PAUL ZUMTHOR
A LETRA( E A VOZ A "literatura" medieval Tradução: AMÁLIO PINHEIRO (Parte I) JERUSA PIRES FERREIRA (Parte II)
r reimpressão
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COMPANHIA DAS LETRAS
Copyright © 1987 by Éditions du Seuil Copyright de "A letra e a voz de Paul Zumthor" © 1993 by Jerusa Pires Ferreira Titulo original: La lettre et Ia voix De Ia "littérature" médiévale
ÍNDICE
Capa: Ettore Bottini sobre detalhe de Aleijados, loucos e mendigos (c. 1560), gravura em metal de Pieter Brueghel Preparação: Mário Vilela Revisão: Touché! Editorial Ana Maria Barbosa
Prefácio
·
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INTRODUÇÃO Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do governo francês Dados
Internacionais (Câmara
Zurnthor,
de Catalogação
Brasileira
Paul,
na Publicação
(CIP)
ne15
do Livro, SP. Brasil)
I. O CONTEXTO
1915·
A letra e a voz:
A "literatura"
medieval/Paul
Zum-
thor ; tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do governo
1. Perspectivas O mal-entendido. As múltiplas oralidades. Deslocamentos cessários. Marcos espaciotemporais.
francês.
2. O espaço oral Os índices de oralidade. Dizer e escutar. Antes da escrita. A rede das tradições.
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Bibliografia. ISBN 85·7164-340·7
3. Os intérpretes
1. Literatura medieval - História e crítica 2. Tradição oral - Europa I. Título. 11. Título: A literatura medieval.
Jograis, recitadores,
safio
leitores. Um papel social. A festa. O de-
,
55
CDD·809.8940902
93·2621 Índices para catálogo 1. Literatura
medieval:
sistemático:
História
e crítica 809.8940902
4. A palavra fundadora A voz da Igreja. Os Doutores. Os Príncipes. Convergências funcionais. O nomadismo da voz.
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2001 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA
SCHWARCZ
LIDA.
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5. A escritura Formas e técnicas. Os escribas. Maneiras de ler. A voz na escrita 96 6. Unidade e diversidade "Erudito" e "popular". A inscrição do vulgar. A escritura e a imagem. A preocupação da voz. .. 117
/I. A OBRA 7. Memória e comunidade Memória e laço social. Intervocalidade e movência. Os relés costumeiros. O poder vocal. 139 8. Dicção e harmonias Formas e níveis de formalização. Os ritmos. Prosa ou verso? .... 159 9. O texto vocalizado Um jogo vocal. A palavra e o canto. Composição Efeitos textuais. O "formulismo"
numérica. 181
10. A ambigüidade retórica Ritmo e convenção. A glosa integrada. Uma sintaxe oral? Discurso direto 201 11. A performance O texto em situação: os "papéis". circunstanciais. O "teatro". .
O ouvinte cúmplice. Provas 219
12. A obra plena A voz e o corpo. Do gesto poético à dança. O espaço e o tempo. Uma teatralidade generalizada. . 240
CONCLUSÃO 13. E a "literatura"? O caso do romance. A ilusão literária. Posfácio:
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A letra e a voz de Paul Zumthor
Ferreira Notas Documentação
265 -
Jerusa Pires 287 297 307
No curso dos anos 50 de nosso século, vários medievalistas descobriram a existência da poesia oral. Isso deu um pouco de que falar, provocando até tempestades no copo de água dos professores. Ninguém, certamente, jamais pusera em dúvida o papel dos trovadores, menestréis, Minnesànger e outros artistas do verbo na difusão da "literatura" medieval. Esta, aos olhos da maioria dos germanistas, destinara-se, em seu conjunto, à transmissão da boca ao ouvido; aos romanistas, especialmente os franceses, repugnava tal generalização; mas, de qualquer modo, ninguém tirava desse fato conclusões a respeito dos textos que nos foram preservados. Assim, toda uma ordem de traços relativos à poeticidade da linguagem medieval era menos negada, era simplesmente desconhecida. É a existência dessa ordem o que, no rastro dos etnógrafos, atravessada por um feliz acaso, constataram, com entusiasmo ou timidez, alguns de nossos pioneiros. Na mesma época (em 1933), o grande Menéndez Pidal, tão poeta quanto erudito, publicava os dois grossos volumes de seu Romancero hispánico, traçando a história oral de um gênero poético testemunhado desde o século XIV. As estratégias constitutivas da poesia apareciam assim irredutíveis aos modelos que eram considerados até então os únicos válidos e, como por natureza, intemporais; pensava-se que as condições de seu exercício não tinham medida comum com as retóricas da escritura. Um dos primeiros, Werner Krauss, reconheceu isso ... justamente a propósito do Romancero da guerra civil espanhola. Num recuo de mais de trinta anos, podemos espantar-nos com o escândalo que provocou, entre alguns, a emergência dessas novas plagas no horizonte de seus estudos. Mais valia negar a evidência, e essa ameaça que só a curto prazo se tinha razão de temer não arruína a estabilidade de uma filologia assentada sobre séculos de certezas. Entretan7
to, a curiosidade e a honestidade intelectuais (talvez incitadas pelo assombro), ou então o gosto saboroso do risco, levaram outros a trilhar O território desconhecido. Tomava-se posse desse novo continente; ou melhor: já que lembranças muito antigas despertavam para essa aventura, recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região nossa velha poesia oral -, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido durante longo período renegada, ocultada, recalcada em nosso inconsciente cultural. Era um pouco dessa história o que, por volta de 1960, nos contava Marshall McLuhan. Doze ou quinze gerações de intelectuais formados à européia, escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam, haviam perdido a faculdade de dissociar da idéia de poesia a de escritura. O "resto", marginalizado, caía em descrédito: carimbado "popular" em oposição a "erudito", "letrado"; tirado (fazem-no ainda hoje em dia) de um desses termos compostos que mal dissimulam um julgamento de valor, "infra", "paraliteratura" ou seus equivalentes em outras línguas. Mesmo em 1960-5, ao menos na França, prejudicava gravemente o prestígio de um texto do (suponhamos) século XII a possibilidade de provar-se que seu modo de existência havia sido principalmente oral. De tal texto admirado, tido por "obra-prima", um preconceito muito forte impedia a maioria dos leitores eruditos de admitir que tivesse podido não haver sido nunca escrito e, na intenção do autor, não haver sido oferecido somente à leitura. O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma terra de ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas. No início de nosso século, a "literatura" adotava assim, em escala mundial, de maneira exclusiva, os fatos c os textos homólogos aos que produzia a prática dominante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica, tendo-seIhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que, havia longo tempo, fora instaurado pela maioria dos Estados europeus. Estava de acordo com as tendências mistificadoras, até alcgorizantes, que aí presidiam à elaboração das "histórias nacionais": xaltacão do herói que personificasse o superego coletivo; a confecção le um Livro de Imagens no qual fundar um sentido que justificasse o rolo presente: as palavras de Joana d'Arc, a cruzada de Barba-roxa ou ti fogueira de Jan Huss ... A Segunda Guerra Mundial não deixou de pó muitas dessas estátuas, nem abrigou essas garantias. No espaço de IH.llí I poucos anos, um poderoso retorno do reprimido abalava, com a 8
história, as outras ciências humanas e, em sua trilha, os estudos ditos literários. Foi então que, pela janela entreaberta, o termo oralidade entrou como um ladrão no vocabulário dos medievalistas. O termo, mas em proveito de que idéia? Em seu uso mais comum, exclusivamente, com função negativamente c1assificatória, que remetia ;) ausência de escritura. O problema central, nessa ótica, se reduzia a uma exclusão ou a uma dosagem: sim, não; ou sim e não. A difusão tardia do belo livro de R. J. Chaytor, From seript to print (cuja primeira edição data de 1945), em seguida aos trabalhos (anteriores a 1935!) íe Milmam Parry sobre a epopéia iugoslava, deu consistência a essas questões: dispunha-se então, parecia, de procedimentos que permitiam semantizar, sobre o plano da forma poética, cada um dos termos em pauta. Pesquisas antropológicas como as de Walter Ong, após McLuhan, permaneciam, em compensação, ignoradas pela grande maioria dos medievalistas e, antes do fim dos anos 70, não tiveram efeito sobre os seus trabalhos. Tais são as bases sobre as quais trabalhamos e discutimos (durante mesmos anos em que se desenvolvia minha carreira de professor). Pois eis que hoje uma ilusão começa a se dissipar, ao mesmo tempo em que uma dúvida se insinua: a "oralidade" é uma abstração; somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas. Essa simples verdade da experiência levou tempo a penetrar entre nós. De fato: testemunhas, livros e ensaios diversos, já bastante numerosos, apareceram desde o início dos anos 80. Médicos, psicanalistas, etnólogos, músicos e poetas: remeto à bibliografia de minha Introduetion à Ia poésie orale. Os medievalistas, espero, não tardarão a acompanhar - ao preço, sem lúvida, de uma dupla conversão metodológica. Eles só o conseguirão, de fato, se admitirem considerar, pelo menos num primeiro momento, a poesia medieval como objeto de antropologia e como loeus dramatiCI/S privilegiado no qual "captar", em sua mais plena significância, as tensões que colocam em questão nossa idéia do homem; romper radi.alrnente com a terminologia e os conceitos que nos inspirou e que manteve, como resultado de nossa natural inércia, a experiência da escritura _ com o risco de retomar, sob outra luz, para além dessa purificação.
Minha intenção não é chover no molhado provando a existência Ic uma oralidade medieval, mas valorizar o fato de que a voz foi então 11m fator constitutivo de toda obra que, por força de nosso uso corrente, foi denominada "literária". Pretendo menos afirmar a importância tia oralidade na transmissão, na produção mesma, dessas obras do que 9
tentar julgar e medir o que essa oralidade implica; menos avaliar o volume de um "setor oral" no conjunto dos textos conservados do que neles integrar os valores próprios de minha percepção e de minha leitura. Esse desejo me leva, no trajeto, a tornar a dizer certas coisas já ditas (e às vezes muito beml); assim, acho útil continuar e ligar em feixes os fios das diversas reflexões, análogas se não convergentes, cuja acumulação manifesta a homogeneidade. Sem dúvida, não é prematuro, em 1985, esboçar tal síntese e assumir abertamente o alegre risco do empreendimento. Catorze anos depois do término de meu Essai de poetique médiévale, ofereço um quadro que, para meus propósitos, a abrange e a situa. Um leitor que retome hoje o Essai aí descobre sem dificuldade os pontos de amarração desse livro: várias vezes, nele assinalava o aspecto "teatral" de toda a poesia medieval, mas não ia nada além dessa declaração, cujas conseqüências ficavam implícitas. A letra e a voz tenta definir essa teatralidade, noção abrangente e não contraditória com as que usava o Essai. Este tratava de textos. Meu ponto de vista aqui é o da obra inteira, concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão pela presença simultânea, num tempo e num lugar dados, dos participantes dessa ação. A obra contém e realiza o texto; ela não o suprime em nada porque, desde que tenha poesia, tem, de uma maneira qualquer, textualidade. Ademais, apesar da cronologia, a obra publicada em 1987 desfruta de maior autonomia, em comparação àquela de 1972. Ela se dirige, por essa mesma razão, a um público maior do que antes: além do círculo dos medievalistas especializados no estudo dos textos, a todos os medievalistas; além da comunidade de medievalistas, aos apreciadores de textos. As muitas revisões que tive de operar (livres de toda iconoclastia) poderiam referir-se a todos. Por isso, desejoso de facilitar a leitura aos não-historiadores, forneci aqui e acolá informações que os medi evalistas titulados acharão provavelmente supérfluas; que eles as risquem e passem. Traduzi todos os textos citados em francês antigo ou em língua estrangeira; salvo indicação contrária, essas traduções são minhas. Os exemplos que trago (várias vezes complexos), aqueles que, mais raramente, discuto, são quase sempre pontuais e formam uma série descontínua; esse pontilhismo é o resultado de uma escolha - a única que, pareceu-me, poderia, com um pouquinho de sorte, permitir-me juntar a rapidez da escritura aos encadeamentos da argumentação. Este livro foi escrito entre 1982 e 1985. Forneço, no fim do volume, sob o título "Documentação", uma lista de estudos nos quais, no todo ou em parte, por um ou outro motivo, me baseei. As notas de rodapé só dQo as referências particulares. O exame desse material cessou no fim
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de 1985. A diversidade dos pressupostos e dos métodos representados por tais estudos exige que seja dado sumariamente ao leitor um eixo de referência cronológico. Toda vez que faço referência a essas pesquiSIIS, emprego, de modo sistemático, as palavras recentemente para os unos 1980-5, anteriormente para os anos 1970-80 e antigamente para tudo O que os precedeu. De outro lado, remeto conjuntamente à minha Introduction à Iapoésie ora/e, na qual tentei elaborar os princípios de uma poética da voz. Originalmente, era meu propósito que aquela obra fosse o capítulo introdutivo desta. Desejo que meu leitor não as dissocie.* Montréal, dezembro de 1985
C*) Um primeiro esboço deste livro forneceu, em fevereiro-março de 1983, a matéria pura quatro aulas no College de France; o texto foi publicado em 1984 pelas Presses Universitaires de France, sob o título La Poésie et Ia Voix dans Ia civilisation médiévale.
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1 PERSPECTIVAS
mal-entendido. As múltiplas oralidades. Deslocamentos sários. Marcos espaciotemporais.
neces-
Foi a propósito da canção de gesta que se colocou inicialmente, na 1"lllnça,o problema; em outros lugares, a propósito das formas diversas til' poesia heróica, do Beowulf aos Nibelungen e ao Cantar de mio Cid. 1icssa área privilegiada, as indagações se estenderam pouco a pouco a 11111 ros setores de nossa "literatura medieval", seguindo o capricho das icunstâncias concernentes à natureza dos textos, das línguas em quesIno, das tradições científicas locais e das dificuldades universitárias: as,!1m, na obra de Jean Rychner, um dos principais iniciadores, o enfoque (' deslocou, no espaço de cinco anos, da canção de gesta ao fabliau.* Nnda de surpreendente em que uma ruptura se tenha produzido nos pres"postos dos pesquisadores, justamente quanto ao primeiro ponto. Háhlros herdados do romantismo incitavam a ordenar globalmente as obras ob a etiqueta "epopéia"; e esta remetia a Homero, reserva dos poetas de formação clássica. A descoberta, já antiga, da multiplicidade das catundas textuais na Ilíada e na Odisséia não tinha em nada tirado destes poemas seu caráter exemplar; havia apenas distendido a ligação, íntima , irracional, que os prendia a uma concepção de poesia, geral na Europu desde o século XVI. Donde uma valorização das "epopéias" medievuis, no contexto das revoluções românticas. O exemplo francês é o mais .luro: de Francisque Michel (passando por Victor Hugo) ;;t Joseph Bédicr, assiste-se a uma recuperação das canções de gesta, recebidas e de'Ifradas como os documentos originais da literatura nacional. (*) Fab/iau: Pequeno conto agradável ou edificante, próprio da literatura francesa dos séculos XIII e XIV. Ver Les fabliaux por Joseph Bédier; Paris, Champion, 1969. (N. T.)
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Daí a força do choque quando em 1955, dois anos depois do Rotnancero de Menéndez Pidal, surgiu La chanson de geste: essai sur l'art épique des jongleurs, de Rychner. Este se inspirava nas comunicações apresentadas em 1936, depois em 1951, por A. B. Lord na Associação Americana de Filologia: explorando as pesquisas de seu mestre Parry, prematuramente falecido, Lord explicava as particularidades do texto homérico pelas necessidades próprias à transmissão oral nos aedos e dava conta destas descrevendo a prática dos guslar* sérvios e bósnios observados por volta de 1930. Em torno de Lord, Rychner congregava outras fontes mais antigas e ainda desconhecidas dos medievalistas, como o livro de L. Jousserandot sobre Les bylines russes (1928) e - muito mais importante a longo prazo - o de Marcel Jousse sobre Le style oral et mémotechnique che; les verbo-moteurs (1925). Rychner trabalhava com nove canções de gesta do século XII (algumas das quais representavam, sem dúvida, uma tradição um pouco mais antiga). Na ordem da composição, da textura verbal e do movimento geral, realçava as semelhanças, em vários pontos marcantes, entre esses poemas e os cantos iugoslavos. Deduzia deles uma homologia que se podia estender aos condicionamentos externos da obra: ação do recitador, distribuição das seções, inserção na vida social. O livro deixava numerosos pontos obscuros, e o autor talvez tenha facilitado sua tarefa com a escolha dos exemplos. Pouco importa: uma guinada foi dada. Um congresso, reunido em Liege em 1957, mediu-lhe a envergadura ... ao mesmo tempo em que media a energia daqueles que tomavam o freio nos dentes! Nos dez anos que se seguiram, pesquisas e hipóteses se multiplicaram. Um método de dissimular a oralidade se constituíra, tão mais seguro de si mesmo quanto mais atacado pelos de fora. Seus adeptos não hesitavam em retirar uma doutrina das conclusões empíricas (e do maior interesse) que ele Ihes permitia atingir. Desde 1967, Michael Curschmann podia, em nome dos medievalistas, fazer um balanço, ainda sumário. I Mas, no fim dos anos 70, apareciam sucessivamente na Alemanha a primeira obra de síntese e de bibliografia e uma antologia de artigos surgidos entre 1953 e 1977 sobre a oral idade da epopéia medieval anglo-saxônica e alemã: a canção de gesta era aí abordada por via da música. De resto, as resistências permaneciam forleso Ainda em 1978, no Congresso da Sociedade Rencesvals, que reagrupou a maioria dos especialistas europeus e americanos na matéria, um deles fulminava contra o "pretendido caráter oral das canções de (*) Cantadores cuja denominação por alguns povos balcânicos. (N. T.)
provém de seu instrumento
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monocórdio,
usado
Hcsta". Sua comunicação foi seguida de um debate que, parece-me, deu CIl1 confusão, mas que revelou mais ainda a que ponto, de um lado e do outro, a argumentação, fundada sobre a única atitude comparatista, .ludia o verdadeiro problema.i De fato, este (por essa razão mesma, :m dúvida) só apaixonava nos anos 60 e 70 uma minoria de medievalistas; e hoje, com cada um tomando suas posições como conquistas, o interesse decai. A impressão, sentida por muitos, de desembocar num impasse provérn da própria natureza dos processos empregados, ao longo dos anos, pura localizar aproximativamente, na extensão e na duração - será com efeito outra coisa? -, os fatos da oralidade medieval. Não preciso refazcr aqui um catálogo desses procedimentos. Um mal-entendido enevoa () horizonte, e importa esclarecê-lo de imediato; muitos especialistas (esuuccidos de um importante artigo publicado já em 1936 por Ruth Crosby) ulrnitem tacitamente que o termo oralidade, aquém da transmissão da mensagem poética, implica improvisação; a maioria deixa seus leitores 1111 dúvida, por não ter colocado a questão. Donde tantas querelas sus'iludas pela teoria de Parry-Lord, elaborada para dar conta dos procedimentos de pseudo-improvisação épica, mas tomada por definidora de tuda a poesia oral. Da mesma maneira, quanto se tem sido exposto a divagações por falta de distinguir tradição oral e transmissão oral: a I2rimcira se situa na duracão; a segunda. nQ presente da performance. Em verdade, o fato da oralidade, reduzido aos termos com que, basuuuc sumariamente, o têm definido tantas sábias contribuições, integra-se 111111 na perspectiva geral dos estudos medievais. Aparece aí agora: é o único ponto assegurado; mas de maneira marginal, como uma curiosidudc ou uma anomalia. No pior caso, há o conformismo: toda nature/11 produz seus monstros, não é razão para fazer da teratologia a medi1111 de tudo! Esquece-se que uma anomalia é um fato em busca de utcrpretação. Até hoje, nunca se tentou mesmo interpretar a oralidade 11" poesia medieval. Contentou-se em observar sua existência. Pois, exa1IIIIIentecomo um esqueleto fóssil, uma vez reconhecido, deve ser sepaI/Hlo cios sedimentos que o aprisionam, assim a poesia medieval deve 1'1' separada do meio tardio no qual a existência dos manuscritos lhe permiuu subsistir: foi nesse meio que se constituiu o preconceito que Il'I', da escritura a forma dominante - hegemônica - da linguagem. ( ),~métodos elaborados sob a influência desse preconceito (de fato, todll 1\ filologia do século XIX, e em parte a do nosso) não somente leVIIIIIpouco em conta seus limites de validade, mas têm dificuldade para tll'l crrn inar, na profundidade cronológica, a distância justa de onde condcrur seu objeto. Até hoje; pesquisas e reflexões sobre a oralidade das
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canções de gesta (tomo esse exemplo) têm tido por efeito abalar um pouco as seguranças, amenizar o alcance de vários termos e difundir pequeno número de dúvidas comuns. Elas não nos trouxeram nenhuma certeza. Mas, justamente, a questão não é a certeza. É nosso modo de percepção e, mais ainda, nossa vontade de abertura, implicando a integração de um tipo de imaginação crítica na leitura de nossos velhos textos. Desse ponto de vista, pouco importa a canção de gesta como tal. É um fenômeno geral que convém considerar bem aquém da materialidade de tal gênero particular: o fenômeno da voz humana, dimensão do texto poético, determinada ao mesmo tempo no plano físico, psíquico e sociocultural. Se as discussões sobre a oralidade das tradições poéticas perderam hoje em mordacidade, não foi - ou foi só secundariamente por causa da equivocidade dos fatos. Foi porque - salvo algumas fugazes exceções - essa oralidade não é interrogada sobre sua natureza nem sobre suas funções próprias, e também não o é a Idade Média enquanto lugar de ressonância de uma voz.
Três observações gerais, antes de prosseguir. Convém - primeiramente - distinguir. três tipos de oralidade, correspondentes a três situações de cultura . .Qma. primária ,e imediata, não comporta nenhum contato com a escritura. De fato, ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos. Não podemos duvidar de que tal foi o caso de amplos setores do mundo camponês medieval, cuja velha cultura (tradicional, oprimida, uma arqueocivilização que preenchia os vazios da outra) deve ter comportado uma poesia de oralidade primária, de que subsistem alguns fragmentos, talvez recolhidos por amantes do pitoresco: assim era no século XIII, em muitos sermões nos quais esses fragmentos permitem ao pregador ilustrar agradável ou alegoricamente seu tema. Não há dúvida, entretanto, de que a quase totalidade da poesia medieval realça putros dois tipos de oralidade suío, ~mum é coexistirem com a escri!.ill:.a.,..noseio de um grupo social. Denominei-os respectivamente. oralidade mista" quando a influência do escrito permanece externa, parcial e atrasada; e oralidade segundª,- quando se recompõe com base na escritura num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário. Invertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de uma~ tura "escrita" (no sentido de "possuidora de uma escritura"); e a oraliCiãde segunda, de uma cultura "letrada" (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita). Entre os séculos VI e XVI,
prevaleceu uma situação de oralidade mista ou segunda conforme as épo.as, as regiões, as classes sociais, quando não os indivíduos. Por outro lodo, essa subdivisão não segue nenhuma cronologia, mesmo que, no geral, seja provável que a importância relativa da oralidade tenha aumenlodo a partir do século XIII. O mais antigo poema "francês", a seqüênda de Eu/alie, um pouco anterior a 900, composta por um monge letrado para os fiéis reunidos na igreja de Saint-Armand, perto de Valenciennes, procedia de um regime de oralidade segunda; os originais "populares" disso que denominei as "canções de encontro", nos séculos XII e XIII, Iransmitiam-se provavelmente em regime de oralidade mista. Segunda observação: no interior de uma sociedade que conhece a iscritura, todo texto poético, na medida em que visa a ser transmitido 11 um público, é forçosamente submetido à condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por uma inscrição oferecida à percepção visual, seja - mais raramente - por esses dois procedimentos conjunlamente. O número das combinações possíveis se eleva, e a problemáti;u então se diversifica. Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos lima situação de performance. Terceira observação: quando um poeta ou seu intérpretecanta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui pura valorizá-lo; mas o que o integra nessa tradição é a ação da voz. t-\e Q poeta ou intérprete. ao contrário. lê num ljvro O que os ouvintes "Hclltillll, a autoridade provém do livro como ta1. objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático; a escritura, com os valoI i'N que ela significa e mantém, pertence explicitamente à performance, No canto ou na recitação, mesmo se o texto declamado foi composto por escrito, a escritura permanece escondida. Por isso mesmo, a leitura pública é menos teatral, qualquer que seja a actio do leitor..a presença do livro, elemento fixo, freia o movimento dramático, introduzindo neh' IIS conotações originais. Ela não pode, contudo, eliminar a predomiInllcia do efeito vocal. 1\ coexistência, na prática cultural, desses condicionamentos poéIIros diversos é universalmente comprovada no Ocidente, da Irlanda à oscóvia e da Noruega à Espanha, do século X ou XI aos séculos XVI, VII, às vezes XVIII. Em contrapartida, as combinações de tantos fatoH'M no sabor das circunstâncias provocam situações múltiplas demais para IIno se atenuar (aos olhos do observador moderno) seu traço comum.
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Muitos dos medievalistas são assim levados a descuidar deste, ou dá-I o por estabelecido, quer dizer, nulo e sem efeito: e isso tanto mais quanto nada permite, de maneira estável, ligar a tal gênero poético tal modo de transmissão: nenhum índice, nem na tradição documental nem nos textos, impede-nos de pensar - mesmo se isso é pouco provável - que tal canção tenha sido, algum dia, lida em voz alta, diante de algum grupo de ouvintes. Certos fabliaux não teriam sido cantados, talvez como imitação irônica de uma canção de gesta, como Audigier? Ou de uma canção lírica, como Baillet, cuja forma métrica repele, parece-me, a simples recitação? .. As possibilidades retumbam, os esquemas pressupostos se esboroam no concreto. Fica a onipresença da voz, participando, em sua plena materialidade, da significância do texto e a partir daí modificando, de alguma maneira, as regras de nossa leitura. O ato da audição, pelo qual a obra (ao termo talvez de um longo processo) se concretiza socialmente, não pode deixar de inscrever-se como antecipação no texto, como um projeto, e aí traçar os signos de uma intenção; e esta define o lugar de articulação do discurso no sujeito que o pronuncia.
Desse modo, não menos que dominar as técnicas da filologia e da análise textual, a tarefa ideal do medievalista seria convencer-se dos valores incomparáveis da voz; sensibilizar sua atenção para isso; melhor dizendo, vivê-los, pois só existem ao vivo, independentemente dos conceitos nos quais amiúde somos levados a aprisioná-I os para descrevêlos. Nosso estudo deveria tirar sua inspiração e seu dinamismo da consideração dessa beleza interior da voz humana, "tomada o mais perto de sua fonte", como dizia Paul Valéry. Essa beleza pode, é verdade, conceber-se como particular, própria ao indivíduo emissor do som vocal; a esse título, salvo exceção dificilmente imaginável, ela nos é intocável, depois de tão longa duração. Mas é concebida, também, como histórica e social naquilo que une os seres e, pelo uso que fazemos dela, modula a cultura comum. No texto pronunciado, não só pelo fato
própria organicidade sob a ficção da máscara, sob a mímica do ator a quem por uma hora empresta a vida. À exposição prosódica e à temporalidade da linguagem a voz impõe assim, até apagá-Ias, sua espessura e a verticalidade de seu espaço. É por isso que à palavra oralidade prefiro vocalidade. Vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de pensa:mento, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e .~la voz se articulam as sonoridades significantes. Não obstante, o que deve nos chamar mais a atenção é a importante função da voz, da qual a palavra constitui a manifestação mais evidente, mas não a única nem a mais vital: em suma, o exercício de seu poder fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e de organizar a substância. Essa phonê não se prende a um sentido de maneira imediata: só procura seu lugar. Assim, o que se propõe à atenção é o aspecto corporal dos textos medievais, seus modos de existência como objetos da percepção sensorial: aspecto e modos de existência que, após tantos séculos, realçam para nós "esse tipo de memória, sempre em recuo, mas prestes a intervir para fazer ressoar a língua, quase à revelia do sujeito que a teria como que aprendido de cor", como escreveu soberbamente Roger Dragonetti." O distanciamento dos tempos, essa tão longa ausência, força-nos a perseguir o que sabemos não poder atingir; é então que em nós decide-se a sorte do paradoxal conhecimento ao qual assim aspiramos. Ninguém duvida de que a voz medieval (assim como o canto, cuja prática podemos entrever) resistiu a deixar-se capturar em nossas metáforas, inspiradas por uma obsessão do discurso pronunciado, linear e homofônico: para este, tanto o tempo quanto o espaço constituem um recipiente neutro, onde se depositam os sons como uma mercadoria. Mas é outra voz - outra escuta, à qual nos convida nossa música mais recente - que se recusa a pensar o uno, que se recusa a reduzir o ato vocal ao produto de uma cadeia causal unívoca. É na perspectiva de sua incapacidade última de experimentar (senão de provar!) que o medievalista registrará esse fato maior - e se esforçará para deduzir, no plano da interpretação, as conseqüências: o conjunto dos textos legados a nós pelos séculos x, XI, XII e, numa medida talvez menor, XIII e XIV passou pela voz não de modo aleatório, mas em virtude de uma situação histórica que fazia desse trânsito vocal o únjco modo possível de realização (de socialização) ,desses textos. Tal é minha Tese - ou minha hipótese. Ela abrange naturalmente as canções, mas também as narrativas e declamações de todo o tipo, as próprias crônicas. Só o romance poderia exigir um exame distinto: eu o farei. Sem dúvida, exumaremos alguns casos excepcionais; uma vez demarcados, serão considerados um a um, como escapando à norma.
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'trntu-sc de dialogar com termos antigos, portadores de um discuro que, reduzido a nossa simples instrumentação intelectual, não entendeIIIOS mais. Só subsiste a possibilidade de circunscrever e esclarecer aluns setores-encruzilhadas onde se concentram grandes perspectivas e onde, em seu eixo, reforma-se figuradamente um espaço. A oralidade da poesia medieval é menos uma questão de fato, supondo reconstituicão e prova, do que de explicação, visando a superar uma alteridade recíproca. A voz medieval não é a nossa, pelo menos nada nos assegura que em seu enraizamento psíquico ou em seu desdobramento corporal seja idêntica; desintegrou-se o mundo onde ela ressoou e onde produziu - este o único ponto certo - a dimensão de uma palavra. Por isso, na consideração desse Outro, desses oito ou dez séculos recortados (tanto por obscuros motivos ideológicos quanto pelo comodismo de pegagogo) na continuidade das durações, uma dupla tentação nos espreita: concebê-I os como uma origem, nossa infância no fio reto e orgânico do que nos tornamos; e supor para eles, por isso mesmo (insidiosamente), uma unidade que não tiveram, quer dizer, sob qualquer pretexto metodológico e em qualquer estilo que seja, folclorizar a "Idade Média". Não se dialoga com o folclore. Gravam-se discos para agradar aos turistas. No esforço gue temos o direito de experimentaL.I1
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Mais ou menos confusamente, hoje a maioria dos medievalistas sabe disso. Donde um curioso regresso, por vezes, ao romantismo original de nossos estudos - é suficiente que se desenhe no horizonte uma probabilidade, mesmo longínqua ou puramente analógica, de oralidade, para que intervenha ~ssuposto: no início era o Verbo. Essas facilidades não param de suscitar sadias reações negativas; recentemente, como a de um Rieger, a propósito dos trovadores mesmo; de hispanistas americanos como Michael Walkers e outros; mais violentas e fortemente documentadas, como a do germanista M. J. Scholoz, para quem a evolução do tipo oral-auditivo de transmissão de textos para o tipo gráfico-visual era já muito avançada em meados do século XII e que faz remontar a essa época nossas práticas modernas de leitura. Scholoz afasta como atípica e fortuita toda comunicação verbal, hesita mesmo em admitir sua generalidade na poesia lírica. Desfigurada que seja pelo preconceito, essa posição tem o grande mérito de deslocar a ênfase do texto na direção do público que o recebe e de substituir a oposição abstrata oral/escrito pelas oposições concretas ouvido/olho e ouvir/ler. A reviravolta da perspectiva nos faz sair do que poderia ser um impasse. Apesar das armadilhas de que é semeado o caminho de toda volta ao passado, o ponto de vista de recepção dos textos aproxima-nos (de uma maneira que não é simplesmente metafórica) dos sujeitos que os escutaram. É por isso que, aqui, eu gostaria de fazer minhas algumas regras simples que extraí do discurso-programa de H. R. Jauss, Un défi à Ia théorie littéraire.' e que atribuo mais a certo comportamento intelec- . tual do que a um método: - conceder a uma estética do efeito produzido a proeminência sobre uma estética da produção; - fundar a operação crítica sobre a consideração do que foi o "horizonte de expectativa" do público primeiro da obra; - para definir a obra como objeto de arte, levar em consideração, primeiramente, a natureza e a intensidade de seu efeito sobre o público; - pressupor sempre, na medida do possível as er untas a que a obra respondia em seu tempo, antes aquelas que lhe fazemos hoje. Certamente, as lacunas de nossa informação limitam a eficácia dêS-: ses preceitos. Permanece um fato: é no ato de percepção de um texto, .!!!ais claramente do que em seu modo de constituicfu1...gue se manífes; tam as oPQsiC~s definidoras da yQcalida~ É certo (às vezes consideravelmente) que na economia interna e na gramática de um texto não importa que ele tenha ou não sido composto por escrito. No entanto, o fato de ele ser recebido pela leitura individual direta ou pela audição e espetáculo modifica profundamente seu efeito sobre o receptor e, põf~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
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Não é, contudo, um desses problemas que não se enunciam em perspectiva cronológica nem comportam pendência entre dois termos: acima, a época mais distante em que nos reinos bárbaros tomavam consistência as futuras línguas européias; abaixo, o mundo "moderno", burguês e mercantil. Entre os dois (convenciona-se às vezes, para simplificar, designá-Ia como tal) estaria nossa "Idade Média" - expressão contestável, mas cuja crítica não farei aqui. De um ponto de vista global, participo da opinião de J. Le Goff sobre a existência de uma "Ionga.Idad ~ia" entr~écu~cio da era industriªl. .... É maior a necessidade de marcar as nuances e de introduzir alguma periodização. As fronteiras recortam o .t.eJnpQ.tanto quanto o ~J.ão frollxaS-quant0 reais, aqui e ali. Para meu propósito, atenho-me ao que me parece es~ sencial: acima, a primeira emergência das "línguas vulgares" distintas;
abaixo, os começos da imprensa. Admitamos que toda sociedade humana possa ser considerada um sistema de comunicações; cada um dos momento sucessivos de sua existência se definirá em virtude de dois critérios: a natureza das técnicas de que faz uso para a transmissão das mensagens e a natureza das formas que asseguram a diferenciação destas. Esses princípios de análise aplicam-se simultaneamente a vários níveis. Tratando-se de poesia, os termos em causa, quanto às técnicas, serão a voz e a escrita; quanto às formas de diferenciação, serão as diversas estruturas sociais e mentais ou, mais restritivamente, políticas e estéticas. N. Luhmann, que propõe essas distinções, funda sobre elas um esquema evolutivo: do "segmentário" ao "estratificado" e ao "funcional". Do século VII ao século XVII, nos territórios do Ocidente, as massas dominadas oscilaram do primeiro ao segundo tipo, para deslizar em seguida ao terceiro, conservando em cada situação nova os traços da anterior, de forma que a todo o momento se sobrepuseram os conjuntos ou os fragmentos de conjuntos culturais de idades diferentes; quando muito, sobressai uma tendência dominante, em relação à qual essa outra dá uma (falsa?) impressão de arcaísmo, e aquela parece futurista. As partes desse magma escorregam umas nas outras, lentamente; depois, uma repentina aceleração precipita-as, e um cisma em algum lugar abala a superfície das coisas e dos discursos. Na continuidade rnilenar "medieval", desenham-se assim dois períodos críticos, picos de uma dupla curva, em que o ritmo se acelera e a visibilidade tende a se embaralhar: o século que se estende de 1150 aos arredores de 1250, depois esse que, a partir de 1450, desce até por volta de 1550, ou mais abaixo ainda, em algumas regiões. Entre essas datas, situa-se o que comumente se designa com o nome "literatura medieval". Não é uma simples coincidência, mas sim a manifestação de uma relação profunda: a "literatura medieval", é o conjunto de formas poéticas que não somente participaram dessas crises e deriva da que levou de uma à outra, mas de que foram o produto e um dos teatros principais. Nada, de fato, do que o século XII e depois o século xv trazem é absolutamente novo; mas a consciência que então se tomou conferia à "novidade" sua eficácia, atualizava suas latências. Seria falso fixar no século XII (como se tentou às vezes fazer a partir de Haskins) ou, segundo a velha doutrina de J. Burkhardt, no século xv o início da era moderna. Numa e noutra dessas etapas de nossa história, produziu-se uma maturação, aparentemente rápida, de elementos às vezes vindos de muito longe para cá e revestidos de valores próprios, irredutíveis o que não autoriza de modo algum a qualificá-los como sobrevivências, mas que, ao contrário, exige de nós um esforço de reconstrução, de
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tanto, sobre sua significância. Isso se mantém verdadeiro na forma atenuada de performance que constituiria uma leitura pública feita por um intérprete sentado, ou mesmo de pé, na frente de seu facistol. Com base nessa constatação inicial, operaremos as distinções que a complexa realidade histórica impõe ..A voz é semm:e-ati;v:arfH:as-seupeso.entre as determinações do texto poético flutua em virtude das circuns âncias; e o conheclmenw-(JreêeS: anamente mdireto) que dela podemos ter passa 'Uma' --- investigação dessas últimas. .... Talvez estejamos hoje mais aptos do que antigamente para essa tarefa. Liberados do positivismo, voltamos a estar mais atentos às lembranças próximas das numerosas tradições medievais que se mantinham no interior da sociedade do século XIX e em nossas zonas rurais, aqui e acolá, até meados deste século. É de fato menos uma interrupção do que uma série de fragmentos parciais o que pouco a pouco nos separou do universo medieval. No mesmo desvio que nos fez tomar para com ele uma distância definitiva, interiorizamos sua memória. Disso resulta uma situação desfavorável às posturas históricas tradicionais, que tendem a reconstituir uma pretendida realidade passada; não menos desfavorável às interpretações modernizantes, inspiradas por uma concepção hiperbólica da alteridade. Em contrapartida, somos impelidos à prática de uma modelização dos documentos do passado, utilizando os fragmentos da experiência contemporânea - nossa própria historicidade - como reveladores: projeção do passado no espaço moderno, comportando, a todo o instante, um retorno crítico ao passado como tal. Minha própria voz importa aqui, e o sentimento que tenho dela; importa ao que posso dizer dessa outra voz, perdida.
Põr
redescoberta da rede de relações que os manteve. É com essas reservas que, na continuação deste livro, situarei o objeto relativamente aos dois marcos cronológicos de 1150-1250 e 1450-1550, cada um deles demarcando a duração num antes, num durante e num depois. Só o pós-isso fica, salvo exceção, fora de meu propósito. 1150-1250: tem início um processo que, a médio prazo, levará a uma dessacralização da sociedade e da imagem que dela se forma; uma zona profana começa a se desenhar, regida por leis particulares: assim o conjunto dos costumes e dos discursos designados pela palavra cortesia" e seus equivalentes em outras línguas. A existência coletiva não aparece mais tão universalmente ritualizada, e, à medida que se irá reduzindo a parte dos ritos, estes tenderão à esclerose. Donde os conflitos familiares e pessoais, legíveis entre as linhas do De vita sua de Guibert de Nogent: as condutas tradicionais, objeto de sanções comunitárias, a honra ou a vergonha que proclama a palavra coletiva, opõem-se aos valores éticos interiorizados, cada vez mais reconhecidos no meio aristocrático... .Assim como disso testemunha, ainda, a "cortesia", ao menos na figura mitificada que transmitiu o discurso poético por ela engendrado: primeiro resultado de uma busca do indivíduo, sujeito de poderes, de responsabilidades e de direitos, iniciada um século mais cedo. Dessa forma, o múltiplo se manifesta no seio da unidade; emerge um tipo de homem pluridimensional; aos olhos deste, de repente nada mais parece banal. A palavra modernitas exprime então o sentimento que se experimenta ante esse espetáculo e a inteligência que dele desejamos ter. Ser "moderno" é julgar homens e coisas em virtude do que eles têm ou do que lhes falta; é conhecer seus atributos a fim de domar-lhes o uso. Ser "antigo" (os dois termos se opõem no jargão escolar da época) é conhecer e julgar em virtude do ser e do nada. Pelo que concerne à poesia, a es,critura parece moderna; a voz, antiga. Ma~z...::modemiza-se" pou; co a pouco: ela atestará um dia, em plena "sociedade do ter", a permanência de uma "sociedade do ser". Onde até então a qualidade determinava as escolhas, a quantidade passa a ser considerada. De fato, fazer um objeto ainda será, durante séculos, fazer um belo objeto; mas já avança a idéia de um trabalho produtivo - que sabemos a quais absurdos, sete ou oito séculos mais tarde, será levada! O próprio tempo se quantifica: fala-se de translatio para indicar as mutações rriensuráveis na história dos impérios do saber; no século XIV se conceberão e construirão, como por Giovanni Dei Dondi em Pádua, máquinas de contar. Onde as oposições se entrecruzavam (*) Grifado no original, referindo-se ao universo cortês do mundo medieval. (N. T.)
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sem escapatória, em branco-preto, sim-não, surgem termos terceiros e mediadores: J. Le Goff o demonstrou, descrevendo em seu Naissance du Purgatoire a intervenção, no cem e da teologia, de um contador divino e, em seguida à situação mediana do loeus purgatorius, uma teatralização dos fins últimos. O dinheiro circula mais e engendra uma rede mais fechada de obrigações, impedimentos e desejos. O negotium se distingue do labor, e estão próximos os tempos em que se admitirá seu mérito, quando não sua nobreza; mas o espírito que aí preside não dispõe ainda de uma linguagem em que se exprimir e deve infiltrar-se em outros discursos, seja o da Igreja, seja o dos poetas da corte. O universo de sentido que se constituiu no Ocidente a partir dos séculos IV e v repousava numa visão simbólica que distinguia mal entre a realidade das coisas e sua iconicidade. O século XII experimentou, esporadicamente, as primeiras dúvidas. Isso era grave e foi sentido pelos renovadores, tal como Abelardo. Propagou-se então, num tempo bastante curto, a voga universal da alegoria, até aquela época uma simples técnica de leitura e de interpretação exegética: desde 1230 se elaborou, senão uma linguagem, pelo menos um tipo de discurso que ocupará até o século xv, através de toda a Europa, uma posição de domínio quase . absoluto no uso protocolar e no poético. Sem dúvida, tal discurso respondia a uma necessidade, num tempo em que parecia cessar toda a congruência entre a realidade cósmica e a linguagem humana. Abriam-se, entretanto, novos espaços culturais, novas necessidades, novos públicos _ cidades, a burguesia em formação, as cortes régias -, motivo de novas tensões. As formas de expressão existentes permaneciam quase inalteradas; mas seu investimento pelo sujeito que se exprime obedece a outras regras: assim, o sentido da palavrinha eu, na poesia, não terá mais em 1250 o mesmo sentido que tinha em ~ Tal é meu primeiro eixo de referência. A função poética da voz se modifica no curso desse período; seu uso perde um pouco - muito pouco - de sua absoluta necessidade anterior; mas sua autoridade não é ainda tocada; Quanto ao segundo eixo, 1450-1550, é cronologicamente mais incerto do que o primeiro: 1400-1500, 1400-50 ou 1470-1520 (como sugeri em meu li~ro sobre os rhetoriqueursf" se justificariam também. Pouco importa. No intervalo entre os arredores de 1250 e essas (*) Rhétoriqueurs ou grands rhétoriqueurs era a denominação dada a poetas da corte, no fim da "Idade Média" francesa, estudados e situados cronologicamente por Paul Zumthor em torno de 1460-1520 e geograficamente nos domínios do rei da França e, especialrnente, nos ducados da Borgonha, Bretanha, Bourbon, Normandia e Poitou. Ver Paul Zumthor, Anthologie des grands rhétoriqueurs, Paris, 1978.1Col. 10/18. (N. T.)
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dllfus, outras linhas de força se desenham: aos olhos e sob as mãos de 1I11l11 minoria crescente de deres, potentados e burgueses, toma forma 11111 universo onde se afirmará um dia a importância determinante do lho, da fuga do tempo e da abertura sobre um futuro imprevisível. O cidente entra passo a passo na idade da escritura, à qual os seriptoria carolíngios não tinham logrado impor um modelo. Daí um lento deslizar em direção ao que, desde 1200-50, um homem de outro planeta teria podido prever: uma predominância a longo prazo do modelo escritural. Consagrarei um capítulo a essa história ..Entre o ínícin.do.século. XII e meados do século xv, poLíoc\.Q.o Ocidente s~oduzi!b em graus ~versos, uma mutacão profunda, ligada à generalização d~ crita nas administrações públicas, que levou a racionalizar e sistemati~ Q uso da memóriq. Donde uma extremamente lenta e dissimulada desvalorização da palavra viva. Recuando e caminhando com passos contados, entramos num mundo, como disse Octavio Paz, em que o destino final das literaturas é produzir obras vivas nas línguas mortas. Nos arredores de 1500, é verdade, nenhuma das culturas européias, desde então distintas, atingiu realmente esse fim. Sem dúvida, a França é a mais próxima dele. Num pequeno livro publicado em 1980, tentei descrever em alguns parágrafos os traços, a meu ver principais, da mutação que nos fins do século xv e início do século.~feta as mentalidades e os costumes europeus. Permito-me remeter àquelas páginas, assim como a meu livro, já citado, sobre os rhétoriqueurs.' Aqui, reterei expressamente um elemento que concerne de maneira específica a meu propósito: a distância que o homem então parece tomar para consigo, seu afastamento do próprio corpo, sua desconfiança, até sua vergonha dos contatos diretos, dos espetáculos não preparados, das manipulações a mão nua - tendência contrariada sem cessar, mas dominante. O uso da voz sofreu nesse CQI:l~ texto o mesmo tipo de atenuação e exige o mesmo tipo de práticas substitutivas que os modos à mesa ou o discurso sobre o sexo. Uma arte que se baseava nas técnicas do encaixe, da combinação, da colagem, sem cuidado de autentificação das partes, recua e cede terreno rapidamente a uma arte nova, que anima uma vontade de singularização.~ dade generalizada da vida pública começa a esmaecer, e o espaço se .Qrivali~Os registros sensoriais, visuais e táteis (que havia séculos mal eram dissociáveis na experiência vivida da maioria) distinguem-se, separamNe: primeiro entre os letrados, depois em toda parte, na medida (causa 011 cfcitoj) da difusão da escrita à proporção que se afastam umas das ollf ras as "artes" e as "ciências". As atividades culturais se diversifi'11111,00 mesmo tempo nas funções que elas preenchem, nos sujeitos que
as operam ou no público a que visam: desenha-se um esboço de uma divisão do trabalho e de uma especialização das tarefas, fatores que são postos em ação contra a plenitude e onipresença da voz. Encolhe-se o campo, até então muito grande, da mobilidade das formas poéticas; instaura-se a idéia de uma fixidez do texto. A mutabilidade, a variação, a incessante retomada dos temas obrigatórios, o remetimento (implícito mesmo) à autoridade de uma tradição não escrita, a predominância não discutida das comunicações vocais figuram, de agora em diante, como meios pobres, algo desprezíveis. Seu uso se marginaliza, logo isolado na zona de nossas "culturas populares". Estas, passados os 1550-1600, conquistaram seu espaço e sua identidade, mas um e outro com contornos ainda frágeis. Eis um fato novo. A "Idade Média" não tinha conhecido nada assim. A confrontação das línguas vulgares com o latim dos deres, dos costumes com a mitologia professada pela Igreja e pela escola, não caminhava sem conflitos; e não se pode negar que a poesia dos trovadores e Minnesãnger, assim como aquela dos romanciers* da primeira geração, revela um forte impulso para o fechamento, o isolamento altivo dos costumes mentais aristocráticos. Tudo o que na cultura comum resiste a esse impulso (e reage ao empreendimento de aculturação inutilmente conduzido, há séculos, por certos meios dirigentes) tende por sua vez a isolar-se, a endurecer-se num esforço, talvez numa tomada confusa de consciência, de uma amplitude até então desconhecida. Mas antes do século xv nada foi decidido: "popul~ (caso se queira usar esseãâj~esigna ainda o que...., se opõe às "ciências", à lettrure-,:..,*refere-se ao que depende de um ho:rizonte comum a todos - sobre o qual se destacam algumas constru-ões abstratas, próprias 'a~ma ínfima minoria de intelectuais. Assim, a grande maioria dos textos cuja vocalidade interrogo é anterior à emergência dessa "cultura popular" distinta - alternadamente desdenhada em outros lugares ou bajulada por seu charme desusado 8 _ consecutiva à fratura social, política e ideológica dos anos 1500. Não é um acaso se a "descoberta" dos textos da Idade Média pelos eruditos românticos coincidiu com aquela que fizeram das "poesias populares" de seu tempo! Daí os medievalistas do século XIX aplicarem a esse conjunto antigo uma classificação em elementos "populares", "eruditos" ou "letrados", na verdade "corteses" ... É verdade que ainda no início deste século vários traços de nossas "culturas populares" provinham formalmente das tradições medievais: o fato é provado por mui-
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(*) Referência aos poetas criadores de um gênero novo, o romance cortês. (N. T.) (**) O equivalente ao inglês literacy,
a capacidade de ler e escrever. (N. T.)
tos dos contos e das canções camponesas na Europa e na América. Mas isso era apenas uma aparência de continuidade: funcionalmente, nada vincula os termos dessas falsas analogias. Os universos semânticos em que eles respectivamente se inscrevem são pouco comparáveis, e, sobre o plano documental, não podemos concluir grande coisa das relações entre um e outro. Tal é o resultado dos esforços prometéicos realizados pelos homens que nos 1500, 1600, tendo aprendido a matematizar o espaço e o tempo, entenderam que iriam dominar a natureza a seu proveito e instalaram os pensamentos e as instituições destinadas a reprimir os "outros", os "pobres", estes com modos de vida arcaicos e com mentalidades determinadas por seus medos. Um novo equilíbrio se instaurava por entre os destroços de um conjunto complexo de pulsões e de costumes sentidos como a manifestação de uma impotência ou de uma recusa. De agora em diante, por três ou quatro séculos, as oposições até então pouco marcadas e flutuantes endureceriam e (para rematar) se congelariam. A oralidade da poesia medieval não pode de modo algum ser entendida com base em tal situação.
O ritmo do tempo ainda não é uniforme em todo lugar. As datas, propositalmente aproximativas, que trago aqui remetem a etapas históricas que ultrapassaram, com maior ou menor rapidez, os territórios do antigo Império do Ocidente e quaisquer outros além do Reno, do Danúbio ou do mar. Mais a leste, produziu-se um deslocamento cronológico; entretanto, a natureza e a sucessão das fases do desenvolvimento permanecem mais ou menos as mesmas: assim, nos domínios russos estende-se dos séculos VIII e IX aos arredores do ano 1000 uma época arcaica de poesias orais de corte; até meados do século XII, segue-se um . processo de cristianização que acompanha a introdução de práticas escriturais; de 1150 a 1350, compilam-se e elaboram-se os textos que possuímos, alimentados pela lembrança das antigas sagas. Mais longe? A delimitação geográfica do campo de estudo não indica nenhuma evidência. Considero, para começar e por princípio, os territórios franceses e occitânicos. Sem dúvida, conheço-os melhor do que conheço outros. Mas talvez pudéssemos também invocar para essa escolha razões menos pessoais. Há várias questões que coloco, em geral, à poesia medieval; o corpus francês, por sua antigüidade, complexidade e amplitude, permite formular respostas mais matizadas, por isso mesmo de mais longa validade. Permanece o fato de que nenhuma visão da "Idade Média" é justificável se não engloba vastos rincões do Ocidente. Insta30
lando-me em meu lugar, esforço-me por abrir as janelas para outras direções. Até onde estender o olhar sem arriscar imprevisíveis distorções de perspectiva? G. Duby recentemente limitava à Europa ocidental a aplicação do termo "Idade Média"; P. Chaunu estendia um pouco para o sul e o noroeste, sobre um território três vezes maior do que a França de hoje, povoado no século XlII por uns 40 milhões de seres humanos, mas no século xv por não mais que uns 20 milhões." Gourevitch faz incluir a Escandinávia com a Islândia, deixando fronteiras indecisas no leste e no sul. Donde a possibilidade de recorrer (com prudência, quando se impõe confirmar as informações mais diretas) ao argumento comparativo: por mais externo que ele permaneça, não lhe falta, em sincronia, nenhuma verossimilhança. O que aprendemos nos antigos bardos escandinavos, os escaldos, não pode ser totalmente estranho aos costumes reinantes entre o Elba e o Reno ou entre o Loire e o Sena. Aquele universo ignorava, ainda que estivesse num grande espaço, as diferenças absolutas: são testemunhas os viajantes, de Robert de Clari a Marco Polo, por todo o lado e sempre atrás da "maravilha". Para eles, prisioneiros da imensidão eurasiática, nada havia de comparável à estranheza perfeita daquilo que descobriram nossos navegadores a partir do século xv. No bojo desses largos limites, o ar oferecido à ressonância das vozes medievais é homogêneo, apesar das diferenças, crescentes com a distância, que se constatam no regime deles ou a seu alcance. No que eu chamaria "médio espaço", as semelhanças predominam. Quanto a mim, tomo aqui por núcleo territorial o que foi o império carolíngio, com prolongamentos na península Ibérica, na Itália central e meridional, na Inglaterra central e sudeste. Além, os países celtas, eslavos, nórdicos, os Bálcãs e Bizâncio desenham zonas em degradê nas quais dominam outros fatores de cultura, cada vez mais poderosamente à medida que nos afastamos. É assim que levarei em conta, com o risco de trabalhar em segunda mão, as regiões ibéricas, italianas e alemãs (que chamo, para simplificar, de Ocidente), sem me impedir algumas muito breves excursões para além delas. Essa postura refere-se implicitamente à unidade orgânica de uma cultura, assinalando sua extrema diversidade: sugere (sob benefício de inventário) um dos níveis com relação aos quais podemos tomar como válida, de um ponto a outro da Europa, a idéia de uma uníversalidade "medieval". Desta, o suporte e a ligação não se reduzem (como sugere uma opinião errônea ou falsa) ao uso da língua latina e das tradições escolares que ela veicula. As contribuições gerrnânicas e nórdicas (e, numa medida menor, célticas) constituem um componente essencial e geral, indiscernivelmente misturado ao elemento
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mediterrâneo - este em constante fundição entre Bizâncio e o Ocidente. Parece-me que a importância primordial do papel atribuído à voz tem muito mais que ver com o primeiro do que com o último. Por isso muitas questões (antes que as exigências filológicas as especifiquem) merecem ser colocadas num nível bastante geral. Assim, todo estudo das canções de gesta francesas ganha, ao situar-se na perspectiva da epopéia. O problema colocado para os especialistas do francês pela pressuposta oralidade dessas canções diz respeito, às vezes, há muito tempo ainda, aos germanistas, anglicistas e hispanistas, em seu domínio respectivo; as questões relativas às contigüidades e adjacências da Iransmissão vocal da epopéia são, para esses pesquisadores, freqüentemente mais urgentes e como que mais evidentes, em conseqüência dos termos particulares nos quais se define a situação de diglossia nas zonas culturais consideradas. Como a natureza dos fatos, ainda que comparável, não é idêntica em todas as partes do Ocidente, puderam emergir de tal busca setorial certas idéias, que em outro lugar terão talvez o ofício inesperado de conector. As raízes profundas que, aquém de formas manifestas bastante diversas, unem aparentemente o fato épico de uma a outra parte da Aqüitânia (na França do norte; em Castela e em Aragão) não podem deixar de impor, ao Cid e à Chanson de Guillaume, um número elevado de casos comuns, sujeitos aos mesmos procedimentos. Além dessa relação, decerto privilegiada, foi através de todo o Ocidente que se constituiu um discurso épico do qual regimes locais permaneceram bastante próximos durante séculos; do Elba ao Guadalquivir ... ou mais além, se seguirmos A. Galmés de Fuentes. Os germanistas acumularam assim uma soma considerável de observações e reflexões, das quais seria danoso isolar integralmente as nossas: concernem sobretudo às modalidades de transmissão e alteração dos textos; às relações entre a escritura e a tradição oral, entre o mito, a lenda, a epopéia; entre esta e o universo do cantor. Do Kudrun (a propósito do qual foi pela primeira vez, por volta de 1935, formada a hipótese de uma especificidade lingüística da epopéia oral) ao texto-amalgama dos Nibelungen, passando por uma gesta borgonhesa do século v sobre o modo cio romance francês no século XII, a lista dos problemas abordados seria longa. Há igual abertura do lado anglo-saxônico, onde os estudos sobre o Beowulf têm gradualmente varrido quase todo o horizonte da antiga epopéia nórdica e de sua tradição.
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I O CONTEXTO
2 O ESPAÇO ORAL
Os índices de oralidade. Dizer e escutar. Antes da escrita. A rede das tradições. Admitir que um texto, num momento qualquer de sua existência, tenha sido oral é tomar consciência de um fato histórico que não se confunde com a situação de que subsiste a marca escrita, e que jamais aparecerá (no sentido próprio da expressão) "a nossos olhos". Então, trata-se para nós de tentar ver a outra face desse texto-espelho, de raspar, ao menos, um pouco o estanho. Lá atrás, além das evidências de nosso presente e da racionalidade de nossos métodos, há este resíduo: o múltiplo sem origem unificadora nem fim totalizante, a "discórdia" de que fala Michel Serres e cujo conhecimento pertence ao ouvido. É aí, e aí somente, que se situa para nós a oralidade de nossa "literatura medieval": vocalidade-resíduo de nossas filologias, indócil a nossos sistemas de conceitualização. Só a evocaremos como figura ... De resto, acontece-nos freqüentemente perceber no texto o rumor, vibrante ou confuso, de um discurso que fala da própria voz que o carrega. Todo texto permanece nisso incomparável e exige uma escuta singular: comporta seus próprios índices de oralidade, de nitidez variável e, às vezes, é verdade (mas raramente), nula. Lembro aqui, brevemente, alguns fatos conhecidos, para recolocarnos em perspectiva. Por "índice de ora:lidade" entendo tudo o que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação - quer dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma ou mais vezes, de um estado virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de certo número de indivíduos. O índice adquire valor de prova indiscutível quando consiste numa notação musical, duplicando as fra-
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ses do texto sobre o manuscrito. Em todos os outros casos, ele marca uma probabilidade, que o medievalista mensura, em geral, pela bitola de seus preconceitos. Os textos musicalmente notados, muito numerosos e repartidos de maneira bastante irregular no curso do tempo - do século x ao xv -, formam juntos, em comparação a todos os outros, um contexto significativo que conota fortemente uma situação global, porque manifesta a existência de uma ligação habitual entre a poesia e a voz. Nas compilações feitas a partir do fim do século XIII, o aperfeiçoamento das grafias aumenta bastante a freqüência desse índice. Contam-se aos milhares os textos assim marcados; sobretudo os poemas litúrgicos (em particular, o setor quase inteiro do drama eclesiástico) e as canções de trovadores, trouvéres" ou Minnesiinger. Do mesmo modo, uns cinqüenta chansonniers dos séculos XIII, XIV e xv ; graças aos quais nos chegou essa poesia de língua francesa ou occitânica, não contêm menos (incluídas as variantes) que 4350 melodias relativas a cerca de 1700 canções, elas próprias comportando inúmeras variantes textuais. Em cifras arredondadas, eis os dados: - número de poetas em questão: trovadores 450, trouvêres duzentos; - número de canções conservadas: trovadores 2500, trouvéres 2 mil; - conservadas com melodia: trovadores 250, trouvêres 1500. Os manuscritos alemães são menos generosos: para 150 poetas, possuímos apenas duzentas melodias de Minnesânger, das quais menos de metade pertence ao grande canto cortês.** A ambigüidade começa quando a notação acompanha não o próprio texto, mas uma citação que é feita em outro lugar. Assim, o poema heróico-cômico Audigier não comporta, no único manuscrito que nos foi transmitido por inteiro, nenhuma notação. Em contra partida, o verso 321, pronunciado por uma personagem do Jeu de Robin et Marion de Adam de Ia Halle, é encimado, sobre dois manuscritos, por uma linha de notas ... cuja interpretação, de resto, levantou mais problemas do que resolveu. Além do Audigier, tentou-se obter informações a respeito da música das canções de gesta, gênero que esse texto parodia mas que em nenhum documento é musicalmente notado. Mas freqüentemente se assinala aí outro tipo de índice, alusão explícita ao exercício vocal que constitui a "publicação" do texto no momento em que este se designa a si mesmo como canção. É realmente pouco provável que esse termo tenha podido referir-se a obras oferecidas apenas a leitura. (*) Poetas ou jograis do norte da França. (N. T.) (**) A expressão refere-se ao conjunto de textos que traz o obstáculo e o segredo como fundamentos da cortesia feudal. (N. T.)
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De fato, não saberíamos afastar completamente a suspeita de que uma inércia de vocabulário tenha mantido (para além de una época primitiva) canção como um simples termo técnico, o qual evoca os gêneros que em seguida caíram no domínio da escritura. Nada, todavia, autoriza a priori a esvaziar de seus sentidos esses or commence chanson, orrés chanson ("vocês vão escutar uma canção") e fórmulas afins, freqüentes em nossas epopéias e, aliás, não ignoradas pelos outros gêneros que exploram, por imitação ou ironia, o modelo "épico". Fiz um levantamento nos prólogos e epílogos de 32 canções de gesta. A palavra canção aparece 47 vezes com função auti>-referencial; por 25 vezes, epítetos laudativos quase publicitários a accmpanham: agradável, maravilhosa, gloriosa e, sobretudo, boa canção. Essa última expressão poderia provir de uma espécie de jargão cavalheiresco: o combatente tomado pela fadiga ou desânimo exorta-se a agir de modo que não seja cantada sobre ele uma canção ruim ... Assim se dá por três vezes no Roland; ou na Chronique de Jordan Fantosrne, composta por volta de 1175, em forma, é verdade, de canção de gesta.' Tais expressões - não menos que a canção de gesta que aparece aqui e acolá em fins do século XII - referem-se ao que, evidentemente, é percebido como um conjunto de discursos definidos pela singularidade da arte vocal que o implica. Jean Bodel confirma em outros termos esse testemunho quando, no prólogo de sua Chanson des saisnes, distingue na arte de um recitador o que diz respeito ao verso e ao dito e o que diz respeito ao canto - desdobramento freqüente nos textos alemães, que se referem a si próprios como Wort und Wise ("palavra e melodia'tj.f Fica-nos uma dúvida - que a musicologia não está em condição de esclarecer completamente, apesar das hipóteses que adiantou desde o início deste século. Pelo menos, o De musica do mestre francês Jean de Grouchy, escrito por volta de 1290, parece trazer a prova de que os usuários podiam identificar o gênero épico com sua especificidade vocal: cantus gestualis? Quaisquer que sejam os problemas musicológicos que crie a interpretação desse texto, ao menos parece assegurada a existência de um tipo de melodia particular, semelhante às das canções de santos. O testemunho de Jean de Grouchy é corroborado na mesma época pelo do Penitentiale de Thomas of Cabham;" no entanto, subsistem dúvidas que, por um lado, referem-se' à natureza do documento, pouco explícito, e de uma língua bastante ambígua, e, por outro lado, a sua data, porque o texto é posterior à grande época das canções de gesta e contemporâneo da constituição das primeiras compilações de narrativas épicas, como o ci;lo de Guillaume do manuscrito BN fr. 1448... 37
Seria bom se o testemunho de todos os nossos textos tivesse a clareza do da velha Sainte Foy pirenaica de meados do século XI. Nas estâncias 2 e 3 desse poema, um elocutor, exprimindo-se na primeira pessoa ("o autor"), apresenta o texto de maneira bem explícita, a fim de definir sua natureza: o assunto, tomado de empréstimo à tradição latina, mas muito conhecido desde Agen até Aragão, provém de um texto que escutei ler por pessoas instruídas; o poema que eu vou lhes comunicar o será numa língua facilmente inteligível e num estilo usual em terra francesa. Esse poema, por duas vezes chamado canczon ("canção"), comporta um som ("melodia") regulado sobre o "primeiro tom", isto é, segundo a interpretação de Alfaric, em salmodia alternada - o que parece confirmar, pouco depois, o plural de cui cantam esta canczon (" ... sobre quem cantamos essa canção"). Enfim, o canto é acompanhado de uma dança, sem dúvida de tipo processional. Na mesma época, o canto sobre os milagres de Cristo, encomenda-, do pelo bispo de Bamberg aos clérigos Ezzo e Willie, expõe em sua primeira estrofe a maneira pela qual colaboraram (um deles compôs o texto, e o outro, a melodia) e descreve o poderoso efeito que a obra exercia sobre quem a escutava. A clareza de tais testemunhos permitiu a vários pesquisadores extrapolar seus dados e aplicá-l os a todo o gênero das "canções de santos" atestado de fins do século IX a meados do século XII em várias regiões da França e da alta Alemanha - conclusão confirmada pelo prólogo que, por volta de 1120, acrescentou o rubricador do manuscrito de Hildsheim à bela Vie de saint Alexis normanda (contemporânea de Sainte Foy). Redigido em prosa ritmada e rimada, ele apresenta, elogiando-a, essa "canção espiritual"; pois suas primeiras palavras reproduzem a fórmula de abertura mais freqüente das canções de gesta: "aqui começa a agradável canção" ... Esse prólogo não funciona, em relação ao poema, muito diferentemente dos primeiros versos do Guillaume de Dole de Jean Renart pouco depois de 1200, anunciando de chofre que, para fixá-Ios na memória de seus ouvintes, recheou sua narrativa com diversas canções dotadas de sua melodia. Jean Renart inaugurava uma técnica que teve sucesso entre os romanciers franceses e alguns alemães, nos séculos XIII e XIV. Por uma espécie de figura em cascata, a narrativa, antes de abrir um trecho lírico, indica, a fim de confirmar a sutura, que é cantada por tal personagem: a frase emprega termos referindo-se ao próprio canto, ou à melodia somente. Às vezes é sublinhada a vocalidade do efeito: tal dama do Guil/aume de Dole (vv. 309-11) tem a voz "alta, pura e clara". Quando essas intervenções musicais se repetem várias dezenas de vezes, é o caráter vocal da obra inteira que é assim exaltado: 47 vezes no Guillaume de Dole, 58 38
vezes no Frauendienst de Ulrich von Lichtenstein, 79 vezes no Méliador de Froissart, já em torno de 1380! Às vezes, o texto libera outros índices de oralidade, mais diretos: assim, para O. Sayce, as alusões que fazem certos poemas alemães no século XIII a um acompanhamento instrumental; mesmo o título, inexplicável, de várias peças da "Compilação de Cambridge" (por volta do ano 1000), que poderia significar "sobre a ária de": Modus Liebinc, Modus Florum e o resto.'
