que possam dar visibilidade a algo passa a ser fundamental, mas que é abstrato: a palavra, que passa da forma oral para a escrita (FARIA FILHO, 2000). Submeter às crianças atividades organizadas, de modo a regular o seu tempo, garantindo a sua ocupação incessante, poderia ajudar a controlar o seu comportamento, mas também geraria disposições em relação à regularidade. Sujeitar o desenvolvimento da vida dos indivíduos a uma divisão em seqüências temporais previstas antecipadamente e levá-los a “fazer as coisas na hora certa” seria o tipo de comportamento propício à aquisição da noção do dever. As ações organizadas visariam não somente a controlá-los, mas também a levá-los a adquirir hábitos de vida regular, assiduidade e pontualidade. Segundo Rita Gallego (2008), a relação do tempo com o conhecimento, que foi instaurada ao longo do século XIX, em um período no qual houve a difusão mundial da “escola de massas” – escolas concebidas para atender a população em geral – marcou a tal ponto a concepção das pessoas em relação às funções que caberiam à escola, que é comum que atribuam a ela a tarefa de garantir a transmissão de um determinado número de saberes em um tempo delimitado. A maneira como a escola foi organizada através da distribuição dos
tempos e dos espaços produziu uma representação – um modo tido por muitas pessoas como o ideal ou mesmo como o único possível - da aquisição dos saberes e da estruturação das aprendizagens. Assim, o que hoje em dia pode ser considerado como “natural”, como a relação entre idade e série, ou o estabelecimento de determinado conteúdo de acordo com o nível de ensino, foi construído socialmente e é fruto de um processo histórico. Com a organização do sistema de ensino e a criação dos grupos escolares, cada vez mais o tempo escolar se impôs à sociedade, marcando diferenças em relação a outros tempos sociais, como o tempo do lar, da família, do lazer e do trabalho, influenciando também esses outros tempos. Por ordenar o cotidiano das crianças a partir do momento em que elas ingressavam na escola, o tempo escolar passou a ordenar também o tempo do lar e da família famíli a (GALLEGO, 2008). O tempo na escola atualmente Como foi visto no módulo II, na disciplina “O Projeto Pedagógico e Autonomia da Escola”, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em vigor, a Lei nº 9394/96, vinculou pela primeira vez autonomia escolar e projeto pedagógico num texto legal, oferecendo às escolas a oportunidade construir o seu próprio projeto pedagógico (AZANHA, 2006). 2006). Segundo José Mário Pires Azanha Azanha (2006) “o artigo 12 (inciso I) �
estabelece como incumbência primordial da escola a elaboração e execução de seu projeto pedagógico e os artigos 13 (inciso I) e 14 (incisos I e II) estabelecem que esse projeto é uma tarefa coletiva, na qual devem colaborar professores, outros profissionais da educação e as comunidades escolar e local” (op. cit., p. 93). Dentre as referências com relação ao tempo, na referida Lei, é importante salientarmos o artigo 23, que diz o seguinte: “a educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. Parágrafo 1º: A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais. Parágrafo 2º: O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta Lei.” O segundo parágrafo do artigo 23 expressa uma tentativa de conciliação entre o tempo da escola e os tempos sociais, uma vez que visa a respeitar as particularidades dos municípios, como as festividades locais locais e a cultura regional. regional. O artigo 24 também nos nos interessa especialmente com relação ao tempo. Ele diz que “a educação básica, nos níveis fundamental e médio, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns: I - a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver; II - a classificação em qualquer série ou etapa, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita: a) por promoção, para alunos que cursaram, com aproveitamento, a série ou fase anterior, na própria escola; b) por transferência, para candidatos procedentes de outras escolas; c) independentemente de escolarização anterior, mediante avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino; III - nos estabelecimentos que adotam a progressão regular por série, o regimento escolar pode admitir formas de progressão parcial, desde que preservada a seqüência do currículo, observadas as normas do respectivo sistema de ensino; IV - poderão organizar-se classes, ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares; V - a verificação do rendimento escolar observará os seguintes critérios: a) avaliação contínua e cumulativa �
do desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo do período sobre os de eventuais provas finais; b) possibilidade de aceleração de estudos para alunos com atraso escolar; c) possibilidade de avanço nos cursos e nas séries mediante verificação do aprendizado;d) aproveitamento de estudos concluídos com êxito; e) obrigatoriedade de estudos de recuperação, de preferência paralelos ao período letivo, para os casos de baixo rendimento escolar, a serem disciplinados pelas instituições de ensino em seus regimentos; VI - o controle de freqüência fica a cargo da escola, conforme o disposto no seu regimento e nas normas do respectivo sistema de ensino, exigida a freqüência mínima de setenta e cinco por cento do total de horas letivas para aprovação; VII - cabe a cada instituição de ensino expedir históricos escolares, declarações de conclusão de série e diplomas ou certificados de conclusão de cursos, com as especificações cabíveis”. Como é possível observar a partir dos referidos artigos da LDB, há uma orientação geral acerca da utilização do tempo nas escolas, mas a sua organização fica a critério das escolas. No artigo 25, é estabelecido que “será objetivo permanente das autoridades responsáveis alcançar relação adequada entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as condições materiais do estabelecimento”. Nesse sentido, de acordo com a legislação cabe ao governo oferecer as condições para que a educação seja realizada, mas cabe à escola pensar na melhor forma de conduzi-la. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), que foram criados a partir da promulgação da Lei nº 9394/96, visam à orientar o trabalho nas escolas, mas, assim como a LDB, eles também não tem o objetivo de conduzir rigidamente os processos de ensino e aprendizagem, nem tampouco de “engessar” as atividades e a organização do cotidiano das escolas, já que ambos partem da ideia de que é preciso que as instituições educacionais trabalhem com autonomia. Portanto, cabe a cada escola pensar na melhor maneira de utilizar e organizar o seu tempo, de modo a atender os objetivos do seu projeto pedagógico (AZANHA, 2006). Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), “a consideração do tempo como variável que interfere na construção da autonomia permite ao professor criar situações em que o aluno possa progressivamente controlar a realização de suas atividades. Por meio de erros e acertos, o aluno toma consciência de suas possibilidades e constrói mecanismos de auto-regulação que possibilitam decidir como alocar seu tempo” (op. cit., p. 102). É por esse motivo que são importantes as atividades nas quais �
o professor é considerado como um orientador do trabalho, deixando com os alunos a responsabilidade pela execução e pelo planejamento, levando-os a refletir, a ponderar, a decidir e a vivenciar os resultados de suas escolhas acerca da utilização do tempo. Nesse sentido, os estudantes passam de participantes a protagonistas das tarefas realizadas na escola. Mas o documento adverte: “delegar esse controle não quer dizer, de modo algum, que os alunos devam arbitrar livremente a respeito de como e quando atuar na escola. A vivência do controle do tempo pelos alunos se insere dentro de limites criteriosamente estabelecidos pelo professor, que se tornarão menos restritivos à medida que o grupo desenvolva sua autonomia. Assim, é preciso que o professor defina claramente as atividades, estabeleça a organização em grupos, disponibilize recursos materiais adequados e defina o período de execução previsto, dentro do qual os alunos serão livres para tomar suas decisões. Caso contrário, a prática de sala de aula torna-se insustentável pela indisciplina que gera” (op. cit., p. 102) Ao permitir que as crianças e os jovens controlem a utilização do tempo, a escola está fazendo desta tarefa um momento de aprendizagem, ensinando-os a utilizar o tempo . Com relação ao horário escolar, os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam que ele deve obedecer ao tempo mínimo estabelecido pela legislação em vigor para cada uma das áreas de aprendizagem do currículo: “a partir desse critério, e em função das opções do projeto educativo da escola, é que se poderá fazer a distribuição horária mais adequada. No terceiro e no quarto ciclos, nos quais as aulas se organizam por áreas com professores específicos e tempo previamente estabelecido, é interessante pensar que uma das maneiras de otimizar o tempo escolar é organizar aulas duplas, pois assim o professor tem condições de propor atividades em grupo que demandam maior tempo (aulas curtas tendem a ser expositivas)” (op. cit., p. 102). Intervalos no tempo Os intervalos no tempo são marcações, como os aniversários, os feriados, as férias, que impõem um ritmo às nossas atividades. Na escola, o recreio é um intervalo importante na marcação do tempo: nele, há um espaço para a recreação e para o lazer. Tanto na vida social, quanto na vida escolar, o lazer é um tempo que cada tem para si mesmo, após ter cumprido as suas obrigações com relação à família, à casa, ao trabalho e à escola (PINEAU, 1989). O tempo do lazer representa um momento no qual as pessoas ocupam-se de si mesmas, voltam-se para si mesmas, o que nem sempre pode ocorrer �
quando estamos envolvidos em atividades profissionais e escolares e utilizamos nosso tempo em relação ao outro. Seja mediante o descanso, a diversão, as atividades esportivas, culturais ou intelectuais, o lazer representa um intervalo importante no nosso tempo porque ele nos leva a buscar a satisfação das nossas próprias necessidades. Não é por acaso que as pessoas referem-se a esses períodos como momentos no qual “as suas energias são recarregadas”. Mas a escola também ensina as crianças a utilizarem os seus intervalos no tempo? Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), as escolas devem oferecer uma educação que ultrapasse os conteúdos das disciplinas, visando à formação ética dos alunos. Desta forma, as atividades extraclasse e o recreio – que seria originalmente um momento de descanso realizado durante as aulas - também podem representar uma ocasião em que haveria um trabalho voltado ao desenvolvimento e ao cultivo dos valores morais, de acordo com o projeto político-pedagógico da escola. Um elemento importante que influencia a condução das atividades no recreio dos alunos é o espaço que poderá ser utilizado nesse tempo. E o espaço será o tema de que trataremos a seguir.
