A guerra sempre foi um tópico interessantíssimo. Ela concentra e intensifica algumas de nossas emoções mais fortes: coragem e medo, resignação e pânico, egoísmo e abnegação, ambição e generosidade, patriotismo e xenofobia. O estímulo da guerra incitou seres humanos a criar prodígios de engenhosidade, improvisação, cooperação, vandalismo e crueldade. E o campo mais arriscado para testar presença de espírito e sorte: nenhum esforço pacífico pode igualar suas penalidades pelo fracasso, e poucos podem exceder suas recompensas pelo sucesso. Ela permanece a mais teatral de todas as atividades humanas, combinando tragédia, drama, melodrama, espetáculo, ação, farsa e até mesmo comédia de situação. A guerra mostra os extremos da condição humana. Não é, portanto, de surpreender que as primeiras histórias documentadas, os primeiros relatos escritos, sejam de teor militar. A história documentada, porém, representa menos do que a metade de um por cento dos mais de dois milhões de anos que os humanos existem. De fato, a pré-história terminou em algumas áreas do mundo há algumas décadas. Esses longos capítulos da história da humanidade e todos os recentes “povos sem história” são o foco especial da antropologia - dos arqueólogos que estudam o primeiro e dos etnógrafos que têm observado o último. O que, então, a antropologia disse sobre a guerra conduzida pelas sociedades pré-históricas e “primitivas” ? A resposta simples é: muito pouco. A maioria das opiniões com relação à guerra e à paz pré-histórica (e tribal) reflete dois mitos antigos e duradouros: o do progresso e o da Idade do Ouro. O mito do progresso retrata o estado original da humanidade com o ignorante, miserável, brutal e violento. Quaisquer complexidades artificiais introduzidas pela invenção humana ou deuses úteis serviram apenas para aumentar a felicidade do homem, o conforto e a paz, resgatando os humanos de seu horrível e danoso estado de natureza. O mito contraditório assevera que os humanos civilizados perderam a graça - de uma simples e primeva felicidade, uma era de ouro pacífica. Todos os acréscimos do progresso meramente multiplicam a violência e o sofrimento; a civilização é uma condição lamentável, a consequência de nosso estado pecaminoso, ambição e lixo tecnológico. No período moderno, esses temas míticos antigos foram elaborados por Hobbes e Rousseau e se transformaram em atitudes filosóficas duradouras em e m relação relaçã o aos povos povos primitiv primitivos os e pré-históricos. pré-históricos. Este livro teve sua gênese em duas falhas pessoais - uma de ordem acadêmica prática; a outra, intelectual. Como resultado de ambas, percebi que arqueólogos do período pós-guerra tinham artificialmente “pacificado o passado”, e compartilhavam um vezo recorrente contra a possibil possibilid idade ade de guerras pré-histórica pré-históricas. s. A arqueologi arqueologiaa é o estudo de padrões de efeito efe itoss , repetições de comportamentos humanos humanos que deixam marcas indeléveis ndeléveis no mundo mundo físico. físico. A guerra - o conflito armado entre sociedades - em maior ou menor escala, é um desses padrões e produz efeitos muito duradouros. Neste trabalho, reuni provas e evidências para convencer não apenas arqueólogos e historiadores, mas também o público culto de que a noção da guerra pré-histórica e primitiva não é um paradoxo. Lawrence Lawrence H. Keeley Professor de Antropologia na Universidade de Illinois em Chicago
A guerra sempre foi um tópico interessantíssimo. Ela concentra e intensifica algumas de nossas emoções mais fortes: coragem e medo, resignação e pânico, egoísmo e abnegação, ambição e generosidade, patriotismo e xenofobia. O estímulo da guerra incitou seres humanos a criar prodígios de engenhosidade, improvisação, cooperação, vandalismo e crueldade. E o campo mais arriscado para testar presença de espírito e sorte: nenhum esforço pacífico pode igualar suas penalidades pelo fracasso, e poucos podem exceder suas recompensas pelo sucesso. Ela permanece a mais teatral de todas as atividades humanas, combinando tragédia, drama, melodrama, espetáculo, ação, farsa e até mesmo comédia de situação. A guerra mostra os extremos da condição humana. Não é, portanto, de surpreender que as primeiras histórias documentadas, os primeiros relatos escritos, sejam de teor militar. A história documentada, porém, representa menos do que a metade de um por cento dos mais de dois milhões de anos que os humanos existem. De fato, a pré-história terminou em algumas áreas do mundo há algumas décadas. Esses longos capítulos da história da humanidade e todos os recentes “povos sem história” são o foco especial da antropologia - dos arqueólogos que estudam o primeiro e dos etnógrafos que têm observado o último. O que, então, a antropologia disse sobre a guerra conduzida pelas sociedades pré-históricas e “primitivas” ? A resposta simples é: muito pouco. A maioria das opiniões com relação à guerra e à paz pré-histórica (e tribal) reflete dois mitos antigos e duradouros: o do progresso e o da Idade do Ouro. O mito do progresso retrata o estado original da humanidade com o ignorante, miserável, brutal e violento. Quaisquer complexidades artificiais introduzidas pela invenção humana ou deuses úteis serviram apenas para aumentar a felicidade do homem, o conforto e a paz, resgatando os humanos de seu horrível e danoso estado de natureza. O mito contraditório assevera que os humanos civilizados perderam a graça - de uma simples e primeva felicidade, uma era de ouro pacífica. Todos os acréscimos do progresso meramente multiplicam a violência e o sofrimento; a civilização é uma condição lamentável, a consequência de nosso estado pecaminoso, ambição e lixo tecnológico. No período moderno, esses temas míticos antigos foram elaborados por Hobbes e Rousseau e se transformaram em atitudes filosóficas duradouras em e m relação relaçã o aos povos povos primitiv primitivos os e pré-históricos. pré-históricos. Este livro teve sua gênese em duas falhas pessoais - uma de ordem acadêmica prática; a outra, intelectual. Como resultado de ambas, percebi que arqueólogos do período pós-guerra tinham artificialmente “pacificado o passado”, e compartilhavam um vezo recorrente contra a possibil possibilid idade ade de guerras pré-histórica pré-históricas. s. A arqueologi arqueologiaa é o estudo de padrões de efeito efe itoss , repetições de comportamentos humanos humanos que deixam marcas indeléveis ndeléveis no mundo mundo físico. físico. A guerra - o conflito armado entre sociedades - em maior ou menor escala, é um desses padrões e produz efeitos muito duradouros. Neste trabalho, reuni provas e evidências para convencer não apenas arqueólogos e historiadores, mas também o público culto de que a noção da guerra pré-histórica e primitiva não é um paradoxo. Lawrence Lawrence H. Keeley Professor de Antropologia na Universidade de Illinois em Chicago
Impresso no Brasil, dezembro de 2011 Título original: War Before Civilization • Copyright © 1996 by Oxford University Press, Inc. A primeira edição de War Before Civilization foi originalmente publicada em 1996. A publicação desta tradução é realizada por meio de acordo com a Oxford University Press. Os direitos desta edição pertencem a É Reali Re alizações zações Editora, Editora, Livraria Livraria e Distribui Distribuidora dora Ltda. Caixa Postal: 45321 • 04010 970 • São Paulo • SP Telefax: (5511) 5572 5363
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Criação / Formatação ePub: Relíquia Editor Edson Manoel Manoel de Oliveira Olive ira Filho Gerente Gerente editorial Gabriela Trevisan Preparação Maiza P. Bernardello Revisão Paula B. P. Mendes Viviane ivi ane Teixeira Mendes Mendes Bete Abreu Liliana Cruz Capa e projeto projeto gráfico gráfi co Mauríci Maurícioo Nisi Gonçalves Gonçalves / Estúdio Estúdio É Diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impr Pré-i mpressão essão e impr i mpressão essão Prol Editora Gráfica Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
A minha mãe, Ruth; meu filho, Pete; e à memória de meu pai, Lawrence.
Sumário Introdução MAURÍCIO G. RIGHI Prefácio Agradecimentos A GUERRA ANTES DA CIVILIZAÇÃO Capítulo 1 | O Passado Pacificado A ANTROPOLOGIA DA GUERRA Capítulo 2 | Os Cães de Guerra A PREVALÊNCIA E A IMPORTÂNCIA DA GUERRA Capítulo 3 | A Política por Outros Meios TÁTICAS E ARMAS Capítulo 4 | Imitando o Tigre FORMAS DE COMBATE Capítulo 5 | Um Modo Furtivo de Guerra GUERREIROS PRIMITIVOS VERSUS SOLDADOS CIVILIZADOS Capítulo 6 | A Colheita de Marte AS BAIXAS DA GUERRA Capítulo 7 | Ao Vencedor OS LUCROS E AS PERDAS DA GUERRA PRIMITIVA Capítulo 8 | Um Brado Devastador A QUESTÃO DAS CAUSAS Capítulo 9 | Má Vizinhança OS CONTEXTOS DA GUERRA Capítulo 10 | Uma Paz Nua, Pobre e Desfigurada SUA CONVENIÊNCIA E FRAGILIDADE Capítulo 11 | Transformando Golpes de Espada em Metáforas Capítulo 12 | Uma Truta no Leite DISCUSSÃO E CONCLUSÕES APÊNDICE Tabelas BIBLIOGRAFIA
Introdução MAURÍCIO G. RIGHI
Como pode a tese do homem intrinsecamente bom ser defendida? (…) Shakespeare está gentilmente gozando da ingenuidade ocidental por excelência: a obsessão com a ingenuidade. René Girard, Shakespeare: Teatro da Inveja. Entre os golpes de machado e os mísseis, a diferença não é de natureza, mas de grau. René Girard, Rematar Clausewitz: Além Da Guerra.