À luz desses textos se esclarecem aqueles mais numerosos ainda, em todo gênero, que para se designarem no movimento de sua "publicação" recorrem a algum verbo de palavra (em francês, dire, par/er, conter), freqüentemente completado, do ponto de vista da recepção, por um ouir ou écouter. Pierre Gallais, há vinte anos, realçando tais rodeios no repertório de 370 textos franceses dos anos 1150-1250, achava-os numa proporção tal que só podia interpretá-l os como um traço pertinente do discurso poético dessa época. Fórmulas do tipo eu quero dizer, eu digo, eu direi encontram-se, segundo seus cálculos, em 40070 dos tais, 25% das canções de gesta, 20% dos romances e dosfabliaux, 15% das vidas de santos." Os levantamentos ulteriores, como o de Mõlk, confirmam-no. Menéndez Pidal antigamente realçara uma quinzena de fórmulas desse tipo só no Cantar de mio Cid. No lado alemão, contei várias dezenas no Tristan de Gottfried e no de Eilhart. Em mais de metade desses textos, dire, sagen, dicere ou seus equivalentes, segundo as línguas, aparecem em correlação com ouir. hõren, audire (ou, como em Gottfried, vv. 1854-8, com uma alusão aos ouvidos do público!): devia haver fortes razões, tiradas do próprio texto, para atribuir a esses verbos outro valor que não o mais comum. O emprego da dupla dizer-ouvir tem por função manifesta promover (mesmo ficticiamente) o texto ao estatuto do falante e de designar sua comunicação como uma situação de discurso in praesentia. Certos romanciers, como Chrétien de Troyes no início do Yvain, ou Eilhart von Oberg por várias vezes, não opõem em vão ou i." hôren (pelo ouvido) e entendre, vernehmen ou merken (pelo espírito). Às vezes, o texto até parece empregar dizer para significar, por metonímia ou litotes, "cantar"; 7 nos cinco dos 24 prólogos de Môlk, dire e chanter alternam-se ou se adicionam em figura de acumulação: "Esta história", segundo Adenet le Roi, nasfinfances d'Ogier, verso 52, "é graciosa de dizer e de cantar". Nas oito outras canções, dire emprega-se sozinho; o resto só tem chanter. Esses fatos de estilo não autorizam a concluir pela sinonímia dos dois termos. Pelo menos impedem de inter-
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pretar dire sem referência a um ato vocal, provocando o ouvido. U. Mehler, recentemente, analisando as rubricas dos dramas litúrgicos, mostrava a ambigüidade de dicere e cantare, mais ou menos intercambiáveis, à falta de uma definição precisa do "canto". Nenhuma dúvida de que se dava o mesmo nas línguas vulgares. Uma figura de expolitio mais ou menos estereotipada, tão freqüente no latim como nas línguas vulgares, atesta entre todos esses termos a atenuação dos contornos semânticos. Ela reveste formas diversas, redutíveis a uma ou outra das duas séries, seja a cumulativa, seja a alternativa: dizer e/ou escrever, ouvir e/ou ler. A forma alternativa que parece predominar nos textos eclesiásticos da época mais distante refere-se, distinguindo-os, aos dois modos possíveis de recepção; o autor pretende designar por esse meio a universalidade do público a que visa. Assim, em Beda, Historia ecclesiastica, por várias vezes: religiosus ac pius auditor sive lector... ("o ouvinte ou leitor piedoso e virtuoso")." Tornou-se, parece, um lugar-comum do discuro poético ulterior: Pour les amoureus esjotr qui les vorront tire ou oyr ("Para alegrar os namorados que o quererão ler ou ouvir")," escreve o autor do romance do Chastelain de Couci no fim do século XIII, enquanto Hugo von Trimberg, seu contemporâneo, dirige-se a quem quererá lesen oder hõren lesen ("ler ou escutar ler") seu Renner. Por volta de 1465 ainda, o austríaco Michel Beheim, em outros termos, apresenta sua crônica como própria a dois usos: pode-se es lesen aIs ainem spruch oder singen als ain liet ("lê-Ia como discuro ou cantá-Ia como cançãO").1OR. Crosby cita vários exemplos ingleses dos séculos XIV e xv. Em compensação, a fórmula cumulativa parece provocar um problema, porque liga percepções aparentemente (para nós) diferentes. De fato, audire et legere pode ser entendido como referência redundante a um ato de audição. A variante, largamente testemunhada, audire et videre, voir et écouter, hõren und sehen parece acusar a oposição dos registros sensoriais; na realidade, ela só faz remeter à dupla existência de toda escrita: vemos os grafismos, mas escutamos sua mensagem, pronunciada por algum especialista ... daqueles que, segundo o Poême moral (em torno de 1200), en livre voient et l'escriture entendent ("distinguem o que há no livro e entendem a escritura"), enquanto os leigos pou sevent et en livre ne voient ("são ignorantes e não sabem distinguir o que está escrito num livro"). Três quartos de século mais tarde, para o autor do romance de Palamêde as duas percepções permanecem ainda distintas: li bon qui verront cest mien livre et escouteront les beaux
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'ir
dis ... ("pessoas de bem que verão meu livro e escutarão as belas palavras"), Entrementes, tornou-se a fórmula inicial das cartas francesas o "Àqueles que verão e ouvirão ...". Aucuns lira ou orra lire ches vers ("Qualquer um lerá ou escutará ler estes versos"), segundo Reclus de Molliens no início do século XIII, ecoando William of Malmesbury: aut ipsi legere aut legentes possitis audire (" ...que possam ler vocês mesmos, ou escutar aqueles que lêem")." Quaisquer que sejam o conteúdo e a função do texto, somos assim, de todo o lado e de toda a maneira, remetidos à modalidade vocal-auditiva de sua comunicação. Crosby realça as ocorrências desse topos na Inglaterra até o tempo de Lydgate; Scholz o indicava na Alemanha até o século xv. Em todas as línguas, os termos que remetem às noções, para nós distintas, de "ler", "dizer" e "cantar" constituíram assim, por gerações, um campo lexical movediço, cujo único traço comum permanente era a denotação de uma oralidade: Asser of Sherborne, em suas Gesta Alfredi, por volta de 900, subsumia todas as nuances no verbo recitare. 12 Existem outros tantos apelos aos valores vocais, que emanam da própria textura do discurso poético. Às vezes índices externos os confirmam, extratos de documentos anedóticos, relacionando-se a um ou vários textos e evocando-os em termos tais que o caráter vocal de sua' 'publicação" se destaca. Citarei como exemplo, ilustre pela diversidade dos julgamentos que suscitou, a arcaica Chanson du roi Clothaire (mais freqüentemente dita de saint Faron), obtida em meados do século IX por Hildegaire de Meaux, na Vita sancti Faronis; nós a consideraremos alternativamente o registro de uma cantilena popular, uma notação ulterior aproximativa, um pastiche em latim macarrônico ou uma imitação de Hildegaire! Este, antes de citar os quatro primeiros versos e os quatro últimos, designa-a como "um canto público à moda camponesa" (ou "em linguagem camponesa"?) do qual se cantavam as palavras enquanto as mulheres dançavam batendo as mãos (carmenpublicumjuxta rusticitatem per omnium paene volitabat ora ita canentium, feminaeque choros inde plaudendo componebant). Dois dos cinco manuscritos dão versões mais breves e ligeiramente diferentes; em todo o lugar, pelo menos, tratava-se de um carmen ou de uma cantilena." A história da Idade Média européia é semeada de documentos dessa espécie. A crônica do espanhol Lucas de Tuy, no século XIII, reproduz três versos de uma canção popular castelhana que teria circulado a respeito de Almansur, o herói andaluz, por volta do ano 1000; um manuscrito histórico inglês, descrito por Ker em 1957, cita os quatro primeiros versos de uma canção que teria composto para seus guerreiros o rei dinamarquês Knut, morto em 1035. Uma crônica latina que conta a história de Treviso, no
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fim do século XII, conservou-nos quatro versos em dialeto local de uma canção épica, improvisada após uma vitória ocorrida em 1196.14 A "anedota", com mais freqüência, remete globalmente a um conj unto de textos, dos quais só alguns são conhecidos. Donde a incerteza, mas também a importância (para a história geral), da aposta. Assim se dá com um texto famoso da Translatio de s. Wulfram, que foi escrita por um monge de Fontenelle e indica, entre os milagres de seu herói, a cura em 1053 de certo Thibaut, cônego de Vernon: Hic quippe est ille Tebaldus ... (''Aquele mesmo, bem conhecido, que adaptou, com eloqüência, do latim em língua vulgar, a história de numerosos santos, entre os quais s. Wandrille, e Ihes compôs belas canções em ritmos vibrantes,")" Esse texto foi freqüentemente reexaminado, depois que Gaston Paris o interpretou como uma alusão ao autor do Saint Alexis, se não a esse poema mesmo. De fato, a Translatio é apenas um testemunho particularmente explícito entre os que atestam a função vocal das' 'canções de santos". De maneira mais sucinta, mas em termos semelhantes, o autor da Vila do bispo Altmann, por volta de 1130, evoca o clérigo Ezzo compondo em alemão sua Cantilena de miracu/is Christi," Um documento de peso (mas um pouco equívoco) que Alfaric vertia no dossiê da Chanson de sainte Foy confirma a existência e as modalidades desta poesia muito antiga: o Liber miraculorum sanctae Fidis, relatório final de uma pesquisa, realizada a partir de 1010 por Bernard d'Angers, sobre a veneração popular de que era objeto a santa criança Foy d'Agen - obra crítica, desejosa de reabilitar as tradições do vulgar, passando-as pelo crivo de seus argumenta. Pois Bernard indica que, em virtude de um "antigo" costume (evidentemente condenável a seus olhos), os peregrinos que assistiam aos ofícios da noite, por ocasião da vigília dos santos na igreja de Conques, acompanhavam com suas "cantilenas rústicas" a salmódia dos monges. Certo ano, o abade, exasperado, fez fechar a igreja a chave na noite da Sainte Foy. Por milagre, as portas abriram-se por si mesmas à multidão - prova, concluiu Bernard, de que Deus, em sua misericórdia, ama as canções, mesmo que sejam em língua popular; aceitemo-Ia então: innocens cantilena, /icet rustica, tolerari potest (' 'podemos tolerar uma canção inocente, mesmo se é rústica'ry." O que entendemos pela "rusticidade" desses cantos? A língua vulgar? Ou alguma melodia de caráter popular? Ou, ainda, algum modo particular de declamação? Tudo isso, sem dúvida: as "canções de santo" subsistentes representariam a recuperação desses traços pela Igreja, dentro da vasta ação dramática que era sua liturgia. A antigüidade de seus documentos, tanto quanto sua homogeneidade, confere-Ihes peso histórico considerável, pois era no seio da litur-
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gia, ou em sua zona de influência, que se elaborava, nos séculos XI e XII, a maioria dos gêneros poéticos recolhidos pelos copistas dos séculos XIII e XIV - tenha a liturgia fornecido o primeiro modelo ou tenha se conformado a modelos poéticos mais antigos, aos quais soube emprestar sua plena eficácia. Essas ligações estreitas e complexas, não sem equívocos, vinculam mais ou menos diretamente às "canções de santo" as canções de gesta francesas; ao canto eclesiástico a poesia dos trovadores e de seus imitadores; à homilética o que se tornará "teatro"; ao discurso pastoral, por intermédio dos exempla, vários gêneros narrativos ...
Quando o índice de oralidade depende de algum caráter próprio de um texto, colocam-se delicados problemas de interpretação. Quando se funda sobre documentos exteriores ao texto, surgem problemas de reconstituição. O intento difere: a interpretação opera sobre o particular; a reconstituição, com mais freqüência, sobre tendências gerais ou esquemas abstratos. Assim se dá nas pesquisas da tradição manuscrita de um texto, que concluem pela influência de uma transmissão oral, no momento em que as variantes de uma cópia a outra atingem certa amplitude. Para aqueles mesmos que refutam a idéia de uma existência oral da Chanson de Roland, os manuscritos - uma dezena - que nos foram conservados atestam a existência de ao menos duas tradições: pode-se admitir entre elas uma margem de manobra propícia às iniciativas dos recitadores, isto é, ao desdobramento da sua arte vocal. Aqui, mais que de índice, falarei de presunção de oralidade. Em princípio, essa presunção deveria funcionar em proveito da quase totalidade dos textos de língua românica cuja composição foi anterior ao século XIII. Mas só possuímos um número irrisório de textos poéticos nas cópias executadas antes de 1200: em occitânico, escribas do século XII nos conseguiram a Sainte Foy, o poema sobre Boécio e alguns versos de uso litúrgico; do século XII, dois ou três textos escolares; depois, mais nada até os arredores de 1250; em francês, afora a Eulalie do século IX, o manuscrito de Hildesheim do Alexis, o de Oxford do Roland, talvez o texto mais antigo do Saint Brandam, todos os três do século XII, permanecem quase os únicos; nem o italiano nem as línguas ibéricas são mais bem contemplados. Em compensação, o essencial da poesia anglo-saxônica arcaica, com trinta textos muito diversos, nos foi conservado em quatro manuscritos, todos do século X; pias, para além do estabelecimento do regime normando, abre-se um vazio documental completo: nenhum manuscrito da poesia inglesa antes de 1300. Tais desvios cronológicos são um problema. Assim, a canção v de Jaufré Ru-
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dei (tomo esse exemplo ao acaso) pode remontar, por razões externas, 11 meados do século XII, talvez ao redor de 1145; mas da quinzena de manuscritos que nos conservaram as versões, às vezes bastante diferenrcs umas das outras, nenhum é seguramente anterior a 1250, e a maioria remonta ao fim do século XIII ou XIV. R. T. Pickens, a quem devemos a melhor edição desse trovador, expõe com muitos pormenores que o estudo de tal obra implica da parte do leitor uma ficção histórica, reconhecida ou não. Pela impotência, eu acrescentaria, de conceitualizar a história própria da voz humana. A compilação de máximas e versos sapienciais compostos na baixa Antigüidade que circulou durante séculos sob o título Disticha Catonis, copiada, traduzida, adaptada em todas as línguas, terminou por não ser mais do que constelação movediça, à qual a oralidade dava o dinamismo. Sabemos que a aprendiam de cor nas escolas ... De todos os modos, as tradições manuscritas são assim perturbadas, e quase sempre as certezas que delas se esperava são apenas fracas possibilidades. Donde, em casos extremos, o recurso a hipóteses de manuscritos perdidos - outro mito, talvez? Certos fatos, é verdade, são perturbadores. Todos os textos em versos que, em francês e alemão, nos transmitiram a "legenda" de Tristão são fragmentários, ou muito curtos e episódicos, ou então apresentam uma tradição manuscrita demasiado confusa para que seja possível ver claramente as relações que os unem. É verdade, como escrevia G. F. Folena, que o "acaso" que preside à conservação dos textos é geralmente só um aspecto de uma "necessidade" maior ... da qual não podem sozinhas dar conta a prática da escritura, suas implicações e suas falhas. A situação crítica não é muito diferente quando, da existência de formas modernas observadas em contexto de oralidade, infere-se a possibilidade, senão a probabilidade, de uma tradição longa, mais ou menos independente dos textos escritos. Assim, as Cintece bãtrinesti compiladas na Romênia moderna atestariam a antigüidade das canções heróicas dessa parte dos Bálcãs e a longa duração de sua existência puramente oral. Assim, ainda, o estudo de C. Laforte sobre as canções de Quebec em forma de laisses* concluiu por notável permanência desse tipo rítmico e narrativo, à margem das tradições escritas. Pois o exame temático e textual permite fazer remontar aos séculos XIII, XIV e XV catorze das 355 canções registradas, proporção fraca, mas não insignificante; comparável àquela que forneceu o estudo crítico e comparativo das trezentas baladas inglesas e escocesas tiradas por H. Sargent e (*) A seqüência pareada da canção de gesta. (N. T.)
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G. Kittredge da velha compilação de Child: uma dezena (ou seja, 3,5070) remonta aos mesmos séculos. Quantas outras são assim tão ou mais antigas sem que o saibamos? O que foi feito, por longas gerações, talvez, dessas "rimas rurais" de que falam com desprezo os rhétoriqueurs do século XV, ou das canções de ofício alemãs que à mesma época nota o copista do Kõnigsteiner Liederbuctü'í . A hipótese explicativa articula-se mais facilmente entre dois textos ou estados textuais afastados na duração, mas entre os quais se manifesta uma semelhança que é parcial e, ao mesmo tempo, bastante forte. É assim que, com base nas epopéias franco-italianas do fim do século XIII, muitos italianistas, seguindo E. Lévi, admitiram urna tradição oral, vinda da França na esteira dos cruzados, antes da importação dos primeiros manuscritos; a essa tradição se ligariam os cantari heróicos dos cantadores toscanos dos séculos XIV e xv. Mais do que temáticas, as semelhanças mais convincentes são perceptíveis graças a certas imposições formais ou a tiques de composição, até de vocabulário; pois, a etnologia o atesta, estão justamente aí os elementos mais estáveis nas tradições orais - o que depende do funcionamento da memória vocal (corporal e emotiva) que as mantém. Foi por aí que se pôde demarcar, na poesia lírica cortês na França e na Alemanha, a presença latente de uma poesia diferente, talvez de origem muito mais antiga, mas da qual alguns exemplos só serão compilados por escrito na época moderna, após cinco, seis ou oito séculos de existência apenas oral. Mais discutivelmente, foram a firmeza e a perfeição formal das canções de Guilherme IX ou de Heinrich von Veldeke que levaram os medievalistas a supor para o modelo poético cortês antecedentes mantidos, talvez, por muito tempo sob um regime de pura oralidade. Em todos os raciocínios dessa natureza, fundados na constatação de uma ruptura de continuidade textual, o argumento só pode ter por objeto um conjunto. Aliás, a idéia de pré-história que a hipótese implica tem sentido apenas global. O que denominaríamos a "pré-história" do Roland de Oxford abrange - em virtude da própria natureza dos fatos considerados - todos os elementos de um vasto ciclo no qual se dissolve a identidade dos textos subsistentes. A hipótese é inverificável, já que as vozes passadas se calaram; o que funda sua validade é sua fecundidade, sua capacidade de captar o particular no meio do' geral. Probabilidades de ordem diversa a sustentam, com uma força persuasiva muito desigual. Resultam às vezes da descoberta de um refugo textual isolado, através do qual se pensa decifrar os traços de uma situação em que tudo era confiado às eventualidades das transmissões vocais. Como no "Fragmento de Haia", por volta do ano 1000, com relação 45
à gosta de Guillaume: versão em prosa de um poema latino, resultado talvez de um exercício escolar arcaico. Mas esse poema latino, ele próprio, O que era? Adaptava uma epopéia de língua vulgar muito antiga, prcdecessora do ciclo confirmado pelos manuscritos do século XIII?OU, ainda, como na "Nota emilianense", que remonta mais ou menos a 1060, descoberta anteriormente numa margem de um manuscrito de San Millan de Ia Cogolla, na Rioja espanhola, curto relato no qual se concorda em ver o resumo de uma Chanson de Roland primitiva. O século X nos legou um poema latino sobre o herói Waltharius, composto na abadia de Sankt Gallen, acerca do qual se pode admitir que imite ou pastiche canções épicas que não foram escritas na Alemanha meridional... No fim do século XIX, a necessidade de interpretar situações tão equívocas produziu na França a teoria das "cantilenas", que foi inspirada pela das rapsódias homéricas e à qual Gaston Paris ligou seu nome: o texto transmitido pelo copista era considerado a resultante de uma pluralidade de poemas curtos, com transmissão puramente oral. Essa teoria influenciou duradouramente não só muitas pesquisas sobre a Idade Média, mas também (por intermédio de C. M. Bowra?) os trabalhos de certos etnólogos até hoje. Em particular, a idéia da anterioridade "natural" da "balada" em relação à "epopéia" não se fundamenta em nada sólido. A história do Romancero ibérico forneceu suficientes argumentos para arruiná-Ia. S. G. Armistead colocou recentemente as coisas em dia. Tanto a reflexão histórica quanto as nossas pesquisas mais recentes nos convencem hoje de que, até prova em contrário, o complexo é muitíssimo mais provável do que o simples, e o uno é muitíssimo menos provável do que o diverso. Por isso, talvez, às vezes se desprende de suposições acumuladas uma força persuasiva capaz de assegurar a unanimidade da opinião. Exemplos privilegiados: a pré-história das sagas islandesas e a poesia escáldica antiga (os eddas), assim como, na outra extremidade do Ocidente, as canções de gesta espanholas. As sagas, inspiradas por diversos acontecimentos ligados à colonização da Islândia entre 930 e 1030, foram vertidas por escrito no século XIII: em qualquer forma oral que Fosse (talvez dos poemas genealógicos), tinham então duzentos ou trezentos anos de idade. Quanto aos eddas, chegaram-nos sob forma de citações (centenas), na Arte poética do letrado Snorri Sturluson, ao redor de 1220. O próprio uso que ele fez e o parentesco de sua arte com a poesia aliterativa anglo-saxônica, assim como (em parte) seu conteúdo, permitem remontar ao século X a tradição oral. Da Espanha, afora () Cid, composto no século XII, e o Ferndn Gonzâlez, no século XIII, nenhum poema épico antigo nos chegou. Todavia, a existência de uma tra-
dição de canções de gesta conservada, no conjunto, em regime vocal puro, é provada por algumas alusões que a isso faz uma Chronica Gothorum do século XII e, sobretudo, pelo conjunto de citações, resumos e referências que fornecem a Crônica general redigi da em 1289 sob a ordem de Afonso X e, depois, sua segunda redação, 1344. Reconstituiu-se hipoteticamente uma dessas canções, os Infantes de Lara. Duas outras, consagradas ao rei godo Rodrigo e a Bernardo deI Carpio, inspiraram em seguida todo um ciclo de romances. Por sua vez, esses poemas, que foram progressivamente compilados no Romancero pelos amadores dos séculos XVIe XVII,mas cuja existência é claramente confirmada no século xv, constituíram como que uma segunda onda épica, cujas tradição oral e fertilidade se mantiveram em todo o mundo hispânico até o século XIX, em algumas regiões até nossos dias. Aqui, recorreríamos também aos ramos franceses e germânicos do Renart, tal como aparecem ao redor de 1170-1200 em nosso horizonte, pois não há dúvida de que formas orais os precederam. O vazio documental se preenche assim, pouco a pouco, com um concerto de vozes perdidas. São às vezes as formas de um folclore moderno que cumprem o papel revelador: entre o jogo das marionetes sicilianas (puppii tal como são conhecidas desde o século XVIII,os Realis di Francia de Andrea da Barberino no século XIVe as canções de gesta franco-venezianas do século XIII, quais tradições vocais garantiram a continuidade? E entre canções de gesta ou romances franceses do século XI! e os ciclos heróicos veiculados no Brasil pela literatura de cordel, durante o longo caminho em que a única parada foi alguma compilação do século xv?
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De um ponto de vista metodológico, essa procura das provas, a busca dos índices, as suposições permanecem de ordem instrumental. No melhor dos casos, levam a construir - com mais freqüência, a esboçar em pontilhado - o simulacro de um objeto. Tal é sua utilidade: uma vez atingido esse fim, não importam mais. Informados pelo simulacro, tentamos captar o objeto. O simulacro é aqui uma "tradição oral"; o objeto que se esquiva, a ação da voz na palavra e no tempo. O que nos sugerem os textos assim auscultados são as dimensões de um universo vocal: o espaço próprio dessa poesia, em sua existência real, aqui e agora. O que também nos sugerem vários dentre eles é a estabilidade desse universo, a estabilidade que a voz assegurou, em sua longa duração, à obra, em si mesma tão fugaz. O recuo faz aparecer a nossos olhos uma rede coesa de tradições poéticas orais que abrangem todo o Ocidente; e o estudo comparado de certos temas narrativos e formas (veja-se o
modelo rítmico do zejel) revela notável continuidade entre essa rede e as que recobrem o conjunto da Eurásia. No capítulo precedente, aludi ao proveito que o medievalista pode tirar de um exame comparativo do fato épico através de toda a Europa na época mais distante - simples exemplo. Mas não se pode dissociar completamente do canto heróico a "balada", que em terra anglo-saxônica e germânica foi, ainda recentemente, objeto de estudos importantes." Variedade de epopéia curta, constituindo uma arte vocal autônoma, a balada, disseminada por todo o mundo germânico até os séculos XVIII ou XIX, bem como na maior parte da România medieval, não foi testemunhada, parece, nos textos da antiga França. Mas talvez simplesmente não tenha sido identificada. De minha parte, não hesito em considerar baladas algumas de nossas chansons de toile,* como a Bele Aiglentine, cuja história textual tentei no passado reconstituir, através das mutações devidas a intervenções dos cantores; se não certa "canção popular" como o Roi Renaud, cujo texto francês aparece em terra gaulesa no século XVI, mas cujas versões foram assinaladas na Escandinávia, na Escócia, na Armórica, donde se pode supor que penetrou em território francês! 20 Obras como as de Buchan ou Metzger em 1972, de Anders em 1974, fornecem material e perspectivas de interpretação, desigualmente assimiláveis pelo romanista, mas aptos a acarretar uma sadia revisão de posições aparentemente adquiridas. Um colóquio realizado em Odense, na Dinamarca, em 1977, lançou sobre o caráter europeu da balada uma luz que, na realidade, era desigualmente poderosa, mas revelava em sua sombra a marca de múltiplas e muitas antigas tradições orais entrecruzadas. Uma tentativa de definição desse tipo de poema se apoiava em várias discussões relativas a suas formas e história escandinavas, assim como a suas manifestações no norte, centro e oeste da Europa: Finlândia, Hungria, Eslovênia; Buchan descrevera os primeiros passos, entre os séculos XIII e xv, do gênero inglês, definitivamente constituído ao redor de 1450; D. Laurent remontava ao século XII, se não ao IX, a tradição de várias "baladas" bretãs, como a gwerz de Skolan." Por quase um século, semelhante ampliação da perspectiva se impusera (nas pegadas, é verdade, da busca romântica das Origens) aos historiadores da poesia "lírica" românica. Desde os anos 1880, certos rnedievalistas tinham sido conduzidos, na fé de testemunhos indiretos, l
(*) Toile: linho, tela, pano. As chansons de toile, geralmente associadas à França se. tcntrional, eram cantadas por mulheres enquanto costuravam, teciam etc. Poemas curtos em forma de estrofes monorrimas com refrão, relatavam alguma mágoa ou episódio amo. ,'()SO.
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a presumir uma ou várias tradições orais que, havia muito, estavam extintas e cujos próprios efeitos históricos tornam-se difíceis de desembaraçar, por causa da relativa raridade das fontes latinas disponíveis para a alta Idade Média e da inexistência de documentos em língua vulgar. Esse silêncio se explica, em parte, por uma censura eclesiástica. Daí a importância que temos o direito de atribuir aos vazamentos de informação que de tempos em tempos se produziam, em virtude da condenação. Faz tempo, foi levantado seu inventário: do século V ao X se desenha uma longa série de declarações oficiais que reprovam ou impedem o uso de cantica diabolica, luxuriosa, amatoria, obscaena, turpia, de cantationes sive saltationes, de cantilenae rusticorum ou, segundo uma das capitulares carolíngias, dessas misteriosas winileodos ("canções de amigo" ou "de trabalho") caras às freiras das terras alemãs. Regulamentações régias, interdições conciliares como as de Châlons em 569 e 664, de Roma em 853, conselhos epistolares como os de Alcuíno ao bispo de Lindisfarne ou aos monges de Jarrow testemunham seu vigor e sua universalidade na prática popular.Q que os mantenedores...da.@~ jeitam então é, a seus olhos, uma reminjscência pagãccahe.a.nás ..de. zir a eXlstênÇla ill: tradi.r,:ã.es.longas. Sem muitas provas, supôs-se que certas peças de compilação latina dos Carmina Cantabrigensia, do século x, refletiriam alguma coisa dessa poesia arcaica. Nada é menos certo: algumas frases desdenhosas saídas da boca de sacerdotes ou da realeza indicam-nos um buraco negro do qual se erguem outras vozes inaudíveis, mas inumeráveis, um clarão súbito de todas as partes, que logo será reprimido ou confiscado pela escritura. Também se esforçaram por reencontrar, entre os textos de uma época ulterior, os fragmentos e os traços supostos de nossa lírica "original". A pesquisa não tinha nenhuma chance de terminar, se reprimida nos limites de uma língua ou de um território. Em vários pontos, ela alcançou resultados prováveis. Desse modo, quando o compilador de um chansonnier do século XIII assinala negligentemente que o trovador gascão Peire de Valeira, um dos mais antigos de que temos notícia (na primeira metade do século XII), "não valia grande coisa" porque compunha versos "de folhas, de flores, de cantos e de pássaros"," presume-se que faz então referência a um gênero, na época, caído em desuso ou em desapreço. Pois desse gênero só subsistem - talvez - fragmentos mal identificados, cantos de primavera esgalhados entre as canções dos Minnesânger ou as reverdies e romances franceses, antigamente publicados por K. Bartsh conforme manuscritos relativamente tardios. Outro exemplo: uma tradição de cantos de lamentação sobre os mortos, sobretudo no falecimento de um chefe, indiretamente testemunha-
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da desde o século VIII, remonta sem dúvida a data mais distante ainda c se mantém por muito tempo - Boncompagno da Signa, em 1215, em eu tratado de estilo (Rhetorica antiqua, dito o Bomcompagnus), consagra um capítulo à maneira pela qual se canta o lamento em treze nações de seu tempo!" Clercs da época carolíngia os compuseram em latim; restam-nos vários deles, às vezes bastante rústicos por sua linguagem, e tematicamente sempre "engajados": sobre a morte de Carlos Magno; sobre a de Érico, duque do Friul; sobre a batalha fratricida de Fontenoy em 841; sobre o homicídio do senescal Alard em 878; pela morte de Guilherme Longa-Espada, duque da Normandia, em 942 ... Essa tradição impregna as canções de gesta, as próprias canções de santo, que têm como um dos motivos o lamento sobre a morte do herói, tão bem ordenado que pude em outra época fazer sua tipologia. No século XII, o planctus se tornou um gênero nobre, cultivado por poetas da corte ou da escola: conhece-se o planh dos trovadores; ou os seis belos planctus musicais com que Abelardo, em obséquio às freiras do Paraclet, fez cantar diversos personagens bíblicos confrontadas à morte trágica de um ente querido. O manuscrito Pluteus 29.1 da Bibliotheque Laurentienne nos conservou, com suas melodias, uma dezena de lamentos compostos entre 1180 e 1285 a propósito do desaparecimento de grandes personagens feudais ou eclesiásticas da Espanha, da Inglaterra e da França.ê' Essa história se prolongou até o fim da Idade Média. Terceiro exemplo, manifestando a quase unanimidade dos especialistas: durante os cinco ou seis séculos precedentes a 1200, a existência de canções ditas "de mulheres" (em seguida aos primeiros germanistas que identificaram arcaicas Frauenlieder alemãs). No século v, Césaire d'Arles, em sua indignação, parecia fazer-lhes já alusão: "Quantas camponesas cantam essas canções diabólicas, eróticas, vergonhosas!" (Quam multae rusticae mulieres cantica diabolica, amatoria et turpia decantantl); em 853, os padres do concílio de Roma mencionavam as canções femininas que tinham "palavras vergonhosas", acompanhando as cirandas." Muitos refrãos inseridos nas canções cortesãs francesas dos séculos XII e XIII, estrofes reutilizadas pelos autores dos Carmina Burana ou por certos Minnesiinger, constituem provavelmente os destroços e, 'ão mesmo tempo, os testemunhos de uma tradicão cujo vigor se manirestará ainda, a partir do século XIII, em certos villancicos espailhóIS, nas cantigas de amigo portuguesas, nas chansons de toile ou nas maumariées* francesas e, sem dúvida, em muitas das cauç~õ_esde dança, tais
como os carols da Inglaterra. Um amplo movimento poético, atravessando os séculos, desenha-se assim num espelho de formas mais tardias, sem dúvida mais elaboradas, mas que as obras imitam ou pastichamo Quando, no fim dos anos 40, começava a me interessar pelo problema, persuadi-me de que o "grande canto cortês" dos trovadores occitânicos se tinha constituído, em torno de 1100, como reação a essa poesia selvagem. A existência desta continuaria também hipotética até que, entre 1948 e 1952, S. M. Stern e depois E. G. Gómez tivessem decifrado e publicado uma série de breves poemas andaluzes inseridos, em grafia semítica, a título de jarchas (estrofe terminal) em muwassahas hebraicas e árabes dos séculos XI, XII e XIII.26 Essa descoberta confirmou largamente, precisando-o, aquilo que se supunha do poder expressivo e da continuidade de.uma poesia erÓtjca muito antiga, com extensão quase européia (de Granada às florestas saxônicas; de Roma ao mar do Norte). d~ transmissão oral e seguramen....1e-Ga+J,tada.. De agora em diante, é possível identificar alguns de seus temas, até certos traços formais. O que dela guardo, sobretudo, é a imagem assim suscitada: na aurora do mundo saído da desagregação das culturas greco-romanas, e durante os próprios séculos em que se resta- . belecia pouco a pouco o equilíbrio das forças civilizadoras, manteve-se e desenvolveu-se uma arte vocal original. Tanto as reações indignadas do alto clero quanto o uso folclorista que dela fizeram os poetas da corte, a partir do século XIII, atestam sua irredutibilidade e sua longa fecundidade. As obras dessa arte estão para nós irremediavelmente perdidas. Percebemos apenas seus reflexos. Mas existiram; no seio de uma tradição viva, sucederam-se durante toda a época merovíngia e carolíngia, a época feudal mais recuada. É historicamente bem improvável que tal experiência não tenha marcado, muito tempo ainda depois desse prazo, toda a poesia - não tanto nas formas de linguagem nem nos motivos imaginários, mas num nível profundo, na experiência de certo acordo entre o verbo e a voz.
Desse modo, uma luz viva fere - aos olhos de quem tenta libertarse do preconceito literário - as obras que os manuscritos confeccionados a partir dos séculos XII e XIII nos preservaram. Ela nos dá a quase certeza de um uso (exclusivamente na época mais distante) vocal das can-
(.) Malcasadas (do francês antigo). Forma de canção ou poema em que uma mulher lruucnta seu casamento e chama pelo amante. Em alguns casos, este vem resgatá-Ia. Uma
variante é o lamento de uma freira que quer ser tirada do convento por um amante. Esses poemas são freqüentem ente escritos em métrica de ballade [estrofes de oito linhas, com rima ababbcbc). No mundo ibérico, mal maridadas. (N. E.)
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ções de gesta até por volta do fim do século XIII, e do conjunto da poesia "lírica" popularizante, no sentido que P. Bec atribui ao adjetivo, o qual remete a um substrato cultural de oralidade pura: albas, pastoreIas e outras, especialmente as formas com refrão. Só conhecemos por testemunhos indiretos (como o de Wace, nos vv. 9792 ss. do Roman de Brut) a existência de contos transmitidos apenas pela tradição oral. Mas esta representou um papel preponderante na difusão do gênero dos fabliaux franceses e dos Schwiinke alemães, que aparece durante a segunda metade do século XII: desde 1960, o exame por J. Rychner da tradição manuscrita dos fabliaux é convincente a esse respeito; e não seria difícil encontrar índices comparáveis de oralidade em várias formas de "relatos curtos", contos piedosos, milagres de Nossa Senhora ... até na novella italiana, segundo R. J. Clements e J. Gibaldi. Provavelmente os razos e vidas inseridos nos cancioneiros dos trovadores foram na origem submetidos a um mesmo regime; a Vida de Guillem de Ia Tor forneceu a prova direta: Quant volia dire sas cansos, el fazia plus lonc sermon de la razon que non era Ia cansos ("Quando ele queria executar suas canções, seu comentário [razo] durava mais tempo que a própria canção")." M. Egan mostrou que se tratava de minicontos calcados no plano dos acessus ad poetas, o que nos remete às práticas orais de ensino. Apesar do frágil número de melodias subsistentes, ninguém põe em dúvida a oralidade da poesia dos trovadores, trouvêres e Minnesiinger - ao menos no que se refere a sua comunicação. Mas várias razões predispõem a pensar que a tradição mesma foi, em muitos casos (talvez em concorrência com as folhas volantes), confiada à memória dos intérpretes. Pouco importa que Guilherme IX, na aurora dessa tradição, assegure ter improvisado algumas dessas canções e que Jaufré Rudel afirme ter expedido a sua a seu destinatário sem ajuda do pergaminho. Recorreremos de preferência à longa duração que transcorreu entre a época na qual viveram os poetas e a data dos mais antigos manuscritos: além de dois séculos, se não três, para a maioria dos trovadores anteriores à Cruzada dos Albigenses. Tudo se passa como se os amadores e os copistas do século XIV, inversamente, tivessem considerado que uma época da sua história poética viva chegasse ao fim com o século XIII. Ora, qual teria sido nesse vazio de escritura o modo de existência dos textos? Os movimentos de intertextualidade - de intervocalidade - de uma a outra dessas centenas de canções? Um livro recente de 1. Gruber baseia implicitamente nesse fato uma interpretação global e "dialética" do Irobar. Outros vêem seu efeito na movência generalizada da canção: 40070daquelas que vários manuscritos nos conservaram comportam variantes significativas. É assim que se elucidam (de preferência a uma
chamada aos ouvintes, convidados a fazer uma exegese desse discurso) as declarações de vários poetas, moduladas (no começo ou no fim da canção) sobre o tema: quanto mais se escutarem meus versos, mais eles valerão; quanto mais o tempo passar, mais significativos eles se tornarão ... Assim se dá com Cercamon, Jaufré Rudel, Bernart de Ventadom," três dos pais dessa poesia ..A canção, ao longo de sua história, enriquece-se não somente (e talvez nem mesmo principalmente) com a ..renovação incessante de seu texto e de sua melodia, mas com a força vital que emana da multiplicidade e da diversidade de todas essas gargantas, essas bocas que suceSSIvamente a assumem. A situação é análoga em outras zonas da antiga Carolíngia: no século XIII, transferência mediante oralidade da epopéia francesa na planície do PÓ e no Vêneto; da canção trovadoresca na corte siciliana de Frederico 11. A poesia franciscana das primeiras gerações da ordem, ciosa de escapar a todo prestígio "erudito", teve sem dúvida uma fase inicial de oralidade pura. Todo mundo parece conhecer, desde 1228-9, o Cantico de frate sole de Francisco de Assis; mas sua versão por escrito não foi confirmada antes do fim do século. Do lado gerrnânico, desde os anos 20 de nosso século vários eruditos do além-Reno sustentaram a tese da oralidade generalizada da poesia alemã ainda nos séculos XII e XIII. Entendiam-na, é verdade, num sentido mais lato, que não se usava em outra parte, e a estendiam ao romance cortês. A partir de 1968, o livro de H. Linke sobre Hartmann von Aue relançou a discussão; F. Knapp e F. Tschirch apoiaram com sua autoridade uma posição que (eu ignorava então), à mesma época, também definia meu Essai de poétique. A península Ibérica forneceu os mais ricos exemplos de tradições poéticas vigorosas que se mantiveram até há pouco tempo sem o socorro da escrita. A do Romancero remonta, aqui e ali, ao século XIII, ou mesmo antes, e seu estudo não pára de dilatar-se e precisar-se. Uma equipe dirigida por Diego Catalán recentemente seguiu a história exemplar do primeiro romance a ser posto por escrito, em torno de 1420, La dama y el pastor. Desde o século XVI, umas vinte versões orais distintas têm sido, por outras vias, reveladas entre os sefarditas; e de um villancico que forneceu o equivalente lírico dessa narrativa não foram encontradas menos que 180 versões, na Espanha, na América Latina e, ainda, no meio sefardíta." Esses fatos implicam a existência de uma tradição bem anterior ao século xv. Entre os anglo-saxões antes da conquista normanda, o impacto da cristianização sobre as antigas tradições gemânicas produziu uma poesia oral cujos traços mantêm-se bem facilmente determináveis. Depois de 1066 e durante todo o século XII, diversos ecos abafados nos permi-
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tem escutar a voz de uma poesia de língua germânica, popular, reca1cada pclo francês e pelo latim dos dominadores e dos letrados. O século IV ressente-se talvez dos efeitos disso no movimento que foi caracterizado como alliterative revival. Além do Severn e do mar, o mundo céltico, apesar da intensa atividade escritural dos monges irlandeses, até nosso século permaneceu excepcionalmente rico de tradições orais, como na época antiga os países nórdicos, apesar de diferenças notáveis entre a Suécia, a Dinamarca e a Noruega, de um lado, e a Islândia, de outro. Recorreríamos também, no outro extremo da cristandade, à poesia vulgar de Bizâncio e aos cantos nos quais se formou o ciclo heróico de Digenis Akritas; mais tarde, às baladas sérvias que comemoram a guerra de Kossovo; até na "Pagâmia", à transmissão das qasidas árabes do Oriente Próximo ... e, por todo o lado, presente nos interstícios das culturas dominantes, àquela das judiarias da bacia do Mediterrâneo, da França, da Alemanha, da Inglaterra. Começa-se hoje a perceber melhor a amplitude e a originalidade, em particular, de uma poesia litúrgica ou profana em hebraico vernáculo, freqüentem ente bilíngüe; arte vocal que entre o século x e o século XIII desenvolveram com brilho (paralelamente à poesia cristã dos tropos) as comunidades sefarditas da Provença e da Espanha." Até onde percorrer esse circuito? Quanto mais o prolongamos, mais nos espreitam armadilhas; e quanto mais se dilata o espaço considerado, mais fortemente decresce o valor das semelhanças observadas. Fica-nos. que um caráter comum, essencial, embora profundamente enterrado debaixo das manifestações de superfície, subsiste nas subestruturas de todas as civilizações com dominante oral. Nesse sentido, não é talvez abusivo, como o fizeram recentemente vários eruditos japoneses, levantar as analogias entre o modo de declamação do Heiké, em nossos dias ainda, e o que se pode saber da enunciação épica na Idade Média ocidental. Eu mesmo tive a experiência da luz que projetam sobre a natureza e o provável funcionamento de nossosfabliaux as performances do rakugo. J. Oplant extraía da prática dos recitadores bantos informações sobre a dos skops anglo-saxônicos ... As reservas inspiradas por uma sadia filologia conservam nisso sua validade! Entretanto, mais ainda que a "prudência" habitualmente recomendada, impõe-se um justo esclarecimento desse método. Não se trata - salvo exceção - de trazer uma prova nem mesmo de fundar uma Iilpótesyelativa a tal texto ou região,~ im de provocar a imaginação crítica: essa abertura às imagens visuais c auditivas, integradas por entre os elementos de informação que recorrem ao filólogo e ao historiador - imagens sem as quais eu não saberia viver o que estou aprendendo, isto é, escapar à ilusão do cientificismo.
O texto é só uma oportunidade do gesto vocal: e o autor desse gesto serviria mais a meu propósito se não fosse quase impossível captá-lo, na sombra dos séculos ... Os documentos, pelo menos, não faltam inteiramente e permitiram a sábios como Faral ou Menéndez Pidal esboçar o retrato falado de várias espécies de cantores, recitadores, atores, leitores públicos aos quais (salvo raras exceções) a sociedade medieval confiou a transmissão e a "publicação" de sua poesia. Após meio século de quase esquecimento, Les jongleurs en France au Moyen Âge, tanto quanto a Poesía juglaresca y juglares, com o riquíssimo material que propõem, reencontram sua atualidade e adquirem, depois do que foi produzido em nossos estudos ao longo dos anos 60 e 70, frescor novo e valor probatório. A obra de Faral foi reeditada em 1964, mais de meio século após seu aparecimento. No ano precedente, um artigo de Ogylvy chamara a atenção dos pesquisadores para o conjunto das questões que levanta; em 1977, em Viterbo, um congresso os retomava pela ótica particular da dramaturgia italiana; suas atas, surgidas em 1978, contribuíram para precisar e esclarecer vários aspectos. O livro de SchreierHornung em 1981, o de Salmen em 1983 (levando em consideração, é verdade, mais os músicos do que os poetas) retomaram, à luz das pesquisas recentes, os dados de conjunto. Os títulos desses estudos põem em evidência o termo jongleur ou seus equivalentes,juglar, giullare, em alemão Spielmann. Trata-se de uma simplificação lexical. Para designar os indivíduos que assumiam a função de divertimento, as sociedades medievais dispuseram de um vocabulário ao mesmo tempo rico e impreciso, cujos termos, na mobilidade geral, não param de deslizar uns sobre os outros. Sem dúvida, o grupo
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3 OS INTÉRPRETES
Jograis,
recitadores, leitores. Um papel social. A festa. O desafio.
social a que se referem tem sua longínqua origem na tradição dos cantores de cantos gerrnânicos, a qual se confunde com a dos músicos e atores da Antigüidade romana. Donde, na época mais distante, uma dupla camada terminológica: skops das terras anglo-saxõnicas, testemunhados desde o século IV; escaldos islandeses, em seguida noruegueses, do século x ao século XIII; e, do lado latino, mimus, scurra, histrio, em proveniência direta da Roma do Baixo Império, recobrindo mais ou menos inadequadamente a realidade medieval. Por volta de 1275, Conrad, chantre da igreja de Zurique, desejando entrar em minúcia, emprega em figura de acumulação, nada menos que vinte termos latinos diferentes (remetendo aos instrumentos musicais usados por cada um, mas de sentido, afora isso, uniformel).' Nos séculos XI e XII, generaliza-se nas línguas vulgares o uso dos derivados do latim joculator (de jocus: jogo): francês jongleor e jongleur, occitânico joglar, espanhol juglar, galegoportuguês jogral, italiano giu//are e giocolare, inglês jugelere ou jogler, alemão gengler, neerlandês gokelaer ... só ficando de fora as línguas célticas e eslavas: o russo smorokh permanecerá em uso até o século XVIII, da mesma forma que o termo galês e irlandês de que fizemos bardo. Ficam de lado, meio preservados dessa contaminação, alguns termos especiais, como goliardos, qualificando os cléricos errantes ou marginais, entre os quais muitos, aliás, mal se distinguem dos "jograis"; ou trovadores, trouvêres, Minnesãnger, referindo-se mais aos compositores. Ao mesmo tempo, o alemão Spielmann, semanticamente calcado sobre joculator (Spiel: jogo), ganha as terras flamengas, escandinavas, bálticas, a própria Europa central. Mas, desde o fim do século XIII - na medida em que tendem talvez a se fechar sobre si mesmas as cortes principescas, tanto quanto o meio burguês urbano -, essa terminologia sai de moda, e designações novas aparecem: ménestrel, ménétrier, minstrel, Meistersinger, cantastorie. Os versos de 592 a 709 do Roman de F/amenca occitânico, assim como (numa ótica bem diferente!) uma célebre passagem, já assinalada, do Penitentiale do bispo inglês Thomas of Cabham, por volta de 1280, sugerem a complexidade, se não as contradições, de uma realidade que, fazendo os termos repercutirem por aproximação, embaralha a nossos olhos tal vocabulário. Caso se apartem do quadro os "jograis" no sentido moderno, mais saltimbancos, acrobatas e apresentadores de feras, sobram músicos, cantores, contadores, mais ou menos confundidos na opinião de sua clientela. O antigo espanhol, é certo, distingue dos tocadores de instrumentos osjuglares de boca ("jograis de boca"). No curso das páginas seguintes, são eles e seus similares que subsumo com o nome intérpretes; retenho assim seu único traço comum, perti56
nente para mim, a saber: que são os portadores da voz poética. Junto-os àqueles que, clérigos ou leigos, praticavam de maneira regular ou ocasional a leitura pública; nenhuma dúvida de que, para seus auditórios, muitos dentre eles mal se distinguiam, até o século XIV pelo menos, dos "jograis" ou menestréis do mesmo calibre. O que os define juntos, por heterogêneo que seja seu grupo, é serem (analogicamente, como os feiticeiros africanos de outrora) os detentores da palavra pública; é, sobretudo, a natureza do prazer que eles têm a vocação de proporcionar: o prazer do ouvido; pelo menos, de que o ouvido é o orgão. O que fazem é o espetáculo. Esforçaram-se por extrair dos documentos, com freqüência muito imprecisos, informações de caráter social sobre sua origem, suas carreiras, sua integração e, principalmente, sua possível especialização. Por vezes, as respostas dadas são contraditórias. Faral concluiu, em sua pesquisa, que no intérprete se apreciava sobretudo uma espécie de universalidade nas artes do divertimento e, se ele dizia ou cantava a poesia, uma igual mestria nos diversos gêneros; Menéndez Pidal sustenta opinião contrária e funda sua classificação dos juglares no instrumento musical de que se acompanhavam - o que poderia confirmar um documento londrino do século XIV, publicado em 1978 por C. BullockDavies. Uma passagem do Verbum abreviatum de Pierre de le Chantre descreve pelo menos a extrema facilidade com que um hábil joculator vel fabulator (entenda-se: um "especialista da narração") movimentase em seu próprio repertório: qui videns cantilenam de Landerico non placere auditoribus, statim incipit cantare de Antiocho ... ("se ele vê que a canção de Landri não agrada a seus ouvintes, põe-se logo a cantar a tomada de Antioquia", e, caso não se goste da história de Alexandre, engrena a de Apolônio ou a de Carlos Magno, ou não importa qual outra!).2 O trovador Guiraut de Calanson, em sua sirvente Fadet joglar, exigia do intérprete a capacidade de tocar nove instrumentos diferentes. Algumas certezas parecem asseguradas. Por um lado, a impossibilidade de distinguir sistematicamente entre as funções do músico e as do cantor ou recitador. Por outro, a existência (confirmada entre o fim do século XII e meados do século xv na Itália, na França, na Alemanha, nos Países Baixos) de escolas, permanentes ou sazonais, scholae mimorum, nas quais certos mestres tiveram alguma reputação, como o Simon que, em 1313, dava aula no espaço da feira da cidade de Ypres.' Na Irlanda e nas regiões gaélicas da Escócia, as escolas de bardos funcionaram até meados do século XVII. Enfim, os goliardos giróvagos, rompendo com a escola ou a abadia, e às vezes organizados em bandos, fizeram profissão de jocosos, poetas e; especialmente, canto57
res, a esse título misturados na multidão dos "jograis" leigos, embora várias das obras que se atribuem a eles, como os Carmina Burana, provavelmente só tenham agradado a públicos muito limitados. Nenhuma dessas informações implica que a especialização tenha sido a regra. Talvez só tenha sido exigida para a interpretação de certos gêneros. Enquanto na Espanha o Romancero era, segundo F. López Estrada," transmitido por não-especialistas, todos os testemunhos compilados nos territórios franceses atestam a existência de um grupo distinto e altamente respeitado de "jograis" dedicados à execução das canções de gesta, entre as quais declamavam a melopéia, acompanhando-se da viela ou ou da sanfona. São encontrados ainda no fim do século XIV, embora desde antes de 1300 tenham caído em descrédito. Em 1288, a cidade de Bolonha os impediu de exibirem-se nas praças públicas. Estão de fato em toda a parte, no norte da Itália, vindos da França ou surgidos no -lugar, em Milão e em Florença. Ainda por volta de 1400, em Lucca, Andrea di Goro pratica com sucesso essa arte. 5 Vários desses "cantores de gesta" pertenceram à classe, aparentemente numerosa, dos "jograis" cegos, notáveis em toda a Europa até os séculos xv, XVI e XVII, da península Ibérica à Sicília, dos Bálcãs à Irlanda, da Hungria à Alemanha e à Rússia - detentores de um repertório tão fortemente tipificado que, na Espanha e em Portugal, lhes deram um nome, arte de ciego, romances de ciegos. Os documentos franceses são raros, mas não se poderia duvidar de que as terras do reino da Fr,ança tivessem conhecido esse fenômeno: em meados do século XIII, cegos, provavelmente vindos do além-Alpes, diziam a Chanson de Roland na grande praça de Bolonha. Fizeram discípulos: ainda por volta de 1435, o cego Niccolo d'Arezzo cantava para o povo em Florença as guerras de Rolando e de outros paladinos." Essa especialização dos cegos constituiu um fato etnológico marcante, que se pôde observar, ainda em nossos dias, em todo o Terceiro Mundo." Sem dúvida, numa sociedade em que nenhuma instituição assegura nem o cuidado nem a reinserção do cego, a solução mais óbvia de seu problema é a mendicância, e o canto pode ser o meio. Mais fortemente do que as motivações econômicas, porém, 'atuaram as pulsões profundas que para nós significam, miticamente, figuras antigas como Homero ou Tirésias: aqueles cuja enfermidade significa o poder dos deuses e cuja "segunda vista" entra em relação com o avesso das coisas, homens livres da visão comum, reduzidos a ser para nós só voz pura.
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Onipresente, insistente, agitada, a massa dos intérpretes não tem delimitações fixas nem precisas. Socialmente heterogênea, recruta-se em todos os setores não camponeses da população e dá provas de uma mobilidade que, de um dia para o outro, pode modificar a condição do indivíduo; fazer do cavaleiro um errante miserável, do clérigo um saltimbanco, do recitador popular um cantador introduzido nas altas rodas. A interpretação pode ser ocasional e não afetar o estatuto de intérprete: Gautier Map evoca nobres da corte da Inglaterra que improvisam e cantam os versos satíricos; Jean Renard, em seu Guillaume de Do/e, mostra um jovem cavaleiro que, caminhando pela estrada principal, entoa a longa chanson de toile da Bele Aiglentine, acompanhado pelo vieleiro do imperador; monges recitavam para a edificação de seus confrades o Vers de Ia mort de Hélinant;8 em muitos castelos, capelão ou um cônego da colegiada vizinha precisou servir de leitor. Por volta de 1275, o trovador Guiraut Riquier, numa súplica ao rei Afonso x, protestava contra a assimilação abusiva que de cambulhada, sob o nome joglars, classificava muito baixo na escala social todos aqueles que se metiam na poesia." Grandes personagens não hesitavam, cantando seus próprios versos, em colocar-se no nível da gentalha: Haroldo, o rei da Noruega, em torno de 1050; Guilherme IX, o duque da Aquitânia, para escândalo de Orderic Vital, "ultrapassava mesmo em bufonaria os histriões mais bufões" (jacetos etiam histriones facetiis superans); 10 cem anos mais tarde, conta Salimbene que o imperador Frederico n, bom compositor, não se digna a cantar e deixa tal encargo a profissionais - cuidado do qual não parecem compartilhar, em torno de 1300, nem o duque Henrique de Breslau, nem o príncipe Witzlav de Rügen, nem o rei Vences-
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lau da Boêmia. As raras informações pessoais que possuímos sobre este ou aquele intérprete de tal obra ou grupo de obras conhecidas testemunham enorme diversidade de caráter e destino. A Historia ecclesiastica de Beda fornece, livro IV, 24, o exemplo mais antigo: o cantor Caedmon, sobre quem os estudos se multiplicaram, pois o relato de Beda parece esclarecer a tradição poética anglo-saxônica." Camponês iletrado, recolhido em fins do século VII a um mosteiro de Yorkshire, Coedmon recebe "por milagre" um dom extraordinário de improvisação, que lhe permite compor a pedidos, em estilo poético da língua vulgar, todas as espécies de poemas sacros ... Mais perto de nós no tempo e no espaço, a existência do misterioso Bréri (ou Bleheri, ou Bledhericus),jamosus ille fabulator segundo Girauldus Cambrensis, colocou mais de um problema aos historiadores da lenda de Tristão, que ele teria, morando na corte de Poitiers, contribuído para dar a conhecer no continente; segundo Mary Wil59
liams, esse ilustre "contador" não seria outro senão o galês Bledri a Califor, da região de Carmarthen, cavaleiro-poeta como então muitos em terras célticas, alemãs e occitânicas. Poderíamos coletar grande número de informações através de algumas centenas de Vidas de trovadores encerradas nos cancioneiros: Élias de Barjols, filho de um mercador da região de Agen, deixou-o um dia para se tornar jogral e pôs-se percorrer os castelos com seu "camarada" Olivier; outro Élias, filho de um burguês de Bergerac, seguiu a mesma via; a graça poética tocou um terceiro Élias, ourives de Sarlat, sem grande talento, confessa o biógrafo, mas cujas andanças o levaram até Salônica. Filho de mercador também, o ageniano Uc de Pena; filho de um pobre cavaleiro provençal, Raimbaut de Vaqueiras; filho de um alfaiate e alfaiate ele próprio, Guillem Figueira. Gausbert, filho do castelão de Puicibot, era monge, mas por amor de uma mulher deixou o claustro e veio buscar na casa do senhor de Mauléon seu "equipamento de jogral" (ames de joglar); o monge de Montaudon trazia de volta ao convento os ganhos que obtinha como cantor. Gui d'Ussel, cônego de Brioude, compunha as canções que ele mesmo interpretava para Marguerite d'Aubusson ... até o dia em que um legado pontifício o proibiu. Peire Roger, cônego de Clermont, preferiu partir. E fetz se joglars ("e se fez jogral") volta como um refrão, chamada recorrente nessa sociedade occitânica, nisso exemplar, movimento de conversão que interessa indiferentemente a todos os "estados do mundo", vocação da palavra e do canto originando uma elite de porta-vozes. De outro trovador, o biógrafo limita-se a apontar que "foi jogral", como Guillem Magret, de Vienne, jogador e rato de taberna. Na Itália, uma epístola de Michelle Verino descreve a técnica e a ação do célebre cantarino Antonio de Guido, em meados do século xv. Quanto à Espanha, conservou a lembrança quase épica de várias figuras comparáveis, até o limiar da Renascença. Em 1453, surge na corte de João 11 um jug/ar errante, Juan, judeu convertido, filho de um pregoeiro público de Valladolid, apelidado El Poeta; Menéndez Pida descreveu sua biografia, desde então picaresca, suas viagens através de Navarra, Aragão e, na Itália, de Milão a Mântua e a Nápoles. Talvez os costumes espanhóis tivessem mantido durante mais tempo as condições favoráveis a esse tipo de carreira. O último dos jograis do Ocidente não foi o mourisco Román Ramírez, detido em Soria em 1595 pela Inquisição e falecido na cadeia quatro anos mais tarde, acusado de feitiçaria porque a seus juízes parecia ter ele necessidade da ajuda do diabo para recitar de memória, como o confirmava, os romances inteiros da ca-
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De outros, mais maltratados pela história, sobreviveu só o nome, às vezes um apelido engraçado (o italiano Maldicorpo ou o occitânico Cercamon), freqüentemente deformado pela tradição oral de seus admiradores - como o menestrel borgonhês, em torno de 1360, que as fontes chamam Jacquemin, Commin, Quemin, até Connin." Alguns, representados nas iluminuras de manuscritos, esculpidos em relevos decorativos (quando não bordados em tapeçaria como o Turoldus de Bayeux), tipificados, perderam todo o caráter individual. Em compensação, os textos poéticos às vezes colocam em cena seu próprio intérprete nas "trapaças de jograis"; ou, ao menos, este declina seu nome ou sobrenome - índice de altivez, sugerindo que gozava de alguma reputação: o Gautier de Douai da Destruction de Rome, o Guillaume de Bapaume da Batail/e Loquifer. Em outros lugares, e mais freqüentemente, o relato integra um episódio que descreve uma performance ou apresenta um intérprete em ação: do skop de Hrotgar, no Beowu/f, ao escaldo da Saga de Egil e ao cantor saxão da traição de Krimhild na Gesta Danorum, ou ao Tristan de Gottfried, os exemplos são numerosos no mundo germânico, mas não lhe são exclusivos. Faral, no apêndice de seus Jongleurs, publica perto de duzentos textos análogos só para a França; Crosby, 67, franceses ou ingleses, nos séculos XII, XIII e XIV. Sem dúvida, é preciso levar em conta os clichês e prováveis trucagens narrativas. Não se pode, todavia, negar a esse abundante material um valor documental global. Vários textos, particularmente explícitos, retratam as condições de exercício dessa arte vocal, a amplitude de seu registro. Assim, em francês, no fim do século XII e no século XIII, o Roman de Renart, Huon de Bordeaux, Bueve de Hanstone, Doon de Nanteuil, o Roman de Ia vio/ette e diversos outros." Alguns desses testemunhos referem-se não a cantores ou recitadores, mas a leitores; portanto, um autor, tendo acabado alguma obra, faz a leitura em voz alta, diante de seu mandante ou na presença de um auditório escolhido: Giraldus Cambrensis, em 1187, necessitou de três dias para ler em público, em Oxford, sua Topographia Hiberniae; pela mesma época, Benoít de SainteMore evocava, em suas Chroniques des ducs de Normandie, o momento em que as recitaria diante do rei Henrique 11; em 1215, em Bolonha, e em 1226, em Pádua, Boncompagno da Signa fez a leitura pública de sua Rhetorica." Ou então um grupo de amadores solicita um leitor profissional para conter ou retraire (tais parecem ter sido os termos técnicos em uso na França) o texto desejado - como os Lais de Marie de France, segundo Denis Piramus, que em três versos esboça a cena." O leitor enceta freqüentem ente uma longa narração, da qual se pode presumir que tem uma cópia sob os olhos: Flamenca, nos versos 599 a 700, 61
mostra desse modo leitores capazes de produzir, além dos lais e das histoires ovidiennes, o Roman de Thêbes, o de Troie, o Éneas, o Alexandre, Apollonius, Érec, Yvain, Lancelot, Percival, o Bel Inconnu e outros ainda! Enfim, num pequeno grupo aristocrático, uma das pessoas presentes, homem ou mulher, faz a leitura para os outros, reunidos em volta. No Le chevalier au lion, de Chrétien de Troyes, vv. 5355-64, uma moça, no jardim de um castelo, ocupa-se lendo para seus pais um romance "que trata não sei de qual herói"; Konrad von Würzburg encampa, no prólogo de Der Welt Lohn, um leitor em plena ação; Iiescoufle de Jean Renart, vv. 2058-9, faz o elogio de uma nobre donzela, hábil em "cantar canções e contar contos de aventuras"; quadros desse tipo encontram-se freqüentem ente. Scholz levantou uma lista deles referente à Alemanha. Essas diversas práticas foram favoreci das, à própria época em que se expandia em língua vulgar o uso da escritura, pela repugnância (como sugere Crosby) que os Grandes, ainda que letrados, sentiam ao imporse o duro trabalho que era a leitura direta. Tanto que, daí em diante, era fácil achar - entre os clérigos ou mesmo burgueses - pessoas competentes nessa arte. Uma classe de intérpretes assim especializados precisou formar-se bem rapidamente. Muitos índices, aliás, predispõem a pensar que essas "leituras", confiadas aos novos profissionais, não demoravam a transformar-se em espetáculo: muitas representações figurativas que temos de "leitores" sugerem que o livro, na frente deles, sobre o facistol, pode ser apenas um tipo de acessório que serve para dramatizar o discurso - como acontecia não há muito com os bardos servo-croatas, no modo de recitação chamado z kniga. Eu quase não hesitaria em interpretar assim um verso do prólogo de Doon de Mayence no manuscrito BN 7635: [...] Ia tierce dez gestes, dont no livre commence ("a terceira dessas histórias heróicas, a partir da qual meu livro empreende o relato"). O manuscrito de Montpellier não dá o equivalente desse verso, mas anuncia simplesmente: jà orrés comment cheste chanchon commenche''
("vocês vão escutar como principia esta canção"). O livro que Román Ramírez "lia" era um pacote de folhas em branco. Acossado pela Inquisição, o mourisco confessou sua técnica: tinha antes aprendido de cor o número dos capítulos que compunham a obra, as grandes linhas ela ação, os nomes dos lugares e das personagens; depois, recitando-os, acrescentava, condensava, suprimia, sem tocar no essencial da história , empregando "a linguagem dos livros" ...
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Pouco importam as diferenças de origem, de estatuto social, de situação econômica (alguns ficaram ricos, receberam feudos), de sexo mesmo - ainda que as jogralesas, muito numerosas no século XIII, pareçam ter sido principalmente dançarinas, afora certas exceções como a célebre Agnes, cantora favorita do rei Venceslau da Boêmia, por volta de 1300.18 O importante é que - ao contrário da tese de Hartung sobre os jograis - os intérpretes da poesia não foram, naquele mundo, marginais. Não se saberia, é verdade, falar de sua posição: eles não se assentam, propriamente falando, em nenhum lugar; distinguem-se; situam-se em contraste com os outros "estados do mundo"; muitos se enfeitam com roupas chamativas ou excêntricas, tratam a si próprios ironicamente de loucos. Por um lado manifestam o lado carnavalesco dessa cultura, mas por um lado somente. A partir do fim do século XII, muitos textos, vindos dos meios clericais ou aristocráticos, atestam em seus autores e difusores uma reação de defesa, protesto de honorabilidade e seriedade; daí o clichê "não sou desses jograis que ...": índice de uma situação, ainda geral por volta de 1200-50. A disseminação do uso da escritura e (de maneira mais inexorável) o lento desmoronamento das estruturas feudais arruinaram, a longo prazo, o prestígio dos recitadores, cantores, contadores profissionais de histórias; a imprensa os fez cair numa espéck., de subproletariado culturaLSua grande época estendeu-se do século X ~ _ os próprios séculos da mais brilhante "literatura medieval"! A Alemanha e as regiões românicas oferecem poucos exemplos de carreira comparáveis àquela de alguns grandes escaldos islandeses do século XI, cuja glória resplandesceu em toda a Europa setentrional, até transformados em personagens de epopéia, como Egil; mas o favor de que muitos intérpretes gozavam - assim como sua profissão enquanto tal _ é comprovado de maneira contínua durante mais de duzentos anos. O romance de Daurel et Beton, do início do século XIII, pôde ser interpretado como um elogio da atividade jogralesca; o prólogo de Doon de Nanteuil, por volta de 1200, cita oito ilustres mestres da arte de interpretação épica; o trovador Raimbaut d'Orange, trinta anos antes, dava a sua dama o senhal (' 'apelido emblemático") de Bel joglar, "Belo jogral". Nesse contexto, os pedidos de dinheiro e outras formas de mendicância, tão freqüentes nos textos dos séculos XII e XIII, não têm nada de vil: manifestam uma relação social que era desprovida de ambigüidade e que de certa maneira se estabeleceu entre iguais. Os costumes a esse respeito são os mesmos de um extremo a outro do continente, até a Moscóvia e Bizâncio. Recitadores, jograis, leitores invadem todo o espaço social. Às vezes, ligam-se de modo mais ou menos durável a uma corte senhorial, até a um poeta mais bem colocado 63
menos competente, cujos textos eles têm a vocação de dizer, como no caso do cantor que o trovador Peire Cardenal, filho de um nobre cavaleiro da Auvergne, contrata. Várias cortes régias tiveram seus leitores e jograis contratados: os de Castela, de Aragão, de Portugal, da França, da Inglaterra, do imperador reuniram multidões, em certos momentos dos séculos XII e XIII. A esse propósito, falou-se de mecenato; tratase antes de uma troca de serviços. Gottfried von Strassburg traça um retrato do cantor dá corte que exclui toda idéia de rebaixamento. A comunicação da poesia dos trovadores e de seus imitadores, as formas antigas do romance, uma e outras expressamente destinadas a um público cortesão, exigiam um pessoal cujo valor não se podia de jeito nenhum avaliar. Por um resvalo natural, acontecia que um príncipe confiasse a algum de seus menestréis uma missão delicada ou confidencial, de mensageiro ou mesmo de embaixador." No século XIV ou xv, qualquer corte de alguma importância tem seus menestréis: ainda por volta de 1500, a rainha Ana, o rei Carlos VIII mantêm perto de si rhétoriqueurs célebres, Jean Lemaire, André de La Vigne. Esses poetas designam a si próprios pelo termo orador, com o qual, aparentemente, evocam a função tradicional de porta-voz. Os dignitários eclesiásticos conservaram-se freqüentemente avessos a favorecer uma arte que escapava a sua ação, retidos pelos preconceitos próprios de seu meio. No entanto, não faltam exemplos de prelados que abriram a "histriões" os palácios episcopais - como, ainda nos séculos XIII e XIV, na Inglaterra e na Espanha. Certas igrejas contrataram poetas e cantores que se encarregavam de sua publicidade junto aos peregrinos. Na região de Santiago de Compostela (e em mais de uma dúzia de pequenos santuários locais), devemos a esse costume os cantos de romaria que nos foram conservados por alguns cancioneiros ibéricos. Segundo Bédier, tal teria sido a origem das canções de gesta. Do século X ao XIII, as "festas de jograis" efetuaram-se periodicamente em algumas grandes abadias, como a Trinité de Fécamp - lugares de contato e de competição entre deres e intérpretes e dos intérpretes entre si, contribuindo sem dúvida para a formação de uma elite destes últimos. Em certas cidades, a municipalidade pagava aos contadores, cantores, músicos, para melhor controlar-Ihes a atividade. Desde o fim do século XII, uma confraria de Arras reuniu (sob a invocação de Nossa Senhora) burgueses e jograis da cidade. Essa instituição ou outras similares não são alheias à formação dos puys, que do século XIII ao XVI, em várias cidades da França setentrional e dos Países Baixos, reagruparão periodicamente cidadãos amantes da poesia, cantores e "retóricos". fi torno de 1300, projeta-se, especialmente na França e na Espanha,
um movimento que tende à constituição de guildas de menestréis: o regulamento corporativo assegurava tanto uma estabilidade econômica quanto uma integração incontestável nas estruturas da Cidade. Até essa época relativamente tardia, a maioria dos "jograis" levou uma existência errante: de mestre em mestre, ao capricho das estações, ou mais definitivamente, como o trovador Peirol, por não ter sabido encontrar um patrão; por "gosto" talvez ... por medo ou recusa de uma ligação. Ainda recentemente, considerou-se que certo nomadismo era o traço comum desses porta-vozes 'do mundo medieval'? - segundo W. Salmen, tão numerosos nos séculos XIV e xv quanto os eclesiásticos. As informações que esse autor fornece completam, para os países germânicos e eslavos, os dados antigamente compilados por Menéndez PidaI. Toda a Europa foi afetada por essa migração cíclica, permanente. Podemse traçar mapas. Salmen fez sete, demarcando os itinerários de "jograis" presentes, no século xv, às festas organizadas em Hildesheim, Nuremberg, Basiléia e outras cidades; espalham-se até a Dinamarca, Suécia, Polônia, Hungria, Escócia, Borgonha, Lombardia, Espanha. Os itinerários mencionados por Menéndez Pidal abrangem as terras ibéricas, francesas, italianas. Acrescentemos a esses quadros os Estados "francos" da Grécia e do Oriente Próximo durante o século XIII, Chipre até o século xv. Se Beuve de Hantone, herói de canções de gesta francesas, passou para o folclore russo, isso sem dúvida se deve a algum jogral de longo curso. Entretanto, as cidades burguesas reagem a essa incessante invasão de levianos de ofício suspeito. As municipalidades adotam - ao mesmo. tempo em que oficializam a atividade de certos jograis - regulamentos que limitam o número daqueles admitidos como residentes, mesmo se temporários: Estrasburgo só quer, por volta de 1200, quatro; Cracóvia, em 1336, oito; Colônia, em 1440, quatro. Os' outros não são tolerados no perímetro urbano mais que dois ou três dias consecutivos. Em Bolonha, em 1288, em Paris e Montpellier, em 1321, é-lhes proibido passar a noite. Numa carta a Boccacio, escrita em Pavia por volta de 1365, Petrarca evocará com desprezo essa gente que freqüenta ainda o norte da Itália." Aliás, conforme seu modo de vida seja mais sedentário ou mais itinerante, os cantores, recitadores, leitores representam dois tipos de homem, com mentalidade cada vez mais distinta à medida que passam as gerações. Sem dúvida, nos séculos XII, XIII, os casos intermediários foram os mais numerosos. Mas, no limite, a diferença, aprofundando-se, preparava o advento do nosso "homem de letras", cujos mais antigos espécimes se encontravam na Itália do século XIV, na Borgonha e na França do fim do século xv. No coração de um mundo estável, o "jogral" significa uma instabilidade radical; a fragilidade de sua inserção na ordem feudal ou urba-
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rcs se fazem seguir, em seus deslocamentos diplomáticos, por grupos de jograis dos dois sexos. É nesse contexto sociológico e com base nele - e não em exclusivas considerações filológicas - que convém interpretar as numerosas alusões feitas, num contexto mais freqüentemente ficcional, aos cantos guerreiros recitados, em pleno combate, seja por especialistas, seja pelos próprios combatentes. A despeito do ceticismo antigamente apre~oado por Faral, parece certo que havia aí uma tradição bastante anti~a, bem enraizada entre os germanos, os anglo-saxões e os celtas, que se manteve no Ocidente até os séculos XII e XIII - não exclusivamente durante as batalhas campais, como mostra o exemplo de um bando de saqueadores borgonheses que Raoul le Tourtier evoca por volta de 1100.25 O caso mais explicito e (sem dúvida por engano) mais contesIado é o da batalha de Hastings, que em 1066 pôs a Inglaterra nas mãos de Guilherme, o Conquistador. Sete das dez crônicas que nos relatam ·1 batalha, respectivamente redigi das entre 1070 e o inicio do século XIII, mencionam um jogral que, marchando à frente do Exército normando, deu com seu canto o sinal do entrevero; três desses textos lhe dão um nome: Taillefer; dois sugerem que cantou uma versão da Chanson de Roland." Segundo diversos documentos, como a estância 97 da Chanson de Guillaume, os comanda~ gostavam de acompanhar-se de canlores épicos aptos ao combatê.'Numa sociedade que por natureza ainda era guerreira, esses homens exerciam uma função considerável; sua voz propagava uma virtude, efetuava a transferência de uma valentia ancesI ral aos combatentes de então: "para acender, com o exemplo marcial de um herói", como escreveu William of Malmesbury, "aqueles que se preparam para combater".
na só lhe deixa uma modalidade de integração social: a que se opera pelo lúdico. Esse é o estatuto paradoxal a manifestar a liberdade de seus deslocamentos no espaço; e, de modo fundamental, a implicar a palavra, de que é ao mesmo tempo o órgão e o mestre. Por isso o "jogral" liga-se e festa, uma das tribunas da sociedade medieval, ao mesmo tempo desabafo e ruptura, prospectiva e redenção ritual, espaço plenário da voz humana. Festas públicas, tais como o coroamento ou o arnesamento dos príncipes; no de Eduardo de Carnavon, a 22 de maio de 1306, tomaram parte 150 menestréis (dos quais nos sobrou a folha de pagamento); dezoito anos mais tarde, uma corte reunida em Rimini pelos Malatesta reúne 1500 deles!" Memoráveis encontros balizam assim a história de quatro séculos. O arnesamento dos filhos de Frederico Barbaroxa, em Mainz, em 1184, a entrevista do mesmo imperador com o rei da França em Mouzon, em 1187, foram a ocasião para contatos pessoais entre cantores românicos e germânicos, contatos que contribuíram para a difusão européia do grande canto cortês. A crônica do século xv conserva a lembrança de uma vasta série de ajuntamentos festivos, urdindo-se sobre o Ocidente (até a Boêmia de Sigismundo e a Hungria de Matias Corvino) uma densa rede de relações principescas e de discursos que exaltam, pela boca dos poetas, a Ordem assim manifestada. As festas particulares - banquetes, batizados e sobretudo casamentos - requeriam também, mais modestamente, a intervenção de intérpretes de poesia. Sobre este último ponto, os testemunhos são inumeráveis, desde a época merovíngia até o século XVI. Renuncia-se antes às núpcias do que a gastar o tempo com jograis, conforme o Roman de Renart (seção I, vv. 2763-4); em Jaén, ainda em 1461, para celebrar seu casamento, o condestável Miguel Lucas despenderá uma fortuna para garantir a presença de um número suficiente de menestréis e vesti-I os com o esplendor necessário." Numa modelar carta de recomendação para um jogral, Boncompagno da Signa, por volta de 1200, julga-o apto a apresentar-se tanto na corte quanto numa cerimônia nupcial. 24 O elo, aparentemente funcional, que vincula essa última audição de cantores ou de recitadores (o episódio das núpcias de Flamenca constitui a mais brilhante ilustração) subsiste até hoje nos costumes camponeses de várias regiões européias e americanas - elemento ritual cujo fundamento liga-se aos valores psicofisiológicos, míticos e sociais investidos na voz humana. Ele manifesta o poder da função vocal na cultura da qual se ergue esse rito. Por isso o intérprete de poesia assume nesta um papel de medidor do tempo social - justamente o que ritma as festas, mas também os momentos fortes que, sem recorrência regular, marcam ti sucessão dos dias: viagens, longas cavalgadas. Reis e grandes senho-
Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginátio, divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de uma auI oridade particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio. Donde o uso que o poder lenta periodicamente fazer dela, engajando como propagandistas os jorais ou cleres leitores: o chanceler de Ricardo Coração de Leão recrulava na França cantores encarregados de louvar seu mestre nas cidades inglesas, sem dúvida consideradas pouco confiáveis; as podestà italialias, no século XIII, pagavam salários a seus louvadores; a França do tempo de s. Luís e, dois séculos mais tarde, a de Carlos VIII são ricas
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em tais exemplos. Todas as grandes polêmicas de então ganharam por essa via os lugares públicos, envolvendo as multidões, e essa tradição se manteve até os tempos de Luís XIV e, em outros lugares, até muito mais tarde. A cada homem sua palavra designa no grupo um lugar, do qual, no coração das sociedades muito rigidamente formalizadas, é difícil mudar-se. Na Europa do século X ao xv, o lugar do portador de poesia é central. A identidade de um intérprete manifesta-se com evidência tão logo abre a boca: ele se define em oposição às outras identidades sociais, que com relação à sua são dispersas, incompletas, laterais, e as quais assume, totaliza, magnifica. Metricus enim modus est histrionum qui vocantur cantores nostro tempore et antiquitus dicebantur poetae, qui [...] cantus ad arguendum vel instruendum mores vel ad movendum animos et ajjectus ad delectationem vel tristitiamjingunt et componunt ("O ritmo pertence aos histriões, que denominamos hoje cantores e que se chamavam na Antigüidade poetas [... ] os que moldam e harmonizam seus cantos tendo em vista inculcar ou corrigir os costumes, ou incitar os espíritos e os corações seja à alegria, seja à tristeza"): tais são, por volta de 1280, os termos que emprega Engelbert d'Admont." Que esses termos retomem um clichê de origem antiga não faz deles palavras vazias. Mais ou menos na mesma época, o alemão conhecido pelo nome Der Meissner se exprime de modo parecido numa de suas canções, colocando a ênfase na função de "conselho" (ratgebe aller tugent), isto é, de discernimento e veracidade ... Entendamos o contexto: com base numa capacidade específica da linguagem poética, atualizada por um artista competente. 28 Noção "utilitária", mas indissociável daquela do divertimento: nos séculos xv e XVI, enquanto os poetas começavam a afrouxar seus vínculos sociais e desviar-se dessa grande idéia, os "bobos" e bufões da corte tenderam a retomá-Ia por sua conta ... Fundamentalmente, durante séculos a poesia havia sido jogo, na acepção mais profunda, talvez a mais grave; seu objetivo último: proporcionar aos homens o solatium (o francês antigo dizia soulas;* perdemos essa bela palavra!). Mas, para a maioria dos eclesiásticos, todo solatium cheira a enxofre: o termo referese a um prazer, a algum alívio da alma e do corpo, à esperança de uma liberdade, à gratuidade de uma ação - à Festa. Donde a generosidade de que o público dá provas para com seusdivertidores, mas também a reputação de cupidez que ganham, com ou sem razão, esses divertidores - argumento de peso para os censores, no espírito de que soulas (0) SOL/Ias ou solz traduzem o prazer que proporcionam ICSCO
a companhia
e a conversação da dona. (N. T.)