Sentidos dos espaços Vamos retomar o exemplo do recreio e continuemos pensando a propósito dele. Seja ele dirigido, quando ele é compreendido pelo projeto político-pedagógico, de modo que ele também consista num momento de aprendizagem para os alunos, seja ele “livre”, quando os alunos podem descansar e conduzir o seu tempo naquele intervalo, o espaço que a escola possui para a realização do recreio influencia diretamente o tipo de atividade que poderá existir ali. Se a escola possui uma área aberta, como um parque, um pátio ou uma quadra, os dias de chuva irão alterar a rotina dos alunos que precisarão permanecer na sala de aula para que não se molhem, exigindo muitas vezes que os próprios professores trabalhem durante esses intervalos, propondo atividades para ocupar o tempo das crianças na impossibilidade de utilização do espaço destinado ao lazer. A reflexão sobre o espaço busca compreendê-lo como uma construção não apenas arquitetônica, mas também cultural. O espaço da escola também pode ser considerado como uma forma de ensino: ele é um elemento significativo do currículo e uma fonte de experiência e aprendizagem (ESCOLANO e VINÃO FRAGO, 2001). Segundo Antonio Vinão Frago (2001), em um momento em que o mundo está globalizado e sofre �
constantes transformações, o espaço não pode ser visto apenas mediante a ótica da necessidade de uma ordem determinada e pelo ponto de vista fixo. A organização do espaço deve ter em conta o aleatório e o ponto de vista móvel, permitindo ao espaço ser uma possibilidade e não uma limitação. Mas como isso seria possível? Nessa perspectiva, o espaço estaria em constante transformação, adequando-se às necessidades daqueles que nele habitam e transitam. O espaço não representa apenas um lugar no qual podemos habitar, como a nossa casa, passear e nos locomover, como a rua, trabalhar, como uma empresa, uma loja, um oficina, etc, ou aprender, como a escola: o espaço também educa. Assim como pensamos no lugar , poderíamos pensar no não-lugar (AUGÉ, 1994). Para Marc Augé (1994), enquanto o lugar seria aquele espaço personalizado que nos acolhe, como a nossa casa, o não-lugar pode ser entendido como o espaço público no qual as pessoas estão de passagem, como as estações de metrô, as rodoviárias e os aeroportos, por exemplo. Enquanto o lugar está relacionado com a identidade das pessoas, o não-lugar é marcado pelos deslocamentos impessoais. No âmbito da pesquisas na área educacional, o espaço escolar, a sua transformação em lugar , foi objeto de atenção tanto daqueles que se preocupavam com questões relativas à organização, ao currículo e à didática, quanto daqueles que analisavam os tipos de distribuição espacial que as instituições educacionais oferecem, assemelhando-se muitas vezes a instituições de outra natureza, como os hospitais e os quartéis, como veremos mais adiante. Essa forma de olhar para o espaço escolar e investigá-lo interessa sobretudo à historiografia da educação e à história cultural das instituições escolares. As investigações historiográficas recentes, que se interrogam acerca das práticas e da cultura escolar, tentam reconstituir o cotidiano da escola e as suas práticas. José Mário Pires Azanha (1991), partindo de um questionamento sobre a crise em educação, defendeu que se processasse um estudo das práticas escolares, de forma a realizar um mapeamento cultural da escola, privilegiando a sua constituição histórico-social. A respeito desse tipo de pesquisa, Azanha afirmava: “O que interessa é descrever as ‘práticas escolares’ e os seus correlatos (objetivados em mentalidades, conflitos, discursos, procedimentos, hábitos, atitudes, regulamentações, ‘resultados escolares’, etc.). Somente o acúmulo sistemático dessas descrições permitirá compor um quadro compreensivo da situação escolar, ponto de partida para um esforço de explicação e de reformulação. (...) Que interesses objetivos (mas nem sempre explicitados) se associam à formação e persistência dessas práticas?” (op. cit., p. 67) O autor questionava as �
reformas educacionais, defendendo que era no interior do espaço escolar que se definia o destino das políticas públicas, pela forma como os professores lidavam com as mudanças e pelas alterações nos padrões de trabalho. No seu entender, somente seria possível entender as resistências apresentadas nas conexões entre a vida escolar e as prescrições legais acerca dela mediante uma investigação que partisse de um estudo dos indícios, para além dos estudos sobre as grandes reformas e os pedagogos ilustres. Segundo Faria Filho et al. (2004), ao elucidar sobre a importância de um estudo acerca das práticas escolares, Azanha “demonstrava a proficuidade do conceito na operacionalização de análises sobre a instituição escolar a partir de diferentes vertentes do conhecimento pedagógico” (op. cit., p. 141). Na mesma época em que Azanha (1991) incentivava esse tipo de pesquisa, André Chervel (1990) propunha o estudo sobre a história das disciplinas escolares e Jean Claude Forquin (1992) defendia a interação entre as dinâmicas sociais e a cultura escolar. Para Faria Filho et al., no início dos anos de 1990 dava-se início a uma reflexão que atingiria um grande número de pesquisas educacionais. A preocupação com a questão da cultura escolar passou a fazer parte dos trabalhos em história da educação por uma aproximação com a disciplina de história, pela forma de lidar com as fontes, através de levantamento e sistematização de documentos, e também “pelo acolhimento de protocolos de legitimidade da narrativa historiográfica” (op. cit., 142). Os trabalhos que fazem uso da cultura escolar como categoria de interpretação também partem de outras áreas disciplinares que compõe a pedagogia, como a sociologia da educação, a psicologia da educação, a filosofia da educação e a didática. Ao mesmo tempo em que as práticas evidenciavam elementos que constituíam o cotidiano escolar, elas também consistiam em exercícios para a formação de hábitos, ensinando não apenas a utilizar o espaço como também a estar no espaço. Assim como foi visto no módulo II “O projeto pedagógico e autonomia da escola”, como discutimos o funcionamento da escola, é preciso que consideremos toda a sua cultura escolar , os seus pressupostos e a sua história. No âmbito na história da educação, a antiga história das idéias pedagógicas e das grandes reformas foi substituída por uma nova forma de se fazer história. Esta antiga história se constituía de um saber subsidiário, que contemplava uma repartição de conhecimentos sobre educação. Um dos seus ramos era a história da pedagogia, que fornecia matérias para a reflexão filosófica sobre os fins da educação, fornecendo ao pedagogo um conjunto de ideais ��
corporificados em grandes sistemas pedagógicos (CARVALHO, 1998). Sob a influência de uma perspectiva distinta, a história cultural, que trouxe novos objetos para o cerne das questões históricas, como, por exemplo: os sistemas de parentesco e as relações familiares, a atitudes perante a vida e a morte, as crenças e os comportamentos religiosos, as formas de sociabilidade, os rituais, as modalidades de funcionamento escolar, consagrou novos territórios ao historiador, por intermédio da anexação de espaços antes dominados por outras ciências (CHARTIER, 1990). A mudança resultou em uma ‘nova história’, que passou a apropriar-se de novos objetos, aplicando a eles um novo tratamento, uma nova forma de se fazer pesquisa. A história cultural concilia novos domínios de investigação, tendo em vista os postulados da história social, que visava a uma nova legitimidade científica, baseando-se em aquisições intelectuais que haviam fortalecido o seu domínio institucional. O principal objetivo deste tipo de estudo cultural é identificar a forma como em momentos e lugares distintos uma mesma realidade social é construída, pensada. Este tipo de trabalho pode apresentar vários caminhos: o primeiro diz respeito às classificações, divisões e delimitações que organizam a apreensão do mundo social como categorias fundamentais de percepção e apreciação do real. A propósito dessa questão, Roger Chartier (1990) apresenta a seguinte consideração: “variáveis consoantes às classes sociais ou os meios intelectuais são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (op. cit., p. 17) Com isso, a história da educação teve seu território redesenhado, e seus interesses agora compreendem uma nova concepção de escola, de seus agentes e de suas práticas. Segundo Marta Carvalho (1998): “Da História da Educação espera-se, agora, capacidade de perspectivar o olhar e problematizar o estabelecido, historicizando-o, o que se traduz na incorporação de procedimentos lastreados em ‘referenciais teóricos atentos aos processos históricos de constituição de objetos investigados’. Nesse processo são, sobretudo as perspectivas abertas e as questões lançadas pela chamada Nova História Cultural que vêm redesenhando as fronteiras e redefinindo os métodos e objetos da História da Educação” (op. cit., p. 32). Então, o modelo escolar educacional começou a ser interpretado como uma construção histórica derivada da confluência de dispositivos políticos, científicos, pedagógicos e religiosos. Novas questões e novas modalidades de tratamento das fontes tem tornado possível a construção da história da escola, que conta com a investigação acerca da cultura e das práticas que se constroem ��
no interior do espaço escolar. Para o estudo da cultura escolar é preciso efetuar uma análise das relações pacíficas ou conflituosas que ela mantêm, a cada época, com o conjunto de culturas que lhe são contemporâneas, como a cultura política, a cultura religiosa ou a cultura popular. Dominique Julia (2001) definiu a cultura escolar como um conjunto de normas que definem os conhecimentos que devem ser ensinados e as condutas que devem ser incorporadas, e um conjunto de práticas que possibilitam a transmissão de tais conhecimentos e a incorporação de determinados comportamentos, que sofrem alterações de acordo com a época vivenciada. O autor realizou uma crítica aos historiadores da educação que, ao trabalharem com textos normativos, tendiam a superestimar modelos e projetos e a compreender a cultura escolar isolada do mundo exterior. Ele defendia que a atenção dos historiadores deveria voltar-se para o funcionamento interno da escola. Julia atentava para que o pesquisador não se deixasse “enganar” pelas fontes normativas com que trabalha, porque “a história das práticas culturais é, com efeito, a mais difícil de se reconstruir porque ela não deixa traço: o que é evidente em um determinado momento tem necessidade de ser dito ou escrito?” (op. cit., p. 15). As mudanças por que passaram os estudos realizados no âmbito da história da educação, recusando pesquisas essencialmente externalistas, evidenciaram uma aproximação entre as análises macropolíticas e as investigações acerca do interior do espaço escolar, fazendo com que a metáfora aeronáutica da “caixa preta” adquirisse valor de argumentação (FARIA FILHO et al., 2004). A cultura escolar, esse conjunto de valores, regras, normas, objetos, é construída através de conflitos e em função de dinâmicas sociais. Os processos organizacionais que existem no interior na instituição escolar fazem referência a este jogo educacional e cultural formado pela estruturação do saber e pela transmissão de conteúdos cognitivos e simbólicos. Através do conceito de cultura escolar são colocadas em foco as práticas que constroem a sociabilidade escolar e, de uma forma também escolar, de transmissão cultural. (CARVALHO, 1998) O estudo sobre a cultura escolar permite desnaturalizar a escola, concebê-la enquanto uma instituição fundada com o intuito de promover não apenas o ensino da leitura, da escrita e do cálculo, mas também a socialização das pessoas e a disciplina e sujeição dos corpos a normas e regras, desvelando, de certa forma, o caráter intencional de suas práticas, da utilização do seu tempo e da organização do seu espaço. Exercício 1
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“Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas.(...) Havia os que tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: ‘Farei presente’. Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: ‘Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo’, ao que o Reverendíssimo correspondia: ‘Para sempre seja louvado’. E os eruditos, se alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: ‘Dominus tecum’. Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias. (...) Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora”. (“Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade In Quadrante (1962), obra coletiva reproduzida em Caminhos de João Brandão José Olympio, 1970) No poema “Antigamente”, Carlos Drummond de Andrade (1962) brinca com palavras muitos utilizadas no passado, deixando transparecer o comportamento que era esperado das crianças e das jovens: as moças deveriam ser “mimosas” e “prendadas”, as crianças deveriam “cuspir dentro da escarradeira” ao visitar familiares. No tempo presente, o poeta relembra o tempo de outrora. Construa uma pequena reflexão acerca da forma como você entende que as pessoas experimentam os diferentes tempos sociais, especialmente com relação às diferenças que marcam o tempo do lar e o tempo da escola. Tente recuperar em sua própria história fragmentos das relações com o tempo nos dois casos citados (de casa e da escola).
Semelhanças entre os espaços Ao pensarmos na configuração das nossas escolas, podemos nos interrogar acerca dos princípios que orientaram a sua construção. Quais semelhanças existem entre ��
o espaço escolar e os outros espaços sociais? Michel Foucault (1994), em Vigiar e Punir, nos ajuda a pensar mais demoradamente sobre essa questão. Neste livro, o autor
investiga o nascimento da prisão, trata da questão da disciplina e da forma como ocorreu o processo de sujeição dos corpos às ordens e ao adestramento. No período que compreende os séculos XVII e XVIII, o corpo foi descoberto como objeto e alvo de poder. Ao tratar da formação do soldado, o autor afirma que ela dizia respeito a um treinamento que o deixava eficiente como uma máquina: todos os seus gestos eram calculados para que ele agisse na hora exata e com precisão. Nesse momento, o corpo passou a ser visto como algo que precisava ser modelado e treinado. Contudo, este treinamento era conquistado através de pequenos gestos e não de grandes ordens. No período anterior a esse citado pelo autor, o controle sobre o comportamento das pessoas era realizado de maneira bastante distinta: aqueles que não contribuíam com a ordem e não agiam de acordo com lei, fosse ela ditada pelo Estado, pela monarquia ou pela Igreja, corria o risco de ser queimado, de ter a sua cabeça decepada por um golpe de guilhotina ou mesmo de ser surrado. Mas em qual espaço essas ações ocorriam? Em praça pública. O fato das punições ocorrerem no espaço público – e também este tipo de utilização do espaço - consistia numa estratégia disciplinar já que visava a dar visibilidade à punição alheia, demonstrando a todos o que poderia acontecer com aqueles que não se sujeitassem às normas e às regras estabelecidas. Mediante a pesquisa realizada, Foucault defende que há um avanço nas “tecnologias do poder”, uma modificação nas estratégias utilizadas para disciplinar as pessoas, que passam do espaço público para o espaço privado. O nascimento da prisão altera a lógica disciplinar anterior, já que a punição passa a ser realizada nos interior das instituições. Aliadas à prisão, como estratégias de punição e de correção surgiram uma série dispositivos que tinham por objetivo controlar o comportamento das pessoas. A própria arquitetura dos edifícios obedecia a essa orientação. Nesta perspectiva, é possível entender que a disciplina não é algo que sempre existiu da mesma forma, conquistada mediante tantos detalhes, ela passou a contar com tantas prescrições quando foi dada uma maior ênfase ao corpo: “o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil e inversamente.” (op. cit., p. 127) Este treinamento ao qual são submetidos os corpos consiste na disciplina, encontrada não apenas em quartéis, mas em todas as instituições formadas pelos homens. A disciplina ��
tem o poder de colocar ordem, controlar as pessoas, organizar os espaços : “importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para reconhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.” (op. cit., p. 131) As prisões nascem ocupando uma estrutura arquitetônica conhecida como “panóptico”. Esse termo foi concebido pelo filósofo inglês Jeremy Bentham, em 1785, ao pensar um modelo penitenciário que considerou ideal, por permitir, a um baixo custo, uma vigilância constante daqueles que estivessem encarcerados. A utilização do espaço, neste caso, foi pensada estrategicamente de modo que apenas um vigilante, localizado em uma torre de observação construída no pátio central da prisão, pudesse observar todos os prisioneiros sem que eles pudessem saber se estavam ou não sendo vigiados, submetendo-os sob seu controle. Essa estrutura de edifício de modo anelar ou retangular com um pátio interno também pode ser observada em hospitais, escolas e fábricas. O espaço no interior destes prédios – as celas, os quartos ou as salas – compreende em sua superfície dois tipos de janela: uma voltada para o exterior de modo a permitir a entrada da luz e outra voltada para o pátio, de modo a garantir a vigilância. Nesse sentido, a organização espacial era pensada para promover a disciplina. Além da estrutura arquitetônica, para que a prática disciplinar se efetivasse eram utilizadas “micropenalidades”, castigos e sanções que visavam a fazer com que o indivíduo as incorporasse até que pudesse agir da forma esperada, sem que fosse preciso verbalizar ou efetuar tal sanção. Tratava-se de processos sutis, como castigos leves, privações temporárias ou pequenas humilhações que sinalizavam que a postura assumida estava errada. No espaço escolar, havia ainda a recompensa, que reforçava o bom comportamento através da oferta de medalhas, elogios e presentes. Mediante as sanções exercidas, positivas ou negativas, o comportamento daqueles que as sofrem tornam-se homogeneizados, tornando mais fácil o seu governo. Cada um passa a atuar de acordo com aquilo que foi interiorizado, com o que foi estabelecido enquanto padrão esperado de comportamento. A disciplina, seja ela utilizada na escola, no hospital, o exército ou em qualquer outra instituição, com a finalidade de formar hábitos adequados, gestos eficientes e impor ordem, pelo poder que ela exerce sobre as pessoas, ela também humilha, exclui, reprime e censura. Controlando a diversidade, os mais afetados nesse processo seriam os diferentes, aqueles que se desviassem do padrão estabelecido. A disciplina controla as pessoas, organiza os espaços e estende-se dos ��
quartéis para as escolas, os hospitais, as igrejas, as famílias, enfim, para todas as instituições onde há sempre um poder a ser exercido e ordens a serem cumpridas. A escola, por sua vez, enquanto instituição disciplinadora e formadora é dotada de todas as características que podem controlar o comportamento dos indivíduos porque um “corpo disciplinado”, segundo o autor, “é a base de um gesto eficiente”: nela, as crianças são castigadas ou premiadas, são vigiadas permanentemente, possuem horários fixos para as atividades, formam filas e usam todas um mesmo tipo de roupa, os uniformes escolares. Na escola, a organização do tempo e do espaço também submetem os alunos à disciplina. Segundo Carlos Eduardo Guimarães (1982), a disciplina enquanto submissão a normas é condição para o domínio de determinada matéria e deve estar presente no processo de ensino e de aprendizagem. Nas palavras do autor, “a disciplina mostra-se
como condição para que se atinja, cognitivamente, ou para que se modifique alguma coisa. A ação disciplinada opõe-se à ação desregrada, caótica, que só acidentalmente pode ser bem sucedida. Com a ação disciplinada pretendemos ser, necessariamente, bem sucedidos” (op. cit., p. 34). Nesta perspectiva a disciplina seria a condição para chegarmos ao nosso objetivo, neste caso, ensinarmos a matéria pretendida pelo projeto pedagógico aos nossos alunos: “não há uma disciplina pela disciplina, mas uma disciplina para conhecer melhor, uma disciplina para agir melhor, uma disciplina para fazer melhor” (op. cit., p. 35). É importante ressaltarmos que, de acordo com Guimarães, a disciplina possibilita ao sujeito que alcance a liberdade. De que forma? À medida em que ela pode permitir que ele adquira o domínio sobre a matéria, ou seja, que ela pode fazer com que ele não aprenda história simplesmente, mas que ele aprenda a pensar historicamente, que ele não aprenda matemática simplesmente, mas que ele aprenda a pensar matematicamente: à medida em que ela, a disciplina, pode permitir que o aluno tenha domínio sobre a matéria, de modo a manejá-la em seu próprio benefício, possibilitando a compreensão, a inserção social e a resolução de problemas. E não seria esse o objetivo que nós, educadores, temos quando construímos o projeto pedagógico? Buscando formar os nossos alunos para que sejam “cidadãos críticos e participativos”? E que, como sugerem os nossos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) desenvolvam “competências e habilidades”? Assim, a disciplina promovida também pela organização do tempo e do espaço tem uma finalidade pedagógica importante, para além do controle do comportamento dos alunos. É preciso levar o aluno a disciplinar-se, fazendo com que ele se submeta às regras impostas pela escola em função da aprendizagem pretendida . ��
A arquitetura dos grupos escolares Segundo Agustín Escolano (2001), nem o tempo, nem o espaço são elementos neutros do ensino. Para o autor, eles funcionam como uma espécie de discurso que promove, através da sua materialidade, um conjunto de aprendizagens motoras e sensoriais e um sistema de valores estéticos, ideológicos e culturais. Se pensarmos na configuração do espaço escolar no final do século XIX, é possível notarmos semelhanças entre os edifícios dos grupos escolares e o panóptico investigado por Foucault. Muitas escolas construídas até as primeiras décadas do século XX conservam ainda hoje suas características iniciais, como o pátio interno utilizado como espaço de circulação dos alunos no horário dos intervalos das aulas (SOUSA, 1996). Além de significarem a constituição de um espaço pensado especialmente para que a educação fosse realizada, os grupos escolares também simbolizavam o projeto educativo republicado – que tinha a educação como um dos pilares da organização nacional - e, por este motivo, precisavam ter visibilidade e destaque nas cidades nas quais eles fossem construídos, daí a monumentalidade e a magnificência destes edifícios. Desta forma, a arquitetura escolar pública teve por objetivo propagar a iniciativa que os governos empreendiam pela educação. Os prédios das escolas deveriam então divulgar a imagem de prosperidade e de nobreza das administrações. A monumentalidade seria conseqüência da preocupação em tornar muito evidentes os edifícios das escolas públicas, mostrando que os mesmos eram espaços mantidos pelo governo (FARIA FILHO e VIDAL, 2000). Os grupos escolares representavam então uma aposta que o governo republicado fazia no futuro da nação mediante a ordenação do sistema de ensino e dos espaços destinados a realização educação escolar. Mas como eles eram construídos? Os grupos escolares poderiam ter, em geral, 4, 8 ou 10 salas de aula, um ou dois andares, biblioteca escolar, museu escolar, sala dos professores e sala da administração. Construídos de forma simétrica ao redor de um pátio central, eles ofereciam espaços diferentes para o ensino das meninas e dos meninos - neste período ainda não havia o ensino misto. Esses prédios também possuíam entradas diferentes para os alunos e para as alunas. Dentro as salas de aula, as carteiras eram fixas e o local que o professor deveria ocupar era bem demarcado: no centro e à frente. Segundo Luciano Faria Filho e Diana Vidal (2000), “a rígida divisão dos sexos, a indicação ��
precisa de espaços individuais na sala de aula e o controle dos movimentos do corpo na hora do recreio conformavam uma economia gestual e motora que distinguia o aluno escolarizado da criança sem escola” (op. cit., p. 25). A conformação, a adequação das crianças a um novo espaço, diferente de suas casas ensinava também uma forma de ser , de estar e de se comportar neste lugar, de maneira distinta daquela que elas estavam habituadas no ambiente familiar, ocasionando então um elemento de distinção, uma marca visível na conduta daqueles que haviam freqüentado o espaço escolar. A escolarização promove a conformação do ser humano como “pessoa-no-mundo”, de maneira organizada e intencional (VINÃO FRAGO, 2001). Além disso, “o convívio com a arquitetura monumental, os amplos corredores, a altura do pé-direito, as dimensões grandiosas de janelas e portas, a racionalização e a higienização dos espaços e o destaque do prédio escolar com relação à cidade que o cercava visavam incutir nos alunos o apreço à educação racional e científica, valorizando uma simbologia estética, cultural e ideológica constituída pelas luzes da República” (op. cit., 25) O ambiente deveria ser educativo e os princípios que regiam as construções escolares eram pautados pelas necessidades pedagógicas, de ensino, de aprendizagem, de disciplina e de recreação; higiênicas, de iluminação e de ventilação adequadas e estéticas, devendo promover o gosto pelo artístico e pelo belo. Assim, a arquitetura dos grupos escolares não apenas fazia com que as crianças aprendessem a se comportar e a habitar esse espaço como também promovia o desenvolvimento do respeito dos pequenos cidadãos à República que se instaurava, através da grandiosidade de seus edifícios. Se a imponência dos edifícios públicos pode ser percebida até os dias atuais, imaginem o destaque que eles possuíam na virada do século XIX para o século XX, ou mesmo nas décadas posteriores, em 1910, 1920? A sensação das crianças ingressando nos grupos escolares naquele momento pode talvez assemelhar-se em alguns aspectos com a nossa entrada em um teatro municipal, em um fórum ou até mesmo em uma catedral. Nós, adultos, não nos sentimos pequenos diante da monumentalidade destes edifícios e dos símbolos que eles carregam? Imaginem a sensação que essas escolas produziram nas crianças naquela época! Além da magnificência destes prédios, outro fator que precisa ser levado em consideração com relação à sensação, à forma como as crianças percebem os espaços é que a sua percepção espacial é relativa ao seu tamanho (ESCOLANO, 2001). Por exemplo: vocês já tiveram a oportunidade de voltar, depois de muito tempo, a um lugar que freqüentaram durante a infância? Quem já passou por essa experiência deve ter percebido que as lembranças dos lugares que registramos na nossa memória ��
sobre o tempo no qual éramos crianças raramente coincide com a sensação que temos quando voltamos a esses espaços na idade adulta. Normalmente guardamos na memória a sensação de que os espaços são muito maiores do que percebemos quando voltamos a eles quando somos adultos. O espaço escolar sob influência do movimento da Escola Nova Voltemos à história do espaço escolar brasileiro. O desejo de impor ordem ao espaço escolar refletiu a vontade de se ordenar a sociedade como um todo, rumo ao progresso. No período republicano (1889-1930), supunha-se que a causa de todas as crises do país vinha da ignorância do povo e do analfabetismo. Com isso, a educação passou a ser apresentada como o grande pilar da organização social. De acordo com Marta Carvalho (1997), havia todo um discurso que atribuía o mau desenvolvimento do país ao povo, considerado mal organizado, sujo, e ignorante, por isso foi dada tanta ênfase aos cuidados com a higiene e o corpo. Logo, a educação sanitária teve um enorme valor, e a escola, conseqüentemente, seria o meio propício por excelência para a manutenção e o revigoramento da saúde, daí a importância também que o discurso médico-higienista teve para as construções escolares. A disciplina entra em funcionamento muito cedo na escola, e como ela é considerada como um lugar que impõe ordem e abriga a juventude, o futuro da nação, é a melhor instituição para se começar a mudar a mentalidade de um país. Os uniformes escolares também foram elementos que fizeram parte desta mudança, a legislação vigente prescrevia que eles deveriam estar sempre limpos e asseados. Além de manter os alunos com um aspecto de limpeza, os uniformes permitiam que fosse controlado o tipo de roupa que haveria de ser usada nas escolas. Eles contribuíam para ordenar as crianças no espaço escolar. Assim como as carteiras, úteis para que os alunos fiquem sentados e quietos durante as aulas, os uniformes se prestavam a homogeneizá-los, mascarando as diferenças e condições sociais de cada um, através de um único tipo de roupa, usada o ano todo. Antes da República a escola não tinha uma função importante junto à economia, permanecendo como agente de educação para o ócio ou preparando para as carreiras liberais destinadas especialmente aos jovens vindos das famílias de maior poder aquisitivo. Por volta da década de quarenta, quando, por ocasião da segunda guerra mundial, o mercado brasileiro teve a chance de se expandir, sendo que os países que antes importavam mercadorias para o Brasil já não o faziam, foi preciso que se formassem pessoas aptas ao trabalho e que fossem também qualificadas. Então, a escola ��
brasileira passou a evoluir em função dos papéis que lhe reconhecia a economia mundial. A partir daí foi feita uma reforma no ensino, impulsionando o desenvolvimento de escolas profissionais, para isso uniram-se a elas instituições auxiliares como, os museus, o escotismo, os pelotões de saúde e as caixas escolares, promovendo novas configurações no espaço escolar (CARVALHO, 2001). Nos anos de 1920, o movimento da Escola Nova começou a influenciar muitos educadores brasileiros, refletindo também nas construções escolares. Nascida na França em 1899, a partir do projeto do pedagogo francês Edmond Demolins (1852 – 1907), que pretendia criar uma escola considerada “nova”, capaz de formar as novas elites, preparando as crianças, que deveriam ser responsáveis pela sua própria educação, voltada para a vida prática, a “École des Roches” visava à formação de um homem novo (DUVAL, 2009). Essa experiência inicial faz parte do movimento que ficou conhecido como Escola Nova e que se espalhou pelo mundo nas décadas seguintes. No Brasil, ele começou a esboçar-se nos anos de 1920, época marcada pelo crescimento industrial, pela imigração e pela expansão urbana. Nestas condições históricas e sociais, um grupo de intelectuais que contava com nomes como o de Anísio Teixeira, o de Fernando de Azevedo, o de Lourenço Filho, entre outros, difundiu o movimento no país, tomando a educação como algo que precisaria ser revisto e remodelado para que a sociedade pudesse estar preparada para acompanhar esse desenvolvimento social e econômico. Os ideais da Escola Nova, ao defenderem a formação integral, uniforme, obrigatória e comum para todas as crianças e ao incentivarem tanto o trabalho coletivo quanto o trabalho individual para garantir o bem-estar do grupo, incutiriam nos alunos a sensação de dever para com os outros e despertariam sentimentos de solidariedade mediante o cumprimento de responsabilidades que garantiriam o bom funcionamento da comunidade. O projeto escolanovista visava a contribuir para a configuração de um modelo de escola que, ao cuidar da educação, almejava cuidar também da organização do povo em uma sociedade industrial que estava em expansão. Sob a influência da biologia e da psicologia, e educação renovada promoveria a adaptação das crianças às novas condições sociais (CARVALHO, 2001). Concebendo-as como agentes de sua própria educação, o movimento pretendia ensinar as crianças a fazer o uso racional da liberdade. O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, que teve como redator Fernando de Azevedo, defendia a universalização de uma escola pública, laica e gratuita e que esta fosse organizada como uma “comunidade de vida”, baseada nos princípios da solidariedade, da cooperação, da ação e da liberdade. Sob sua ��
influência, educadores, engenheiros, médicos, arquitetos e psicólogos eram convidados a opinar sobre as construções escolares. As crianças deveriam ser estimuladas pelos professores a desenvolver as suas atividades com prazer mas também para trabalhar pelo bem da comunidade e do espaço escolares. De acordo com o documento citado, a Escola Nova não seria um aparelho de instrução, mas buscaria desenvolver uma educação integral, e proveria, de forma articulada, a “educação física, moral e cívica”, desenvolvendo também nas crianças hábitos higiênicos, despertando o “sentido da saúde”, a resistência e “vitalidades físicas”, a “alegria de viver” (AZEVEDO, 1932). Entre os ideais da Escola Nova também estava o ensino misto, pois os defensores deste movimento acreditavam que os meninos e as meninas deveriam conviver juntos no espaço escolar. Nesta perspectiva, não deveria mais haver separação nos prédios escolares entre os espaços nos quais deveriam circular as meninas e naquelas nos quais deveriam transitar os meninos, já que eles deveriam conviver em um mesmo ambiente. A entrada que dava acesso à escola também sofreria uma mudança: ao invés de duas portas, uma para os alunos e outra para as alunas, haveria uma só para ambos os sexos. A forma de utilização da sala de aula também sofreu alterações. Afinal, como era possível ensinar as crianças a lidar com a própria liberdade se nem as suas carteiras poderiam sair do lugar? Então foram abolidas as carteiras fixas, e as cadeiras e as mesas móveis permitiram uma nova utilização do espaço da sala de aula no qual os alunos e os professores pudessem circular. Essa reordenação do espaço estabeleceu uma nova relação entre os professores e os alunos, alterando tanto o trabalho docente quanto as atividades realizadas pelas crianças. Hoje em dia, não é comum orientarmos os alunos para que se organizem em grupos e realizem atividades coletivamente? Essa forma de conduzir o trabalho e de utilização do espaço que encontramos hoje em dia nas escolas é uma construção cultural. Como tal, ela traz consigo a influência dos mais variados discursos – médico, psicológico, higienista, etc – que determinaram a sua configuração. No ano de 1971, a Lei de Diretrizes e Bases nº 5.692/71 estabeleceu o ensino fundamental de 8 anos, extinguindo os grupos escolares. Neste momento, o antigo “ensino primário” e o “ensino ginasial” deram lugar ao ensino fundamental de “oito séries”. As primeiras experiências no espaço organizado ��
Um artigo publicado no jornal “O Estado de São Paulo” em 2 de maio de 2011, intitulado “Construção da escola influencia aprendizado”, chamava a atenção para a importância que a construção da escola tem para a educação ali realizada e também para o quanto a arquitetura escolar influencia o aprendizado. Além disso, o texto sugere que os espaços devem levar em conta as característica da comunidade. Segundo Doris Kowaltowski, professora da Unicamp que realizou um estudo sobre a arquitetura escolar e foi ouvida pela reportagem, “cada comunidade tem os seus próprios valores. Uma escola vai ser mais bem aceita e bem cuidada à medida em que a população é inserida (...) uma boa estratégia para facilitar esse convívio é apresentar uma maquete do projeto e ouvir o que os futuros usuários têm a dizer” (op. cit., p. A18). Ao investigar o espaço escolar enquanto forma de ensino, Agustín Escolano (2001) analisa o relato de um homem que volta à escola que freqüentou em sua infância após um período de quarenta anos. Entre as suas impressões, é fértil observarmos a seguinte passagem: “as salas de aula lhe pareceram sem dúvida menores; os corredores, mais estreitos; a escadaria, pela qual se subia ao andar superior, onde estavam as salas de aula das meninas, com menos degraus; o pátio do recreio, reduzido. Como poderíamos – ele pensou – brincar e nos mover nele, os mais de trezentos meninos e meninas que coabitávamos naquele limitado território? Mas a memória não lhe era infiel: o espaço que contemplava era, ainda que menor, o mesmo cenário de sua infância, e os lugares que observava correspondiam aos seus primeiros esquemas perceptivos” (op. cit., p. 22) Essas primeiras experiências no espaço organizado, o espaço escolar vivenciado pelas crianças, deixam marcas na acomodação psicofísica das primeiras pautas do esquema corporal, na forma como as crianças desenvolvem a consciência do seu corpo e da sua utilização em função do espaço que habitam. Segundo Escolano (2001), “a arquitetura escolar é também por si mesma um programa, uma espécie de discurso que institui na sua materialidade um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos” (op. cit., p. 26). A arquitetura escolar, definida pelo autor como uma “forma de escritura no espaço”, expressa e institui um discurso, influenciando no desenvolvimento da educação formal ali realizada. O espaço escolar reflete e expressa em sua construção as teorias e os discursos que o legitimaram, que influenciaram a sua constituição. Desta forma, é pertinente observar que as influências que o movimento da Escola Nova trouxeram à configuração ��
do espaço escolar ainda nos grupos escolas são enunciadas até hoje pelos pedagogos e pela legislação educacional, como é possível observar nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997). Acerca da organização do espaço nas escolas, o referido documento apresenta a seguinte sugestão: “uma sala de aula com carteiras fixas dificulta o trabalho em grupo, o diálogo e a cooperação; armários trancados não ajudam a desenvolver a autonomia do aluno, como também não favorecem o aprendizado da preservação do bem coletivo. A organização do espaço reflete a concepção metodológica adotada pelo professor e pela escola. Em um espaço que expresse o trabalho proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais é preciso que as carteiras sejam móveis, que as crianças tenham acesso aos materiais de uso freqüente, as paredes sejam utilizadas para exposição de trabalhos individuais ou coletivos, desenhos, murais. Nessa organização é preciso considerar a possibilidade de os alunos assumirem a responsabilidade pela decoração, ordem e limpeza da classe. Quando o espaço é tratado dessa maneira, passa a ser objeto de aprendizagem e respeito, o que somente ocorrerá por meio de investimentos sistemáticos ao longo da escolaridade. Como o espaço de aprendizagem não se restringe à escola, é necessário propor atividades que ocorram fora dela. A programação deve contar com passeios, excursões, teatro, cinema, visitas a fábricas, marcenarias, padarias, enfim, com as possibilidades existentes em cada local e as necessidades de realização do trabalho escolar. No dia-a-dia devem-se aproveitar os espaços externos para realizar atividades cotidianas, como ler, contar histórias, fazer desenho de observação, buscar materiais para coleções. Dada a pouca infra-estrutura de muitas escolas, é preciso contar com a improvisação de espaços para o desenvolvimento de atividades específicas de laboratório, teatro, artes plásticas, música, esportes, etc.” (p. 103) Seguindo as orientações da Lei de Diretrizes e Bases em vigor, os PCNs, quando se referem à organização do espaço escolar, também visam à construção da autonomia, tanto da escola e de sua equipe, quanto dos alunos. Como é dito no documento, a organização do espaço reflete a concepção metodológica adotada pelo professor e pela escola , ou seja, a configuração do espaço
de uma escola deve refletir os ideais e os objetivos que estão em seu projeto pedagógico. Se este documento expressa a intenções de uma equipe que vise à construção de uma gestão democrática que valorize a participação dos alunos nas decisões da instituição, o espaço deverá refletir essa concepção. Permitir que os alunos assumam responsabilidades pela conservação e pela decoração do espaço escolar, é oferecer a eles a oportunidade de sentir que o espaço coletivo pertence a todos e que, ��
por este motivo, ele deve refletir a identidade daqueles que nele habitam. Ao estabelecer uma identificação entre o indivíduo e o espaço, cria-se um vínculo com instituição e um compromisso com aquele lugar. A idéia, neste caso, é que as crianças e os jovens percebam que o espaço público não é o “espaço que não é de ninguém” e que por esse motivo poderia ser sujo e depredado, mas é o “espaço que é de todos”, e que por isso precisa ser cuidado e conservado. Se as crianças aprendem a se relacionar com a escola como um espaço público, como um lugar que pertence a elas, elas poderão aprender a desenvolver também uma outra relação com o espaço da rua, do museu, do parque, do teatro, da praça, etc. Como são construídas as relações entre as crianças e os jovens nas escolas hoje em dia? Será que as crianças e os jovens sentem que o espaço da escola lhes pertence? Como fazer da escola um espaço de convivência? São muitas as questões que requerem uma reflexão mais demorada quando pensamos no espaço escolar atualmente. Depois da casa onde se mora e de alguns locais próximos a ela, a escola promove uma experiência crucial na aprendizagem das primeiras estruturas espaciais e formação do próprio esquema corporal da pessoa, que é a consciência do corpo como meio de comunicação com o ambiente e consigo mesmo (ESCOLANO, 2001). O esquema corporal se organiza pela experiência que o corpo da criança vai realizando gradativamente no espaço que ela habita. O pleno desenvolvimento do esquema corporal é percebido quando as pessoas apresentam uma boa evolução da motricidade, das habilidades motoras, das percepções temporais e espaciais e também da afetividade. Atualmente, as teorias da percepção concebem o espaço escolar como um mediador cultural na formação dos primeiros esquemas motores e cognitivos, ou seja, um elemento importante do currículo, uma forma de ensino e uma fonte de aprendizagem. De acordo com o mesmo autor, os espaços educativos carregam significados e transmitem uma quantidade importante de estímulos, valores e conteúdos do “currículo oculto”, ao mesmo tempo em que impõem uma organização disciplinar, como a racionalidade panóptica, como vimos anteriormente (ESCOLANO, 2001). O “currículo oculto” é constituído por todos os aspectos do ambiente escolar que contribuem de forma implícita para aprendizagens sociais, sem que façam parte do currículo oficial (SILVA, 2003). A propósito do “currículo oculto”, vale a pena retomarmos as palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2003): “eram as características ��
estruturais da sala de aula e da situação de ensino, mais do que o seu conteúdo explícito, que ‘ensinavam’ certas coisas: as relações de autoridade, a organização espacial, a distribuição do tempo, os padrões de recompensa e castigo. (...) o que se aprende no currículo oculto são fundamentalmente atitudes, comportamentos, valores e orientações que permitem que crianças e jovens se ajustem da forma mais conveniente às estruturas e às pautas de funcionamento, consideradas injustas e antidemocráticas e, portanto, indesejáveis, da sociedade capitalista. Entre outras coisas, o currículo oculto ensina, em geral, o conformismo, a obediência, o individualismo. (op. cit., p. 78-79). Com relação à dimensão do gênero, o “currículo oculto” também ensina como ser homem ou mulher. No ambiente escolar, há vários elementos que contribuem para essas aprendizagens. Uma das fontes que constituem este currículo são as relações sociais da escola, as relações entre a administração e os alunos, entre os alunos e o seus colegas e entre os professores e os alunos. Além disso, “a organização do espaço escolar é outro dos componentes estruturais através dos quais as crianças e os jovens aprendem certos comportamentos sociais: o espaço rigidamente organizado da sala de aula tradicional ensina certas coisas; o espaço frouxamente estruturado da sala de aula mais aberta ensina outro tipo de coisas. Algo similar ocorre com o ensino dos aspectos relativos ao tempo, através do qual se aprende a pontualidade, o controle do tempo, a divisão do tempo em unidades discretas, um tempo para cada tarefa etc. O currículo oculto ensina, ainda, através de rituais, regras, regulamentos, normas” (op. cit., p. 79). Desta forma, dentro do ambiente escolar a aprendizagem não ocorre apenas de maneira intencional, mas acontece também segundo procedimentos implícitos. Os estudos acerca do tempo e do espaço escolar são muito férteis, pois nos levam a considerar que os nossos alunos não aprendem apenas através do que lêem, enxergam ou escutam, mas aprendem também mediante o que sentem e como se comportam em relação ao outro, em relação ao espaço e em relação ao tempo.
Exercício 2
Fenômeno comum nas grandes cidades, as escolas pichadas e depredadas demonstram através da violência a pouca identidade construída entre os alunos e o
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espaço físico por eles habitado diariamente. De que forma o projeto pedagógico poderia promover uma relação mais produtiva entre os alunos e o espaço escolar?