DUAS FILOSOFIAS Jean-Jacques Rousseau afaga nossa sensibilidade romântica. Ele realmente nos toca, afirmando que já fomos, em algum momento e lugar, crianças livres e inocentes. Foi o “primeiro escritor romântico de língua francesa”,{1} o intelectual que começou a expressar clara e didaticamente a sensibilidade moderna, anunciando os anseios e as paixões de uma sociedade que se tornava rapidamente mais urbana, sentimental, culta e idealista. Foi aquele tipo raro de escritor e pensador que antecipa toda uma época histórica. Jean-Jacques Rousseau estava indignado com a desigualdade, a opressão, a injustiça e a tirania do mundo que o cercava, e queria reabilitar, dentro da sociedade civil e por meio do exercício da razão e da virtude cívica, a liberdade de nosso estado natural, destituindo os meios de dominação políticourídica dos ricos e poderosos, os quais haviam institucionalizado a, desigualdade entre os homens. Ele reflete sobre as formas para se promover, na sociedade civil, a liberdade, a fraternidade e a igualdade entre os homens, os quais governariam a si mesmos, livres da opressão e da violência dos ricos e poderosos.{2} É, em linhas gerais, uma questão sobre a violência e a ambição dos outros, os que perseguem e difamam os inocentes e os virtuosos, a violência e ambição desmedida dos tiranos que escravizam as leis e os homens. A violência está sempre no outro. Rousseau - e nós o imitamos soberbamente - expulsa a violência social de si mesmo, denunciando-a nas leis, nos sistemas e na cultura de uma sociedade que ele considera degradada. Ele é inocente, vítima perseguida de uma sociedade e de uma cultura injustas, as quais precisam ser transformadas pela ação redentora que a moral e a racionalidade de Rousseau oferecem. É preciso acabar com a tirania dos violentos, mesmo que para esse fim façamos uso de um bocado de violência, mas nossa violência é justificada, uma vez que somos, como ele - em sua virtude cívica - e seu Bom Selvagem - em sua ignorância feliz -, criaturas inocentes. Iniciaremos a guerra para pôr fim a todas as outras violências, extirpando a tirania do mundo. Essa filosofia, que acabou fornecendo um importante combustível teórico para o movimento revolucionário francês do final do século XVIII, denunciava a opressão que os meios sociais tradicionais da época exerciam, ao mesmo tempo que se estabeleceria uma bondade, igualdade e liberdade originais, na verdade ideais, que teriam que ser forçadas para dentro da sociedade, para que a vida social, então, se tornasse plena. Infelizmente, o terror jacobino foi sua expressão histórica mais real e terrível. É uma teoria de denúncia moral, de expulsão do egoísmo individual e da violência social gerada por um sistema
corrupto e corruptor, acusando-se sempre um outro responsável, mas, como se estivesse preso a um elástico, quanto mais violentamente expulsamos esse inimigo moral, mais intensa e irremediavelmente ele retorna contra nós. É importante observar como Rousseau, um admirador da suposta paz idílica em que viveriam os povos selvagens, podia, ao mesmo tempo, ser um grande apreciador da cidade-Estado de Esparta, elogiando seu modelo de vida social, o qual se baseava em um militarismo atroz. Mas a ambiguidade da visão não o afeta, pois é justamente o estado mais austero de sociedade, em sua condição mais próxima de um suposto estado natural ou ideal, que o atrai. {3} Rousseau só enxerga o mal da violência social quando ela se associa aos seus desafetos - ao mundo da civilização, da arte e da ciência do Antigo Regime -, quando se associa aos seus inimigos morais e seus alegados sistemas egoístas e degenerados. Portanto, assim como ele e o Bom Selvagem, Esparta é inocente, mesmo que tenha adotado, em seu repertório social, práticas brutais de violência que eram culturalmente consagradas. Nesse caso, segundo Rousseau, a violência social torna-se uma coisa benéfica, pois consagra o pleno funcionamento da vida cívica, e os jacobinos o levaram ao pé da letra. Rousseau ficou muito impressionado e foi influenciado pelo pensamento de outro grande teórico da vida social e da filosofia política, Thomas Hobbes, que publicara, em 1651, um tratado de filosofia intitulado Leviatã. A obra de Hobbes, que precedeu os primeiros escritos de Rousseau em cem anos, alegava que o estado de natureza entre os homens seria um estado interminável de conflito e guerra, e a única alternativa racional para a resolução da incontornável diferença entre os desejos, crenças e paixões dos homens estaria na renúncia “ao juízo individual, estabelecendo relações contratuais com os outros homens e instituindo um soberano cujos juízos passaríamos a considerar como nossos”. {4} Hobbes se preocupava com o problema crônico da violência social gerado pelas guerras internas, as guerras civis, e procurava encontrar um meio de “libertar o povo do medo”.{5} No entanto, para o completo desapontamento de Rousseau, Hobbes não idealizara uma liberdade socialmente construída e apostara todas as suas fichas no Estado forte e na autoridade soberana de um governo absoluto como os únicos meios para se frear o desentendimento inevitável e a violência irrefreável entre os seres humanos, quando deixados em estado natural.{6} Todavia, sabemos que mesmo em nações socialmente coesas, ordenadas em torno de Estados controlados por governos consagrados pelos súditos ou cidadãos, os quais se privam do franco usufruto de suas liberdades em favor da governabilidade e do império das leis, isso não garante, necessariamente, a pacificação da vida social dos homens. No século XX, encontramos os exemplos históricos mais trágicos de Estados-nações ideológica e politicamente coesos promovendo a deflagração de processos de violência social e política sem limites. Rousseau via, com clareza, os perigos que um governante excessivamente poderoso poderia representar para a sociedade, e que seria necessário limitar a autoridade do soberano.{7} Rousseau percebia os perigosos paradoxos da suposta função pacificadora dos governantes e seus instrumentos de controle e coação, colocando-se contrário às soluções apresentadas por Hobbes. Mas, descontando-se qual seria o tipo de condução política ideal o mais racional da sociedade civil, os dois pensadores se alinham, contudo, de maneira impressionante, pois Hobbes, antes de Rousseau, também expulsara violentamente, para longe da sociedade civil, o perigo apresentado pelos desejos conflitantes entre os seres humanos. Nesse caso, contudo, Hobbes não expulsa os desejos individuais em função da reabilitação e reordenação de uma suposta igualdade e liberdade naturais ou ideais, como fará Rousseau, mas ele os expulsa da vida cívica em função de um objetivo comum de autopreservação entre os seres humanos,{8} sacramentando, como fará Rousseau, a inviolabilidade da comunidade política dos homens, em sua função pacificadora e promotora da vida plena em sociedade. Hobbes isola os desejos conflitantes dos seres humanos em seu estado natural, expulsando-os para longe da comunidade que pretende se organizar politicamente, dentro da qual os arranjos de poder e as negociações de sobrevivência podem, então, prosperar, livres do contágio dos
desejos desordenados do indivíduo humano. Ele alerta para as crenças irracionais e incorrigíveis dos seres humanos, que desembocam em paixões violentas e desentendimentos sem fim, ao mesmo tempo que decreta a consagração do pacto político entre os homens como o único meio de se expulsar essa incontrolável violência da sociedade civil. Em Hobbes, assim como em Rousseau, o inimigo social por excelência, aquele que precisa ser condenado, é o desejo do indivíduo humano. Ele tem que ser rejeitado ou expulso para que a vida social - o mundo dos homens - se livre da violência interna e possa florescer. {9} A diferença maior é que, em Hobbes, esse desejo é um elemento natural da própria condição humana, enquanto para Rousseau o mau desejo foi construído e consolidado historicamente, dentro do processo de desenvolvimento material da humanidade. Na realidade, esses dois notórios pensadores estavam discutindo quais seriam os meios mais eficientes para se promover a paz e a concórdia entre os homens na sociedade civil, tendo-se em vista o regime das leis e da representação política. Eram questões de ordem prática e refletiam, em cada um dos autores, circunstâncias históricas reais. Mas, por trás das questões mais pontuais se encontra uma problemática mais universal e que, para o nosso caso, é de suma importância. Eu diria que é, sobretudo, uma questão de ordem teológica, embora se manifeste num plano absolutamente antropológico e histórico. Falo da onipresente realidade da violência social e moralmente estimulada, a violência que se encontra coletivamente organizada para debelar outras violências, as quais consideramos, assim como Hobbes e Rousseau, socialmente prejudiciais. É um mecanismo que aparece em todas as culturas humanas e nos remete, sobretudo, aos extensos trabalhos investigativos de René Girard e Walter Burket, os quais usarei aqui, apenas, como anteparo teórico para discutir a extrema importância do livro de Lawrence H. Keeley, A Guerra Antes da Civilização. UMA BASE TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICA Acredito que Christopher Dawson estava certo quando dizia que todo período histórico tem “interesses filosóficos marcantes”,{10} e que essa filosofia influencia, sobremaneira, os estudos das questões históricas de cada época, não apenas na escolha, mas também na abordagem dos temas. Além disso, ele, sutilmente, nos leva a reconhecer que, ao adotarmos um ângulo de observação mais afinado com os níveis mais profundos das indagações e preocupações filosóficas de cada época, perceberemos que esses interesses filosóficos, afinal de contas, refletem questões de cunho teológico, e que podemos observar tal realidade na própria história das culturas humanas. Na verdade, de um ponto de vista estritamente cronológico, não existe desenvolvimento filosófico sem uma herança teológica que o tenha precedido, e grande parte dos questionamentos filosóficos são, ou já foram, questionamentos teológicos (leia-se cosmogônicos ou teogônicos em contextos mais arcaicos). Dessa forma, ao nos aventurarmos em investigações e especulações histórico-filosóficas, herdamos, de uma forma mais ou menos consciente, compreensões e questionamentos teológicos que influenciam intensamente a condução dos nossos processos de entendimento. Portanto, nosso pensamento e os produtos intelectuais que dele retiramos dependem e são, em certa medida, dominados por uma anterioridade teológica, quer reconheçamos isso ou não. Quando percebemos o mesmo mecanismo de consagração da violência do grupo moralmente ustificado dominando tanto o pensamento de Hobbes quanto o de Rousseau, embora eles se posicionem, formalmente, como opostos ideológicos, estamos observando uma questão teológica de fundo, a partir da qual todo o sistema deles é montado. Essa questão de fundo não é, contudo, conscientemente controlada, pelo contrário, pois por baixo dos interesses filosóficos marcantes de cada época, com toda a validade sociológica e política que têm, existe um nível subliminar de realidade teológico-antropológica que domina, desde a base, as implicações mais universais dos respectivos sistemas. Por exemplo, Hobbes
tinha preocupações imediatas com o estado de beligerância e guerra iminente que se espalhava por toda a sociedade britânica, entre, grosso modo, uma Coroa e uma alta aristocracia que eram anglicanas, absolutistas e monopolistas, em oposição a uma baixa aristocracia e uma burguesia que resistiam, crescentemente, às práticas políticas, religiosas e fiscais da monarquia e de seus aliados, em um movimento de cunho protestante, nacionalista e republicano. Em janeiro de 1649, depois de uma sangrenta guerra civil, Carlos I foi decapitado e a monarquia, abolida, iniciando-se o curto período da república de Cromwell. Esse era o conturbado universo político em que Hobbes vivia, e ele, ao se lançar na investigação sobre as bases do comportamento humano, em suas relações sociais e políticas, estava influenciado, é claro, pelos interesses filosóficos marcantes de sua época. Entretanto, como esto tentando destacar, havia questões ainda mais profundas que dominavam o pensamento de Hobbes, assim como o de qualquer outro pensador político; havia, certamente, a questão histórico-social pontual e concreta sobre quais forças políticas deveriam controlar os mecanismos sociais de violência institucionalmente organizada, ou seja, quem controlaria os poderes policiais e militares, mas essa questão nos leva, caso nos aprofundemos, ao problema teológico da violência moralmente justificada e autorizada, a violência que destrói em nome de sua autoridade moral, em nome de seu alegado poder ordenador superior e transcendente, uma espécie de “violência sagrada”. Para Hobbes, era a sociedade organizada em torno da autoridade política soberana da pessoa do rei, do tirano ou de uma assembléia autoritária que se constituía como autoridade racional e moral inviolável, ou seja, esse poder soberano da comunidade política teria o direito exclusivo de se apropriar dessa violência sagrada a fim de estabelecer a paz social que só ele poderia promover.{11} Isso é, certamente, colocado como uma questão moral. Justifica-se, portanto, o uso dos meios de coação e destruição coletivamente organizados para se controlar a periculosidade dos incontáveis e incontroláveis males da vida dos homens, quando deixados em seu estado natural. Consagra-se, absolutamente, a violência do representante político máximo da sociedade civil, ao mesmo tempo que se expulsa, definitivamente, a violência caótica do inimigo social máximo. Essas categorias, por sua envergadura, assumem conotações teológicas, ou seja, assumem dimensões metafísicas. O mesmo mecanismo teológico-antropológico foi usado, posteriormente, por Rousseau, que apenas inverteu o posicionamento moral de Hobbes, ao colocar as tradicionais estruturas de poder do Antigo Regime, a realeza, a nobreza e a Igreja, no centro de seus ataques, ou seja, no centro de expulsão metafísica, fornecendo, conceitualmente, as justificativas absolutas para a ação violenta do movimento revolucionário “dos homens livres”, em oposição àquelas estruturas supostamente degeneradas e malignas em sua totalidade. São, ambos, em Hobbes e Rousseau, discursos morais que se dizem portadores de uma racionalidade superior a todos os saberes existentes, uma espécie de revelação. São discursos dominados pela lógica de um mecanismo de violência que expulsa o inimigo moral de uma forma absoluta, sem a qual a reorganização da vida social e o restabelecimento da paz são tidos como impossíveis, ou seja, são discursos notadamente teológicos na envergadura de suas alegações morais e implicações metafísicas e, ao mesmo tempo, são discursos antropológicos em seus meios completamente humanos e violentos de resolver a questão. Portanto, ao adotar uma visão para além das questões histórico-filosóficas sobre as guerras e as revoluções desta ou daquela época, verificamos a permanência de questões teológico-antropológicas centrais. Por que somos violentos? Quais são as realidades e ustificativas que dominam nossa violência individual e coletiva? Existe alguém ou algo cuja realidade não participa de nossa violência, alguém ou algo que está fora de nosso sistema e que pode funcionar como um modelo verdadeiro de não violência e de paz duradoura? Que paz seria essa? AS EVIDÊNCIAS