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no mundo feudal e trovado-
significa obstáculo à penitência, instituidora das normas cristãs, ou, bem pior, significa triunfo da Mentira e da Depravação. Esses julgamentos severos influenciam a opinião geral, sem refrear os costumes lúdicos aos quais estão associadas as diversas formas da poesia. Dai as contradições que a esse respeito se revelam nos textos. Os meios cavalheirescos, à medida que o progresso geral da economia lhes assegura mais lazer e alarga seu espaço de jogo, são menos sensíveis a esse ascetismo cultural. Nos século XIV e xv, apesar das ruínas acumuladas em todo o Ocidente, um frenesi parece tomar conta das cortes principescas, onde se instauram verdadeiras liturgias do soulas, das quais cantores e recitadores, com os músicos, são os oficiantes principais: triunfo não da mentira, como o dizem os Outros, mas do disfarce, da máscara e da ficção alegre. A existência de intérpretes da poesia constitui um elemento ativo, um fermento, nessa sociedade ao mesmo tempo aberta e incessantemente tentada pelo fechamento. Ela fascina e inquieta. A Igreja não parou de farejar aí uma força secretamente rival, talvez inspirada pelo inferno: conflito de culturas, outrora aberto por s. Agostinho, cujas fórmulas condenatórias serão incansavelmente retomadas em declarações, regulamentos, editos - eclesiásticos e às vezes régios -, até a época moderna, em que o teatro finalmente recebe concentrados esses ataques. Pois o teatro, a partir do século XVII, foi a última forma poética em que subsistiu algo do regime medieval, inteiramente determinado pela performance. A queixa, quando se torna específica, prende-se ao termo scurri/itas, excesso de palavra, uso desnaturado do verbo. Pouco a pouco, no contexto dos primeiros burgueses, aí se acrescentará a inutilitas, negação do trabalho produtivo. Mas nada pôde impedir a multiplicação dessa "raça" que, no século XIII, constituirá em toda a Europa uma potência, imperceptível mas sempre presente. Desde então, os moralizadores (aderindo majoritariamente a uma opinião que sem dúvida estava difundida entre eles havia muito tempo) determinam as coisas. Da massa dos diverti dores, Thomas of Cabham distingue o privilegiado grupo dos cantores de gesta e dos cantores de santos, aos quais até se abrem as portas do mosteiro, como em Beauvais, para as grandes festas." À mesma época, Tomás de Aquino colocava a questão em termos teóricos. A Summa theologica (na nae, questio 163, art. 3) admite que, sendo necessário o divertimento do homem, a atividade do histrio não é tão ruim em si e pode ser considerada um trabalho - primeiro esforço para reconhecer ao portador de poesia uma função especial, num mundo onde tudo o que existe tem um papel.
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Estava para se resolver o que, aos olhos dos letrados daquele tempo, constituía um verdadeiro problema. Em contrapartida, pouco lhes importava a questão freqüentem ente colocada pelos medievalistas dos anos 1900: que distinção fazer entre autor e intérprete? Onde situar um e outro? Nos termos mais banais, a interrogação resumia-se em saber se, quando e como o "jogral" foi, também, poeta. Diversos índices levaram os críticos a responder afirmativamente, tratando-se de tal indivíduo, de tal texto. Seria o caso de vários fabliaux, de romances mesmo, como.o Tristan de Béroul. Esses são exemplos específicos, dos quais não se pode tirar nenhuma conclusão geral - tanto mais que o anonimato da maioria dos textos indica a que ponto a sensibilidade medieval nessas matérias, na ausência de qualquer noção de propriedade intelectual, diferenciava-se da nossa. Deslocaríamos hoje a ênfase e perguntaríamos qual ação o intérprete pode exercer sobre a poesia; de que maneira intervém na economia própria e no funcionamento do dizer poético. Nas Vidas de trovadores e nos razos de canções, o uso constante dos termos saber (trobar) e s'entendre (no canto), ora conjugados ora em oposição, parece-me trair uma percepção da originalidade do intérprete: ao contrário de Boutiêre e Schutz, entendo esses verbos como referindo-se a duas atividades diferentes, a do compositor (saber) e a outra; nisso, é notável que entendre (ouvir), evocando uma intenção, concentração e penetração intelectiva, seja muito mais rico de conotações que saber. A Vida de Arnaut Daniel designa expressamente o trabalho do intérprete como um duplo processo: escutar mas também aprender, isto é, interiorizar. Nesfe estudo, mais vale afastar de imediato certas obsessões que foram herdadas do romantismo e das quais os medievalistas têm dificuldade de se libertar; aquela, por exemplo, que leva à classificação (de autores, de textos, de tradições) em populares e eruditos, clercs ejograis, ou outras similares. Tais distinções não têm sentido -,Arnaut Daniel...que era tido como um dos poetas mais difíceis de seu tempo e a quem mesmo Dante dará a palavra na Comédia, tornou-se jogral depois de ~did~as letras. Não foi o único. Nessa perspectiva, os medievalistas alemães operam com a ajuda de uma noção cujo fundamento não se pode contestar: a de Spielmanndichtung ("poesia de jogral"), utilizada para categorizar, em particular, as epopéias de origem germânica antiga, como Kônig Rother ou Herzog Ernst, ou versejaduras didáticas, como o Salman und Morolj. Na Espanha, dois versos do Libra de buen amor, interpretados como um julgamento classificatório, provocaram no vocabulário dos medievalistas uma oposição entre mester de -terecta ("arte de academia") e mester de juglaria ("arte de jogralida-
de"); oposição que, aliás, se atenua nos trabalhos mais recentes. Nem a França nem a Itália ofereceram campo para distinções tão nítidas; mas o modelo flutua entre as linhas de mais de uma obra erudita. Monaci antigamente evocava a existência de uma letteratura giullaresca, limpidamente diversa da clericale. L. Stegagno Picchio sugere com fineza que as diferenças assim denotadas perdem toda a pertinência caso se leve cm conta o caráter mímico da comunicação; desse ponto de vista, a totalidade da poesia italiana mais antiga, do Ritmo cassinese aos contras/i genoveses, manifesta perfeita homogeneidade. Não me expressaria de outra maneira a propósito da poesia francesa. A questão se coloca em termos idênticos em toda a Europa. Pelo menos não se pode negar a importância do papel dos recitadores e cantores profissionais, através de regiões tão variadas, na formação de línguas poéticas românicas e germânicas e, talvez, de sistemas de versificação. Papel triplo ou quádruplo. O próprio nomadismo de muitos intérpretes, a dispersão de sua clientela tornaram possível e necessária a constituição de idiomas comuns a regiões mais ou menos extensas, transcendendo os dialetos locais originais. Talvez por isso mesmo os "jograis" tenham transmitido ao mundo medieval os refugos de arcaicas formas imaginárias, integradas no funcionamento de uma linguagem; o fato não suscita nenhuma dúvida nos países nórdicos." A palavra poética vocalmente transmitida dessa forma, reatualizada, reescutada, mais e melhor do que teria podido a escrita, favorece a migração de mitos, de temas narrativos, de formas de linguagem, de estilos, de modas, sobre áreas às vezes imensas, afetando profundamente a sensibilidade e as capacidades inventivas de populações que, de outro modo, nada teria aproximado. Sabe-se quantos contos circularam assim de um extremo a outro da Eurásia. O fenômeno se produziu nas próprias Fontes de uma palavra. Mas nada teria sido transmitido nem recebido, nenhuma transferência se teria eficazmente operado sem a intervenção c a colaboração, sem a contribuição sensorial própria da voz e do corpo. O intérprete (mesmo que simples leitor público) é uma presença. É, em face de um auditório concreto, o "elocutor concreto" de que falam os pragmatistas de hoje; é o "autor empírico" de um texto cujo autor implícito, no instante presente, pouco importa, visto que a letra desse texto nãoé mais letra apenas, é o jogo de um indivíduo particular, incomparável.
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É mais por seu conjunto e sua continuidade que valem os testemunhos de todo o tipo que evocam para nós esses portadores da voz. Ainda
convém percebê-l os sob um fundo de ruído do qual mal se destacam às vezes: o formigamento sonoro dessas cidades, dessas cortes, dessas igrejas de peregrinação, murmúrios, gritos, chamados, cantos, invectivas, ao qual fazem tão freqüentemente alusão (com uma espécie de alegria) poetas, romancistas e contadores. A corte de Artur, vigorosamente evocada por Wace, ressoando de "canções, rotrouenges,* árias novas" da voz dos jograis e jogralesas, do som das vielas, rotas, harpas,fretels, liras, timbales, trompas, tanto quanto das blasfêmias e das disputas dos jogadores; as núpcias de Archambaut em Flamenca: imagens ideais concebidas por escritores cortesãos." Mas os informes provenientes de todas as outras fontes nos mostram, de indivíduos ou circunstâncias bem reais, quadros similares. Tratar-se-ia de um tema literário generalizado que também nos remeteria, de maneira indireta, a um traço dos costumes e da mentalidade. E plac li dons e domneis e guerra e messios e cortz e mazans e bruda e chanz e solatz e tuiclt aqui! faich per qu 'om bons a pretz et valor (' 'Pois o que lhe agradava eram ofertas de presentes, galanteios, guerras, despesas pródigas, festas da corte, barulho, tumulto, canto, alegria e tudo o que confere a um homem de qualidade mérito e valor"), escreveu o biógrafo do trovador Blacatz; e o moralista Pierre de Blois, inversamente, evocando com irritação a corte do rei da Inglaterra, modelo mesmo de toda corte, retrata o cortejo escandaloso que o acompanha e em que se misturam: histriões, cantoras, bufões, mimos, charlatães, barbeiros, prostitutas, jogadores profissionais, taberneiros tagarelas ... A descrição das festas jogralescas organizadas em Paris, em 1313, pela visita de Eduardo II, encheu quatrocentos versos retumbantes da Chronique de Geoffroy." Manifestações dessa natureza se tornam mais freqüentes e nos ficam cada vez mais conhecidas à medida que nos aproximamos de 1500. Tais testemunhos balizam séculos de história. Incansavelmente nos repetem a ubiqüidade da voz poética nesse universo. Dir-se-ia que não fazem senão confirmar uma evidência ... De fato, mas lhe dão seu peso e - literalmente - medem sua ressonância. De todas as partes, naquilo que para nós se tornou penumbra, agita-se uma humanidade tagarela e barulhenta, para quem o jogo vocal constitui o acompanhamento obrigatório de toda ação, de toda palavra, de todo pensamento, mesmo abstrato, desde que sejam sentidos e desejados como o reflexo de uma imanência, imunizados contra a deterioração das circunstâncias e do tempo. Não há arte sem voz. No século xv, em Namur, chamavam "cantor de gesta" um porta-voz público, cuja função, definida por esse nome, (0) Poemas medievais compostos
de várias estrofes e terminados
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em refrão. (N. T.)
consistia em "monumentalizar" todo discurso." Assim se desenha um traço fundamental de uma cultura. A voz poética se inscreve na diversidade agradável dos ruídos, por ela dominados na garganta e no ouvido humanos. A pintura do paraíso por vir, esboçada pelos pregadores (ou, imitando-o, a do mundo das fadas por um romance como o inglês Sir Orfeo, mais ou menos em 1300), anuncia alegrias auditivas: coros de anjos, cânticos de santos, harmonia de instrumentos musicais, especialmente a harpa; e, por efeito contraditório, os castigos infernais se acompanham de estridências intoleráveis e de palavras horríveis." Percebe-se aqui o eco de um tema poético muito vivo desde a baixa Antigüidade, talvez desde Virgílio: o locus amoenus - lugar idílico do jogo, da confidência, do amor, um dos tipos mais recorrentes da poesia medieval, em todas as línguas - comporta um elemento sonoro, canto de homens, pássaros ou ventos, proporcionando um prazer ao ouvido, imagem, causa e efeito daquele do coração. Figurativamente, é a um lugar idílico similar que aspira a "cortesia", difundida desde o final do século XI pelo meio cavaleiresco; entre os primeiros trovadores, tal lugar tem um nome: aizi, aizimen, significando mais ou menos a "moradia do Amor e da Harmonia"; e não é por acaso que esses mesmos poetas adquiriram o hábito de começar suas canções por uma estrofe que evoca a renovação primaveril e os cantos dos pássaros. O termo cortesia, quando aparece na língua (no século XIl), refere-se idealmente à vida das cortes senhoriais: num mundo incoerente atravessado por impulsos anárquicos, a corte idealizada, utópica, tematiza as contradições, harmoniza-as na festa e no jogo. O cavaleiro, tão logo é acolhido, vê-se prisioneiro de um espaço encantado, onde toda a energia dos seres visa a um perfeito domínio da palavra, mais que dos comportamentos; visa a domesticar a multidão de vozes espontâneas para com ela organizar o concerto. O amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria. Louva-se a primeira entre os Grandes; saboreia-se ao lado deles a segunda. A esse respeito, Bezzola antigamente reuniu vários testemunhos do século XII relativos à corte da Inglaterra.35 Nos romances, nas Vidas de trovadores, mesmo nos comentários . de um contador de casos como Gautier Map, formigam observações des.,e tipo. A arte de viver o mais deliciosamente possível, produzida por esse meio, o fine amor (que cantam os trovadores e seus imitadores através do Ocidente), continua, em sua essência, jogo verbal. Esse "amor", que - por essa razão mesmo - jamais produz conhecimento, escandaliza certos clérigos, pois rompe com uma tradição de origem agostiniana, incorporada pelo cristianismo, segundo a qual o amor une a inteli-
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gência ao que ela sabe. Experiência da palavra, mais freqüentemente
da palavra obscura, o fine amor não tem jamais a garantia de desabrochar na experiência de um sentido. Por mais ilustres que sejam a nossos olhos, os trovadores não constituem exceção. Em maior ou menor medida, todo jogral, menestrel, recitador, leitor público carrega uma voz que o possui mais do que ele a domina: à sua própria maneira, ele interpreta o mesmo querer primordial do padre ou juiz. Seu discurso é mais geral do que o desses últimos; seu status, menos preciso. Mas a variedade das palavras que ele tem por missão pronunciar diante de um grupo, sua aptidão particular para refletir (exaltando-a) a diversidade da experiência humana, para responder às demandas sociais - essa dutilidade e essa onipresença conferem à voz do intérprete, em sua plena realidade fisiológica, uma aparência de universalidade, ao ponto de às vezes parecerem ressoar nela, que os abrange e significa, a ordem do chefe, o sermão do padre, o ensinamento dos Mestres. No caleidoscópio do discurso que faz o intérprete de poesia na praça do mercado, na corte senhorial, no adro da igreja, o que se revela àqueles que o escutam é a unidade do mundo. Os ouvintes precisam de tal percepção para ... sobreviver. Apenas ela, pela dádiva de uma palavra estranha, faz sentido, isto é, torna interpretável o que se vive. Mas o homem vive também a linguagem da qual ele provém, e é só no dizer poético que a linguagem se torna verdadeiramente signo das coisas e, ao mesmo tempo, significante dela mesma. É assim que, por sobre todas as contradições e rupturas da superfície, jamais a voz poética pode ser recebida de maneira radicalmente diversa daquela do padre, do príncipe, do mestre. Ela' se ergue do mesmo lugar, anterior às palavras pronunciadas, mas ressoando com todos esses ecos, graças às sonoridades que emanam desta boca, deste rosto, escandidas com o gesto desta mão.
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4 A PALAVRA FUNDADORA
A voz da Igreja. Os Doutores. Os Príncipes. Convergências funcionais. O nomadismo da voz. A idéia do poder real da palavra, idéia profundamente ancorada nas mentalidades de então, gera um quadro moral do universo. Todo discurso é ação, física e psiquicamente efetiva. Donde a riqueza das tradições orais, contrárias ao que quebra o ritmo da voz viva. O Verbo se expande no mundo, que por seu meio foi criado e ao qual dá vida. Na palavra se origina o poder do chefe e da política, do camponês e da semente. O artesão que modela um objeto pronuncia as palavras que fecundam seu ato. Verticalidade luminosa que jorra das trevas interiores, fundadas sobre os paganismos arcaicos, ainda marcadas por esses tracos profundos, a palavra proferida pela Voz cria o que ela diz. No entanto, toda palavra não é só Palavra. Há a palavra ordinária, banal superficialmente demonstradora, e a palavra-força; uma palavra inconsistente, versátil, e uma palavra mais fixada, enriquecida por seu próprio fundo, arquivo sonoro de massas que, em sua imensa maioria, ignoram a escrita e são ainda mentalmente inaptas a participar de outros modos de comunicação que não o verbal, inaptas - por isso mesmo - a racionalizar suas modalidades de ação. A palavra-força tem seus portadores privilegiados: velhos, pregadores, chefes, santos e, de maneira pouco diferente, os poetas; ela tem seus lugares privilegiados: a corte, o quarto das damas, a praça da cidade, a borda dos poços, a encruzilhada da igreja. A igreja-edifício, onde se desenrolam a liturgia e, em geral, a pregação. Mais ainda, porém, a Igreja-instituição, com suas hierarquias e seu aparelho de governo, depositária (no seio da sociedade) de uma funcão totalizadora. Na ordem das crenças e dos ritos, a dupla procissão
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da mensagem divina, Verbum e Scriptura, impedia que fosse colocada em questão a autoridade do primeiro. O catolicismo fazia da "tradição" uma das duas fontes do dogma, e essa noção abrangia, com os escritos patrísticos, uma vasto circuito de discussões e declarações orais, institucionalizadas em práticas pastorais ou conciliares. Até o século XII, o bispo (mais experimentado, nota Duby, do que o rei no manejo da retórica) tem de fato o monopólio da palavra verídica. 1 Em seguida, um início da laicização se produziu, para proveito, sempre contestado, do discurso político ... e da poesia. Mas, na relação dramatizada que confronta com o sagrado o homo religiosus, a voz intervém sempre, ao mesmo tempo como poder e como verdade. A seu sopro se realizam as formas sacramentais e exorcizantes sem as quais não haveria salvação. Ela não é, então, apenas meio de transmissão de uma doutrina; é, enquanto perdura, fundadora de uma fé. Por isso, até a Reforma, e depois dela, a maioria dos clérigos nutriu um preconceito a favor das comunicações orais. A técnica da exposição das sumas, como a de Tomás de Aquino, é a disputatio, a "discussão". Por que, pergunta Tomás (ma, questio 32, art. 4), Jesus não escreveu? Porque a palavra permanece mais perto do coração e não exige transposição; é saber direto; Pitágoras e Sócrates já tinham consciência disso ... A prática da confissão dita auricular expandiu-se progressivamente a partir do ano 1000, no próprio quadro de uma teologia penitencial constituída em escritura. A insistência dos tratados de disciplina monástica no valor do silêncio testemunha a um só tempo a invasão dos claustros pela palavra e a vontade de purificá-Ia. Albertano da Brescia não escrevia em 1245 um De arte loquendi et tacendi ("Arte de falar e de calar")? Donde uma constante troca de funções entre clercs e portadores de poesia. Uma concorrência inconfessada parece mesmo ter-se instaurado desde o tempo da evangelização e perdurará até o século XIX. Daí a severidade dos julgamentos decretados pelo magistério sobre os mimi e scurrae de todo o gênero. Nisso, a Idade Média ocidental não difere nada de outras culturas eurasiáticas - o islarnismo e o budismo -, comportando um corpo clerical, cioso detentor da Palavra da Verdade! Nossos relatos hagiográficos assinalam, no entanto, conversões ocorridas durante a audição de um piedoso jogral: a de s. Aybert, no início do século XII; a do herético Pierre Valdo, por volta de 1270. A amplificação teatral da liturgia, característica dos séculos X, XI e XII, exigiu freqüentemente o recurso aos especialistas da poesia e do canto em língua vulgar. O clérigo do castelo senhorial era, para seu patrão, tanto um .unclão quanto um contador.ê Por volta de 1140, redigindo a pedido de 11111 cônego de Arras uma carta de orientação espiritual, s. Bernardo
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dI' Clairvaux propunha a seu correspondente comportar-se como um IW'lIlalor: ele ouvia, como um "louco de Deus", buscando seu próprio uvlltumento aos olhos dos homens.' Era o ponto de vista do prelado IOllservador. Quando Francisco de Assis se dizia "jogral de Deus", Il'fcria-se a sua disponibilidade e sua alegria. Por vocação errantes e pregadoras, as ordens mendicantes entra'111m no espaço do jogral. Os primeiros franciscanos, conta Salimbene, I'oram tratados como "histriões". De fato, com o Cãntico das criaturas : os Laudi anônimos até Iacopone, os primeiros franciscanos ocupam 11m lugar privilegiado na história da poesia italiana mais antiga. Mas, 11(\ intenção, sua palavra poética não se distingue em nada de sua palavra pastoral. Procuram o lugar central em que, pelo verbo, se possa operar .om o populus christianus um contato frutuoso: testemunha-o a língua que empregam, a da "sábia ignorância", que modulam nos registros do .otidiano e do mais comum. Situam-se, ultrapassando-a, numa tradicão eclesiástica que remontava ao século IX e visava a pôr ao alcance dos fiéis menos instruídos a forma, o tom, o conteúdo das pregações. Essa prática não tinha unanimidade: em 1200 ainda, o prior eleito de Bury Saint Edmunds, na Inglaterra, recusava o encargo, julgando-se incapaz de pregar em latim." É verdade que se tratava de monges, mas quantos destes entendiam o latim? Ilustres pregadores do século XII, como Maurice de Sully, pregaram em língua vulgar para o povo; mas a maioria das homilias que nos restam é em latim, várias retraduzidas da língua vulgar ... boa exatamente para o uso oral! O historiador não pode deixar de espantar-se antes as analogias que essa situação oferece com a da poesia na língua vulgar durante os mesmos séculos. Sem dúvida, tal é a razão pela qual só chegou até nós um número ínfimo de sermões dos frades mendicantes. Aliás, qualquer que fosse a posição destes a respeito dos intérpretes profissionais da poesia vulgar, esses últimos lhes dariam o exemplo de técnicas havia longo tempo experimentadas, as únicas de que dispunha a sociedade para a comunicação de massa - procedimentos que supunham perfeito domínio da voz, do gesto, do cenário significante. Introduzem-se os sermões por um "Ouçam!", fórmula conhecida; cita-se (cantarolando-a, sem dúvida) uma cançoneta.' O superior dos frades pregadores [os dominicanos], Hubert de Romans, no século XIII, enumera as 44 situações em que se pode pronunciar um sermão; várias delas constituem também oportunidades privilegiadas de exibição jogralesca: núpcias, assembléias de confrarias, feiras e mercados!" Os Contes moralisés do franciscano anglo-normando Nicole Bozon, por volta de 1300, são contos propriamente ditos, sermões populares ou imitações destes? A cultura livresca e escolar, de-
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pois dos difíceis começos das ordens novas, impregnará o discurso pastoral; mas, longe de enclausurar-se aí, o pregador contribuirá para difundi-Ia junto a uma população que lhe é estranha e para integrar setores inteiros desta nas tradições orais; papel de mediação que preenchem também, por seu lado e ordem própria, as poesias de língua vulgar em todo o Ocidente. Uma convergência iria produzir-se no aparelho do dizer: em francês, em occitânico, em alemão, em italiano, rimam-se sermões em verso, com um ritmo que freqüentemente é muito elaborado e que, a nossos olhos, mais nada distingue formalmente do resto da poesia. Onde traçar a fronteira entre tais textos e os Laudi franciscanos ou os vers de Ia mort franceses do século XIII? Supôs-se, não sem verossimilhança, que as Danças Macabras dos séculos XIV e xv tenham tido origem num sermão versífícado.? O pseudo-agostiniano Sermo contra Judaeos, lido em várias igrejas no ofício das matinas de Natal, desenvolveu-se até engendrar, no século XII, um gênero dramático particular, largamente divulgado na França, na Espanha e na Itália, o Ordo Prophetarum. Uma versão em língua vulgar foi integrada ao Jeu d'Adam, tido como a mais antiga peça francesa de teatro, mas que, no todo, poderia igualmente ser interpretado como um sermão dialogado em forma de mimo. O único manuscrito que nos foi conservado contém, afora vários relatos hagiográficos, uma série de textos que mostram o mesmo caráter ambíguo. O que nos surge como um jogo de interferências foi, sem dúvida, percebido pela maioria dos contemporâneos como a manifestação de uma unidade profunda das energias humanas, polarizadas pela voz. A violenta diatribe de Dante, no Canto XXIX do "Paraíso", trai uma reação de intelectual, que não admite sacrificar-se a "filosofia" ao "pensamento das aparências", o discurso divino à exibição. A ampliação da arte predicatória a reaproxima, num ponto preciso, da prática dos contadores profissionais: o sermão, a homilia se recheiam de apólogos, os exempla - técnica não desprovida de antecedentes, mas que tende a generalizar-se entre 1170 e 1250, mesma época em que, nas jovens universidades, se constituem as artes praedicandi, sistematizando em termos de retórica a eloqüência pastoral. Depois de 1250, por um século, a moda dos exempla faz furor! Para servirem de sermonários, reúnem-se compilações extraídas das mais diversas fontes, sobretudo das tradições narrativas orais, locais ou exóticas: possuímos nada menos que 46, dos séculos XIII, XIV e XV, as quais às vezes classificam sua matéria em ordem alfabética, a fim de facilitar a utilização. De fato, constata-se uma interessante corrente de intercâmbios entre os exempla e formas de divertimento narrativo como os fabliaux, apoiados talvez, por uma parte, num antigo folclore. Váriosfabliaux de-
signam a si próprios com o nome essample. Para o ouvinte, devia ser bem frouxo o limite entre esses relatos que são declamados nas esquinas e os que ornam a pregação de um monge de passagem, talvez também perorando na encruzilhada! Os heréticos, como por exemplo os cátaros, não agiam de outra maneira, e dispunham de um tesouro de exempla ... em parte os mesmos. A interpretação diferia. A prédica era o meio quase único da difusão das heresias, que, no essencial, permaneciam de tradição oral: sucediamse de modo contínuo do ano 1000 à Reforma, como o longo apelo de uma voz que nada consegue abafar. Se numerosos trovadores, após 1220, foram suspeitos de catarismo, os fatores sócio-históricos talvez não expliquem, sozinhos, esse fato. A mestria desses poetas-cantores e a aparente estranheza do que faziam escutar deviam também cheirar a heresia. Não obstante, a heresia de suas fímbrias mal se distingue do que se denominava, desde Étienne Delaruelle, a "reUgião POPlllar", esse outro cristianismo misturado de sobrevivênCias animistas, pouco distinto, em suas fronteiras, da bruxaria, esta também de tradição oral, coexistindo não sem conflito nem influências recíprocas com as doutrinas e as práticas sacerdotais. Ora, somente estas últimas - constituindo a Igreja institucionalizada - reivindicavam a autoridade de uma Escrita depositária da palavra divina. Os ensinamentos e os rituais da "religião popular" se transmitiam da boca ao ouvido. A voz se identificava ao Espírito vivo, seqüestrado pela escrita. A verdade se ligava ao poder vocal dos que sabiam, perpetuava-se só por seus discursos; retalhos do Evangelho aprendidos de cor, lembranças de histórias santas, elementos dissociados do Credo e do Decálogo, afogados num conjunto móbil de lendas, de fábulas, de receitas, de relatos hagiográficos. Dai, pode-se pensar, a profundidade em que se inscreviam, no psiquismo individual e coletivo, os valores próprios e o significado latente dessa Voz; mas também os equívocos, na superfície e em profundidade, entre ela e a voz portadora de poesia. O cristianismo popular - o qual Isambert nota que prolongava e em alguma medida perpetuava um "paganismo popular" da Antigüidade - recusava todo universalismo e, em contrapartida, aspirava a permitir a cada um, através de diversas mediações, um contato particularizado com o divino: um diálogo feito de palavra e de ouvido, num lugar e num tempo concretos e familiares. Tudo o que diziam ou cantavam os poetas e seus intérpretes tendia à mesma a-historicidade, na experiência única da audição. Esses fatores tiveram sobre as mentalidades e os costumes uma influência tão grande que a Igreja oficial, de duas maneiras, entreabriria a instituição para as manifestações da "religião popular": pelas festas,
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numerosas e periódicas, às quais dava pretexto sua liturgia, e pelo culto dos santos. O vínculo que liga a um antigo fundo de cultura camponesa as tradições hagiográficas, sublinhadas antigamente por Delehaye, só começa a se afrouxar no fim do século XII, quando aparecem os primeiros processos de canonização, substituindo a "voz do povo" pelo inquérito e pelo julgamento. Ainda se encontrarão até o século xv as canonizações espontâneas, impondo às autoridades eclesiásticas cultos que, a seus olhos, eram suspeitos: como aquele do "bom Werner", o pseudomártir renano do século xnr!" A mesma ambigüidade na transmissão da lembrança (história ou lenda) da personagem santa: se a escritura é seu veículo principal, sofreu forte influência das tradições orais, paralelas ou concorrentes. Podem-se contrastar e comparar dois andamentos a respeito de s. Guilherme de Gellone, protótipo do Guillaume épico, herói central do ciclo de mesmo nome." À época em que, a partir de meados do século XII, numerosos relatos hagiográficos latinos são adaptados em línguas vernáculas, essa transferência (implicando uma mudança de clientela) faz-se acompanhar de uma transformação narrativa às vezes profunda. A "tradução", destinada a ser recitada publicamente, como um sermão, é - salvo exceção e até os fins do século XIII - composta em versos, isto é, numa forma que privilegia os ritmos da linguagem. Todos os textos poéticos de língua românica que nos foram conservados de uma época anterior a 1100 serviram seja à liturgia, seja à transmissão hagiográfica, às vezes a uma e outra, como as "canções de santos" arcaicas, salmodiadas para ou pelos fiéis nos ofícios noturnos das grandes festas. A Igreja possuía o monopólio da escritura; não é nada espantoso que tenha consignado esses textos, e não outros, definitivamente perdidos para nós. Que seja, mas isso não explica tudo. Culto e poesia permaneciam funcionalmente unidos no nível das pulsões profundas, culminando na obra da voz. Não é pela analogia, e sim por outra maneira, que a voz poética se relaciona com a voz religiosa. Ela o faz em virtude de alguma identidade, parcial de fato, mas que por séculos foi sensível e produtora de emoção. Num mundo onde relações muito calorosas e muito estreitas ligavam na unicidade de seu destino os homens entre si e com a natureza, o campo de extensão do religioso, pouco distinto do mágico, era tão amplo quanto a experiência vivida. A "religião" fornecia à imensa maioria dos homens o único sistema acessível de explicação do mundo e de ação simbólica sobre o real. Sem dúvida, na prática social a poesia se distinguia bem pouco da "religião", nesse papel.
Duas outras esferas da atividade vocal - mal dissociáveis, estas também, do religioso - mantêm com a poesia as mesmas estreitas relações, numa corrente de trocas funcionais recíprocas e incessantes: o ensino, no sentido mais lato do termo, e o exercício do poder segundo as regras do direito. Identificadas ao exercício eclesial, tanto a liturgia quanto a pregação têm por objeto a transmissão de um saber privilegiado, indispensável à conservação do pacto social e à realização individual e coletiva. Mas outros saberes, menos dignificados, determinam de fato o funcionamento do grupo humano: aqueles que, informando os procedimentos e o uso das técnicas, regem a existência cotidiana e a produção dos bens. Sua transmissão, dentro da família ou da célula artesanal, é confiada à voz e ao gesto. A introdução e a difusão de um instrumento "científico" (não obstante reservado, por sua função mesma, a uma minoria de clérigos) como o ábaco foram devidas às descrições que dele fizeram, da boca ao ouvido, aqueles que o tinham visto nas mãos dos ma-o temáticos árabes, no século x. JO Teve de acontecer o mesmo com todas as tecnologias importadas pela cristandade, até o século XIII. De fato, diversos "tratados" nos foram preservados, desde a Mappae clavicu/a carolíngia, destinados a pintores e ourives; seu número aumenta depois do ano de 1300, mas eles continuam incomuns. Só nos séculos XVI e XVII virá o tempo em que o sentimento de uma oposição entre forma pura (a "Arte", a "Ciência") e sujeito (o artista) exigirá a mediação didática de um livro. Os raros textos em língua vulgar, como o Petit traité de relojoaria que publiquei antigamente ou os livros de cozinha do século xv, são apenas compilações de notas prematuras, lembretes mais ou menos inutilizáveis sem glosa oral... do mesmo modo, pode-se supor, que a maioria dos relatos de viagem ou peregrinação que as bibliotecas nos conservaram. No meio artesanal, o gosto ou a necessidade do segredo (que muitas culturas ligam ao conhecimento) pôde travar, se não impedir completamente, outras modalidades de aprendizagem afora a pela voz do Mestre. Tal foi a política das guildas. A alquimia nos oferece outro exemplo - ilustrando por outra via a nota de W. Ong segundo a qual, nas culturas em que predomina a oralidade, os conhecimentos mais abstratos ou permanecem apenas potenciais no espírito ou apresentam um caráter implícito, fechado, simbólico, próximo do que fazem o mito e a poesia, e excluem as categorizações racionais." Qualquer que tenha sido sua antigüidade (relacionaram-na à magia primitiva das artes do metal), a alquimia foi designada por seus adeptos medievais pelo nome phi/osophia, assim chamada por referir-se não a uma especulação pura,
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mas a uma tradição do saber emblematizada por Mercúrio, deus mensageiro e "argento-vivo" inagarrávelanálogo ao que entre nós, por volta de 1930, se denominava "conhecimento poético"! Com efeito, a alquimia, tanto quanto a poesia, não possui nem a ambição nem a função de descobrir o novo. Só precisa, como a poesia, transmitir segredos; envolve com um ritual o cumprimento de sua tarefa: o rito põe em ação o que fala. Daí a permanência, não obstante algumas reacomodações superficiais, das imagens fundamentais e das estruturas metafóricas da linguagem alquímica que penetra no Ocidente cristão no século XII. Alguns desses elementos foram consignados por escrito, mas é graças à transmissão oral que o conjunto conserva sua coerência. Graças a ela, retalhos do saber filosofal filtram-se fora do círculo dos iniciados e, já se supôs por várias vezes, informam a sensibilidade, se não a ideologia, de alguns poetas: a idéia que Chrétien de Troyes faz do Graal poderia ter que ver com tais influências; 12no século XIV, e sobretudo nos séculos xv e XVI, elas sensibilizam (de maneira difusa, mescladas àquelas que provêm do hermetismo e da cabala) a maioria dos escritores letrados. A voz é o intérprete da Filosofia e da Grande Obra que a realiza. Todo gesto operatório se acompanha de palavras que o semantizam interpretando-o. A partir do século XII, segura de seus saberes, a alquimia ocidental entra - com passos silenciosos - na idade da escritura: traduzem-se para o latim diversas obras árabes; Nicolas Flamel, no início do século xv, faz um relato exemplar de sua vida e de seus trabalhos no Livre desfigures hiéroglyphiques: a obra orienta-se somente para a prática e remete às tradições mantidas pelas confrarias. 13 A Filosofia é concebida por seus adeptos como "prova reta de natureza firme e verdadeira, dita da boca de filósofo experimentado na verdade", segundo os termos do anônimo Puissance d'amour, por volta de 1260.14 A alquimia é exemplar no que, em outra parte, manifesta de um modo de ser meio oculto a nossos olhos. Os termos empregados pelo autor do Puissance d'amour se aplicariam igualmente ao ensino dispensado nas escolas, monásticas ou urbanas, desde a alta Idade Média até para além da primeira difusão das universidades, nos séculos XIII e XIV. Na palavra viva, iniciática, deposita-se o germe de todo o conhecimento. As notas, se o professor as redige, vêm depois resumir seu discurso. Prova-se e experimenta-se o saber pelo exercício vocal: a instauração dos exames escritos é muito posterior à invenção da imprensa! O cursus studiorum, programa de estudos, organiza-se tendo em vista levar à perfeição a palavra, da qual depende a autoridade e a utilidade da ciência. Quando se propaga, após 1250, entre os estudantes, o uso da reportatio (os apontamentos), certos mestres o deploram. Ensina-se o latim, lín-
gua morta, para todos esses clerigozinhos, mas vigia-se a qualidade da pronúncia. Esforçam-se para pelo menos inculcar os traços que parecem essenciais à correção da leitura em voz alta: a tradição das artes lectoriae se inscreve nessa prática." Desde a alta Idade Média, as técnicas pedagógicas se constituíram sobre uma estreita base de escrita, por memorização: conforme um costume que remonta à Antigüidade, cantarolam-se a sós ou em grupo as fórmulas que condensam os rudimentos de uma ciência, esses versus memoriales dos quais nos resta um vasto corpus, ainda mal inventariado. Mais ainda: possuímos alguns manuscritos que foram estabelecidos no meio escolar medieval e que fornecem extratos de Horácio e de Virgílio com uma notação musical! 16 Aprende-se de cor tal ou qual desses florilégios, numerosos desde o século x, destinados a conservar in arca pectoris (' 'no tabernáculo do coração") os Ditos dos Antigos. O Memoriale de Alexandre de Villedieu, do fim do século XII, manual básico largamente usado, tão-somente uma gramática versificada, portanto consagrada ao mesmo modo de utilização. Memorizada, ela funda, da parte do professor, a glosa oral, em equilíbrio instável nas fronteiras da escrita, pois a citação, que corrobora o dizer referindo-o à Autoridade, transita necessariamente pela voz - a voz do Autor, re-apresentada por quem a pronuncia numa performance quase teatralizada. O mesmo efeito produzido pelo uso constante (que a escolástica sistematizou) de formas pedagógicas dialogadas, disputationes, discussões ficcionais, quando não fictícias, mas nas quais a posição dos corpos presentes não pode deixar ninguém indiferente. O ensino medieval recuperava assim, revivificando-a, uma forma de expressão de tradição que era antiga tanto no Oriente quando na Grécia ... e que, por outro lado, produziu vários gêneros poéticos: diálogo simbólico de Cristo ou de um santo com um dos seus fiéis, mas também a tensó e o joc partit dos trovadores ou o debate alegórico. Na prática das escolas, nada separa as doutrinas que concernem ao desenvolvimento do pensamento e aquelas que se relacionam ao uso eficaz da palavra. Gramática e retórica funcionam no interior do Trívio como uma propedêutica geral, atestando a primazia do verbo humano na constituição das "artes liberais". A própria transmissão das artes se operava principalmente pela voz, e alguns dos caracteres próprios de qualquer expressão oral (sua adaptabilidade às circunstâncias, contrapartida da imprecisão nocional; sua teatralidade, mas também sua tendência à concisão tanto quanto à reiteração ...) se integravam em sua própria tecnicidade. Ainda recentemente, S. Lusignan, lembrava que o "formalismo" dos gêneros filosóficos medievais é muitas vezes só uma aparência. O lugar dado aos diferentes Auctores dos quais se obtinha
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a argumentação, especialmente nas artes do trívio, não cessou de variar. As fontes escritas, através das quais tentamos decifrar o que foi a teoria, dissimulam um pouco demais o que ela provavelmente teve de ambíguo, indissociável de uma prática, dos problemas concretos propostos por esta, das línguas faladas às quais se superpunha o latim.'? De que modo interpretar, a não ser como um eco da palavra viva de um bom pedagogo em presença de seus estudantes, os refrãos líricos que semeiam, em francês, por volta de 1250, o tratado latino do cisterciense Gérard de Liêge, Quinque incitamenta ad amandum Deum ardenter ("Os cinco motivos de um amor ardente de Deus,,)?18 Em geral, a escolástica apresenta mais rigor aparente, pelo menos nas disciplinas estranhas ao trívio: seu desenvolvimento vai de par com a extensão do mercado do livro e a constituição de bibliotecas. Entretanto, só no século XIV ela se faz ouvir, aqui e ali, advogando em favor de uma ciência fundada mais na leitura do que na audição. Aliás, foi então que apareceram os primeiros indícios de um enfraquecimento vocal da poesia ... Até essa data avançada, o ensino medieval não parava de recorrer aos métodos que M. Jousse designava "verbomotores" e "ritmopedagógicos": os mesmos que fundam toda a prática poética oral. Tais métodos, nós sabemos, triunfam, ainda em nossos dias, nas escolas semíticas de tipo tradicional, e pode-se perguntar se, no curso dos séculos pós-carolíngíos, uma influência judaica não se exerceu nos meios cristãos. Subestimou-se demasiado o peso que, nas cidades com comunidade judaica, as tradições próprias a esta pudessem ter sobre certas práticas, suscitando-as, confirmando-as, modelízando-as de alguma maneira. Pois o texto rabínico, base de ensino e de controvérsia, não é um livro: é ato de palavra relatada; tradição é Voz. Partes inteiras da Bíblia, como os Salmos, conservaram as marcas formais e as particularidades semânticas de um discurso oral. Ora, os Salmos foram, durante séculos em todo o Ocidente cristão, o livro no qual os escolares exercitavam a leitura, a pronúncia e a memorização. Por várias vezes no decorrer de sua longa história, o judaísmo seguiu o percurso próprio às religiões que se dizem "do Livro": uma Revelação primitiva, emanando de um elocutor divino, produz uma tradição oral no interior da qual se cristalizam as crenças recolhidas mais tarde numa Escritura, cujas riqueza e ambigüidades exigem que uma incessante glosa corrobore a mensagem, explicitando-a. Os comentários orais do midrash, os relatos da agadá formigam ao redor da Torá, da qual tornavam possível a leitura. odificados nos livros talmúdicos, proliferaram em novas ondas de oralidade através das judiarias, disseminando crenças e um folclore em reiõcs cuja extensão os eruditos descobrem hoje com espanto. Em meio 84
\ esse discurso infinito, a idéia de cabala (de uma raiz hebraica que significa "receber", isto é, "escutar") desde o século XII delimitou um cenI ro motor, um poder e uma regra: uma palavra, oculta somente no que I inha por primordial e reservada a um pequeno número de discípulos qualificados; transmitida sem escritura porque impossível de formular de outro modo que não pela boca; jamais fixada; pessoalmente recebida, vivida, retransmitida, abrangendo o conjunto dos modos de existir, de pensar e de dizer dos místicos judeus. O meio em que se formaram e viveram estes últimos constituía, portanto, uma rede estreita de relações que abrangia a Europa, do Mediterrâneo ao Danúbio e ao Rena, assegurando a circulação da vida entre comunidades aparentemente isoladas. Do lado cristão, os homens da Igreja e da Escola não os ignoravam, e a história é demarcada por conferências, colóquios, encontros, disputas ou intercâmbios de informações suscitados - a despeito de um anti-semitismo latente nos simples - pelos prelados ou mestres em busca da Hebraica veritas: Rabano Mauro, já no século IX; Sigo, abade de Saint-Florent-de-Saumur, nos meados do século XI; Étienne Harding, abade de Cíteaux, no século XII. O movimento então se generaliza, por um século ao menos, favorecido pelo progresso urbano. Em Troyes, as glosas do rabino Rashi tiveram autoridade; em Paris, um bairro judeu formou-se na Cité ao longo da rua que liga o Pont-au-Change ao Petit-Pont, segmento da grande estrada de comércio e de peregrinação que une o norte ao sul do reino e da Europa. A abadia de Saint-Victor, na outra margem do Sena, conta com duas ou três gerações hebraizantes, em relação mais ou menos estreita com os vizinhos da lIe. Hugues de Saint-Victor usa os comentários de Rashi, de Samuel ben Meir, de Joseph Karo; seus alunos Richard e André freqüentam os letrados da judiaria; André travará relações com o ilustre Joseph Bekhor Shor, de Orléans, cuja obra marcará a sua." Por tantos canais, qualquer que fosse o projeto inicial dos sábios cristãos, passava uma corrente de pensamento e de sensibilidade que não podia senão afinar sua percepção pela autoridade própria à palavra pronunciada. r:
Esses são, desde o início do século XII, os clérigos formados em tal ambiente institucional e mental que tentaram contar, para o imperador germânico, os reis da Inglaterra, os da França, até os príncipes russos, a história das nações em formação sob seus reinados. Seu alvo era político; participavam assim, em proveito (e, sem dúvida nenhuma, sob a'instigação) de seu amo, da consolidação de seu poder e da legitimação de suas iniciativas; os normandos da Inglaterra - não sem razão
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preocupados, após 1066, em garantir sua retaguarda e reunir em torno de si populações heterogêneas - tiveram nisso um papel iniciador. Pois os autores dessas primeiras "histórias nacionais" extraíram tanto (e por vezes mais) das fontes escritas quanto da tradição oral, coligida em seu meio, às vezes por sindicância.ê? Espontaneamente, integravam essa "história oral" que redes cobrimos por volta de 1950! Já meio milênio mais cedo, Beda, em sua história da Igreja anglo-saxônica, invocava (desviando o sentido de uma frase de s. Jerônimo) uma vera lux historiae ("luz verdadeira da história"), identificada àfama vulgi ("a voz pública")." É a ela que recorrem, com confiança, desde que a escrita não compareça (o que é freqüente), os cronistas dos duques da Normandia - de Guillaume de Jumieges a Wace - ou os historiadores das primeiras cruzadas - de Guibert de Nogent a Guillaume de Tyr -, extraindo do fervilhante universo relatos suscitados aos participantes dessa grande aventura pela força do choque que eles sentiram: os textos de Villehardouin, de Robert de CIari, de Phillippe de Novare ressoam como uma recorrente reivindicação de autoridade. JoinvilIe ainda, por volta de 1300, e Froissart, no limiar do século xv, baseiam-se mais de uma vez na lembrança que conservam dos discursos outrora escutados. O objeto da crônica recua a um período que, ao mesmo tempo, é muito antigo e desprovido de referência nos historiadores greco-latinos e nos livros bíblicos; a tradição oral torna-se a fonte quase única a que a escritura, com maior ou menor felicidade, dará forma - como a história antiga dos francos em Gregório de Tours ou a dos dinamarqueses no Saxo Grammaticus. Às vezes, é verdade, um protesto isolado se ergue - confirmando a contrario a opinião comum: assim, por volta de 1200, o autor de uma tradução da crônica do pseudo-Iurpin (a bem dizer, elogiando sua mercadoria aos patrões, o conde e a condessa de SaintPol) fulmina numa frase os que se contentam com a tradição oral, quar il non seivent rien fors par oir dire (' 'pois eles não sabem nada senão por ouvir dizer").22 Em contrapartida, Orderic Vidal, na Historia ecclesiastica, VI, 8, evoca (deplorando que, por força de certos acontecimentos, seja essa a nossa única fonte de informações) os veneráveis relatos dos velhos que narram aos jovens em volta os eventos de sua longa vida, de modo a exortá-los à virtude!" Virtude e verdade coincidem. Os Anciãos, exemplos vivos, são os depositários da memória coletiva. Sua palavra a manifesta, num estilo formular cujo eco se percebe em várias crônicas. Até além do século xv, e em certos lugares além do século XVI, a palavra permanecerá, se não a fonte última, pelo menos a manifestação mais convincente da autoridade. A esse duplo título, é o instru-
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mente privilegiado da aplicação do direito e do exercício do poder. O 1110 jurídico mais pessoal, a devolução testamentária dos bens de um uioribundo - apesar de sua consignação escrita, relativamente freqüente depois do século XIII -, é fundamentalmente oral, declaração tomada por escrito pelo notário, mas autenticada por uma voz que reconhece 1IS testemunhas: regulamento tão sem equívocos que suscita na ficção o gênero poético testamento, já constituído duzentos anos antes de Vil!OI1, cujo talento soube devolver-lhe o vigor original de performance vocal. A verdade do direito é concreta, é percebida sensorialmente. A promulgação de uma lei, de um edito, é sua proclamação. Os agentes régios, os arautos, dedicam-se a esse ofício. Na Islândia, onde as leis por longo tempo permaneceram puramente orais, o único funcionário da sociedade, e personagem importante, é o "declarador de lei" (lôgsõgumadnn," Por- toda a parte, a culpa ou a inocência comportam uma materialidade. A vista, a mão agarram o objeto litigioso ou seu símbolo; a voz pronuncia-lhe o sentido. Se (como os reis tentam impor a partir dos séculos XII e, sobretudo, XIII) um processo comporta exibição de provas escritas, é pela leitura pública que estas requerem a condenação. O ritual, um comportamento codificado e normalizado, atesta e obriga, mais do que os textos. Daí, juntos, a eficácia do sistema no cotidiano da existência, seu caráter jurídico constrangedor. .. e sua falta de rigor. J. l.e Goff cita nada menos do que 98 objetos simbólicos que podem, por ocasião do juramento vassalático, significar a homenagem e o vínculo que ela cria. Uma reminiscência da jurisprudência romana levava, uma vez o acordo concluído, à instituição de um documento. Desde a alta Idade Média, os próprios povos germânicos adquiriram esse hábito. No entanto, aos olhos da maioria, a "carta" assim lavrada ficou por muito tempo como o simples lembrete alegórico de um ato efetivo, ele mesmo criador do direito. Donde as cartae sine litteris às vezes utilizadas, pedaços de pergaminho não escrito, puros símbolos, tal como o selo régio que, dispensando outro instrumento, acredita um embaixador e as palavras que este vai dizer. Em caso de contestação, o sistema exclui das motivações toda perspectiva universal e, em vez de decidir, visa ao regateio e ao compromisso. Bernard d'Angers evoca um processo, em torno do ano 1000, em que na confusão dos gritos misturados das partes toda noção de verdade se apagava." No século XIII, as coisas mudaram pouco a pouco, sob a ação conjunta dos reis e da burguesia urbana. Então se evaporará aos poucos a idéia tradicional de que ser um chefe é dizer o direito; de que, no presente de uma confrontação física, visual e auditivamente real, o manifestar é a norma, logo o justo. 87
No interior de um grupo social claramente identificável por cada um de seus membros, esse "direito costumeiro" implicava adesão comum a uma regra oralmente transmitida, que emanava da memória coletiva interiorizada e suscitava, com o passado social, uma relação ontológica: o "costume". Este provém de duas fontes confluentes: a antigüidade e a repetição; manifesta-se na palavra, geralmente formular, suficiente para dar fé. Distinto do que chamaríamos uso, é concebido como imemorial; de fato, são invocados às vezes costumes que sabemos remontar (sobretudo em se tratando de propriedade territorial) apenas a uma ou duas gerações. A idade avançada e uma longa memória habilitam a testemunha ou o juiz a fornecer de viva voz a prova. Se necessário, requerem-se na comunidade as lembranças de cada um: é o inquérito "por turba", na presença de peritos designados porta-vozes da norma coletiva. Ao rei, ao senhor, resulta um poder legal: mas que faz uma lei senão "restaurar" um costume em declínio ou esquecimento? Ao menos será invocada como pretexto. Nenhum outro ordenamento tem a autoridade plenária de um costume atestado, presente na palavra que o diz: propriedade inalienáveI do pequeno número de homens e mulheres que constituem, hic et nunc, a entidade social, num espaço "ao alcance da voz"; lembrança (para além do esmigalhamento dos primeiros feudos) de práticas germânicas da alta Idade Média, que faziam da assembléia (geral, em princípio) dos homens livres a origem de todo o direito - o placitum ou mallus dos francos latinizados, o holimote anglo-saxônico, o Althing da Islândia." Decorre disso uma extrema diversidade, de província a província, de cidade a cidade; mas também uma grande flexibilidade: o costume mais aconselha do que ordena; múltiplo, às vezes se contradiz; é mais ou menos notório, donde os acomodamentos, inovações camufladas. Quando, durante a alta Idade Média, a influência do modelo romano levou os reis bárbaros a mandar tomar por escrito os costumes de seus povos, o Breviarum de Alarico, as Leges dos burgúndios, o código de Eurico, a Lex Gundobada, a Lei Sálica, as leis anglo-saxônicas de Etelberto, em Kent, todos esses textos dos séculos VI e VII destinavam-se apenas a preencher uma função probatória. Continuavam a tirar sua força da voz muito antiga que os tinha pronunciado. Os capitulares carolíngios restauraram por algum tempo, de maneira muito parcial, um regime de direito escrito. Mas, no século x, o Ocidente inteiro vivia conforme seus costumes. No fim do século XI, o Domesday book, compilado por ordem de Guilherme, o Conquistador, pareceu abrir na Inglaterra uma época nova: a colação dos costumes da Mércia, de Wessex, do Danelagh deve, assegurando a cada indivíduo o seu direito, fazer predo-
minar a forma codificada. Na realidade, apesar da forte impressão que esse empreendimento causou nos contemporâneos, o Domesday book permaneceu quase letra morta durante dois séculos; em 1279, Eduardo I recomeçaria o levantamento." Por essa data, na França e na Alemanha, as leis consuetudinárias de várias regiões tinham sido redigi das ou iam logo sê-lo: o movimento se tinha estimulado desde o fim do século XII e continuaria até o XVIII. Mas, do Três ancien coutumier de Normandie, de 1199, e dos Assises de Jérusalem ao Sachsenspiegel, ao Müh/hauser Rechtsbuch e às compilações estabeIecidas a pedido de Carlos VII, como teriam essas redações sido possíveis sem os depoimentos de testemunhas depositárias desse saber coletivo, sem que se tivessem levado em conta as modulações que sua voz, seu gesto conferiam ao discurso? Hector de Chartres, encarregado de coligir os costumes que regiam a exploração das florestas normandas, ali trabalhou de 1338 a 1405, visitou 350 paróquias, escutou mil testemunhos! A fluidez dos costumes se prestava mal à codificação. A escritura petrificava o que tinha sido conservadorismo móvel e vivo. Por isso, pouco a pouco, outro modelo se impôs, num espaço de tempo (passados 1100, 1200, 1300 mesmo) em que todas as dinastias principescas, da Inglaterra e de Castela à Polônia - ou, na Itália, as municipalidades urbanas -, tomavam consciência de seu poder e, nessa mesma medida, desconfiavam dos costumes locais; era o modelo do direito canônico (escrito e, ainda em parte, de tradição romana), textos bíblicos ou patrísticos, decretos conciliares, bulas papais, cedo organizados em coleções como o Corpus juris e o Decretum de Graciano, por volta de 1140, cuja prática tinha estendido a competência, em matéria civil e criminal, bem além dos limites da Igreja. De fato, a lenta descoberta que a Europa, a partir do século XII, fez dos textos de direito romano e, em parte sob essa influência, o reaparecimento de uma legislação régia escrita marcaram, no limite, a universalidade das relações sociais. Escrito, o direito se tornava projetivo, engajava o vindouro. O preço dessa transformação era pesado, e as velhas comunidades, presas num feudalismo desusado mas ainda vivo, não eram tão senhoras de si para assumir tal carga ... O movimento era irreversível. No século XIII, em todo o Ocidente, nota-se um recuo geral dos coslumes. Doravante, até o triunfo das primeiras monarquias autoritárias, 110 final do século XV, dois registros jurídicos coexistem, mal distinguindo-se porque as marcas orais (formulismo, labilidade) do primeiro subsistem no segundo, ao passo que este pouco a pouco impregna aquele. O segundo decorre (pelo canal das glosas de "Iegistas") dos princípios enunciados outrora por Justiniano; o primeiro, de uma longa opinião unânime. Resulta de conflitos, com os quais se inquietava já Jacques
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o próprio
Nesse querer da sociedade européia, até o século XVI ao menos, o que resiste aos costumes e mentalidades escriturais é uma espécie de nomadismo radical, histórica e ontologicamente vinculado à preeminência da voz. A escritura, com suas pompas e suas obras, cada vez mais firmemente trata de ancorar-se na estabilidade de um mundo que, arrastado por uma incessante deriva vocal, dela tanto se esquiva quanto foge. Guillaume de Saint-Pathus, por volta de 1300, contando a uma das filhas de Luís IX as santas ações de seu pai, distingue dois tempos da existência, que produzem para cada um o ritmo: a demeure [residência, estada] e a chevauchée [cavalgada, jornada]. A segunda leva vantagem nas formas do imaginário: a vida é uma viagem, segue-se o itinerário da alma. A viagem, de fato, é lenta; e longo é todo o seu itinerário. Desloca-se a pé, a passo de animal, ao rés do chão; após três anos, como Marco Polo, acaba-se por chegar aos mongóis. Mas não se pára.