O tempo escolar Conforme vimos anteriormente, nem o tempo e nem o espaço escolar são elementos neutros das instituições de ensino. Mesmo não sendo alvo de discussões constantes nas escolas, o tempo e a maneira como ele é organizado, influencia as atitudes e a forma como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e ensinam nas instituições de ensino. A escola toma para si grande parte do tempo dos
seus alunos e das suas alunas, pois as crianças e os jovens passam em média cinco horas diárias dentro desta instituição em um período que compreende cerca de quinze anos. Para muitos, esse tempo atualmente é ainda maior. Com o fato dos pais trabalharem fora de casa e não terem com quem deixar os seus filhos é comum que os bebês sejam deixados nas creches, em seguida nas escolas de educação infantil e depois nas escolas de ensino fundamental. Nesses casos, as pessoas passariam quase dezoito anos de suas vidas freqüentando instituições educacionais, especialmente em um período crucial de seu desenvolvimento físico e emocional: a infância. Ao crescerem, as pessoas aprendem a interpretar os sinais temporais que são utilizados na sociedade, em casa e na escola, e a conduzir o seu comportamento em função deles, coordenando o seu tempo fisiológico no mesmo compasso do tempo social. Embora as pessoas possuam tempos e ritmos diferentes, no âmbito escolar eles são uniformizados, pois os alunos são levados a viverem todos da mesma maneira os dias letivos, as provas, os conteúdos do currículo. Além disso, a temporalidade escolar está entranhada no cotidiano e estrutura a vida das pessoas através do período letivo, da matrícula, da época da provas, da recuperação e das férias (GALLEGO, 2008). Assim como o currículo, o tempo e o espaço também ensinam. Mas o que os alunos aprendem através deles? A disciplina talvez seja o resultado mais explícito deste ensino, pela forma como a organização temporal e espacial interferem no comportamento das pessoas, controlando as suas atividades e as suas ações. Num espaço e num tempo totalmente regulados, cada um submete sua ��
atividade aos princípios e às regras que a regem. As escolas conduzem as atividades e regulam o comportamento dos alunos, dos funcionários e dos professores mediante o estabelecimento da disciplina, fixando com rigor e detalhes cada atividade do dia. Mas o tempo e o espaço também contribuem com a aprendizagem dos conteúdos disciplinares e, desta forma, podem ser conduzidos de modo a melhorar a qualidade da educação escolar. O tempo escolar e a construção do projeto pedagógico Quando pensamos na construção do projeto pedagógico, consideramos fundamentalmente a proposição de três elementos: algo (matéria) será ensinada (pelo professor) a alguém (aluno). Para que haja o ensino e a aprendizagem é necessário que exista uma adequação entre o conteúdo que será ministrado e o tempo que será necessário para que o professor o ensine e para que o aluno o aprenda. Desta maneira, a adequação do tempo ao conteúdo disciplinar pode favorecer ou não a aprendizagem. Pensemos a propósito da recuperação, por exemplo. O que ela significa? Entre outras coisas, o momento da recuperação representa um tempo maior que alguns alunos têm para tentar aprender aquilo que os outros alunos aprenderam no tempo “regular”, naquele tempo que havia sido planejado para o desenvolvimento de determinado conteúdo. Quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar dos nossos alunos, há muitos fatores que precisam ser levados em conta. No entanto, neste momento, pensemos em um desses fatores: no papel do tempo com relação ao fracasso e ao sucesso escolar. Em nosso cotidiano, muitas vezes nos deparamos com representações sobre a educação e a escola – que acabam fazendo parte do senso comum – que divulgam uma idéia equivocada acerca da qualidade do ensino, atribuindo muitas vezes a um número restrito de instituições, em muitos casos particulares, o rótulo de “escolas fortes” nas quais se acredita que as crianças e os jovens aprenderiam mais. Pensemos mais demoradamente sobre isso, especialmente em relação ao tempo. É comum, entre essas instituições consideradas bem sucedidas com relação ao ensino, que haja um investimento maior em cada aluno realizado pela própria família como, por exemplo, o auxílio na realização da lição de casa e a possibilidade de aulas particulares. Vamos conversar mais sobre esses dois eventos.
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Qual é o papel da lição de casa para uma aprendizagem bem-sucedida? A lição de casa representa uma extensão do momento no qual determinado conteúdo disciplinar foi apresentado pelo professor ao aluno. Após a explicação do professor é comum que haja um diálogo acerca da matéria e que atividades sejam realizadas de modo a exercitar o conhecimento adquirido e familiarizar os estudantes com os novos
conteúdos. Se para alguns alunos o momento da lição de casa pode significar uma possibilidade de reforçar o que foi aprendido na sala de aula, para outros este pode ser também um momento de aprender aquilo que não foi possível naquele tempo estabelecido pelo horário da aula. Para o aluno cujo ritmo e a dificuldade ultrapassam a delimitação do horário da aula, o momento da lição de casa representa uma ocasião importante de aprendizagem. É evidente que para isso é necessário que alguém acompanhe as crianças na realização destas tarefas, tentando solucionar as suas dúvidas e orientando as suas buscas pelas respostas. Ainda assim, esse é um tempo que precisa ser levado em conta quando pensamos no sucesso e no fracasso escolar. Mas podemos sempre contar com o momento da lição de casa como uma oportunidade de aprendizagem? De acordo com a origem sócio-econômica dos estudantes e com as condições materiais nas quais eles vivem, sabemos que muitos dos nossos alunos, no período do dia no qual não estão na escola, não têm quem os acompanhe na realização destas tarefas. Aqueles que têm quem os acompanhe durante a realização da lição de casa, saem em vantagem com relação aos outros. Este é um fator que precisa ser levado em conta quando pensamos no papel que a lição de casa pode desempenhar para contribuir com uma aprendizagem bem-sucedida.
Como as aulas particulares interferem no tempo escolar? Mesmo não sendo realizadas na escola, as aulas particulares também funcionam como uma espécie de extensão do tempo escolar, uma vez que se constituem numa oportunidade de aprendizagem daqueles conteúdos que, na sala de aula, alguns alunos não compreenderam. Considerando as aulas particulares enquanto momentos que apenas alguns alunos podem desfrutar por ter ao seu dispor uma atenção individualizada e um tempo maior para a compreensão de determinados conteúdos disciplinares, é preciso considerar que essas aulas são privilégio de apenas alguns poucos alunos, cuja família possui recursos financeiros que possibilitam esse momento de ensino individualizado. O que tanto as lições de casa quanto as aulas particulares nos mostram é que, por diferentes motivos, alguns alunos não conseguem aprender naquele tempo determinado pela escola e precisam de um tempo maior para compreender aquilo que está previsto ��
no projeto pedagógico. E o que isso significa? As pessoas possuem ritmos diferentes e muitas vezes há um descompasso entre o ritmo do aluno para compreender e o ritmo planejado pela escola para ensinar. Como sabemos que nem todas as crianças – muitas vezes apenas uma minoria delas – têm quem as acompanhe durante as lições de casa e têm a chance de serem submetidas a aulas particulares, é importante pensarmos acerca da relação entre o tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos curriculares e as dificuldades de aprendizagem originárias dos diferentes ritmos que os alunos têm para compreender. Refletir acerca desta relação pode contribuir para que entendamos melhor como acontece o fracasso e o sucesso escolar, ou seja, como a aprendizagem pode ser ou não bem-sucedida.
Os diferentes tempos da escola, os ritmos dos alunos e a aprendizagem O período de planejamento do ano letivo e da construção do projeto pedagógico é um primeiro momento no qual os professores, o coordenador, o diretor e toda a equipe pedagógica podem pensar acerca da melhor maneira de organizar o tempo em função do ensino e da aprendizagem bem-sucedidos, adequando os conteúdos disciplinares aos ritmos das crianças e dos jovens. Além deste momento inicial, as avaliações que acontecem durante todo o ano também são oportunidades importantes de identificar possíveis inadequações entre a matéria proposta e a compreensão dos alunos, gerando lacunas no processo de ensino e de aprendizagem. O momento da avaliação poderia
então reconduzir os alunos em desvantagem, reorganizando seu tempo , revendo em um tempo maior o conteúdo não aprendido de modo a auxiliá-los a superar o obstáculo, a recuperar o que não foi compreendido e a reencontrar o percurso da classe, seguindo o
roteiro comum estabelecido para todos. Tais lacunas no processo de ensino e de aprendizagem tornam-se dificuldades na aquisição dos conteúdos posteriores, gerando novas lacunas no percurso da vida escolar dos estudantes. Assim vai sendo obstruído o acesso aos conteúdos disciplinares, na medida em que o aluno tem dificuldades e não aprende no seu ritmo. O fracasso escolar originado também pela inadequação entre o tempo estabelecido para o ensino dos conteúdos e o tempo que os alunos levam para aprendê-los promove um distanciamento cada vez maior entre os estudantes e o ��
conhecimento que a escola pretende transmitir a eles (SAMPAIO, 2004). A
avaliação
da aprendizagem e a reprovação escolar são questões relacionadas ao tempo. A reoganização do tempo deve ser realizada em função das necessidades das crianças, em função do tempo que levam para compreender: em função do seu tempo de aprendizagem.
A propósito da reprovação como uma retomada do ano escolar perdido, Maria das Mercês Sampaio (2004) afirma que a simples repetição dos conteúdos disciplinares aos alunos, a submissão das crianças e dos jovens ao mesmo espaço de tempo e processo que se mostrou ineficaz anteriormente também não promove a aprendizagem bem-sucedida. Para a autora, sem que haja um redimensionamento e uma revisão das condições que geraram o fracasso escolar, é possível que os alunos prossigam carregando problemas até que o seu acúmulo interrompa o seu prosseguimento de maneira definitiva: “mesmo quando os alunos ficam retidos logo que os problemas aparecem, não se encontram indícios de propostas ou tentativas de superação, pois a única opção é a repetição da série, ou seja, repetição da transmissão e exercitação de todos os conteúdos, assimilados e não-assimilados, sem que seja promovida uma nova relação de ensino, voltada às condições de aquisição dos alunos com dificuldades” (op. cit., p. 89). Sampaio tece uma crítica a um elemento que durante várias décadas fez parte das nossas práticas escolares e da cultura das nossas escolas: a reprovação enquanto um dispositivo eficaz para promover a aprendizagem. Submeter os alunos novamente a uma mesma situação pedagógica que já se mostrou ineficaz, simplesmente pela possibilidade dos conteúdos serem revistos pelos alunos durante o mesmo período de tempo anterior, não se traduz em uma aprendizagem significativa e bem-sucedida. Acerca das possibilidades de recuperação que as escolas normalmente oferecem aos alunos, a autora ressalta a existência da recuperação paralela feita a cada bimestre e da recuperação realizada ao final do ano, asseguradas legalmente. No entanto, para Sampaio, as recuperações bimestrais são normalmente reduzidas à aplicação de novas provas e a a recuperação ao final do ano letivo compreende alguns exercícios e em seguidas são aplicadas novas provas. Para ela, “a distribuição e a organização do tempo letivo permitem apenas, como recuperação, a oferta de momentos para novas cobranças; não possibilita recuperar o que foi perdido. Mesmo quando o calendário de recuperação final prevê algumas aulas para cada disciplina, a extensão do que ficou para trás não permite falar de recuperação realmente – é o tempo para reler e fazer exercícios, tirar algumas dúvidas e fazer provas. A montagem do currículo, portanto, não se relaciona ��
apenas ao caráter imediatamente classificatório da avaliação. Ao garantir a marcha ininterrupta do ensino, tais mecanismos permitem não só classificar e selecionar os
menos aptos, mas impedem também a recondução destes alunos ao percurso normal” (SAMPAIO, 2004, p. 89 -90 – grifos nossos). Quando pensamos na construção do projeto pedagógico, pensamos também em uma proposta curricular. O que deve ser ensinado? Para quem? Como?
O currículo é o resultado de uma seleção: de um universo de conhecimentos e saberes são selecionados alguns que devem ser aprendidos pelos alunos. A etimologia da palavra “currículo”, que é originária do latim “curriculum”, significa “pista de corrida”. A propósito disso, vale a pena lembrarmos as palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2003), ao afirmar que “podemos dizer que no curso dessa ‘corrida’ que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade” (op. cit., p. 15-16). O currículo representa uma trajetória, um caminho que deve ser seguido pelos estudantes e, como todo percurso, cada um tem um ritmo diferente para percorrê-lo. Contudo, o que importa, quando pensamos em uma aprendizagem significativa e numa educação de fato formadora, não é a velocidade com a qual cada um percorre esse caminho, mas sim se todos chegam ao destino pretendido. E, nesse caso, em alguns momentos a marcha do ensino parece precisar ser interrompida para sofrer ajustes de modo a beneficiar a aprendizagem dos nossos alunos, atendendo às suas pausas e aos seus ritmos. A realização do programa precisa levar em conta interrupções e alterações em função do desenvolvimento e da compreensão dos alunos.