As evidências arqueológicas e antropológicas foram, nos últimos quarenta anos, implacáveis com todos os teóricos que ainda insistiam em pacificar o passado pré-histórico e tribal das culturas humanas, defendendo a existência de um estado de bondade natural. Em primeiro lugar; os estudos em antropologia têm mostrado, de forma consistente, a completa inadequação do termo “estado natural”, conceito que sustenta a base teórica dos sistemas de Hobbes e Rousseau, mas que não se aplica à realidade antropológica. Simplesmente não é possível isolar o ser humano de sua base social, seja antropológica ou historicamente, pois todo indivíduo humano, em todos os tempos e lugares, foi e está imerso em uma sociedade cuja anterioridade cultural, uma tradição qualquer, o precede em muito; ou seja, ao contrário do que Hobbes queria provar, Aristóteles é que parece estar certo.{12} Um equívoco bastante comum entre os intelectuais dos séculos XVII, XVII e boa parte do XIX foi o de conceber, ingenuamente, como bem observou Dawson, que as ditas culturas primitivas ou selvagens, por não terem escrita, não tinham história e que, por não terem vida urbana e um Estado organizado, não haviam, ainda, conquistado uma inteligência social, política e jurídica que as tornassem plenamente humanizadas. A escrita não dá nascimento à história, mas apenas inicia uma era em que se inaugura um processo mais sofisticado de arquivamento e transmissão da tradição, que, até então, era passada oralmente. Além disso, ao contrário do que tanto Hobbes quanto Rousseau pensavam, as comunidades chamadas de selvagens e primitivas possuem estruturas políticas e de costumes (jurídicas) muito mais sofisticadas do que os parcos conhecimentos históricos e antropológicos dos séculos XVII e XVIII poderiam avaliar. Essas culturas tribais têm uma inteligência social muito próxima da nossa; na verdade, essas sociedades parecem sei; em geral, muito mais coesas e obedientes em relação à tradição do que as sociedades civilizadas, ou seja, longe de viverem em estado de caótica (Hobbes) ou pacífica (Rousseau) ignorância selvagem, elas são, num certo sentido, muito mais cívicas do que nós. Nelas, o escândalo dos desejos individuais e egoístas, denunciado por Hobbes e Rousseau, é praticamente inexistente, inexistente, uma uma vez v ez que a vida é ritualm r itualmente ente controlada em seus mínim mínimos os detalhes. d etalhes. Em segundo lugar, tivemos, nas últimas décadas, uma verdadeira enxurrada de escavações e investigações de campo que confirmaram, a partir de evidências materiais decisivas, a ocorrência de verdadeiros verdadei ros massacres massacres e chacinas entre entre populações pré-históricas, pr é-históricas, nos mais mais variados var iados lu l ugares e épocas do longuíssimo mundo pré-histórico. Houve, por exemplo, durante boa parte do século XX, um obstinado consenso historiográfico sobre o caráter marcadamente pacífico das primeiras comunidades de agricultores que inauguraram o neolítico europeu. Contudo, isso era uma consideração meramente teórica, a qual se fazia totalmente dependente de uma filosofia preocupada em pacificar uma pretensa natureza humana em estado puro. No entanto, logo que foi possível realizar os primeiros trabalhos arqueológicos mais mais sérios, s érios, indo a campo para investigar, investigar, a fun fundo, a realidade reali dade material material desses povos, p ovos, toda a filosofia pacificadora pac ificadora com c omeçou eçou a ruir. Hoje, Hoje, sabem sa bemos os que essas populações de agricultores do início i nício do neolítico europeu, além de serem extremamente belicosas, perpetraram verdadeiros e numerosos massacres contra grupos de crianças e mulheres cujos restos ossuários foram encontrados empilhados em vários sítios espalhados pela Europa central e oriental. Chegou-se, também, à conclusão de haver uma alta probabilidade de práticas sistemáticas de canibalismo, tudo isso executado por grupos de agricultores.{13} Essas evidências abalaram e começaram a dissolver, de maneira decisiva, as consagradas interpretações sobre um pretenso desenvolvimento pacífico e meramente econômico das culturas pré-históricas, colocando novos questionamentos em pauta. Em terceiro lugar, tivemos outra avalanche de evidências, agora vinda dos estudos antropológicos, que apontavam para um estado de guerra e violência endêmicos, entre as populações indígenas estudadas em loco. O caso da cultura dos ianomâmis, estudada pelo famoso antropólogo Napoleon de Chagnon, ganhou ganhou notorie notoriedade dade..{14} Chagnon viveu junto aos ianomâmis e constatou o quanto aquele povo vivia sob o
ônus de intermináveis conflitos locais. Esses índios, que vivem em pequenas tribos espalhadas por vastíssimas porções de terra concedidas e protegidas por governos nacionais, têm à sua disposição uma riquíssima riq uíssima flora e fauna. fauna. Portanto, Po rtanto, não lhes falta fal ta nem comida, nem terr territóri itórioo e nem segurança. segurança. Teriam eri am tudo tudo para viver uma vida pacífica e harmoniosa, protegida por um gigantesco santuário natural. No entanto, o modo de existência dos ianomâmis não se conforma aos ideais de uma suposta humanidade naturalmente pacífica. A cultura desses índios é substancialmente estruturada em torno dos valores guerreiros dos machos mais agressivos, fortes e ousados, os quais se reconhecem como “ferozes”. A identidade desses homens é formada a partir de suas experiências de combate contra seus rivais. Escaramuças constantes, captura de mulheres, expedições para destruição dos bens e da vida dos rivais, vinganças intermináveis, dentre outros, estão no centro das atividades dos homens e da cultura desses índios. Mas eles não representam um caso excepcional, apenas refletem um padrão de comportamento cultural universal, verificado mundo afora, como é tão bem retratado no livro de Lawrence H. Keeley, A Guerra Antes da Civilização. Os estudos estudos mais notáveis, notáveis, em primatologia, primatologia, realizados real izados a partir par tir do final da década déc ada de 1960, revelaram revel aram um comportamento violento e predatório entre os primatas (chimpanzés, orangotangos e gorilas), até então considerados dóceis e pacíficos. Verdadeiras práticas de extermínio coletivo e intencional entre grupos de chimpanzés foram testemunhadas pelos primatólogos, em diferentes parques nacionais do continente africano, o que foi, na época, um choque para os próprios cientistas de campo, os quais, ao testemunharem a ocorrência de repetidos ataques premeditados entre grupos rivais de macacos, tiveram que abandonar a antiga visão idealizada de uma comunidade essencialmente pacífica de chimpanzés.{15} Portanto, diante de tamanha evidência de comportamento coletivo sistematicamente violento, organizado e premeditado, adotado não só pelas mais variadas culturas pré-históricas e tribais, mas também por nossos supostos ancestrais do mundo animal, é possível admitir, com boa dose de segurança, que as teorias e visões que defendiam um estado natural de bondade humana ou pré-humana começaram a perder credibilidade, credibi lidade, ou seja, o Bom Selvagem passou a ser considerado, cada vez mais, mais, um mito, mito, e todo o corolário teórico que sustentava um passado pré-histórico pacífico está desmoronando. Mas é fundamental notar que essas descobertas não endossam a realidade hobbesiana, já que a organizada, coesa e obediente comunidade político-jurídica que Hobbes defendia, colocando-a como fruto da civilização e do progresso, não é nem pacificadora, nem um produto do progresso e da civilização. As sociedades pré-históricas e tribais consagram seus Leviatãs de uma maneira não menos eficiente que fazem as sociedades civilizadas, e, mesmo assim, a violência social e a guerra endêmica aparecem, igualmente, em ambos os mundos. Dessa forma, tanto faz pacificar o passado, como fez Rousseau, ou tentar pacificar o futuro, como fez Hobbes, pois os dois doi s cam ca minhos inhos fogem da questão real sobre a ação aç ão historicament historicamentee universal universal da violência vi olência social coletivamente organizada e culturalmente consagrada. Não adianta depositar as esperanças na reabilitação de um estado natural de bondade, nem esperar que o progresso da civilização crie mecanismos políticos cuja eficiência nos livre de nosso estado natural de barbárie, uma vez que a própria concepção de estado natural se mostra cada vez mais insuficiente e inadequada para lidar com a realidade assombrosamente cultural do ser humano. Creio que é preciso olhar com coragem para a terrível preeminência de um estado endêmico de violência humana, não só dos seres humanos, vistos Guerra Antes individualmente, mas, sobretudo, de suas instituições políticas, legais e culturais. O livro A Guerra da Civilização dá o primeiro e grande passo fundamental: constatar o estado constante e universal de guerra que perpassa o mundo dos homens, em suas mais variadas e díspares culturas, desde os primórdios.
A REALIDADE HISTÓRICA Durante minha graduação em História, lembro-me, na primeira aula sobre história da América PréColombiana, que a professora, ao introduzir o seu curso, justificou a prática sistemática de guerra para apreensão de vítimas, as quais seriam sacrificadas, aos milhares, pelos astecas em seus rituais e festividades macabros, como um sinal de bizarrice cultural, e que isso poderia ser comparado às nossas próprias bizarrices, como o fato de nos divertirmos passeando de montanha-russa e nos assustando no trem fantasma. Não é preciso entrar em mais detalhes para explicar meu estado de perplexidade diante da equivalência que a professora propôs entre os dois tipos de ato “bizarro”. A questão importante que o caso levanta é, contudo, a seguinte: por que tanto esforço para esconder a sistemática e arraigada violência coletiva das culturas que não participam da civilização ocidental? Admitimos que nossa civilização foi e ainda é violenta. É uma verdade. Mas por que forçamos a ocultação e a negação, de uma forma tão neurótica, da brutal violência cultural que está fora dos portões de nossa civilização? Será que sofremos de uma espécie de rousseaunianismo incurável? Civil ização, Keeley faz uma confissão Logo no início de seu livro, A Guerra Antes da Civilização, importantíssima. Ele nos diz o seguinte: Daniel e eu estávamos chocados por esta comprovação. Lembro-me de uma vez quando estávamos retornando para casa no dia em que nossa escavação no sítio de Waremme-Longchamps havia revelado um fosso profundo e uma paliçada, e no percurso nossa conversa tinha se tornado muito limitada. Ela consistia de um silêncio indicador de espanto periodicamente quebrado por um de nós dois exclamando em tom de surpresa “temos um fosso e uma paliçada!”. Nosso espanto mútuo baseava-se nos preconceitos que compartilhávamos com os mesmos colegas, que antes haviam rejeitado minhas propostas anteriores fazendo uma revisão cética delas. Inconscientemente nós mesmos não nã o tínhamos tínhamos acre a credi ditado tado em e m nossos próprios próprios argumento a rgumentos: s: nós, também, havíamos havíamos suposto que as fortificações de Darion eram uma aberração e as havíamos usado apenas como uma desculpa para satisfazer nossa curiosidade sobre os outros sítios na sua redondeza. Essa constatação sobre nossas próprias expectativas posteriormente nos conduziu a uma série de conversas entre Daniel, Anne Cahen-Delhaye (uma especialista em arqueologia dos períodos da era do Bronze Tardio e do Ferro) e eu sobre as dificuldades que os arqueólogos de nossa geração enfrentam para aceitar provas de guerras pré-históricas. Mais tarde, refletindo sobre minha própria educação e carreira, percebi que eu era tão culpado quanto qualquer outro por pacificar o passado, ignorando ou descartando provas de guerras pré-históricas - mesmo as provas que eu tinha visto com meus próprios olhos.