Marco Polo voltou a Veneza. No século XIII, à época em que se precisam os traços agora definitivos da ordem nobiliária, os clercs encarregados de elaborar-lhe uma definição insistem na certa habitatio, o lugar fixo, aquele de onde se é;29logo, graças a um jogo de preposições, o topônimo que o designa se tornará patrônimo! Desse modo, o nobre se distinguirá, por muito tempo ainda, de todos os outros. No entanto, cada primavera o chama para recomeçar a guerra, que é uma saída - talvez mortal - desse lugar; e sua gesta instituidora recita em termos mais de vagueação do que de estabilidade assegurada ... Em torno dele, um povo pouco numeroso se espalha em lugarejos isolados, que separam desertos, florestas, charnecas, pântanos, montanhas, em burgos mal ligados entre si por péssimas estradas, trilhas sazonais. As aldeias se deslocam, como acampamentos, ou então são abandonadas. Na Alemanha, ao longo dos séculos medievais, de 200/0 a 40% das aldeias, conforme as regiões, teriam sido assim, um dia ou outro, abandonadas." Mas quantos castelos não foram construí dos, destruídos, reconstruí dos em outra parte, cqmo em busca de um verdadeiro lugar? Na estreiteza, enclausuramento, imprecisão desses fragmentos humanizados de espaço, o amigo e o inimigo, o poderoso, o fraco, o traidor são seres conhecidos, cujo rosto se oferece a todo o instante ao olhar, cuja voz se escuta, ressoa aqui e agora na riqueza ou na pobreza con-: eretas de seus timbres, de seu alcance. Se de algures surgisse, por milagre, um rosto novo, jamais visto, faiscariam o terror ou a esperança irracionais. Além de "nosso lar", no desconhecido e estranho, estende-se o círculo imenso de um universo fragmentado, cujas células isoladas às vezes se reaproximam, por um dia ou uma estação, quando passa o recebedor de gabelas ou uma tropa de soldados do rei; depois elas recaem em si mesmas, ao redor do castelo senhorial, da casa do intendente ou da cruz de uma encruzilhada. Tal é, em seu enraizamento sociológico, o universo da voz, onde nada da existência coletiva, nem mesmo da realidade ambiente, pode ser percebido e entendido a menos que passe por ela. Tal é, em sua significância íntima, o nomadismo da voz. As cidades escapam melhor, e cada vez mais, a essa insularidade móvel. Mas permanecem relativamente raras até o século XII, e seu crescimento é mais tardio ainda; antes do século xv, não modificam realmente a paisagem social e mental, exceto em algumas regiões como Flandres ou a Itália sententrional. As cidades são filhas da Escrita. Em torno delas se reconstruíram muralhas antigas ou ergueram-se outras, às vezes concentricamente, como em Paris, na proporção do crescimento da população. Essas paredes, porém, recortam o mundo em "dentro" e "fora"; rejeitam os marginais, excluídos por algum tempo ou por natureza,
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de Révigny, que, por volta de 1260-70, ensinava o direito romano em Orléans.f Mas, apesar dessas divergências, a aplicação final do direito se opera mediante uma série de atos vocais, petições, sentenças. Há aí uma semelhança - aparentemente estranha, mas não fortuita - entre a história do direito e a da poesia, tanto em latim quanto nas línguas vulgares. Oposições entre uma tradição provinda, mais ou menos diretamente, da estética da baixa Antigüidade e as "inovações" cujas fontes dispersas são, às vezes, muito mais profundas ou longínquas; tensões entre prática oral e formas escritas, entre língua erudita e discurso cotidiano, produzindo necessidades expressivas novas, num contexto social modificado; deslocamento progressivo do centro de gravidade de todo o sistema lingüístico ... e, aproximativamente, até cronológico - época que oscila entre 1100 e 1250, com estertores para além de 1350-1400, anunciando perturbações por vir num imprevisível futuro. Em 1977, um livro de R. H. Bloch sublinhava com vigor esses paralelismos: concentrando sua análise nos séculos XII e XIII, conduzia-a, de maneira convincente, sobre o terreno dos costumes e da ideologia. Mas uma relação ainda muito mais complexa, enraizada nos fantasmas atávicos que fundam a sociedade humana, vincula um ao outro esses dois gêneros de discurso, jurídico e poético, e cada um deles ao discurso religioso e profético. Um querer fermenta e levanta as obras: vontade de ultrapassar a contingência do vivido, de frear a dispersão aleatória das palavras, de transcender o acidental liberando a historicidade própria, sobre a qual se constrói e pela qual se sustentam a autoridade moral, a consciêneia de uma coletividade e sua capacidade de ação.
uns tidos como perigosos, miseráveis, lascivos, mulheres da vida ou leprosos, e outros subjugados mas úteis, mantidos a uma distância salubre, como os judeus e os "lombardos". Donde as perturbações sociais que, multiplicando-se no meio urbano a partir de 1250, ali introduziram, pela violência, uma nova e imprevisível instabilidade. Ainda assim, para o pobre, se lhe deixam a vida depois de um motim inevitavelmente esmagado, o que sobra senão fugir? Toda essa gente, vagabundeando aí fora, é um problema para o citadino. Nas próprias aldeias, à medida que eles se enraízam, desconfia-se dos horsains [forasteiros]. Mas os construtores das cidades edificaram-nas em volta de uma praça pública, onde todos se reúnem, onde se encontram como num lugar neutro os hóspedes de passagem, onde cada um se mostra e discursa, onde circulam as procissões e as paradas e se exibem os saltimbancos - substituto do nomadismo ambiente. Por toda a parte, a mesma ambigüidade. R. H. Bloch vê na proliferação das genealogias um dos caracteres definidores da sociedade francesa nos séculos XI-XIII. O traço não é unicamente francês, nem exclusivo dessa época: tende a fortalecer-se a partir do século xv. Nobres e burgueses enumeram seus ancestrais; e seus laços servem de amarras para suas linhagens - ameaçadas por quais correntes, que os arrastariam para onde? Inversamente, os deres que conceberam, no século XII, em homenagem a uma cavalaria em vias de sedentarizar-se, os relatos maravilhosos que chamaram "romances" deram-lhes por motor narrativo a "aventura", palavra estranha, vinda de um particípio futuro latino e designando qualquer fuga para diante, no tempo, certamente, mas antes no espaço. Entretanto, porjum contra-efeito notável, a maioria desses "romancistas" mostrava-se preocupada em fornecer a genealogia de seus "cavaleiros andantes". Paradoxo dessas composições, exaltando assim, na antevéspera de nossa modernidade, formas de vagueação arcaica, num universo fantasmagórico, de aparências móveis, de imprevisíveis violências ... mas que constituem os primeiros produtos de uma "escritura", num sentido próximo daquele que emprestamos a essa palavra! Retornarei a tal equívoco. Da Espanha às planícies da Moscóvia, os pontos mais fixos, aos quais parece ancorada a humanidade, são justamente os grandes mosteiros de todas as observâncias. Muitos deles são lugares de peregrinação, de modo que uma rede (às vezes vasta e complexa) de movimentos migratórios se organiza a seu redor, atraindo multidões durante séculos; e, para cada indivíduo lançado a essa aventura, o tamanho da viaem, os riscos do trajeto, os custos, o esgotamento físico a espreitar os mais fracos fazem mais do que uma empreitada, fazem um modo de
vida, sobreposto ou, por algum tempo, substituído a outro, qualquer que seja. A peregrinação é caminhada, mas ao mesmo tempo represenração mental, deslocamento menos no espaço comum do que num espaço-tempo específico, simultaneamente perigoso e sacro, metáfora ritualizada da condição de criatura. Situação contraditória? O comércio de longo curso, vinculado - causa e efeito - ao desenvolvimento urbano e a suas formas de sedentariedade, leva por estradas e rios suas caravanas, suas barcaças, e pelo mar seus navios; e conhece-se a extensão dessas andanças mercantis, as quais no século XIII irão alcançar, através das baldeações e dos intermediários árabes, o Extremo Oriente e os impérios da África. Hugues de Saint-Victor, no Didascalicon, 11, 24, faz o elogio desses mercatores que penetram nos lugares mais secretos do universo, aportam em costas desconhecidas e vão humanizar com seu negócio os povos selvagens! As comoções que dessa forma ativam e movem o mundo são mais do que um marulhar contínuo, são uma inquietude para com o universo, para consigo, para com Deus mesmo. Com o tempo, essas agitações se organizam em vez de se apaziguarem, ordenam-se em tendências maiores, às vezes contrárias, que irão subsistir até nossos séculos "modernos". Tal é, parece-me, a melhor perspectiva de onde considerar as tensões que a persistência das comunicações vocais engendra, num meio que, a longo prazo, tende a instaurar uma hegemonia da escrita. Duplo nomadismo, simultaneamente externo, voltado para os espaços a conquistar, e interno, impelido pelas ameaças de um fechamento temido; simultaneamente determinado pela natureza de toda a história, essa guerra incessante que os homens travam com o espaço que os cerca, misterioso, impenetrável, hostil, e pelo medo que renasce de si mesmo, no interior dos grupos enclausurados no horizonte estreito de um território cotidiano: risco e salvaguarda, lugar em que os conflitos explodem e enfraquecem, mas em que, ao longo do tempo, matariam - situação que descreveram, a propósito dos terrores do século xv, R. Muchembled e J. Delumeau." A comunidade humana se sente frágil; donde um esforço secular de criar instituições que sejam próprias para reforçá-Ia e cujos resultados começam a aparecer, conforme as regiões, nos séculos XII, XIII e XIV; donde a curiosidade e, entre alguns, a paixão pela escritura. Mas, ao apego que se manifesta para com a terra em que nascemos e que nos detém, opõe-se fortemente o desejo de outras terras, novas, ricas, onde a vida seria mais fácil e menos breve. No lado oposto, atua a tendência ao agrupamento; manifesta-se politicamente já enire os imperadores carolíngios, cuja ideologia devia marcar os limites do poder eclesiástico que a inspirara. Mais tarde ela seria reassumida
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pelas dinastias régias e, mais ainda e em união estreita com estas últimas, pelas burguesias urbanas. Um espaço fixo e um tempo medido existem desde então, exemplares, propostos a uma Europa em movimento perpétuo. Duplicação do existir, a qual aparece como um fato da natureza. As extensões ainda em grande parte florestais (apesar dos desmatamentos) que formam a França, os países alemães e eslavos, a Inglaterra, os Bálcãs durarão até os séculos XVI, XVII e XVIII, sulcadas por uma população errante, não integrável nas comunidades que atravessa, embora integrada na imagem global que fazem de si mesmas. Artífices cujos caminhos e atalhos constituem o espaço profissional, cordoeiros, poteiros, cesteiros, ferreiros, amoladores, músicos ambulantes, mascates, exibidores de ursos ou de relíquias, pastores que migram dos territórios mediterrâneos; soldados sem guerra, pobres cavaleiros sem amo; e todos os vagabundos que a miséria, a doença, a ruptura de um vínculo social, o temor de uma vingança e o gosto do diferente perseguem ao acaso: goliardos, clérigos errantes, escolares sacolejando de cidade em cidade, monges fugitivos, mendigos, bandidos, prostitutas, videntes, curandeiros e (a crerse nas lendas difundidas em toda a parte) almas penadas. Quando, ao longo do século XII, manifestam-se na Alemanha, França e Inglaterra os primeiros movimentos anti-semitas, periodicamente os judeus também são jogados nas estradas do exílio incerto. Em 1182, Filipe Augusto expulsa-os de seu domínio; em 1196, ele os anistia; em 1276, 1283, 1291, 1299, obriga-os a se concentrarem nas grandes cidades; em 1306, Filipe, o Belo, expulsa-os de novo; em 1315, Luís X os anistia e, a partir de 1320, inicia uma série de pogroms. Isso só no reino da França ... Em meados do século XIV, os primeiros ciganos aparecem nas ilhas do Mediterrâneo; por volta de 1400, alcançam a Hungria; cerca de 1420, a Alemanha; cerca de 1450, a Espanha. No outro extremo da escala social, os nobres deslocam-se com grande aparelhagem, para a guerra, otorneio, a festa ou, universalmente, a caça. À medida que o mundo se vai aburguesando e estabilizando, a classe nobre produz mais heróis para todo o serviço, mata-mouros ou desportistas errantes, percorrendo de armadura a Europa em busca de oportunidades de glória: um Hans von Traun no século xrv, um Jacques de Lalaing no século xv. O romance se apoderou de tais figuras e criou Jean de Saintré e d. Quixote. É desse mundo que a maioria dos intérpretes de poesia é porta-voz. nesse mundo que vive, compartilhando a sorte e os conflitos. Contra a onipresença dessa voz sem lugar, uma parte do corpo social se defende, às cegas e sem entender a jogada. A recusa desdenhosa que os "roIl1nl1cistas" da primeira geração, como Chrétian de Troyes, opõem à 94
arte dos "contadores" é (tal qual os regulamentos municipais contra a vagabundagem) a recusa de um nomadismo radical, um cerceamento da própria linguagem, tornando real o imaginário poético. É contra o nomadismo social que se constituiu, no nível dos lugares próximos e concretos, o primeiro feudalismo; em seguida, mais abstratamente, como se em direção ao universal, constituíram-se principados e reinados. Mas, até meados do século XII, a palavra poética, nas línguas maternas, formava-se unicamente na boca dos nômades. E essa situação, no interior das comunidades que pareciam (falsamente) cada vez menos prestar-se a isso, perdurou - alterada, diversamente modalizada - até bem depois de Gutenberg. Quantas Vidas de trovadores, redigi das nos séculos XIV e xv, assinalam elogiosamente as vagueações de seu herói, como Élias Cairel, do Périgord, letrado "sutil na poesia e na palavra", que serquet Ia major parte de terra habitada ("percorreu a maior parte da terra habitada")." Eterno retorno dos errantes aos lugares sucessivos de um mundo findo, onde tudo sempre recomeça, na perspectiva de milenarismos jamais completamente sufocados, essas andanças pelo universo, essa busca espiral do Graal, do preste João, do rei Congo, das ilhas do Grande Cã - tudo que impede a história de fechar-se em Destino, e a palavra, em livro fechado.
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Tudo o que tive em conta nos capítulos precedentes não impede que a "Idade Média" fosse - também - uma idade da escritura. Donde um problema que o medievalista não pode eludir. Durante longo tempo, Chaytor foi o único a tê-lo explicitamente colocado; a partir de 1979, em compensação, vários autores o retomaram e aprofundaram seus dados: a saber, M. Clanchy, F. Bâuml, B. Stock. Aqui, só o tangencio; apenas um de seus aspectos me concerne: haverá em poesia, de alguma maneira, uma contradição entre o uso da escritura e as práticas vocais? Desde McLuhan - e apesar de as intuições desse autor terem sido em muitos pontos ultrapassadas ou corrigidas -, sabemos da complexidade da relação que opõe a escritura à voz. A partir do final dos anos 60, os trabalhos de W. Ong e de etnólogos como J. Goody matizaram progressivamente as teses e afinaram o vocabulário próprio ,para exprimiIas. Subsiste uma proposição fundamental, diversamente modulada: a história das mentalidades e dos modos do raciocínio (de fato, quase tudo o que designa nosso termo cultura) é determinada pela evolução dos meios de comunicação. Além disso, é necessário não definir de modo demasiado brutal e distinguir da técnica seu uso. A imprensa, que a China possuía vários séculos antes do Ocidente, não marcou de igual modo a velha sociedade imperial e a nossa, e certamente os efeitos intelectuais que atribuímos a essa invenção nos têm sido exclusivos - dependendo, porém, menos da imprensa como tal do que do caráter alfabético de nossas grafias. Na perspectiva histórica, a relação entre medium e atitude de espírito não é unívoca. Enfim, a escrita não se confunde nem com a intenção nem mesmo com a aptidão de fazer da mensagem um texto. Ela tem sua história, seu ritmo próprio de desenvolvimento; a tex-
tualidade tem os seus, assim como as mentalidades escriturais. Nenhum sincronismo vincula rigorosamente essas progressões: sempre se percebe uma discrepância temporal, mais ou menos sensível conforme as zonas sociais observadas. Confinado até cerca do ano 1000 a alguns mosteiros e cortes régias, o uso da escritura se expandiu com extrema lentidão nas classes dirigentes dos jovens Estados europeus. O magistral livro de M. Clanchy provou-o, no que diz respeito à Inglaterra dos séculos XII e XIII. Durante esse período, a proliferação dos documentos administrativos ainda não muda nada de essencial nos comportamentos: B. Stock esboça a mesma história e levanta as implicações, no conjunto do Ocidente, muito especialmente na França; insiste, como M. Scholz, no elo que liga a escritura ao desenvolvimento do comércio, à intensificação das comunicações e à personificação do direito, traços maiores dos séculos que se estendem entre 1050 e 1350. No entanto (Clanchy adverte), o que deve ter favorecido a difusão da escritura é a relação estreita que ela mantinha com a voz;' para cima, de fato, na medida em que a escrita servia para fixar mensagens inicialmente orais; contudo, mais radicalmente, para baixo, porque o modo de codificação das grafias medievais fazia destas uma base de oralização. Por isso, a impregnação das sensibilidades e dos costumes pelos valores que a manuscritura engendra não começou mesmo a mostrar seus efeitos antes do século xv, mais cedo num lugar, mais tarde em outro; e a saturação escritural, característica da cultura "moderna", se produzirá bem mais tarde ainda. As modificações parciais que assim progressivamente se operam, no plano antropológico e social, acarretaram menos uma mudança de estado do que a crescente de uma situação, em suma, idêntica a si mesma. Os costumes que ditavam os modos de vida davam ao corpo humano e a suas exigências um lugar demasiado eminente para que não fossem geradas resistências, durante muito tempo insuperáveis. O Tristão do romance de Gottfried von Strassburg está, em seu tempo, "na onda" e faz os estudos que (segundo o autor) convêm a sua condição, mas o texto não dissimula (vv. 2062-95) que essa é uma experiência demasiado rude para produzir o amor aos livros ou para moldar um temperamento. Inúmeros clérigos, sugere Garnier de Pont-Sainte-Maxence em seu poema sobre Thomas Becket, não conseguiram mais habituar-se a ler ou a cantar bem.:' Nada nisso muda realmente antes da voga do humanismo, por volta de 1450; tantos séculos não teriam sido suficientes para a sociedade européia interiorizar verdadeiramente seu conhecimento e sua prática da escritura.
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5 A ESCRITURA
Formas e técnicas. Os escribas. Maneiras de ler. A voz na escrita.
Uma série de mutações lentas se produziu, de fato, ao longo do tempo, mais devidas aos deslizamentos do que às rupturas. Convém considerá-Ias menos como tais do que relativamente a um longínquo ponto de fuga, pós-medieval, que as põe em perspectiva. Recuo de um vasto espaço memorial em proveito do Arquivo; exteriorização das relações sociais; emergência de uma noção explícita da história; gramaticalização da língua vulgar e, como conseqüência, dissociação entre um código oral e o código escrito; distinção, pouco a pouco admitida, entre um modelo lingüístico interno e a capacidade de utilizá-l o, entre a langue e a parole. Mas as linhas de evolução assim desenhadas só começam a convergir antes da época (na virada dos séculos XIV e xv) em que apareceu na Europa a primeira pintura de cavalete, anunciando a iminente predominância, neste universo, do sentido da vista e da percepção do espaço! Essas linhas atravessam o campo da poesia: de maneira contrastante e complexa, atuam sobre a intenção e a composição do discurso que a poesia comanda e (em menor medida, talvez) sobre as modalidades psíquicas de sua recepção. Assim, o que se encontra profundamente posto em questão é a relação tríplice estabelecida a partir e a propósito do texto - entre este e seu autor, seu intérprete e aqueles que o recebem. Conforme os lugares, as épocas, as pessoas implicadas, o texto depende às vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura, às vezes (e foi esta sem dúvida a regra nos séculos XII e XIII) de uma escritura que funciona em oralidade. Os dados quantitativos são eloqüentes. Até cerca de 1200, uma dezena de volumes bastava a um erudito para fazer carreira útil; coleção facilmente transportável, modificada ou acrescida ao longo dos anos por intercâmbio, cópia, raramente compra. A extrema carestia da esyrita restringia-lhe. de fato. a utilidade. O sistema das peciae, cadernos que divulgavam um texto por pedaços, inventado nas escolas do século XIII, jamais saiu de lá. As bibliotecas continuavam numa pobreza surpreendente. Por volta de 1080, a de Toul, renomada, contava com 270 volumes; a de Michelsberg, em 1120, possuía 242, com um livro árabe e dois livros gregos de matemática; a de Corbie, por volta de 1200, tinha 342; a de Durham, uma das maiores da Europa, à mesma época, 546; a da Sorbonne, por volta de 1250, mil. Essas cifras cresceram continuamente até o século XVI, mas permaneceram, relativamente, na mesma orderri: por volta de 1300, em Canterbury, a da Christ Church possuía trezentos volumes. Em sua mui bela biblioteca, o rei Charles v chegou a reunir mil; os duques da Borgonha, novecentos.' No momento em que começa a difusão da imprensa, nem o número de livros disponíveis nem 98
escritural corrente asseguravam ainda, nas sociedades euroSó no decorrer do século XIII é que se IIII1MlllIlll, em Paris e Bolonha, os primeiros sinais de um comércio de \lVI' IN. Durante muito tempo, permanecerá embrionário. Quanto à tira1',1111 do que sai das oficinas dos copistas, ela raramente ultrapassa um 111'11111:1'0 muito pequeno de exemplares. Quando um texto nos foi pre1'1 vudo por numerosos manuscritos (perto de trezentos, para o Roman til' ItI Rase), são de data e origem diversas e testemunham a persistência IIll1is de uma tradição do que de uma difusão imediata e horizontal. Da uuiloria dos textos poéticos em língua vulgar um pouco antigos, só posulmos cópias muito posteriores à data provável - ou provada - de \111 composição; da poesia épica e "lírica", temos principalmente as antulogias ou compilações constituídas para apreciadores no fim do século XIII ou nos séculos XIV e xv. Também o sentido do termo escritura não é uniforme, podendo 1 cfcrir-se a técnicas, atitudes e condutas diversas, conforme os tempos, os lugares e os contextos eventuais. Daquilo que designamos e pratica1I10S como escritura (com a intenção ou a pressuposição de uma passa~em para o impresso) à manuscritura medieval, a distância - em termos de antropologia cultural - é provavelmente tão grande quanto entre manuscrito e oralidade primária. McLuhan já notava a diferença "abissal" que distingue o "homem escrevente" do "homem tipográfico": as "culturas de manuscrito", ensinava ele, permanecem globalmente tátilorais, e a escrita exerce aí muito menos efeito do que em nosso mundo. Idéia retomada por W. Ong, que situa o manuscrito na continuidade do oral, só intervindo a ruptura - progressivamente - com a imprensa. Entre a mensagem a transmitir e seu receptor, a produção do manuscrito introduz (tanto na transcrição do texto como tal quanto na operação psicofisiológica do escriba) filtros que a imprensa em princípio eliminará, mas que, em contra partida, são estreitamente análogos aos ruídos que parasitam a comunicação oral. Apesar dos aperfeiçoamentos que lhe foram trazidos no curso do tempo, a técnica da escritura é difícil de dominar e exige rara competência. Suas diversas fases são assumidas pelo mesmo homem: composição da tinta, dimensão do cálamo ou da pena e, às vezes, preparação do suporte antes de traçar os caracteres. O material dá trabalho, ou por sua fragilidade (como a pena) ou porque exige um longo tratamento prévio (como o pergaminho)." Dois sistemas gráficos se combinam, um herdado de Roma (o alfabeto e certos procedimentos abreviativos), o outro devido a inovações freqüentemente próprias a esta ou àquela oficina: abreviações por elevação ou rebaixamento de sílabas; introdução l'lllvldadc
I" IUN, o primado da escritura.
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de signos estenográficos e de símbolos - sistema fadado a ter grande desenvolvimento entre os séculos XIII e xv, em conseqüência mesmo do . crescimento do número de escritos.' Escrever é um ofício árduo, cansativo, cujo exercício constitui um artesanato organizado: dos mosteiros carolíngios aos "livreiros" urbanos do século XIV, o caminho foi longo, mas sem viradas bruscas. Inscrever um texto, qualquer que seja, comporta duas operações: recolhê-I o sobre tabuinhas de cera (às vezes resumido, quando não em notas tironianas, taquigrafia de origem antiga); em seguida, passá-I o a limpo sobre o pergaminho. De vários letrados do século XII, como os teólogos de Citeaux ou Pedro, o Venerável, sabemos que compunham de memória suas obras e as ditavam a um secretário, o qual as anotava com um estilo sobre as tabuinhas; em seguida, o autor retomava e corrigia esse rascunho. Também ocorria fazer sozinho o primeiro trabalho e inscrever diretamente, pronunciando-o em voz alta, o texto sobre as tabuinhas. À mesma época, é provável que os escritores de língua vulgar, como por exemplo nossos primeiros romancistas, tenham usado esses procedimentos. Uma pintura do chansonnier N (da Pierpont Library, em Nova York), executada em meados do século XIV, representa um trovador anotando (com evidente dificuldade) sua canção sobre uma longa folha solta." Tais procedimentos, aliás, explicam a extrema raridade dos manuscritos autógrafos: nenhum em latim antes do século XI, nem em francês antes de meados do século XIV.? O vocabulário que designa a operação do escrever provém, em vernáculo, diretamente do latim, o que parece mesmo implicar a identidade dos métodos: dictare, dictitare (até mesmo legere) de um lado, scribere de outro lado. Dictare refere-se ao que se percebe como a origem do texto; daí o substantivo dietamen, designando a arte da composição; daí a metáfora do Deus Dictaior, enunciador de sua Criação; daí o francês dictier, remetendo à obra poética acabada, e o alemão Dichtung ; "poesia". Scribere exige um esforço muscular considerável: dos dedos, do punho, da vista, das costas; o corpo inteiro participa, até a língua, pois tudo parece pronunciar-se. No inverno, o frio imobiliza os dedos, e pode-se temer o congelamento da tinta. Orderic Vital prefere esperar a primavera para recopiar as tabuinhas apressadamente rabiscadas em dezembro." Escrever exige infinita paciência: o trabalho de cópia se estende por meses, por um, dois anos. Depois de ter traçado a última linha, muitas vezes o escriba dá largas a seu alívio e sua alegria: compara-se ao marinheiro que enfim volta ao porto; ou então exige vinho, uma jovem virgem, até uma "gorda puta"! Wattenbach, antigamente, coligiu tais confidências, às vezes rabiscadas nas margens." Ainda por volta de 1400, em todo o Ociden100
IC, a prática da escritura continuava, apesar de algumas inovações (corno o uso do papel), escrava de sua tecnicidade e de seu elitismo; era RÓ debilmente capaz de influenciar de maneira direta o comportamento u o pensamento dos poetas, e influenciava menos ainda a expectativa do seu público. Quanto à língua vulgar, havia pouco tinha-se saído de dificuldades de outra ordem: como anotar os sons próprios às línguas medievais com um alfabeto criado, mais de um milênio antes, exclusivamente para o latim arcaico? Colocou-se a questão - em vão - desde a época merovíngia. As línguas românicas suscitavam relativamente poucos problemas, porque a pronúncia do latim erudito e escolar evoluíra bastante: ficaram livres para as bricolagens, como a combinação do c e do h a fim de obter em francês um fonema desconhecido do latim. No outro extremo do domínio latinizante, o polonês deu provas de estupenda inventividade nessa matéria! As línguas germânicas introduziram alguns sinais novos, o W ou o thorn.* Esse indispensável trabalho de adaptação da grafia não acabou antes que fossem fixados, se não os sistemas rtográficos modernos, pelo menos um feixe de tradições escriturais mais ou menos estáveis: entre o século XIII e o xv. Até então, a amplitude das variações que se constata entre os costumes gráficos locais (e às vezes individuais) atesta que as línguas vulgares não tinham ainda assimilado plenamente as práticas da escrita. No Ocidente medieval, até cerca do século XI, uma só sociedade escapa a esse tipo de diglossia: o mundo escandinavo, com suas runas, bem adaptadas à fonética germânica, cujo exemplo mais antigo remonta ao século 11 de nossa era. Possuímos mais de 3 mil inscrições rúnicas. Destinadas principalmente à gravura sobre rocha, as runas servem para traçar sejam títulos comemorativos, sejam poemas. De fato, só dessa maneira nos chegou sob forma literal a poesia nórdica mais antiga. Enriqueceu-se de conotações dos valores mágicos que, aliás, eram ligados às runas; conotações que se referiam ao poder da voz que pronuncia a fórmula-inscrita. Por essa razão mesmo, a Igreja, uma vez implantada no norte da Europa, impôs o alfabeto latino. No entanto, as runas (que a esse tempo tinham penetrado na Inglaterra dinamarquesa) não saíram rapidamente de uso: são empregadas mesmo em manuscritos ou tabuinhas enceradas, em concorrência com a escritura latina: em Bergen, ainda, em 1200; na Dinamarca, aqui e ali, até o século XIV. Não é suficiente para o escriba saber desenhar letras e abreviações, competência gráfica básica, de fácil acesso: mais de uma famosa perso(*) Antiga letra germânica que representava o som do th inglês. (N. E.)
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nagem, capaz de assinar seu nome, não teria podido escrever o documento. Aliás, para quê? O escriba possui e conserva - protegendo-a como segredo de fabricação - uma competência textual mais preciosa, fundada no conhecimento das fórmulas eficazes, das regras discursivas, do manejo das figuras, de tudo o que constitui, no sentido primeiro, o estilo. Desde o fim da Antigüidade, esse privilégio se manteve em meios fechados, abrigando os recursos necessários e garantindo a segurança do trabalho: a chancelaria pontifícia, que estava empoleirada sobre as últimas tradições romanas e cuja influência marcou mais ou menos todas as práticas locais; as chancelarias dos reinos bárbaros; em seguida, aquelas que se reconstituíram após 1050 ao redor do imperador germânico, dos reis ingleses e franceses, nos principados italianos, provençais, borgonheses, herdeiros das práticas carolíngias; na Espanha; chancelarias de bispados, de prefeituras a partir dos séculos XI, XII e XIII; scriptoria dos grandes mosteiros e depois, após 1100, das escolas urbanas; mais adiante, as oficinas de copistas do século XIII, os editores dos séculos XIV, xv ... Por isso (e apesar do desprezo que muitos nobres demonstram pelos homens da escritura), escribas e copistas exaltam sua obra, augusta e merecedora. Fornecem uma interpretação simbólica: a pena fendida representa os dois Testamentos, os dois dedos que a seguram, a Trindade... Ou então o pergaminho é um campo que se semeia: o mais antigo texto italiano conhecido, o "Enigma de Verona", por volta do ano 800, é uma probatio pennae que desenvolve esse tema. Sem dúvida, o sentimento da própria dignidade leva os copistas a assinar os manuscritos que terminam: como Willermus Pescator, do scriptorium de Fécamp, no século XII, ou o Guiot que teve uma loja em Provins, no início do século XIII, e copiava os romances de Chrétien de Troyes. Outros adquiriram celebridade, como, dois séculos mais cedo, Adhémar de Chabannes, também pregador e historiógrafo. No entanto, a atividade desses homens da pena, orgulhosos de sê-Io, deixa para o ouvido e a voz um papel que pode ser determinante na constituição da escrita. As representações de copistas nas miniaturas valorizam quase sempre o ouvido. Em parte, escrever depende ainda da ordem da oralidade, e essa dependência, longe de se atenuar, torna-se manifesta depois de 1200: a cópia direta, sem a intermediação de um leitor, às vezes praticada numa época mais antiga, pouco convém a uma produção desde então relativamente acelerada. O scriptor recebe, em geral auditivamente, o texto a reproduzir. As grafias mesmo, e suas alterações, parecem implicar que ele interiorizava uma imagem das palavras mais sonora do que visual. Nos scriptoria onde se mantinha o sistema antigo da pronuncia-
tio, uma equipe escrevia por ditado; funcionava então, num primeiro momento, como receptora em situação oral-auditiva. A duração, às vezes considerável, do ditado de textos longos não podia deixar de mostrar fortemente esse efeito. Admite-se que a pronunciatio da Summa theologica de Tomás de Aquino durou três anos. Que dizer do Roman de Ia Rose? Por esse meio, o copista "domina" sua matéria: é, de fato, seu mestre; e talvez, conforme a opinião mais comum, o seja de direito, caso se pense na fluidez da maioria de nossas tradições manuscritas. A reprodução dos textos autorais latinos testemunha, aqui e ali, uma preocupação de autenticidade; a anotação dos textos de poesia em língua vulgar, quase nunca. O copista se outorga - e a prática lhe concede - uma liberdade às vezes extrema: a tradição manuscrita do A/exis francês, aquela também de um poema tão considerável quanto o Libro de buen amor, demole as formas e talvez o sentido da obra. O copista mais discreto continua "intérprete", em todos os aspectos desse termo, inclusive glosador. A própria idéia de cópia parece muito moderna: essencialmente, o manuscrito é recriação, e o estudo filológico que dele fazemos nos leva mais de uma vez a concluir que tal "cópia" é de qualidade superior ao arquétipo (o que só a nós parece paradoxal). Nessa perspectiva, o exame do gênero francês dosfab/iaux manifestou as analogias, numerosas e não fortuitas, entre sua história e uma tradição oral. Certamente, todos os copistas deram também provas do que, a nossos olhos, é despI ante. Bernart Amoros, c/erc de Saint-Flour, compilando por volta de 1300 uma antologia de canções de trovadores, explica longamente em seu prólogo os princípios que o levaram a emendar certos textos para adequá-I os ao "bom USO".1O Trata-se menos de respeito ao original do que de normalização ... se não modernização! Assim, a linguagem que o manuscrito fixa continua a ser, potencialmente, a da comunicação direta. A escrita, salvo exceções, constitui-se por contágio corporal a partir da voz: a ação do copista é "tátil", segundo a terminologia mcluhaniana; e a nebulosa ideológica que gravita ao redor é mais próxima do tipo "tribal" que do nosso. Donde, para a maioria dos homens desse tempo, a pouca pertinência das distinções (para nós importantes) entre autor, escrevente e intérprete. Nesse ponto, seria tentador interpretar como um reconhecimento tardio a confusão constante que, no fim da Idade Média, faziam entre os termos autor c ator. O "autor" é o avatar laicizado do elocutor divino, Ditactor da Escritura; avatar cujas primeiras manifestações, ainda esporádicas, aparecem durante a segunda metade do século XII, embora por longo tempo ainda o "autor" continue a ser o intérprete na performance de uma poesia que, presença total, não precisa declarar sua origem. Daí uma es-
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pécie de atemporalidade do texto; uma suspensão dos efeitos (estes, também, evidentes a nossos olhos) de distância histórica entre a gênese da obra poética e cada uma das suas realizações.
As modalidades de escritura condicionam a leitura. Esta, até bem depois da invenção da imprensa, permanece difícil e, sem dúvida, mesmo para os letrados, pouco comum. Ela tem de superar obstáculos materiais consideráveis: externos, como a pouca maneabilidade de vários volumes (freqüentemente, uma escrivaninha foi indispensável) ou a má iluminação; internos, como a diversidade dos estilos de escritura e dos sistemas abreviativos, a qualidade do suporte, a ilegibilidade de certas letras, o emprego de uma língua bastante diferente da fala cotidiana _ todos fatores, ademais, muito diversificados: visual e lingüisticamente, um texto narrativo e um documento jurídico não têm grande coisa em comum! A leitura exige iniciativa e ação física tanto quanto audácia intelectual. II Antes do século XIII, foi, às vezes, necessário reunir verdadeiros comitês de leitores para assegurar a correta decifração de um documento difícil. Muita gente sabia escrever - pelo menos assinar o nome -, mas não ler. Leitura e escritura constituem duas atividades diferentes, exigindo aprendizagens distintas, que não são percebidas como necessariamente ligadas." No número, muito minoritário, dos homens capazes de decifrar suas cartas, apenas um punhado pertencia ao grupo fechado dos profissionais da escritura. Esta, até o século XIII, figura quase como privilégio de classe, e só pode entrar na rede geral das comunicações sociais ao manter vínculos com a voz. Igualmente, o próprio termo ler designa, para o homem medieval e para nós, operações pouco comparáveis. Mais ainda: os trabalhos de F. Richaudeau b de sua equipe estabeleceram dois fatos de grande alcance. Por um lado, é preciso distinguir várias espécies de leitura, as quais diferenciam ao mesmo tempo a natureza do texto-alvo, a função que lhe atribui o leitor e a capacidade de memória deste. Por outro lado, em todos os casos, a velocidade de leitura aquém da qual o texto não proporciona nenhum prazer, nem mesmo interesse, situa-se, conforme os indivíduos, entre quatro e oito palavras por segundo, 14 500 a 29 mil por hora." Parece impossível que um leitor medieval não profissional tenha alguma vez atingido esse limiar. Ei-nos longe de Roland Barthes! Entre os próprios profissionais, sem dúvida foram raros aqueles cujo ritmo podia prender por bastante tempo a atenção de um auditório: as comparações feitas com diversas performances modernas sugerem que o leitor público I rabalhava tanto com a memória quanto com o olho. Chaytor já subli104
IIlillvnque o contexto sociomental no qual se inseria o ato de ler rnargiuullznva este em maior ou menor grau. Apesar da relativa multiplicaI) dos escritos a partir de 1150-1200, o olhar não estava acostumado, I 1111\0 está o nosso, à onipresença da escrita na existência e entre as coiIIN, /\ memória dos raros leitores armazenava devagar o que o olho proIlI~Nsivamente decifrara, mas que não deixava mais para trás. A leitura era a ruminação de uma sabedoria. Na decifração, as con"I~'ões materiais da grafia colocavam quase um problema distinto para 'ndu palavra, percebida ou pelo menos identificada (talvez não sem diIlculdade) como uma entidade separada. Apenas a articulação vocal permitia resolvê-I o na prática. A leitura envolvia assim um movimento do iparelho fonador, no mínimo batimentos da glote, um cochicho, mais .omumente a vocalização, geralmente em voz alta. Os testemunhos dessa prática são ininterruptos, desde o século v até o século XVI. OS trabalhos de pesquisadores como J. L. Hendrikson, Chaytor, I. Hajnal, d. Leclercq estabeleceram-no dos anos 30 aos 50, e essa opinião é hoje geralmente admitida, embora se desdenhe o tirar dela todas as conclusões que, parece, se impõem. Essa maneira de ler se integrava tão bem numa maneira de ser que, ainda por volta de 1570, ela aparece aos indígenas do Novo Mundo como um dos traços curiosos dos conquistadores. O penúltimo imperador inca que resistiu aos espanhóis, Titu Cusi Yupanqui, no relato que ao fim da vida ditou para o governador Garcia de Castro, descreve seus vencedores como "homens barbudos que falavam sozinhos segurando nas mãos folhas de tecido branco ...".I4 A tradição monástica valorizara havia muito tempo essa prática, considerando-a uma ajuda à meditação: o movimento dos músculos faciais assemelhava esta ao ato de nutrição, a elevação do espírito procedia do que M. J ousse chamou "manducação da palavra' '. As exceções impressionavam a imaginação das testemunhas, a ponto de estas atribuírem àquelas uma significação profunda. Cita-se o espanto do jovem Agostinho quando, em Milão, viu s. Ambrósio ler só com os olhos: relata-o e comenta-o nas Confessiones, VI, 3. Tais cenas devem ter-se reproduzido aqui e acolá, no meio erudito, durante séculos. Mas o que, a longo prazo, impôs pouco a pouco a leitura silenciosa e puramente ocular foi a multiplicação do número de escritos em circulação. No inicio, só certos setores foram atingidos. Desde o século XIII, o crescimento considerável do número de fontes disponíveis modificara a prática privada dos eruditos; no século XIV, as universidades, tendo instituído as bibliotecas abertas aos estudantes, são levadas a emitir regulamentos que exigem a leitura silenciosa; no século xv, isso se tor105
nou uma imposição absoluta. As cortes régias são atingidas por volta de 1350; o conjunto da nobreza leiga, a partir do século XV.15 OS resultados de tal mudança de costumes são mais de terminantes na formação do espírito "moderno" do que a invenção da imprensa - a qual não fez senão sancioná-los e torná-I os irreversíveis. Uma esfera de intimidade se cria entre o leitor e o texto, na qual o intercâmbio se intensifica enquanto o contexto exterior se distancia e se apaga. Não é mesmo por acaso que, no meio letrado, o termo escrever comece a ter o sentido de "compor (uma obra, um texto)". P. Saenger observa que a nova leitura, como se privatizada pelo silêncio, devia favorecer (numa época em que se agravavam as censuras) a difusão dos escritos não conformistas, eróticos ou heterodoxos. Thomas a Kempis aconselhava a leitura silenciosa ao mesmo tempo e com o mesmo propósito da meditação; esse traço logo caracterizou a devotio moderna. Fica o fato de que, até essa data avançada, e pela grande maioria dos consumidores da escritura, a leitura articulada permaneceu a regra. Globalmente, condicionou o modo - físico e psíquico - de transmissão e recepção dos textos. A debilidade ou a aparente irregularidade do recorte do texto manifestam de outra maneira essa oralidade natural do uso da escrita. A página se apresenta de modo massivo, às vezes sem sequer isolar sistematicamente as palavras ... um pouco à maneira de numerosas obras literárias de hoje que, justamente, tentam assim atender a uma necessidade vocal! A escritura medieval dissimula ao olho as articulações do discurso. 16 Até os fins do século XIV, é costumeiro copiar os versos sem isolá-los, como na prosa. Os títulos que, nos raros manuscritos, recortam capítulos ou partes puderam ser interpretados como indicações destinadas a um declamador profissional; segundo Linke, é o caso dos manuscritos F e P do Iwein de Hartmann von Aue. A pontuação nunca ( é sistemática. Os manuscritos mais atentos a isso, como a cópia Guiot dos romances de Chrétien de Troyes, marcam o texto com um ponto nos lugares em que aparentemente se requer uma suspensão da elocução; e com uma vírgula após uma exclamação, portanto uma elevação da voz. O manuscrito autógrafo da Historia ecdesiastica de Orderic Vital, escrito em prosa ritmada e rimada, marca com pontuação fraca as pausas rítmicas e com pontuação forte as rimas. 17 Tais marcações fazem do texto uma espécie de partitura musical, tanto mais que não se aproximam de nossas páginas impressas! Nem aspas nem outra indicação anunciam as citações; se necessário, só o tom do leitor podia destacá-Ias. No momento em que acabo este livro, S. Lusignan me indica um interessante dossiê que constituiu com base num manuscrito copiado no século XIV e originário da abadia de Clairvaux (Troyes 1154). Trata106
I dI.: um ordo litúrgico cisterciense que, dando as normas gerais que l"t'Nldem à recitação dos ofícios, especialmente à acentuação dos terIIIOS latinos, consagra um capítulo à pontuação do texto (fólios 122-3). t iru, a interpretação repousa menos nos raros sinais que balizam este do que na natureza do ritmo sintático na prática monástica. O autor, puru esclarecer seu propósito, fornece como conclusão uma regra recapltulativa seguida de um exemplo tomado do Livro de Isaías: regra e oxcmplo são dotados de uma melodia, em soberba notação musical de -ompassos quaternários! Outro aspecto da questão: o número de indivíduos capazes de ler. Obras como aquela já velha, de J. W. Thompson, sobre todo o Ocidente, e aquelas recentes, de Clanchy e de Coleman, sobre a Inglaterra dos séculos XII e XIII, constatam a relativa raridade dos leitores. A avaliação de C. Cipolla me parece otimista: 1070 a 2% da população, por volta do ano 1000! Segundo P. Chaunu, a população do Ocidente contava em 1500 com cinco vezes mais indivíduos capazes de ler do que em 1400, dez vezes mais do que no século XIII. Em todo o caso, tais cifras são relativas." Pertencer à Igreja não acarreta necessariamente o conhecimento da ars legendi: o analfabetismo do baixo clero é objeto de queixas periódicas, e, na época mais distante, mais de um prelado não se preocupou em aprender a ler ou em dar-se a esse exercício. Quanto à classe cavalheiresca, uma tese maximalista encara a tese oposta - mas trata-se apenas de apreciar a importância relativa de uma minoria! A maioria dos nobres, até o século XIII, permaneceria iletrada: as formas de inteligência e o tipo de saber exigidos por sua função ou impostos por sua situação social não tinham nada que ver com a prática de leitura. Balduíno II de Guines, um dos grão-senhores mais instruídos e curiosos do fim do século XII, não sabia ler e mantinha em sua corte clercs designados para esse ofício. Não é um caso isolado. Grandes poetas alemães vinculados a esse meio dizem-se ou pretendem-se iletrados: Wolfram von Eschenbach, Ulrich von Lichtenstein - ao passo que Hartmann von Aue se vangloria (como de uma capacidade extraordinária?) de saber decifrar suas cartas; era (diz de si mesmo, em terceira pessoa) "instruído a ponto de poder ler o que há nos livros" (sô gelêret daz er an den buochen las).19 As mulheres da classe senhorial, é verdade, parecem ter sido mais numerosas quanto ao saber ler do que os varões; estes, já na França de 1600, não consideravam anormal ignorá-lo. Não faltaram tentativas de trazer os membros dessa classe dirigente à prática pessoal da escrita. As escolas monásticas e depois urbanas aceitaram crianças não destinadas ao clericato; certa pressão foi exercida pelos elementos "esclarecidos" da nobreza ou pelos clercs ligados
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a ela: o autor de Flamenca, tendo indicado (v. 4806) a lettrure do herói Guillem, faz um elogio dessa ciência, recomendada tanto aos cavalheí. ros quanto às damas. Tema literário, sem valor representativo? Antes a projeção idealizante de uma necessidade que se manifesta, em alguns lugares da sociedade cavalheiresca, a partir do século XII. À mesma necessidade corresponde, sem dúvida, a criação do gênero romanesco. Voltarei a isso. O Speculum regale, escrito na Alemanha por volta de 1200, vai mais longe ainda: o saber necessário a um nobre, declara, não será perfeito se não comportar a capacidade de ler "todas as línguas", a começar pelo latim e pelo francês ... As "outras" provavelmente são os dialetos alemães!" Entre os príncipes, tal desejo testemunha uma tomada de consciência dos poderes da escritura. Mas por longo tempo ainda, fora desse círculo muito restrito, tal desejo será quase letra morta. As escolas leigas, das quais se disse, não sem exagero, que "pulularam" no século XIII, constituem antes um dos aspectos de outro fenômeno: a elevação da burguesia mercantil, que desde então na França (mais cedo na Itália) tendia a se apossar do poder efetivo no interior de um Estado ainda feudal. É inegável que, do século XII ao XIV, o número bruto de leitores cresceu regularmente por motivos pragmáticos, no quadro rígido da escritura administrativa e contábil, fora de qualquer perspectiva aberta à poesia e ao caráter próprio da colocação por escrito. Novamente, não há por que se iludir: enquanto a imensa maioria da população camponesa e operária continuará analfabeta até 9 século XIX, senão até o XX, no século xv os burgueses que governam a cidade de Hereford [Inglaterra] são ainda iletrados; em 1433, Nikolaus von Cusa, havendo proposto introduzir o voto secreto na eleição imperial, tem de recrutar secretários para esse fim, já que vários dos grãoeleitores ignoravam as letras. Quando começou a série de reveses de Carlos, o Temerário, não atribuíram os cronistas a causa ao fato de ele haver lido demasiado em sua juventude? No curso dos séculos continua enorme a desproporção (embora pouco a pouco decrescente) entre o número limitado de seres humanos aptos à leitura fluente e a imensidão do público potencialmente visado pela poesia. Donde para esta a impossibilidade de conceber a si mesma (ainda que devesse ter passado pela escrita) de outra forma que não em relação a seufim natural: uma comunicação vocal.
Nesse universo, a escritura preenche duas funções. Assegura - conjuntamente ou não com a tradição oral - a transmissão de um texto. Ademais, assegura para um futuro indeterminado a conservação - o
u qulvumento e de algum modo, por esse meio, o enobrecimento. Essas IIIII~'('\CS não são sempre cumulativas, e a primeira pode ser exercida com II t xclusão da segunda: por exemplo, através do que Léon Gautier anti14IIIIlCnte chamou de "manuscritos de jogral", códices de pequeno for1111110 (dezesseis centímetros por dez ou doze), livros de bolso destinatltíN à bagagem de um intérprete errante ou - supôs-se - à instrução di' 11m"jogral" aprendiz. Foi assim que nos chegaram vários-textos imporlantes, como a versão mais antiga da Chanson de Roland, o Cantar rlt' mio Cid, o manuscrito Z dos Nibelungen e outros ainda, por vezes It'Slcmunhos da arte mais refinada, como o Chansonnier de Saint-Germain - presumindo-se que antigamente Brakelmann tenha tido razão de classificá-lo nessa categoria! Por um feliz acaso, essas pobres cópias, sem dúvida apressadamente estabelecidas, preencheram para nós uma Inestimável função conservatória. Mas o objetivo de seus fabricantes foi fornecer ao executante um simples manual. Só circunstâncias imprevisíveis as salvaram da destruição. Supôs-se que o desaparecimento, a nossos olhos quase completo, da epopéia espanhola arcaica se deveu à fragilidade dos manuscritos de jogral aos quais foi, talvez, confiada; em contrapartida, a maioria das canções de gesta francesas foi escrita em manuscritos de biblioteca, executados numa época em que essa poesia já não era mais viva. Uma forma qualquer de oralidade precede a escritura ou então é por ela intencionalmente preparada, dentro do objetivo performático. Esses dois casos podem combinar-se. Pelo menos, a escritura sempre interpõe seus filtros. Essencialmente, ela constitui um processo de formularização. A colocação por escrito dos sermões oferece um exemplo extremo. Contudo, mais ou menos todos os textos que nos foram transmitidos pelos séculos anteriores ao XIII ou mesmo xv, alguns mais tardiamente ainda, estão assim marcados. Donde a nossa quase impossibilidade de perceber o verdadeiro rosto e de fisgar a originalidade da época medieval, em particular das canções de gesta francesas. Outro filtro: a ausência, antes do século XIV, de toda idéia de coerência textual na composição dos manuscritos. Um mesmo códice enfileira textos de ordem, de espécie, de data, às vezes de língua, diferentes; quando muito, um vago princípio os une: textos litúrgicos ou, mais geralmente, de interesse eclesiástico; ou históricos; ou que apresentam não importa qual semelhança formal ou temática, às vezes mal discernível para nós. Eis aí, provavelmente, o efeito de uma procura de utilidade imediata (satisfazer às necessidades particulares do cliente), ao mesmo tempo que de economia. A idéia que fazemos da "obra" não coincide com sua realidade no manuscrito. O manuscrito BN fr. [Biblíotheque Nationale, ma-
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nuscrito em francês] 1450, do século XIII, intercala quatro romances de Chrétien de Troyes no meio do Brut de Wace: para o copista, constituíram evidentemente a glosa do que Wace diz do rei Artur!" Os próprios títulos são fluidos; muitos variam de uma versão a outra. Só quase no século XIV aparecem compilações homogêneas. Uma das mais antigas seria o manuscrito Auchinleck, copiado por volta de 1330 em Londres. A escritura começa então a se organizar em livro - inovação que, bem antes da imprensa, deflagra uma grande virada nesta história. Em torno do nome de um autor, puseram-se a reunir os textos que lhe são atribuídos. Guillaume de Machaut, antes de 1400, será o primeiro a ter essa honra. A Divina comédia terá constituído, antes dessa data, o exemplo excepcional de uma obra que foi objeto de cópias nas quais não estava acompanhada de nada de outras. Parece faltar o senso daquilo que experimentamos como o acabamento do texto. É raro que um título preceda o texto, e muito mais raro que se faça ali menção de um autor. Se o manuscrito fornece tais indicações, ele o faz no explícito Até os arredores de 1500, muitos livros impressos conservarão esse costume e utilizarão ainda o colofão. Eis aí um traço tanto mais revelador porque se manteve por muito tempo, já que (acredito tê-lo mostrado em outro lugar)" a ausência de acabamento textual é uma característica específica da poesia oral. Globalmente, a escritura aparece assim, na civilização medieval, como uma dessas instituições em que uma comunidade pode, de fato, reconhecer-se, mas em que não pode, no pleno sentido da palavra, comunicar-se ..O valor de uso da escrita se reduz na medida em que o manuscrito não pode ser um meio de difusão massivo. Prova-o - levando-se em conta as prováveis perdas acidentais - o escasso número de cópias remanescentes de textos que, às vezes, eram os mais ilustres de seu tempo. A escritura constitui uma ordem particular da realidade; exige a intervenção de intérpretes (no duplo sentido da palavra) autorizados. Antes da mediação destes, só é virtualidade, apelo ao investimento de outros valores. Sem essa mediação, ela resiste, opacifica, obstrui, como uma coisa. Enquanto técnica, não depende da ordem da poesia; a poesia não tem o que fazer com ela, a não ser deixá-Ia simular utilidades. Entretanto, sua própria opacidade, a autonomia de seu modo de existência, criadora de objetos de arte, fazem dela um homólogo da poesia. Com o tempo, a distância entre as duas se atenuará, a homologia tenderá à identidade. Teoricamente, a escritura se concebia (conforme a tradição gramatical de origem antiga) como sistema secundário de signos, o qual refletia aquele, primário, que a voz manipula; mas na prática, pelo uso, repetição e reflexão sobre si, tinha-se elaborado um código escritural, 110
que por sua vez tendia a adquirir o ordenamento de um sistema primário. Entre o século XIII e o xv, a escritura começou a reivindicar abertamente esse ordenamento; depois de 1480-1500, a reivindicação surtiu efeito: os "rhétoriqueurs" borgonheses (já o sugeri em Le masque et Ia lumiêrei foram os primeiros a formulá-Ia em termos claros e, em seus melhores textos, a fazê-Ia triunfar. A continuidade dessa história se mede pelo favor de que gozam, em latim e nas línguas vulgares, desde o século XIII, as figuras de letras, manipulações gráficas, utilização pictórica dos traçados, assinaturas acrósticas, até piadas ortográficas como no Tristan de Gottfried (vv. 10 109-21), cada vez mais numerosas à medida que descemos no tempo. Uma alegria textual suscita esses jogos, um desejo os atravessa, em posse total da língua: estrépitos pouco anteriores ao advento da pesada hegemonia escritural, a qual eles convocam mas ainda não garantem. Os rhétoriqueurs da segunda geração, Jean Lemaire de Belges ou André de La Vigne, foram na França os primeiros poetas a ser impressos em vida. A introdução da nova tecnologia, contrariamente à opinião tão difundida, ainda não transtornara nada:" consagrava de preferência, e consolidava de maneira definitiva, os resultados de uma evolução, clarificava o sentido que pouco a pouco a escrita adquirira, liberava de antigos impedimentos o exercício das funções que ela aspirava a assumir na Cidade. Mas bem um século decorrerá antes que as imprensas eliminem o manuscrito; e, na Europa oriental, o movimento deslancha cem anos mais tarde que no Ocidente. Até por volta de 1550, as duas técnicas mais colaboram do que se opõem. No início do século XVI, nem o suporte impresso do livro ainda se tinha verdadeiramente imposto na prática, nem o conteúdo das mensagens se tinha inteiramente liberado de uma herança cultural de séculos dedicados às transmissões vocais, nem, enfim, a autoridade se tinha definitivamente deslocado da palavra para a escrita. Vista do século xx, a mutação cultural que se produzia então parece comparável àquela que desencadeou entre nós a invenção do computador; era de fato uma mutação, mas a muito longo prazo: seus efeitos só se tornariam completamente perceptíveis no século XIX, graças ao ensino obrigatório, que fará do impresso uma escritura de massa e acentuará o enfraquecimento das últimas tradições orais. Até o século xv - e por muito mais tempo na "cultura popular" que então começa a distinguir-se da outra -, o prestígio de que se-rodeia a escrita contribui para afastá-Ia daqueles que a contemplam e talvez aí temam, invocando-o, qualquer poder oculto. O considerável investimento em tempo, em dinheiro, em competência, que exigiu, durante 111
séculos, a redação de um documento escrito - ainda mais a de um códice de alguma importância - trai a intensidade do desejo que o indivíduo, senão a sociedade inteira, sentiu de possuí-Io. A lenta evolução das técnicas, a partir do início do século XI, um pouco mais depressa no XII, modifica pouca coisa nisso. Desde os arredores de 1200, no meio urbano - escolar e burguês - a escrita se seculariza em sua utilização notarial, comercial e jurídica. Mas, simultaneamente, ela se duplica: agora se opõem dois modelos gráficos, o cursivo, usual, prático, adaptado à circulação intensificada das mensagens utilitárias, e a escritura dos livros. Mesmo laicizado, o livro, por esse viés, conserva durante muito tempo seu elevado valor simbólico. É pouco provável que os príncipes do século xv tenham considerado simples objetos de uso os magníficos livros de horas que mandaram copiar: estes não eram também, primeiramente, signos de seu poder? Luxuosos manuscritos musicais, depositados como jóias no tesouro dos duques de Borgonha, dali não saíram mais até que os modernos arquivistas os redescobriram. Para além de todos esses esmorecimentos que pouco a pouco enfraqueceram o primitivo sentimento sacral da escritura, subsistiu até a invenção da imprensa uma confusa idéia da cosmicidade do texto escrito. Para os monges, a escritura é mais do que um meio de ação; é antes de tudo um dom de Deus. Talvez uma influência judaica se faça sentir aí. O texto sagrado é grafia, como o mundo; um e outro são o Ditado divino, cujas palavras da lei formam o "estilo", o stylet. Donde o infinito respeito: o letrado não toca na escrita a não ser pelo comentário da paráfrase; uma análise desconstrutiva pareceria profanadora. (Subsistia alguma coisa de tal atitude, faz poucos anos, nos hábitos de nosso ensino!) O respeito se estende ao próprio lugar em que se efetua a escritura, em que se conservam seus produtos: do século IX ao xv, os testemunhos se sucedem; o cuidado que se dedica à conservação dos livros chegará até a atrapalhar as consultas! 24 Também nesse ponto, a laicização não mudou nada de essencial. Os próprios autores de textos como o fabliau, a canção de gesta ou certa seção do Renard, evidentemente destinados à difusão vocal em lugares públicos, invocam "uma escritura", a "Escritura" como autoridade que apóia seu discurso; na maior parte das vezes, essa referência é fictícia, mas tanto mais reveladora da mentalidade geral. Outros autores dão um passo adiante: seu texto - romance, bestiário, crônica rimada - se autodesigna livro, comportando, por esse artifício, na perforrnance, a credibilidade da palavra. Para a maioria, a escritura atesta uma verdade: opinião em que se percebe o eco de uma poderosa idéia recorrente entre os sábios e suscitadora, às vezes, de vastas metáforas
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sua linguagem. A própria Verdade é tão-somente a Escritura natuuil, universal, eterna, da qual constitui o significado último. Dante ternilna a Comédia com a invocação desse Volume "ligado num só com 1\ Amor", totalidade do Sentido, ao mesmo tempo infinito e fechado. parentemente desafia a Voz não escrita que, no entanto, domina o mundo ... Mas as aparências enganam, e uma está presente na outra, à maneira do Verbo encarnado na escritura. Tais imagens constituem a extensão poética de uma teologia da Palavra de Deus; e a reivindicação da autoridade livresca, em sua forma estereotipada, é uma sua versão luicizada e enfraquecida: seria mais o caso de desviar sua significação do que supor aí alguma ideologia fundada na prática habitual do instrumento escrevente. Para a massa dos iletrados, a letra traçada é uma coisa - significante da mesma condição que toda coisa criada - irrefutável mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças ou pavores mágicos. Um instinto arcaico se mostrava através dessas crenças: na França merovíngia, sobretudo no Midi (onde os monumentos antigos subsistiam em maior número), as inscrições que traziam, os epitáfios, prestavam-se às interpretações populares maravilhosas. O período do século v ao XI foi bem estudado desse ponto de vista. À guisa de talismãs, gravam-se inscrições, nomes e letras nas armaduras, nas espadas." Esses costumes tiveram vida longa. Até pelo menos o século XIII, encontram-se em latim ou língua vulgar fórmulas de julgamento e de adivinhação pelo livro, ou alusões a sua prática; o livro é então fllDCÍOnalizado mais como objeto ritUJll do qJI~:8&critu.ra.-Um procedimento normando do início do século XII usa-o pendurado numa corda, como um pêndulo de rabdomante;" ainda em meados do século XIII, o romance anglo-normando de Wistasse le Moine indica esse uso. Nossas línguas conservaram até hoje tais lembranças: a palavra francesa grimoire, que designa alguma receita de bruxaria, vem do latim grammatica; e o termo inglês, de origem dialetal escocesa, glamour ("encanto", primitivamente no sentido mais forte) tem a mesma etimologia. O próprio emprego jurídico da escritura foi contaminado por esse folclore. Os reis bárbaros da alta Idade Média fazendo redigir os costumes de seus povos, os carolíngios emitindo suas capitulares régias realçavam de fato a tradição dos imperadores antigos; mas não se poderia presumir que a autoridade supranatural de que estava revesti da desde então a escritura acrescentava aos olhos deles eficácia no governo dos homens? Quando, em 1268, Afonso de Poitiers manda apreender os livros das judiarias de Poitou, ele não seqüestra apenas um bem mobiliário, ele seqüestra uma virtude perversa. Em 1240, em Paris, o Talmude, condenado, havia sido publicamente queimado ... como um herege de carne
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e sangue!27 Provocadas entre os iletrados, não menos que entre os sábios, pela presença da escritura na sociedade medieval, essas atitudes e práticas tão diversas não teriam um substrato mental comum, alguma coisa como a percepção de uma espécie de sobre-humanidade - ou desumanidade - da escritura? O reverso de uma convicção radical, a saber: é pela palavra, e somente por ela, que se manifesta plenamente o humano.
Em vez de uma ruptura, a passagem do vocal ao escrito manifesta uma convergência entre os modos de comunicação assim confrontados. O par voz/escritura é atravessado por tensões, oposições conflitivas e, com o recuo do tempo, mostra-se muito freqüentemente aos medievalistas como contraditório. Não é diferente com outras configurações culturais, também surpreendentes, e entre as quais convém situá-Io: assim o par concreto/abstrqto, do qual a longa disputa dos universais, tanto quanto as práticas populares de bruxaria, atesta o caráter movente e fluido; assim, nos procedimentos judiciários, a testemunha e o testemunho; e assim tantas associações paradoxais de noções aparentemente incompatíveis. Para o historiador, a questão não é tanto reduzir o paradoxo quanto dissolvê-I o, revelando no par o elemento de base, sobre o qual se constrói ou do qual se nutre o outro, que lhe fica nisso subordinado. As pesquisas feitas de trinta anos para cá não deixam nenhuma dúvida: • só muito lentamente a rática medieval da escritura se emancipou das dependências vocais. Até o século XIII, por to o o CI ente, a escrituJa só reinou em ilbota ,.geo.gra Icas e cu turals ISO adas num oceano de oralidade ambiente. Desde o século XI, relações, correspondências estabeleceram-se entre algumas dessas ilhotas; uma rede começava a se constituir, mas três séculos mais tarde sua densidade continuava pequena: por volta de 1400, constituía uma espécie de fio delgado que atava toda a Europa, mas não era ainda o véu espesso que se tomaria em 1700. De certo ângulo, uma aproximação com o modo de transmissão das melodias musicais esclarece melhor esta situação do que uma comparação com o fato literário moderno. Como a poesia (e mais evidentemente que ela), a poesia vocal só se constitui em vista de uma performance. Qualquer que tenha sido a notação antiga, nesse caso totalmente esquecida, Isidoro de Sevilha, no livro III, 15, das Etymologiae, declarava que somente a memória humana assegura a tradição dos sons, pois "eles não podem ser escritos". Assim, a Idade Média partia do zero. aprendizado musical comporta, na época mais distante, um esforço 114
I'llllsiderável de memorização: os conhecimentos de um chantre de coro duvem abranger, já se avaliou, mais de 3 mil peças. No século X, GerlIurt d'Aurillac [papa Silvestre rr] inventará diversos procedimentos mnemotócnicos, enquanto o instrumento chamado monocórdio ajuda no estudo das melodias novas. Até o século XIII, sucedem-se os achados destinados a simplificar a tarefa dos cantores, permitindo-Ihes a execu,'flo de melodias cada vez mais complexas. Desde o século IX, os monS da França e da Alemanha imaginavam dotar de um texto, à razão de uma sílaba por nota, os longos melismas de que é ornada a sílaba final da aleluia: tal é a origem do gênero poético da "seqüência", do [ual a Idade Média nos legou milhares de exemplos. Na passagem do século XII ao XIII, foram unidas pela rima as diversas peças cantadas que constituíam o ofício: Julian von Speyer deu ao novo gênero do "ofício rimado" sua forma canônica, difundida sobretudo pelos franciscanos, na Inglaterra e na França. 28 A criação das neumas se situa nessa série de inovações. As mais antigas se reduzem a uma pontuação que domina as palavras cantadas: indicam o movimento geral da voz, mas não a altura dos sons nem o ritmo. Menos do que permitir a leitura de uma melodia desconhecida, elas pretendiam ajudar o cantor a remem orar uma anteriormente aprendida. A evolução da arte musical no século XII, a multiplicação dos registros vocais, a passagem de uma música non precise mensurata a uma música medida, a polifonia, enfim, por volta de 1200: essas novidades levaram ao aperfeiçoamento de um sistema gráfico que, em retorno, favoreceu a generalização dessas mesmas novidades. A tradição manuscrita da música não se mantinha menos (em comparação com aquela dos textos) aproximativa; para os decifradores modernos, coloca problemas paleográficos bem mais complexos: testemunha uma movência melódica de enorme amplitude, a ponto de a invenção da imprensa ter sem dúvida produzido na música européia efeitos muito mais poderosos do que na poesia. Não eram signos acústicos (como as palavras) o que o copista músico tinha por tarefa transportar visualmente, masfatos (os sons) e sobretudo operações, vocais ou instrumentais. Um alfabeto não podia ser suficiente: era necessário, no mesmo nível perceptivo e com meios comparáveis, constituir um sistema que permitisse a notação de uma sintaxe como tal, uma retórica mesmo. A essa tarefa se prestaram os séculos XIII e XIV. Sabemos qual foi o resultado, que, em grande medida, determinou o desenvolvimento da arte musical até o fim do século XIX. Numa evolução contrária, a escritura da linguagem, paralisada pela inércia da tradição alfabética, só pôde finalmente se impor às línguas modernas sufocando nelas os ecos da voz viva. Isso 115
tomou bastante tempo, e o aniquilamento nunca foi completo durante os séculos medievais. Mesmo quando, em contrapartida, difundiu-se largamente o uso do sistema gráfico, aperfeiçoado ao longo dos séculos, a música permaneceu - simultaneamente - de tradição oral. As variantes dos chansonniers compiladas após 1250-1300 se explicam pelas divagações e pela perpétua re-criação que implicam.29 Mas, para além do "grande canto cortês", esse regime foi sem nenhuma dúvida o de toda a poesia musical de cinco ou seis séculos de história européia: H. R. Lug realçou seus efeitos em vários setores da música popular, nos dois lados do Atlântico, até o século XIX, quando não ao xx."
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UNIDADE E DIVERSIDADE
"Erudito" e "popular". A inscrição do vulgar. A escritura e a imagem. A preocupação da voz. A natureza da escritura medieval, as modalidades de seu emprego não lhe permitiram substituir, em sua função mediadora, a voz. Ela tende a isso, nada mais. Donde a fluidez e o caráter provisório, quando não pontual, das distinções que somos às vezes levados a operar para dar conta de certas aparências. Nenhuma cultura se dá em bloco. Toda cultura comporta uma heterogeneidade originária. Esse caráter não impede (embora a freie) uma tendência ao fechamento, ao dobrar-se sobre si, à redundância; pelo menos, jamais essa cultura será verdadeiramente fechada. Falou-se do hibridismo cultural da Idade Média. A palavra é fraca, sugerindo dois fatores. É entre quatro, cinco ou seis termos que temos de distinguir se, de um a outro deles, as qualidades das categorias extremas inicialmente supostas se degradam, entrecruzam-se parcialmente ou se combinam de maneira imprevisível. Um movimento complexo se desenha, a partir de 1100, 1150, 1200 conforme as regiões, resultante de forças antagônicas mas desiguais; sua finalização longínqua, mas de fato irrealizável, seria uma mutação totalizante: das solidões camponesas à prosmiscuidade urbana; do cultivador ao comerciante; de uma riqueza baseada na terra à mobilidade da moeda; da diversidade das vozes à uni cidade da escritura ... Nessa evolução, as transformações formais e funcionais dos meios de comunicação aparecem tanto como um dos seus motores quanto como um dos seus índices. Mas ela permanecerá bastante lenta enquanto os elementos que põe em jogo não tenham sido fundidos no cadinho que, bem mais tarde, será a idéia de nação. Donde as confrontações: a desconfiança de um Guibert de Nogent (em sua investigação sobre o pretenso dente de Cristo) para com os tes116
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temunhos orais, aos quais nega a autoridade; I a rejeição das formas de arte tidas corno demasiado rústicas: clíchê freqüente no meio cortesão, do século XII ao xv, pela pena de autores ligados à aristocracia política, corno um Chrétien de Troyes ou um marquês de Santillana. A força dessas tensões variou ao longo do tempo. Desse ponto de vista, os séculos XII e XIII constituem urna época quente. Pois é nela mesma que se começam a escrever as poesias em língua vulgar e que os modelos latinos começam a influenciar suas formas. Convergência após a divergência? Superação de um antagonismo? Emergência de uma síntese para além das contradições? As pesquisas recentes sobre a hagiografia, a epopéia e o "romance" mostraram a importância e a riqueza da dupla corrente de intercâmbios entre o que nos aparece corno um folclore e a cultura dos clercs desse tempo; o resultado de tais interferências é quase sempre uma mutação qualitativa; e se poderia ver na multiplicação desses fatos um dos elementos de certo estilo de época, caracterizando os anos de 1050 a 1300. É desse "estilo" que emerge a conservação de formas da arte vocal, às vezes muito elaboradas, sob o próprio regime da escritura. Se, esquematizando muito, têm-se em vista os dez séculos de 500 a 1500 corno um campo de forças em movimento, distinguem-se aí dois grandes impulsos: pagão- "popular" -oral, de uma parte; cristão-erudito-escrito, da outra. Logo, porém, o esquema se embaralha: cada um dos termos de cada série interfere no outro; a ordem hierárquica dos elementos se transtorna; instauram-se oposições incongruentes. Restam dois dinamismos conflituais, de força quase igual até o fim.