A série, o ciclo e o curso: o tempo dos professores e o tempo dos alunos A forma como as diferentes matérias são organizadas no projeto pedagógico pode obedecer a diferentes lógicas. As mais conhecidas nas nossas escolas são ��
principalmente duas: a organização das disciplinas em cursos divididos em séries e a organização das disciplinas em cursos divididos em ciclos plurianuais. A organização das matérias nas séries atende a uma adequação entre o ano letivo e o ano do calendário, enquanto que a organização das matérias nos ciclos plurianuais obedece a uma tentativa de ampliar o tempo escolar, de modo que ele ultrapasse o tempo do calendário. Ou seja, o ano escolar não termina junto com o ano do calendário – como ocorre com o sistema seriado -, ele é prolongado. Segundo Philippe Perrenoud (2004), os ciclos de aprendizagens plurianuais têm sido discutidos em sistemas educacionais de vários países pela sua capacidade de favorecer a aprendizagem escolar. A idéia dos ciclos é que as etapas anuais de progressão sejam substituídas por período de, ao menos, dois anos, fixando objetivos de aprendizagem para cada ciclo – proporcionando um tempo maior para a familiarização dos conteúdos disciplinares pelos alunos – e investindo na formação dos professores para orientar e facilitar os diferentes percursos de formação das crianças e dos jovens. A organização do tempo escolar em ciclos rompe com a lógica da reprovação ao final do ano e altera profundamente a organização do trabalho escolar. No estado de São Paulo, podemos inicialmente pensar na experiência realizada em 1985 para resolver o problema da repetência em massa nas séries iniciais. Intitulado como “Ciclo Básico”, a união entre as duas primeiras séries eliminava a possibilidade retenção dos alunos ao final do primeiro ano do ensino fundamental. O Ciclo Básico foi introduzido com algumas medidas estruturais, assegurando a passagem obrigatória da 1ª para a 2ª série e oferecendo apoio suplementar aos alunos que manifestassem dificuldades de rendimento (BARRETO, 1992). Com relação ao tempo dos professores, a iniciativa garantia horas extraordinárias cumpridas em reuniões que tinham por objetivo proporcionar a discussão da experiência e a reflexão acerca dos seus resultados. Além disso, a jornada única de trabalho para esses professores acompanhava a duração do período escolar para os alunos, que permaneciam seis horas diárias na escola. O professor deveria permanecer mais tempo na escola, de modo a conhecer melhor os seus alunos e as suas necessidades. Desta forma, eles passaram a lecionar quarenta horas semanais na mesma escola, atendendo a uma só turma e destinando o restante do seu tempo para o preparo das aulas, a correção dos trabalhos e as reuniões. Segundo Elba Barreto (1992), as medidas tomadas no âmbito da implementação do Ciclo Básico possibilitaram um salto qualitativo nas condições de trabalho na escola, ao menos no que concerne às duas séries iniciais. ��
Podemos perceber mediante experiências como a da implantação do Ciclo Básico, que tentativas de promover melhorias na qualidade do ensino são realizadas também através da reordenação do tempo e do espaço escolar, alterando profundamente a organização do trabalho dos professores e dos alunos. A possibilidade dos professores passarem mais tempo em uma mesma escola lhes permite conhecer mais os seus alunos e planejar melhor as suas atividades, de acordo com as necessidades de sua turma. No entanto, ao elaborarmos o projeto pedagógico da nossa escola, precisamos considerar que muitos dos nossos professores trabalham em várias escolas e, muitas vezes, se não em dois até em três períodos do dia! Desta forma, pensar na organização do tempo escolar na construção do projeto pedagógico é trabalhar constantemente entre o ideal e o real. Ou seja, nosso desafio é tentar articular os pressupostos que consideramos ideais para realizarmos uma educação de qualidade com as condições materiais com as quais nos defrontamos cotidianamente. No Brasil, o debate acerca da organização dos ciclos de aprendizagens plurianuais está fortemente articulado à tentativa de superação do fracasso escolar, às questões relativas à repetência e à evasão escolar. A educação escolar organizada em ciclos procura, de algum modo, resolver esses problemas, trazendo consigo a premissa da não interrupção da escolaridade durante um período maior de tempo do que ocorre no sistema seriado. Em relação às condições de funcionamento da escola, essa maneira de organizar o tempo escolar – em ciclos plurianuais – provoca alterações tanto no trabalho pedagógico, quanto na administração e na organização escolar. Isto porque este sistema apresenta uma necessidade maior de revisão constante do projeto pedagógico mediante reuniões com a equipe da escola, altera o número de membros do corpo docente, revê a questão da rotatividade dos professores – porque é desejável que, quando exista, seja reduzido o número de professores que permanecem pouco tempo na escola. Além disso, a organização em ciclos requer apoio e recursos pedagógicos. Desta forma, para que esse sistema produza bons resultados, ele envolve toda a comunidade escolar e mobiliza tanto recursos humanos, contando com a participação dos professores, dos coordenadores, dos supervisores, dos diretores, dos orientadores, etc, quanto recursos materiais, relativos à infra-estrutura da escola. A organização da escola em ciclos de aprendizagem plurianuais representa uma mudança em toda a estrutura escolar. Segundo Philippe Perrenoud (2004), diversos aspectos do sistema escolar devem ser revistos e estruturados segundo uma nova lógica espacial e temporal, modificando a estrutura curricular, a maneira de avaliar e de ��
organizar o trabalho na escola. Para o autor, essas mudanças devem atingir diretamente as práticas e a cultura escolares. As práticas profissionais também deveriam sofrer alterações, rompendo com o individualismo e primando pela valorização da cooperação e do trabalho em equipe. Mudanças estruturais como a da organização do tempo escolar em ciclos plurianuais não ocorrem sem que existam conflitos e resistências. Cláudia Fernandes (2007), que estudou o impacto que a organização da escolaridade em ciclos teve nas escolas brasileiras, afirmou o seguinte: “a escola em ciclos, por ser uma escola na qual exige-se uma mudança, torna-se mais do que as outras, uma escola em conflito, inquieta, uma vez que diversos aspectos estão sendo questionados: a forma de avaliar, a maneira de se entender o conhecimento, a didática utilizada, a organização dos tempos e dos espaços. A escola em ciclos administra conflitos. Se considerarmos que o cotidiano escolar é marcado por urgências, por questões que muitas vezes não podem esperar, que é um espaço marcado por relações humanas e, portanto, por natureza, complexo, podemos afirmar que as tentativas de alterar práticas já consolidadas e legitimadas pela comunidade escolar e pela sociedade, fazem com que a escola em ciclos torne-se, mais ainda, uma escola conflituosa” (op. cit., p. 9). Na prática, o que é possível observar quando a escola é organizada em ciclos – em muitos casos - é que, de modo geral, os membros da equipe pedagógica atuam conjugando duas lógicas: tanto a lógica dos ciclos quanto a lógica da seriação. Mas por que isso acontece? Quando nos tornamos professores, trazemos conosco toda uma representação – uma idéia acerca daquilo que consideramos ideal ou mesmo daquilo que consideramos possível – acerca do que seja a melhor forma de realização do trabalho docente e da educação escolar. Diferentemente de outras profissões, no caso do trabalho docente isso ocorre porque, antes de desejar seguir a carreira docente ou qualquer outra carreira, as pessoas passam muito tempo e grande parte de suas vidas nas instituições escolares, carregando consigo as impressões e as concepções relativas à organização da instituição escolar e ao papel desempenhado por cada um de seus membros. Na época em que somos alunos, durante a nossa infância e a nossa adolescência, somos capazes de responder, a nosso modo, o que faz o professor, o diretor, o coordenador, o inspetor, etc, porque convivemos muito tempo com pessoas que desempenham essas funções de maneira muito próxima a nós. Quando nos tornamos professores, articulamos essas representações da época na qual freqüentamos a escola como alunos com a vivência que adquirimos ao longo do exercício da nossa profissão. As características da escola seriada estão tão arraigadas nas nossas representações ��
quanto na cultura escolar e, por esse motivo, uma mudança em relação ao uso e à organização tempo na escola não existe sem que haja conflito e resistência. Desta forma entendemos porque é tão comum que, mesmo trabalhando em ciclos plurianuais, muitos professores se auto-determinem como “professor da primeira série do primeiro ciclo” e façam exigências com relação ao cumprimento do conteúdo programático como se, como o final do ano do calendário, terminasse também o ano escolar – como se o ano correspondesse a uma série e não como uma parte do tempo do ciclo. De acordo com Fernandes (2007), as concepções dos professores e de toda a equipe pedagógica são ilustradas através das “decisões sobre quais ações realizar com seus alunos, seja em relação à seleção de conteúdos, seja quanto às práticas de avaliação e decisões de promoção ou retenção. A escola, para operar entre duas lógicas, conforma práticas de ambas as concepções de ensino, isto é, um ensino ora com ênfase no que se ensina, ou seja, no programa, e ora com ênfase no que se aprende, portanto nas aprendizagens que os alunos podem realizar. Mesmo considerando a complexidade da ação educativa e que nossas práticas conjugam diferentes concepções e lógicas, arrisco dizer que a escola em ciclos, tal qual está posta hoje, apresenta-se como uma instância intermediária entre a escola seriada e uma outra escola que ainda está por vir: uma escola mais coerente com as questões, problemáticas, concepções, tensões, conflitos e verdades provisórias do século XXI” (op. cit, p. 10). Quando pensamos em mudanças na organização das nossas escolas precisamos pensar, sobretudo, na possibilidade de mudanças das representações que os agentes da escola – professores, diretores, coordenadores, supervisores, funcionários, etc – têm desta instituição. Assim como os nossos alunos, também precisamos de um tempo para compreender mudanças organizacionais, principalmente quando elas entram em conflito com as nossas representações e com os nossos ritmos. Outro marco importante que entrou em conflito com as nossas representações acerca sobre a escola pública atualmente foi a implantação do ensino fundamental de nove anos. Nas “Orientações Gerais” produzidas pelo Ministério da Educação acerca do Ensino Fundamental de Nove Anos (2004), vale a pena lembrarmos o trecho referente ao tempo escolar, que, ao citar Rubem Alves, diz o seguinte: “os currículos e os programas têm sido trabalhados em unidades de tempo e com horários definidos, que são interrompidos pelo toque de uma campainha. Assim, a escola acaba reproduzindo a organização do tempo advinda da organização fabril da sociedade. Uma situação como essa remete-nos a Rubem Alves, quando afirma que ‘a criança tem de parar de pensar o que estava pensando e passar a pensar o que o programa diz que deve ser pensado ��
naquele tempo’. Daí que emergem as questões sobre a necessidade de se repensar a
organização do tempo escolar, acompanhando as mesmas inquietações de Rubem Alves: ‘o pensamento obedece às ordens das campainhas? Por que é necessário que todas as crianças pensem as mesmas coisas, na mesma hora e no mesmo ritmo? As crianças são todas iguais? O objetivo da escola é fazer com que as crianças sejam todas iguais?’ Enfim, o que se tem aprendido com um currículo que fragmenta a
realidade, seus espaços concretos e seus tempos vividos? Trata-se de um modelo disciplinar direcionado para a transmissão de conteúdos específicos, organizado em tempos rígidos e centrado no trabalho docente individual, muitas vezes solitário por falta de espaços que propiciem uma interlocução dialógica entre os professores. É com esse cenário que as escolas são convidadas a pensar sob uma outra perspectiva, para provocar mudanças no tradicional modelo curricular predominante em grande parte das escolas de nosso país. É, assim, imprescindível debater com a sociedade um outro conceito de currículo e escola, com novos parâmetros de qualidade. Uma escola que seja um espaço e um tempo de aprendizados de socialização, de vivências culturais, de investimento na autonomia, de desafios, de prazer e de alegria, enfim, do desenvolvimento do ser humano em todas as suas dimensões. Essa escola deve ser construída a partir do conhecimento da realidade brasileira. Nesse processo, é preciso valorizar os avanços e superar as lacunas existentes no projeto político-pedagógico, ou seja, melhorar aquilo que pode ser melhorado” (op. cit., p. 10). O trecho extraído do documento produzido pelo governo federal é um convite aos diretores, aos professores, aos coordenadores e a toda a equipe escolar a pensar sobre a organização do tempo nas escolas, não em função da ordenação dos conteúdos, mas em função dos diferentes ritmos de trabalho e de aprendizagem.
Exercício 3
1) Como é possível adequar o tempo escolar aos diferentes ritmos dos alunos? 2) Como a construção do projeto pedagógico pode promover o favorecimento da aprendizagem pela adequada organização do tempo escolar? Pensar exemplos de iniciativas capazes de favorecer essa organização.
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O espaço escolar Com vimos anteriormente, assim como o tempo escolar, o espaço também ensina, permitindo a interiorização de comportamentos sociais. Assim como acontece com o tempo escolar, forma como o espaço é construído e organizado influencia as atitudes e a maneira como as pessoas habitam, convivem, se relacionam, aprendem e ensinam nas escolas. Além disso, a construção do espaço escolar reflete - e refletiu ao
longo da história da educação brasileira - as teorias educacionais e as necessidades sociais e econômicas do momento. A construção dos espaços adequados para o ensino está associada não apenas à possibilidade da escola cumprir as funções sociais que lhe são delegadas, mas também à produção da singularidade da instituição escolar e de sua cultura (FARIA FILHO e VIDAL, 2000). A exemplo disso, podemos pensar na construção dos grupos escolares no período republicano como espaços arquitetonicamente planejados para ensinar que marcam profundamente as diferenças entre a instituição escolar e o ambiente doméstico, ensinando às crianças as distinções entre o comportamento adequado ao espaço público e aquele adequado ao espaço privado. Tanto semelhanças com relação à organização panóptica que projeta o espaço visando à promoção da disciplina e do controle acerca do comportamento das pessoas quanto a concepção taylorista que visa à racionalização das tarefas de modo a promover a maior eficiência podem ser encontradas na constituição daquelas escolas (ESCOLANO, 2001). Aproximações entre a condução dos alunos no espaço escolar e dos operários nas fábricas também são evidenciadas por elementos comuns aos dois espaços, como a utilização do sinal de marca o horário de entrada e de saída, a formação de filas, a utilização de uniformes, etc. Acerca do poder disciplinar que é gerado pelo espaço escolar, vale a pena recorrermos novamente às palavras de Agustín Escolano (2001), ao afirmar que “a ‘espacialização’ disciplinar é parte integrante da arquitetura escolar e se observa tanto na separação das salas de aulas (graus, sexos, características dos alunos) como na disposição regular das carteiras (com corredores), coisas que facilitam além disso a rotina das tarefas e a economia do tempo. Essa ‘espacialização’ organiza minuciosamente os movimentos e os gestos e faz com que a escola seja um ‘continente de poder’” (op. cit., p. 27-28). A espacialização referida pelo autor pode ��
promover a disciplina dos alunos sem que seja necessário um ato explícito por parte dos professores. Por exemplo, a maneira como as carteiras são organizadas na sala de aula pressupõe determinado comportamento das crianças: se são fixadas no chão e alinhadas umas atrás da outras, imobilizam os alunos e dificultam o contato com os colegas, se são móveis e leves, favorecem o relacionamento com os colegas durante o período da aula e flexibilizam a postura das crianças, oferecendo a elas uma maior liberdade. A localização da escola também é uma variável do programa pedagógico comportado pelo espaço e pela arquitetura da escola. A proximidade com a natureza e com áreas verdes e livres favorece estímulos, ações, brincadeiras e jogos ao ar livre, promovendo tanto a utilização didática do entorno quanto a contemplação estética da paisagem (ESCOLANO, 2001). As escolas que possuem jardins e hortas possibilitam uma relação mais próxima entre as crianças e a natureza – especialmente no caso daquelas crianças que vivem em grandes áreas urbanas - favorecendo o contato dos alunos com a terra e com as plantas. No caso do ensino de ciências e de biologia, os professores podem se beneficiar desses espaços para a realização de atividades práticas, favorecendo o ensino ativo e estimulando os diferentes sentidos dos alunos, para além dos exercícios realizados dentro do espaço da sala de aula. Além disso, cuidar do espaço da escola representa também um aprendizado do cuidado com o mundo, e este é um objetivo educacional.