Temos, na passagem acima, um verdadeiro tesouro, um raríssimo exemplo de honestidade intelectual, no qual o acadêmico, mesmo diante de um universo ideológico dominante e do qual depende para sobreviver institucionalmente, resolve confessar os crimes cometidos. Ele nos mostra que o condicionamento ideológico do grupo é tão onipresente que mesmo em posse de provas factuais de peso não as consideramos, fazendo-nos de cegos. A soberania ideológica do grupo não nos deixa perceber a própria violência com que ela nos submete, mas esse é exatamente o assunto que estamos discutindo! É incrível observar como existe uma guerra psicológica e ideológica dentro dos departamentos das universidades, uma guerra que, como qualquer outra, procura destruir ou neutralizar um “inimigo”, ao mesmo tempo que protege e defende a visão consagrada do grupo. Por uma grande felicidade, Lawrence Keeley se rendeu às evidências e, a partir desse ponto, deu início a um trabalho real de investigação antropológica que foi concluído em seu livro A Guerra Antes da Civilização. Civil ização. Essa obra se tornou um divisor de águas nos estudos sobre guerra, violência e cultura pré-histórica e tribal. Não conheço um só livro atual de expressão, nesses assuntos, que não cite o livro de Keeley como referência padrão. Seja para concordar ou não não com ele, o livro já se s e tornou um clássico. clássi co. O aspecto mais mais im i mpressionante pressionante do livro de Keeley não parece ser o mero fato de ele el e provar, prova r, em posse
de uma grande quantidade de estudos antropológicos, evidências arqueológicas e levantamentos estatísticos, que as sociedades pré-históricas e tribais estão mergulhadas em práticas belicosas incessantes e letais, vivendo em estado quase ininterrupto de conflito real ou iminente. O que mais impressiona impressiona é a brutalidade e a cru cr ueldade desses conflitos. conflitos. Não é soment somentee o caso c aso de essas cultu culturas irem i rem à guerra, contra outros guerreiros, tomadas de um espírito de honra e dever contra um rival potencialmente perigoso e que os ameaça, um inimigo que se colocaria no mesmo plano de força militar, ou seja, uma luta restrita aos bandos guerreiros. Mas é, de uma forma chocante, a realidade de bandos que buscam o extermínio e o sofrimento total de outras comunidades, matando, escravizando, mutilando, torturando, canibalizando e exterminando populações inteiras de uma tribo ou grupo rival. A derrota de um determinado grupo representa, em geral, a destruição absoluta de sua comunidade, a qual será eliminada ou brutalmente incorporada, leia-se escravizada, pelo grupo vencedor. Portanto, guerra pré-histórica o tribal é, em seu sentido mais amplo, e ao mesmo tempo, guerra total e genocídio. Não são meramente guerras entre bandos armados de homens viris, que lutam para saber qual é o grupo guerreiro mais forte e, por isso mesmo, politicamente dominante, embora, é claro, os confrontos entre esses bandos sejam fundamentais. Porém, deixando de lado as escaramuças, as emboscadas e as batalhas entre os bandos, o resultado mais duradouro, o que está realmente em jogo, é a destruição e escravização, por completo, de outra sociedade, a eliminação de todo o seu patrimônio material e humano. Tão logo uma das sociedades perca seus hom homens ens mais mais fortes fortes e aptos para defender defender o grupo, essa sociedade soci edade estará condenada condenada a perecer, não antes de sofrer toda sorte de humilhações e crueldades que só a imaginação dos seres humanos pode conceber. Por exemplo, com os maoris “a decapitação marcava o início, não o fim, da humilhação de um guerreiro vencido (…) as expedições guerreiras maoris suplementavam a sua logística e prolongavam as suas campanhas consumindo os corpos dos inimigos e cativos tomados em batalha (…) os maoris algumas vezes aleijavam as mulheres cativas para que elas não pudessem fugir, permitindo que os guerreiros as estuprassem, matassem e as comessem quando era mais conveniente fazê-lo”. Contudo, e infelizmente, os maoris não representam um caso excepcional de crueldade humana, muito pelo contrário, pois, como o livro mostra em profusão, são muitas as culturas pré- históricas e tribais que fazem uso sistemático de atrocidades iguais ou semelhantes, as quais variam, em sua inventividade sádica, de acordo com cada cultura em particular. Pelos quatro quantos do mundo e percorrendo todas as épocas e estágios, encontramos os mesmos padrões de brutalidade extrema na atividade guerreira entre os grupos humanos, em seus estágios pré-históricos. Keeley acaba concluindo que a guerra tribal é guerra total, proporcionalmente mente muito mais letal e destrutiva do que as guerras das sendo, na maioria dos casos, proporcional culturas históricas e modernas. E claro que os recursos, os meios mobilizados e a escala das guerras modernas, ou mesmo das guerras entre civilizações e culturas mais desenvolvidas, em geral, são muito maiores do que os meios que estão à disposição das tribos e das sociedades mais primitivas, porém a intenção homicida com que a guerra é movida é geralmente muito superior entre os últimos, como Keeley nos mostra por meio de gráficos em que compara, estatisticamente, os variados níveis de letalidade das guerras tribais e das civilizações. Portanto, não é apenas o caso de se invalidar, por completo, o mito do Bom Selvagem e suas idílicas sociedades tribais, mas de retratá-las como culturas enormemente brutais e cruéis em suas suas atividades atividade s guerrei guerreiras, ras, as quais, por sua vez, absorvem boa parte da energia e do tempo tempo de seus participant partici pantes. es. Diante de tamanha realidade histórica ficamos com a pergunta: por que guerrear tão cruel e ferozmente? Haveria causas fundamentais? É claro que o livro de Keeley não responde, de forma categórica, a esses questionamentos, e nem teria como fazê-lo, mas ele aponta para algumas pistas importantes. Na parte final do livro temos duas passagens bem relevantes. Na primeira, temos a voz de um homem de uma tribo da Papua, e ele nos diz o seguinte:
A guerra é ruim e ninguém gosta dela. A batata-doce desaparece, os porcos desaparecem, os campos se deterioram, e muitos parentes e amigos são mortos. Mas não se consegue evitá-la. Um homem inicia uma luta e não importa o quanto ele possa ser desprezado, temos que ir e ajudá-lo porque ele é um parente e a gente se sente mal por ele.
Na outra passagem é o próprio Keeley que comenta: A preferência universal pela paz não é apenas o produto de uma escolha moral arbitrária ou psicológica profunda; ela é prática e racional. A guerra é francamente parasita - absorvendo os lucros de esforços pacíficos enquanto impõe custos adicionais. Claramente algum fator além de custos e ganhos tem que ser incluído na explicação da guerra.
O DEBATE Agora, estamos diante de um campo fecundo em divergências, pois explicar a recorrência das guerras envolve, em grande parte, a adoção de algum modelo filosófico a influenciar nosso pensamento. Num primeiro momento, o caminho mais seguro aponta para a realidade das evidências históricas, as quais nos mostram o que “é” e o que “não é”, em vez de nos prender ao que “deveria ser”, segundo a racionalidade de um sistema explicativo qualquer. Hoje em dia, ao se analisar as causas de uma guerra, é bastante comum atribuir um papel central aos denominados interesses ou necessidades dos agentes do processo econômico. Isso seria válido caso as evidências históricas mostrassem, em plena abundância, que foram realmente os mercados, seus agentes e modos de produção que provocaram, orquestraram e deflagraram os grandes conflitos humanos. Todavia, embora possam existir questões econômicas importantes e até fundamentais, são as tensões político-militares tradicionais que quase sempre se destacam como elementos centrais nos processos que geram as guerras. O agravamento de atividades hostis e de retaliações mútuas entre aristocracias, clãs, governos, ideologias, facções armadas e grupos étnicos é o que normalmente leva toda uma geração, ou mesmo várias, aos campos de batalha. Se dermos muita confiança à lógica do materialismo histórico, vamos pensar que Sargão, Alexandre, Átila, Carlos Magno, Saladino, Gengis Khan, Tamerlão, Napoleão, Bismarck, Hitler e Stálin, entre inúmeros outros, procuravam, sobretudo, maiores vantagens econômicas, ou que agiram ou foram levados a agir segundo as determinações dos processos econômicos. Ora, é claro que a questão é mais profunda. Nenhum deles agiu ou foi levado a agir em função de interesses exclusivamente econômicos. Muito pelo contrário, pois os riscos militares que assumiram são explicitamente contrários aos interesses do processo econômico de produção e acumulação, ou seja, as guerras tendem, com grande frequência, a desmantelar a atividade econômica de uma sociedade, já que os recursos materiais e humanos são deslocados em maior ou menor grau para suprir as exigências de guerra, e não para a produção e acumulação de riquezas. Aliás, é difícil pensar em uma atividade mais contrária ao espírito puramente econômico do que a atividade guerreira cuja natureza é destrutiva por excelência. Como disse o homem de uma tribo da Papua, “a batata desaparece, os porcos desaparecem e os campos se deterioram”, e, o mais importante, os filhos e as filhas morrem. Entender a guerra como uma espécie de aventura econômica é, no mínimo, deixar de ver o principal. É claro que ao formar um império ou vencer uma guerra e, consequentemente, tomar posse de vastas porções de terras, recursos, tributos e mercados, um povo ou grupo conquistador acaba absorvendo enormes vantagens econômicas, mas isso não faz da guerra uma atividade fundamentalmente movida por forças econômicas, pois mesmo a pirataria e a guerra mercantil são, de um ponto de vista estritamente econômico, meras formas de destruição ou expropriação violenta dos recursos humanos e
materiais de outros, dentre os quais os recursos econômicos, obviamente.{16} Portanto, a conquista militar de um império ou a vitória em uma guerra não traz apenas vantagens econômicas, mas também, e sobretudo, vantagens étnicas, ideológicas, políticas e militares; assim como econômicas, sociais e culturais. O importante, todavia, é justamente perceber o quanto o último grupo (as vantagens econômicas, sociais e culturais) apenas deriva do primeiro. As guerras, em geral, ultrapassam largamente os interesses comerciais e superam em muito os riscos, ganhos e principalmente as perdas que sofrem os processos e empreendimentos puramente econômicos, indicando outras e maiores forças em operação. Em seu sentido mais ampliado e significativo, a guerra, como estrutura universal do comportamento humano, não pode ser vista como mero epifenômeno de motivos ou interesses racionalmente engendrados, mas é uma estrutura que se aproxima muito daquilo que chamamos de dimensão religiosa da existência, ou seja, o desejo de mover guerra controla, domina e submete a razão, exatamente porque não atua no nível racional, mas a partir de uma realidade mais profunda, a realidade das paixões. O nível de mobilização humana e de recursos materiais que as guerras exigem costuma ser, para uma determinada sociedade, algo que beira o absoluto e, por vezes, o absurdo. Guerra é uma coisa muito séria, religiosamente séria, e se relaciona de uma forma bastante estreita com a realidade de uma violência social e ideologicamente estimulada com força suficiente para engajar toda uma sociedade. Tamanho nível de mobilização facilmente se sobrepõe aos meros interesses e necessidades dos agentes econômicos. Estamos falando de um fenômeno metafísico capaz de transfigurar violências e disputas isoladas em violência unânime, um símbolo altamente unificador a conferir poder de ordenação às sociedades humanas. Certamente, políticos totalitários e tiranos, em geral, conhecem e manipulam como ninguém essa realidade. Nesse sentido, a guerra se aproxima do próprio núcleo formador e da fundação das culturas humanas, e é exatamente por isso que não importa o quanto recuemos no passado histórico e pré-histórico da humanidade, pois vamos sempre encontrar a existência de conflitos terríveis envolvendo coletividades humanas, as quais se hostilizam e se matam, interna ou externamente. Walter Burket, em se magnífico livro Homo Necans, diz o seguinte: A agressividade exacerbada é colocada a serviço da comunidade por meio de um redirecionamento, como foi descrito por Konrad Lorenz; pois é precisamente a demonstração grupal de agressividade contra os de fora que cria um forte senso de comunidade. O bando se torna um grupo coeso e fechado em torno de seu potencial explosivo de agressão, o qual é estocado internamente. (…) A paz deve reinar dentro do grupo, e o que está fora ofende os de dentro. (…) No Mundo Antigo a caça, o sacrifício e a guerra eram simbolicamente intercambiáveis. Tanto o faraó quanto Hércules poderiam ser os senhores da caça, do sacrifício e da guerra. (…) Os únicos grupos históricos e pré- históricos que foram realmente capazes de se afirmar foram aqueles que se mantiveram juntos pelo poder ritual de matar. Através da solidariedade e organização cooperativa e ao estabelecer uma ordem inviolável o ritual sacrificial (…) e sua forma externa, a guerra, deram às sociedades humanas sua forma . {17}
O texto acima é um tanto quanto sombrio, na forma em que busca conceber a constituição das culturas humanas. Mas, a fim de enfrentar o problema da violência socialmente estimulada e organizada e, consequentemente, da guerra, é preciso ver nossas culturas e nós mesmos em seus aspectos mais terríveis. Burket aponta para a capacidade notável que o ser humano tem de ritualizar e canalizar coletivamente suas hostilidades internas, transferindo-as para um inimigo externo comum, e, assim, formar as estruturas sociais fundamentais que deram origem às sociedades arcaicas: a caça e a guerra. Além de Burket, temos René Girard, teórico que deu um passo ainda mais ousado ao conceber a origem das culturas humanas fundada no assassinato coletivo de uma vítima unanimemente selecionada. Vitimizamos um outro e assim fundamos nossas culturas, as quais continuarão vitimizando outros indivíduos e grupos, dominadas por um mecanismo que usa o sacrifício e a guerra contra bodes
expiatórios para aplacar sua violência interna, um mecanismo oculto que controla, desde a base, toda a sociedade. É, obviamente, um mecanismo sobre o qual não se tem plena consciência. A consciência é adquirida a conta-gotas, e dentro de um longo processo religioso em particular, o qual chega ao ápice na revelação da única vítima realmente inocente.{18} Todavia, como já disse, não vou aprofundar as investigações de Burket e de Girard, mas apenas usá-las para indicar o quanto o problema das imemoriais e universais guerras humanas está em contato muito próximo com forças e mecanismos que respondem por um certo direito “sagrado” de matar, mas que é, na realidade, um mecanismo coletivo e humano de resolução de desordem e controle da violência social, assentado na lógica de uma “boa” violência capaz de debelar a violência “nefasta”, o princípio do veneno que cura o veneno. Moralmente inviolável e socialmente arrebatadora, a “boa” violência une a todos e faz surgir sentimentos que normalmente se expressam em grandes ressentimentos e euforias, gerando as grandes obsessões e tragédias coletivas, tão mais fratricidas e sanguinolentas quanto maior for o envolvimento pela “causa”. Estamos sempre contra- atacando um inimigo ao qual atribuímos um grande mal que nos ameaça, um obstáculo a atrapalhar nosso grandioso destino. Nesse sentido, de fato, as sociedades humanas “teologizam” a guerra e o “inimigo se torna um Mal a ser erradicado”. {19} A conclusão é realmente terrível, mas inescapável - usamos a violência contra um inimigo qualquer para expulsar ou dissimular a violência que reina entre nós e dentro de nós, num processo sem fim, tamanho ou forma definida. {20} Voltamos, então, à questão teológico-antropológica que está na base de nossa violência coletivamente organizada: o problema das guerras é, certamente, um problema antropológico, trata-se da miserável realidade do homo necans a nos dizer que a guerra faz o homem; porém o homo necans é, ao mesmo tempo, o homo religiosus, aquele que ritualiza e moraliza a violência, fundando a cultura como a conhecemos, isto é, a realidade de pactos sociais que atuam sob o signo da morte, em nome dos quais outras violências poderão ser aplacadas, conferindo unidade interna, funcionalidade e capacidade de sobrevivência às comunidades humanas. Da mesma maneira que a guerra, o sacrifício também faz o homem. Aliás, como Burket nos diz, essas duas realidades sempre foram simbolicamente intercambiáveis. Capacidade de mobilização e hostilidade estocada, aí se encontra o segredo para se compreender qualquer guerra humana, real ou iminente, desde o porrete e machado paleolíticos até os ICBMs{21} de nossa era. Mover guerra é aprender a odiar, é retaliar um inimigo que se forja, é estar sempre contra-atacando. Portanto, parece não haver saída, e caímos, irremediavelmente, nos paliativos filosóficos hobbesianos e rousseaunianos, dentre outros, {22} os quais nada fazem a não ser disfarçar a absoluta autoridade do sagrado violento, o qual continua a nos dominar. Podemos, contudo, tomados de certa humildade genuína, tentar buscar a graça de um modelo que realmente nos transcenda, mas esse questionamento e busca não cabem no momento explorar. Termino com a pergunta já feita: Existe alguém ou algo cuja realidade não participa de nossa violência, e que está (completamente) fora de nosso sistema, podendo funcionar como um modelo verdadeiro de não violência e de paz duradoura? Que paz seria essa e quem seria o seu portador? São Paulo, novembro de 2011