Faz alguns anos, em particular no rastro de autores soviéticos como Bakhtine e Gourevitch, muitos medievalistas acentuam a originalidade, e mesmo quase a autonomia, de uma "cultura popular", e as tensões assim produzidas. Num capítulo precedente, indiquei a inutilidade, até a nocividade, de tal noção quando se aplica a uma época anterior ao século xv. Talvez devêssemos generalizar essa restrição; a idéia de "cultura popular" é só uma comodidade que permite o enquadramen. to dos fatos; refere-se a usos, não a uma essência; a "popularidade" de um traço de costumes ou de um discurso é tão-somente sua relação histórica hic et nunc com este ou aquele outro traço, este ou aquele discurso.? Tratando-se da voz e das artes da voz, a oposição do "popular" ao "erudito" remete, quando muito, aos costumes predominantes neste ou naquele momento e meio. Atravessa as classes sociais e, no con-
texto humano dos séculos XI, XII e XIII, a sensibilidade e o pensamento dos indivíduos. Oral não significa popular, tanto quanto escrito não significa erudito. Na verdade, o que a palavra erudito designa é urna tendência, no seio de urna cultura comum, à satisfação de necessidades isoladas da globalidade vivida, à instauração de condutas antônomas, exprimíveis numa linguagem consciente de seus fins e móvel em relação H elas; popular, a tendência a alto grau de funcionalidade das formas, no interior de costumes ancorados na experiência cotidiana, com desígnios coletivos e em linguagem relativamente cristalizada. Conhecem-se os impasses a que antigamente conduzia a imprudente adoção desses termos nos estudos sobre as diversas formas de poesia medieval. 3 Até há pouco, os historiadores foram vítimas de preconceitos vindos da época em que, pelos meados do século XIX, a Europa descobria (ou se deveria escrever "inventava"?) seu folclore e, em suas ilusões cientificistas, imaginava-se dúplice. O ensino obrigatório ia eliminando a metade vergonhosa. À "Idade Média", infelizmente, faltaram professores ... Do século XI ao XIV, essa opinião parecia confirmada pela permanência, entre os escritores eclesiásticos ou escolares, de um clichê que opunha aos litterati os illitterati e no qual aparentemente tudo os separava. Vários estudos consagrados em nossos dias a esse vocabulário mostraram quais nuances sua interpretação exige." A oposição não recobre por inteiro aquela que se desenharia entre o indivíduo que sabe ler e o que ignora a leitura: Gautier Map distingue litteratus de scriba; um bom escriba pode ser illitteratus; um litteratus não recorre necessariamente à escrita no cumprimento de suas tarefas cotidianas: a propriedade que o qualifica, litteratura, em francês antigo lettrure (em inglês literacy), é menos um atributo pessoal do que um tipo de relação existente entre ele e certa prática significante. A oposição se acha neutralizada no ritmo ordinário da vida; falou-se já da "simbiose" do letrado e do iletrado. Somente os distingue um do outro, em certos casos, a natureza do saber ao qual seu discurso faz referência. Donde o caráter vago, quando não ambíguo, da noção: (il)litteratus veicula um conjunto de idéias prontas relativas ao conhecimento prático de uma linguagem definida por regras. Nas aplicações que se fazem delas, os termos remetem ao uso seja do latim, seja da escritura, seja de um e outro; ou então, mais especificamente, a um corpo de intérpretes, hermeneutas, filólogos, glosadores, encarregados da transmissão dos saberes teóricos. Do litteratus ao illitteratus se estende urna longa escala de nuances, na qual cada elocutor se desloca a seu modo. Outro fator de equívoco: até o século XIII, a oposição litteratus/illitteratus coincide com aquela que o uso mantém entre "clerc" e "laico"; herança verbal de urna situação
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antiga, ultrapassada desde o século XI. Aqui e acolá nos é indicado um laicus litteratus. O que é isso? Simples elogio hiperbólico, na figura de oxímoro? Inversamente, John of Salisbury fala de um rex illitteratus, pelo que convém entender que esse rei (qualquer que seja, aliás, seu saber) esquiva-se de consultar os intelectuais de seu círculo.' Com o pretexto de um vocabulário imutável, um deslizamento ideológico - uma "laicização" - principia nos anos 1140-50 e se acelera após 1200, para terminar só no século XIV. O letrado sabe o latim e possui uma relação privilegiada com a cultura que essa língua transmite. Ora, durante meio milênio a própria existência dessa cultura - dominando, de suas fortalezas eclesiásticas e universitárias, o território das nações européias em formação - constituiu um obstáculo a que as línguas vulgares emergissem fora do estatuto da pura oralidade. Elas emergiram daí, de fato, mas bastante lentamente e ao preço de comprometimentos, dos quais nós, Modernos, somos as vítimas, pois provocaram a perda irremediável das formas de vocalidade que talvez tivessem alto valor poético e cuja preservação teria de algum modo modificado nossa história. Globalmente, no curso desses séculos, toda a poesia em língua vulgar ficará também virtualmente "do outro lado" da escritura: percebida primeiramente como uma arte da voz. Donde uma tensão no cada vez "menos inocente cara-a-cara do latim e das línguas vulgares. Nos primeiros tempos dessa história, tinham sido grandes as chances para que se produzisse uma especialização funcional: ao latim, a escrita; às línguas vulgares, a oralidade. Tal foi o caso, na época mais distante, por razões históricas derivadas do que, nos reinos bárbaros, subsistiu da antiga tradição dos escribas. Desde os séculos IV e v, porém, a cultura letrada da Antigüidade, relativamente homogênea e fechada, teve de ceder a uma multiplicidade de subculturas provinciais, na busca confusa de suas originalidades. A língua erudita, artificialmente mantida, dava a impressão de afrouxar, talvez de deter, essa dispersão. E, quanto mais esta mesmo assim se acentuava, mais se intensificava a necessidade de exaltar a pureza e a perenidade da escritura latina; daí as periódicas "Renascenças" identificadas pelos historiadores, nos séculos IX, XII e xv. As línguas vulgares (fruto da confusão de Babei, segundo Dante no De vulgari eloquentia, I, VII), origem e símbolo da dispersão dos discursos e da perda da única sabedoria, a cada uma dessas crises mais avançaram com grandes saltos em seu próprio caminho. Também aumentava a tentação, por parte dos deres, de captar essas línguas, de recuperar sua energia e sua veracidade próprias; tentação de fazer seletivamente entrar em sua ordem as vozes que delas emanam. Donde, por todo o Ocidente, a longa série de tentativas de
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dar forma escrita aos idiomas germânicos, românicos, eslavos. A partir do século XIII, a obra de recuperação torna-se sistemática e permite o exercício triunfante das censuras: quase tudo o que sabemos da poesia medieval através de seus textos é o que os homens de letras julgaram que devêssemos saber. Escrever, que na Antigüidade havia sido trabalho servil e depois, na alta Idade Média, aposto lado, consiste agora em decantar a palavra coletiva. O movimento decolou devagar, quase clandestinamente, para responder a exigências específicas, entre as quais a mais constante dizia respeito às necessidades pastorais. Já no século IV, o bispo Úlfila, longínquo precursor, traduzira a Bíblia para o gótico, a fim (segundo F. Cardini) de lê-Ia em público a suas ovelhas;" inaugurava assim uma das tradições que serão mais bem nutridas, tanto entre os ortodoxos quanto nos círculos heterodoxos, e que chegará um dia a Lutero. Em seu rastro desabrochou muito cedo uma poesia, o Heliand saxão, por volta de 830, a Eulalie picarda, meio século mais tarde ... As exigências da política carolíngia levaram os príncipes a fazer redigir em língua vulgar certos compromissos coletivos: fórmula de Soissons, por volta de 785; versões românicas e frâncicas dos Juramentos de Estrasburgo, em 842. O rei de Wessex, Alfredo, a partir de 870, tendo ordenado traduzir Orósio e Gregório, o Grande, faz redigir por escrito suas Leis, preocupado com a desagregação da cultura latina sob os golpes dos vikings. A língua vulgar aproveita-se de tal modo dessas experiências que, dois séculos mais tarde, o anglo-saxão será o primeiro idioma europeu a possuir (pela pena de Aelfric e de Wulfstan) uma prosa artística. Permanece sempre o fato de que o fator decisivo imediato da colocação por escrito foi a intenção seja de registrar um discurso previamente pronunciado, seja de preparar um texto destinado à leitura pública ou ao canto nesta ou naquela circunstância. A escrita era só uma parada provisória da voz. Dentro de seus próprios limites, as colocações por escrito constituem um fato histórico de grande importância, ao qual remonta sem dúvida tudo o que, ontem ainda, fazia nossa modernidade. A voz é O Outro da escritura; para fundar sua legitimidade, assegurar a longo prazo sua hegemonia, a escritura não deve reprimir de cara esse outro, mas primeiro demonstrar curiosidade por ele, requerer seu desejo manifestando uma incerteza a seu respeito: saber mais dele, aproximar-se até os limites marcados por um censor invisível. Mas o Outro vai instalarse no papel que assim é traçado para ele; vai reivindicar sua própria verdade, inversa. Reação de defesa da voz poética: submissão aos valores que parecem próprios à escritura latina; absorção de elementos do saber e de traços mentais que esta veicula. Essa autocolonização funcio121
nal se esboça desde os primeiros textos; revelar-se-a ao longo dos séculos XII e XliI. Sempre, até o século XI, a iniciativa escritural vem do mais alto, e a intenção não se dissimula. Em nossos arquivos, todos os textos que constituem a primeira onda de poesias européias provêm de alguns grandes mosteiros ou do círculo régio. Ou então se inscrevem num movimento de renovação litúrgica e musical que atravessa os séculos, do fim do século vrn ao XII: assim o Georgslied de Reichenau (lingüisticamente, o máximo de artifício), o Saint Léger franco-occitânico, o Alexis normando ou ainda, mais tarde, o Ritmo italiano sobre o mesmo santo. Uma floração similar se produzirá na Escandinávia, na própria Islândia, a partir do século XII, talvez já no XI, sobre os passos dos primeiros missionários cristãos. Ou então os poemas colocados por escrito contribuíram para reunir em torno do rei. a comunidade de seus fiéis exaltando o passado heróico, como o Hildebrandslied, o Beowulf, talvez as mais antigas canções de gesta francesas (ainda que nenhum manuscrito seja anterior ao século XII); e de outra maneira, a Crônica anglo-saxônica, que foi iniciada por volta de 890 sob o rei Alfredo (e que se prolongará até 1154), ou a tradução, à mesma época, da Historia ecclesiastica de Beda; sem mencionar o Ludwigslied, que celebrava a vitória de Luís III sobre os vikings em Saucourt em 881, e, na outra extremidade da Europa, os Anais redigidos em Kiev no século X e retomados nas Crônicas russas do século XIII ... Primeiro aparecimento, em nosso horizonte, de uma poesia e de relatos comemorativos aproximativamente formulados na língua viva comum; testemunhas imperfeitas e indiretas da presença de uma voz. Cronologicamente, nos territórios galo-românicos e germânicos (de longe os mais empenhados nesse projeto de aculturação) segue-se um eclipse, aparente silêncio de dois ou três séculos. Deslancha então a segunda onda de escritura poética em língua vulgar - sem ruptura até nossos dias. Essa segunda onda traz um sentido diferente da primeira. Mais do que aproximação e domesticação, ela é enfrentamento e conquista. Faz séculos, os clercs sabem e repetem que o sermo vulgaris é simultaneamente raiz e fruto de uma cultura selvagem, não oficial, embora onipresente, feita de sedimentações obscuras acumuladas desde o Neolítico, poderosa mistura "camponesa" (isto é, "pagã") de lembranças ibéricas, célticas, germânicas, de crenças, de práticas; uma arte coma qual a tradição latina, eclesiástica e escolar é obrigada a transigir, na impossibilidade de ter podido extirpá-Ia com a acusação de paganismo ou de heresia. Pois a partir dos séculos XI, XII e XIII, conforme os lugares, essa cultura popular, até então reprimida nos bastidores do teatro da Ordem 122
(política, social, moral), entra ruidosamente em cena e força os letrados u um prodigioso esforço de invenção para racionalizá-Ia um pouco que fosse e, assim, arvorar-se algum domínio sobre ela. Nesse empreendimento, seu mais poderoso instrumento é a escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coerção vocal que ainda pesa sobre si: o verso. Donde a difusão, nos séculos XIII e XIV, de uma prosa narrativa, e em seguida, no século XV, a reescritura prosaica dos antigos relatos em versos, o Éree de 1454, o Tristan alemão de 1484, o Perceval de 1530 e os numerosos "romances" feitos de compilação das canções de gesta ... A partir de então, enfraquece-se a função exclusiva reservada às tradições orais de transmissão dos conhecimentos dentro do grupo social; enfraquece-se mais ainda, e rapidamente se dissipa, a ilusão enciclopédica que sustentava essa função (já que, por mais limitados que fossem, os conhecimentos assim preservados cobriam todo o campo da experiência): o domínio das tradições orais se apequena, fragmenta-se, com o tempo se marginalizará, mas não em proveito de outro enciclopedismo. A despeito de algumas aparências e de um globalismo triunfante entre os escolásticos nos 1250-80, o espaço assim liberado é progressivamente ocupado por "ciências" descontínuas, em número crescente, para as quais ou pelas quais o homem cria uma linguagem, abstrata, empenhando cada vez menos a realidade do corpo. E o que é, em meio a essas mutações, um "letrado"? Para Huguccio da Pisa, em suas Magnae derivationes, no fim do século XII, retomadas cem anos mais tarde no Catholieon de Giovanni Balbi, dicitur litteratus qui ex arte de rude voce sei! formare litteras ... et orationes sei! congrue proferre et accentuare ("chamam letrado aquele que por arte sabe tirar da grosseria da voz uma expressão regulada ... e pronunciar seus discursos com pertinência e justa modulação"? - ponto de vista retórico, colocando a definição na única perspectiva da pronunciatio! Quanto aos illitterati, ninguém lhes nega uma autoridade particular; é nessa perspectiva que convém fixar as freqüentes referências feitas por nossos textos poéticos a alguma fonte oral. Pouco importa que esta seja talvez fictícia. Um letrado como Wace no Brut, no Rou, em seu Saint Nicolas, Marie de France em seus Lais, mas também dezenas de hagiógrafos e contadores remetem assim ao que funda, a seus olhos e aos ouvidos do público, a autoridade de seu discurso, uma tradição, um relato que retoma, um diz-que-diz. Segundo a tese vigorosamente sustentada por B. Stock, o "iletrado" pertence muitas vezes a alguma "comunidade textual", em virtude das referências que a existência o força a fazer a tal ou qual escrito (mesmo se não há acesso direto a este) e da autoridade que lhe é reconhecida. 123
dlllllN hierarquicamente
Litteratus e illitteratus referem-se,
portanto, menos a llldlvhllltl mados em sua totalidade do que a níveis de cultura que POdl'lIllII (coexistem freqüentemente) no interior de um mesmo grupo, 1111\ 1111 portamento
e na mentalidade
do mesmo
indivíduo.
111JlIIIII O equivoco,
não compartilha
nem as tendências
iconoclásticas
1111111,11, Ii pl'l\1tca das escrituras
("a criação inteira nos é como livro e pintura "): esses cétobres \1'1_11 de Alain de Lille nos impedem de dissociar liber de pictura, 1'1.'10111111111 juntos, na linha seguinte, pela palavra speculum ("espelho"). I)c,~NI'1'111111 de vista, a escrita tende menos, em sua função primária,
124 'J'.
ou
confina
com o rébus. Citei an12
••• """11.1\1(1I'''flli'o, Mais comumente, a iluminura associa na página I pllllllro, numa mesma geometria cujos componentes ten1I 1llllN1\II1ÇÕCS ou a superá-Ias juntos, com vistas a simultaIIIH"" 11jlnlavra e produzir uma significação mais rica e mais 1I11111'~, u texto se insinua no quadro, em legenda, em divisa, 111IHIIHkh'ola ou bordado sobre o vestido, afixado por entre ítl tllI 11'1111'0 ou da festa principesca. O texto traz os sinais lintil 1I1I'IINlIgem,evocando os fatos e a interpretação etimológi-
de certos OriCIIIIII_11
Omnis mundi ereatura quasi liber et pictura .
"desenhar"
1a",,"W.I\Ítd,'IIII" exemplos do século xv ou do início do XVI. Mais 1111 II 11111\'00ocasional, porém, o rébus parece constituir então, Irllll" dllN Imdições medievais, o modelo ideal e paradoxal do
a prudência do islamismo, o qual, por horror à idolatria, fu:t d •• !" pria escritura, em suas grafias, o fundamento de toda arte visunl r 1'1 tica. Gregório, o Grande, já havia tomado posição: instruir-se plll lIi!'1 de uma representação figurada não significa adorar essa pinuun " II versamente,
tanto
dos discur-
pl,wlll 11111,'111' letras: a escritura é uma figuração. E o que nos illll 1111111 1IIIIIIação semântica é profundamente motivado nas I, I \!'~~I'11.'1111'0: o grego bizantino graphein se refere, ele tamI h. ,111I ti hnagcm, ao relato e ao afresco. No limite de seu
te "iletrada" de mim, de você, desta sociedade inteira - d01l1l1l nos as palavras e menos das palavras, mas está mais próxhun 111'_1
Pela pena ou pelo ensinamento dos sábios, uma teoria SI' \1~h desde o século IV e tomou forma em Isidoro e Gregório, 0(.11I1111 ra atravessar a época medieval até os versos bem conhecidos {lI' VIII aos letrados a escritura, aos iletrados as imagens, com igual VI'IIIl'i de;" intueri ("decifrar com os olhos e penetrar" o texto) conun nj/l plari, segundo os termos de uma resolução do sínodo de Arras, 1'1111 que parece excluir toda situação mediadora. 10 O cristianismo 0\1&111'
cuja interpreta-
da diversidade
1011 ,1111 111111',0, o vcrbo escrire significa
O iletrudu
sofre mais seu poder; sem dúvida, é por isso que (como a PII"III" tra" do Evangelho aponta) convém fazer triunfar em si a i/MIIIII" 1 assegurar a salvação: Francisco de Assis entendeu "Iiteralmeuu-" metáfora e rejeitou a curiositas dos livros."
articuladas,
apesar
I' d,,~II'.III\(,:ões;a ilustração pictural modifica esse dado, estabe11111l,llIt,:ões espirituais e garante a integração de todos esses i"" IlIlIdos em relações alegóricas. Numerosos manuscritos in111 IIIHlllllções tituli que indicam, com maior ou menor sutileza, 11111111 o texto. Freqüentemente, o titulus se expõe perto da boca I
til
Hliil I" IH!lIIIIIWm, da qual anota as palavras; dá-se assim que 'li 1_IIIIII/lllIlSse estabelece um breve diálogo, não extraído do 1111111\ dll'erença entre esse procedimento e nossos quadrinhos I1 IIIN(l1I1'11I ele narrativa explícita. O diálogo visualizado, por 1111III!llIIIC constitui materialmente seu lugar, volta-se para (111111 lul. Restitui ao olho as condições empíricas, concretas,
entre texto deopoa ordas
(11{"'. "lllllllrais". O artista não dispõe de meios para fazer esculi lilllN pelo menos a cita intencionalmente naquele contexto, conI,!" /111111110ti tarefa de sugerir ao ouvido a realidade sonora. Essa ti h II 11\\tI de um sentido a outro perde aqui a pura abstração que 1111ti 11111(\muda e solitária. I 111111111110, (I arte plástica conserva sua autonomia no interior de 11,1111111 di' illlercãmbios. Se às vezes alegoriza de maneira manifesta IJ~II' 11\11'tllIsl 1'0, ocorre-lhe proceder pelas vias mais indiretas de uma (conforme termo de V. Branca). Assim os denJjp~ 111111 ,tllltds do célebre "Saltério de Utrecht"; assim as miniaturas
lilHh 11111 '1I~'No" narrativa
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que literalizam as metáforas da linguagem. Da imagem à escrita e inversamente, a referência não é unívoca. Uma só é por exceção o par da outra. Opõem-se menos em virtude de sua significância respectiva do que do tipo de correlação que une seus elementos: de um lado, associação por contigüidade de percepções sensoriais; e, de outro, codificação que implica uma hierarquização de caráter, ao menos tendencialmente, abstrato. A escrita simboliza; a imagem emblematiza; uma confirma a outra, precisamente porque permanece no plano que lhe é próprio. Ao longo do século XIII inglês, vemos assim se generalizar o uso dos sinetes (no século x, somente o rei tinha um): posto numa carta, o selo valoriza-a personalizando-a ... como o fazia, um pouco antes, a declaração verbal diante de testemunhas. I3 O emblema freqüentemente se resume no traçado de alguma letra: o T e o I inscritos .por Tristão nas lenhas que abandona ao rio, nos vv. 14425-8 de Gottfried. Ou a letra se expande até formar o nome inteiro: desse modo, segundo a opinião mais provável, sobre a vara de avelãzeira do mesmo Tristão, em Marie de France." Nos costumes do século xv, uma relação análoga, embora inversa, associa ao vitral, à tapeçaria, quando não aos brasões e mesmo às roupas principescas, a divisa que freqüentem ente aí se integra: às vezes uma estrofe inteira de um poema contínuo, de figura em figura, até formar o conjunto de uma Vida de santo ou de uma Dança Macabra. Os alemães denominam Bildgedichte C'poerna-imagem") os livros em que o texto acompanha uma série organizada de desenhos. Em geral, trata-se de obras com caráter simbólico, exigindo uma leitura dupla: a das palavras traçadas e, em outro plano, mas indissociável do primeiro, a das imagens. No entanto, de sua parte a pintura e a escultura buscam uma identidade que as aparenta às obras escritas. O escultor e mais ainda o pintor (trabalhando sobre o mesmo suporte material que o escriba) caminham às apalpadelas, por entre as técnicas de sua arte, na direção do que as tornaria, codificando-as de maneira bastante rigorosa, escrituras plenamente desdobradas no espaço; daí os motivos, cores, formas convencionais, esse mais-além da representação. Pouco a pouco, a heráldica se constitui como linguagem social. Muitos fatos assinalados entre o século XVI e o XIX provam o poder que a imagem teve na difusão, e mesmo na transformação, das lendasj+' numa medida talvez menor (antes da invenção da gravura em madeira), a época anterior não pôde deixar de ter conhecido esse fenômeno. A "Idade Média", como outras culturas (tal qual a nossa desde trinta ou cinqüenta anos), conheceu uma espécie de triângulo da expressão: a voz aí não se distinguia apenas da escritura, mas uma e outra, e reciprocamente, da imagem. Os desenhos com que Boccaccio semeia 126 ,~
uinnuscrito autógrafo do Decameron fornecem disso um comentário 1llltOnomo, em parte caricato, o qual força a entrada do texto e o abre "11m uma poderosa corrente carnavalesca, em que às vezes o grotesco 1111\1 esconde a agressão pessoal." Na forte - medida em que a es-rltura medieval é ainda mal dissociada do desenho e permanece paradoxulmente (de maneira latente, numa parte de si mesma) ideogramáti'li, rica tributária da palavra que a declara e que ela glosa e ilustra mais do que transcreve. Mas a imagem por si própria requer a todo o instanIt' explicação, explicitação - glosa in praesentia que, no contexto geral desses séculos, será antes oral do que mediatizada pela escritura. Asm, a imagem não apenas toma o lugar da leitura para pessoas pouco 011 nada competentes nesse exercício; também pode fornecer ao leitor público matéria para a exibição ou para o comentário. A prática "teatrul' da época mais próxima (como o ritual das entradas régias) sugere \I popularidade desse último uso. A pintura - explica no século XIII Richart de Fournival para justificar a ilustração de seu Bestiaire d'amour tem por virtude tornar presentes as coisas comemoradas ... como o luz a palavra pronunciada, no momento em que se escuta; 17 o texto de Richart é claro e não faz referência à escritura, mas somente à percep1;[10 auditiva. No triângulo da expressão, a imagem tem sua parte ligada .om a voz. A imagem também só se comunica na performance. Donde a fragilidade do equilíbrio entre os valores que traz a voz : aqueles que tende a impor a escritura; situação que depende das "Ion/-Il1S durações" históricas e cujas últimas seqüelas só serão liqüidadas .om a Revolução Industrial. A quase totalidade do que nos foi conservudo da poesia medieval testemunha ao mesmo tempo esse equilíbrio : sua fragilidade. Donde a própria aspereza das polêmicas modernas :ntre medievalistas defensores ou adversários da oralidade! Mas, aqui, trala-se menos de "poesia oral" que da poesia de um universo da voz. Ou melhor, distinguimos a situação de comunicação (implicando em especial o uso deste ou daquele medium) e o ambiente de comunicação (determinado por um feixe de costumes de inegável poder). Na sombra da História, percebemos o murmúrio das massas humanas, cuja presença só podemos pressentir - como a de um animal noturno escondido do qual se percebe a respiração e a tepidez -, graças a uma "cullu ra" escrita plantada como uma vela nessas trevas. De tempos em tempos, o círculo do clarão revela um rosto, uma boca, um gesto esbocudo em direção a nós ... De lá se elevaram vozes hoje extenuadas, algumas das quais foram captadas pela escritura. Pouco importam os motivos imediatos e os procedimentos dessa inscrição, e menos ainda a ideologia de que, às vezes, um letrado fez seu pré-texto.
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O. Capitani revelava nas instituições políticas da Idade Média uma "mentalidade do múltiplo", mal percebida por um medievalismo demasiado inclinado seja à reduction ad unum, seja a um pluralismo inorgânico. O múltiplo resulta aqui da diversidade das coerências simultaneamente reivindicáveis pelos atos, pelos julgamentos e pelos discursos humanos. Donde uma aparência de heterogeneidade e, da parte do leitor de textos, a constante necessidade de dar lugar ao equívoco, quando não às contradições, dia após dia levantadas (no domínio que me importa aqui) graças à onipresença da voz.
A essas redes de relações, tramadas em sua prática oral, os homens da Idade Média não foram desatentos. O empirismo da conduta intelectual extravia às vezes o historiador das idéias, acostumado a requerer racionalidades mais rigorosas. Os testemunhos são trazidos um após o outro, freqüentemente camuflados por uma linguagem de empréstimo, formada num longínquo passado para designar realidades diferentes. Buscar-se-ia em vão descobrir ou reconstituir uma teoria medieval da voz humana e de sua função no grupo socia!. Permanecem as notas dispersas, mas numerosas e convergentes o bastante para, de maneira latente, servirem parcialmente. A diversidade dos registros nos quais, segundo os discursos e as circunstâncias, é então tematizado o objeto voz torna difícil a síntese. Entretanto, permanece uma convergência, sob a variedade da superfície. Nesse ponto, seria inestimável dispor de dados iconográficos; mesmo os estereótipos que presidem às "representações" figuradas de oradores, poetas, pontífices, cantores, até personagens ordinárias, poderiam, de modo cumulativo, fornecer muitas informações. Por infelicidade, a "arqueoiconografia" está só começando. Quanto aos textos, o vocabulário que adotam não facilita a interpretação. As línguas medievais distinguem mal voz e palavra, e esses termos ou seus sinônimos apenas se esclarecem - às vezes - graças ao contexto. Realizei diversos levantamentos, em fontes francesas e latinas. Assim, das 177 ocorrências de parole que indica a concordância analítica dos romances de Chrétien de Troyes (manuscrito Guiot) estabelecida por M.-L. Ollier, 42 (ou seja, quase 24%) apresentam o termo como complemento de um verbo que denota uma manipulação ou um deslocamento espacial, tenir, prendre, perdre, rendre, faire, mettre, traire (lirer), agencer, esmouvoir (remuer), tolre (ôter), rompre e alguns outros similares; das dezenove ocorrências de voiz ("voz") atestadas fora elas locuções fixadas (em voz alta), sete (quase 370/0) figuram no mesmo contexto verba!. Os versos 3716-23 do Érec et Énide descrevem a emoção da jovem heroína, incapaz de falar:
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Sovant dei dire s'aparoille si que Ia langue se remuet.
Mes Ia voiz pas issir n'an puet car de peor estraint les danz, s'anclost Ia parole dedans... Ia boche clot, les danz estraint si que Ia parole hors n'an aille ("muitas vezes, ela se prepara para falar, e sua língua se mexe, mas a voz não pode sair, por causa do medo que lhe cerra os dentes, de forma que a palavra permanece aprisionada no interior. .. Ela fecha a boca e cerra os dentes para impedir a palavra de sair"). No início do Yvain, Calogrenant convida seus ouvintes a prestar atenção ao relato que vai fazer: As oroilles vient Ia parole ausi come li vans qui vole, diz ele (vv. 157-8) ("a palavra vem aos ouvidos à maneira do vento que sopra"), les oroilles sont voie et doiz par ou s'an vient au cuer Ia voiz (vv. 165-6) (' 'os ouvidos são o caminho e o canal por onde a voz vem ao coraçãO,,).18 É verdade que na Mort Arthur, segundo Kunstmann e Dubé, essa conotação se encontra apenas nuns 10% das ocorrências dos mesmos termos; sem dúvida, o fato de que esse romance seja em prosa os desvia para um sentido mais rigorosamente escritura!. Subsiste o fato de que voz e palavra, assim concretizadas, referem-se muito freqüentemente a uma coisa, percebida e localizada, que se retém ou que nos escapa; a materialidade de um som. Em latim, uma circulação semântica parecida se estabelece facilmente entre vox, verbum, sermo e mesmo locutio. Essas interferências manifestam o que eu chamaria de caráter artesanal da ação verba!. Da mesma maneira que a arma, o vaso, a roupa resultam de um trabalho da mão, sem mediação da máquina, o discurso é produzido pelo trabalho fisiológico da voz. Nada se imiscui entre o objeto e seu produtor, nem entre o objeto e seu consumidor, nem entre um e outro dos indivíduos implicados; mas, ao contrário, estabelece-se entre esses três termos uma ligação direta, estreita e quase necessariamente apaixonada. Donde a impossibilidade de mentalmente dissociar do conteúdo (a mensagem) o objeto que o contém (o som de uma voz); poetização natural da palavra, colocada na boca de quem a profere e no ouvido de quem a recebe, presente tanto para um quanto para o ou-
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tro, com sua amplitude, sua altura e seu peso. Tal me parece ser o sentido das declarações que são reveladas aqui e acolá, especialmente na hagiografia, sobre a importância social da palavra nos meios dirigentes; 19 a eloquentia que se espera do bispo é objeto de qualificações, entre as quais algumas, como mansuetudo, mansueta elocutio, só podem designar um tom de voz; da mesma maneira nos tratados de arte predicante, como o de Humbert de Romans, por volta de 1270, quando se recomenda a abundantia ou a copia verborum ... Por isso se impõe, desde a alta Idade Média, no meio monástico, uma moral do uso vocal, que pode ser condenável - como a tagarelice, o barulho mundano, os jogos histriônicos, segundo John of Salisbury, por volta de 1150, no primeiro livro do Policraticus; e John especifica, incrimina lascivientem vocem ("um tom de voz que convida ao prazer"), muliebres modos notularum ("uma articulação efeminada"), praemolles modulationes ("modulações amolecidas") tão perigosos para a alma quanto a voz das sereias; numa diatribe vigorosa, Pierre de Blois invectiva os professores incapazes, cuja voz tonitruante e clamores dignos de marujos no mar fazem ressoar à toa o ar em volta deles." Entre os autores eclesiásticos como Alain de Lille, o termo scurrilitas, no sentido próprio de "bufonaria", vem designar o vício de quem fala à maneira dos jograis, com abundância excessiva e efeitos de voz. A scurrilitas, glosada por Raoul Ardent como sermo risorius ("derrisão lingüística"), naturae deponit dignitatem ("rouba à natureza a sua dignidade") e está entre as diversas formas da mentira." Nenhuma condenação da palavra - da obra vocal - como tal. John of Salisbury ainda, no Entheticus (vv. 1547 ss.), dá os preceitos de seu bom uso: si! lingua modesta, compositus gestus ("que tua voz seja reservada, e teu gesto, dominado").22 A legenda de Francisco de Assis, no tempo das primeiras gerações dos franciscanos, acentuou a sabedoria própria ao rudis, idiota, elinguis, todos os termos significando aproximadamente "aquele que dispõe apenas de sua VOZ".23Nem a mentalidade nem os costumes, em tudo o que concerne à função, à dignidade e aos valores, parecem distinguir o Ocidente europeu do resto da Eurásia: os capítulos consagrados à palavra no Livro dos conselhos (Qâbús nâma) do príncipe iraniano Kay Kâ'üs, no século XI, ilustrariam adequadamente muitos traços do meio cortês; a palavra é sempre percebida no volume da voz." É verdade que, nos países cristãos, subjaz a idéia - quando não a lembrança fabulosa - do Verbo divino. Foi pelo Verbo que Deus fez o mundo. O Verbo cria o que ele nomeia. Durante séculos, todo o esforço da teologia trinitária será pensar "o paradoxo dessa estação da palavra divina no Começo"." As doutrinas pelas quais alguns tentaram 130
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a solução desse problema jamais brilharam fora de um meio muito estreito e não iluminam diretamente, a nossos olhos, nem o sentimento nem o pensamento da maioria das pessoas comuns. Todavia, elas abrem uma perspectiva na qual temos o direito de supor que seus discursos - mesmo às cegas - se moviam. Para Thierry de Charles, comentando Boécio, a Trindade corresponde a três causas divinas e a três aspectos do universo: enquanto Semelhança, o Verbo confere, às coisas criadas pelo Pai enquanto Unidade, as formas que animarão, enquanto Amor, o EspíritO.26Assim, a criação é auto-revelação, numa teofania original, de uma Palavra da qual no século XIVMeister Eckhart distinguirá três modalidades: proferida; pensada, mas não proferida; ou impensada e sem expressão, permanecendo eternamente naquele que a "diz". Por isso, na marcha do mundo, é a palavra o que fecunda, não a carne; assim se justifica, segundo J.-L. Flandrin, a exigência de castidade que a Igreja tenta impor a seus clérigos a partir do século XI.27Nessas especulações, a tradição cristã encontra-se com a dos cabalistas. Ao verbo manifesto responde o verbo escondido, ou, conforme Nikolaus von Cusa, o verbo vocal ao do espírito; mistério inscrito na estrutura da língua hebraica, em que são escritas somente as consoantes, mas que só existe pela vocalização, fonte inesgotável das interpretações possibilitadas por essas coagulações de signos." O movimento de filosofia mística atravessa assim os séculos, de Scotus Erigena a Pico della Mirandola. A pura interioridade e a pura oralidade do Verbo figuram juntas o estado edênico, enquanto a mediaticidade da escrita e sua exterioridade medem o exílio da Palavra por entre a multiplicidade das coisas. Pelo menos, nossas palavras dispersas remetem ao reflexo quebrado Daquela. Remontar ao curso dessa translatio nominum permitiria ao discurso simbólico colocar-se como perfeito equivalente lingüístico do universo. O sentimento geral, de acordo com o pensamento filosófico que o sustenta, tende a uma sacralização da palavra, mais ou menos confusamente percebida como energia criadora. Nada de espantoso no fato de que sobrevivam (ou ressurjam?) no imaginário "gótico" formas míticas ligadas à representação da boca, que significa a voz; órgão ambíguo, boca consagrada, quando se cala, tanto ao beijo quanto à devoração; maléfica ou benéfica, jamaís neutra, quando fala; origem simultânea da linguagem e dos gritos. Donde a nostalgia de uma voz pura, desprendida dessas pesadas condições do ser: vozes percebidas nos sonhos visionários de Guibert de Nogent, vozes dos anjos,29 recorrência do tema de Eco na poesia letrada; transferência metafórica acerca dos pássaros, modelo e fonte típica do grande canto cortês; aventura final do mágico Merlin, cuja palavra profética fundou e em seguida manteve o império
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de Artur: agora entombé, invisível por magia, reduzido a sua voz na cerrada floresta de Brocéliande, segundo o admirável Laneelot-Graal, que, graças a suas adaptações em várias línguas, românicas e germânicas, tornou-se o grande clássico europeu dos séculos XIII e XIV. A linguagem jurídica - tão próxima, por suas raízes, da poética - emprega o termo vox, em contextos diversos, para designar a demanda judicial, o testemunho, a pretensão a um título, o fundamento legal explícito de um direito. Voeem habere, voeem suscitare, in voee alieujus, expressões que estão bem fixadas nessa prática e cujo núcleo semântico refere-se ao poder da palavra, a verdade própria que a voz pró-clama ... como no "clamor de socorro" [clameur de haro] do velho direito normando.
ou referências), não ultrapassavam nunca o plano de uma lógica da significação. Abelardo, como John of Salisbury, talvez tenha pressentido a oposição, para nós saussuriana, de langue e paroleP Assim, visões intuitivas, às vezes profundas, abrem-se periodicamente (nos textos eruditos de que dispomos) sobre o ser concreto e o dinamismo próprio da voz. Mas nada os reúne em doutrina. Entre os gramáticos, a mesma dispersão. Para Quintiliano, vox é apenas um dos aspectos do verbum: a palavra isolada, por oposição ao trabalho de textualização (loeutio) e ao discurso constituído (dietio). Ao longo dos séculos, o uso desses termos vacila. Os glosadores de Prisciano, como o espanhol Domingo Gundisalvo e o francês Pierre Hélie, no século XIII, só em parte se entendem sobre a oposição que seu autor estabelece entre vox e littera: o segundo chega a afastar a consideração própria do som e define por vox a prolatio animalis, a "articulação" ou "enunciação" vital, que constitui a materia da técnica gramatical. 33 Em contrapartida, os retóricos não esqueceram por completo as partes antigas de sua arte, relativas à prática vocal, pronunciatio e aetio. O Handbueh de H. Lausberg fornece numerosas referências. A Poetria nova de Gaufridus Anglicus retoma em termos particularmente claros o lugarcomum corrente a esse propósito:
Talvez conviesse re-interpretar assim a tradição filosófica (quase ininterrupta de Agostinho a Abelardo) de reflexão sobre a linguagem: lugar das relações do homem consigo mesmo, com os outros, com o mundo material, com Deus. É verdade que os sábios de então tiveram dificuldade para delimitar o alcance racional da palavra voz. Talvez, como o sugere Clanchy," a querela dos universais, interminavelmente recomeçada, tenha acarretado a longo prazo uma impossibilidade de distinguir do signo oral o escrito - donde a incapacidade de isolar o suprte desse signo. As ordens de percepção se embaralham: a voz, a palavra, o discurso organizado são raramente considerados em sua propriedade, distinta das duas outras. Agostinho, entendendo por voees as palavras da língua, já as tomava por coisas corporais, embora o que signifiquem não o seja; com isso, as palavras são signos, mas as coisas, segundo outra modalidade, também o são. Donde um alegorismo,que permaneceu até o século XVI uma das tendências mais estáveis da inteligência ocidental. As palavras representam a realidade? Ou são apenas flatus voeis? Também essa expressão designa, mais do que o som em sua existência só física, a voz enquanto intenção de significar, anterior ainda a toda significação. Por volta de 1100, Roscelin, a quem seus contemporâneos atribuíram o mérito de ter inaugurado o nominalismo, parece ter percebido a voz como uma auto-revelação da linguagem, constituindo o sentido mais universal, lugar dos sentidos particulares e manifestos; para Roscelin (cuja obra não conhecemos diretamente), a experiência vocal, querer-dizer e não-dito, teria assim coincidido com uma abertura do ser." Os intérpretes de Aristóteles, Peri hermeneias, de Boécio a Abelardo, logo à primeira vista defrontando, na adaptação latina que utilizavam, com os termos voees (palavras pronunciadas) e notae (signos,
("Que três línguas se façam entender no recitante: que a primeira seja a da boca; a segunda, a do rosto de quem fala; e a terceira, seu gesto. A voz comporta suas próprias leis ... ,,).34 Na Itália das primeiras repúblicas mercantis, Boncompagno da Signa consagra um capítulo de sua Rhetoriea novella, livro IV, aos "Costumes dos oradores", especialmente ao tom, ao alcance acústico e aos efeitos da voz; a obra do mesmo autor intitulada Palma insiste no que ele denomina distinctio, corte rítmico, exigido pela necessidade de descansar a VOZ.35 No Convivio, 11, 13, Dante, comparando a Retórica ao planeta Vênus, distingue de sua aparição matutina aquela que se observa à noite: a primeira é a que traz a voz viva dinanzi ai viso de l'uditore ("na face do ouvinte"); a segunda se exprime no reflexo da escritura. É pouca coisa. Mas não poderia ser que a relativa raridade dos testemunhos significasse simplesmente que isso dispensava explicações? E que, para a sensibilidade dos séculos XI, XII e XIII, as implicações ontológicas da voz realçavam algo evidente? Para os poetas e para os ouvintes, a voz tem que ver com a essência da poesia; e as confissões sobre
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In recitante sonent tres linguae: prima sit oris, A !tera rhetorici vultus, et tertia gestus. Sunt in voce suae leges...
esse ponto se tornam mais numerosas à medida que, na sociedade monárquica e burguesa, o domínio da escritura se expande para outros lugares. Konrad von Würzburg , poeta assalariado do patriciado de Basiléia, na segunda metade do século XIII, compara sua arte ao canto "sem fim" (zwecklos) do rouxinol; Jean de Condé, menestrel do conde de Hainaut no começo do século XIV, para elogiar sua obra no Dit de Jacobins, lembra que todos os grandes senhores da região escutam sua voz em todos os tons." Por volta de 1200, Alain de Lille, um dos autores favoritos do meio latinizante, já dissera em termos abstratos: "A poesia retrata para meu intelecto a imagem do som vocal, fazendo, graças à voz, passarem ao ato o que eram, por assim dizer, palavras arquetípicas preconcebidas no espírito" (Poesis mentali intellectui materialis vocis mihi depinxit imaginem et quasi archetypa verba idealiter praeconcepta vocaliter produxit in actumy" Tudo se passa como se o discurso poético medieval, aquém ou além de suas formas lingüísticas, aquém da ideologia mais ou menos difusa a que serve, comportasse um elemento quase metafísico, penetrando toda palavra, mas expresso apenas no tom, no timbre, na amplitude, no jogo de som vocal. Donde a importância do canto como fator poético. Há uma dezena de anos, A. Roncaglia lembrava-o com razão num estudo que situava a filologia românica em relação à etnomusicologia. Um gosto muito vivo parece então geralmente difundido, deixando o grande público, tanto quanto os sábios, sensível à riqueza expressiva da voz e aos valores que seu volume, suas inflexões, seus percursos .atribuem à linguagem que ela formaliza. Durante toda a alta Idade Média, cuida-se da qualidade e da graça da voz dos jovens clérigos ordenados "leitores".38 Hugues de Saint-Victor, no livro VII do Didascalicon, falando dos "cantos mímicos", escreve que "satisfazem ao ouvido, não ao espírito": a força da imagem significa por si rnesma.ê? Em toda a parte, consolida-se um agudo senso das "conveniências" vocais: muitos testemunhos escritos que nos conservaram provêm de homens da Igreja ciosos das qualidades auditivas do canto sacro; todavia, o vocabulário que empregam se presta a uma interpretação mais geral. Trate-se de conselhos sobre a salmodia, de canto polifônico ou de disciplina coral, as qualificações referem-se à materialidade de seu vocal, vox rotunda, virilis, viva et succincta ("uma voz redonda, viril, viva e firme") em Gerbert, por volta do ano 1000; decora vocis sive soni ... vibratio ("os ornamentos da voz, isto é... a vibração sonora") em Jerônimo da Morávia, no século XIII; ou, com humor, em Gerbert ainda, a evocação das vozes sibilantes ou tonitruantes de histriões, vozes "alpestres", comparáveis ao rumor de um asno ou ao mugido do gado, causa de toda "falsi-
dlld~'vocal" (omnemque vocum falsitatem); em Élias Salomon, após I~~(),o retrato de um coro de cônegos lioneses, no qual cada um se es1111'Çtl para gritar mais alto que os outros, sem dúvida para melhor tocar 11 (!ÓU!40 À mesma época, é um dos motivos típicos da poesia narrativa \'111 Ifngua vulgar que o julgamento incida sobre a qualidade vocal de lima personagem cantora - às vezes, do próprio autor. Para esse fim, 1\ linguagem dos poetas dispõe de dois clichês, incansavelmente moduludos em todas as línguas. Um relativo à altura e à clareza do tom, comporta em francês três elementos, em geral acumulados dois a dois: à voix liaute, c/aire, serie (essa última palavra, como o francês moderno serein, sugere calma e harmonia); é assim nos vv. 531, 1158, 1202 do Guillaume de Dole de Jean Renart; em vários lugares do Roman de Ia Violette de Gerbert de Montreuil; no alemão, em Gottfried von Strassburg, Tristan, v. 4803 ... Os exemplos são inumeráveis. A outra fórmula evoca mais geralmente a doçura dos sons, em latim sua vis, dulcis, em francês suave, doux, e o equivalente em outras línguas, como o dulce cantar, especialmente freqüente em espanhol. Desde o século XI, o manuscrito BN lato 13 736, dando da velha Chanson de Clothaire a "versão breve", apresenta essa cantilena como suavis na boca dos cantores. Na primeira das epístolas atribuídas a Heloísa, esta louva "pela extrema doçura das palavras e do canto" (prae nimia suavitate tam dictaminis quam cantus) as canções de amor que outrora Abelardo compôs e cantou para ela. Por várias vezes, Gottfried von Strassburg evoca nos mesmos termos a voz de Tristão (vv. 7519, 7608, 17 207 e outros); nos vv. 3624-5, especifica: é de sua boca que o jovem homem forma essa doçura (sane sô suoze mit dem munde) ... Nos séculos XIV e xv, em todo o Ocidente, tal vocabulário serve para manifestar a admiração provocada por uma voz agradável. O latim utiliza nessa função dulcisonus, referindo-se tanto aos sons dos instrumentos quanto ao que produz a garganta humana. O uso assim tipificado de dulcis, sua vis e seus sinônimos não pode ser efeito do acaso. Esses adjetivos remetem, diretamente ou não, à noção retórica de suavitas, origem da delectatio proporcionada pelo discurso no genus medium ou humile - termos que, aos olhos dos sábios, abarcam o conjunto das poesias de língua vulgar. Tal é o stil soave evocado por Dante na canção que ele comenta no Convivio, IV, 1; tal é o dolce stil novo então em voga em Florença: harmonioso na boca de quem o pronuncia, com vista a transmitir adequadamente a mensagem de amor. O canto "suave" que evoca a alegria do Paraíso é exaltação vocal, coros, salmos, cânticos dos eleitos e dos anjos; voce jocunda ("de uma voz que espalha alegria"), para Jean des Murs, por volta de 1300, na explicitação de sua Summa musicae; voix delie, seinne et c/ere ("um tom
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elevado, uma voz pura e clara"), para Guillaume de Machaut ainda, no prólogo de suas poesias, vv. 226_9.41 Em dialeto veneziano, o frade menor Giacomino da Verona, por volta de 1265, desenvolve longamente esse tema em seu poema De Jerusalem celesti, reforçando o efeito pela descrição antitética dos ganidos dos condenados ao Inferno." O tema literário, valorizado pela doutrina erudita, refletia a sensibilidade comum. Ao longo dos séculos, certo número de documentos permite-nos captar um eco dos julgamentos que diversos públicos fizeram dos intérpretes da poesia. Mais de quarenta dos quase trezentos textos reunidos antigamente por Faral em apêndice a seus Jongleurs assinalam, para disso fazer elogio ou censura, a qualidade física da voz. Do mesmo modo, dezenove das 101 Vidas de trovadores distinguem expressamente entre a arte poética produtora de texto (o trobar) e a operação vocal que o manifesta (o cantar); é o caso das Vidas de Peire Vidal, de Arnaut de Maroill, de Guillem Figueira, ao mesmo tempo bons poetas, bons músicos e bons cantores. De Peire d'Alvernhe, o "biógrafo" relata os termos com que o poeta louva sua própria voz: tal votz/ que chanta desobre et dezotz/ e siei son son douz'e plazen ("uma voz capaz de cantar tão bem os sons altos quanto os sons baixos, em melodias doces e agradáveis"). Em contrapartida, a Vida de Aimeric de Peguilhan exprime um pesar: por mais que tivesse aprendido canções e sirventes, cantava mal! Quanto ao pobre Élias Cairel, tocava mediocremente. a viela, cantava mal e falava pior ainda! Sua única qualidade era saber escrever... A voz como tal, em sua existência fisiológica, está situada no coração de uma poética.
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A OBRA
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MEMÓRIA E COMUNIDADE
Memória e laço social. lntervocalidade meiros. O poder vocal.
e movência. Os relés costu-
A voz poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia sobreviver. Paradoxo: graças ao vagar de seus intérpretes - no espaço, no tempo, na consciência de si -, a voz poética está presente em toda a parte, conhecida de cada um, integrada nos discursos comuns, e é para eles referência permanente e segura. Ela Ihes confere figuradamente alguma extratemporalidade: através dela, permanecem e se justificam. Oferece-Ihes o espelho mágico do qual a imagem não se apaga, mesmo que eles tenham passado. As vozes cotidianas dispersam as palavras no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz poética os reúne num instante único - o da performance -, tão cedo desvanecido que se cala; ao menos, produz-se essa maravilha de uma presença fugidia mas total. Essa é a função primária da poesia; função de que a escritura, por seu excesso de fixidez, mal dá conta. Por isso, os modos de difusão oral conservarão um status privilegiado, para além das grandes rupturas dos séculos XVI e XVII. A voz poética é, ao mesmo tempo, profecia e memória - à maneira do duplo livro que Merlin dita no ciclo do Lancelot-Graal: um, na Corte, projeta a aventura; o outro, em Blaise, eterniza o acontecimento. A memória, por sua vez, é dupla: coletivamente, fonte de saber; para o indivíduo, aptidão de esgotáIa e enriquecê-Ia. Dessas duas maneiras, a voz poética é memória. Gerações de pensadores, de Agostinho a Tomás de Aquino, interrogaram-se a propósito dessa faculdade ambígua, naquilo que concerne à tópica ou que se mantém por uma visão escatológica ou moral tendendo sempre, pela repetição dos discursos, à sua inserção numa verdade ti da por imutável ou, ao contrário, a gerar infinitas variações. Pa139
ra a tradição agostiniana, a memória torna a alma presente diante de si mesma e faz-se receptáculo do verdadeiro. Parte da prudentia, a memória humana se distingue, para os tradutores latinos de Aristóteles, em memoria e reminiscentia, que respectivamente se põem no lugar da alma sensível e da alma intelectiva. I De fato, ela envolve toda a existência, penetra o vivido e mantém o presente na continuidade dos discursos humanos. O Novo Testamento é a memoria do Antigo, na medida mesma em que este constitui sua figura. Donde a metáfora poética do "livro de Memória": assim está no frontispício da Vita nova de Dante. Foi no livro de minha memória, diz o poeta, que encontrei escritas as palavras com as quais vou compor esta obra. Portanto, a memória não é livro senão em figura: ei-la designada palavra viva, da qual emana a coerência de uma escritura; a coerência de uma inscrição do homem e de sua história, pessoal e coletiva, na realidade do destino. Esse interesse pela memoria, continuamente manifestado pelos doutos, deve-se ao imenso papel desempenhado nessa cultura pelas transmissões orais _ trazidas pela voz, da qual a poesia constitui o lugar eminente. Uma mensagem escrita, oferecida à vista, triunfa sobre a dispersão espaciotemporal por extensão, por prolongamento, de tal modo que cobre essa dupla duração e se dilata com ela, se for o caso. Uma obra vocal tende ao mesmo fim por meios contrários: reduz a duração à iteração indefinida de um momento único; o espaço, à uni cidade figurada de um só lugar afetivo. Um clichê, abundantemente atestado através de toda a Europa, do século XII ao XIV (hoje ainda presente no discurso do velho bom senso!), justifica o uso da escritura pela fragilidade da memória humana. Esse falso adágio testemunha a pressão exercida sobre o meio pelas mentalidades escriturárias em vias de difusão. Mas a poesia, como tal, traz um saber. Ela o reconhece e não cessa de reconstruí-lo, dando-o a conhecer. Ergue uma ordem totalmente outra, diferente dos mementos escritos. A etnologia contemporânea pôde estimar que fosse de duas ou três gerações a duração de validade das lembranças pessoais, no seio da comunidade familiar; medida natural, sem dúvida irredutível. Mas, para além desse grupo social estreito, memórias longas se constituem por armazenamento de lembranças individuais; a continuidade é assegurada ao preço de uma multiplicidade de afastamentos parciais. Aí, ainda alcançamos um limite que B. Guénée, fundamentando-se em testemunhos medievais, fixa em um século no máximo.! Certas sociedades tentaram criar paliativos para essas insuficiências, instituindo profissionais que eram herdeiros da memória, presos à literalidade de um discurso e capazes de ir muito longe no passado. Não parece que o Oci-
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dente medieval os tenha jamais formado, a não ser os skops, escaldos c bardos dos territórios não romanizados na época mais antiga. Em contrapartida, prodigalizou no meio escolar, pelo viés do ensino retórico, diversos preceitos para corrigir a fraqueza das faculdades da memória. A tradição antiga das artes memoriae, transmitida no Ocidente pela Rhetorica ad Herennium, reativa-se no século XIII, em parte sob a influência dos dominicanos. Nos séculos XIV e xv, invadirá o campo da escolástica. Teorizada, destinada a abarcar a universalidade do saber, a "arte da memória" se orienta para a utilidade da palavra: sua finalidade é um discurso virtuoso. Ele se manifesta num ato de enunciação. Boncompagno, em sua Rhetorica novella, consagra à memoria um longo capítulo que alcança até a psicologia, recomendando, para melhorar o rendimento, a moderação nas libações e na conjunção carnal!' Mesmo que os autores desses tratados e o público ao qual se dirigem pertençam ao meio restrito dos iniciados da escritura, a concepção da memória que transmitem implica a idéia de uma presença real dos corpos: um laço, em particular, entre a memória e a vista, fundado sobre a função da imagem e de suas relações com a palavra. O que entra em jogo no intérprete de poesia, no momento em que é requisitada sua memória, é algo mais do que uma simples memorização. A. B. Lord, a propósito de cantadores iugoslavos, falava de remembering, "rememoração". Conforme o intérprete, na performance, cante, recite ou leia em voz alta, limitações de maior ou menor força geram sua ação; de qualquer modo, porém, esta empenha uma totalidade pessoal: simultaneamente um conhecimento, a inteligência de que ela se investe, a sensibilidade, os nervos, os músculos, a respiração, um talento de reelaborar em tempo tão breve. O sentido provém de tal unanimidade. Donde a necessidade de um hábito que oriente esta última, da posse de uma técnica elocutória particular, que é a arte da voz. No correr dos séculos, muitos intérpretes de algum renome foram louvados por sua habilidade de narradores, de cantores, pela riqueza de seu repertório. Antes do século xv, parece que jamais alguém se gabou de sua memória. Ela corria naturalmente. Pela época em que se inventa a imprensa, tudo muda. Uma carta de 1446, publicada por J. Werner, conta a estupefação, até a incredulidade, dos sábios alemães quando da visita de um jovem espanhol de 21 anos que falava cinco línguas (afora as "vulgares") e era capaz de recitar de cor a Bíblia inteira, Nicolas de Lyre, os escritos de s. Tomás, Alexander of Rales, Boaventura, Duns Scot e "muitos outros", sem contar as decretais e suas glosas, todo o Avicena, Hipócrates, Galeno ... mas, é verdade, apenas uma parte de Aristóteles! Os doutos perguntam a si mesmos: esse jogral de toda a ciência é inspi141
rado por Deus ou pelo diabo? Não anunciaria ele o anticristo?" Cem anos mais tarde, o contador de histórias Román Ramírez, como vimos, pagaria com sua vida aquilo que, para os inquisidores, não funcionaria sem as artes do diabo. Na medida mesma em que o intérprete empenha assim a totalidade de sua presença com a mensagem poética, sua voz traz o testemunho indubitável da unidade comum. Sua memória descansa sobre uma espécie de "memória popular" que não se refere a uma coleção de lembranças folclóricas, mas que, sem cessar, ajusta, transforma e recria. O discurso poético se integra por aí no discurso coletivo, o qual ele clareia e magnifica; correndo na fluidez das frases poéticas pronunciadas hic et nunc, não deixa instaurar-se a distância que permitiria ao olhar crítico sobrepor-se a ele. Essa conjuntura, é verdade, modifica-se localmente, pouco a pouco, desde o século XII, à medida que se constituíam os grupos sociais citadinos. Mas, por muito tempo, nada atenuaria a eficácia global da memória vocalizada: não é ela o que reivindicam ainda os poetas do século xv e do próprio século XVI, quando celebram seus príncipes? A indiscutível (porém muito relativa) aceleração dos ritmos, históricos a partir da segunda metade do século XII não impede que se possam ligar as estruturas mentais e as formas culturais do Ocidente, até os arredores de 1500, ao modelo do que Grauss, anteriormente, designava cultura do "passado vivo' '. Mas talvez (porque ela é poesia) o que diz essa voz, o que ela sugere - por sua intemporalidade, pela própria perfeição que, em sua ordem, a distingue dos outros discursos _, seja menos o que temos em comum, nós, seus ouvintes, do que isto que nos é comum a todos e, do mesmo modo, impossível: para além de nossas fronteiras, o rosto daquilo que a nós, indivíduos, seria a morte. A perfeita voz da memória - forme-se na garganta, na boca, no sopro de um poeta ou de um padre - tem como fim último, sem dúvida, evitar rupturas irremissíveis, o despedaçamento de uma unidade tão frágil. Nessa tarefa, ela só tem à disposição duas estratégias: integrativa, assumindo até os limites do possível o essencial das palavras já pronunciadas entre nós; ou propriamente evasiva, reca1cando, censurando essas palavras (ou algumas delas) com um simples fingimento, o infantilismo de quem recomeça do zero. No tempo da reclusão feudal, nas pequenas comunidades de base em que o Ocidente ia refazendo as energias, essas funções da voz poética tiveram, provavelmente, um aspecto vital: contribuíram para a proteção de grupos isolados, frágeis, que elas encasularam em torno de seus ritos e da lembrança dos ancestrais. Quanto mais se retoma no passado, mais se observa essas funções, muito progressivamente, diluirem-se e decrescerem; a passagem do canto à leitura
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pública indica nos costumes essa evolução. O que nos fica, qualquer que seja ou venha a ser seu modo de transmissão, é que essa poesia, até o século xv e em todas as suas formas, corrobora uma verdade reconhecida e ilustra paradigmaticamente a norma social. Foi só pouco a pouco, limitando-se de início a certas classes de textos, que ela veio a dissociar o privado do público e, depois, o eu do nós. A voz decerto une; só a escritura distingue eficazmente entre os termos daquilo cuja análise ela permite. No calor das presenças simultâneas em performance, a voz poética não tem outra função nem outro poder senão exaltar essa comunidade, no consentimento ou na resistência. Ou, então, o triunfo da escritura foi combatido, tardio, e as mentalidades escriturais permaneceram muito minoritárias até o século XVI ou XVII. Por isso, a diferença (aliás, mais intuitiva do que empírica) que estabelecemos entre "ficção" e "realidade histórica" se aplica mal a esses textos. Eles procedem, em seu conjunto, de uma mesma instância: a tradição memorial transmitida, enriquecida e encarnada pela voz. Donde o prestígio do já dito, do antigo. Todo tempo é tempo épico - medido apenas pelos movimentos coletivos das sensibilidades e dos corpos, na harmonia da performance. Tal foi, durante séculos, o traço fundamental comum de uma cultura, e as manifestações incessantes e muito diversas de sua criatividade só o modularam superficialmente e, por vezes, obscureceram-no momentaneamente.
Nas longas durações, a obra de memória constitui a tradição. Nenhuma frase é a primeira. Toda frase, talvez toda palavra, é aí virtualmente, e muitas vezes efetivamente, citação - de um modo pouco diferente do que acontecia na escritura dos letrados, em relação aos clássicos e aos Padres da Igreja, do século IX ao XII. G. Schweikle pôde preencher uma coletânea de citações feitas, uns dos outros, por quarenta poetas alemães do século XIII. Não volto aqui ao que já escrevi sobre a tradição, num livro já antigo;' os termos ainda me parecem válidos e foram confirmados por pesquisas mais recentes. A tradição é a série aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um arquétipo. Numa arte tradicional, a criação ocorre em performance; é fruto da enunciação - e da recepção que ela se assegura. Veiculadas oralmente, as tradições possuem, por isso mesmo, uma energia particular - origem de suas variações. Duas leituras públicas não podem ser vocalmente idênticas nem, portanto, ser portadoras do mesmo sentido, mesmo que partam de igual tradição. Suas variantes são às vezes pouco perceptíveis, e seus efeitos sobre a estabilidade do arquétipo, mal observáveis nas durações curtas; elas literalmente não têm testemu-
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nhas. Donde a teoria dos "estados latentes", formulada há meio século por Menéndez Pidal a propósito da epopéia espanhola antiga: o "texto" existe de modo latente; a voz do recitante o atualiza por um momento; depois ele retorna a seu estado, até que outro recitante dele se aproprie. Menéndez Pidal encarava assim uma tradição puramente oral. Mas sua concepção se aplica muito bem às tradições complexas, nas quais os textos são transmitidos pela voz. A tradição, quando a voz é seu instrumento, é também, por natureza, o domínio da variante; daquilo que, em muitas obras, denominei movência dos textos. Menciono-a aqui mais uma vez, "ouvindo-a" como uma rede vocal imensamente extensa e coesa; como, à distância, literalmente o murmúrio desses séculos - quando não, por vezes, isoladamente, como a própria voz de um intérprete. Muitas variantes, abusivamente reduzidas por uma filologia do escrito, permitem-nos reter (ouvir) uma intervenção circunstancial: assim, na peça 145a dos Carmina Buranai as hesitações da tradição manuscrita entre chunich e chünegin ("rei" e "rainha"), no verso em que se deseja que ele ou ela lege an minem armen ("repouse em meus braços"), refletem, segundo o que eu disse, uma diferença das situações de performance. Os escritos que perduram são, é verdade, demasiado escassos ou demasiado ambíguos para nos dar uma imagem global da flexibilidade e da liberdade das transmissões vocais; pelo menos, como nesse caso, sugerem-na ao leitor atento. A obra, ao mesmo tempo que um texto percebido como ainda irrealizado, atualiza o dado tradicional. O dado tradicional existe, virtualidade tanto poética quanto discursiva, na memória do intérprete e, geralmente, na do grupo a que ele pertence. Na medida em que esse dado concerne à composição e às estruturas, o texto o reproduz mais ou menos fielmente; enquanto discurso, encontra-se integrado numa palavra personalizada, no fio de uma intenção original, não reiteirável. Certamente, esses fatos podem ser julgados apenas de modo indireto e somente quando um mesmo texto nos tenha sido transmitido por vários manuscritos ou (mais indiretamenteainda) quando dele temos uma versão em língua estrangeira. A amplitude da movência nos aparece então muito diferente, de gênero poético a gênero poético, até de texto a texto, e também de século a século. Todo texto registrado pela escritura, como o lemos, ocupou, pelo menos, um lugar preciso num conjunto de relações móveis e numa série de produções múltiplas, no corpo de um concerto de ecos recíprocos; uma intervocalidade, como a "intertextualidade" da qual se fala tanto há alguns anos e que considero aqui, em seu aspecto de troca de palavras e de conivência sonora; polifonia percebida pelos destinatários de uma poesia que lhes é comunicada 144
quaisquer que sejam as modalidades e o estilo de performance - exclusivamente pela voz. No universo dos contatos pessoais e das sensações, essas relações intervocais têm que ver com as que, em nossa prática moderna, instauram-se (com menos calor!) entre o texto original e seu comentário ou sua tradução. Assim, a intervocalidade se desdobra simultaneamente em três es- , paços: aquele em que cada discurso se define como o lugar de transformação (mediante e numa palavra concreta) de enunciados vindos de outra parte; o de uma audição, hic et nunc, regi da por um código mais ou menos rigorosamente formalizado, mas sempre, de algum modo, incompleto e entreaberto ao imprevisível; enfim, o espaço interno ao texto, gerado pelas relações que aí se amarram. Muitas canções de trouvêres franceses do século XIII, estreitamente tributárias da tradição de registro do "grande canto cortês" (primeiro espaço), apresentam-se como canção nova (segundo espaço), mas se recheiam de refrãos emprestados ou de provérbios (terceiro espaço). Na falta de palavras melhores, emprego aqui os termos arquétipo e variações para subsumir todos esses fatos e retenho a variação pelo índice da individualidade irredutível da voz. Arquétipo refere-se ao eixo vertical, à hierarquia dos textos; designa o conjunto de virtualidades preexistentes a toda a produção textual. Então, mesmo que uma seqüência lingüística (texto) seja escrita, memorizada previamente à performance, ela mostra ainda o arquétipo, permanece virtual, numa relação com o que será performatizado. Tal é a conclusão implícita dos trabalhos de um J. Rychner, recentemente de Ch. Lee, sobre as variantes dosfabliaux. Do ponto de vista do historiador, o arquétipo aparece como o relé das linhas de semelhanças que ligam um texto a outro e que ligam entre si as diversas performances de um texto que se presume (por hipótese talvez anacrônica) único. A existência desse relé impede-nos de pensar como direta a relação de texto a texto, e mesmo de performance a performance. Ela coloca a realidade da tradição e manifesta o funcionamento criador da memória. A "tradicionalidade", escrevia Menéndez Pidal, "assimilação do mesmo", procede da "ação contínua e ininterrupta das variantes"." Combina (contrariamente à transmissão puramente escrita) reprodução e mudança: a movência é criação contínua. Menéndez Pidal mostrava-a operando na tradição do Romancero, exemplo de excepcional riqueza, seguindo-se a superabundância dos documentos que lhe concernem. Citase também aquela dos cantari italianos, acerca dos quais os trabalhos de Barini, Balduino, Varanini e outros, nestes últimos anos, renovaram nosso conhecimento. Mas é no conjunto do campo medievalista que se 145
coloca aos historiadores um problema de variantes que ultrapassa as perspectivas da filologia tradicional. Apesar de nem sempre se abordar o enunciado em termos que se referem à vocal idade dos textos, esta permanece na mira, ainda que tácita ou involuntariamente. Mais vale considerar os fatos em sincronia do que em sua sucessão temporal. 8 Ao ouvido dos homens dos séculos XII, XIII, XIV, que foram a origem, o meio e o fim de nossos textos - autores, intérpretes, consumidores -, essa poesia apareceria como um vasto concerto de sonoridades agradáveis, harmoniosas ou discordantes, um jogo vocal que recobre o ruído comum da vida e que se eleva, reflui, retoma, amplifica-se ou se pulveriza em apelos ou em gritos, dos quais nenhum é perfeitamente identificável. Compreendida assim, a movença instaura um duplo dialogismo: interior a cada texto e exterior a ele, gerado por suas relações com os outros. Ela se refere a duas ordens de realidade, sem dúvida distinguidas de modo desigual pelos ouvintes de poesia (quando não pelos intérpretes e pelos próprios autores) segundo a riqueza e a sutileza da memória de cada um. O conjunto de textos franceses e alemães que contam, no todo ou em parte, a história de Tristão e Isolda ilustra a universalidade dessa movença: de fragmento a texto completo e a outros fragmentos, de romance a conto, a lai, ou více-versa, nesse vazio entre Thomas d'Angleterre, o jogral Béroul e Marie de France, entre Gottfried e Eilhart, depois Ulrich von Türnheim, destes aos anônimos de toda procedência, como a balada Tristrams tattur ainda cantada nas ilhas Faeroe." Num caos de aparentes incoerências de que nenhuma tradição escrita dá conta, vozes falam, cantam, os textos retêm ecos fragmentados, sem fixálos jamais, impelidos como se ao acaso pelos turbilhões da intervocalidade. Esse regime, certamente, não é idêntico em toda a parte; as variações textuais da canção de gesta são mais .consideráveis do que as do romance; as das epopéias tardias, menos do que as mais antigas. Uma diferença mais de grau do que de natureza. Acontece de duas versões de uma canção de gesta diferirem, em volume, do simples ao duplo; raras são as canções de trovadores em que os manuscritos apresentam as estrofes na mesma ordem. É preciso distinguir muitas espécies de variantes, segundo elas manifestem o "nomadismo" da tradição oral, as gafes da escritura a mão ou até uma reescritura propriamente dita. Há alguns anos, a propósito do Arthour and Mer/in (escrito em inglês medieval), W. Holland mostrou o quanto essas diversas espécies interferem e mal são dissociáveis. Em vez de opô-Ias, melhor seria colocá-Ias em perspectiva. Trata-se de comportamentos textuais, por certo dessemelhantes, mas determinados em comum pelo maior ou menor peso que 146
escritura e suas exigências técnicas trazem sobre a composição, o modo de transmitir, a conservação das obras poéticas. Talvez essas diferenças possam medir a margem de liberdade deixada pelos textos à voz de cada um de seus intérpretes. A distância, o conjunto de nossa velha poesia aparece, nessa perspectiva, como um encavalgamento de textos dos quais cada um mal reivindica sua autonomia. Contornos frouxos os limitam de modo imperfeito; fronteiras mal traçadas, muitas vezes incompletas, unem-nos a outros textos mais do que os separam. De um lado a outro dessa rede, as comunicações não são jamais cortadas: a corrente intervocal passa por toda a parte. Em todo texto repercute (literal e sensorialmente) o eco dos vários outros textos do mesmo gênero ... quando não, por figura contrastiva ou paródica (e, às vezes, sem objetivo determinável), o eco de todos os textos possíveis. Discurso social diversificado, homogêneo e coerente em suas profundezas, a poesia engloba e representa todas as práticas simbólicas do grupo humano; nessa medida mesma, só pela ficção ela pode ser relacionada a algum assunto. Ao longo das redes mnemônicas assim trançadas, uma circulação intensa difunde tudo aquilo que traz a voz. Antigamente, uma crítica positivista falava de imitação e de influências. Mas essa intervocalidade está mais próxima dos mimetismos do diálogo falado que das transferências da escritura. O fato aparece com toda a clareza quando a troca se opera entre os textos destinados ao canto, dos quais nada nos permite supor, sem abuso, que seus autores fossem homens de escritura. É o caso das relações textuais, muitas vezes discutidas e contestadas, entre trovadores, trouvêres e Minnesãnger, todos praticantes de uma mesma arte, freqüentando o mesmo ambiente cavalheiresco e igualmente viajantes: Folquete de Marseille, Gace Brulé, Conon de Béthune "influenciaram" Friedrich von Hausen ou Rudolf von Fenis? Marcabru "influenciou" Heinrich von Veldeke? Bernart de Ventadorn "influenciou" Heinrich von Morungen? Os trovadores que a cada estação atravessavam os Pireneus "influenciaram" os poetas catalães, castelhanos, galegos? A questão não faz muito sentido. No que concerne à Itália, o escrito foi mediador: A. Roncaglia demonstrou-o, identificando o manuscrito provençal que, por volta de 1230, o primeiro poeta "siciliano" recebeu de seu patrão, Frederico lI. 10 É verdade que, dos territórios europeus, a Itália era então a mais comprometida com os caminhos da escritura ... e a poesia dos "sicilianos", ou mais ainda o dolce stil nuovo, constituiu-se como uma glosa do trobar occitânico. A intervocalidade atua ainda com mais evidência quando os poetas em causa viveram no mesmo território. Em diacronia, ocorre sem dúvida o mesmo, porque o ponto em que se amarra a relação assim COllS-
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Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o engloba e no bojo do qual ele gravitacom outros textos e outros espaços-tempos; movimento perpétuo feito de colisões, de interferências, de transformações, de trocas e de rupturas. Entretanto, nada dessa existência móvel é então percebido como história, nem o será antes do século XVII; nada isola ainda, na palavra escutada, aquilo que condiciona o tempo e aquilo que o prende ao lugar. O dizer poético se desenrola e gira sobre si mesmo, como se na ausência de gravidade. Quantas vezes a intensidade, inimaginável por nós, de uma presença, a plenitude de um timbre sonoro inaudível para nós estiveram na origem da difusão de um texto, comprometeram-se numa troca cultural de que só percebemos os
efeitos a longo prazo? No tempo, como a transformação das velhas tradições épicas nos séculos XIV e xv; no espaço, como a impregnação de certas canções de gesta francesas por motivos vindos do Islã?13 Vários parâmetros nos permitem hoje apreciar as dimensões das redes de palavras que constituem, para nossos arquivos, a geografia e a história dessas vozes poéticas. É preciso ainda distinguir entre os objetos da tradição. A movença de certas formas da arte figurativa, de alguns traços dos costumes, abarca a Eurásia inteira, através do universo das estepes, ou do Irã à China e à Índia; pelo menos os Estados cristãos e o Islã. Desde que a linguagem, enquanto tal, é imanente a esse vaguear, a diferença das línguas naturais coloca ai um freio, bastante frouxo numa direção, mas que se bloqueia em outra. Todavia, o canto, mais do que o dizer, amplia a zona de recepção das frases que ele traz - até além das fronteiras da incompreensão. Os modelos musicais são mais largamente móveis: trazidos, é certo, pela voz (e, portanto, implicando as palavras de uma língua), mas confirmados pelos instrumentos. Fora mesmo de todo contexto propriamente musical, os ritmos poéticos, puros efeitos vocais, transmitem-se e viajam sem que intervenha necessariamente a natureza da linguagem formalizada; foi assim que se difundiu na cristandade o zejel árabe, forma estrófica de origem persa, que (talvez pela intermediação do pizmon judeu) passou à poesia litúrgica da Igreja latina. Ao norte dos Pireneus, o mais antigo exemplo não é outro senão a bela alba bilíngüe chamada de Fleury, do século x. Os primeiros trovadores adotarão essa forma, assim como os autores italianos de laudi." e os resquícios que deles subsistem no folclore europeu testemunham a amplitude de tal difusão. Aparentemente, a diferença de línguas não cria obstáculos: é da boca ao ouvido, na emissão e percepção dos ritmos e (visto que o zejel comporta obrigatoriamente rima) das homofonias, que foram operados a transferência ou o empréstimo. Algum bilingüismo, mesmo aproximativo, possivelmente interveio, em contrapartida, nas migrações e na perpetuação, nas longas durações, de temas ou "motivos" narrativos, concreções de elementos imaginários que, a um só tempo, eram muito estáveis e mal definíveis, em termos formais. A esse propósito, a questão é seu modo de integração no diseurso comum: a partir de que grau e por que gênero de formalização, lingüística, vocal, gestual, o "tema" entra em poesia, isto é, torna-se capaz de se identificar - na recepção - ao vivido pelo ouvinte? São inumeráveis os exemplos de fragmentos discursivos que viajam no espaço e no tempo e se imiscuem em configurações aparentemente as mais dessemelhantes: de um a outro, desenha-se em pontilhado não uma genealogia linear, mas um conjunto de relações complexas, con-
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e o que quer que ela diga) de proclamar essa identidade. A existência dos jograis o testemunha universalmente. Ao nomear a tradição oral, A. B. Lord sugeria que o primeiro termo dessa expressão colocasse a questão da natureza e do conteúdo (o quê?), e o segundo termo, a do meio (como?); M. Zwettler notava que esse como? poderia ser trocado por um por quê?; 12aqui o porquê da obra é, para mim, sua vocalidade. Donde a autoridade particular de que, no seio da tradição, é dotada a voz, inspirada pela memória, a qual sozinha lhe confere sua perceptibilidade. O discurso que ela pronuncia, ligado mais do que outros às formas experimentadas, mais sujeito às pegadas de um incontrolável passado, é também mais eficaz do que qualquer outro; o que diz essa boca parece mais opaco, requer atenção de maneira mais insistente, penetra mais fundo na lembrança e aí fermenta, confirma ou revolve os sentimentos vividos, alarga misteriosamente a experiência que eu, ouvinte, creio ter de mim mesmo, de ti e desta vida. O único fato é que esse homem está em vias de nos dizer neste dia, nesta hora, neste lugar, entre as luzes ou as sombras, um texto que talvez eu já saiba de cor (pouco importa); o fato de que ele se dirige a mim, entre aqueles que me cercam, como a cada um deles, e de que preenche (em maior ou menor grau, pouco importa) nossas expectativas; aquilo que ele enuncia é dotado de uma pertinêncía incomparável; é imediatamente mobilizável em discursos novos; integra-se saborosamente no saber comum, do qual, sem perturbar-se a certeza, suscita um crescimento imprevisível. As tradições escritas, que têm origem antiga ou que pouco a pouco se constituem a partir do século XI, não se estendem necessariamente> por durações menos longas do que as tradições orais. Estas, porém, mais livres do que as que passaram pelas técnicas dos escribas, aderem muito mais à existência coletiva que elas não cessam de glosar, revelando-a a si mesma.
cernentes a vastas zonas da cultura tradicional e veiculadas por gerações de narradores. Era assim que devia funcionar tudo aquilo que ti linguagem corrente designa sob o nome "legenda"; aquela, por exemplo, que deve ter caminhado por toda a Europa setentrional e constitui o núcleo propriamente dito do Beowulf anglo-saxônico, assim como da saga norueguesa de Gretti; aquela, irlandesa, de s. Brandan, o navegador do Outro Mundo, cujas versões correram o Ocidente, em muitas línguas; talvez a de Tristão; a do ferreiro mágico Wieland, a qual veio da alta Alemanha e se encontra na Escandinávia, depois na Grã-Bretanha, onde dela se apropriou a dinastia angevina, pretendendo, por volta de 1140, possuir uma espada maravilhosa fabricada por ele: o autor do Roman de Thêbes, sem dúvida a par dessa pretensão, atribui a seu herói Tideu uma arma da mesma origem ... Tratando-se de poesia lingüisticamente realizada, o nomadismo dos textos - para além dos terrenos em que fica possível alguma intercompreensão - exige ora o recurso à tradução, ora o uso de uma lingua franca, análoga à que utiliza o comércio internacional... e de que as primeiras canções épicas "franco-venezianas" dão, sem dúvida, um exemplo. Em tais condições, certos textos "passam" e outros não. Os mais móveis são os menos formalizados, quase necessariamente narrativos. Por isso, um folclorismo triunfante, pelos idos de 1900, levava a ver em todo conjunto narrativo supostamente "popular", como os fabliaux, uma massa quase indiferenciada e contínua, de um extremo a outro da Eurásia. Voltou-se a isso, se assim posso dizer. Restam certos casos prováveis, como o Lai de l'unicorne ou o de l'oiselet, dos quais existem equivalentes japoneses;" por quantas bocas eles transitaram? Às vezes, pôde-se recuperar a série de intermediários, como os que de uma vida de Buda terminaram por produzir em francês uma história de s. Josafá, muito em voga nos séculos XII e XIII! Esses intermediários, apesar de existirem, são exceções. A extensão espacial das redes da palavra narrativa em torno de antigos territórios carolíngios, românicos e germânicos parece ter raramente ultrapassado os limites que formavam o mundo eslavo a leste e o andaluz arabizado ao sul. As comunicações só se estabeleceram com as regiões célticas no momento em que estas, cultural e politicamente, esboroavam-se; e só se estabeleceram por intermédio do latim ou do anglo-normando. Em contrapartida.mo interior das áreas românicas ou germânicas, de Castela aos países vikings ou da Saxônia à Islândia, esboçam-se movimentos intensos e incessantes; Menéndez Pidal traçou anteriormente muitos de que o Romancero foi o ponto de partida ou de chegada; 16 a difusão das canções de gesta francesas na Itália setentrional, talvez desde o século XII, gerou no século 152
111, na região de Veneza, o último grande fluxo épico que Ocidente couheceu. As mesmas canções de gesta penetraram nos reinos espanhóis, \' sua marca é perceptível nos poemas que ficaram, não menos do que nu cultura local dos territórios pirenaicos.Y Diversos fatores favorece11Im essas trocas: a maciça implantação de mosteiros cluniacenses em CasIl!lae Aragão; o desenvolvimento da peregrinação a Compostela e a Roma; o papel desempenhado por Veneza durante as Cruzadas. À poesia mais rigorosamente formalizada repugna em maior grau I) franqueamento das fronteiras lingüísticas; sem dúvida, ela não poderia migrar de seu estreito terreno original se (na própria medida dessa I'ormalização) sua recepção não pudesse operar e gerar prazer na falta de um perfeito entendimento lingüístico. A glosa elimina-a como poesia; a tradução iria matá-Ia, se não a recriasse em bases totalmente diferentes; uma tomada incompleta de frases ditas pode, ao contrário, alterar apenas os efeitos. A poesia românica do "grande canto cortês" penetrou em zona germânica pelo Limburgo, Renânia, Suíça, regiões lingüisticamente fronteiriças, onde os indivíduos bilíngües não deviam faltar. À mesma época, na Baviera ou na Áustria. os primeiros Minne18 sânger só foram indiretamente tocados por esse modelo. Às vezes, o espaço e o tempo comportam zonas extensas de silêncio em que o pesquisador, alerta, ouve ressoar como eco as vozes ouvidas em outra parte; assim, o teatro de marionetes napolitano e siciliano, comprovado desde o século XVIII, ou, em parte, o repertório dos poetas populares do Nordeste brasileiro dariam provas da continuidade oral da epopéia carolíngia, posterior, senão anterior, a seu período escrito e talvez paralelamente a ele." Os últimos elementos vivos do Romancero espanhol, registrados até por volta de 1960, esclarecem suficientemente o modo de existência dessa rica poesia para autorizar diversas extrapolações relativas ao período anterior (e, em certa medida, posterior) às primeiras colocações por escrito dos séculos xv e XVI. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata do vasto conjunto judeuespanhol, do qual Menéndez Pidal constituiu entre 1896 e 1957 uma coleção, que Armistead, Margaretten e Montero publicaram num catálogo-índex de mais de mil páginas. Na Rússia, a tradição das baladas camponesas chamadas bylines, cujas manifestações começaram a ser observadas desde o século XVIII, quando se recolheram também textos, ainda recentemente subsistia em algumas regiões setentrionais afastadas. Não há nenhuma dúvida sobre a antigüidade e a oralidade da tradição. Em 1963, B. A. Rybakov acentuava a estreita ligação histórica que havia entre diversas by/ines heróicas e a pessoa do príncipe Vladimir de Kiev, no século XII. Pouco importa a arqueologia do gênero: como se
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constituiu, ou quando.P Só importa que uma língua poética organizada veiculou, sem outra mediação que não a voz, sem outro público que não em performance, sem outra existência que não a presente, durante setecentos ou oitocentos anos, as figuras estilizadas de Dia de Murom, de Alecha Popovitch e de tantos outros, enriquecendo pouco a pouco no curso do tempo, sem mudar de natureza, novas lembranças coletivas: de um Ivã, o Terrível, a Pedro, o Grande, e a Lênin, o qual Marfa Kryukova cantava por volta de 1930! A fixação pela e na escritura de uma tradição que foi oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo o modo, faz-se referência à autoridade de uma voz. É uma coexistência ativa dessa espécie o que testemunha, às margens da poesia, a tradição pan-européia de textos como os Diálogos de Salomão e de Marcolfo. Inversamente, o fato de que uma tradição escrita passe ao registo oral não traz sua degradação nem a esteriliza. De modo geral, é certo que a partir daí ela visa a um público mais amplo, o que pode causar sua depreciação na opinião de alguns. Entretanto, renovada, essa tradição permanece muitas vezes produtiva; é o caso, em todo o Ocidente até o século XVIII, da poesia natalina, na qual muito se reproduziam as formas poéticas letradas, religiosas ou profanas, dos séculos XIII, XIV e XV.