O espaço escolar e os símbolos na escola Com relação à arquitetura escolar, também precisamos considerar que ela é um elemento cultural e pedagógico não apenas pelos condicionamentos induzidos pelas suas estruturas, mas também pela simbolização que ela desempenha na vida social através da magnificência e imponência que os edifícios impõem ao espaço público. O edifício da escola costumava ser, e alguns ainda são, construídos de forma diferente dos outros prédios, que visam a uma maior praticidade. Da mesma maneira que os templos, os palácios, as câmaras, os teatros e os quartéis foram construídos, o edifício escolar, no dizer de Agustín Escolano (2001) “é uma forma que comporta determinada força semântica através dos signos e símbolos que exibe, como variante que é da chamada arquitetura institucional. O viajante que toma contato pela primeira vez com uma população, pode observar e nela diferenciar, ainda sem conhecê-la, a singularidade de certas construções. Sua localização, o volume, o traço geométrico, os sinais que o seu ��
desenho mostra, os símbolos que incorpora... tornam inconfundível seu objetivo e permitem sua fácil identificação” (op. cit., p. 34) Cabe ressaltar que essa característica marcante e imponente dos edifícios escolares não era assim antes que fosse configurada a arquitetura escolar como um gênero específico da ordem espacial , ou seja, antes que existisse uma intencionalidade na construção de espaços destinados especificamente para promover o ensino e a aprendizagem, para receber os alunos, os professores e toda a equipe pedagógica, e nada mais. Assim, o esforço investido pelos políticos e pelos técnicos na construção de escolas exuberantes visava a demonstrar a valorização e a atenção dispensada à educação, mas também tinha por objetivo demonstrar através da magnitude desses edifícios o valor e o poder do Estado, fazendo das escolas símbolos de ostentação deste poder, influenciando a consciência coletiva da população e também a construção da sua identidade. Além disso, historicamente, “essa dignificação da arquitetura escolar acrescentaria, também, o prestígio do professor e elevaria a estima que os alunos têm para com a educação. O prestígio da escola dependerá, pois, de como essa esteja instalada, de seu tamanho, limpeza, orientação. E esse modelo influirá, depois, na casa que a criança buscará no futuro, para melhorar as condições de vida de seus pais” (BALBÁS apud ESCOLANO, 2001, p. 37). Neste caso, o autor refere-se a um momento no qual a escola primária foi difundida mundialmente – como vimos anteriormente, no caso brasileiro podemos pensar na construção dos nossos grupos escolares da virada do século XIX para o século XX que tinham por objetivo oferecer o ensino primário para todas as crianças em idade apta à escolarização – e que contou com a arquitetura de seus edifícios como um dos elementos de contribuiria com a valorização dos professores e dos alunos. O autor ainda ressalta que o ambiente escolar habituaria as crianças e os jovens a certas atitudes – como a organização, a limpeza e até mesmo a valorização estética - e que, ao sair da escola, eles buscariam mantê-los em sua vida, organização as suas casas sob essa inspiração. Quando pensamos em crianças e jovens que foram os primeiros membros da família a freqüentar a escola, já que seus pais não tiveram essa oportunidade naquele momento - como era comum no início do século XX – podemos entender o quanto era forte a influência que esta instituição poderia exercer sobre os hábitos de seus alunos e, inclusive, o quanto muitas vezes as maneiras e as atitudes que a escola desenvolvia nas crianças entravam em choque com aquelas às quais elas estavam habituadas com as famílias e em seus lares. Desta forma, a escola cumpriria também através da sua arquitetura uma função higienizadora e modernizadora dos hábitos familiares e através da criança era atingida a sua família. ��
Além da influência que a arquitetura pode exercer sobre os sujeitos que habitam determinados espaços, ela também é capaz de influenciar a sociedade como um todo, favorecendo o seu desenvolvimento: “ao transcender o funcionalismo banal que só daria cobertura às necessidades físicas, dá origem a uma nova forma de comunicação cultural, que também é pedagógica no sentido mais amplo e generoso” (op. cit., p. 38). Desta forma, a função prática da arquitetura adquire uma dimensão simbólica: ao mesmo tempo em que é funcional (os espaços precisam ser arejados, iluminados, adequados às atividades que neles serão desenvolvidas) ela carrega símbolos que deixam traços que guiam e marcam a conduta das pessoas (se os espaços são lúdicos e informais, se são sóbrios e frios, etc). Para além da construção de seus prédios, a arquitetura escolar também contempla outros símbolos, cívicos, morais e religiosos. Neste caso, podemos ressaltar, por exemplo, cores diferenciadas que marcam os espaços destinados ao uso dos meninos e das meninas, a bandeira nacional, o relógio, os retratos de homens ilustres e os crucifixos que expressam dispositivos em uso no espaço escolar a serviço da propagação e da manutenção de ideais nacionais, religiosos e sócio-morais. Pensemos agora a propósito das nossas escolas, dos espaços que freqüentamos diariamente, no qual trabalhamos. Quantos símbolos elas carregam? Quantas delas não possuem, ainda hoje, ao menos um crucifixo pregado em uma parede? Todos estes símbolos educam e marcam a trajetória escolar dos nossos alunos. Portanto, ao pensarmos na configuração do espaço das nossas escolas e nos símbolos que elas carregam, é importante atentarmos para isso: assim como o currículo, o espaço escolar não é neutro, ele é impregnado de valores e carregado de intencionalidades. Ainda de acordo com Agustín Escolano (2001), o espaço e a arquitetura escolar, ao serem planejados, oferecem as condições para que sejam alcançados os objetivos educativos de cada instituição de ensino, fazendo parte do programa pedagógico. Ao ser elaborado pela equipe da escola, o projeto pedagógico deve levar em conta não apenas as condições espaciais concretas daquela instituição como também a melhor utilização que poderá ser feita dela, de modo a beneficiar o ensino e a aprendizagem. A constituição de um espaço construído especialmente para promover o ensino e a aprendizagem também é um dos elementos que está associado ao surgimento da forma escolar. De acordo com Bernard Lahire, Daniel Thin e Guy Vincent (2001), a forma
escolar corresponde a uma forma inédita de relação social, entre um “mestre” e um ��
“aluno”, relação que hoje chamamos de “pedagógica”. Antes disso, aprender se fazia por ver fazer e ouvir dizer, aprender não era diferente de fazer. Isso ocorria com as próprias famílias e dentro das próprias casas. A autonomia da relação pedagógica instaura um lugar específico – independente do espaço doméstico - onde se realizam as atividades sociais: a escola. A constituição da forma escolar acompanhou a instauração de uma nova ordem urbana, uma redefinição dos poderes civis e religiosos: “colocar todas as crianças, até mesmo as pobres, nas escolas é um empreendimento de ordem pública. Trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição” (op. cit., 14). Mediante as relações estabelecidas neste espaço, as crianças aprendem a obedecer a determinadas regras de convívio social e de comportamento no espaço público, como a maneira considerada correta de comer, de assoar o nariz, de escrever, etc, através de normas que fazem parte da ordem escolar e que se impõem a todos que pertencem à instituição escolar, atingindo tanto os alunos quanto os seus professores. A ordem escolar existe a partir do momento em que as crianças precisam aprender a se comportar dentro do espaço escolar, o que torna possível ensinar muitos alunos ao mesmo tempo. Diferente das escolas confessionais, esses professores que não pregam – já que não são padres - mostram o que é a relação pedagógica: uma submissão do mestre e dos alunos a regras impessoais. A emergência da forma escolar, que acompanha a constituição do tempo e do espaço escolar, se dá a partir de um conjunto coerente de traços: a constituição de um universo separado da infância, a importância de regras de aprendizagem, a organização racional do tempo, a multiplicação e a repetição de exercícios, cuja função consiste em aprender conforme as regras. Assim, para além de ensinar a ler, a escrever e a contar, a sociabilidade exercitada na escola ensinaria também civilidade e visaria à formação do cidadão respeitoso e obediente, conhecedor de seus direitos e, sobretudo, de seus deveres. Ligações profundas unem a escola e a cultura escrita num todo sócio-histórico: a constituição do Estado moderno, instituição de viria a se impor a todos; a generalização da alfabetização. A escola e a constituição das relações sociais de aprendizagem estão ligadas à imposição da cultura escrita e à formação de saberes escriturais formalizados, relacionados tanto ao que é ensinado quanto à maneira de ensinar, tanto à prática dos alunos quanto à prática dos professores. Trata-se de fazer com que os alunos interiorizem determinados saberes que conquistaram coerência pela escrita e de fazer reviver, por um trabalho específico, a prática pedagógica, os resultados do trabalho passado e da cultura acumulada pelos homens historicamente. Portanto, quando nos referimos ao espaço escolar estamos nos ��
referindo a um espaço de ensino e de aprendizagem no qual é estabelecida a relação pedagógica, ou seja, um espaço no qual há uma intencionalidade educativa. Escolas para quem? Conforme vimos anteriormente, a arquitetura escolar é impregnada de significados e, assim como o currículo, ela não é neutra. Ela educa e é capaz de condicionar o comportamento dos alunos. Portanto, no espaço escolar há uma intencionalidade educativa. Desta forma, quando pensamos da utilização do espaço da
escola e sabemos que ele próprio é formativo, devemos nos interrogar acerca dos nossos propósitos educativos. Conforme vocês estudaram no módulo II, na disciplina “O Projeto Pedagógico e Autonomia da Escola”, quando trabalhamos na construção do projeto pedagógico da nossa escola devemos ter clareza acerca dos objetivos que visamos alcançar a partir da sua implementação, ou seja, devemos ensinar o quê? Como? Para quem? Quem iremos formar? Quando pensamos na organização do espaço escolar, devemos ter mente essas mesmas perguntas. Quem pretendemos formar? O que queremos que nossos alunos aprendam? Todos os espaços escolares possuem potencialidades educativas e devem ser considerados em função do projeto pedagógico e da intencionalidade educativa de cada instituição. Portanto, os elaboramos o projeto é preciso refletir sobre esses espaços: 1- Salas de aula 2- Corredores 3- Pátio 4- Banheiros 5- Jardim 6- Quadras 7- Limites: muros, portões 8- O prédio Quando construímos o projeto pedagógico, trabalhamos para projetar o futuro. O projeto pedagógico representa a nossa carta de intenções acerca do trabalho de queremos desenvolver em função da formação que almejamos realizar com os nossos ��
alunos. O espaço escolar, além carregar toda uma simbologia que atua junto à formação das crianças e dos jovens, também é o suporte que sustenta a realização do projeto pedagógico. Por exemplo: como podemos construir um projeto que vise à realização de experiências se a escola não possui laboratório? Como podemos pensar em construir hortas sem a escola é inteiramente pavimentada? Para além das limitações físicas dos espaços também é fundamental que façamos a seguinte pergunta: essa escola é destinada a quem? Quem receberemos e formaremos nela? A acessibilidade do espaço escolar também deve ser considerada. O artigo 3º da LDB em vigor, a Lei nº 9.394/96, define que o ensino será ministrado com base nos princípios de “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”. A educação pública é um direito de todos, garantido por lei, e o seu acesso a ela também é. Para que todas as crianças tenham acesso à educação não basta simplesmente que existam vagas nas escolas para elas, é preciso que o acesso físico às escolas também exista. No ano de 1994, uma reunião que contou com representantes de vários países do mundo todo, organizada pelas Nações Unidas em Salamanca, na Espanha, discutiu os procedimentos que deveriam ser adotados para oferecer a cidadania plena às pessoas portadoras de deficiências, equalizando as suas oportunidades de acesso a todas as instituições sociais. Esse encontro faz parte de uma tendência mundial de promoção e de consolidação da educação inclusiva. Essa reunião deu origem ao documento intitulado “Declaração de Salamanca”, que trata dos princípios, das políticas e das práticas que devem orientar a inclusão das pessoas portadoras de necessidades especiais nas escolas e em toda a sociedade. Para que a escola promova uma educação inclusiva, além dos recursos humanos (professores habilitados em linguagem de sinais, em braile, psicólogos, etc) também é fundamental que a instituição disponha de recursos físicos, como o material especializado, a sala de recursos, os banheiros projetados para receber pessoas que se locomovem mediante o uso de cadeiras de rodas, rampas de acesso ao edifício, elevadores, etc. Promover a acessibilidade de todos à escola requer uma organização específica do espaço escolar. No momento em que construímos o nosso
projeto pedagógico, se não levamos em conta as nossas condições concretas e as nossas possibilidades de mudanças – de reformas e alterações do espaço - ao longo do ano, corremos o risco de elaborar algo que não será transformado de intenção em prática. E, nesse caso, o nosso projeto pedagógico, a nossa carta de intenções não servirá a ninguém, nem aos nossos propósitos, nem aos nossos alunos, nem a nós mesmos.