Prefácio Este livro teve sua gênese em duas falhas pessoais - uma de ordem acadêmica prática, a outra, intelectual. Como resultado de ambas, percebi que arqueólogos do período pós-guerra tinham artificialmente “pacificado o passado”, e compartilhavam um vezo recorrente contra a possibilidade de guerras pré-históricas. Minha falha prática envolveu duas propostas de pesquisa, que foram recusadas, nas quais e solicitava fundos para investigar as funções de uma fortificação recentemente descoberta ao redor de algumas aldeias do período Neolítico Inicial (aproximadamente 5000 a.C.) no Nordeste da Bélgica. Esses sítios representavam os assentamentos dos primeiros fazendeiros que colonizaram o Noroeste e o Centro da Europa. Essas duas propostas feitas à U.S. National Science Foundation{23} (que havia concedido apoio financeiro à minha pesquisa anterior) solicitavam fundos para escavar diversos sítios arqueológicos de aldeias do período Neolítico Inicial, próximas do sítio “fronteiriço” já escavado denominado Darion. Meu colega belga, Daniel Cahen, tinha descoberto que Darion havia sido cercada por uma fortificação óbvia consistindo de um fosso de nove pés{24} de profundidade apoiado por uma paliçada. Minha proposta de pesquisa sustentava que as defesas de Darion indicavam que essa fronteira neolítica era hostil e previa que escavações nos sítios próximos revelariam fortificações similares. Os arqueólogos que revisaram as propostas não aceitaram a natureza defensiva do “enclausuramento” de Darion e, portanto, não recomendaram a concessão de fundos para um projeto baseado naquilo que consideravam uma interpretação errônea. Uma terceira proposta acabou sendo aceita somente depois que a reescrevi, tornando-a neutra sobre as funções do fosso-paliçada de Darion, citado apenas como um “enclausuramento”, em vez de uma fortificação. Em outras palavras, somente depois que retirei da proposta quaisquer referências àquele anátema arqueológico, a guerra, ela se tornou aceitável aos meus colegas. Com novo financiamento, nossas escavações em quatro outros sítios do período Neolítico Inicial logo documentaram que dois deles também haviam sido fortificados. No final das contas, estávamos certos: nas fronteiras do Neolítico Inicial, pelo menos na região da Bélgica, aldeias fortificadas eram bastante comuns; bastava apenas que se soubesse como procurá-las. Apesar de termos egos acadêmicos normalmente inflados, Daniel e eu estávamos chocados com essa comprovação. Lembro-me de que quando estávamos retornando para casa, no dia em que nossa escavação no sítio de WaremmeLongchamps havia revelado um fosso profundo e uma paliçada, no percurso nossa conversa se torno muito limitada. Ela consistia de um silêncio indicador de espanto periodicamente quebrado por um de nós dois exclamando em tom de surpresa: “Temos um fosso e uma paliçada!”. Nosso espanto mútuo baseava-se nos preconceitos que compartilhávamos com os mesmos colegas que antes haviam rejeitado minhas propostas anteriores, fazendo uma revisão cética delas. Inconscientemente nós mesmos não tínhamos acreditado em nossos próprios argumentos: nós também havíamos suposto que as fortificações de Darion eram uma aberração e as havíamos usado apenas como desculpa para satisfazer nossa curiosidade sobre os outros sítios na redondeza. Essa constatação sobre nossas expectativas posteriormente conduziu a uma série de conversas entre Daniel, Anne Cahen-Delhaye (uma especialista em arqueologia dos períodos do Bronze Tardio e do Ferro) e eu sobre as dificuldades que os arqueólogos de nossa geração enfrentam para aceitar provas de guerras pré-históricas. Mais tarde, refletindo sobre minha educação e carreira, percebi que eu era tão culpado quanto qualquer outro por pacificar o passado ignorando ou descartando provas da ocorrência de guerras pré-históricas - mesmo as
provas que eu tinha visto com meus próprios olhos. Minhas primeiras escavações, como primeiro anista da faculdade, ocorreram em um sítio de conchas calcárias em uma aldeia na baía de San Francisco, em que havíamos escavado muitas tumbas de vítimas óbvias de homicídio. Nunca me ocorreu, nem aos meus outros colegas de faculdade, que os esqueletos com pontas de projéteis que havíamos desenterrado revelavam uma taxa de homicídio extraordinariamente alta. Aquela evidência física brutal que estávamos descobrindo jamais desafio nossa aceitação da visão tradicional segundo a qual os povos nativos da Califórnia tinham sido pacíficos. Ainda mais significativo é o fato de que, na minha tese de conclusão de curso, usei todos os truques retóricos, que hoje acuso meus colegas de usarem, para negar a importância óbvia da guerra nas primeiras civilizações mesoamericanas. Desde a escola primária, eu era fascinado pela história militar e li avidamente todos os livros em que pude colocar as mãos sobre esse tema. Na minha tese de graduação no final dos anos 1960, escolhi um tópico - o papel do militarismo na ascensão das civilizações mesoamericanas - que parecia unir meu interesse pessoal pela história militar a meu crescente interesse acadêmico pela pré-história. De fato, foi um decreto final de divórcio, desde que concluí (cumprindo devidamente com o meu dever de aceitar o consenso que prevalecia entre os arqueólogos naquela época) que a primeira civilização mesoamericana havia se desenvolvido em circunstâncias excepcionalmente pacíficas. Em outras palavras, argumentava que o militarismo e a guerra não tinham desempenhado nenhum papel relevante na evolução das civilizações dos olmecas, teotihuacanos e maias, e que a guerra e os soldados haviam se tornado importantes somente quando essas civilizações mais ou menos “teocráticas” entraram em colapso. Um quarto de século depois, está muito claro que aquela visão que prevalecia na época estava completamente errada. A porcentagem de mortes violentas naquela aldeia de índios da Califórnia préhistórica que eu tinha ajudado a escavar foi recentemente tabulada por meu colega de faculdade Bob Jurmain, e ela é pelo menos quatro vezes maior do que a porcentagem de mortes violentas ocorridas nos Estados Unidos e na Europa neste nosso século sangrento. As cidades-estado do período clássico maia, um dos temas de minha tese de graduação, claramente estavam em guerra com frequência e eram governadas por reis belicosos. De modo irônico, a evidência arqueológica de que tudo não era pacífico no reino maia se encontrava disponível quando escrevi minha tese de graduação (murais abomináveis em Bonampak, fortificações em Becan e Tikal, incontáveis gravuras maias retratando cativos e seus captores armados, e assim por diante). Contudo, tal como os arqueólogos em cujo trabalho eu me apoiava, descartava esses dados como não representativos, ambíguos ou insignificantes. Somente depois que mais e mais hieróglifos maias foram decifrados ao longo da última década foi que a opinião dos arqueólogos mudou, abandonando enfim a concepção errônea dos maias pacíficos. Como a maioria dos arqueólogos treinados no período pós-guerra, emergi de um primeiro estágio de meu treinamento tão dominado pela noção de que a guerra e a pré-história não se misturavam que estava disposto a descartar evidências físicas que a contrariavam. Se a falha inicial para obter fundos para minha pesquisa tornou-me consciente dos preconceitos da maioria dos meus colegas, minhas próprias reações e memórias estimuladas pelo meu sucesso subsequente me fizeram perceber o fato de que e também vinha usando as mesmas viseiras. Poucos anos mais tarde, aprendi outra importante lição. O pensamento arqueológico rapidamente tornou-se muito mais aberto sobre a probabilidade de conflitos armados no período Neolítico Inicial na Europa Ocidental. Em 1989, quando Cahen e eu publicamos um relatório em um jornal internacional sobre nossas primeiras temporadas completas de trabalho de campo, os revisores da pré-publicação (alguns dos quais tinham sido os mesmos juízes que haviam revisado com ceticismo minhas propostas recusadas pela NSF), desta vez, foram unanimemente favoráveis. Isso não quer dizer que esses colegas
estivessem de todo convencidos de que os enclausuramentos que tínhamos descoberto eram de fato fortificações, mas, àquela altura, eles estavam mais do que dispostos a contemplar tal possibilidade. Outras informações publicadas no final da década de 1980 também estavam desafiando o vezo dos arqueólogos nessa questão. Algumas publicações alemãs durante esse período documentaram que os enclausuramentos do Neolítico Tnirial eram, de fato, comuns - mais de cinquenta sítios enclausurados já haviam sido descobertos durante os últimos cinquenta anos -, porém essas descobertas tinham sido publicadas em jornais locais obscuros, de pequena circulação, e por essa razão esses artigos não ficaram amplamente conhecidos. Afora isso, um relatório muito detalhado foi publicado em 1987 (de novo, em um jornal local) sobre uma cova coletiva do período Neolítico Inicial, descoberta perto de Stuttgart, que continha os restos de 34 homens, mulheres e crianças assassinados por golpes na cabeça infligidos por machados característicos de tal período. No início desta década, poucos especialistas do Neolítico Inicial negariam que a guerra existia naquela que havia sido previamente considerada uma era de ouro pacífica. A resistência que nós, arqueólogos, demonstrávamos quanto à noção da guerra pré-histórica, e a facilidade pela qual ela foi superada quando as evidências relevantes foram reconhecidas, deixaram-me impressionado e me convenceram de que valeria a pena escrever um livro sobre o tema. Uma evidência circunstancial física possui uma capacidade extraordinária de sobrepujar até mesmo as ideias mais enraizadas. De fato, a arqueologia é uma ciência social particularmente sólida. Como todos os demais campos, ela apresenta pontos cegos não reconhecidos, preconceitos inconscientes e vezos declaradamente teóricos; mas a natureza física e material das coisas que ela estuda fornece uma base constante de evidências para a correção de noções intelectuais errôneas. De forma diferente dos estudiosos cujas provas consistem de palavras faladas ou escritas, os arqueólogos não dispõem de licença para ignorar quaisquer fatos incompatíveis com seus preconceitos por um ceticismo seletivo ad bominem,{25} sofismas espertos, ou a negação tão em moda hoje de que não há nenhum “passado real” (ou seja, de que o passado é meramente uma construção ideológica e que existem tantos passados quanto existem concepções diferentes deles). Para arqueólogos, o passado humano é inequivocamente real: ele tem massa, forma sólida, cor e até mesmo, ocasionalmente, cheiro e sabor. Milhões de pedaços dele - ossos, sementes, pedras, metal e cerâmica - jazem em mesas de laboratórios e em gavetas de museus ao redor do mundo. A frase “o ônus da prova” tem um significado literal para os arqueólogos, porque sua “prova” básica é material; e por ela ser circunstancial, somente ocorrências repetidas podem ser interpretadas de maneira convincente. A arqueologia é o estudo de padrões de efeitos, repetições de comportamentos humanos que deixam marcas indeléveis no mundo físico. A guerra - o conflito armado entre sociedades -, seja em maior ou menor escala, é um desses padrões e produz efeitos muito duradouros. Neste trabalho, tentei reunir uma massa de provas e evidências para convencer não apenas arqueólogos e historiadores, mas também o público culto no sentido de que a noção da guerra pré-histórica e primitiva não é um paradoxo. L. H. K. Chicago, maio de 1994
Agradecimentos Este projeto começou quando o diretor de meu departamento, Jack Prost, encorajou-me, nos termos mais incisivos possíveis, a postular uma bolsa na Universidade de Illinois, no Instituto de Humanidades de Chicago, para escrever um livro sobre este tema. Eu ganhei a bolsa e, dispensado de meus deveres departamentais, pude desfrutar um ano sem lecionar na companhia de um grupo admirável de estudiosos: Bruce Calder, Jody Enders, Peter Hale, Mae Henderson e Jim Schultz, dos departamentos de História, Francês, História da Arte, Estudos Ingleses/Afro-americanos e Alemão, respectivamente. Eles me ajudaram a ampliar a visão de meu tema, sugeriram mudanças na minha apresentação de temas e levantaram questões que eu não havia considerado. A sua bem-humorada tolerância nos debates, devoção à pesquisa e encorajamento mútuo refutaram todos os conceitos populares sobre o estado das humanidades nas universidades de nosso país. Também devo muito ao diretor do Instituto, Gene Ruoff, um estudioso destacado do romantismo inglês, pelo encorajamento extraordinário, pela assistência (sim, até mesmo financeira!) e pelos conselhos astutos. Sou muito grato a ele - tanto por sustentar o Instituto administrativamente, como a seu comitê executivo por aceitar um cientista naturalista “realista simplório” em seu seio. Espero que este livro de alguma forma recompense todos aqueles ligados ao Instituto de Humanidades da Universidade pelas inconveniências e pelo trabalho que eu possa ter lhes dado. É fato sabido que ninguém é o seu melhor crítico. Assim, alguns amigos e colegas leram rascunhos parciais deste livro, oferecendo conselhos e críticas: Jack Prost, Gene Ruoff, Jim Phillips, Bob Hall, Quentin Calkins, Brian Hayden e minha esposa, Lesley. Inúmeros colegas também forneceram informações, referências e publicações valiosas utilizadas nesta obra: April Sievert, Anne CahenDelhaye, Paul-Louis Van Berg, Marcel Otte, Larry Kuznar, David Frayer, Waud Kracke, Nancy Fagin, Ron Weber, Brian Hayden, Polly Wiesner, Doug Bamforth, Bob Jurmain, John Beaton, Tom Hester, Ellen Steinberg, Pat Lyons, Jonathan Haas, Bob Hall e Jim Phillips. Contudo, é importante salientar que nenhuma dessas pessoas é responsável por qualquer erro ou omissão por mim perpetrado neste trabalho. Gostaria também de reconhecer a inspiração de diversos antropólogos eminentes, os quais conheço apenas por seus trabalhos, mas de cujos dados e idéias dependi, em especial: Andrew Vayda, Robert Carneiro, Mervyn Meggitt, Paula Brown, William Divale, Thomas Gregor e Robert Edgerton. Se realismo inalterável, suas abordagens comparativas e sua racionalidade não apologética são um bálsamo de fato nesta era de “noções vagas” e “leituras profundas” completamente subjetivas. Quaisquer dissertações sobre esse assunto precisam ser fundadas, assim como foi a minha, no trabalho desses antropólogos extraordinários. Sou muito grato ao meu editor, David Roll, por encontrar mérito neste trabalho e por ter me ajudado a realizá-lo. Também aprecio os esforços de Gioia Stevens para assegurar a sua impressão. A pesquisa que serviu de ponto de partida para este livro foi conduzida com meu amigo e colega Daniel Cahen. Somos gratos aos vários ministérios do governo belga e à Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos por financiarem nossa pesquisa sobre o Neolítico Inicial. Muitas discussões após o antar com Daniel e Anne Cahen- Delhaye me ajudaram a definir o problema tratado aqui e a compreender quão recorrente ele era. (Vale ressaltar que eu continuaria valorizando nossa longa amizade e a hospitalidade constante deles mesmo que essas discussões não tivessem sido tão academicamente produtivas.) Por fim, agradeço à minha esposa, Lesley, por seu apoio irrestrito aos meus esforços, mediante
leitura, exortação, conforto, e permitindo que eu negligenciasse minhas responsabilidades como chefe de família, pai e marido. Até mais despretensiosa foi a generosa e orgulhosa resposta de meu filho, Pete, que disse a seus amigos que a razão de eu estar “sempre ocupado” era que eu estava escrevendo um “grande livro”. Enquanto eu estava imerso nos mais deprimentes aspectos do comportamento humano, minha família servia como um lembrete constante de que as facetas mais promissoras e alegres da existência humana sobrepujam largamente as mais negras.