No seio da tradição que desempenha assim o jogo da memória, a voz poética se ergue - muito manifesta, de maneira mais diretiva do que aquela que se esboça na escritura - no próprio lugar em que se recorta a maior parte dos códigos culturais em vigor à mesma época: lingüísticos, rituais, morais, políticos. É por isso que - com bastante mais força do que o faria uma poesia de leitura - os textos da poesia de audição se reagrupam na consciência da comunidade, em seu imaginário, em sua palavra, em conjuntos discursivos às vezes muito extensos, e em que cada elemento semantiza (segundo a cronologia das performances) todos os outros. Alfred Adler o demonstrou, com pertinência, no caso das canções de gesta: juntas, estas fazem ouvir um discurso vasto e diversificado que tem sobre si própria a sociedade feudal, colocando questões, sugerindo respostas, oferecendo-se a todos como uma palavra comum, descontínua, em contraponto aos barulhos da rua, aos barulhos da vida. Muito bem. Mas não é de outro modo que funcionam todas as espécies de textos que nos foram conservados, até o começo do século XVI ou do XVII: a massa de uma poesia ainda intocada pelas
tentações intimistas das "literaturas" ulteriores ... mesmo se, em algumas de suas realizações, parece inocentemente brincar com elas. A situação evoluiu, e, aqui como em toda a parte, nada é monolítico - história estreitamente ligada ao devir da escritura num mundo que esta conquista como se a contragosto. Até por volta do século XII, a escritura é o único veículo do saber mais elevado: o poder passa pela voz. A partir dos séculos XII e XIII, a relação se inverte: ao escrito, o poder; à voz, a transmissão viva do saber. Mas na virada dos séculos xv e XVI, ou até XVI e XVII, nenhum desses dois feixes de forças e de valores conseguiu eliminar inteiramente o outro. Não pode deixar de estar aí a poesia comum a todas as redes de comunicação constitutivas de um estado de cultura. Entretanto, ao abrigo da instituição "escriturária" em formação, subsiste profundamente no escritor alguma coisa do delírio da voz, doravante em vias de interiorizar-se em fantasmas criados pela fascinação da palavra pronunciada e ouvida. A propósito das canções de gesta (gênero exemplar), S. Nichols anteriormente mostrou como, no enunciado poético, cria-se uma tensão entre o "momento lírico" e o "momento narrativo"; entre o que é trazido e aquilo que formalmente o dinamiza. As recorrências desse discurso, a estabilidade de seus núcleos formais, reconhecíveis facilmente pela memória coletiva, comportam efeitos de poder específicos. Disso resulta uma eficácia particular, na ordem da persuasão e do despertar do desejo. Não se poderia dizer melhor - com uma precisão apenas: o "momento lírico" que Nichols designa (metaforicamente?) pela palavra canto nem sempre tem existência textual; em contrapartida, pôde sempre, na obra realizada, resultar do estilo da performance e, em última análise, de jogos vocais. Assim corrigida, a tese se universaliza. O texto recebido pelo ouvido gera a consciência comum, do mesmo modo como a linguagem cria a sociedade que a fala - efeito tanto mais forte na medida em que esse texto for menos apropriável, menos marcado por um indivíduo concreto que dele reivindicaria, como dizemos, os "direitos". Por vezes, é verdade, alguém em algum meandro desse discurso declina seu nome; e este não é mais do que um nome, insuficiente para suspender a regra do anonimato. Tal estado de coisas não é verdadeiramente posto em questão, na Itália, antes do século XIII e, em outros lugares, na metade do século XIV; globalmente, subsiste até o curso do século XVI. Exerce-se por aí a função social da obra poética: ligada à ação da voz, que constitui sua razão e seu lugar - em pura invenção criadora. Uma parte da coletânea de ensaios publicada em 1977 por H. Scholler toca nessas questões, relativamente a uma vintena de textos alemães de
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todo o gênero. Iria constituir-se facilmente uma bibliografia sobre esse assunto, embora seus autores, por vezes, não conseguissem discernir bem o alcance de seu discurso. Esse alcance é a eficácia social do dizer poético, enquanto estiver presente no seio da coletividade reunida. Os testemunhos medievais não estão de todo ausentes. Thomas of Cabham, na passagem de seu Penitentiale em que disserta sobre méritos e deméritos dos "jograis", incrimina o poder de que dispõem em decorrência de sua arte: aqui, suas vozes, seus gestos, seus ouropéis intervêm tanto quanto o conteúdo de seus discursos. A maior parte deles é condenável pelo próprio excesso de prazer que assim provocam e pelas ações pecaminosas às quais induzem. À mesma época, o mestre francês Jean de Grouchy, em seu De musica, descreve os efeitos produzidos sobre a multidão pela audição das canções de gesta. O público dessas canções, declara ele, é apenas um magote de miseráveis e de velhos. Um traço de humor? Ou, por volta de 1290, talvez a epopéia oral se dirigisse unicamente às pessoas comuns, tendo perdido sua primeira clientela? Certamente ... embora as obras de Adenet le Roi, nos mesmos anos, deneguem essa hipótese. Pouco importa. Cantus autem iste, escreve Jean de Grouchy, debet antiquis et civibus laborantibus et mediocribus ministrari, donec requiescunt ab opere consueto, ut auditis miseriis et calamitatibus aliorum suas facilius sustineant et quilibet opus suum alacrius aggrediatur. Et ideo iste cantus valet ad conservationem totius civitatis ("Este canto se destina a ser executado em presença de velhos, de obreiros e do vulgo, quando eles repousam de seu trabalho cotidiano, a fim de' que a audição das infelicidades experimentadas pelos outros os ajude a suportar as suas e de que cada um deles retome em seguida, mais alerta, sua tarefa profissional. Por isso, esse gênero de canto é útil à conservação do Estado")." Em certos aspectos, um texto de surpreendente modernidade! nos diz:
Jean
- que a matéria narrativa desse canto, edificante, com fortes conotações religiosas, propõe ao ouvinte os modelos de todo heroísmo na adversidade; - que esses modelos são os mesmos de uma fidelidade, até de um devotamento total, a uma ordem que se identifica com a verdade; - que os destinatários desse canto, no corpo social, são os trabalhadores e os pobres; - que o primeiro efeito produzido sobre eles pela audição os incita a suportar pacientemente sua sorte miserável; - que o segundo efeito é, através disso, torná-I os mais produtivos em seu trabalho; 156
_ que, em conseqüência, o canto de gesta é um fator de estabilidade do Estado. Determinam-se facilmente duas camadas de discurso. Uma se refere aos valores universais da epopéia, de tal modo que hoje podemos têlos como certos: a palavra épica funda e cimenta a comunidade, no próprio momento em que é pronunciada e ouvida, engajando a totalidade dos corpos presentes nessa performance e resultando, pelo menos virtualmente, em ação coletiva. Mas outra camada discursiva, no texto, manifesta uma opinião historicamente condicionada, a qual poderia ser a do intelectual citadino que era Jean de Grouchy; opinião (que diríamos reacionária) fundamentada na rejeição de toda contestação. Ora, essa duplicidade trai uma convicção empírica, que aqui nada coloca em questão: a do poder, enquanto tal, do canto público - isto é, o irresistível poder de sua vocalidade, fora até das considerações sobre seu conteúdo. Donde outra série de afirmações, meio subentendidas: _ o cantus gestualis tem seu lugar marcado no tempo social; ele se ergue durante as horas de folga e de repouso que interrompem o trabalho, isto é, nas condições mais próprias a uma audição clara e uma escuta atenta; preenche então o campo do imaginário e aí polariza as impressões, os sentimentos, os pensamentos; _ o volume e a duração do canto dependem, a cada audição, das circunstâncias às quais o cantor adapta seu discurso; este, em certos limites, implica o mesmo tipo de comportamento de toda comunicação interpessoal; _ o lugar e o meio dessa ação complexa é a voz do cantor, na materialidade de sua amplitude e de seu registro. Não me parece abusivo interpretar globalmente assim a justaposição - em si estranha -, no De musica, dessas reflexões sociológicas sobre a epopéia e da descrição das melodias. Quanto a outras formas poéticas além da canção de gesta, teria um testemunho do século XIII falado delas em outros termos? Sem dúvida, não. Ou então as diferenças aí refletiriam simplesmente a diversidade superficial de um modo de ser, fundamentalmente idêntico, da palavra poética. Tomarei o exemplo mais afastado da epopéia: a canso de fine amour, tal qual a criaram os trovadores occitânicos e que, depois de 1150, migrou para as regiões francesas e alemãs. Que a canso tenha sido destinada à performance oral é evidente: seu nome, com que os poetas a designam depois dos meados do século XII, tanto quanto a conservação de muitas melodias, deixa esse ponto fora de contestação. No entanto, é incerto que a transmissão de textos, antes da constituição dos "cancioneiros" do século XIII, fosse feita unicamente da boca ao ouvi157
do e que sua conservação tenha sido confiada somente à memória. Baseando-se em estudo das variantes, musicólogos como Van der Werf e Rãkel sustentaram recentemente que decerto a tradição das melodias foi oral durante muitas gerações - mesmo se, como parece, os textos (desde a origem) tenham sido por vezes escritos, talvez em forma de folhas soltas. Entretanto, o movimento da canso procede de uma percepção ao mesmo tempo aguda e obscura de uma espécie de desconhecido, promessa ou ameaça escondida, inscrita no destino comum do poeta e de seus ouvintes: um "algo" intervém entre a voz e a linguagem, um obstáculo impede sua identificação e faz com que a associação não vá muito longe. É essa a percepção que o discurso da canção narrativiza, pelo menos de modo virtual e latente; daí esse motivo do "obstáculo" erótico, designado centenas de vezes, sob nomes diversos, como a chave temática dessa poesia. Mas a verdadeira causa motriz da canso, desde sua gênese, é ao mesmo tempo a atração e o medo dessa deiscência, dessa nossa heterogeneidade que nos mostra o som da voz. Donde a busca - inscrita na origem da própria linguagem e do canto que a faz desabrochar - daquilo que, a propósito de Wolfram von Eschenbach, designou-se recta ratio; eu a entendo em termos de reconciliação (para além de toda negatividade) da palavra com o objeto do desejo: essa boa-nova que o intelecto iniciado decifra quando escuta. A canso é voz pura, gesto sonoro que emana das pulsões primordiais; prolonga, semantizando a cada dia, o grito do nascimento. É a linguagem que gera o relato; e sua narratividade exige a constituição de actantes, eu, o objeto, o Outro que fala de nós. Sob as variações desse esquema nuclear, a tradição do canso, por cerca de dois séculos, não cessa de fazer ouvir uma voz que ora se maravilha de si própria, ora se assusta - "no lugar geométrico", como escreve Gérard le Vot, "da música, da língua e da narrativa, unidos na e pela ação fisiológica de um homem que canta".22 O "grande canto cortês" ocupa assim, entre as tradições poéticas dessa época, uma situação não excepcional, mas central, no que é possível definir em relação a ele e a quase todos os outros gêneros comprovados: a voz não cessa de cobrir e de descobrir um sentido que ela ultrapassa, submerge, afoga, projeta, e que parasita seu maior poder.
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DICÇÃO E HARMONIAS
Formas e niveis de formalização.
Os ritmos. Prosa ou verso?
Recorro aqui a uma distinção que propus recentemente, em outro lugar;' entre as formas textuais de uma obra e suas formas sociocorporais - isto é, entre as que manifestam as seqüências lingüísticas constitutivas do texto e as que aparecem na performance. É "poesia" aquilo que o público, leitores ou ouvintes, recebe como tal, percebendo e atribuindo a ela uma intenção não exclusivamente referencial: o poema é sentido como a manifestação particular, em certo tempo e lugar, de um vasto discurso que, globalmente, é uma metáfora dos discursos comuns mantidos no bojo do grupo social. Sinais menos ou mais codificados o alinham ou acompanham, revelando sua natureza figural; por exemplo, o canto em relação ao texto da canção, ou as circunstâncias de sua produção em relação ao grito de guerra. Esses sinais, geralmente cumulativos e de diversas espécies, declaram em conjunto que o enunciado pertence a outra ordem de palavra - palavra intensa, que aspira a representar a totalidade do real; os sinais remetem, de maneira menos ou mais claramente indicativa, a certa anterioridade da linguagem, a um texto do qual as palavras cotidianas permanecem separadas; a distância, no correr do tempo e segundo os costumes e os lugares, varia; mas ela é irredutível; a presença de uma fronteira, mesmo se incessantemente trazida à baila, é sentida espontaneamente, por causa de um acordo social implícito, em termos, aliás, móveis e passíveis de revisão. A "mensagem poética" é, assim, sempre uma linguagem em cascata: o sinal marca um deslocamento, atrai o olhar sobre um deslizar que se desenha entre espelhos, que o prolongam ao infinito, na penumbra. Esse deslizar é aficção; ou, ainda mais, a ficção é um estado de linguagem, esse modo flutuante de existência. Ela re159
ou por outra deve ter diferido bastante. É-nos impossível, na maioria dos casos, julgar de modo seguro. Num gênero como o "romance", é pl'Ovável que a sinalização sociocorporal fosse atenuada; a sinalização n-xuial, por sua vez, em muitos contos era provável e nada mais. De quulquer modo, arnbas importam, em toda obra. Donde, para o medievutista, leitor desses textos, vem uma freqüente impressão de imperso1I11lidade,se não de abstração - o contrário mesmo, pode-se crer, da mpressão sentida pelos ouvintes dos séculos XII e XIII. É o caso da
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presenta a palavra de Adão, nomeando as criaturas; mas não parou nisso, e, aos nomes a que se impõe, falta sempre uma letra, um som, uma prova da identidade assegurada. Assim, não esgota nenhum sentido, oposta que é ao "real", como o desejo o é à lei. Essa mutação se dá em dois níveis, segundo modalidades variáveis, próprias a cada sociedade e a cada momento da história: no nível do discurso e no da enunciação. Donde a necessidade de distinguir dois tipos de sinais; a uma sinalização que se dirá, de modo restritivo, textual, referente à língua, combina-se uma sinalização modal, operando sobre os meios corporais e físicos da comunicação: tudo o que se refere às grafias, quando se trata da escritura; à voz, quando se trata da oralidade. A conjunção das duas séries gera a obra. Pelo menos, a parte respectiva dos sinais textuais e modais em sua constituição difere bastante, segundo seja dominante em poesia o registro escrito ou o vocal. O textual domina o escrito; o modal, as artes da voz. No extremo, a obra oral seria concebível inteiramente modalizada, mas não textualizada. A ação vocal implica uma libertação das imposições lingüísticas; ela deixa emergirem as marcas de um saber selvagem, proveniente da própria faculdade da linguagem, na complexidade concreta e no calor de uma relação interpessoal. Ao texto oralizado - na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja um corpo - repugna mais que ao texto escrito toda percepção que o diferencie de sua função social e do lugar que ela lhe confere na comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou implicitamente; das circunstâncias, enfim, nas quais se faz escutar. O texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um, intrínseco, devido às polivalências geradas pela formalização poética; outro, extrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos entre o momento em que é produzida a mensagem e aquele em que esta é recebida. O poema performatizado oralmente comporta o primeiro efeito, mas, em princípio, não comporta o segundo: enquanto oral, repousa sobre uma ficção com o mínimo de imediaticidade; na verdade, mesmo se a audição ocorre muito tempo depois da composição, ela só pode ser imediata. Donde a autoridade específica de que se reveste o texto performatizado: o escrito nomeia; 6 dito mostra e, por isso, prova. As oposições assim traçadas não têm pertinência absoluta. Elas ganham sua maior força se comparamos uma obra escrita, para leitura ocular, à performance de uma obra de tradição puramente oral. Tratandose de obras que tinham destinação vocal, mas que nos chegaram em forma escrita, somos forçados a supor que as duas ordens de valores aí estão investidas em conjunto. De fato, conforme a inscrição surgisse primeiro e a performance depois, ou o inverso, a impregnação da obra por
muior parte das canções dos trouveres ...
O texto poético medieval, quaisquer que sejam seu modo de producão e sua destinação última, utiliza uma língua idêntica: as mesmas struturas gramaticais, as mesmas regras sintáticas, o mesmo vocabulário de base. As tendências particulares que, em todas as épocas, se fazcm marcar no discurso poético trazem apenas fracas variações: uma, 1crando obras que fazem forte referência ao objeto de uma representação; a outra, a um sistema estético ao qual o texto se alinha. A questão que se coloca ao medievalista é, portanto, mais a de um estilo; entendo por esse termo, muito precisamente, o conjunto de sinais poéticos, no scntido acima definido. Quando a vocalidade de um texto se inscreve em seu desígnio inicial, um traço geral caracteriza seu estilo. De fato, esse traço permanece comum à quase totalidade dos textos anteriores ao século xv e a muitos outros ainda depois de 1400. Ele se manifesta, de maneira diversa e menos ou mais densa, através do arranjo (consecução e combinação) das estruturas do enunciado; poderíamos defini10 com termos como descontinuidade e fragmentariedade. Transmitido vocalmente, o texto (mesmo quando possuísse, como tal, extrema compacidade) se fragmenta. É certo que, há poucos anos, corria por aí que todo texto, em si mesmo, é fragmentário, em razão do inacabamento de uma Escritura que o atravessa sem deter-se; de uma tensão instaurada entre esse movimento infinito e os limites do discurso... Esses caracteres se encontram no texto oralizado, que, como seqüência lingüística organizada, não pode diferir profundamente do escrito. Mas o lingüístico é apenas um de seus planos de realização, e é da combinação de muitos planos que provém uma fragmentariedade específica. A tensão a partir da qual o poema oral é constituído se desenha entre a palavra e a voz e procede de uma quase contradição entre suas finalidades respectivas; entre a finitude das formas do discurso e a infinitude da memória; entre a abstração da linguagem e a espacialidade do corpo. Isso porque o texto oral não se preenche jamais; não satura 161
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nunca todo o seu espaço semântico. É por isso também que o discurso aí se constituiu tradicionalmente, até o século xv, segundo os ritmos em que ressoam os entrechoques de um plurilógio vocal: rupturas de estilo e de tom, heterogeneidades sintáticas, incessante experimentação verbal; ao mesmo tempo, afirma-se a vontade de ensinar e convencer, atravessar o vivido e, em seguida, voltar a ele, circularmente, enriquecido das significações colhidas - poesia profundamente oratória, desdobrada na praça pública como se num teatro. A fragmentariedade reduz idealmente o discurso a uma sucessão de aforismos (como, com bastante freqüência, no "grande canto cortês") ou a uma rapsódia, às vezes declarada (como no Tristan de Béroul), às vezes reto ricamente camuflada. Para além dessas rupturas, dessas disjunções aparentes ou reais, o texto se prepara para entrar em performance, para integrar-se no movimento de um corpo, em sua verdade vivida, ao abrigo de todo seqüestro racional. Essa fragmentariedade essencial do texto medieval implica menos o despedaçamento iconoclástico de uma imagem e a recusa programática de uma totalidade (como se viu numa época próxima de nós) do que uma multiplicidade dinâmica, a simultaneidade de movimentos diversos e não necessariamente convergentes. Além disso, no seio da tradição à qual ela já não pode ser referida, a performance ressalta como uma descontinuidade no contínuo - fragmentação "histórica", cujo efeito aparece com tanto maior evidência quanto a tradição é mais longa e mais explícita e abrange elementos mais bem diversificados; é assim na economia dos ciclos de lendas, de epopéias, de contos, de canções, superunidades virtuais cuja propriedade é jamais atualizarem-se em seu conjunto. Um ciclo, por sua vez, totalidade virtual e provisória, não é senão um fragmento de outra totalidade - a constituir-se onde, quando, como? Tratando-se de romances como Éracle, Éneas ou aqueles do rei Artur, frutos de uma vasta operação coletiva de redes coberta e de recuperação da história, a relação entre a obra e seu pré-texto é a mesma. Dessa perspectiva, penso que se possa estudar com proveito a formação e a difusão nos séculos XIII, XIV, xv, através do Ocidente, e depois o declínio dos grandes ciclos romanescos centrados no Graal e na Távola Redonda, Tristão ou Dietrich von Bem, até as sínteses universalizantes de um David Aubert na Borgonha, de um Kaspar von der Rhõn na Alemanha, as versões ibéricas das Grandes conquêtes de Charlemagne, logo promovidas a referência última e justificadora de dezenas de "livros populares" dos dois lados do Atlântico. Menéndez Pidal já definia assim o que ele denominavajragmentarismo do Romancero, auscultando o aparente inacabamento de cada texto considerado em si; C. Bowra, por sua 162
enxergava aí um caráter universal da "epopéia'Y Mas trata-se radicalmente - de uma "indeterminação textual", como diz B. 1,~lllans,conferindo um estatuto ao descontínuo, organizando o que Ilno é integrável. Zssaingerência do corporal no gramatical indica outra caracterís1\1'11 notável, comum a grande número de obras medievais: sua ausência di' unidade, no sentido que uma tradição clássica nos faria dar a essa jlllluvra. Quantas hipóteses relativas a perdas, interpolações, remanejamentes supostos provieram simplesmente da repugnância experimenta.lu por filólogos letrados diante do que nossos textos têm de múltiplo, 11I1IlIicor,às vezes diverso a ponto do contraditório? Tudo isso surdo ao iutcrior, ao apelo inicial de uma voz, em detrimento de uma coerência externa, definível na proporção das partes - e interna ... na medida em que a sentimos como uma irresistível convergência funcional. Raros são os textos um pouco longos, antes do século XVI, que não se ressentem de uma ou de outra, freqüentem ente das duas. Certa indefinição esmaece IS fronteiras textuais; o exame das tradições manuscritas permitiria ordenar os textos em duas classes, conforme pelo menos certa ordem das partes, percebida como útil, talvez até necessária, permanecesse relativamente estável ou, ao contrário, conforme a autonomia das partes permitisse propor, sem prejuízo, uma ordem nova, acrescentando-as, lransferindo-as, suprimindo-as, sem prejudicar a força de impacto do Icxto. Essas duas classes, muitas vezes, interferem. O que importa, aqui, é que os traços assim em destaque provêm de uma exigência estranha àquilo que nós, Modernos, costumamos perceber ou pedir. É na perFormance que se fixa, pelo tempo de uma audição, o ponto de integração de todos os elementos que constituem a "obra"; que se cria e recria sua única unidade vivida: a unidade desta presença, manifesta pelo som desta voz. Donde aquilo que, à leitura dos textos, parece-nos coisa equivocada, volteio inútil, anúncio sem objetivo. "Onde estou com a cabeça?!", pergunta-se Gottfried von Strassburg, nos vv. 5227-32 de seu Tristan: ele se esquecera de apresentar uma personagem! E tantos outros autores: "Por que demorar mais?", "Para que me estender?" e outros clichês que, por certo, entram na retórica narrativa desde o século XII, mas que só podem ter eficácia e cumprir sua função na ordem da composição quando trazidos pela voz e sublinhados ou comentados pelo gesto. É assim que, no Éracle, Gautier d'Arras salpica seu texto com anúncios, à maneira de um contador de histórias ávido por manter a atenção, fazendo valer a continuidade de sua matéria narrativa. Três intervenções desse gênero, de extensão regularmente decrescente (27, quinI
I,
lilllIs
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ze, depois nove versos), entrecortam a narrativa com intervalos de dimensões comparáveis (entre 2800 e 2200 versos): - nos vv. 87-113, logo depois da dedicatória, Gautier fornece um resumo das partes do romance concernentes a Éracle, mas não diz uma palavra sobre a personagem Atanais, que é importante; ele pretende então precisar - e fixar no espírito dos ouvintes - a natureza de seu tema geral, em relação ao qual tudo o que vier de diferente será amplificação, ornamento, desvio; - nos vv. 2856-2914, após o casamento imperial, Gautier resume os episódios precedentes desde o começo do romance. Segue-se o anúncio do que vai acontecer: o adultério e a separação, depois a ascensão social de Éracle e a conquista da Cruz. Toda a passagem constitui uma estase na narração, a pouca distância (cerca de trezentos versos, ou seja, doze ou treze minutos de fala) do meio; - enfim, nos vv. 5110-8 é anunciada pela terceira vez, imediatamente antes do começo do relato, a conquista da Cruz. A maior parte dos relatos, em todas as línguas, comporta traços dessa natureza. A Chanson de Roland, nos textos de Oxford e de Châteauroux, é recortada em três pela repetição, em duas retomadas, de um verso inicial com valor de refrão: as dimensões desses trechos, bastante diferentes do resto nos dois manuscritos, poderiam corresponder, como se supôs, à duração das três sessões necessárias à performance do poema.' Ainda no Éracle, em que a narração se dispersa sem cessar, dissemina-se em detalhes, em jogos e depois em repentinas circunvoluções sabiamente retidas, Gautier não deixa de valorizar essa fragmentação do relato, por meio de uma fórmula quatro vezes repetida: - v. 114: - v. 2746: - v. 5092: - vv. 5110-1:
Hui mais voei m'oevre commenchier; Huimais commencera li contes; Si vos dirons d'Eracle huimais; Bon me sereait huimais a dire comment lu puis et rois et sire
("Agora vou começar minha obra/ Agora vai começar o conto/ Falaremos de ÉracIe agora/ Será bom agora que eu vos diga/ como ele veio a ser rei e senhor.") A última é simples reiteração da terceira, ou esta é um anúncio daquela. Aparentemente a interpretação não traz dificuldade. O v. 2746 implicaria que aquilo que o precede constitui uma introdução, uma vasta digressio preliminar que ocupa 420/0 da duração total do relato; a partir daí, restam 3842 versos para chegar ao fim do romance; e, ainda, os vv. 5092 e depois 5110 os cortam em dois. Mas tais aproximações, penosas para um leitor solitário e exigente, passam
d(~HpCrcebidasna performance ou mesmo, destacadas pelo jogo do in1I1I nrcrc, suscitam aí algum sentido adicional. utro fator atua em favor dessa fragmentação: a própria força das urutlções temáticas e formais, no nível das quais (mais do que no da 1111111 particular) se constitui a única verdadeira unidade supra-segmental, 111'I'cebidacomo tal e à qual toda palavra volta. Eis por que a forma IIlulmente realizável permanece apenas desiderativa, o que Max Lüthi, I propósito dos contos, denomina Zielform, forma finalizante e ideal, Il'lIlizada aqui e ali, mas não na obra inteira - que, enquanto tal, não pode constituir uma totalidade. Essa noção se aplica, de modo evidenIr; à poesia cantada dos séculos XI, XII e XIII; mas, de maneira mais xirnplexa, também à obra composta por escrito, como um romance, no momento em que uma recitação em voz alta, diante de um auditório, xmfere-lhe, se não a única existência, pelo menos uma outra, definitiva .nquanto socializada, conforme uma intenção original. Somente o som • a presença, o jogo vocal e a mímica realizam aquilo que foi escrito. ualquer que seja a performance, esta propõe assim ao ouvinte um tex[O que, enquanto ela o faz existir, não pode permitir titubeios; um lono trabalho escrito poderia ter sido preparado, enquanto o texto oral não tem rascunho. Para o intérprete, a arte poética consiste em assumir essa instantaneidade, em integrá-Ia na forma de seu discurso. Donde a necessidade de uma eloqüência particular, de uma fluência de dicção c de frase, de um poder de sugestão, de uma predominância geral dos ritmos. O ouvinte segue o fio, e nenhuma volta é possível: a mensagem deve chegar (qualquer que seja o efeito buscado) imediatamente. No quadro traçado por tais imposições, a língua tende a uma transparência, menos de sentido do que de seu estado próprio de linguagem, fora de toda ordem escritural. É a voz e o gesto que propiciam uma verdade; são eles que persuadem. As frases sucessivas que são lançadas pela voz, e que parecem unidas somente por sua conexão, entram progressivamente no fio da escuta, em relações mútuas de coesão. A coerência última conseguida pela obra é um dom do corpo. Na hora em que, na performance, o texto composto por escrito se torna voz, uma mutação global o afeta, e, enquanto se prossiga nessa audição e dure essa presença, modifica-se sua natureza. Além dos objetos e dos sentidos aos quais ele se refere, o discurso vocal remete àquilo que há de inomeável. Essa palavra não é a simples executora da língua, a qual ela jamais completa plenamente, a qual ela viola, em toda a sua corporeidade, para nosso imprevisível prazer. É assim que a voz intervém no texto e sobre ele, como dentro e sobre matéria semiformalizada, da qual se possa modelar um objeto móvel, mas pronto. Apenas em discurso a palavra poética assim formada
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pode ser capturada e, se for o caso, analisada. Ainda nos meados do século xv, os versos de Villon exaltarão esse modelo, pouco antes que o sufoquem, se não Gutenberg, pelo menos os epígonos de Petrarca: vertiginosa litania de oitavas de octossílabos de ritmo rápido, mantido em amplas inspirações sucessivas, desprezando tradições retóricas que a crítica só decompõe em unidades de respiração e em que pequeno número de temas recorrentes se em baralham com seus motivos amplificatórios, ligados uns aos outros por associação de idéia ou de palavra, de som, de rima, explorando, até os extremos da saturação e do volteio grotesco, temas transformados em clichês havia séculos. Monólogo nos limites da demência, do qual pouco importa conhecer o improvável autor, tão presentes que estão o timbre e a sensualidade dessa voz. Pouco importa que o modo de enunciação, as regras performanciais sejam provavelmente codificadas, em certos setores (pode-se supor), com algum rigor. Certamente, essas codificações, não menos que as da linguagem, interpõem-se como uma tela entre aquilo que me diz o intérprete e o fundo afetivo e imaginário mais irracional de seu ego. Mas essa tela, a despeito de todas as ideologias, permanece de extrema fragilidade, qualquer coisa a perfura: o tom de uma voz basta, emanação daquele fundo. A voz me traz à luz, "representando-o" (no sentido cênico da palavra), o discurso que garante essa poesia. Donde um desdobramento: tal discurso se faz simultaneamente narrativa e, pelo próprio som da voz que o enuncia, comentário desse relato; narração e glosa, conjuntos interiores à obra, embora sejam autônomos e cada um faça seu jogo. Da relação que o ouvinte percebe entre elas provém uma veracidade particular, requerimento de confiança e de participação. Na boca do intérprete, o que a linguagem corrente denomina dicção constitui uma retórica da voz, maneira de o falante "colocar" a poesia ao mesmo tempo em que ele se coloca no bojo da comunidade daqueles que o escutam.
Enquanto vocal, a performance põe em destaque tudo o que, da linguagem, não serve diretamente à informação - esses 80070,segundo alguns, dos elementos da mensagem, destinados a definir e a redefinir a situação de comunicação. Decorre daí uma tendência de a voz transpor os limites da linguagem, para se espalhar no inarticulado; geralmente reprimida pelo costume, essa tendência triunfa nas formas mais livres do canto. A técnica que consiste em integrar no texto poético puros vocalises se manteve durante séculos, até o começo do século XVI, e se prolongou na canção dita popular. As coletâneas manuscritas que nos conservaram a poesia cantada dos séculos XII, XIII e XIV formigam de exem166
pIos: a frase, as palavras se esmaecem em sugestões sonoras, desfazemse em puras figuras de som cumulativas. Mas a tendência é muito mais geral, e há poucos gêneros poéticos em que não se destacam as marcas de uma agradável desarticulação da língua: ao longo do desenvolvimento textual, surgiu uma seqüência absurda de sintagmas justapostos sem relação gramatical nem semântica; ou então, uma acumulação litânica de palavras isoladas, sem contexto, uma multidão de nomes próprios apostrofados, fora da frase ou encadeados em concatenações vertiginosas de fonemas; palavras gregas ou hebraicas, como tal incompreensíveis e reduzidas apenas a sua sonoridade (assim o kyrie eleison recorrente nesta ou naquela canção satírica alemã);" monossílabos ambíguos, interpretáveis tanto como palavras significantes quanto como interjeições, onomatopéias, gritos. No limite, uma série sonora sem nenhuma relação com o código lingüístico vem expressivamente parasitar o enunciado. Esse último procedimento foi valorizado pelos numerosos poetas que, no século XIII, especialmente na França e na Alemanha, utilizaramno em refrãos de suas canções, latinas (como as dos goliardos) ou de língua vulgar: Mandaliet, Mandaliet Min geselle chomet niet
("Mandaliet,
Mandoliet, meu amigo não vem"); Ne me mori facias hyria hyrie nazaza trillirivos
("Não me faça morrer, hyria hyrie, nazaza trillirivos").5 Canções e rondós desse tipo se contam às dezenas ou até centenas; e me inclino a interpretar com esse sentido os efeitos de "bilingüismo", jogos de desligamento ou até de derrapagem de um a outro de dois registros lingüísticos, tão freqüentes desde a época carolíngia até a dos grands rhétoriqueurs. O efeito assim produzido era tão mais forte que fazia soar melhor a voz: no intervalo das línguas não sem figura de ironia confrontadas, imiscui-se o desejo de se afastar dos laços da língua natural, evadir-se diante de uma plenitude que não seria mais do que pura presença. Talvez os élans desse desejo, próprio ao texto de vocação oral, sejam amplificados pela situação que, até o século XIV, ele ocupa na memória coletiva: nem isolado nem separado da ação, mas funcionalizado como jogo, do mesmo modo que os jogos do corpo dos quais ele realmente participa. Não é justamente a esse título que, como todo jogo, 167
ele procura um prazer proveniente da repetição e das semelhanças? Como todo jogo, esse texto vocalizado se torna arte no seio de um locus emocional manifestado na performance, do qual procede e para o qual tende a totalidade das energias que constituem a obra viva. É, em parte, um locus qualitativo, zona operatória da "função fantasmática", segundo a expressão de Gilbert Durand. Mas é também um lugar concreto, topograficamente definível, em que a palavra, desdobrando-se, capta um tempo tão fugaz que ela confia a esse próprio espaço a tarefa de ordenar o discurso. Não tenho dúvida de que essa seja a causa principal de um caráter impressionante, e muitas vezes assinalado, de nossos textos: sua freqüente inaptidão para verbalizar as descrições de seres ou objetos a não ser pela acumulação qualificativa, sem senso de perspectiva. Não é caso de representação ou de recusa de representar, mas de presença. E toda presença provoca, com a ausência que a procedeu, uma ruptura que gera um ritmo. Não é fortuito que tantas intervenções de autor, abonações introdutórias, dedicatórias, louvando de algum modo o texto oferecido à audição, empreguem termos que remetem (não sem ambigüidade, algumas vezes) a um modo de dicção, à medida que sustêm e contêm a voz: compassada, mensurada, revestida e outros termos que qualificam aquilo que é proposto ao ouvido. Por suas modulações tanto quanto por sua recorrência, a voz poética gera um ritmo particular na duração coletiva e na história dos indivíduos. Ela fornece ao tempo, pelos efeitos de retorno e de suspensão que produz aí, uma medida comparável ao "tempo da Igreja" (segundo a fórmula de Jacques le Goff), donde suas conotações sacrais: diretamente articulada, numa perspectiva universal, na musica dos ciclos cósmicos. A tradição boeciana, revigorada no começo do século XII, concebe a "música" como categoria transcendente, que manifesta a harmonia dos ritmos criados e as proporções dos números, assim tornadas perceptíveis. Ora, a "harmonia" é concreta: ela provém do movimento das coisas visíveis, do própio corpo do homem (cujas pulsações marcam o compasso fundamental de tudo)," e da "consonância" dos sons, motus e modulationes. Aí reside a beleza do mundo, cuja propriedade é comover por meio de percepções sensoriais, como ensina Hugues de Saint-Victor, evocando com o prazer do olho os do ouvido, do olfato, do paladar, da ternura do toque, mas sobretudo a jocunditas, a "alegria" das sonoridades melodiosas. A audição parece privilegiada no pensamento desses doutos. Rodolphe de Saint-Trond, por volta de 1100, definiu globalmente harmonia como um acordo das vozes; para Guido d'Arezzo, um cantor "diz" o que a musica "compõe", isto é, manifesta o ritmo do universo." Toda voz assim "modulada" entra na ordem não (para retomar uma 168
listinção que remonta a Boécio) do cantus propriamente dito, mas na da musica. O que, em sua função poética, lhe importa é a harmonia, 11macordo entre a intenção formalizante que ela manifesta e outra intcnção, menos nítida, difusa na existência social do grupo ouvinte; essa harmonia se revela no movimento medido impresso à matéria sonora c, por isso, às emoções suscitadas naqueles que a percebem. A tradição proveniente de Boécio determinou toda a reflexão sobre a poesia. Nesse sentido, E. de Bruyne pôde falar de uma "estética musical". Princípio metafisico em ação, juntando e estruturando os elementos do real e da linguagem, a musica se inscreve na relação mútua das esferas celestes, das coortes angélicas e das criaturas sublunares. Cabe à voz poética explicitar por sua prática essa relação profunda. A propósito disso, podese emblematicamente referir a versão latina da Séquence d'Eulalie, venerável ancestral, cujas primeiras clausulae constituem um elogio das cadências bem dominadas do canto e uma exortação a reproduzi-Ias; um vocabulário, em que as aliterações sublinham a redundância voluntária, ocupa densamente essas oito linhas, evocando o objeto sonoro do canto (canticum, carmen, melodiam, meios), a ação do cantor (concinere, clangere, canere), sua voz (vox, voces), o instrumento que o acompanha (cithara,fides), a impressão produzida sobre o ouvido (suavissona) ... O monge do século IX se exprime aqui, num registro alusivo, em termos próximos daqueles, mais descritivos, que empregará no século XI o autor occitânico da Chanson de Sainte Foy. Antes de toda educação e de todo artifício, a voz só é mensurada entre os sons da natureza: pelo corpo do qual emana, pela linguagem que ela pronuncia, pelo canto em que ela se expande. Constitui, assim, o locus central das relações harmônicas, harmoniosas. No fim do século XIV, Eustache Deschamps, em seu Art de dictier, ainda distinguiria da "música artificial" dos instrumentos a "música natural" da fala poética. No uso corrente dos poetas e de seus intérpretes, é a esse complexo conjunto de sentimentos e de idéias que remete a palava rima, freqüente em suas bocas ou cálamos, desde que se trate de louvar sua obra: a "rima verdadeira" encontra-se aí (r)estabelecida, é "rimada com grande mestria" e outros clichês. Ora, rima conservava de sua origem (o grego latinizado rhythmus) a idéia dominante de cadência." Entre os séculos X e XV, as fontes latinas testemunham o mesmo interesse contínuo por questões. dessa ordem: teóricos da música, mas também retóricos, interrogam-se sobre a pronunciatio; gramáticos para os quais a passagem da métrica antiga a um sistema acentual causava problemas. Uma tradição que remonta ao século v definia rhythmus como numerosa scansio ad judicium aurium examinata ("escansão cantada segundo o jul169
gamento do ouvido")," e numerus tornou-se o equivalente latino mais geral, com rhythmus tendendo a designar mais especialmente o que denominamos um verso, harmonia perceptível resultante de certo arranjo da linguagem. Numerus, por sua vez, significa menos "número" do que "ordem, seqüência ordenada". No século XIII, o Trésor de Brunetto Latini, livro I1I, capítulo X, explica-o claramente em francês. Certos letrados parecem ter estado conscientes de tocar assim a essência da poesia; e as confissões que (às vezes por preterição) eles nos oferecem a propósito disso refletem, sem dúvida, a intuição dos práticos. Eberhardus Alemannus, no século XIl!, enumera nos vv. 687-734 de seu Laborintus os diversos arranjos de rimas (dissilábicas: ele não parece desejar outras) que ele recomenda em latim. Ordena seus exemplos em cinco séries de dimensões iguais, às quais introduz cinco vezes um verso-refrão referente à arte musical: Carmina quae tali sunt modulanda modo ("Poemas que convém modular assim"); a mesma insistência nos vv. 735-44, propondo combinações lexicais (denominadas casamentos) de que a maior parte comporta figuras de repetição: sic modulare, "module assim ..."; e de novo, vv. 775-816, encabeçando outra seqüência de exemplos que reúnem rimas dissilábicas, aliterações, paralelismos gramaticais, reduplicações lexicais: earmina sunt variis sie modulanda ("os poemas devem ser modulados destas diversas maneiras"). Concluindo, nos vv. 991-1005, Eberhardus disserta sobre a natureza do Número, cuja presença em poesia se manifesta de modo tríplice: pelo recorte das unidades semânticas (membrum), pela natureza da sílaba e pela "semelhança final", o homoioteleuton dos gregos, nossa rima, implicando assim, no término dessa gradação, alguma idéia de realização plena. A rima, acrescenta aqui o texto, é meliea vox, eujus mei pluit auri ("voz melodiosa, cuja doçura satisfaz ao ouvido' ,).10 Dante, no livro II, IX do De vulgari eloquentia, louvando o efeito da rima, afasta-a secamente de sua reflexão: concentra-se na arte da eantio, obra comum do intelecto e do desejo, enquanto a rima constitui a arte, diferente, dos sons. Um tratado do século X falava de eanendi aequitas ("o equilíbrio do canto")": conotação permanente desse vocabulário, referindo-se, em última análise, à ação vocal. Por certo, a imprecisão dos documentos, mal retirados de uma terminologia anacrônica, a flutuação das proposições que eles nos transmitem deixam lugar a muitas dúvidas. Mas esses caracteres ligam-se à noção qualitativa do tempo que prevalece até o século XIII: tempo múltiplo, vivido, interiorizado, o qual só por volta de 1300 será substituído por um tempo quantitativo, regulado pelos relógios, o ."tem.Qo dO..S.Jnemdores'::'de Jacques le Goff. ilia, por volta de 1300 já se esboça claramente, no horizonte das sociedades ociden170
o declínio do poder vocal e a ascensão de uma escrita hegemônica. Entretanto, em poesia, multiplicam-se as formas fortemente cadenciadas, os gêneros com refrãos ... enquanto se acentua e aperfeiçoa o aspecto oratório da prosa de arte, assim proposto ao jogo da voz. I~
Os efeitos rítmicos abarcam todas as estruturas do discurso: tanto a versificação quanto a distribuição das unidades narrativas; tanto a declamação musical quanto seu acompanhamento gestual. Retomando livremente a terminologia de M. Jousse, distingo três planos de realização: o da constituição dos conjuntos (globalização), o da figuração (intensidade) e aquele em que se definem a altura e o timbre (voealidade). De modo geral, cada um desses planos concerne ao corpo: a globalização, na medida, desigual, em que ela integra figuração e vocalidade; a intensidade necessariamente, pelo jogo de acentos, verbal e gestual; quanto à vocalidade, ela resulta das sonoridades únicas que a garganta produz. A globalização revela uma curiosa distribuição de durações formais no conjunto da poesia medieval. Eu observava isso desde 1972, a propósito dos gêneros narrativos," mas a observação é mais globalmente válida, de modo cada vez mais claro, à medida que nos aproximamos de 1500. Chamo, assim, a atenção para o contraste que existe entre as formas breves (às vezes muito breves) e as formas longas (às vezes muito longas), contraste que nada atenua, pois as grandezas medianas não se encontram quase nunca. Daí resulta um curioso efeito geral de ritmo, sem dúvida sentido pelos contemporâneos, de performance em performance, como próprio à palavra poética enquanto tal. Pode-se supor que as formas breves traçavam coletivamente o contra ponto das formas longas. Será que elas engajavam na performance os efeitos corporais mais visíveis? Parece-me pouco contestável que as mais fechadas dessas formas realçem, em certa medida, o "formulismo" de tal arte. Voltarei a este aspecto. Mas é nos planos da intensidade e da voealidade que os ritmos aparecem com a maior evidência sensorial. O termo intensidade refere-se aqui à formalização - "figuração" - textual. Engloba nossas idéias comuns de prosa e verso, mas o conceito que ele implica lhe neutraliza a aparente oposição. Nosso verso e nossa prosa não são, na melhor das hipóteses, mais do que os termos extremos numa escala ideal, enquanto todo discurso poético se situa no espaço mediano, num grau qualquer, segundo sua conformidade a algum modelo rítmico explícito preexistente. Duas técnicas de expressão,
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freqüentes em todo o Ocidente durante muitos séculos, manifestam historicamente essa equivocidade: o cursus e a "seqüência". O cursus não é outra coisa senão um uso quase musical da linguagem não metrificcada - aquilo que chamamos prosa. Nisso preside a idéia - segundo Alberico da Monte Cassino no século XI, Ugo da Bologna no século XII, Ludolf von Hildesheim no século XIII, e outros ainda - de que o movimento da voz, na expressão justa e bela, é moldado sobre o do pensamento e o molda por sua vez: dictator corde et ore dicenda volvit et revolvit ("o produtor do texto torna e retoma do coração e da boca sua mensagem"), segundo a forma aforística de Conrad de Mure, por volta de 1275.13 Uma doutrina se elaborou sobre essa base; regras se constituíram, relativas à harmonia do período, e, sobretudo, às clausulae que asseguram a este um fecho agradável; elas se referem ao arranjo dos termos da frase, ao número de sílabas e à distribuição dos acentos - isto é, no essencial, aos mesmos elementos lingüísticos que a versificação românica, depois a germânica, formalizava muito mais rigidamente. As origens do cursui,!emontam ao primeiro século de nossa era; entre escritores pagãos e cristãos, sua voga foi grande entre os séculos III e VI. Inicialmente fundado sobre a oposição de sílabas longas e breves, transformou-se pouco a pouco, enquanto triunfava na pronúncia latina o acento de intensidade, numa arte de cadências. No século XI, o secretariado pontifício lhe redes cobriu o segredo, e desde então (sem dúvida favorecido pela extensão do poder papal) o cursus permaneceu por trezentos anos a lei da "prosa" de arte, especialmente a epistolar. A maior parte dos autores de artes dictaminis ou de tratados de retórica dissertam sobre ele depois que, no início do século XII, recebeu definição canônica e se padronizou em três esquemas rítmicos, denominados planus ("normal"},jardus ("l~;rtd,) e velox ("rápido"). No s~culo XIII, a corte imperial rivaliza com a de Roma: é sob o ornamento de todas as sutilezas do cursus que se trocam os insultos entre Frederico II e seu adversário pontifício, especialmente no tempo do secretariado de Pier della Vigna. As chancelarias urbanas adotam esse estilo, que se expande nas composições litúrgicas, homiléticas - até, esporadicamente, em Tomás de Aquino e em Boaventura ... Por volta de 1300, o ímpeto recai. _Mostraram-se marcas do cursus ainda na prosa latina de Dante, de Bo-.C;; caccio. No uso da própria cúria, o cursus desaparece progressivamente no séêüío XIV, expulso da práticados primeiros humanistas pela renascente..eluqüêucia ciceromaUéL. ' Entre os idiomas vulgares, o único do qual se perguntou se ele adotara as regras do cursus é a mais antiga língua escrita do Ocidente: o ~~~~~~~~~~~~~r-172
Illldo-saxão. A despeito das revisões de S. Kuhn, parece que o tradutor IIISlor-;;;de Beda (talvez o rei Alfredo), por volta de 900, esforçou-se 11111 seguir a norma, assim como Aelfric, um século mais tarde, em suas siilu« de santos. Autores de língua românica só o utilizaram tardia e INOllluamente;é o caso de Boccaccio, aqui e ali no Decameron. Em franI (lN, é preciso esperar pela metade do século xv para encontrar uma técnlcu rítmica altamente elaborada em prosa. O rhétoriqueur borgonhês 11'1111 Molinet a levou, sem dúvida, a seu ponto extremo: reinventando, 10111 perfeita mestria, os procedimentos cadenciais do cursus, então caido 1'111 desuso, impôs à língua uma dupla medida vocal, baseada no núme10 de sílabas e no jogo de acentos. Ele combinou essa técnica ao uso rln figura do homoioteleuton, identidade fônica dos fins de grupos sin-
dll
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11\licos. O conjunto dessa evolução desmente a idéia disseminada entre os Illcdievalistas, especialmente germanistas, há trinta ou quarenta anos: o surgimento de uma prosa "literária" de língua vulgar, no começo do culo XIII, marcaria a passagem da audição à leitura, esta última entendida no sentido que definiu nossa prática moderna." Tese dificilmente sustentável: por volta de 1200" a prosa não substitui o verso no LISO;ela faz as vezes dele - e sem dúvida co c le - du anl vários séculos ainda. Quando um gramático latinizante como Alexandre de Villedieu, em 1199, escreve em versos clássicos seu Doctrinale, OU Jean-Josse de Marville, em 1322, seu De modis significandi, esse exercício só faz sentido na glosa oral que é sua função provocar. Uma opinião simplista, ainda corrente há pouco, pretendia que o "verso", favorecendo a memorização, fosse indispensável a gêneros poéticos anteriores à vulgarização das técnicas de escritura. Isso é reduzir de modo derrisório a envergadura do problema. Embora a proposição não seja radicalmente falsa, é preciso mudar o ângulo de visão: nas profundezas antroológicas, existe um laço vivo entre as formas rítmicas e as mnembrucas. O caráter fundamental do ""Versu'-'-e-a-\flflõrlzaçao que ele 1Illplíca de certas medidas da linguagem em detrimento de todas as outras não estão _ em sua ordem própria, a do dizer - desprovidos de analogia com as "artes da memória". Isso não impede que o progressivo refinamento d~ estilo "prosaico" - quer ele sirva à história, quer à ficção _ pareça determinado pela busca de uma amplitude e de uma sonoridade que permitam o maior desdobramento dos efeitos de voz. Desse ponto de vista, nada de fundamental distingue, na longa duração, "prosa" e "verso". As palavras latinas,.versus e prosa, das quais foram nos séculos XII e XIII tomados de empréstimo os termos franceses correspondentes, pertenciam ao vocabu1;hiO mnsical~ designavam 173
(sem grande precisão, aliás) diversos fenômenos de ritmo. Foi necessário longo tempo para o francês estabilizar vers na acepção que conhecemos: até o século xv, ele se alterna com rime. A própria época em que (segundo toda a probabilidade) se constituía, nos costumes de obscuros cantores anônimos, durante os séculos IX e X, um sistema românico de versificação, as exigências do canto litúrgico conduziam à criação, no meio monástico, do gênero denominado prosa ad sequentias, nossa "seqüência". Esse gênero poético, um dos mais fecundos entre os séculos IX e XI':, foi formalizado, em seu estado inicial, por Notker Labeo, o poeta-músico de Sankt Gallen, mas pode haver sido inventado, por volta de 850, pelos monges de Jumiéges, ou até mesmo ter indiretamente que ver com práticas irlandesas ou moçárabes. Tecnicamente, a seqüência constitui um tropo da aleluia da missa: seu texto serve para trazer as notas dos longos melismas (o jubilus: "grito de alegria") prolongando o -a final daquela exclamação. A forma primitiva era, assim, unicamente determinada pela música: seqüência de oito, dez, até vinte frases melódicas, as clausulae, idênticas duas a duas (talvez em vista de um canto antifonal) e geralmente enquadradas- por uma introdução e uma conclusão. O texto, que seguia a melodia à razão de uma sílaba por nota, não era submetido a nenhuma outra limitação, exceto a de que os fins das clausulae rimavam muitas vezes em -a. Tão logo foi criado, o gênero proliferou de todas as maneiras (mantido e dinamizado pelas pesquisas musicais da baixa época carolíngia) depois do começo do século XII, quando floresceu na abadia parisiense de SaintVictor. Logo se introduziu aí o uso do cursus e, mais tarde, de versos regulares e mesmo agrupamentos estróficos. Desde o fim do século IX, tinham aparecido duas variedades novas, testemunhando essa extrema vitalidade: uma cujas clausulae não se regulam por pares; a outra, denominada da capo, que comporta uma duplicação do conjunto. Essas duas variedades apresentam um interesse particular, por causa de sua semelhança com as formas poéticas da língua vulgar. É uma seqüência da capo que o mais antigo poema francês conservou, a Séquence d'EuIlalie, copiada por volta de~uma página em branco de um manuscrito das obras de Gregório de Nazianzo, na abadia de Santi-AmandLes-Eaux. Acompanhada de uma seqüência latina do mesmo tipo, sobre a mesma santa, ela provavelmente foi composta no círculo de mestre Hucbald, um dos principais músicos de então, às vezes considerado o iniciador do canto polifônico. Os dois textos, respectivamente copiados na frente e no verso da mesma folha, têm caráter bastante diferente: ao lirismo absconso do latim se opõe o tom narrativo e patético do francês. Este, com certeza, destina-se a cumprir outra função, na boca
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de outros cantores ou em consideração a outro público. Sob a estrutura scqüencial, parece audível o eco - ou os pródromos - de outro modelo rítmico, como aquele que nos aparecerá um seculo e meio mais tarde, nos primeiros decassílabos das línguas românicas. Entrementes, como se respondesse a uma expectativa geral e preenchesse uma necessidade formal amplamente difundida, a seqüência se disseminou por todo o Ocidente. Logo se evadiu da esfera litúrgica, libertando-se de toda temática religiosa. A coletânea de poemas latinos denominada Carmina Cantabrigensia, cujo conteúdo deve remontar aos arredores do ano 1000, talvez até ao século x, contém treze seqüências, sendo apenas cinco de temática religiosa; os Carmina Bucana contêm uma vintena, a maior parte eróticas, com apenas duas tocando em mo.tivos moralizantes. Um subgênero aparece em formação nessas coletâ----neas: duas passagens da primeira e uma da segunda registram, em forma seqüencial, ,um.planctus, lamentação sobre a morte de uma personagem real ou fictícia. Temos muitos outros exemplos, dos quais uma série de dez são devidos a Abelardo: inspirados por cenas bíblicas, esses admiráveis poemas, um dos pontos mais altos da poesia latina do século XII, talvez dissimulem diversas alusões autobiográficas. Pode-se pensar que esses textos (cujo manuscrito conservou as melodias) se destinavam a fornecer aos monges do mosteiro Paracleto canções tão edificantes quanto recreativas. 15 Temos muito poucas seqüências em língua vulgar; algumas, no século XII, na França e na Alemanha, constituem contrafações de modelos latinos; no século XIV, um monge de Salzburgo adaptou certo número delas - iniciativa provavelmente isolada. Em contrapartida, muitos gêneros bem representados em língua vulgar foram reaproximados da seqüência, com a qual apresentam - no plano rítmico - uma analogia, sem que seja possível provar que dela provêm: o lai francês, que poderia dever algo a uma tradição céltica; o Leich alemão, do qual não se sabe em que medida pode talvez estar relacionado, em parte, a antigas tradições germânicas; o descort francês occitânico, em relação à canso trovadoresca; o estampie, canto de dança, ele também francês e occitâníco." Todas essas formas têm em comum vários traços: uma série, muitas vezes longa, de estrofes desiguais constitui-se geralmente de unidades rítmicas breves ou muito breves, cujas rimas se redobram em ecos precipitados, enquanto alternam, na combinação desses elementos, o simétrico e o as simétrico, a repetição e a uni cidade, a heterometria e a ~metria - arte que era de extrema sutileza e que, não sem razão, passava por difícil. Suas realizações comportam, por isso mesmo, uma
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diversidade muito grande. Mas, cronologicamente, a época triunfal de todos esses gêneros foi a mesma: o século XIII e o começo do século XIV.