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Espaço escolar: um espaço em transformação
Sabemos que a escola é uma construção histórica e social e, como tal, está constantemente em transformação. Da mesma forma como ela continua a sofrer influências externas que a modificam, ela pode ser transformada também a partir de seu interior: mediante ações daquelas pessoas que habitam este espaço e o gerem. Se a escola deve refletir e representar a identidade da comunidade escolar, cabe aos gestores o desafio de transformá-la. Quando fazemos o projeto pedagógico da nossa escola, planejamos aquilo que pretendemos realizar: projetamos o futuro modificando o presente. Segundo Moacir Gadotti (1994), “todo projeto supõe rupturas com o presente e promessas para o futuro. Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em função da promessa que cada projeto contém de estado melhor do que o presente. Um projeto educativo pode ser transformado como promessa frente a determinadas rupturas. As promessas tornam visíveis os campos de ação possível, comprometendo seus atores e autores” (GADOTTI apud VEIGA, 2002, p. 12) O projeto pedagógico orienta a organização do trabalho pedagógico de duas formas: como a organização da escola em geral e como a organização da sala de aula. Desta forma, o projeto busca promover a organização do trabalho na escola em sua totalidade, incluindo a gestão do tempo e do espaço. De acordo com Ilma Passos Veiga (2002), “a escola, de forma geral, dispõe de dois tipos básicos de estruturas: administrativas e pedagógicas. As primeiras asseguram, praticamente, a locação e a gestão de recursos humanos, físicos e financeiros. Fazem parte, ainda, das estruturas administrativas todos os elementos que têm uma forma material como, por exemplo, a arquitetura do edifício escolar e a maneira como ele se apresenta do ponto de vista de sua imagem: equipamentos e materiais didáticos, mobiliário, distribuição das dependências escolares e espaços livres, cores, limpeza e saneamento básico (água, esgoto, lixo e energia elétrica)” (op. cit., p. 24-25). A estrutura pedagógica determina a ação da estrutura administrativa, ou seja, esta organiza a escola – e o seu espaço - de modo a alcançar as suas finalidades educativas. Mas o espaço escolar tem sido levado em conta quando construímos o nosso projeto pedagógico? Muitas vezes observamos escolas que possuem projetos bastante ��
dinâmicos e inovadores, mas possuem espaços que mantém um modelo estrutural e arquitetônico bastante conservador. Quando uma comunidade se apropria da escola, também tem o direito de participar de eventuais mudanças neste espaço físico de modo a atender os seus objetivos pedagógicos. Contudo, é possível observar que existem muitas escolas nas quais várias pessoas passam por ela, mas poucas dela se apropriam, o que nos leva a acreditar que há pouca reflexão acerca da função pedagógica do espaço físico da escola e de sua transformação por seus protagonistas, por aqueles que a ocupam e a constroem. O espaço da sala de aula Enxergar a si próprio como protagonista, como alguém que é capaz de modificar o seu espaço em função de um propósito educativo pode repercutir positivamente em uma mudança de mentalidade que influenciará o nosso trabalho e forma como gerimos a escola. Desta forma, em alguns casos, para que possamos tentar modificar o espaço da escola que ajudamos a organizar é preciso que pensemos primeiro em modificar a nós mesmos e as nossas representações acerca desta instituição. Carlos Rodrigues Brandão (1994), ao refletir acerca do espaço da sala de aula em um texto no qual relembra as suas experiências escolares enquanto membro da “turma de trás” ou da “turma do fundão”, como é popularmente conhecido o local da sala da aula habitado mais ao fundo e mais distante dos olhos dos professores, apresenta a seguinte consideração: “na cabeça de quase todo mundo a sala de aula admite espacialmente uma única oposição: a mesa do professor versus o lugar coletivo dos alunos. Necessária ou perversa, esta divisão ancestral dos lugares de ofício que ocupam esses cúmplices e rivais na sala de aula tem sido ultimamente posta em questão, seja para criticar o verticalismo autoritário que ela enuncia, seja simplesmente para lembrar que chegou afinal o tempo de inovações arquitetônicas e pedagógicas quanto ao assunto. Creio que a sala de aula é um espaço múltiplo que sempre comportou outras relações e oposições importantes e, no entanto, esquecidas por não serem possivelmente tão visíveis, do ponto de vista da ortodoxia pedagógica” (op. cit., p. 105). O autor discute a organização tradicional da sala de aula, como era aquela que ele freqüentou na época em que foi aluno. As nossas experiências escolares produzem representações que influenciam a nossa prática educativa. Se não fizermos o exercício, como faz Brandão, de refletir sobre elas, corremos o risco de reproduzir e proporcionar as mesmas experiências – já que agora estamos na posição ��
inversa, como educadores – com os nossos alunos. No caso da disposição dos móveis dentro da classe, por exemplo, é natural mantermos a ordenação tal qual nos habituamos no tempo em que éramos alunos. É nesse sentido que chamamos a atenção para a importância da reflexão acerca da própria história de vida escolar e da própria formação. Quais marcas elas produziram em nós mesmos e nas nossas práticas como educadores? Em que medida as nossas atitudes reproduzem as atitudes dos professores que nos ensinaram? Como cada um de nós se relaciona com os espaços da escola em nosso processo de formação?
Pensar acerca destas questões pode nos sinalizar alguns caminhos possíveis que levariam à transformação do espaço da escola a partir da nossa própria transformação: se não somos capazes de imaginar que o ensino e a aprendizagem aconteçam em um espaço organizado de maneira distinta daquele no qual aprendemos e fomos escolarizados, dificilmente seremos capazes de sermos protagonistas em alguma mudança. Voltemos ao Brandão (1994), enquanto aluno que fazia parte da “turma de trás” da classe, ao refletir sobre a sala de aula que freqüentou ele percebeu que “as antigas (atuais?) repartições formais e espontâneas dos usos da sala de aula refletem internalizações de papéis escolares ou culturais trazidos para dentro da escola. Para nós, os da ‘fila de trás’, a oposição fundamental do lugar sagrado do estudo não era aquela entre o professor e os alunos, em geral, mas uma outra. Era uma divisão entre o lado da norma versus o lado da transgressão. Situados à frente (o professor de frente para nós todos, os alunos ‘aplicados’ de costas) da sala, os ocupantes do espaço reservado ao cumprimento das tarefas previstas. Após uma zona neutra de dos estudantes do ‘meio da sala’, o lugar social da transgressão pedagógica” (op. cit., p. 120). O autor chama a atenção em suas memórias para a maneira como os seus professores o avaliavam de acordo com a posição que ele ocupava na sala de aula. Na ordenação tradicional da classe, o lugar do professor fica à frente e as crianças posicionam-se em filas no restante do espaço. Desta forma, a “turma de trás” é aquela que está mais distante dos olhos do mestre. Os alunos que se posicionam nas primeiras fileiras seriam aqueles considerados “bons alunos”, que estariam sempre atentos à aula e ao professor. Ao refletirmos sobre essa configuração espacial, podemos notar que ao mesmo tempo em que ela oferece abrigo àqueles considerados “transgressores”, ela também ��
favorece a “transgressão” pela forma rígida como dispõe as pessoas no espaço. “Divididos os espaços” conclui Brandão “internalizados os papéis, culturalmente estabelecidas e consagradas as identidades, constituídos os grupos e subgrupos entre colegas de ofício por um ano ou mais, a ‘classe’ funcionava não como o corpo simples de alunos-e-professor, regidos por princípios igualmente simples que regram a chatice necessária das atividades pedagógicas. Ela organizava a sua vida a partir de uma complexa trama de relações de aliança e conflito, de imposição de normas e estratégias individuais ou coletivas de transgressão, de acordos (entre categorias de colegas, entre alunos e professores, entre professores ‘chapas’ e a direção do colégio). A própria ‘atividade escolar’, como o ‘dar aula’, ‘ensinar’, ‘fazer a prova’, era apenas um breve corte, no entanto poderoso e impositivo, que interagia, determinava relações e era determinada por relações sociais, ao mesmo tempo internas e externas aos limites da norma pedagógica” (op. cit., p. 121). O autor considera que o que se fazia no interior das salas de aulas na época em que ele estudou, entre os anos de 1950 e 1960, conspirava contra o desejo das crianças e dos jovens e, desta forma, fazia com que os mesmos produzissem “estratégias” que tornavam a sua permanência naquele espaço e durante aquele tempo suportável. Para ele, o esforço e as tentativas de inovação promovidas pelas pedagogias ditas “modernas” consistem em aprender as estratégias de relações entre as pessoas utilizadas por aqueles ditos “transgressores” das normas rígidas de conduta no espaço escolar que tornariam a submissão às regras escolares ao menos suportável. É preciso ponderar que as “transgressões” às normas escolares que ocorriam nos anos de 1960 não eram as mesmas que ocorrem hoje em dia, chegando a casos extremos de atos de vandalismo e de depredação do espaço escolar até violência e agressões contra professores e alunos. Contudo, a reflexão do autor nos faz pensar que, assim como o projeto pedagógico que, para que de fato atenda às necessidades da clientela escolar de determinada instituição, precisa ser fruto de uma construção coletiva, o mesmo acontece com o uso do espaço da escola. Se as decisões são partilhadas e resolvidas democraticamente, há pouco espaço para a transgressão, pois as regras não são vistas como imposições e sim como acordos. É evidente que as decisões coletivas não são tomadas de forma simples, normalmente são o resultado de um longo processo de negociação. Agir dessa forma constitui um desafio que acena para resultados promissores.
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Exercício 4
No livro Maldito profe!, Nicolas Revol (2000) relata aspectos do seu cotidiano como professor de uma escola considerada “problemática e violenta”, localizada na periferia de Paris. Acompanhemos alguns trechos da história deste professor ao assumir as aulas nesta escola: “(...) à primeira vista, [a escola] Eugène-Sue não se parece nada com um estabelecimento degradado. Foi renovado recentemente, com materiais contemporâneos, os espaços são bem luminosos e os revestimentos muito limpos. As oficinas são amplas e bem equipadas. Fico a saber que tenho a sorte de ter uma sala de aulas única para o ano inteiro: assim não tenho que andar a arrastar o meu material pelos quatro cantos do liceu, os alunos é que terão de se deslocar para assistirem às minhas aulas. Faço parte dos privilegiados. É verdade que não vou ter espaço suficiente para guardar os trabalhos dos alunos, mas apesar de tudo a sala é espaçosa e bem orientada para o sul. Até tenho um pequeno anexo que posso fechar à chave para guardar os trabalhos volumosos. Só uma coisa me preocupa: estou muito isolado. A minha sala fica no terceiro e último andar. As aulas aqui são raras. Estarei freqüentemente sozinho” (p. 28-29) “Primeiras horas: tempo de deixar entrar os alunos, instalá-los atrás de uma carteira, baixar o volume sonoro especialmente elevado no início do ano, e já passaram dez minutos. Primeira surpresa: a porta abre-se e fecha-se vinte vezes até eu poder pensar em apresentar-me. Há os alunos lá de fora que vão e vêm. Os retardatários, antes de se sentarem, dão um aperto de mãos a cada um. Depois, exatamente como no ano passado, o mínimo incidente perturba-os. Um aluno dá um tranque e toda a turma se afasta do culpado, deixando sozinho no canto da sala” (p. 31-32). “Quando o volume sonoro atinge de novo um nível insuportável e alguns objetos começam a voar pela sala, peço aos alunos que pousem as canetas. Faço questão que a ficha seja corrigida em conjunto. Este exercício tão lúdico quanto instrutivo permite-me captar melhor a personalidade de cada um: os mais ‘destravados da língua’ fazem tudo para atrair as atenções, os tímidos enfiam-se nas suas tocas atrás das carteiras, os ‘Picassos’ fazem o seu brilharete. E como sempre, os mais calões passam o tempo a mandar abaixo os que se dignam participar no exercício” (p. 35-36). Nestes trechos do seu relato, Revol (2000) apresenta alguns aspectos do espaço escolar e conta algumas das situações de indisciplina que enfrentava. Sabemos que a ��
indisciplina tem várias causas, mas especialmente considerando possibilidades do espaço escolar, construa uma reflexão acerca da maneira como ele poderia ser utilizado de modo a atenuá-la e a favorecer o ensino e a aprendizagem.
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