A GUERRA ANTES DA CIVILIZAÇÃO
Capítulo 1 | O Passado P acificado A ANTROPOLOGIA DA GUERRA
A guerra sempre foi um tópico interessantíssimo. A guerra concentra e intensifica algumas de nossas mais fortes emoções: coragem e medo, resignação e pânico, egoísmo e abnegação, ambição e generosidade, patriotismo e xenofobia. O estímulo da guerra incitou seres humanos a criar prodígios de engenhosidade, improvisação, cooperação, vandalismo e crueldade. É o campo mais arriscado para testar presença de espírito e sorte: nenhum esforço pacífico pode igualar suas penalidades pelo fracasso, e poucos podem exceder suas recompensas pelo sucesso. Ela permanece a mais teatral de todas as atividades humanas, combinando tragédia, drama, melodrama, espetáculo, ação, farsa e até mesmo comédia de situação. A guerra mostra os extremos da condição humana. Não é, portanto, de surpreender que as primeiras histórias documentadas, os primeiros relatos escritos, sejam de teor militar. Os hieróglifos egípcios mais antigos relatam as vitórias dos primeiros faraós do Egito, os reis Escorpião e Narmer. A primeira literatura secular ou história registrada em escritos cuneiformes reconta as aventuras do rei sumério Gilgamesh. Os trechos mais antigos dos Livros de Moisés, das “variações de J” (assim chamado porque em suas passagens o nome dado a Deus é Yahweh ou, de forma corrompida, Jeová), culminam na conquista hebraica brutal de Canaã. Os mais antigos anais chineses, gregos e romanos relatam preocupações com guerras e reis guerreiros. A maioria dos textos em hieróglifos maias é dedicada a genealogias, biografias e feitos militares dos reis maias. O folclore e as lendas das culturas pré-literárias, as tradições orais épicas - as precursoras da história - são igualmente belicosos. De fato, até este século, a historiografia foi dominada por relatos de guerras e intrigas políticas que culminaram nelas. Uma vez que a história, estritamente falando, consiste de relatos escritos e a escrita fica confinada às sociedades civilizadas, a guerra civilizada é o objeto de uma literatura antiga e volumosa. Por exemplo, mais de cinquenta mil livros completos foram dedicados à Guerra Civil Americana apenas, e muitos outros são publicados a cada ano. O que o mundo alfabetizado conhece como guerra é, portanto, a guerra civilizada. A história documentada, porém, representa menos do que a metade de um por cento dos mais de dois milhões de anos que os humanos existem. De fato, a pré-história terminou em algumas áreas do mundo há somente trinta anos. Na aurora da expansão europeia (1500 d.C.), somente um terço do mundo habitado era civilizado; toda a Australásia e Oceania, a maior parte das Américas e grande parte da África e do Norte da Ásia permaneciam pré-alfabetizadas e tribais. Esses longos capítulos da história da humanidade e todos os recentes “povos sem história” são o foco especial da antropologia - dos arqueólogos que estudam o primeiro e dos etnógrafos que têm observado o último. O que, então, a antropologia disse sobre a guerra conduzida pelas sociedades pré-históricas e “primitivas”? A resposta simples é: muito pouco. Em uma contagem recente, apenas três livros completos (e algumas antologias e etnografias) dedicados exclusivamente à guerra primitiva foram publicados neste século, muito menos do que os lançados sobre a Guerra Civil Americana todos os anos. {26} Não estão faltando informações sobre o tópico, mas elas estão inseridas em jornais técnicos ou espalhadas como passagens breves em relatórios etnográficos e arqueológicos. Comparado, porém, com as dezenas de milhares de volumes e artigos sobre a história militar civilizada, esse desequilíbrio é gritante, considerando quanto da humanidade os povos pré-históricos e primitivos representam. O tema da guerra
entre povos tribais antigos e modernos permanece vulnerável à especulação inconsequente, aos caprichos da moda intelectual e às correntes mais profundas da mitologia secular. Até mesmo hoje, a maioria das opiniões com relação à guerra e à paz pré-histórica (e tribal) reflete dois mitos antigos e duradouros: o do progresso e o da Idade do Ouro. O mito do progresso retrata o estado original da humanidade como ignorante, miserável, brutal e violento. Quaisquer complexidades artificiais introduzidas pela invenção humana ou deuses úteis serviram apenas para aumentar a felicidade do homem, o conforto e a paz, resgatando os humanos de seu horrível e danoso estado de natureza. O mito contraditório assevera que os humanos civilizados perderam a graça - de uma simples e primeva felicidade, uma era de ouro pacífica. Todos os acréscimos do progresso meramente multiplicam a violência e o sofrimento; a civilização é uma condição lamentável, a consequência de nosso estado pecaminoso, ambição e lixo tecnológico. No período moderno, esses temas míticos antigos foram elaborados por Hobbes e Rousseau e se transformaram em atitudes filosóficas duradouras em relação aos povos primitivos e pré-históricos. HOBBES E ROUSSEAU O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) chegou às suas conclusões sobre guerra e sociedade por meio de uma série de argumentos lógicos. Em sua grande obra, Leviatã, ele primeiro estabelece que, em termos práticos, todos os homens eram iguais porque nenhum era tão superior em força o inteligência que não pudesse ser superado por meios furtivos ou pela conspiração de outros. Ele considerava que os humanos eram igualmente agraciados com desejos e prudência (a capacidade de aprender com a experiência). Quando, porém, dois iguais desejassem algo que apenas um poderia desfrutar, um terminaria por subjugar ou destruir o outro na busca por tal objeto de desejo. Uma vez que isso acontecesse, seriam abertas as portas do inferno. Os desejos semelhantes de terceiros os tentavam a emular o ganhador, e sua inteligência demandava que se preservassem contra a sorte do perdedor. Quando não havia nenhum poder capaz de intimidar esses iguais, uma prudente autopreservação forçava cada indivíduo a tentar preservar a sua liberdade (a ausência de impedimentos à sua vontade), procurando subjugar outros e/ou resistindo às suas tentativas de subjugá-lo. Hobbes, portanto, via a condição original ou natural da humanidade como sendo “a guerra de cada homem contra todos os outros”. Nesse estado primevo de guerra{27} os homens viviam sob um “contínuo medo e perigo de morte violenta”; e, na frase mais famosa de Hobbes, suas vidas eram, portanto, “solitárias, pobres, detestáveis, brutais e breves”. Ele argumentava que “povos selvagens em muitos locais da América” ainda viviam nessa condição primitiva violenta, mas não ofereceu nenhum detalhe e nunca procurou esclarecer esse ponto. Os humanos escaparam desse estado de guerra somente ao concordarem com um pacto pelo qual abriram mão de muitas de suas liberdades e aceitaram delegar o governo a uma autoridade central (que, para Hobbes, significava um rei). E como “contratos, sem a espada, não passam de palavras”, o rei (o Estado) tinha que dispor de um monopólio sobre o uso da força para punir os criminosos e defender-se dos inimigos externos. Sem o estado para sobrepujar a inteligência humana pela força, mediante suas paixões egoístas, e suprimir dos homens uma parcela de suas liberdades naturais, a anarquia reinaria. Os países civilizados retornam a essa condição quando a autoridade central é amplamente desafiada o quando têm o seu poder restringido, como no caso das rebeliões. Toda a “indústria” civilizada e o gozo humano de seus frutos dependiam de uma paz mantida por um governo central; a “humanidade” dos humanos era, pois, um produto da civilização. Hobbes reconhecia que os Estados-nações permaneciam entre eles em uma “postura de guerra”.