Assim, o esquema rítmico seqüencial abrange - histórica e, em parte, estruturalmente - n.Qssaprosa e nosso lwr.sD_Ofereceu a muitas gerações de poetas e de intérpretes um dos mais elaborados modelos de ~ão vocal. Outros modelos, vindos de outros lugares, concorreram com ele ou interferiram em seu uso; é o caso daquele engendrado pela hinologia ambrosiana e adotado pelos autores dos cantos franco-occitânicos do século X, a Passion dita de Clermont e o Saint Léger. Afora essas experiências arcaicas, provém talvez da mesma fonte tudo aquilo de que o Ocidente dispôs, nos séculos XII, XIII, XIV, como fórmulas rítmicas, fossem octossilábicas, fossem (segundo as línguas em questão) definidas por um quádruplo ictus. Um tesouro de formas, constantemente enriquecido por derivação, combinação, iniciativas individuais ou coletivas de toda a natureza, oferecia-se a uma escolha que era determinada pelas exigências do ouvido e pelos hábitos articulatórios, mais do que pelas considerações teóricas. Os primeiros tratados que, no curso do século xv, abordam essa matéria, as "artes de segunda retórica" francesas, borgonhesas e flamengas, fazem-no unicamente em termos de fonia, não de escritura. Menos do que regras, o que guia o poeta e organiza seu discurso é a rede, ao mesmo tempo tênue e complexa, de combinações rítmicas experimentadas, livremente utilizáveis em vários níveis de expressão: a palavra, o grupo e a frase, o conjunto (quadra, estrofe, tirade) e ma' r ramente, a unidade su e . gêneros denominados fixos, como o soneto, inven ão do século XIII por certo italiana balada ou o rondó francês do século XIV. Cada um desses elementos se realiza com os outros numa harmonia global que só é perceptível pelo ouvido, na performance. É nesses termos que se concebeu, por volta de 1500, o que os Modernos designarn..P.ela..p.alayra abstrata ver§}fJfaÇ.ão. Só o sistema latino antigo, que era baseado nas oposições de duração e que alguns letrados conservadores mantiveram em uso, tem o aspecto arbitrário de uma técnica imposta .•Na realidade, outro sistema, fundamentado no acento, sohrepôs-se a ele desde o fim da Antigüidad e, a longo prazo, foi substituindo-o segundo as necessidades do canto. No século XII, quando a poesia latina experimentava um renascimento mag;rtrlco, ..Osdois sistemas passaram a coexistir (u.•. m Alain de Lille, por exemplo, distinguia-se assim dos autores dos Carmina Burana) e por vezes se sobrepõem, mas o ritmo conserva a predominância. 17 No início, um sistema de equivalências permitira manter um apa-
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rente acordo entre os dois sistemas: uma sílaba acentuada tomava o lugar de uma 10nga;..a.átQna...Q.euma''breve.;Esse deslocamento se operou pouco a pouco, em desordem, menos ou mais lentamente, segundo a reião. Pelo menos, pôde-se fazer remontar a tipos acentuais latinos a maior parte dos versos franceses, italianos, espanhóis e portugueses atestados até a época moderna; 18 mesmo se a demonstração é um pouco forçada, resta o notável fato da permanência das tradições rítmicas. No entanto, a evolução da língua vulgar alterava progressivamente os modelos iniciais: com o acento da frase apagando em francês, em grande medida, o da palavra, o número de sílabas tendia a tornar-se o principal critério rítmico, ao qual se subordinavam as outras modulações. Por sua vez, nos textos anglo-normandos, os bastante numerosos' 'falsos versos" que por muito tempo desesperaram os medievalistas não fazem outra coisa senão manifestar as particularidades do francês da Inglaterra, mais fortemente tônico do que os dialetos conÚnentals. O anglõ=S'axão desempenhava aqui um papel provavelmente determinante, impondo à língua importada alguns aspectos de seu próprio sistema tradicional. A manipulação desses dados comportava, quando de sua colocação em obra (em alemão tanto quanto em francês; em galês tanto quanto em occitânico), a produção de efeitos puramente fônicos, com ecos sonoros diversos indicando a escansão - e especialmente a rima. ~!L. última, da também k-gada ao Ocidente medieY.aLp-ela_b-ªÍXa-.Antigüida-;, de, originalmente relacionava-se, sem dúvida, à am lia ão do a el da voz (nuIlLperíodo e resuo escritural) na comunicaç.fuu1oética. Antes de 1200, ela passara das regiões românicas aos territórios germânicos e anglo-saxônicos, onde substituía a figura sistematizada de aliteração I2rópria à prática autóctone; desde os séculos X e XI, os poetas juds..us da Espanha e da Provença a tinham)sobre o modelo árabe ou românico) adotado em hebraico, assim como, aqui e ali, eles adotaram o prin_çípio do isossilabism~ Ela evoluiu - até o século xv na França, mais tarde ainda em outros lugares - rumo a uma formalização sempre mais rigorosa, a uma codificação mais exigente; sua história desmente os sinais que, durante os mesmos séculos, parecem anunciar para breve uma reabsorção da poesia no exercício da escritura. Foi assim que na época antiga, em textos cuja transmissão não passou inicialmente pela leitura, a assonância predominou sobre a rima propriamente dita: no ruído ,da'declamação pública, o eco sonoro i5astaVapara encadear os elemen:-~._ JOs do discurso e Rara ritmar sua progressão. O sistema sobreviveu por muito tempo, misturando por vezes a~ânciª rima (d~eum modo desconcertante para os editores modernos), sobretudo nos gêneros mais provavelmente destinados à leitura ao ar livre. Assim, o autor do pri-
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meiro ramo do Renart conjuga empire e discipline (vv. 447-8), Renart e barat (vv. 1385-6). Ch. Lee, em sua edição da Auberée, assinala em sete manuscritos dessefabliau entre 1070e 5070de "rimas incorretas". Certo "sermão alegre" publicado por Koopmans faz rimar femrne e ancienne, propos e corps, genre e ensemble, e assim por diante. Até o século XIV, poucos gêneros escapam a essa tendência, da qual é abusivo responsabilizar apenas os copistas. Às vezes, essas aproximações associam-se a pesquisas fônicas refinadas. Éracle contém muitos versos hipométricos ou hipermétricos; em contrapartida, traz 27070de rimas dissilábicas, trissilábicas ou, excepcionalmente, quadrissilábicas, a que se reúnem, como um efeito minimalista da arte, 21070de rimas unissilábicas ricas. Aparentemente, muita sutileza preside em certos textos à escolha dos timbres, que são objetos desses jogos e, como tal, contribuem para a formação da obra. É assim que a distribuição de timbres vocálicos nas rimas da chanson de trovadores e de trouvéres não parece aleatória; oposições como grave/agudo, fechado/aberto combinam-se com uma intenção conotatíva geral e constituem verdadeiro "nivel de sentido", in20 tegrado na mensagem. Algumas tentativas foram feitas para examinar, desse ponto de vista, certos setores da poesia; desde os anos 50, Menéndez Pidal assinalava, nos três "gêneros" diferençados por ele no Romancero, uma divisão significativa das assonâncías agudas e graves, com a proporção destas últimas crescendo segundo a importância e a atualidade do tema guerreiro; mais recentemente, R. H. Webber descobria no Cid regras de equivalência entre três timbres de assonância (a, o, o resto) e, de um lado, o tema da passagem e, do outro, a extensão da laisse. 21 Certos pares rimicos (o occitânico amorljlor; o francês coura: ge/dommage; o alemão not/tot; e tantos outros) constituem, por sua freqüência, verdadeiras fórmulas, semânticas tanto quanto fônicas. Gêneros como o descort occitânico, o [ai lirico francês, o Leich alemão comportam, por vezes, estrofes formadas de uma longa série de versos de duas ou três sílabas; a rima tende então a invadir o verso do qual ela forma necessariamente a metade ou um terço; donde uma diluição do sentido discursivo, em proveito da sugestão sonora. Mas essas são todas as partes da língua que a rima (por 'intermédio da voz que a pronuncia) pode assim trazer à baila. Ela se torna, por excelência, o locus da linguagem, o plano em que, virtualmente, a expressão toma forma. Assim, é algo mais do que uma simples comodidade que aqui e ali combina em fim de verso, por contraste com o-resto do texto, uma palavra dialetal, uma terminação anormal. Camproux já mostrou isso em Guilherme IX, em que a "lingua de autor" desempenha habilmente tais nuances. Localizada na rima, a figura da interpretatio, sistematizada por
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muitos poetas, permite introduzir entre as unidades do discurso um la-
de quase identidade, exaltando a semelhança fônica, marca de uma origem comum: faire rima com parfaire, e, se introduz p/aire na série; o poeta estabelece entre os três uma circulação de sentido; pardonner donner ... Assim se constitui uma unidade específica, sem outro fundarnento além de uma percepção da suprema liberdade do som. A canSO trovadoresca e as diversas formas que ela gerou no Ocidente só estabclecem, salvo exceção, um único laço explícito entre as (cinco a oito) estrofes que a compõem: a disposição das rimas - que é a mesma de ponta a ponta - e, no mais das vezes, seu timbre, mantido idêntico eleestrofe em estrofe (' 'unissonância' '), ou pelo menos de duas em duas, até de três em três (coblas doblas, ternas). Aqui, a unidade procede do som puro. De maneira mais complexa, porque ela concentra - tanto em fonia quanto em recorrência - o efeito predominante de sentido, a rima constitui a maior parte dos poemas entre os rhétoriqueurs do século xv, até do século XVI. Nas línguas germânicas, a história dos ritmos poéticos segue um encaminhamento semelhante e passa por etapas comparáveis. A influência dos usos e dos modelos latinos e românicos implicou várias retomadas. Desde os meados do século IX, o monge e poeta alemão Otfrid von Weissenburg, em seu grande relato evangélico, adapta a sua língua o esquema ambrosiano, que ele repete e orna de rimas - iniciativa à qual se deve, sem dúvida, aquilo que será mais tarde o "verso narrativo longo", de sete ou oito acentos na poesia cortês. Ao fazê-Ia, Otfrid abandonou o antigo verso germânico, que era foneticamente definido por sua estrutura aliterativa e que seria empregado ainda, trinta anos mais tarde, pelo autor do Heliand. Entre os primeiros líricos austro-bávaros, por volta de 1200, subsistem apenas traços das tradições rítmicas antigas. Elas recuaram diante da invasão dos modelos trovadorescos, em favor dos quais, sem dúvida, atuaram os hábitos musiciais criados pela liturgia. O verso, unidade rítmica minima, não é o ún'c . ambém o são as moda 1 a es o..reagrupamento dos versos e a distribui-_ ção respecjjva dos diversos fatores constitut:U::.osde, uns e outro~ Trata\ se menos de empréstimo puro e simples do que de uma confluência de tradições, como a que deriva do latim recebendo a contribuição - a princípio enfraquecida, depois mais bem definida e mais marcada e eficaz a partir dos meados do século XIII - dos costumes autóctones que estavam provisori~mente recalcados, mas que, sem dúvida, sobreviveram no uso oral. E assim que o verso curto de quatro acentos, equiva) -lente do octossllabo francês, é tratado com aparente desenvoltura, no que se manifestam outras tendências írreprimíveís.f 1,'0
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Na Inglaterra, os textos poéticos mais antigos, do Beowulf à Battle of Maldon e à Judith - uns 30 mil versos conservados em manuscritos de cerca do ano 1000 -, constituem-se, linha por linha, de duas partes que encadeiam a aliteração e que definem, ao mesmo tempo, a exig,ên" ) cia de uma extensão mínima e de certa curva acentual, levando em conta as durações silábicas." Nada em comum com o Sistema que, na França, decerto já estava solidamente constituído no final do século XI. Donde o triunfo deste, nos ambientes dominados pelos conquistadores normandos, e as alterações que ali sofreu. O verso inglês foi, por sua vez, refeito à imagem do francês, com rima e silabismo em princípio regular. Gower, Chaucer, Lydgate empregarão ainda um octossílabo aparentado ao de Chrétien de Troyes; .Chaucer ritma em decassílabos os Can'etbury-tales. Mas os séculos XIV e xv vão conIíece-r, nas províllciãSãty oeste e do noroeste, um repentino .t:.e.nascimentoda tradição anglo-sa,.xÔnicajmantida oralment~dura~ntos anos); movimento CõIilie; s;ido~Ilelo nome aliteratiye revival, 24 a~e..llillS-ffiuitos dos melhores poemas desta época, o Piers Plowman de Langland ou o Sir Ga]ff!in. ~balmente unifivoqüeãSSim generalizara no Ocidente certa percepção de ritmos, ficou separada apenas a longínqua Islândia. Ali, os Eddas e a poesia escáldica conservaram, cQ!DPJkando-as ao extre, mo, as estruturas rítmicas comuns aos povos germânicos antigu8.:-b.aseadas na aliteracão, distribuída de modo a constituir uma trama fonética sobre a qual a voz do recitante ou do cantor teça variações_de_acento e borde outras figuras sonoras, de uma virtuosidade muitas vezes verti~inosa ... " Essa história, com tantos deslocamentos e retornos, manifesta a onipresença de uma voz viva, aspirando a desabrochar em formas universais, para lá das fronteiras lingüísticas, a impor gestos vocais reconhecíveis em toda a parte, como uma linguagem internacional dos corpos e dos sons. O verso (designemos assim, de maneira neutra, um ritmo funcionalizado), mais ainda do que organizador da frase, é organizador dessa linguagem, em toda a sua riqueza e complexidade. Donde alguns malogros e resistências. É assim que a poesia épica não comporta um modelo rítmico comum a todos os territórios do Ocidente: à tirade monorrímica, geral nas áreas românicas, opõem-se nas regiões germânicas a quadra ou o dístico. Mas tais diferenças não afetam a unidade profunda.
9 O TEXTO VOCALIZADO
Um jogo vocal. A palavra e o canto. Composição numérica. Efeitos textuais. O "formulismo'~ Por volta de 1200 _ quando a multiplicação dos escritos podia talvez pôr mais intensamente à prova a especificidade do discurso poético, ritmicamente marcado _, disseminam-se simultaneamente, em certos meios letrados da França e da Alemanha, a propósito desse discurso poético, duas convicções, das quais uma constitui uma espécie de avesso ético da outra: o discurso formalmente mais coeso (o "verso") é percebido em sua diferença em relação a todos os outros, logo confundidos sob o termo banalizado prosa; desde então, textos encontram lugar, nas declarações de autor, prólogos ou digressões, para asserções do tipo "o verso mente, só a prosa é verídica". Entendamos: o "verso" mascara e desvia, ele gera sua própria aparência, graças à amplitude (qualquer que seja a mensagem transmitida) do jogo vocal e gestual pelo qual ele transita até nós. Por um lado, trata-se de um clichê antigo; mas que ele retome vida no momento em que se vai constituir, em língua vulgar, uma prosa de arte não pode ser fruto do acaso. O imperador Henrique, o Leão, inferiu isso para proibir que se fizesse em verso a tradução do Lucidarius que encomendara; quanto a Nicolas de Senlis, em 1202, encarregado pela condessa de Saint-Pol de traduzir o pseudo.:J'urpin, não deixa por menos: Nus conte rimés n'est verais ("Nenhum relato em verso é verdadeiro,,).l Os partidários do verso replicarão, na direta linha retórica de um Jean de Garlande, pelo elogio da medida e da harmonia que ela torna possívelargumento do qual se percebem os ecos até depois do século XVI. O marquês de Santillana, em seu Proemio, coloca como "manifesto" o primado do verso sobre a prosa, donde decorre uma autoridade particular
e mais alta. 181
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Desde então, a versificação européia entra em sua era de rigidez. Mas, até o século XIlI, a flexibilidade e a agilidade com a qual os poetas e intérpretes souberam explicar o material rítmico fornecido pela tradição tomam freqüentemente, para o filólogo formado nessa rigidez, ares de negligência. Isso não será talvez o indício de uma liberdade vocal que não hesita em alterar, na performance, o modelo? O âmbito espanhol foi, nesse aspecto, o mais bem estudado. Em particular, as "irregularidades" do Cid suscitaram numerosas pesquisas, que parecem ter provado a natureza flutuante do verso castelhano, oscilando entre limites cada vez mais restritos, aliás, à medida que nos aproximamos da época moderna: seus fatores constituintes, silabismo e figuras de rima, combinam-se de modo passível de ser revisto a cada instante. O poeta do Cid conta as sílabas não de maneira aritmética, mas rítmica, como blocos de matéria fônica de duração aproximada, porém recortados por pausas acentuais recorrentes. O que muitos textos franceses, considerados corrompidos, fazem talvez seja ilustrar a própria criatividade do uso: o Roland do manuscrito de Oxford conta com 420 versos "falsos" em 4 mil; Guillaume do manuscrito de Londres, 1500 em 3500, ou seja, 43 %!, ainda que o mesmo copista transcreva sem alterações prosódicas o romance de Gui de Warewic. Poderíamos estender essa observação a grande número de nossos textos antigos: do Tristan de Béroul a vários fabliaux e a gêneros inteiros, como o "sermão alegre" e outros ainda. A evolução da língua e das técnicas de dicção pôde desempenhar aqui um papel. No século xv, o dístico de dezesseis sílabas, unidade básica do Romancero, é tratado (por razões musicais) como um verso único, de modo que o dístiço à moda nova é, de fato, um quarteto: a quadra ou verso dos c dores do sertão brasileiro de nossos dias ainda! A única regra universal é a predominância da interpretação vocal sobre a manutenção estrita do modelo, e isso em todos os níveis de formalização: anisossilabismo do verso, mas também a irregularidade das estrofes neste ou naquele texto em que as esperaríamos iguais; antigamente, W. Bulst organizou, para o latim, o alemão, o inglês e o francês, um catálogo de poemas que comportam essa "anomalia=f Na Espanha, um dos esquemas rítmicos mais vivos, a cuarderna via, repousa sobre a combinação de muitos princípios, conseguindo variar com grande elegância, entre limites fixos, o número de sílabas segundo a colocação dos acentos. O octossílabo dos laudi úmbricos e de Iacopone comporta os mesmos equilíbrios - a mesma abertura. Or n'y ames garçon, conta o poeta (ou o intérprete) de Doon de Nanteui!, no começo do século XIII, s'il set ung vers rimé/ quant a elerete voix:.../ "Ha Diexl " ce di! chascuns, "com cist est escolé!" ("Não 182
há mais hoje um jovem do qual - se conhece um poema bem medido e uma voz bem timbrada - alguém não diga: 'Ele só pode ter estado em boa escola!' "). O texto insiste porque deplora essa situação, nefasta ao prestígio dos conteúdosl ' A qualidade da voz constitui para o público um dos critérios, talvez o principal, da "poesia". Outros autores trazem em outros termos o mesmo testemunho quando, ao apresentar ou louvar sua obra, distinguem verso e canto, verso e canção: verso refere=se ao texto; canto e canção, ao poema enquanto concretizado e percebido.4 Tal é a força do que chamei de vocalidade, um dos planos da realização do ritmo. Modulado de modo a levar em conta pesadas coerções sintáticas provenientes do texto, submetendo-as a sua ordem própria, o ritmo vocal comporta uma curva melódica que valoriza e que comunica, segundo as circunstâncias, uma qualidade particular - única. Nesse sentido, o texto só existe na razão das harmonias da voz. É, sem dúvida, o que quer dizer Brunetto Latini, no livro m, capítulo x, do Trésor, quando invoca a necessidade de contrabalançar o acento e a voz (o manuscrito T corrige ou precisa: os sons e a voz). O texto, enquanto palavra medida, significa a voz viva. O fato é que, até o começo do século XIII no Ocidente inteiro, todo discurso poético que se tenha revestido da forma do "verso" (mais evidente e rigorosamente medido que a "prosa") não pode ter tido outra origem. Já no período entre as duas guerras mundiais, um Georges Lote, embora de uma geração de universitários atrelados a pressupostos escriturais, referia-se, em vários capítulos de sua vasta Histoire du vers jrançais, expressamente às práticas de cantillation litúrgicas ou laicas como sendo a fonte de muitos traços aparentemente aberrantes do sistema versificatório românico.' Muitos manuscritos, como vimos, anotam os versos em texto corrido, sem quebra de linhas, tal como na prosa. Entre as diversas causas desse costume, não seria preciso levar em conta a idéia de que a identificação do verso é um caso de voz e de dicção? Nessa prática, ultrapassa-se a fronteira entre canto e não-canto? Fronteira movente, que pouco importa delimitar. O que distingue os gêneros e costumes poéticos até o século xv é o grau de tensão introduzido na ação vocal pelo artifício que rege o ritmo, a altura, a intensidade do som. A poesia dos trovadores, trouvêres e Minnesãnger atinge o ponto extremo dessa tensão. Para esses poetas e para o público, o canto se identifica a um "gesto formal", como diz G. le Vot. Aquém ou além dos elementos que a análise distingue aí, a canso é um ato fisiológico, momento concreto em que a voz "desperta a forma"." Geralmente transmitida (assim o estado das transcrições leva a crer) pela via oral, portanto ligada ao costume da improvisação, a melodia faz da canso, da 183
chanson, do fiet uma Gestalt, esperada como tal, recebida desse modo por um público dotado tanto de extrema sensibilidade de escuta quanto de uma capacidade de experimentar formas sonoras que mal é imaginável por nós. Donde a surpreendente variedade das combinações formais nessa poesia e, ao mesmo tempo, a liberdade que preside a seu conjunto: antigamente, L Frank assinalou 885 fórmulas métricas diferentes entre os trovadores provençais; U. Mõlk, mais recentemente, 1561 entre os trouveres! Mas, na tradição de uma mesma canção, muitas vezes o número e a ordem de sucessão das estrofes permanecem flutuantes, traço particularmente detectável entre os Minnesiinger, mas que não lhes é, nem de longe, próprio! Só o atenuará a evolução das técnicas musicais, que, a partir dos meados do século XIII, vão alongar bastante as unidades rítmicas do canto. O "grande canto cortês" foi, assim, a realização final não apenas de uma arte, mas também de uma tendência visceral nessa cultura; ele representava o objeto de um dos seus desejos mais constantes e, sem dúvida, mais arcaicos: já a retórica antiga, pelo uso que fez de cantus, sugeria que este designasse a realização plena da linguagem. Em Cícero (De oratore), em Quintiliano, ele se alterna com vocis flexio, modulatio, variatio, mutatio, todos esses termos referindo-se ao jogo da voz; cantare é omnes sonorum gradus persequi ("percorrer todos os graus dos sons"):_i!.cão ~rél'fia-' no limite - aos histriões e atores de teatro, mas também - controlada e moderada - a todos os bons oradores. 7 Um dos cIichês que, na poesia medieval, servem para remeter a uma fonte oral real ou fictícia repousa talvez sobre a longínqua lembrança de tal concepção: "eu o~vi ler e cantar" (desde o prólogo do Alexis), "eles contam e cantam" (ainda no século XIII, no Durmart le Galois, v. 15 946), e outras variantes; figuras cumulativas que evocam, conjugando os dois registros da palavra, uma totalidade vocal: o máximo de informação e o máximo de prazer. Pouco importa que o limite oscile, no curso do tempo, entre o que o ouvido percebe como palavra dita e o que ele percebe como canto. É nessa perspectiva que se deve interpretar o fato de que, no século XIV em Florença, cantavam-se terzine da Divina comedia+ Évrart de Conti, em 1382, atestando que então a leitura pública dos romances se fazia em cantillation, compara esta ao canto, embora seja distinta dele." Só isto conta: que a oposição funcione e, para o ouvinte, faça sentido. O canto é signo: ele diz a verdadeira natureza da voz, presente em todos os seus efeitos; significa seu acordo com a harmonia das esferas celestes. Alain de LilIe, no Anticlaudianus, por volta de 1180, confia alegoricamente a sorte da poesia à Concordia e a suas duas seqüências, 184
das quais uma garantiria numeri doctrinam ("a teoria do ritmo") e a outra ensinaria vocum nexus et vincla sonorum ("as combinações da voz e as relações dos sons"). 10 O velho harpista que aparece a Bohort, no fim do Lancelot em prosa, senta-se sobre um trono de ouro para executar o Lai des pleurs: índice, como comenta A. Leupin, da soberania do canto. 11Mostras desse gênero não faltam na tradição dos séculos XII e XIII. Assim, Geoffrey of Monmouth, recriando uma lendária história antiga dos bretões, dá (no capítulo 52 da Historia regum Britanniae) por ancestral de Artur um rei Bledgabread, de tal excelência na arte do canto que passou por deus dos cantores; Wace, adaptando essa passagem no Brut, amplia-a em versos hiperbólicos. Gottfried von Strassburg, nos vv. 4723-91 de seu Tristan, dedica aos Minnesiinger um longo elogio metafórico, em que a poesia deles é representada pelos cantos de pássaros nobres no céu e na luz. O ensino prático do canto reflete a mesma concepção da operação vocal." No século XIII, a ordem franciscana, votada à prédica popular, abriu várias escolas de canto litúrgico (cuja influência, aliás, contribuiu para a difusão da polifonia): as finalidades estão, aqui, ligadas. Nas Admonitiones aos estudantes novatos, capítulo "De cantoribus", Boncompagno insiste nas qualidades vocais que permitem artificiose ac dulciter modulari ("modular com arte e doçura"). Ele ilustra engraçadamente seu assunto, comparando as diversas maneiras pelas quais os povos da Europa e da Ásia têm o hábito de conduzir suas vozes: " ...os cristãos, por sua vez, dizem que os sarracenos engolem as palavras e que, cantando-as, gargarejam com a voz ..."; ele fala de todo o mundo, latinos e gregos, franceses, italianos, alemães." Desde o século XII, cantar e tocar algum instrumento fazia parte da educacão de jovens nobres, ou. ao menos do ideal que se formava para eles: Albéric de Pisançon, enumerando, por volta de 1100, os surpreendentes sucessos do Alexandre adolescente junto de seus mestres, menciona a excelência de seu toque de lira e sua habilidade no canto; o alemão Lamprecht, imitando-o trinta anos mais tarde, não deixa de retomar esse traço. Os tratados de cortesia do século XIII, como o Chastoiement des dames ou a Clé d'amors, recomendam especialmente para as jovens a aprendizagem do canto e são pródigos em conselhos sobre o modo de impostar a voz. Os autores de romances não deixam de explorar esse traço dos costumes, provavelmente sentido como evocador de certa perfeição física e moral: é assim com Fresne, no Galeran atribuído a Jean Renart, vv. 1166-73; é assim com Tristão e mesmo com Isolda, em Gottfried. No conjunto dos textos sobre Tristão, o jogo da voz, o canto (e a harpa que o acompanha) 185
são mais do que motivos ilustrativos; eles se prendem de algum modo ao próprio fundo da "legenda".
Por acrescentar o corpo à expressão, o ritmo poético necessariamente pressiona a linguagem. O efeito dessa coerção se manifesta no próprio ponto em que o artifício se articula sobre as estruturas da língua natural: na relação do "verso" com a sintaxe. Em tempos bem recuados, quando as línguas românicas constituíam progressivamente para si um sistema poético próprio, o verso se calcava sobre formas sintáticas, assumindo-as em sua própria unidade superior. Daí resultava um efeito secundário de dicção, a partir do fato de que os ·ritmos do idioma cotidiano pareciam coincidir com aqueles que provinham de outras fontes de harmonia. Herdando de seus antecessores a estrofe de versos unidos pela rima (em série aabbcc ... ), Gautier d'Arras impõe a si mesmo uma dupla regra: uma proposição se estende num verso, ou em dois versos inteiros; a frase, num número inteiro de estrofes, qualquer que seja sua extensão. Os desvios permanecem numerosos; mas a variedade rítmica provém mais das diferenças de extensão entre as frases, muitas vezes fortemente contrastivas e constituindo o equivalente (ou o fundamento) textual de um desempenho de ator muito animado. O enjambement propriamente dito é muito raro, repartindo em dois versos sucessivos os elementos do mesmo sintagma: contam-se, no máximo, uns quarenta, sem grande clareza, nos 6500 versos do Érac/e, e a evidência é de que somente uma dezena procede de alguma intenção dramatizante. Tais rupturas rítmicas se produzem, na cadeia narrativa, apenas nos momentos mais intensos, como um gesto amplificador. Nesse sistema, em que o rigor relativo reforça a eficácia dos efeitos de desvio, os limites do verso são bem marcados, lexicalmente no início, fonicamente no fim. De modo muito predominante, é uma palavra-instrumento acentuada o que começa o verso: um determinativo qualquer, uma preposição, conjunção ou locução adverbial. Conjunções diversas e os advérbios ne, or, si figuram no começo de 3007 versos, ou seja, 46070 do total. Esses advérbios, sobretudo or, merecem atenção particular, por causa de sua função no enunciado e de sua relação com a discursividade oral. Or, especialmente, para além de seu valor temporal, possui a função de detonar a presença do locutor no que ele diz: provoca uma pausa breve, suspendendo a temporalidade do relato. Também foram percebidas como pontuação lexical as inumeráveis palavras quase vazias si, que, car que escandem incansavelmente as preposições, as frases, os grupos de palavras nos romances em verso.
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Entretanto, pelos fins do século XII, produz-se um rompimento voluntário, cujo sagaz responsável foi decerto Chrétien de Troyes e no qual J. Frappier via, com razão, um novo efeito vocal: a dissolução da "estrofe", que até então assegurara a coincidência da frase e do verso. Cada língua trabalhava assim sua própria matéria. O verso anglo-saxônico desloca, graças a um sutil jogo de acentos, os tempos fortes do som e os do sentido, de sorte que um enjambement do pensamento encadeia os versos sucessivos. Em parte, o estilo dos trovadores, trouvêres, Minnesiinger consiste numa perpétua manipulação sintática, em geral abreviativa, até elusiva, talvez propositalmente ambígua. Assim, toda sintaxe é, em todos os gêneros dessa poesia, mais ou menos encenada; é mais ou menos uma encenação; e a "cena", aqui, não é outra senão aquela em que se desempenha a performance. Por meio da sintaxe, e às vezes além ou aquém dela, o ritmo suscita na língua relações imprevistas, provoca aproximações insólitas, abre-se em plena "metáfora viva". As rimas, desde que surgiram em série, submetem a totalidade do discurso a uma figura de interpretatio recorrente, por vezes chegando à obsessão: junção de homônimos cujo entrechoque não cessa de fazer jorrar conotações inauditas, sobredeterminando o sentido daquilo que é dito. Quanto mais se avança no curso do tempo para os séculos XIII, XIV e xv, mais se refinam, com essa intenção, as técnicas acrobáticas da sintaxe e do som, até o ponto de perfeição que irão atingir entre alguns dos grands rhétoriqueurs. No entanto, um costume de origem antiga (e que reafirmava certa prática da lectio divina, quando não da exegese rabínica) levava mais de um poeta a sobrepor à sintaxe propriamente dita outro plano de organização, baseado nos números, em suas relações e nos ritmos que eles engendram. Divisão em três, quatro ou cinco partes de cinco, sete ou dez membros, combinações às vezes muito complexas, regendo a distribuição e a recorrência de palavras, de fórmulas, de seqüências narrativas, de blocos temáticos, ou a quantidade de cada um dos elementos em jogo. Do Heliand saxônico ao Alexis normando, do hino Quand le solei! à Chanson de Roland e ao Tristant de Eilhart," poucos de nossos antigos textos não foram objeto de investigações sobre esse ponto, no mais das vezes com a intenção subjacente de deles demonstrar o caráter erudito ... Trata-se, porém, mais de um traço geral da poética medieval, observável na grande maioria dos textos durante séculos e em todas as línguas, da alta época carolíngia ao século XVI, de Rabano Mauro aos rhétoriqueurs, passando por Dante mas também por alguma canção de trovador ou Schwank alemão." Não se poderia atribuí10 ao "gênio" de alguma época, região ou homem mais do que à pro-
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jeção de algum rigoroso sistema de simbolização. Ainda mais do que como retórica, suponho que as proporções de números funcionariam, na performance, como figuras de ars memoriae, articulando desse modo as partes da narração e permitindo, por esse meio, diversos efeitos de dramatização rítmica ou mesmo - se for o caso - de correspondência entre duas sessões consecutivas de recitação. A ars cria um espaço orientado para se colocarem os marcos de um discurso: em cada um dos lugares que aí se determinam, abriga-se um elemento ao qual a palavra se referirá, dependendo de seu papel. O poeta transpõe para a duração o sistema: momentos substituem lugares, e proporções simples bastam para defini-los, É assim que, no Éracle* - que examinei atentamente desse ponto de vista -, a metade exata do romance, nos vv. 3283-5, coincide com o centro do pranto de Atanaís aprisionada, no qual, por força de uma gradação dramática, a infeliz vem acusar os pérfidos cortesãos, os mentirosos e o próprio demônio. Ora, esse instante marca, em duração, o fim do primeiro terço do episódio dos amores de Atanais; logo depois, surge a dúvida e começa a derrapagem em direção ao inevitável adultério: efeito, sustentado, de climax. Mais ainda: o conjunto do episódio conta com 2170 versos. As enfances de Éracle precederam-no, cortadas de modo a formar duas sessões nitidamente distintas: os primeiros anos, ocultos; depois a vida pública, como acontece com Jesus nos Evangelhos de Mateus e de Lucas. Assim decifrado, Éracle aparece construído em massas bem simplesmente proporcionadas. matéria não narrativa
a. infância oculta b. vida pública (manifestação)
c. amores de Atanaís
114 versos 258 versos 2553 versos 2170 versos
(*) Em Érac/e, o herói epônimo foi agraciado com três dons: o conhecimento das pedras, o dos cavalos e o das mulheres. O imperador Lois, que o comprara de um senescal, convoca-o para ajudá-lo a escolher uma mulher: Éracle indica-lhe Atanaís. Quando Loís precisa ausentar-se para lutar contra rebeldes, Éracle aconselha-o a confiar em sua esposa, mas Loís erra ao não lhe dar ouvidos, e manda enclausurar a imperatriz. O resultado não tarda: ela se entrega a um de seus súditos, Parides. Ao voltar, o imperador, furioso, quer mandar matar os culpados; mas, aconselhado por Éracle, rejeita sua mulher e a autoriza a casar-se com seu amante. Éracle torna-se imperador de Constantinopla, luta contra o rei da Pérsia, Cosroes - que havia se apoderado da verdadeira cruz -, triunfa e reina gloriosamente. Trata-se de uma história de inspiração hagiográfica, destinada a celebrar a exaltação da Cruz e a fazer a biografia de Éracle, imperador de Bizâncio, que recuperou a Cruz das mãos de Cosroes. (N. E.)
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1351 versos 71 versos 53 versos
d. conquista
da Cruz e. fim de Éracle matéria não narrativa
A relação narrativa entre b e a é simétrica àquela que une de e. Se se juntam esses pares de elementos, constata-se que o relato se decompõe em três unidades de respectivamente 2811, 2170 e 1422 versos, ou seja 43%,33070 e 22% da duração total do texto - números que se relacionam aproximadamente entre eles como 4 se relaciona com 3 e com 2. O fator determinante é a duração do relato - duração da palavra e da audição, uma e outra nos limites fixados menos ou mais nitidamente pelas condições físicas, pela energia dos corpos e pelos hábitos coletivos. Examinando dois fragmentos de quinhentos versos, fiz uma experiência de leitura em voz alta do Éracle, colocando aí o mínimo de expressividade, com apenas as pausas indispensáveis e o acompanhamento de alguns gestos; concluí, por extrapolação, que uma leitura pública do romance inteiro exigiria um pouco mais de quatro horas - e muito mais, caso o leitor teatralizasse certas passagens, como aqui e ali (em particular nos diálogos) o texto o convida com insistência a fazer. Não me parece, então, impossível que a composição do texto levasse em conta, de algum modo, este fato: uma performance de quatro ou cinco horas é impensável sem entreatos. Assim, constato que as três "partes" do romance separadas pelos huimais dos vv. 2746 e 5092 duram respectivamente, segundo meu cálculo, uma hora e três quartos, .uma hora e meia e uma hora. As mesmas relações simples se encontram na distribuição dos subelementos. Assim, as durações das provas relativas aos dons de Éracle estão aproximadamente na relação de 4 com 5 e com 7, gradação que põe em relevo a descoberta final de Atanaís; e cada uma das provas apresenta a mesma estrutura: exposição, acontecimento tríplice, conclusão, permanecendo idênticas as proporções dessas cinco subunidades, apesar do alongamento das durações. A história dos amores de Atanaís se decompõe em duas seqüências, com cada uma se dividindo em quatro cenas de extensão sensivelmente igual, duzentos a trezentos versos ou seja, segundo minha conta, dez a doze minutos por cena, uma hora e meia para o episódio inteiro. A parte central da conquista da Cruz é precedida de um prólogo de igual duração, contando a ascensão de Éracle a imperador; seguem-se a entrada em Jerusalém e a Exaltação. A extensão destas três seções é, grosso modo, proporcional a 4, 4 e 3. Essas divisões numéricas não correspondem exatamente às pausas que 189
geram os huimais do autor; elas não são, entretanto, incompatíveis, mas se aplicam uma à outra como, a um desenho, uma cópia ligeiramente distinta. Isso me parece significativo de como seria uma encenação que jogasse com a improvisação. O que têm de aritmeticamente aproximativo esses cortes e proporções demonstra, a meu ver, que sua função é mais prática do que simbólica. Pouco importa ao ouvido a exatidão das correspondências numerais, que ele só pode registrar bem toscamente. Num mundo em que o tempo se concebia primeira e espontaneamente de maneira espacial, os momentos sucessivos do relato se desdobravam como se sobre os próprios lugares da performance; e o cômputo das durações, no seio do discurso poético, não faria outra coisa senão traçar as dimensões desse espaço vocal.
Por isso, parece-me falsa a questão que, na perspectiva de uma estilística convencional, agitou os medievalistas desde que, em 1936, J. Meier, a propósito do Kudrun, a teria respondido afirmativamente: a vocação oral de um texto determinará seu modo de formalização? Duvido que se pudesse dar a tal pergunta uma resposta global, O texto de destinacão vocal é, por natureza, menos apropriável do que o é o texto que se propõe à leitura. Mais do que este, ele resIste a lOenUtJcar-se com a oalavr a ae . seu autor; tende a se instituir como um bem comum d
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consideradas próprias das culturas da oralidade primária, mais aditivas do que subordinantes; mais agregativas do que lógicas; conservadoras; agonísticas; mais totalizantes do que analíticas; mais participativas do que operando por distanciamento; mais sjtuOIciouajs do Que abstratas. Daí provém a maior parte das características que, em todos os planos de análise, opõem o texto "medieval" ao texto "clássico", a poesia do século XII à literatura do século XIX: características, por essa mesma razão, deploradas, incompreendidas ou ocultadas por um número demasiado grande de medievalistas. A conseqüência de tal erro de apreciação foi o estabelecimento de um cânone de "obras-primas" medievais _ as mesmas em que esses caracteres são os mais atenuados -, estranho (eu presumo) à percepção que tiveram dessa poesia seus destinatários e, sem dúvida, à função que ela preenchia em sua sociedade! Donde provêm ainda, de outro modo, o equívoco e a futilidade das pesquisas baseadas no rastreamento de indícios lexicais ou gramaticais de vocalidade. Contudo, entre 1950 e 1975, foi esse o gênero de fatos que invocaram com o máximo de confiança os medievalistas ávidos de chamar atenção para os efeitos da tradição oral. Desde 1967, Michael Curschmann assinalava o que podem ter de enganadores esses métodos de detecção. A vocalidade deve ser considerada globalmente, e toda argumentação fundada sobre um único gênero de observação ou limitada a um só nível de análise não leva muito longe. Um conceito como o de estilo "oralizante" é circular: a argumentação corre o risco de voltar, em conclusão, a seu pressuposto. Todo texto medieval é "oralizante". Ademais, a intenção expressa de um autor, motivada pelas necessidades de uma difusão num meio de oralidade dominante, pôde, a todo o momento, em certas obras compostas por escrito, indicar fortemente tendências que, alhures, eram mais difusas. É o que, por exemplo, segundo Albert Baugh, testemunha o texto de romances em inglês medieval, tais como Guy of Warwick ou Beves of Hampton. Certamente, rastrear, como fez Beer, na prosa de Villehardouin as manifestações de um "estilo oral" é coisa que não carece de interesse, mas exige uma interpretação que não seja simplesmente textual. Donde a insuficiência, por estreiteza excessiva, da "teoria oral" (como a chamavam, nos anos 70, em países anglo-saxônicos e germânicos), da qual A. B. Lord foi por muito tempo o mestre inconteste. Baseada nos trabalhos de Tatlock (a partir de 1923) e de Parry (1928 e depois 1930) consagrados à epopéia antiga, e nos de Murko (em 1929) sobre os guslari iugoslavos, a teoria definiu um modo de expressão que foi denominado "estilo formular" e que, em seu estado primeiro, ela considerava próprio da epopéia, quando esta era objeto de transmissão 191
oral. Desde os anos 50, diversos medievalistas, quase simultaneamente, tiveram a idéia de aplicar a poemas narrativos da alta Idade Média a noção de estilo formular-oral, que a partir de então parecia assegurado na prática de certos helenistas e eslavistas. Em 1951, aparecera o estudo de R. H. Weber sobre o Romancero; dois anos mais tarde, F. Magoun se dedicava ao Beowulf e à tradição anglo-saxônica. Seu estudo se baseava numa concepção rigorosa: a fórmula é uma prova necessária e absoluta de oralidade; sua presença excluiu a intervenção do escrito, senão a título de simples relatório da performance. Contendo o Beowulf 74% de versos formulares, só se tinha que tirar conclusões desse fato. Quando foi reeditado em 1963, o artigo de Magoun já havia gerado toda uma descendência: estudos de R. Waldon, R. D. Stevick e outros sobre a poesia do inglês antigo ou sobre o verso aliterativo do inglês medieval. Em 1955, o livro de Jean Rychner sobre as canções de gesta pretendia provar a destinação vocal dessas obras; o impacto foi tamanho que justificou, dois anos mais tarde, a reunião de um congresso destinado talvez, na intenção de alguns organizadores, a frear a tempo uma perigosa heresia! O resultado foi diferente: até meados dos anos 70, viu-se constituir uma considerável bibliografia de trabalhos do gênero, acerca da maior parte das zonas culturais da Europa pré-moderna, França, territórios germânicos e escandinavos, Espanha ... O estudo do estilo formular terminara, durante esses anos de voga, por desenvolver-se como disciplina quase autônoma, em detrimento dos outros elementos poéticos dos textos considerados. Muitas vezes, ele se reduziu, para jovens pesquisadores desprovidos de experiência, a uma caça às fórmulas bastante derrisória. Várias dessas monografias, pela própria especificidade de seu objeto, não deixaram de contribuir para redefinir o sistema formular, dando-lhe uma imagem tão complexa que toda aplicação pura e simples do modelo se tornou impossível. O gênero épico se espalhava por todos os lados: canções de santos francesas, romances em inglês medieval, Minnesang alemães, qasida árabes, não havia gênero poético que não se descobrisse mais ou menos formular. Este critério permitia definir e delimitar toda a "literatura oral", por oposição à que se passa por escrito. Sínteses se esboçaram sobre essa base; mas, simultaneamente, objeções cada vez mais numerosas se levantaram e questionaram fosse os pressupostos da doutrina, fosse a natureza da documentação implicada, fosse o alcance de sua interpretação. Desde 1966, Benson se interrogava assim a propósito dos textos anglo-saxônicos; em 1967, E. de Chasca, a propósito do Cid; depois, os críticos invadiram as revistas especializadas. A partir de então, a opinião comum tende a recusar-se a ver noestilo formular a marca segura . da oralidade. A "doutrina" Parry-Lord, depois de um quarto de século 192
de uso, parece-me representar, em nossos estudos, se a reduzimos a seu princípio, uma hipótese inicial, útil em função heurística, mas desprovida de autoridade universal. Ela não leva suficientemente em conta a necessidade interna do texto poético. Do ponto de vista lingüístico, oral ou escrito, um texto permanece um texto, da competência de métodos críticos dos quais é,enquanto texto, por definição o objeto. Comporta necessariamente as marcas deste status. Mas uma poética desejosa de fazer justiça à vocalidade deverá, para manter sua especificidade, demorar-se menos naquelas marcas do que nas relações instáveis das quais resulta, por concatenação de elementos e de seus efeitos de sentido, a economia particular do texto dito ou cantado - aquilo que, numa linguagem um pouco desusada, Menéndez Pidal desvendava no "estilo tradicional" espanhol:" sua intensidade, sua tendência de reduzir a expressão ao essencial (o que não quer dizer que a reduzisse nem ao mais breve nem ao mais simples); a predominância da palavra em ato sobre a descrição; os jogos de eco e de repetição; a imediatez das narrações, cujas formas complexas se constituem por acumulação; a impessoalidade, a intemporalidade ... Esses traços, mais ou menos claros, manifestam no nível poético a oposição funcional que distingue da escritura a voz. O texto escrito, uma vez que subsiste, pode assumir plenamente sua capacidade de futuro. lá o texto oral não pode, pois está muito estritamente subjugado pela exigência presente da performance; em compensação, ele goza da liberdade de mover-se sem cessar, de ininterruptamente variar o número, a natureza e a intensidade de seus efeitos. Nesse sentido, pode-se, nos textos dos séculos XII e XIII que usam o estilo formular, considerar este uma marca de arcaísmo - mas um arcaísmo mantido, na prática de numerosos poetas, pelo sentimento que eles tinham das próprias exigências da voz performancial.
É mais na perspectiva de uma arte dominada pelos ritmos e pela investigação de harmonias sonoras que se deve considerar o "formulismo". Tomo esse termo emprestado a M. Jousse, numa busca de generalização e, ao mesmo tempo, por alusão a muitas das conotações doravante ligadas à expressão "estilo formular". Formulismo faz referência a tudo que, nos discursos e modos de enunciação próprios a tal sociedade, tem a tendência de incessantemente redizer-se em termos bem pouco diversificados, de reproduzir-se com ínfimas e infinitas variações essa crescente reiteração verbal e gestual, característica de nossa oralidade cotidiana "selvagem", conversações, rumores, trocas fáticas. Num §.entido mais estrito, o "formulismo" é a funcionalizacão dessa tendência, com finalidades oratórias, juridicas, poéticas. O formulismo triunfa 193
em regime de oralidade dominante. Talvez constitua uma das marcas externas daquela arqueoescritura, anterior a todo o escrito real, da qual já se falou bastante nos anos 70. Em contra;artida, o aparecimento e a difusão da escritura real se acompanham d;um efeito de desformult-: ~zação.:...coma linguagem da poesia tomando desde então uma orientação auto-reflexiva; observa-se esse fenômeno nos textos medievais, de modo primeiramente esporádico, desde o fim do século XII. Uma vez que a tradição oral se alimenta de tipos, a escritura tende à "dialetação", à aproximação com o objeto, à apreensão do incomparável; mas essa tendência triunfa apenas entre alguns italianos do século XIV; entre os franceses, não antes do século xv. O que o formulismo tem de redundante compensa, na própria mensagem, o ruido ocasionado pelas circunstâncias que, na performance, interferem no texto; em situação de oralidade primária, essa é uma função poeticamente vital; quando a hegemonia da voz começa a ceder, sob o assalto dos hábitos escriturais, tal função progressivamente se esmaece, mas sem que, por muito tempo ainda, seu exercício desapareça. Do século XII ao xv, estamos nessa situação. Nos gêneros de tradição mais antiga, como a epopéia ou, mais sutilmente, o "grande canto cortês", perpetua-se um tipo relativamente arcaico de formulismo, definível pela desproporção que comporta, entre um número elevado de significantes e um número restrito de significados; estes últimos se identificam mais ou menos a categorias culturais, fundadoras de sentido. Nos gêneros de criação recente, como o romance ou o dit,* permanecem mais do que marcas dessa situação. Assim se constitui um interdiscurso poético - no sentido em que se fala de intertexto: uma rede mnemônica e verbal, que é urdida de forma muito desigual. mas que visa a envolver com seus fios toda ª pala;;;;:::' de uma comunidade. Em maior ou menor grau, determina a mensagem que os poetas enunciam e se prende em sua origem a alguma ideologia, por vezes cristalizada e tornada improdutiva. O formulismo tende, assim, a fechar-se em sua própria clausura. Uma forte conotação autonímica afeta a linguagem que ele produz. Suas partes, mesmo as mais rígidas, as "fórmulas" propriamente ditas, a todo o instante se prestam à ressemantização, segunto o contexto, a circunstância, a natureza do público. No limite, a única realidade à qual se refere essa linguagem é o próprio acontecimento que a realiza, aperformance. Seu sentido global procede menos dos elementos iterativos acumulados que ele coloca do que de sua própria iteração. O que se manifesta então - ao som (*) Termo usado para alguns tipos de poesia didática medieval; aparentado bat, fabiiau, conte e lai. (N. E.)
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do dé-
de uma voz, na presença comum do emissor e dos receptores da mensagem - é um jogo corporalmente autotélico, uma purificação fictícia ou uma superação da história, assumida, assimilada, apagada pelos volteios de sonoridades, de gestos, de significações oferecidas. Fundamentalmente, o formulismo faz parte da ordem da voz. De fato, em conseqüência da heterogeneidade das tradições ocidentais desde a alta Idade Média, seus efeitos se revestem de aspectos diversos, perceptíveis em diferentes níveis da obra: assim, ao mesmo tempo em que fixam o que antigamente denominei' 'registros de expressão", 17 eles modalizam, no essencial, o uso da retórica, em latim não menos do que em língua vulgar. Durante séculos, a prática dos letrados permanecerá marcada pelos métodos formulares de aprendizagem do latim, introduzidos na época carolíngia: memorização e repetição em voz alta de pequenos textos sapienciais, Disticos de Catão, fábulas esópicas, versículos de salmos: - a Fecunda ratis, de Egbert, por volta do ano 1000, fornece aos estudantes de Liêge, para esse fim, uma seleção de ditos; dois séculos mais tarde, as Parabolae de Alain de Lille cumprem função semelhante. O formulismo poético funciona com a ajuda de modelos de diversas ordens, sintáticos rítmicos, semânticos, operando de maneira gerativa na constituição do texto, produzindo superficialmente seqüências ao mesmo tempo esperadas e muitas vezes imprevisíveis. O procedimento às vezes trabalha sutilmente no nível do enunciado: assim, um advérbio, como or, introduz periodicamente no discurso (como já assinalei) uma referência à oral idade deste, real ou fictícia; a própria presença de um dêitico como ci a indica que se trata de palavras que presentificam." O formulismo, porém, envolve mais o discurso como tal do que sua organização de linguagem; e, na prática, concerne mais à performance do que à composição; tal é a função dos lugares ou topoi, originalmente partes da memoria e da actio retórica e ligados ao uso oratório da palavra, e depois, por um deslizamento que prosseguiu até os séculos clássicos, caídos no nível da arte literária e - inversamente içados ao da dialética, mais e mais abstratos a cada etapa. O lugar comum tem por função aproximar do ouvinte a materia remota do discurso, concretizar um conteúdo, mas evitando toda particularização; ele funda a técnica das' 'artes da memória" e justifica praticamente a maior parte das estratégias poéticas adotadas ao longo dos séculos. Segundo a perspectiva em que se coloca seu uso, ele rege o desenvolvimento de uma linha de pensamento, determina-lhe as articulações ou, ainda, inaugura um repertório de argumentos eficazes. No entanto, adquiriu-se, com ou sem razão, o hábito de considerar o formulismo quando, de preferência, ele abarca o vocabulário e influi 195
na seleção das formas lingüísticas. De contornos mais ou menos estáveis, mas sempre (ainda que contextualmente) identificáveis, a unidade formular funciona como uma citação de autoridade. Ela remete a um texto social, virtual mas incontestável, palavra tradic{onal e pública, constituindo um plano de referência que é substituível e que, de fato, no mais das vezes substitui um "real" mal perceptível que, em performance, não nos interessa, a menos que o aceitemos. Tal é, em seu fundamento, a operação que se designa então, dissimulando seus efeitos, pelo termo culto repraesentatio. Donde, para além de sua ligação com a tópica, técnicas de elocução como a que, antes de Jean de Garlande, fora recomendada por Geoffrey of Vinsauf: 19 que uma sentença abra o exórdio e depois feche a conclusão do discurso, dupla concentração de sentido, premonitório, depois retrospectivo, condensando aquilo que a mensagem tem de mais verdadeiro, majus diffundens lumen ("espalhando uma luz ainda maior"), segundo o verso 126 da Poetria nova. Mas o que é a sententia senão aquilo que profere uma voz externa, fora do tempo, sem espaço, presença pura, dito ou frase memorável, sobre a qual construir a argumentação e fundar uma veridicidade?" Quase sempre, o uso da sentença, no correr de um texto, é repetitivo; assim se reitera para nosso aprendizado e prazer a evocação de uma experiência transpessoal, a escuta desse barulho de multidão reunida, na boca dos sábios, em breves seqüências altamente significantes, núcleo de todo o pensamento ricas de sentido a ponto de exigir uma decodificação com múltiplas dimensões, jamais completada. Pouco importam os aspectos ocasionais: citação literal ou imitada, até parodiada, de um autor; locução metafórica cristalizada; expressão acabada, vinculada a esta ou aquela situação, a este ou aquele tipo de discurso; máxima; provérbio. Eu os reuni sob a denominação fórmulas, no sentido em que Zavarin e Coote, de um ponto de vista etnológico, envolvendo fenômenos de fraseologia, de paremiologia e de folclore, falavam de formulaic texto Não existe um inventário das "fórmulas" que estiveram em uso entre os séculos IX ou X e o século xv. Mas não é menos certo que foram inúmeras. No francês dos séculos XIV e xv, o dicionário de locuções projetado por G. Di Stefano contará com mais de 9 mil entradas; a obra de Jean Le Févre, por volta de 1370, recorre a mais de duzentas locuções metafóricas fixas, das quais umas trinta não possuem equivalência literal." O que, numa acepção estreita, chamamos provérbio, embora mal diferenciado de outras fórmulas variadas, presta-se talvez melhor do que elas ao exame de seus traços comuns e explicita melhor as raízes em que mergulha toda dicção formular nas tradições de um universo de orali196
dade. É verdade que um efeito de acumulação e o caráter mais explícito da documentação fazem com que nos seja mais fácil identificar os provérbios nos textos dos séculos XIV, xv e XVI. Quanto mais se recua no tempo, mais difícil é a tarefa; nada, porém, prova que o fervilhar proverbial tenha sido menor, e que o uso de uma inesgotável matéria paremiológica tenha sido menos revelador da natureza profunda de uma estética." Todos os gêneros foram tocados pelo provérbio, até o grande canto cortês; e, mais do que os outros, foram afetados aqueles cuja função implica um engajamento persuasivo, uma tomada de posição pública, para moralizar ou provocar o riso: do Ysemgrimus latino ao Chastiemusart francês e a seu homólogo veneziano Super naturafeminarum, ao teatro da baixa Idade Média, farsas e soties, à própria poesia de corte no Franklin's tale, entre os grands rhétoriqueurs, até sob a pena do sábio Philippe de Mézieres, dissertando alegoricamente sobre a grande política no Songe du vieil pêlerin, destinado ao rei Carlos VI. Técnicas de utilização dos provérbios se criaram pouco a pouco, como o epifonema (conclusão de uma unidade de discurso), que, ainda em nossos dias, sobrevive na glosa dos poetas populares brasilelros.l~ Certos textos tardios não são outra coisa senão tecido de provérbios, em que o efeito de sentido provém dessa acumulação e da ruptura de todo elo contextual, como se produziria na gravação de um murmúrio da multidão ... e como ocorre ainda hoje nos poemas africanos formados de um encadeamento de ditos e máximas. A balada de Villon Tant grate chiévre que mau gist não é um caso isolado. O provérbio ameaça invadir o discurso a todo o momento, tal como, às vezes, ameaça invadir o campo da tela num Hyeronimus Bosch ou num Brueghel. De resto, este ou aquele provérbio comum aos homens dos séculos XIII ou xv podia ter sido, na origem, uma sentença patrística, um aforisma filosófico. Os peixões comem peixinhos, bem atestado (em particular entre os pregadores) até por volta de 1500, vem da Bíblia, por intermédio de S. Agostinho e S. Jerônimo. Uma rede cerrada envolve o tesouro indiferenciado das palavras que fundamentam o justo e o verdadeiro. Os séculos a partir de 1200 são marcados por antologias de provérbios, em todos os idiomas, constituídas como fontes de saber e de expressão adequada, aptas a operar a cristalização do discurso. Temos várias dezenas, na maioria provenientes dos meios letrados; duas, por volta de 1450, figuravam na biblioteca dos duques da Borgonha. Didático sem ser dogmático, constatando mais do que ordenando; metafórico, mas breve e sintaticamente reduzido ao essencial; visando ao universal através do concreto: cruzamento e ponto de convergência, o provérbio constitui a manifestação primária, tanto antro197
pológica quanto lingüística, do formulismo. Próximo, na prática medieval, do. apólo..go (exemp/u'!iJ., ele se distingue deste por sua forma implícita - mas a terminologia não cessa de confundir um com o outro. Pouco importa: a característica do provérbio, como de toda fórmula, é que a cada ocorrência se re-conheça nele forma e idéia. Mas seu sentido é, no contexto que ele adquire, em virtude mesmo dessa reiteratividade indefinida, a fonte de sua significância, Graças a ela, o mundo se coloca em ordem quando uma boca o pronuncia; o juízo analítico suspende seus efeitos, e, por um instante, restabelece-se a densa continuidade da vida. Nesse sentido, o efeito da "comunicação diferida" que em nosso tempo foi considerada definitória de toda obra poética se produz graças ao formulismo, como recurso a um ritual de linguagem. A voz que o pronuncia em performance é, assim, ficticiamente abstraída das circunstâncias concretas em que é percebida, de algum modo mitificada.
o formulismo em poesia é, portanto, redundância fortemente funcionalizada e formalmente estilizada. o. Sayce rastreia suas marcas nos Minnesãnger: nos jogos de assonância, de contraste lexical, de estrofação, de duplicação. Em cada um dos níveis de língua assim referidos (fônico, léxico, sintagmático, semântico), o formulismo pode modularse de diversas maneiras: paralelismo ou alternância, antítese ou retomada da variante, ecos periódicos ou dispersos, litania, desregramento controlado. Novos jogos, variações sobre tema obrigatório, diversidade na uniformidade, fundamento de uma técnica que é sempre semelhante a si própria e cujos meios apenas diferem em maior ou menor grau, segundo as circunstâncias. Toda recorrência fixa e mantém: tendendo à hipérbole, ela testemunha a aceitação, pelo poeta, da sociedade à qual ele fala ou canta. Mas essa sociedade, ele a aceita menos por escolha do que por causa do papel que lhe é confiado pela coletividade, de preservador e de arauto. O sistema às vezes se concretiza em figura de estilo, coincide ocasionalmente com a prática retórica: como a repetitio de Peire Vidal na canção Be m'agrada, em que cada estrofe se constrói e se condensa numa palavra ou num sintagma retomado em cada verso; a insistência das três sílabas iniciais, incessantemente repetidas, do 'was hilfet âne sinne Kunst de Reinrnar von Zwveter ou do elogio das damas de Konrad von Würzburg." Os exemplos são inumeráveis, em todos os tempos e em todas as línguas. Certos gêneros poéticos se fundamentam tecnicamente em tais efeitos: a seqüência arcaica; o Leich alemão; o vire/ai, a ballette, o rondó francês occitânico, em suas diversas variedades. De recorrência em recorrência, o texto se anima por um movimen198
to interno, projetado mais em espaço do que em duração; afirmando-se como reunião e semelhança, nada aí é absolutamente idêntico nem absolutamente diferente; o texto opera assim uma mediação entre Criador e criatura _ falante e ouvinte -, referindo-se não à cadeia da história, mas à dos valores do ser. Empenhei-me em assinalar essas marcas no Éracle, aqui escolhido por causa de seu caráter letrado, clerical, e de seu propósito último: diversão e edificação de uma corte de condes. O autor usa um processo formular que é notável por permitir constituir - simultaneamente no nível rítmico, lexical e sintático - um sistema móvel de ecos e de paralelismos: quase metade dos versos do romance começa por uma conjunção ou locução adverbial; ora, um número não desprezível desses termos figura no começo de muitos versos sucessivos, constituindo séries iterativas alongadas ou entrecruzadas ao longo do texto; assim: _ et figura 63 vezes no começo de dois versos consecutivos ou mais; _ que, qui, ou, dont, ne e as conjunções simples quant, se, ains, car, mais, 99 vezes; - or, doze vezes. O conjunto dessas recorrências, muito regularmente distribuídas, afeta 376 versos. Ou seja, perto de 6070 do total. Outro procedimento, da mesma ordem: 86 versos começam pelo nome Eracle, no mais das vezes com função de sujeito do verbo. Freqüentemente, o autor pontua a unidade narrativa (cena, episódio, ação) com versos ou expressões com valor de refrão, introduzindo no enunciado, graças a pequenas variações, um ritmo interno que o dramatiza e que aí figura como o esboço de um gesto. Destaquei, por amostragem, mais de cinqüenta exemplos; o número total deve ser bastante maior. Geralmente, a repetição incide sobre dois ou mesmo três versos consecutivos, suspendendo a narrativa de um modo que acentua a dramatização e reforça a sugestão gestual. Aqui e ali, um verso reaparece, idêntico, depois de longo intervalo, transformando-se assim em refrão propriamente dito, enquadrando uma cena que se torna virtualmente teatral graças ao número de diálogos, a seu ritmo, à brevidade das réplicas e à presença, nestas, de vocativos recorrentes, criando uma gradação e personalizando fortemente os interlocutores. É assim nas passagens mais dramáticas ou mais irônicas do texto: a venda de Éracle no mercado; o concurso de beleza; as aparições do anjo. Mesmo se, como é provável, forem apenas ornamentos retóricos, Gautier os maneja do mesmo modo que os cantores épicos manejavam suas fórmulas, e sem dúvida com a mesma intenção de exteriorizar a narrativa, tendendo a manifestar sensorialmente seu artifício _ isto é, sua poesia. Muitas vezes, no curso dos versos, basta uma 199
palavra, repetida em alguns lugares estratégicos, para reaproximar do ouvinte uma parte da narração, engajando o próprio ouvinte na representação, mimesis de uma presença: os molt acumulados dos vv. 1325-9, os brocher, poindre, férir da corrida de cavalos; o niêce dos vv. 2755, 2760, 2765; o grant duel dos vv. 6479-81, e muitos outros. A. Kilito cita um teórico árabe de poética, do século XI, Ibn Rachiq: "Se a palavra não se repetisse, ela desaparecería"." Essa palavra nos situa no coração de um universo de vozes vivas. Ela não existe senão repetida, continuamente dispersa e retomada, sem o que ela se esgota e morre, estéril. De qualquer modo que se realize, a recorrência discursiva constitui o meio mais eficaz de verbalizar uma experiência espaciotemporal e de ali fazer participar o ouvinte. O tempo se desenvolve numa intemporalidade fictícia, a partir de um momento inaugural. Depois, no espaço que gera o som, a imagem sensorialmente provada se objetiva; do ritmo nasce, e se legitima, um saber. Fios se tecem na trama do discurso e, multiplicados e entrecruzados, aí produzem outro discurso, trabalhando os elementos do primeiro, interpretando-o gradualmente; glosando-o, a ponto de que a palavra instaure um diálogo com seu próprio tema. Enquanto as palavras desfilam, estabelecem-se equivalências e contrastes que comportam (porque o contexto se modifica, mesmo que imperceptivelmente) nuances sutis: cada uma delas, recebida como uma informação nova, faz-se acrescer do conhecimento ao qual essa voz nos convida.
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A AMBIGÜIDADE RETÓRICA
Ritmo e convenção. A glosa integrada. Uma sintaxe oral? Discurso direto. '"
Criadora de ritmos, a recorrência - controlada para atingir-se um fim expressivo - inaugura o discurso poético. Todos os elementos COllStitutivos deste, qualquer que seja sua natureza, devem ser considerados de tal perspectiva. Em si própria, a recorrência é menos procedimento discursivo do que modo de ser da linguagem. Mas, no correr do tempo, algumas de suas manifestações se institucionalizam, tendem a reproduzirse por inércia, tornam-se procedimentos e terminam por constituir juntas uma trama estrutural convencional - por certo, e felizmente!, perfurada de vazios - sobre a qual parecem bordar-se os outros efeitos rítmicos. Vários desses procedimentos se fazem, desde longa data, objeto de estudos, do ponto de vista restritivo e técnico da retórica ou da versificação: foi assim com práticas de organização textual como a interpretatio, a expositio e a frequentatio, a maior parte das figuras de palavras, de gramática e de som, assim como com as combinações estróficas. O inventário que daí se pode levantar sugere que a institucionalização opera em dois níveis e que os procedimentos em questão funcionam de modo ou macro ou microtextual. Dois exemplos, entre as recorrências sonoras, ilustram bem essa oposição, assim como as estreitas relações que ligam seus termos: no plano macrotextual, o refrão; no microtextual, a rima. Tratei da rima no capítulo precedente. Quanto ao refrão, podem distinguir-se três espécies. A primeira compreende os refrãos que intervêm de forma recorrente e, em princípio, a intervalos iguais num enunciado estrófico - geralmente em fim (ou em começo) de estrofe. O refrão não é sempre identicamente reiterado; o texto, a melodia podem 201
variar; mas, pelo menos, fica assegurada a periodicidade da ruptura assim provocada. Esse uso é antigo nas tradições dos territórios românicos e gerrnânicos. Os planctus carolíngios, estilizando em meio letrado o lamento tradicional, tiram disso efeitos poderosos; o heu mihi misero! ("pobre de mim!") que pontua a bela lamentação sobre a morte de Carlos Magno (814) divide o texto em vinte fragmentos pequenos, como poderia fazer o grito que acompanha um gesto irreprimível de desespero; o texto se torna cênico, exige o desempenho de um corpo, pateticamente exibido. Mesmo dois séculos mais tarde, a cantilena lamentationum composta por Wipo depois da morte do imperador Conrado é entrecortada de soluços por seu refrão Rex deus, vivos tuere et defunctis miserere ("Deus rei, protegei os vivos, tende piedade dos mortos") ... 1 No século XIII, esse tipo de refrão invadiu as canções dos trouveres franceses dos Minnesiinger, tais poetas, aparentemente, descobriram sua riqueza funcional e manejaram com virtuosidade esses deslizamentos controlados entre o mundo verbal e melódico do enunciado principal e aquele que, real ou ficticiamente, o refrão substitui a todo o instante. A partir de Alfred Jeanroy, diversos estudiosos supuseram que muitos desses refrãos foram tomados de empréstimo a uma poesia mais amplamente difundida, que seria de tradição quase exclusivamente oral e da qual subsistem apenas alguns trechos escritos. O que quer que nos leve a não pensar nessa hipótese (ela parecia fundamentada), o refrão enquanto tal, espalhando-se de gênero em gênero no curso de séculos, muitas vezes textualmente retomado de um texto a outro, adquire uma espécie de autonomia: ele constitui desde então (e talvez constituísse desde muito tempo numa tradição oral) uma dessas "formas muito breves", que foram submetidas a regras codificadas de abreviatio e cuja existência é atestada de um extremo a outro da Eurásia." Outra espécie: a que designa o próprio termo refrão em certos gêneros "fixos", elemento ao mesmo tempo estável e recorrente de um tecido textual cujos outros elementos, cambiantes e não repetitivos, constituem a amplificação. É assim no rondó e em outras formas de estrutura ABabA AbAB, em variações inumeráveis - estrutura provavelmente ligada, em sua origem, a um movimento coreográfico. É, enfim - terceira espécie -, num sentido muito diferente daquele que se fala do. refrão de certas canções de gesta arcaicas como a Chanson de Guillaume, da qual se pode razoavelmente afirmar que preenchia, em performance, uma função de transição entre o relato falado e o canto. Por muito tempo, a prática dos romancistas conservou marcas alteradas de tal uso: numerosos versos-refrãos (ou repetições diversas que funcionam para esse fim) demarcam os romances mais antigos. Ora, o exemplo do Éracle parece indicar isso: os autores, fazendo-o, dispõem seu texto ten202
do em vista uma leitura pública. Gautier d'Arras mostra constantemente o cuidado em assegurar a compreensão auditiva, em distinguir da duração performancial o tempo do relato. Com esse objetivo, ele utiliza nuemadamente várias espécies de notações recorrentes, destinadas a manifestar, em performance, por uma pausa ou um movimento vocal, as urtículações narrativas: _ notações de natureza estilística: do tipo biaus est li tens ("o tempo está bom") (vv. 1639, 1973, 2065, 3799); frase isolada em discurso direto, funcionando à maneira de arremate em laisses épicas, ou exclamação que intervém ao fim de um discurso (vv. 2563, 2567); mudança de tempo verbal (vv. 373, 652); _ notações que sublinham a sintaxe narrativa: mudança de lugar (vv. 2542, 2799, 2969 etc.), mudança de personagem (vv. 2815, 5211, 5320), introdução de uma personagem (vv. 2787, 4961 etc.); _ notações temporais, as mais numerosas: ou medem expressamente a duração dos eventos, por frases como au cief de set ans ("ao cabo de sete anos"), au tierç jor ("no terceiro dia") ou outras semelhantes (vv. 141, 229, 252, 279, 345, 736 etc.); ou então modalizam o tempo narrativo com a ajuda de diversos "advérbios de discurso" (lors, puis, ja etc.), sobretudo or na fórmula or+ verbo + sujeito (é assim nos vv. 1059, 1499, 1766,1919,4919), cuja realização mais notável, or est Eracles, reaparece nove vezes. Ocorre que duas ou três dessas marcas surgem sucessivamente a poucos versos de distância, parecendo neutralizar-se; é o caso nos vv. 1245 e 1256, 1513 e 1517, 2065 e 2068, 3799 e 3805, 5192 e 5204 etc. Pode-se questionar se não é esse um meio de deixar ao recitante uma margem de liberdade na interpretação "rítmica" do texto - análogo ao que seria para um cantor uma notação musical incompleta (como o eram as neumas), simples apoio de execução que permitia realizações variadas. Os grandes romances em prosa do século XlII não são desprovidos de marcas dessa espécie, e não é outra coisa a fórmula iterativa "o conto diz": o texto dá a palavra a si mesmo, e esse refrão não cessa de reivindicar para a narrativa a verdade do que se fez ouvir e prova a sonoridade de uma voz; frase inútil nos romances em verso, porque o verso, por si só, significa essa voz. Os fenômenos de recorrência são facilmente localizáveis, e sua interpretação não coloca problemas insolúveis. Entretanto, na medida em que o objetivo geral da obra permanece uma ação vocal menos ou mais teatralizada, depreendemos um traço notável, que foi corrente em nossos textos até o século XIV e que, mais tarde, só muito lentamente se apaga: a existência de um comentário que está integrado no texto e do qual se pode admitir que aí preencha (mesmo se por vezes o supõem fictício) 203
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um papel performancial. No capítulo precedente, falei disso como "intervenção de autor", a propósito das canções de gesta. Mas o seu uso nos séculos XII e XIII é universal. Ainda sobre esse ponto, com a ampliação que comportam os efeitos estilísticos de Gautier d'Arras, Éracle é representativo. Gautier está por toda a parte em seu relato e, manifestamente, tende a fazer-se sentir. Destacam-se, muito regularmente repartidas, 99 intervenções: uma em média para cada 65 versos, a cada dois ou três minutos de audição! Sua função as diversifica: observação, de passagem, a respeito de uma personagem ou do episódio em curso; afirmação de saber; citação ou referência; anúncio de acontecimentos por vir. Apenas cinco dessas intervenções têm a forma de uma frase em terceira pessoa e constituem breves apartes, dos quais o mais contundente, vv. 3259-61, interrompe um monólogo da heroína. Em compensação, 85 intervenções se fazem na primeira pessoa do singular; nove, na primeira pessoa do plural, o que se pode interpretar tanto como um substituto deje quanto englobando a comunidade do autor e dos destinatários do romance. Em duas passagens, a intervenção se reduz a um possessivo: notre empereur. Em outras partes, 49 intervenções implicam expressamente o público, recorrendo ao pronome vous, aqui e ali, segundo o costume dos jograis, apoiado num dos seigneurs ou, às vezes, substituído por ele. Mais de uma em cada três vezes, o autor usa uma fórmula que justapõe ao vous umje explícito (muito insistente, no uso do século XII): je vos di. Esse enunciado recorrente serve para introduzir ou reintroduzir um episódio; e, no plano da glosa, ele traz o tema da veracidade. O vigor da afirmação é tão mais significativo queje vos di poderia bem ter pertencido ao discurso estereotipado dos charlatães e curandeiros de praça pública (ou a sua paródia tradicional): aparece não menos que 34 vezes, em 165 linhas, no boniment* publicado em apêndice das Oeuvres de Rutebeuf," em que ele próprio, no Dit de l'herberie, pastichando esse texto ou outro semelhante, emprega (como um traço típico?) quatro vezes a fórmula. Esta, no Éracle, destaca contextualmente o fato de que mais de um terço de todas as intervenções do autor contêm o verbo dire, outro verbo factitivo (tal como vanter ou faire devise) ou, inversamente, ouir. É a autoridade do relato o que Gautier pretende fundar sobre essa palavra, cuja presença se reafirma sem cessar. Demonstra-o um volteio que, aqui e ali, remete não diretamente ao discurso do autor, mas ao conhecimento que ele detém: je cuit, al mien cuidier, ce m'est vis ("eu creio"; "a meu ver"; "parece-me") e outros semelhantes. É verdade (*) Anúncio pomposo de charlatão, lábia. (N. E.)