Porém, como eles protegiam a indústria de seus súditos, “daí não transcorria a miséria que acompanha a liberdade de determinados homens”. Em outras palavras, um mundo de Estados necessariamente tolerava algumas guerras e muita preparação para a guerra, mas essas preservavam um refúgio de paz dentro de cada Estado. Na condição primitiva, não havia paz em lugar nenhum. Hobbes nunca alegou que os humanos eram inatamente cruéis ou violentos ou de maneira biológica destinados a dominar os outros. A condição de guerra era puramente uma condição social - uma consequência lógica da igualdade humana em necessidades, desejos e inteligência. Ela poderia ser eliminada por inovações sociais: um contrato e instituições coercitivas de fiscalização. A guerra poderia surgir apenas se esses contratos fossem quebrados ou se os poderes de polícia do Estado centralizado desaparecessem. Seu argumento buscava certamente servir de apologia à monarquia absolutista; porém, mais tarde, cedendo às circunstâncias, ele admitiu que esse se aplicava também a outras formas de governos centralizados fortes, até mesmo as repúblicas. Quaisquer que fossem suas opiniões sobre a forma ideal de governo, o ponto de relevância central aqui é que Hobbes considerava que o estado “natural” da humanidade era a guerra e não a paz. Nos últimos dois séculos, o crítico mais influente da visão hobbesiana da sociedade primitiva e do “homem em seu estado de natureza” foi Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele desdenhava do rigor lógico do filósofo, do empirismo arrastado do historiador e do cientista e da invenção desenfreada do romancista, mas mesclava uma semelhança de todos os três com um estilo assertivo que o tornou uma sensação intelectual. Tal como Hobbes, ele construiu um mito sobre a origem para explicar a condição humana, contudo negava à civilização a sua humanidade, ao passo que proclamava a divindade do primitivo. Rousseau, tal como Hobbes, afirmou a igualdade natural da humanidade, mas via os humanos em se estado de natureza como sendo (justamente) governados por suas paixões, não por seu intelecto. Ele argumentava que essas paixões poderiam ser fácil e pacificamente satisfeitas em um mundo sem as “nada naturais” instituições da monogamia e da propriedade privada. Quaisquer tendências à violência na condição natural seriam suprimidas pela pena ou compaixão inata dos humanos. Essa compaixão natural era esmagada apenas quando a inveja era criada pelas origens do casamento, propriedade, educação, desigualdade social e a sociedade “civil”. Ele sustentava que o selvagem, exceto quando faminto, era amigo de todas as criaturas e não era inimigo de nenhuma. Ele atacou diretamente Hobbes por ter “apressadamente concluído que o homem é naturalmente cruel”, quando, de fato, “nada poderia ser mais gentil” do que o homem em seu estado natural.{28} O Bom Selvagem de Rousseau vivia naquela época de ouro pacífica “em que a humanidade foi formada para permanecer assim eternamente”. A guerra apenas se tornou geral e terrível quando as pessoas se organizaram em sociedades separadas, com leis artificiais, em vez de naturais. A compaixão, uma emoção peculiar dos indivíduos, gradualmente perde sua influência sobre as sociedades à medida que elas cresciam e proliferavam. Quando artificial, os estados desprovidos de paixão guerreavam, cometiam mais assassinatos e “desordens terríveis” em um único confronto do que em todas as épocas em que os homens tinham vivido em estado natural. Diferentemente de Hobbes, Rousseau parecia de fato interessado em descobrir se seus argumentos eram confirmados pela observação dos “selvagens” reais que estavam sendo encontrados pelos exploradores europeus. Seus discípulos acompanhavam explorações francesas e traziam relatórios diversificados. {29} O explorador Louis de Bougainville reportou que os taitianos confirmavam as previsões de Rousseau, ainda que para chegar a essa conclusão Bougainville tenha precisado ignorar a rígida estratificação de classe deles, seus chefes arrogantes e algumas das guerras mais horrendas de que se tem notícia (capítulos 4-7). Outro explorador, entretanto, comentou com Rousseau sobre um ataque repentino e não provocado aos exploradores franceses pelos muito simples, e até então ainda não
contatados, aborígines tasmanianos, apesar dos gestos mais pacíficos efetuados pelos emissários franceses que estavam completamente nus. Rousseau ficou chocado: “Será possível que os bons filhos da Natureza podem realmente ser tão cruéis?”. Naturalmente os apologistas do Bom Selvagem na ocasião, e desde então, salientaram que tais tumultos eram apenas o resultado da incompreensão dos nativos quanto às intenções dos emissários ou da ansiedade provocada pela possibilidade de os exploradores terem a intenção de permanecer ali. Mesmo assim, o que tinha acontecido à compaixão natural e à falta de ciúmes dos selvagens? Casos semelhantes de membros tribais que no contato inicial “atiravam primeiro e faziam perguntas depois” (que, olhando em retrospecto, parece ter sido presciente da parte deles) não perturbaram Rousseau e seus discípulos a ponto de fazê-los reconsiderar suas suposições. Eles estavam tão completamente convencidos de que o estado natural da sociedade humana era uma combinação pacífica de amor livre e comunismo primitivo que não viam esses primeiros encontros violentos como outra coisa que não fossem raras aberrações. Apesar da influência de Rousseau, a visão de Hobbes da vida primitiva levou a melhor durante o século XIX, que de forma não coincidente foi o apogeu do imperialismo e do colonialismo europeus. Uma das principais apologias para o imperialismo ocidental era a pacificação de selvagens em permanente estado de guerra pela conquista europeia, atividade missionária e administrativa. Os nativos, vivendo em uma turbulência hobbesiana, poderiam desfrutar os confortos do cristianismo e os benefícios da civilização somente depois que fossem pacificados e controlados pelos europeus. Os europeus também concederam a mais alta classificação para a sua própria civilização dentre as poucas que eles reconheciam (tais como as da Ásia e do Oriente Próximo) porque estimavam que a deles tinha se distanciado mais do que qualquer outra do estado de natureza violento e empobrecido. De forma não surpreendente, os soldados, missionários e funcionários coloniais enviados para estabelecer o domínio ocidental trouxeram de volta relatos que enfatizaram as características hobbesianas das sociedades que eles buscavam conquistar e transformar. Esses retratos constituíam as únicas informações disponíveis aos primeiros antropologistas quando a disciplina emergiu durante a década de 1860. Somente alguns antiimperialistas, reformadores e autoconscientes artistas iconoclastas - poucos dos quais haviam, em algum momento de suas vidas, observado diretamente os verdadeiros primitivos — agarraram-se à visão pacífica da vida não civilizada de Rousseau. O CONCEITO DE GUERRA PRIMITIVA No início do século XX, a massa de observações não sistemáticas das sociedades pré-Estado que tinham sido acumuladas durante a expansão europeia foi superada pelos novos dados da etnografia. Treinados na nova técnica de observação participativa, os antropólogos foram viver com os objetos de seus estudos por meses e mesmo anos, aprenderam suas língua e fizeram observações sobre seus costumes e comportamentos, registrados com seus próprios olhos. A jovem ciência da antropologia resolveu sair da zona de conforto e ir a campo. Todos esses dados, antigos e novos, indicavam que exceto algumas raras ocasiões a vida primitiva não era particularmente pacífica. Não era mais possível declarar como o eminente sociólogo William Sumner fez no início do século, que o homem primitivo “pode ser descrito como um animal pacífico” que “abomina” a guerra.{30} Em 1941 o grande etnógrafo Bronislaw Malinowski podia argumentar que a “antropologia tinha feito mais mal do que bem ao confundir a questão e retratar os ancestrais humanos como vivendo em uma era de ouro de paz eterna”. Apesar disso, também havia ficado claro que, ao contrário do que Hobbes achava, a vida em sociedades de pequena escala não era “solitária, pobre, desagradável, brutal e breve”. Os antropólogos que de fato viveram em meio a tais povos e que
participaram de suas ocupações diárias, passando a conhecê-los como indivíduos e como amigos, tinham muita dificuldade para manter um desdém hobbesiano por seu modo de vida. A etnografia expôs culturas primitivas como modos perfeitamente válidos e satisfatórios de existência humana e constatou que com frequência elas apresentavam características preferíveis àquelas comparáveis da vida civilizada ocidental. Poucos desses etnógrafos eram exploradores, porém, e eles geralmente viviam com povos que já haviam sido pacificados pela administração ocidental.{31} Portanto, eles tinham que confiar na memória de seus informantes sobre a guerra pré-contato, e havia poucas oportunidades de observá-la diretamente. Mas esses relatos tendiam a idealizar ou bowdlerizar{32} o comportamento. Embora as descrições dos informantes sobre muitos aspectos da vida social pudessem ser reforçadas ou corrigidas pelas observações diretas dos antropólogos, verificações independentes de suas descrições de guerra eram em geral impossíveis de ser conduzidas. Por exemplo, um etnógrafo estudando os sambias da Nova Guiné descobriu que os guerreiros sambias “inconscientemente reprimiam as partes sangrentas das histórias de guerra, transformando aquilo que havia sido traumático em drama” quando recontavam suas experiências de combate.{33} Quando tais relatos nativos idealizados foram filtrados, pelas perguntas feitas, através do intenso interesse dos antropólogos pelas regras costumeiras e rituais, as imagens de combate primitivo que emergiram tinham uma atratividade muito estilizada e ritualística. Em seu livro A Face da Batalha, o historiador John Keegan observa uma tendência correspondente nos historiadores militares de relatos de batalhas civilizadas.{34} Alguns deles fazem o combate entre grupos de homens apavorados e superexcitados parecer nada mais do que brigas de boteco ou uma tempestade de trovões em prosa romântica. Nesses relatos, indivíduos e grupos são motivados por uma fome de glória ou pela vontade de vingar derrotas anteriores, por um desejo de manter a reputação do regimento, conservar a boa opinião de seus camaradas ou passar a ser notado pelos superiores. Os soldados muito raramente são retratados como movidos por ódio ao inimigo, e nunca lutando por motivos baixos e torpes, como ganho material ou medo de punição. Se esse tipo de relato fosse a nossa única fonte de informação, poderíamos concluir que a guerra moderna ocidental é bastante ritualizada, psicologicamente motivada e não particularmente letal. Apenas estatísticas de baixas reais e raros relatos testemunhais não publicados feitos por soldados da linha de frente desafiam tais impressões. Antropólogos, porém, com poucas exceções, têm tido informações apenas historiográficas para guiar-se na generalização sobre a guerra não civilizada. Em algumas raras circunstâncias, os etnógrafos foram capazes de observar combates primitivos verdadeiros. Contudo, mesmo essas observações mostraram um vezo marcado em direção a batalhas arranjadas ou formais.{35} Uma vez que tais batalhas são o objetivo primário e os eventos mais dramáticos da guerra moderna, os olhos dos etnógrafos foram arrastados para choques comparáveis nas sociedades tribais que estudavam. Eles observaram que essas batalhas primitivas foram frequentemente suspensas após algumas poucas mortes - mesmo se elas fossem recomeçadas após um breve intervalo e que o número total de mortos em uma série de batalhas era em geral pequeno. Os etnógrafos raramente analisaram as baixas em relação aos pequenos números de indivíduos que lutaram e, portanto, não poderiam compará-las nessas bases com as batalhas civilizadas de larga escala. Os ataques, as emboscadas e os ataques-surpresa nas aldeias, que constituem um componente principal da guerra tribal, foram raramente observados e atraíram pouca atenção. A impressão geral derivada de raros vislumbres de batalhas formais foi a de que a guerra primitiva não era muito arriscada. Em meados do século XX, tornou-se possível salvar a noção rousseauniana do Bom Selvagem, não para torná-lo pacífico (já que isso era claramente contrário aos fatos), mas para se argumentar que os homens tribais conduziam uma forma de guerra mais estilizada e menos horrenda do que a que seus pares
civilizados faziam. Essa visão foi sistematizada e elaborada em uma teoria segundo a qual existia um tipo especial de “guerra primitiva” muito diferente da guerra “real”, “verdadeira” ou “civilizada”. Os arquitetos desse conceito de guerra primitiva, Quincy Wright e Harry Turney-High, eram acadêmicos muito diferentes em termos de caráter e experiência. Apesar da similaridade essencial de suas visões, nenhum deles jamais reconheceu no papel a existência do trabalho do outro. Quincy Wright (1890-1970) era professor de direito internacional na Universidade de Chicago. Ele conduziu o estudo de longo prazo daquela universidade sobre as causas da guerra, que começou em 1926. Esse projeto acabou envolvendo um grande número de membros da faculdade e estudantes graduados de várias disciplinas, incluindo a antropologia. O estudo da guerra pelas sociedades primitivas era apenas uma parte de um empreendimento maior, mas teve um efeito considerável em muitos pensamentos subsequentes dos antropólogos.{36} O resumo de dois volumes feito por Wright intitulado A Study of War foi publicado em 1942. Uma edição condensada desse trabalho permanece disponível até hoje. De maneira não surpreendente, ele assumiu uma postura legalista com relação à guerra e estava especialmente preocupado em identificar as leis e os costumes que pudessem moderá-la ou até mesmo eliminá-la. De fato, ele definia a guerra como uma condição legal temporária que permitia que grupos hostis “estabelecessem um conflito pela força armada”. {37} Sua atitude com relação à guerra parece ser de desaprovação jurídica por essa maneira dispendiosa e brutal de resolver disputas. Harry Holbert Turney-High (1899-1982) foi, durante a maior parte de sua carreira, professor de antropologia na Universidade da Carolina do Sul. Porém, de forma diferente da maioria dos acadêmicos, ele manteve um envolvimento com os militares modernos, passando desde o posto de soldado raso na cavalaria até o de coronel da polícia militar na Reserva das Forças Armadas dos Estados Unidos. Servi na Europa durante a Segunda Guerra Mundial como oficial, porém aparentemente nunca presencio combates de fato.{38} Como um etnógrafo, coletou dados de “cultura de memória” sobre os índios das tribos dos cabeças-chatas e dos kutenais do estado de Montana e escreveu a etnografia-padrão desses grupos. O caráter da guerra tribal relembrado por essas tribos que habitavam as fronteiras das planícies e sua própria admiração pelos princípios da guerra que ele aprendeu no treinamento como soldado da cavalaria obviamente exerceram forte influência em sua opinião sobre a guerra primitiva. Seu livro seminal, Primitive War [Guerra Primitiva] (1949), continua sendo a única síntese antropológica sobre a guerra disponível no mercado. Em vez de encarar a guerra como uma condição jurídica temporária, Turney-High a via como uma instituição social que atendia a diversas funções. Não apenas a guerra podia ser útil, especialmente em um contexto civilizado, mas ela era também uma fuga excitante. Turney- High reservava a sua desaprovação por aquilo que ele via como guerra abaixo do padrão, com pouca empolgação o conduzida de forma covarde, não a guerra propriamente dita. Escrevendo em um estilo opiniático e extravagante, ele demonstrava desprezo por qualquer um que não conhecesse ou ignorasse a arte e as ocupações do soldado civilizado, independentemente de o desinformado ser cientista social, guerreiro tribal ou guerrilheiro moderno. De fato, tem-se a sensação desconfortável de que Turney-High acreditava que um pouquinho de cheiro de fumaça ou de cordite, um pouco de disciplina militar e um toque das punições de campo de batalha fariam muito bem a qualquer um. Apesar da diferença em suas definições básicas de guerra e do silêncio estudado sobre o trabalho do outro, tanto Wright como Turney-High concordavam que a guerra primitiva diferia muito da guerra conduzida pelos estados civilizados. Na guerra civilizada ou real, os motivos ou objetivos eram econômicos e políticos - por exemplo, saque, lutas por mais território ou hegemonia. Turney-High caracterizava essas guerras como “racionais e práticas”. Em contraste, se dizia que os primitivos lutavam por motivos pessoais, psicológicos e sociais.
Wright argumentava que os objetivos militares das sociedades primitivas primariamente envolviam a manutenção “da solidariedade do grupo político” e secundariamente satisfaziam “certas necessidades psíquicas da personalidade humana”. A sua lista de motivos primitivos incluía a liberação de tensão por impulsos violentos que poderiam ser convenientemente dirigidos aos forasteiros; busca de prestígio pessoal e status, incluindo a iniciação à masculinidade; e vingança. Tanto Turney-High como Wright afirmaram a amplamente repetida alegação de que os povos primitivos iam à guerra por aventura o esporte - literalmente para escapar do tédio.{39} Dada a caracterização de Turney-High dos motivos dos Estados, ele sugeriu que os motivos das sociedades primitivas eram irracionais e não práticos. Motivos comparáveis, puramente psicológicos, apenas ocasionalmente apareciam na guerra civilizada na motivação individual dos soldados ou de pequenas unidades. Wright e Turney-High descartaram a possibilidade de que a guerra pudesse funcionar para produzir vantagens materiais aos grupos primitivos porque a busca consciente dessas vantagens era uma característica apenas dos Estados. Eles viam todas as características da guerra primitiva como fluindo diretamente de objetivos impraticáveis e pessoais, que poderiam ser atingidos sem “vitória” e, de fato, poderiam servir apenas se os guerreiros tivessem uma chance muito boa de sobreviverem ao combate. Tanto Wright como Turney-High julgavam a guerra primitiva tecnicamente defeituosa comparada à guerra civilizada.{40} Ambos listaram, de maneira independente, as várias deficiências da guerra primitiva: 1. Fraca mobilização dos recursos humanos em razão da dependência da completa participação voluntária. 2. Suprimento e logística inadequados. 3. Inabilidade de conduzir campanhas de longa duração em razão das deficiências 1 e 2 citadas acima. 4. Nenhum treinamento organizado das unidades. 5. Comando e controle deficientes. 6. Como resultado das deficiências 4 e 5, unidades indisciplinadas e falta de comprometimento moral dos guerreiros. 7. Poucas armas especializadas para a guerra e negligência de fortificações. 8. Inexistência de guerreiros profissionais ou especializações militares (tais como espadachins, arqueiros e cavaleiros). 9. Táticas ineficazes e negligência de certos princípios da guerra. Em suma, eles consideravam a guerra primitiva desconexa, ineficaz, “não profissional” e não séria. A natureza altamente voluntária do recrutamento para expedições guerreiras nas sociedades tribais, Turney-High argumentava, conduzia a uma mobilização ineficaz ou defeituosa. A facilidade que os guerreiros de algumas tribos tinham de desertar de uma expedição guerreira devido a maus presságios o sonhos era ainda mais desastrosa. Ele sugeria que “uma boa sacudida com punições duras” teria curado rapidamente esse mal. Apesar de admitir que a pressão social apenas era suficiente para mobilizar grandes expedições de guerra em algumas tribos, ele também acreditava que o sistema de compulsão física utilizado pelas tribos zulus, daomeanas, celtas e dos Estados modernos era superior.{41} Em geral, Wright, e especialmente Turney-High, mediam a eficácia militar de uma prática pelo quão proximamente ela se assemelhava àquelas dos exércitos modernos, em vez de pelos efeitos que produzia. No caso de mobilização, o efeito-chave envolvia a proporção dos recursos humanos potenciais de uma sociedade que estava de fato mobilizada para combate, uma questão que nenhum estudioso jamais abordou. Turney-High observou que os suprimentos inadequados aos guerreiros por suas economias de subsistência limitavam as possibilidades de condução de campanhas ou cercos além do primeiro
encontro. Ele associava as questões de suprimentos adequados e logística a “uma organização social capaz de produzir um excedente econômico por meio de uma alta agricultura” (presumivelmente ele queria dizer um Estado apoiado por uma agricultura de curto pousio) e a “um modo adequado de transportar tal alimento”. Portanto, a ausência de campanhas militares prolongadas era uma consequência direta da má logística, que, por sua vez, refletia a organização primitiva da economia e das organizações sociais. Por implicação, a única maneira de uma tribo de hábitos agrícolas ou um bando de caçadores poder conduzir uma campanha prolongada seria, primeiro, tornando-se um estado agrário. Ambos os estudiosos observaram que os guerreiros primitivos eram indisciplinados e bastante seletivos sobre a obediência às ordens de seus líderes. As virtudes militares da disciplina e da obediência imediata eram produto do treinamento, da prática e do exercício. Turney-High observava que somente Estados poderiam arcar com as despesas de tal treinamento e que somente líderes de Estados tinham o poder de exigir obediência.{42} Ao mesmo tempo, ele repetidamente sugeria que tal disciplina era essencial para a vitória e que somente Estados eram capazes de obter vitórias. Ele só manifestava desdém pelos caprichos e pela negligência dos guerreiros primitivos: Ele é um pobre coitado indisciplinado que não se fixa em nenhuma posição e tampouco morre nela quando ordenado por um suposto chefe. Uma batalha para defender posições usando tropas de qualidade contra todas as probabilidades de vitória não era a sua ideia de diversão, tanto quanto não é a de seus descendentes culturais, os membros da guerrilha. O guerreiro primitivo ama (…) uma coisa certa. Transformar uma causa aparentemente sem esperança em vencedora pelo valor e capacidade não é do seu feitio.{43}
A caracterização de Wright do guerreiro primitivo como “fujão” e pouco comprometido não era tão abertamente desdenhosa, mas carregava a mesma mensagem. Uma característica que permeava a discussão de Turney-High sobre a guerra primitiva - e que a diferencia da de Wright - era sua crença profunda de que princípios táticos ou leis de guerra ensinados aos oficiais modernos durante o treinamento representavam exigências atemporais de uma guerra eficaz. Ele as comparava a leis científicas e alegava que elas deveriam ser utilizadas para predizer ou garantir um sucesso ou fracasso militar. Para ele, à medida que os guerreiros primitivos ignorassem ou violassem esses mandamentos, suas campanhas militares seriam necessariamente frívolas e ineficazes. De acordo com Turney-High, os guerreiros primitivos obedeciam a alguns desses princípios o “leis”, mas de forma característica ignoravam ou desobedeciam a diversos outros.{44} De fato, as suas aplicações de alguns deles podem até ser superiores à dos soldados civilizados. Ele constatou que os guerreiros tribais geralmente obedeciam aos princípios que prescreviam ação ofensiva, surpresa, inteligência, utilização do terreno e mobilidade. Eles eram muito díspares no que se refere à utilização de regras de disparo e movimentação, com muitos grupos trocando disparos a distância e nunca contatando seus inimigos. Ademais, eram surpreendentemente deficientes no quesito segurança, sendo, com frequência, surpreendidos ou emboscados, negligenciando a utilização de fortificações. Raramente obedeciam aos mandamentos de Concentração no Ponto Crítico e Exploração de Vitória, uma vez que não se concentravam em objetivos-chave ou nos pontos fracos do inimigo e em perseguir os derrotados. Naturalmente, a Cooperação de Forças Especializadas - outra regra - era impossível para grupos que não dispunham de unidades especializadas, como cavalaria e artilharia. Ele insistia que os primitivos não usavam as formações corretas, mas foi vago nesse aspecto. Dado que suas outras acusações implicavam falta de sofisticação ou complexidade, é surpreendente que ele também tenha constatado que guerreiros primitivos falharam em observar o princípio da Simplicidade dos Planos, seja porque não tinham nenhum ou por disporem de planos que eram demasiadamente padronizados.
Esses princípios, para os quais Turney-High concedia o status de leis de ciência social, eram contraditórios e bastante vagos, em especial na prática. Por exemplo, lograr “segurança” geralmente implica localizar forças em outros pontos que não o “crítico” e, com frequência, pede comedimento na “exploração da vitória”. Muitas unidades de exércitos civilizados pagaram um alto preço ao obedecerem à injunção de explorar vitórias correndo de cabeça em direção à derrota paulatina pelas forças rapidamente mobilizadas e reforçadas de seus inimigos. As fortificações exemplificam “segurança”, mas são inimigas da “mobilidade” e da “ação ofensiva”. Na realidade, poucos desses princípios podem ser tomados pelo seu valor de face ou inequivocamente. Com exemplos como as ofensivas de trincheira desastrosas da Primeira Guerra Mundial e a campanha russa de Napoleão, seria mais honesto repetir um princípio como “ação ofensiva exceto quando não aconselhável”. Outras leis como essas sofrem de uma imprecisão debilitante. Quão simples os planos devem ser? Como é que alguém identifica o ponto crítico exceto em retrospecto? Por causa de suas proverbiais imprecisões e contradições, essas leis táticas são muito mais rapidamente empregadas, tal como no caso dos provérbios, em racionalizar resultados do que como prescrições científicas para gerar vitórias. Ironicamente, as “leis imutáveis da guerra” de TurneyHigh já não são ensinadas para aspirantes a líderes de guerra nas grandes academias militares ocidentais. {45}
Apesar de toda a verborragia sobre a guerra primitiva, Turney- High repetidamente reconheceu que o excedente econômico concentrado, o poder de coerção e o processo decisório dos Estados foram os determinantes básicos da “guerra verdadeira”. A ausência dessas características nas sociedades primitivas explicava a maior parte de suas “deficiências” militares. Em outras palavras, o horizonte militar de Turney-High não era tanto o de um Rubicão tático, e sim político e econômico. Um princípio tático que falta na lista de Turney-High é a importância de números superiores (geralmente codificado como o Princípio de Massa). Essa importante característica da guerra ele levianamente descarta com a afirmativa de que “pequenos bons exércitos têm humilhado frequentemente exércitos muito maiores”.{46} De fato, muitos pequenos bons exércitos foram moídos e transformados em pó por grandes massas menos engenhosas. Por exemplo, os ágeis finlandeses em 1939 e 1940 e os formidáveis alemães em 1941 e 1942 certamente humilharam os exércitos russos bem mais numerosos no início, mas logo foram esmagados tanto quanto quaisquer outros exércitos o foram na história. Tal como muitos outros historiadores enamorados pelas táticas, liderança e disciplina, o foco de Turney-High estava na vitória na batalha, não em guerras. Tal como os romanos combatendo Aníbal mostraram, podese perder cada batalha menos a última e, ainda assim, ganhar a guerra. Aquela última batalha crucial via de regra acaba sendo ganha pelo lado com maiores reservas de recursos humanos e economia mais forte. Tanto Wright quanto Turney-High concordaram que, por causa de suas motivações frívolas e deficiências técnicas, a guerra primitiva gerou poucos efeitos importantes e não era particularmente perigosa.{47} Wright concluiu que baixas e poder de destruição somente aumentavam com a evolução social. Ambos os estudiosos simplesmente conjeturaram que a luta por objetivos práticos com técnicas civilizadas automaticamente tornava a guerra mais terrível e, de modo contrário, que objetivos irracionais com técnicas simples tornavam- na ineficaz. Nenhum deles apoiou essas suposições em quaisquer fatos ou números. Ainda que Wright dispusesse de dados de baixas de alguns poucos grupos tribais (presumivelmente porque eles contradiziam suas conclusões), eles apareceram apenas em um apêndice.{48} Ele até sentiu dificuldade em apoiar sua tendência de morte crescente e destruição com dados históricos da Europa.{49} Turney-High nunca se incomodou com números. Ele acreditava que uma vez que guerreiros primitivos eram sempre derrotados por soldados civilizados, o ponto se tornava evidente por si próprio.{50} No entanto, admitiu que as sociedades primitivas “fizeram algumas resistências muito significativas contra o homem branco, apesar de suas populações pequenas e armas