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que Gautier retirou de um livro os elementos de sua narrativa; ele o diz explicitamente, em sete passagens. Mas as referências que faz aí sugerem que ele toma em relação a isso alguma distância: esse livro, escrito em latim (v. 5119), contém uma história (vv. 5126, 6089) que diz algo (v. 5126) àqueles que a lêem (vv. 5119, 6089), havendo especialistas que formam um grupo social determinado (vv. 6089, 6177) e cujo testemunho nos garante a verdade (vv. 6178, 6180). Mas Gautier não parece alinhar-se de vez com esses privilegiados do saber. Certamente, ele tem acesso a esse livro, ele o leu (v. 6435); mas o que nos conta já residia em sua memória: ele nos passa sua lembrança (v. 6435). Isso não é reivindicar, na própria veracidade, uma parte para si mesmo, uma especificidade ligada a esse dizer? Tal é a intenção primeira do texto - sua origem. É através dessas afirmações ambíguas, dessas denegações em meias palavras, dessas alusões latentes que o texto fala de si mesmo, conta sua própria poética, em operação no corpo de outra narrativa. Não é agindo sobre as fontes que ele filtraria dessa ou daquela maneira seus múltiplos arquétipos, mas em meio a um fervilhamento de discursos. Fora daqueles arquétipos, Éracle é, como obra, literalmente impensável: lugar da convergência e da transformação deles, através dos signos que a mão traça, numa lembrança obcecada do milagre da voz viva. Subsiste uma equivocidade. Ela provém da retórica, que impregna as formas de pensamento e de sensibilidade entre os letrados, mas cuja influência difusa marca todos os artesãos da linguagem. Quanto a esta, a retórica joga com ela, faz dela uma aposta vital, já que, de modo imediato, dela depende o destino social. Ora, mesmo reduzida, em seu emprego corrente, ao status de arte da escritura, ela conservaria mais de um traço de sua primeira vocação oratória. De Pierre Hélie a Pierre de Blois, Alexandre de Villedieu, Conrad de Mure e muitos outros, não falI.am autores que lembrem a importância do corte do período em dislinctiones e suspensiones, cujas variedades eles classificam." A Poetria nova de Geoffrey of Vinsauf, por volta de 1210, termina com 35 versos sobre a actio (que foram precedidos por 62 sobre a memoria); é pouco, mas essa breve passagem não é aqui menos carregada de sentido. Ela assimila poeta a recita to r, coloca no mesmo plano palavra, expressão do rosto, gesto e linguagem, louvando a adequação das tonalidades vocais e gestuais à coisa designada: ...sic ergo feratur ad aures, ut cibet auditum, vox castigata modeste, vultus et gestus gemino condita sapore
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~ (' 'que uma voz perfeitamente dirigi da, nuançada pela mímica e pelo ges~ to, traga aos ouvidos a linguagem de modo a nutrir a escuta");' para os praticantes da poesia, essa actio relacionava-se a algo mais do que ao comportamento de um intérprete: ela definia o propósito último de uma arte, para além da pragmática da composição. Interiorizada, ela animava o discurso todo, desde sua primeira emergência, depois em sua fixação no pergaminho, até seu desabrochar no gesto e na voz. Donde a multiplicação, no texto, de procedimentos de representação especialmente combinados a múltiplos efeitos que eram mais de recitação pública do que de leitura, modulando a voz e o gesto, sublinhando os contrastes e a ironia, jogando com os ritmos verbais, variando significativamente a recitação. Assim, temos figuras superlativas, despidas de sentido literal mas eficazes, que só podem ser compreendidas se acompanhadas de mímica ou de um gesto. A retórica é fenômeno global. Ela comanda, pelo viés do discurso, até as artes plásticas: a demonstração disso foi feita a propósito de Bizâncio." O ensinamento mais reducionista não pode restringi-Ia aos estreitos limites da elocutio - apenas uma das cinco partes que aí distingue a teoria relacionada expressamente ao que designamos pelo termo ( literatura -,No século XVII, propagou-se a idéia de que a retórica tem por> função vestir a língua, ornar a horrível nudez desse corpo. M~ dessa época tardia, a retórica se integra no lunclOnaméírtQde toda pa. I ferecer aos doutos, até bem o século XIII, o único .saminho para uma reflexão sobre a linguagem. a vez ela se mostre apta a assumir essa função pelo próprio fato de que justifica os valores agonísticos e conservadores do verbo humano, sua capacidade de dialogar, de argumentar e de manter - os valores mais intimamente ligados a seu uso oral. A retórica visa à explicitação dos dados, à abundância do discurso, do qual ela pretende assegurar a gestão eficaz recorrendo assim, preliminarmente, aos debates da praça pública. É por aí que ela provoca esse efeito de comunicação "diferida" que atribuímos hoje à escritura, mas que provém de toda formalização - aliás, de toda teatralização - da palavra. Donde esse caráter freqüentemente observado em nossos textos poéticos antigos: tanto a sutileza de construção quanto a pesquisa ornamental são ali quase sempre maiores, no começo do que na seqüência da obra. As artes dictandi e outros tratados de retórica fazem disso uma regra, dissertando de maneira mais insistente e detalhada sobre o exordium do que sobre o corpo do texto e sua conclusão. Não é ratificar uma situação de fato? Na perspectiva de uma performance, o que mais importa não é justamente esse sinal inicial, isolando do fluxo das mensagens comuns aquilo que, começan-
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do assim, declara situar-se no plano do intemporal? Tudo se passa como se o texto fosse um dos penhores da ação que nele se estabelece e se anula.
Quanto às energias que transbordam do texto, ele raramente as designa de modo explícito. Elas o trabalham com vistas a fazer dele uma epifania da voz viva, apesar dele e em aparente contradição com seu status de escritura. Esta é seguramente a causa principal da persistência da tradição dos relatos em verso: não apenas o verso instaura uma relação privilegiada com a VOZ,7 mas a estrofe ligada pela rima constituía uma unidade rítmica mais facilmente perceptível pelo ouvido do que uma frase (mesmo se fortemente escandida) de prosa. A maior parte dos procedimentos estilísticos da poesia de língua vulgar poderia ser testada desse ponto de vista. Os resultados parciais de tais análises, é verdade, raramente convencem. Fica uma propensão geral a explorar mais esses recursos de linguagem do que outros: B. Schlieben-Lange sublinhou o papel desempenhado nisso pelo caráter duplo, oral ao mesmo tempo que escrito, do texto medieval, simultaneamente em sua composição (em geral ditada) e em sua transmissão vocal. Resultaria, inscrita no próprio texto, "uma consciência muito elevada do que era a voz de 8
uma língua", como diz R. Dragonetti. As energias em questão operam no texto - operam o texto - segundo vários eixos. O mais trivial (e menos decisivo) concerne às manipulações lexicais e sintáticas. No curso de séculos - e sem atenuação notável antes do fim do século xv -, perpetua-se o uso de técnicas ou procedimentos dos quais a etnologia nos mostra a universalidade, até na poesia de povos desprovidos de escrita. Constitui-se assim uma alusão global _ talvez até uma prova. Recentemente, F. Bar oferecia alguns exemplos daquilo que ele denominou "o estilo falado" no Lancelot em prosa; muitos estudos, desde Auerbach, evocam a propósito disso a parataxe, associada a diversas braquilogias que, muitas vezes, são interpretáveis como marcas de enunciação." A narrativa (seja na canção de gesta, seja no fabliau, seja em certo número de lais, seja em muitas narrações historiográficas) tende assim a justapor os elementos num espaço de duas dimensões. sem subordiná-Ios. O enunciado recorta o discurso em afirmações breves, tende a entrecruzá-Io de exclamações, expressões imperativas, em séries cumulativas descontínuas; no limite, os verbos se eclipsam, não há mais frases, mas um desfile de elementos nominais liberados. O vocabulário (por vezes, as próprias mots grammaticaux) parece tratado, relativamente ao que pôde ser o uso corrente (ou o que testemunha a prosa documental do século XIII), de maneira 207
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comparável: por restrição e condensação, a ponto de muitas vezes obscurecer o sentido. 10 Assim, há - salvo em certos trouvêres e Minnesiinger - certa vulgaridade de tom; atribuo muito precisamente a isso a inexistência, em vernáculo, de um "estilo nobre" tal como o que o latim classicizante de alguns poetas eruditos conhecia então ... e que o francês iria fabricar para si a partir do século XVI! Donde uma espécie de saborosa familiaridade - na escolha de palavras e no arranjo de frase - que, certamente, é difícil de apreciar e que não se poderia erigir como critério, contribuindo, no entanto, para a impressão geral de conversação ou de confidência. A natureza profunda dessa língua vai manifestar-se genialmente, ao fim de uma longa história, nos primeiros livros de Rabelais. Essa flexibilidade, essa maleabilidade (chegando muitas vezes ao desazo) não podem ser dissociadas da surpreendente capacidade de absorção de que cada um de nossos textos nos dá provas em relação a todos os outros - intertextualidade que mergulha suas raízes no comportamento semiótico de uma sociedade ainda quase inteiramente votada às trocas vocais, nutrida pelas redes emaranhadas de seus próprios discursos. O que se costuma abusivamente descrever como influência, até imitação ou cópia, remete ao uso vivo que, no romance de cavalaria, mistura cenas de fabliaux com a exaltação lírica da moralização, num carrossel de ironia, de paródia, de sugestões místicas ou licenciosas, de reduplicações com duplo sentido, improvisadas no fio da voz. É assim com essas numerosas passagens, por vezes muito breves, em todos os contextos, nas quais se reconhece este ou aquele segmento estrutural ou lingüisticamente típico, proveniente menos de um conto identíficável do que do vasto discurso narrativo, regulado por uma longa tradição de oralidade da qual os contos constituem as manifestações concretas, sucessivas ou simultâneas, mas sempre instáveis: armadilhas de conduta ou de linguagem, troças divertidas ou ternas, traços tocantes, expressões edificantes, comicidade temperada por uma pieguice que lhe oculta o verdor ... Recusa do trágico, que é próprio à escritura. O segundo eixo concerne especialmente ao uso dos tempos verbais e aos jogos de mascaramento ou de perspectiva que ele permite. Graças a esses deslocamentos, a esses descompassos, por vezes a essas contradições aparentes, tece-se indissoluvelmente à narrativa seu comentário temporal, enquanto a recorrência do presente inscreve no desenvolvimento textual a permanência de uma palavra-testemunha. J. Rychner demonstrou esse funcionamento no Renart; M. L. Ollier, nas narrações de Chrétien de Troyes. II Pelo uso - aparentemente pouco coerente _ do presente no relato vêem-se mantidas a instância da enunciação, a presença carnal e a continuidade da voz; e esse efeito parece ainda mais
poderoso quando o relato é composto em versos, pois estes, por sua repctitividade, tentem a esbater a profundidade temporal. Outro índice, em que concorrem sintaxe e retórica: o número de interrogações, exclamações, apóstrofes, muito elevado, em toda língua, nos gêneros "líricos", mas quase tão importante nos outros. Ora, no francês antigo essas feições eram marcadas menos pela forma da frase do que pela entonação ... a ponto de, às vezes, serem para nós dificilmente recuperáveis. Uma leitura em voz alta, mesmo pouco expressiva, sem dúvida faria aparecer muito mais do que o indica a pontuação dos editores modernos. Os poetas de então exibiam um cuidado com a palavra, elemento alógeno na narração, que é possível incorporar ao escrito por figura mim ética, representando-o aí, mas que não se pode aí integrar verdadeiramente, em conseqüência de uma irredutibilidade fundamental: a da própria materialidade da voz. Donde um efeito plurilógico, especialmente perceptível na prosa, em que o sistema de ligaduras entre relato e discurso aparece, no conjunto, mais refinado e complexo do que em verso. As formas poéticas tradicionalmente denominadas "líricas" funcionalizam, de maneira radical, o discurso direto: a maior parte das peças que P. Bec reagrupa sob a denominação "popularizantes" comporta, depois de uma breve introdução narrativa, monólogo (assim é, muito freqüentemente, na chanson de toile) ou diálogo (a maioria das pastourelles); o mesmo acontece, na Alemanha, com os Frauenlieder. No "grande canto cortês", a canso inteira, de signo je, é monólogo e obtém dessa ficção o seu sentido. As canções de gesta mais antigas, emergindo ainda, talvez, num universo quase totalmente entregue aos poderes da palavra viva, fazem surgir da narração o discurso brutal e quase nu; ele retumba, atinge outro discurso, e esses choques ressoam verso contra verso: fruto de uma violência, a palavra, como a Espada, corta, lança sua claridade sobre o mundo e depois recai. O mais enlevado trecho do Roland, e o mais significativo, é, sem dúvida, a passagem das laisses 170 a 172 do manuscrito de Oxford (figurando também nos de Veneza 4, Paris, Cambridge e Lyon, bem como nas adaptações alemã e norueguesa!): o monólogo que Roland, ao morrer, dirige a Durandal, espada e palavra confundidas nessa última verdade do herói. B. Stock ressalta a influência que essa economia textual pôde exercer sobre a consciência que o homem ocidental tomava do crescimento das trocas sociais e do movimento, então novo, dos bens. Certamente, mas idéias e necessidades novas se exprimem pela referência ao vivido - aqui, pela experiência da voz, coesiva e desalienadora. Na época em que se constitui gênero romanesco, por volta do final do século XII, a palavra ocupa aí, de imediato, um lugar central: sabe-se da importân-
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cia que;iJle, desde o Éneas, tomam os monólogos, "interiores" ou não, assim COJlOOmo, na maioria dos autores, os diálogos. Ora, a finalidade essencial eSf~stá tão profundamente entranhada no texto que, numa leitura silencidiosa, numerosas passagens desse discurso só são facilmente compreensÍlisíveis graças aos artifícios dos editores. É assim com breves monólogoO:os que um falante reporta no curso de seu próprio monólogo como paI.lf3lavras de um terceiro: somente um jogo de aspas permite ao leitor reencoúlPntrar-se. Nos diálogos, a passagem de um interlocutor a outro, às veze;~es marcada por uma apóstrofe, amiúde só é indicada visualmente, por lr um travessão, na edição: o Tristant de Eilhart conta com uma dezena pa deles, totalizando cerca de trezentos versos. Os diálogos interiores do j I Éracle seriam incoerentes sem esses truques tipográficos. O que significQ.ca isso senão que, na própria intenção dos autores, o texto exige uma gl,lglosa vocal-tonal, mímica ou gestual? Mesmo quando o diálogo é raiadot:lo de apóstrofes, o que elas fazem é confirmar esse caráter teatralizandoOo-o de maneira explícita. Nc?ro Éracle, o número, a divisão, a própria estrutura dos discursos diretos f, concorrem para uma valorização não apenas da voz, mas principalmélllente dos procedimentos que a oralidade do discurso pode exaltar. A nflnarrativa contém 41 diálogos e 51 monólogos, de todas as extensões. Eltl~lesrecobrem bastante regularmente o texto: a mais longa passagem que nãc?io tem nenhum comporta menos de trezentos versos. No total, os monólo00gos preenchem 130/0 do texto; os diálogos, 320/0 --:- cifras eloqüentes.F" Não apenas quase metade do texto (45070) é "falada", mas também ele ~ é sobretudo dialogado e, portanto, teatralizado: 32070 de sua extensão tJ textual representam bastante mais em duração, e isso acontece por cau.JJ.lsa da multiplicação de pausas, mesmo breves, que resultam da troca délle falantes. Os diálogos contêm 240 réplicas: os mais complexos contam ri respectivamente com 31, dezoito, doze, onze e dez; os outros, com doiJois a nove. Donde um movimento constante, que por vezes se precipita, àf;à medida que as réplicas se contraem respondendo-se taco a taco, a inf[ltervalos de um, dois, três versos. O conjunto dialogado se encontra aj
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vamente, em diálogo. Acumulando esses procedimentos, Gautier tempera o que o puro monólogo pode ter de estático; introduz no discurso um elemento quase polifônico e virtualmente gestual; à voz do monologante responde uma contravoz, revelando a presença de outro corpo. Da mesma forma, em muitos trechos não é entre dois interlocutores que se trocam as palavras, mas entre um indivíduo e uma multidão, cuja intervenção nos é relatada como unânime e, por assim dizer, coral! Antigamente, O. Jodogne sugeria, a propósito de Éneas, que a técnica do monólogo, especialmente o interior, consagra no século XII a passagem de uma estética do contador de histórias tradicional à do romancista. Por conta disso, o uso - aliás, refinado - feito desse procedimento novo em língua vulgar implicaria, em muitos autores, uma vontade de integrá-Io no procedimento mais antigo, de subordiná-Io a uma concepção de arte que foi a dos cantores de gesta e que permanecia a dos recitadores defabliaux. Este ou aquele autor tira efeitos mais fortemente contrastantes dos mesmos instrumentos lingüísticos e retóricos, numa instância mais urgente. Globalmente, a situação é a mesma. Procedi no Cligés (escolhido entre os romances de Chrétien por sua semelhança aproximativa com o Éracle) a um levantamento dos discursos diretos, segundo os critérios usados em meu estudo de Gautier. O número total desses discursos é, notavelmente, o mesmo: 98. Mas o número de versos que ocupam difere em cerca de um terço: para 2995 versos de discurso (sobre 6570) no Éracle, o Cligés apresenta apenas 2028 (sobre 6664), ou seja: em monólogos, 160/0 do romance; em diálogos, 14%. Ademais, o Cligés conta com 72 monólogos para 26 diálogos, ou, em média, 2,75 monólogos por diálogo; no Éracle, essa proporção não passa de 1,25. E, ainda, os diálogos do Cligés comportam menos réplicas, 85 no total, pouco mais de um terço do que se observa no Éracle. Quanto às durações respectivas desses dois tipos de discurso, elas testemunham no Eracle uma tendência nítida - ausente no Cligés - para a expansão de diálogos e a concentração de monólogos. Interpreto como uma nuance semelhante a ausência quase completa, no Éracle, de discursos indiretos, que, ao contrário, são freqüentes em Chrétien. Gautier aparentemente se recusa, em narração, a esse tipo de discurso, como se ele abafasse a voz.
Último eixo em que se opera o impulso das energias secretas do texto: o eixo que eu diria "temático", no sentido em que se fala do tema de uma proposição. Um motivo referente à palavra, ao som ou ao efeito da voz, ao poder do verbo pronunciado, introduz-se e mantém-se no 211
tecido textual. Donde, no plano lexical, a freqüência, em muitos textos, de palavras que se referem (por elas mesmas e qualquer que seja o contexto) à voz viva; sobretudo verbos, os quais por vezes recobrem o texto com tal densidade que traçam aí uma rede sêmica que dá nuances em todos os outros efeitos de significação. O relato se constitui sobre o fundo de palavras, em meio a palavras assumidas no discurso, proclamado verídico, do narrador: dire, ou seus substitutos, constituindo talvez locuções factitivas tfaire conte, faire devise); todos os dit-il ou il dit que ligam ao relato algum discurso direto, muitas vezes substituídos por faire ou répondre. Até aí, nada de surpreendente. Mas a narração propriamente dita (no Éracle, para voltar a ele) não apresenta menos que 145 ocorrências de verba dicendi, das quais 138 de dire. Nos 6570 versos do texto, atinge-se o número total de cerca de trezentos verbos dessa classe semântica, aos quais se acrescem alguns substantivos como chanson, cri, diction ... A isso respondem dezenas de outr ou expressões equivalentes. Nessa obra, a despeito de sua aparência soberbamente controlada, que eu tomo aqui por exemplar, tais dosagens não podem significar senão uma nostalgia, um apelo, um élan do ser rumo a todas essas vozes, emanação de vida, prova da verdade de nossos corpos, intérprete do Milagre, aval do prazer; uma vontade de fazer-se dizer mesmo quando se escreve; uma intimação. Por isso o Éracle exige ser percebido mais como discurso do que como texto - como mensagem-em-situação. Se se pretende captar sua existência textual, não se pode fazê-lo sem prenderse à percepção e à análise de sua existência discursiva. Daí, em nossa primeira leitura, a impressão de ouvir um narrador. Depois a impressão se confirma; ela requer interpretação. Essas tendências se inscrevem profundamente nas segundas intenções que determinam uma estética e os gostos aos quais ela responde. Prova disso são o número, a antigüidade e a popularidade dos gêneros poéticos dialogados, que contribuem para dar ao conjunto do dizer medieval o seu caráter "teatral". Já na aurora de nossas tradições poéticas, a seqüência latina de Sainte Eulalie, no século IX, poderia ser interpretada como um canto alternado: ao imperativo concine ("entoe") da primeira clausula responde, na terceira,tuam sequar melodiam (' 'eu seguirei tua melodia"); a cane ("cante!"), ministrabo suffragium ("eu garantirei o acompanhamento"). Se essa tinha sido a intenção do autor, a seqüência francesa gêmea, copiada no verso do texto latino e do- , ta da de estrutura rítmica quase idêntica, seria ela também dialogada. Para S. D. AvalIe, o poema, monologado pelo mesmo cantor, dirige-se nessas passagens ao instrumentista, calado." Desde o século X, temos a introdução, em muitas regiões do Império caroIíngio, de tropos dialo-
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IIUdos(cantados) na liturgia das principais festas do calendário eclesiásIleo. A médio prazo, surgiu daí um teatro propriamente dito. Parece cer10que a situação medieval não se prende, ou não se prende diretamente, s tradições antigas: passados os séculos v e VI, apenas sobrevivem do teatro romano cenas degradadas, simplificadas em ritos populares, e a prática de mimos, longínquos precursores dos jograis. Foi a jogos desse tlpo que se destinaram, sem dúvida, muitos textos interpretáveis apenas mquanto réplicas alternadas: o Ritmo cassinese, da Itália central, no sé.ulo XI (ou XIII?), até mesmo o ilustre Rosa fresca aulentissima atribuído a Cielo d'Alcamo; ou, na França, poemas violentamente polêmicos como o Privilége aux Brétons, por volta de 1234, e a Paix aux Anglais, de 1264, em cuja técnica nada os distingue de textos em que, à mesma época, o manuscrito faz o nome do locutor preceder cada grupo de versos: é assim em Le garçon et l'aveugle, considerado o ancestral das "farsas" do século xv. Hoje, não hesito em citar aqui a maioria dos textos que, num livro escrito em 1952, eu definia como "monólogos"Y A partir do século XII, essa tradição veio ao encontro de outra, que linha origem diferente, mas cujos poder e efeitos cresceram continuamente até cerca de 1500: a da disputatio escolar, peleja oratória improvisada sobre um tema dado. É ao modelo da disputatio que remetem não apenas todos os poemas latinos, como a cortês Altercatio phyllidis et florae, o "Concílio de Remiremont" ou a moralíssima Disputa do coração e do olho, do chanceler Philippe de Greve, mas também o superabundante gênero francês do "debate", ainda em pleno vigor por volta de 1480, e seus equivalentes em outros lugares - gênero de que a Alemanha produzira, desde 1400, o fruto mais saboroso, Der Ackermann und der Tod ("O lavrador e a morte") de Johannes von Tepl. Talvez esse mesmo modelo,confirmando uma prática transmitida pelos tradutores de coletâneas de contos orientais (como o Romance dos sete sábios), tenha inspirado a Chaucer e a Boccaccio, antes de Margarida de Navarro, o quadro ficcional de suas novelas: recitadas alternadamente e comentadas por um grupo de interlocutores. No entanto, pelos fins do século XII, a poesia cantada adaptara a suas próprias necessidades a forma do debate: tenso epartimen aparecem em occitânico com a terceira geração de trovadores e passam logo ao francês (tenson, jeu partii, ao alemão (Wechsel) e ao italiano (contrasto). O poema alterna as estrofes ou grupos de estrofes idênticas entre duas personagens, com cada uma defendendo sua causa ou contestando alguma opinião. Aparentemente, o gênero exige (ou, pelo menos, sugere) a intervenção de dois cantores ou disputantes. Nenhuma dessas técnicas faz sentido entre tantas vocalidades ambientes senão no aspecto performancial - quando integra no texto pe-
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10 menos algumas das qualidades específicas exigidas na realidade corporal de uma performance. A estruturação poética resulta menos de procedimentos de gramaticalização do que de uma dramatização do disCurso. A norma se define em termos mais de dramaturgia do que de lingüística. Seria desejável reexaminar sob essa luz a totalidade de nossos textos, sobretudo aqueles que tomamos, bem preguiçosamente, Como redutíveis a sua escritura, porque não cantados. Engajei-me nesse reexame com o Éracle; e desde então entabulei uma aproximação com o Tristan de Béroul e com o de Gottfried von Strassburg: em toda a parte, recolhem-se no discurso os mesmos índices redundantes de sua função "fática" - digressões prospectivas, retrospectivas, justificativas, estases ornamentais, apóstrofes, questões retóricas, passagem do il ao je, do eux ao vous, uso de fórmulas de apresentação como voyez, écoutez, esquematização descritiva, enumerações ... Daí uma tensão artificial generalizada, permitindo à linguagem desviar-se um pouco das exigências da linearidade dos eventos. Tais cruzamentos de registros mostram, na perspectiva da performance, um esforço para produzir um excedente semântico, para instaurar no sentido poético uma diversificação surpreendente. Esse jogo verbal incessante revela, no coração do texto, uma espécie de lugar vazio e neutro: aquele que o ator encarregado de fazer existir essa obra vai animar e preencher. Certamente, nem todos os textos, depois dos transformadores anos de 1150-1200,prestam-se tão diretamente a essa análise. Muitos resistem. Essa diversidade se deve à força do maior ou menor impacto, sobre os poetas letrados, das mentalidades escriturais então em expansão. Mas tal diversidade nem sempre consegue esconder a identidade profunda de uma poética, definida pelo duplo traço que esta possui (seriam necessários séculos para perdê-lo) em comum com a poesia de transmissão oral, como se pode observar, ainda hoje, em alguns lugares de nosso mundo: uma minuciosa complicação do tecido textual e, ao mesmo tempo, uma soberana, quase licenciosa, liberdade de combinação dos conjuntos. Mas também, como todas as poesias de tradição oral que nos é dado observar ao vivo, a poesia dos séculos medievais é fundamentalmente narrativa em todos os seus ramos. Os dois fatos me parecem ligados: a poesia dessa época tem por função - inscrevendo-se, por seu próprio artifício, contra a natureza - unificar a multiplicidade das aparências, que manifesta a infinitude de Deus. Somente a nar~ativa, por sua complexidade, por sua temporalidade, pelos agentes que implica e pela glosa que autoriza, oferece uma chance à linguagem: Dante, também nisso, marca na Comédia uma consumação, assim como, num grau menor, a soma romanesca do Lancetar. Graal. As próprias canções de fine amor, de discurso circular, atem-
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poral, aparentemente o mais estranho a toda narração, não escapam ao que parece uma coação permanente dessa cultura: o que constitui o enunciado é a exposição indefinidamente reiterada tanto de um desejo entreue a seus fantasmas quanto de um intelecto que nega a realidade desleso A superfície textual, por vezes caótica, é sumariamente organizada em virtude de um esquema narrativo latente: visão, encontro, procura e expectativa, abandono ou rejeição, com cada um desses termos servindo de referência mnemônica extratextual a uma das proposições enunciadas. Esse esquema também sustenta explicitamente a Vita nova de Dante. A linguagem poética comprometida com essas operações tende (contrariamente ao que muitas vezes se pensa) a tomar complexas ao extremo, em minúcia, as estruturas do discurso. Scholz, que apreendeu bem esse traço, o atribui à influência de uma escritura letrada; mas todo o movimento que se esboça na poesia européia depois do século IX não lhe dá razão. Entre os anglo-saxões dos séculos VIII, IX, X, a poesia (destinada à declamação) já se distingue da "prosa" por suas experiências formais e semânticas, sintaxes com parâmetros múltiplos ou construções apositivas, composições inesperadas, jogos de sinonímia. À mesma época, a poesia árabe usa formas também elaboradas e convencionais." No Ocidente, a poesia escáldica da Islândia, a dos bardos do País de Gales, o trobar clus occitânico representam notáveis casos particulares dessa tendência. Um outro caso é a espécie de tecnicidade peculiar ao estilo épico das canções de gesta ou do Romancero. Mas a tendência se manifesta também nos pretensos "desazos", nos buracos ou saltos do enunciado: a complexidade buscada consiste então, sem dúvida, em conjugar enfaticamente o lingüístico, o vocal e o gestual. Donde, por certo, a "dificuldade" das canções de Arnaut Daniel, segundo sua Vida, as quais, por excesso de artifício, no son leus ad entendre ni ad aprendre ("não são fáceis nem de compreender nem de aprender")" - pobre do jogral que fosse encarregado de levar a bom termo essa performance! Em outro registro, o perfeito domínio da arte narrativa testemunhado pela maior parte dos fabliaux implica uma proficiência igual e um investimento nada menor em todos os recursos do dizer. 16 Os diversos modelos poéticos em uso apresentam tal tecnicidade que poucos autores (pelo que podemos julgar) seriam capazes de dominar mais de um: Chrétien de Troyes ou Wolfram von Eschenbach são exceções. Toda poesia realça então, e ainda por muito tempo, aquilo que K. Erlich chama "ação linguagística" (sprachliches Handeln) ou "ato locutório" (Sprechhandlung), tanto mais artificialmente formalizados, na prática de um grupo humano, quanto mais importam à sobrevivência da coletividade.'? E o que é o comentário ao qual eu fazia alusão 215
a glosa que acompanha a voz poética e gera com ela nosso texto _ senão a pura experiência - que se narra a si mesma _ do ato em questão?
Na civilização que denominamos medieval, a poesia (qualquer que seja seu status textual) assume as funções que a voz preenche nas culturas de oralidade primária. Identidade notável, mais do que coincidência. Seria só um pouco forçado sustentar que, no Ocidente dos séculos XII, XIII e XIV, a poesia constitui um arcaísmo ... pelo fato de emergir, na linguagem, no sentimento, na prática social, de um passado muito antigo, com o qual os laços não são mais concebíveis em termos de uso. Sem dúvida, é por isso que tal poesia, nas formas que ela assim exibia, destinava-se a desaparecer um dia, em benefício de uma literatura mais de acordo com o mundo presente. Nossa velha poesia _ em maior ou menor grau segundo suas partes, mas sempre fundamentalmente _ é rito: sua função primordial é operar um feitiço, capaz de tornar presente aquilo que não o é, inserir essa ausência num simbolismo não apenas evocador mas também criador de outra coisa. Para afastar-se desse ritual, seriam necessários séculos: pelos idos de 1400, a poesia européia ainda lhe será meio cativa. O rigor dessa concentração sobre as formas não cessa de,aumentar, na maior parte dos gêneros, em toda a Europa, no curso dos séculos XIII e XIV - a própria época em que a progressiva, mas irresistível, difusão do escrito anuncia e prepara para logo a invenção da imprensa. Compensação oferecida a tudo do velho Ocidente que ameaça matar a nova tecnologia? Essa tecnologia que, com o tempo, chegará ao ponto de pôr em questão e depois privar de sua elevada dignidade os ornamentos com que se deleitava a poética tradicional, as fiorituras, as vocalises ... Jogos de voz, por certo sujeitos a uma estratégia textual de conjunto (muitas vezes artificiosa), mas com proliferações tão agradáveis que raramente essa estratégia é conduzida até o fim. Toda a obra de Baltrusaitis nos mostra até que ponto o ornamental constituía, nas artes românicas da pedra, o fundamento de toda "representação". O mesmo se dava nos gêneros da poesia. Mas o ornamento procede de uma construção refletida, controlada, abarcando os ritmos e a sintaxe, os modos e os símbolos, o manejo de símbolos icônicos. Tal é a fonte dessa complexidade tranqüila, dessa tecnicidade alegre, marcas de uma arte muito corporal da linguagem. Pode-se falar de estilo a propósito disso? Sem dúvida, mas com a condição de ligar a esse termo, para além da idéia de uma regulação qualquer de palavras, a de relação Com o real
:, nessa relação, de prazer: o encontro esperado, mas imprevisível, de lima identidade! Mesmo que a identidade nunca esteja totalmente assegurada: o universo ameaça a cada instante o prazer. O formalismo melieval tende espontaneamente para alguma obscuridade. Pelo menos assim parece, a nossos olhos de leitores. Já mostrei, em outro trabalho, u freqüência desse espessamento do tecido lingüístico, dessa opacificacão da mensagem, nos textos de tradição oral. 18 Toda poesia trabalha 110 heterogêneo: visando à clareza, ela pode produzir o obscuro, e viceversa. Ora, parece (a despeito de opiniões correntes) que o primeiro desses itinerários é mais próprio da voz; que o segundo é mais próprio da escritura. Tal foi o caso de nossa época antiga; é-nos impossível saber se isso era fruto de uma intenção; pelo menos, deu-se em virtude de um sistema expressivo do qual se pode admitir que era uma retórica da voz, realizada na performance pelo emprego de uma linguagem virtualmente iniciática, reconhecível de imediato como oriunda de uma tradição conhecida, e constantemente glosada pelo corpo. A forma tem por função primeira visar a esse efeito. Tecem-se fios na trama do discurso que, multiplicados, entrecruzados, desenham ai um hieróglifo sempre incompleto ... e cujo traçado só o tom da voz, o gesto, o cenário rematam na performance. Ao longo desta história, não cessa de exercer-se desse modo, por iniciativa de uma classe de escribas aspirantes àhegemonia, uma pressão que a obrigou a compatibilizar-se com opoder da voz. Percebemse, especialmente, os efeitos sobre as formas da poesia de língua vulgar, em que o escrito manteve durante séculos estruturas ou procedimentos talvez originalmente próprios de tradições puramente orais - causa de erros de interpretação (e de polêmicas sem fim) entre eruditos! Aqui, porém, trata-se menos de pura inércia do que de um fenômeno observado em outra parte pelos etnológos: em cultura de oralidade mista, os indivíduos lêem - e concebem - os textos através de uma forma oferecida pela tradição oral; interpretam a escritura tendo em mente valorcs ligados à voz. Uma corrente de trocas recíprocas circula do texto a sua glosa móvel e vice-versa; mas nenhum desses termos se refere semprc ou exclusivamente seja à voz, seja ao escrito. Isso é um fato, e daí provém o equívoco que já há um século perturba a 'reflexão de muitos mcdievalistas, Os produtos do verbo poético mal se distinguem se os julamos estreitamente, a partir de sua manifestação "oral" ou "escrita"; mas, por outro lado, eles constituem configurações bem distintas (porque implicam universos de valores sobre eixos divergentes) se relaciona1110S esses termos a uma finalidade, realizável só a prazo, mas fundadora do status deles. Nada ilustra melhor esse modo de funcionamento
e
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do que o duplo registro dos sermões de Bernardo de Clairvaux, pronunciados e depois escritos por um autor muito zeloso em adaptar seus meios a fins diferentes. 19 Como declara, no começo do século XIII, Jacques de Vitry, no prólogo da coletânea de seus sermões, a parte ilustrativa, comparações e exempla, desses textos só pode ser verdadeiramente expressa "pelo gesto, pela palavra, pelo tom: eles não comovem nem despertam a atenção dos ouvintes se vierem pela boca de tal pregador e não de outro, pronunciados em tal língua e não em outra".20 Não se poderia referir melhor a uma performance. A escritura não basta para fixar o texto, e, a todo o instante, a boca do leitor se prepara para remanejá-lo ou até refazê-lo. Donde isto que, desde muitos anos, diversos estudos pretendem ter revelado: a influência que as formas de expressão oral teriam tido sobre a escritura. Mas seria preferível dizer que esses estudos mostraram, em transparência, através da superfície escrita, a permanência de um modelo textual vocal _ o que H. R. Jauss já demonstrou a propósito do Roman de Renart:"
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A PERFORMANCE
o texto
em situação: os "papéis':
O ouvinte cúmplice. Provas cir-
cunstanciais. O "teatro': Para ouvir a voz que pronunciou nossos textos, basta que nos situemos no lugar em que seu eco possa talvez ainda vibrar: captar uma performance, no instante e na perspectiva em que ela importa, mais como ação do que pelo que ela possibilita comunicar. Trata-se de tentar perceber o texto concretamente realizado por ela, numa produção sonora: expressão e fala juntas, no bojo de uma situação transitória e única. A informação transmite-se assim num campo dêictico particular, jamais exatamente reproduzível, e segundo condições variáveis, dependendo do número e da qualidade dos elementos não lingüísticos em jogo. De vinte anos para cá, os lingüistas repetem-nos que a enunciação tende naturalmente a ultrapassar o enunciador e o enunciado, a colocar-se, ela mesma, em evidência. Poderíamos aproximar perjormance de perjormativo, no sentido que se dá a esse termo depois de Austin. Coloca-se, em princípio, que a linguagem poética medieval comporta sempre um aspecto performativo. As modalidades segundo as quais se manifesta esse aspecto não são menos determinadas historicamente, portanto móveis no curso do tempo. M. Sbisà e P. Fabbri lembravam recentemente que duas séries de regras regem todo ato de comunicação: umas pressupostas (portanto, em princípio, universais); outras reguladas no quadro desse ato. A mesma linha de reflexão leva-me a distinguir sobretudo três séries: regras próprias a toda emergência da linguagem em discurso; regras típicas de tal procedimento discursivo; enfim, regras particulares para cada situação vivida. Donde a oposição que muitas vezes sugeri entre a superfície do "texto" poético medieval e sua' 'forma": esta última ultrapassa a outra 219
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por tudo aquilo que sobressai do sopro, do som, do gesto, da instrumentação, do décor. É assim que convém entender, respectivamente, os termos obra e texto, que até aqui distingui com cuidado. Resumo-Ihes brevemente a definição, em estilo de dicionário: - obra: o ue é poeticamente comunicado, a ui e agora _ texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais; o termo compreende a totalidade dos fatores da performance; -- texto: seqüência lingüística que tende ao fechamento, e tal que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos de sentidos particulares produzidos por seus sucessivos componentes. E, para precisar melhor, eu acrescento: -[!oema:..Q,texto (e, se for o caso, a melodia) da obra, sem consideração aos outros fatores da performance. --<:>-te-xtu-é-legível-{fehzmente-p-aTa-rróS", meClí"êValistas!);~ obra foi ao mesmo tempo audível e visível. Ora, essas diversas qualidades não são nem simétricas nem mesmo, tudo somado, comparáveis, Do teXjg a voz em Qerformance extrai a obra. Ela se subordina a esse fim, funcionalizando todos os elementos aptos a carregar, ampliar, indicar sua autoridade, sua ação, sua intenção persuasiva. Usa o próprio silêncio que ela motiva e torna significante. O medievalista fica preso num círculo vicioso. Ele registra Com os olhos aquilo que foi destinado a uma percepção conjunta do ouvido, da vista, do próprio toque - a uma cenestesia. A performancé passada escapa, irremediavelmente, à nossa observação. Os ensinamentos que se poderiam extrair, por analogia, de exemplos atuais tendem a provar que as modalidades da performance realçam principalmente o estilo pessoal do intérprete ou tradições de escola menos ou mais divergentes na prática de um mesmo gênero. É difícil afirmar mais. Deveríamos, na interpretação de um texto particular, levar em conta um elemento de sua movência, ainda que seja quase impossível presumir a amplitude das variações e, mais ainda, medi-Ias. Da palavra ao escrito, ou vice-versa, há uma descontinuidade. Com a voz que se ergueu no passado, passase o que Ocorre com a própria história: não é possível negar-lhe a existência, mas ela não tem modelo. Ela foi, ao mesmo tempo, ocorrência e valor. Como ocorrência, ela não teve causa única nem é explicável em cronologia breve. Como valor, identifica-se com a experiência que temos. Não podemos falar dela sem renunciar às simbolizações abstratas e às taxinomias, porque toda palavra pronunciada constitui, enquanto produto vocal, um signo global e único, tão abolido quando percebido. A leitura desses velhos textos à qual nos entregamo;; coloca em jogo, bastante aproximadamente, as mesmas faculdades físicas e inte220
lectuais que a leitura de obras contemporâneas: a vista e também tudo o que isso implica - atitudes corporais tanto quanto procedimentos de recepção e de combinação mnemônicas -, nossos hábitos próprios de leitura ... até a forma e, talvez, o macio de nossos assentos! O que tenho diante dos olhos, impresso ou manuscrito, é apenas um pedaço do tempo, coagulado no espaço da página ou do livro. Enfrento aí uma dificuldade dupla. De um lado, o afastamento proveniente da historicidade de meus conceitos críticos e de seus pressupostos, projetando sobre um objeto diferente minha própria identidade cultural. De outro, minha ignorância (tratando-se de um texto sobre o qual pesa o presumir-se uma oralidade) do modo de articulação do auditivo sobre o visual numa civilização de forte dominância oral. Somente a prática permite, se não resolver, ao menos esclarecer empiricamente essas contradições. Por cruzamento de feixes de informações, por deslocamento de perspectiva e de visada, a partir de um ponto de vista intuitivamente escolhido, esforçarmo-nos para sugerir um acontecimento: o acontecimento-texto; representar o textoem-ato, integrar essa representação no prazer que se sente na leitura. Nossos textos só nos oferecem uma forma vazia, e sem dúvida profundamente alterada, do que, em outro contexto sensório-motor, foi palavra viva. Das próprias mecânicas que hoje nos permitem ouvir certos textos medievais (como os discos com canções de trovadores), pode-se falar - qualquer que seja sua qualidade própria - quase nos mesmos termos de nossas leituras. O som transmitido pelo disco atenua bastante o efeito da distância temporal e do abafamento sensorial. Entretanto, ele não passa de ilusão de presença; e, se procedemos a uma execução em salão, com cantor e músicos, é sobre os elementos não textuais da performance que se concentram as equivocidades: sentados em nossas cadeiras, aquilo que escutamos, mesmo com um vivo prazer, refere-se apenas de modo artificioso ao passado medieval. Esse concerto constitui uma performance atual. Do ponto de vista de nossa própria cultura, é uma vantagem; e talvez seja o meio mais eficaz de insuflar um pouco de vida nesses veneráveis monumentos de história. O conhecimento que temos deles se aprofunda ... mas, sem dúvida, desgarra-se no mesmo momento. Trata-se verdadeiramente de inverter (de maneira não muito discutível) a mutação qualitativa, antes operada pela colocação por escrito; de lançar, ao menos, uma provável passarela sobre as descontinuidades, às quais atribuímos importância sem poder medir essa importância; de tentar reconstruir a circunstância - não por simples acumulação erudita, mas colocando, de saída, que o texto verbaliza uma situação particular, a qual não ape. nas é definível em termos sócio-históricos gerais, mas também o individualiza, tanto na ordem das percepções corporais quando na da intelecção. 221
Remeto a esses pontos nos capítulos 8, 12 e 13 de meu Introduetion à Ia poésie orale. Tecnicamente, a performance aparece corno urna ação oral-auditiva complexa, pela qual urna mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição. Nesse nível, desempenha-se plenamente a função da linguagem que Malinowski denominou "fática": jogo de aproximação e de apelo, de provocação do Outro, de pergunta, em si indiferente à produção de um sentido. Por isso, qualquer que seja o processo que a preceda, acompanhe ou siga, é em sua qualidade de ação vocal que a performance poética reclama logo a atenção do crítico. Seus outros componentes, por indissociáveis que sejam, tiram dela seu valor. A transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo da performance que constitui o loeus emocional em que o texto vocalizado se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que constituem a obra viva. Esse é, em parte, um loeus qualitativo, zona operatória da "função fantasmática", segundo a expressão de Gilbert Durand. Mas é também um lugar concreto, topograficamente definível, em que a palavra desabrochante capta seu tempo fugaz e faz dele o objeto de um conhecimento. Esse objeto confunde-se com aquilo que ela diz - com o que ficticiamente se identifica o intérprete. Urna pessoa expõe-se nas palavras proferidas, nos versos que canta urna voz. Eu a recebo, eu adiro a esse discurso, ao mesmo tempo presença e saber. A obra performatizada é assim diálogo, mesmo se no mais das vezes um único participante tem a palavra: diálogo sem dominante nem dominado, livre troca. Antigamente, Chaytor viu na teoria medieval dos "estilos" (genera dieendi) o cuidado de estabelecer e manter (em regime de oralidade segunda) as justas relações entre poeta, texto e público. 1 Desde que exceda alguns instantes, a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel silencioso. Eis por que o verbo poético exige o calor do contato; e os dons de sociabilidade, a afetividade que se espalha, o talento de fazer rir ou de emocionar e até um certo pitoresco pessoal foram parte de uma arte e firmaram mais de uma reputação - não são essas as virtudes que tantos homens da Igreja denunciaram como vício de histriões? Mas também porque o ouvinte-espectador é, de algum modo, co-autor da obra: recentemente R. W. Hanning afirmava isso, com razão, a propósito tanto dos romances franceses do século XII quanto dos poemas de Chaucer.
O texto muitas vezes integra as marcas lingüísticas desse diálogo criador e testemunha indiretamente a intenção que aí preside. Já mostrei em duas retomadas as intervenções do autor e assinalei brevemente, a propósito do Éracle, o interesse daqueles que comportam ou um vós, ou um seu equivalente (corno urna apóstrofe), ou urna seqüência eu vos ... Vou então falar da intervenção dialógiea. A fórmula tem mais energia fática quando apresenta um pedido, urna ordem ou um apelo à ação; por vezes, ela se cristaliza na forma de um clichê: é o caso de vos agrada?,fazei silêncios, com suas variantes, corno, por exemplo, um pedido de dinheiro. Desde 1936, Ruth Crosby chamava a atenção para o interesse documental desses clichês, e, a despeito das restrições ainda recentemente expressas, não se pode deixar de lhe dar razão. Os exemplos são numerosos em todas as línguas e nos gêneros poéticos mais diversos. P. Gallais evidenciou-os de modo sistemático em mais de trezentas obras narrativas e didáticas francesas dos séculos XII e XIII: é assim que a interpelação Seigneurs! seguida de um verbo na segunda pessoa do plural figura, segundo ele, em 40% das canções de gesta, 30070dos romances, 25070das narrativas hagiográficas, 20070dos textos didáticos e 14070 dosfabliaux, entre 1120 e 1250; o apelo Oiezl e suas variantes, em 83070dos textos examinados? A antologia de Môlk assinala 52 ocorrências de intervenções dialógicas em 24 prólogos de canções de gesta; urna vintena em cerca de trinta exórdios romanescos. Examinei o Tristan de Béroul, que me ofereceu 63, ou seja, em média urna a cada setenta versos! A proporção é ligeiramente menor em Bilhart; um pouco maior nos Lais de Marie de France: uma intervenção a cada oitenta versos. Contos de origem oriental como os dos Sete Sábios, declamações edificantes, todos os gêneros não cantados têm igualmente que ver com isso. Fiz uma série de pesquisas, em seções escolhidas de modo aleatório, numa dezena de textos franceses, occitânicos, espanhóis e alemães: do Saint Léger do século X ao Fauvel do século XIV, passando por alguns jabliaux, pelos ramos I, II e IV do Renart, pela Chanson de Ia Croisade des Albigeois, pelo Cid e pelo Herzog Ernst - acrescentando, a título de comparação, um levantamento de todas as intervenções que balizam o Tristan de Thomas e o Poema de Fernán González. Recolhi 152 intervenções dialógicas, igualmente distribuídas entre os textos-testemunhas: _ 41 nós (com ou sem eu), referindo-se conjuntamente ao intérprete e a seu auditório; _ 29 interpelações do tipo Senhores! ou gente boa; _ 28 direcionamentos a vós; _ 28 fórmulas do tipo silêncio!; _ 26 fórmulas do tipo ouvi!
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Em Thomas, algumas dessas intervenções constituem um comentário do próprio texto pelo autor: as mais longas atingem cinqüenta e 72 versos; destacam-se passagens semelhantes em Wolfram von Eschenbach." Tal constância na prática dessas intervenções não pode ser desprovida de significação. M. Scholz conferiu um lugar central ao problema que elas lhe trazem. Procurando, por princípio, provar seu caráter fictício, ele se deixa levar pelas águas de uma interpretação modernizante que não faz justiça ao contexto histórico. É verdade, como ele sugere, que eu designa um narrador intratextual e constitui um dos "papéis" do relato; também é verdade que a única questão pertinente, nesse nível, é: "Quem narra?". Mas a questão da vocalidade coloca-se em outro nível, exigindo que se quebre o círculo da intratextualidade.tO relacionamento sintático de um eu e de um vós (mesmo se este por vezes não se manifesta lexicalmente).transfere o conjunto do discurso para o registro das trocas interpessoais. Além disso, o que se sabe dos modos de comu. nicação predominantes na sociedade medieval não permite tomar como puramente retórico esse efeito. Certamente, uma frase como a que surgiu nos vv. 14-5 de Guigemar("eu creio que eles ficaram aí um mês inteiro", nota o autor com a maior naturalidade!), ou outra semelhante citaríamos centenas delas -, integra-se no sistema do texto e pode ser analisada como tal; não deixa de referir-se a uma situação que permanece irredutível apenas ao texto que ela abarca, apóia e ultrapassa. Para além ou aquém de um "papel", o referente próprio desse ~u é aqui uma voz. Talvez em certos casos essa voz seja fictícia, e a referência seja convencional; mas não se poderia, sem anacronismo, fazer retroceder a proposição e admitir com Scholz que, se houve por vezes coincidência entre o texto e a situação, foi por causa de um acaso que não nos concerne. A propósito disso, não posso deixar de remeter às observações que J. Rychner publicou anteriormente sobre o Renart. Interpelar o auditório , umadas,Egras do j,QgM-a_p.ert-ºrmance. N. Van den Boogaard interrogava-se, em 1982, sobre os motivos que impeliram os copistas a reproduzir essas intervenções nos textos que registravam; ele fareja aí uma intenção pedagógica, uma vez que o manuscrito destinava-se a um aprendiz recitante, ao qual se ensinavam assim o momento, o lugar e a maneira de advertir, em performance, o público.' Por vezes, tentou-se relacionar as diversas fórmulas de intervenção dialógica a um tópico tradicional de certa poesia latina posterior ao século v: Advertite, omnes populi ... , Carmen audite ("Prestai atenção, povo ...", "Escutai meu canto ...") e outras do mesmo jaez. Na melhor das hipóteses, essa similitude aproximativa testemunharia condições comuns de performance.
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Na maioria das vezes, a intervenção articula-se sobre um verbo que denota a audição, audire, ou ir, escouter, hõren, de preferência no imperativo, às vezes no condicional. Conhece-se o sucesso em francês da primeira dessas fórmulas, o Oyezl dos arautos e anunciadores, já bem integrada aos costumes quando, no século XII, os romancistas apropriam-se dela, com alguma preferência, é verdade, por escouter e entendre (em alemão, vernemen ou merken), menos univocamente corporais do que ouir ou hõren. Por vezes, o futuro substitui o imperativo: Encore orrés canchon ... ("Ireis ouvir ainda uma canção ..."), assegura o cantor da Chevalerie Ogier, entoando no v. 11 158 (!) do poema sua estrofe contra os jograis incompetentes. Menos fortemente demarcado, esse futuro na segunda pessoa serve - em alternância comje dirai ou conterai, referentes ao locutor - para constituir as fórmulas anunciatórias que surgem no fio da narrativa: Vous entendrez bientôt parler de... ("Logo ouvireis falar de..."). Os exemplos desse procedimento são abundantes, em todas as línguas e nos gêneros narrativos mais complexos, até o século XIV: ainda em Gower ou Boccaccio. Um vous avez oui pode fazer-lhe par, concluindo um episódio. Um vocativo, intimando um auditório, reforça em geral a interpelação - motivo conveniente à intenção do texto e às circunstâncias: Herkneth to me, gode men.J wiues, maidnes and alie men ("Escutai-me, gente de bem, mulheres, moças e vós 6todos"), exclama, em composição cumulativa, o recitante do Havelock. Scholz conclui seu estudo das intervenções dialógicas afirmando que o "ouvinte fictício" (Horerfiktion) constitui um fator essencial do funcionamento da arte literária medieval! Não vejo como levar mais longe o argumento. Eis aqui o ponto em que um piparote o faz tremer nas bases: não é para reconhecer, na própria negação, a onipresença da voz? A intervenção do autor não apenas suscita no discurso dois papéis distintos mas também traz um suplemento de informação extratextual que só faz sentido em relação a uma prática. Quaisquer que sejam as modalidades desta, qualquer que seja a distância (no espaço, no tempo, na memória) da qual consideremos essa prática, não se pode recusá-Ia pura e simplesmente. De resto, o aspecto formular das intervenções não importa sozinho: sua distribuição fornece ensinamentos não negligenciáveis, porque dizem respeito à função dramática. Crosby observava, numa vintena de obras francesas e inglesas dos séculos XI!, XII! e XIV, que a colocação de faites paix! ou fórmulas semelhantes parece marcar subdivisões correspondentes a sucessivas performances necessárias à transmissão de poemas longos.' Necessidade estilística resultante de condições de performance, como parece atestar o v. 11do Girat de Roussillon, poema de 10 mil decassílabos: Si Ia vos enc a dire non fraudrei
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hui ("Se eu começasse a vos dizer [esta canção], não terminaria hoje,,).8 Em contrapartida, no Couronnement Louis, que comporta apenas 2700 versos, o cantor promete a seus ouvintes, no curso do primeiro episódio, v. 313, não retê-los até a noite - afirmação repetida em duas passagens, no meio do relato (vv. 1377 e 1383), na junção de duas ações principais, a libertação de Roma e a revolta de Ascelin. Huon de Bordeaux ilustra de outra maneira ainda a diversidade de suas situações: a meio caminho desse relato, nos vv. 4976-91, o cantor interrompe-se e dirige-se a seu público: Senhores, diz ele basicamente, estais vendo que ~nQite cai e que ~-.QlllS.O""'yoJtlli amanhã mais cedo, e agora vamos ~r, porque tenho sede e estou feliz c!e ver aproximar-se a noite. Tenho pressa de vol taLParéLCaSa;Jllas-que..nenbllllLde_v:Ós_soe...esque.ç.a_d_e_ me trazer amanhã uma.Jlli).f:dinha amarrada no pano da camisa ... A estrofe que segue reata o fio da história. Mas a última injunção da noite terá trazido frutos? Nos vv. 5512-19, há uma interrupção irritada, intimando os ouvintes a meter a mãQJla bõisa "p.ara..dar à minha mulher' , °a.Qual, imagina-se, faz a coleta). J. LDuggan refutou as interpretações "ficcionaís" dessa dupla passagem.9 Acontece de o auditório, tomado à parte em terceira pessoa, ser citado como uma testemunha da situação de diálogo. Assim é nos vv. 30-1 do Tristant de Eilhart: Syd mir ze sagen geschichtl lütten die man hie sicht ("Pois que eu tenho a contar uma história às pessoas que aqui se vêem"). Assim é, engraçadamente, em certo "sermão alegre": Un varlet avoit, fin gallant Comme seroit ce bon prophete que je voy si bien escoutant ...
("Era uma vez um jovem, galante e cortês como este bom profeta que eu vejo escutar tão atentamente"). 10 Mesmo se o profeta em questão é uma estátua de capitel da igreja, ele não deixa de fazer parte do grupo ao qual o texto se dirige. oFora desse grupo, o sentido esvai-se: texto é texto para aqueles que o esperam e, de certo modo, dele têm necessída, ~ara designar a diferença que separa um fabliau de um romance, é preciso recorrer a um vocabulário descritivo, impessoalizado. Para os ouvintes dos séculos XII e XIII, essa diferença realçava, sem dúvida, principalmente as modalidades da performance, e portanto o investimento afetivo operado na recepção. Por volta de 1230, o compilador da Histoire ancienne irrita-se com uma cena, dificilmente tolerável para ele, do Roman de Thêbes, na qual se vê uma personagem, desprezando o decoro, apresentar-se a cavalo diante da mesa do rei; essa impressão importa de algum modo à nossa leitura; o editor do Roman têm razão 226
de mencioná-Ia em nota." Indícios de toda espécie multiplicam-se à medida que se avança na leitura dos textos. Não é de ontem que os medievalistas sentiram a necessidade de um estudo, preliminar ou simultâneo., do público receptor: entre os gerrnanistas, E. Schrôder e W. Fechter, já nos anos 20 e 30; K. Hanck, por volta de 1950; e por volta da mesma época, do lado dos romanistas, Auerbach. Este nos mostra como,-ªté cerca de 1100''''0..0 Ocidente nãn.conhecia nem camada social nem meio corres ondente a nossa idéia de" úblico cu fIva o ; m elizmente, passada essa data, Auerbach prende-se exclusivamente à história da formação de tal público. Em 1961, R. Lejeune interrogava-se sobre os destinatários da farsa de Pathelin. Em 1965, W. T. H. Jackson tentou uma primeira síntese." Os problemas relativos à recepção dos textos situam-se explicitamente ou não, na visada de estudos como, em 1970, o de A. Balduino sobre os cantari do século XIV e o de P. GaIlais sobre os romancistas franceses; em 1972, o de D. Poirion sobre as canções de gesta. Depois de alguns anos sob a influência, sem dúvida, .da Rezeptionsiisthetik [estética da recepção] alemã, multiplicaram-se as monografias: de A. Tessier em 1977 sobre o público das farsas francesas por volta de 1500; de N. Van den Boogaard em 1979 e 1982 sobre o dos fabliauxi" de H. Krauss em 1980 sobre o da epopéia franco-veneziana; de B. Schirock em 1982 sobre a recepção do Parzival de Wolfram von Eschenbach. Cito apenas alguns exemplos. O terreno está só parcialmente desbravado, e certos setores prometem resistir muito tempo aos desbravadores. Podemos lamentar que, no setor de documentação mais abundante, a poesia da corte, não tenhamos ainda para a França ou a Itália o equivalente do livro de J. Bumke sobre o "rnecenato" na Alemanha dos séculos XII e XIII. Uma obra imensa mas informe, a de R. Bezzola (publicada, volume a volume, entre 1944 e 1963), carrega os elementos disjuntos de tal estudo: em lugar de constituí-I o num todo, valoriza implicitamente o laço indissociável que une, durante o período em causa (500-1200), a função social do poema à de seus destinatários.
A tarefa que se impõe consistiria menos em descrever, desde o exterior e de maneira classificatória, o público de tal obra ou de tal gênero do que tentar apreendê-I o em ação, no seio do fenômeno global que constitui a recepção. Uma arte, tomando forma e vida social por meio da voz humana, só tem eficácia caso se estabeleça uma relação bastante estreita entre intérprete e auditório: aí está um dado fundamental, que 227
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se prende às estruturas da linguagem humana, como as descreve a tagmêmica de M. Pike; G. Kaiser asseverava isso em outros termos, unindo a idéia de poesia à existência de uma "comunidade de comunicação".14 Antigamente, Auerbach comentava um curioso texto de Pierre de Blois, no Liber de confessione, descrevendo em termos de comlLassiQ "simpatia") o efeito emotivo produ~ido no auditório pelo discurso do intér ret~. e arrisc.ando uma com aração entre aãUa1-çãoãe nariatIVãS: evangélicas e a de aventuras arturianas:15 uma e outra implicam comu!!l!!0 ~ sentimento e, de certa maneira, na ê.1fês quartos de seCüIõ mais tarde, no fim do vasto e sombrio conjunto romanesco do Jüngerer Titurel (por volta de 1270), o autor, Albrecht von Scharfenberg, dirige ao céu uma prece que o une a seu intérprete e a seu público na busca de uma bênção comum." Vincent de Beauvais, austero dominicano conservador, deixa escapar no Speculum historiale, XXIX, 108, uma surpreendente confidência, evocando o prazer que um dia ele sentiu com a leitura pública dos Vers de Ia mort de Hélinant de Froimont. A relação que liga todos os participantes da obra não é nem metafórica nem virtual. Ela é, em todas as ocasiões, real e literal; pode conduzir até a uma transferência de papéis: Scholz lembrava a existência, na Alemanha dos séculos XIII e XIV, de .um lugªr-coIQum intID_dutório_qu_e_esti, mulava a "ler ou cantar" QJexto proposto; um Daniel iídiche do século xv contém, estrofe 8, uma alusão ainda mais cIara:.4guele que sabe _c.?~q.lie~cante~Entenda-se bem: que os outros o leiam em voz alta, E-ÇiJ..le...é..cQI1firmadQP2LUffi& p~gt;p_l!!t~ Aqui, Q auditório não apenas é promovido a intérprete mas, pela escolha que'1fieê"aeixaua, participa plenamente da criação da obra. O intérprete - enquanto pre-enche seu papel e enquanto sua presença é fisicamente percebida _ significa.
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Significa da mesma maneira e na mesma medida radical que a testemunha ocular, porque também ocular, narrando uma história: o cruzado que retoma falando dos sarracenos e de seus deuses; mas também de autoridades, a nossos olhos fictícias, testemunhadas pelos contadores - o pseudo-Turpin que esteve presente em Roncesvales ou o pseudo-Darés que viu a tomada de Tróia e em cuja veracidade se fundamenta Benoit de Sainte-More! A aparição corporal do intérprete, do narrador, constitui um gesto inaugural que fixa as coordenadas de seu discurso, segundo as quais vão articular-se participantes, tempos e lugares, tanto de seu relato, se há um, quanto de sua performance. Outro espaço se abre; desperta uma espécie de consciência: eis-nos aqui imersos em poesia ou em verdade. Foi nesse sentido que o "grande canto cortês" pôde ser assimilado a um ritual de corte, como anteriormente o fez E. Kleínschmídi.
ouvinte-espectador espera, exige que o que ele vê lhe ensine algo mais do que simplesmente o que ele vê, revele-lhe uma parte escondida desse homem, das palavras, do mundo. Essa voz não é mais a mera voz que pronuncia: ela configura o inacessível; e cada uma de suas inflexões, de suas variações de tonalidade, de timbre, de altura - seria preciso forjar iU?alavra pedante vocema? - combina-se e encadeia-se como uma prosopopéia do vivido. Através dessa presença, o ouvinte descobre-se: age c reage no âmago de um mundo de imagens, subitamente autônomas, que se dirigem todas a ele. Boncompagno da Signa, na Rhetorica novelIa, mostra com admiração que para o joculator tudo é linguagem, da melodia do canto a seu modo de falar, aJ).eusgestos e até_a_s.u.avestimenta e aos objetos de que se faz cercar. Tudo tem sentido. Donde a importância, para os es-cn15as,das notações contrastantes que eles antepõem, por vezes, aos textos copiados, designando este ou aquele como chanson e outro como dit, em espanhol canción e decir. Donde, do mesmo modo talvez, vários dos apelidos ligados aos "jograis" célebres: o francês Simple d'amour; o austríaco Vreudenrich ("Rico de alegria"); o Schandenvyende ("Inimigo do medo") em Hamburgo, 1378; o Vogelsang ("Canto de pássaro") em Nôrdlingen, 1472... 18O apelido torna público o papel, e este desdobra o espaço de que vai apossar-se, renovado a cada vez, um corpo. Infelizmente, temos poucas descrições que evoquem alguma performance em particular; o bastante, porém, para deixar entrever, em perspectiva geral, o que deve ter sido a existência concreta dessa poesia. O material, muito disperso, exige mais um agrupamento do que uma síntese; menos uma teorização do que um acúmulo de observações precisas, relativas a uma infinidade de situações particulares. É assim que, entre os 289 documentos (do século IX ao fim do século XIII) reunidos por Faral no apêndice de seu Jongleurs, eu destaco: - 44 que fornecem alguma informação sobre o tempo, o lugar e a ocasião da performance; - 43 (já mencionados) sobre a qualidade da voz do intérprete; - quarenta sobre o acompanhamento instrumental; - 22 sobre o auditório; - 22 sobre a gestualidade ou o acompanhamento coreográfico; - e dezessete sobre a vestimenta e os acessórios do intérprete. No total, 114 desses textos, ou seja, 40070, lançam alguma luz (geralmente fugaz) sobre um dos aspectos da ação que nos importa aqui. Num setor muito mais limitado, o estudo de P. Gallais destaca que 225 das 370 obras examinadas, 60%) contêm as provas internas e explícitas do 19 de que eles foram transmitidos por leitura, em voz a a, TIlnte=ae=-auditórios de densidade muito diversa. Numa perspectiva diferente (e mui-
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to estreita, porque se baseia no exame da versificação em francês e em occitânico), W. Paden propunha recentemente uma tipologia dos "modos de performance";" distinguia três que considerava as formas manifestas tomadas pela língua vulgar no momento em que, na grande onda cultural posterior a 1100, ela gerou um discurso poético. Concepção gerativa seguramente justa, mas num nível de abstração elevado demais, porque termina por identificar os "modos de performance" com os "gêneros" tradicionalmente reconhecidos: epopéia, poesia lírica e romance, o que não nos faz avançar. Remontam a meados do século IX muitas das raras descrições, completas ou virtualmente totalizantes, que nos chegaram de performances poéticas. Sua data não nos permite qualificá-Ias de arcaísmo: mais de um traço, pode-se supor, manteve-se por muito tempo nos costumes. Trata-se, em geral, de condenações clericais, cujos autores, fulminando estas mundanalidades, saem à caça de seus menores signos exteriores. Tais cóleras sagradas valem-nos uma série de pequenas pinturas que evocam canções de amor, de elogio ou de deploração em língua vulgar, acompanhadas de danças ou de rodas executadas por coros de mulheres, com ou sem resposta do auditório, no domingo ou nos feriados, nas praças, nas encruzilhadas dos caminhos, às vezes nas residências ... 20 Thegan, padre de Trier, autor, mais ou menos em 840, de uma Vida de Luís, o Piedoso, descreveu a indiferença de que dava prova esse devoto imperador ("ele não descerrava os lábios") quando, nos banquetes de grandes solenidades, uma trupe de mimos, jograis, contadores de histórias e músicos aproximava-se de sua mesa para tentar fazê-lo rir, em meio às gargalhadas da multidão ... 21 Por mais embaralhada que seja, e embora se trate mais de catálogo do que de descrição, a cena das núpcias de Flamenca, no romance de mesmo nome, em meados do século XIII, evoca um alvoroço semelhante e a mesma explosão de verbos e de gestos: um diz, o outro canta, um conta, o outro modula; se um se acompanha de um instrumento, o outro não - todos pelo prazer auditivo da nobre reunião, empurrando-se em direção a quem se fizer melhor ouvir. Um século e meio mais tarde, Froissart, no Di! dou florin, evocará a atmosfera agradável e quente das noitadas do castelo de Ortez, onde, à proporção de sete folhas por sessão, lia ao conde de Foix seu Méliador e interrompiase para beber numa taça de ouro o resto de vinho de seu anfitrião, no momento em que este ia deitar-se: agradável trabalho, finalmente remunerado com oitenta florins!" Os trinta primeiros versos do Tristant de Eilhart evocam comvivacidade o auditório diante do qual se apresenta o intérprete e suas reações 230
recíprocas: num, mistura de humildade e de autoconfiança, convicção da dignidade da função que ele preenche e do valor daquilo que ele conta; entre os ouvintes, sentados ou não, conversadores, facilmente impacientes, aqueles que à primeira impressão de aborrecimento saem da sala com barulho; o mesmo quadro, munido de julgamentos vigorosos, está no começo da Manekine de Philippe de Beaumanoir, por volta de 1280.23 Em duas passagens, o longo prólogo de Doon de Nanteuil, vv. 1-18,depois 83-117, evoca por pequenos toques sucessivos, de modo evidente, sua própria execução. Um cantor de gesta, bastante esfarrapado, trazendo sua viela, atravessa uma multidão em que se distinguem burgueses, clérigos, cavaleiros - ao ar livre aparentemente, uma vez que ele conserva seu mantel. Ei-lo que se detém e começa. Escuta-se sua primeira estrofe: se a impressão é boa, pede-se a seqüência; senão, ao pobrediabo só resta tomar a estrada. Seu único capital é o repertório agradável (que talvez ele tenha surrupiado, em parte, de um colega mais bem provido) e uma voz clara para divulgá-lo. Aficionados, se ele agradou, louvam-lhe a sabedoria e o talento, comparam-no a outros cantores, vivos ou mortos, e, para concluir, fazem o peditório em sua intenção. 24 Um estudo recente de Anne Triaud esboçava, a propósito do Girart de Roussillon, uma tipologia do prólogo de canções de gesta. Vocabulário e temática desse trecho exaltado só tomam sentido na perspectiva de uma performance, no espaço real do jogo em que se desenrola o discurso: um apelo ao público introduz o elogio da canção e do intérprete e o descrédito dos concorrentes, enquanto são proclamadas a autenticidade e veracidade do relato. No Girart, as três estrofes consagradas a esses desenvolvimentos são representativas: os elementos encontram-se na maior parte das canções do século XII e do começo do século XIII. Depois de 1250 ainda, essas "enrolações" não desapareceram totalmente dos textos recolhidos nos manuscritos cíclicos da Gesta de Guillaume _ as razões "estilísticas" não bastariam para justificar tal permanência. Dir-se-ia que se trata de uma série de clichês: um tema literário, sem valor descritivo. Quem sabe? Pode-se admitir que, nas civilizações de duradouras e fortes tradições, a distância entre tema literário e experiência vivida é (a não ser que o primeiro não remonte a uma alta antigüidade) menos considerável que nossas culturas da moda. O texto dos séculos XII e XIII propõe (na falta de uma visão fotográfica dos fatos) aquilo que eu denominaria uma ordem de imagem, tal como se diz uma "ordem de grandeza". Certamente, o pouco que assim apreendemos nos remete a um gênero, enquanto o objeto final de nosso estudo é um texto. Pelo menos a interpretação da obra de que este fez parte encontra-se orientada para certo setor do imaginário. A anedota referida (e talvez
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narrativamente fantasista) não pode absolutamente comportar os efeitos do real capazes de lançar a operação de imaginação critica _ operação que, por sua vez, vai condicionar o trabalho filológico. Este vai integrar o resultado, ainda que seja apenas como fator de indecisão, isto é (do ponto de vista de uma obra submersa nesse passado profundo), como fator de liberdade. É assim que se podem justificar (se as cercamos de bastante prudência) comparações como as que nos propuseram diversos medievalistas japoneses, como H. Yamashita, entre o modo de declamação do haicai ainda em nossos dias e o do Roland; ou Opland, entre a arte dos skops anglo-saxônicos e a dos cantores bantos; ou a que eu próprio gostaria de estabelecer entre o que deve ter sido a interpretação dos fabliaux e o que é o rakugo do Japão. As mesmas considerações legitimam certas conjeturas, reconstituindo, à luz de diversas probabilidades, as condições vividas da comunicação de um texto: quando uma informação muito ampla e um julgamento muito motivado as mantêm, elas nos aJl[QXimalll...lllais_daJealidade de um objeto de qne.não., ~p-oderá jamais fazer uma análise exclusivamente "literária". Citarei como exemplo a evocação feita por A. Pulega da performance da canção El so que pus m'agensa do trovador Raimbaut de Vaqueyrasr" o texto, acompanhado de rabeca, cantado por um ou muitos jograis, teria sido dançado pelos próprios senhores que aí são sucessivamente nomeados e por mimos que os imitavam. Outro exemplo é a descrição por N. Van den Boogaard das performances de Renart le Nouvel entre 1288 e 1292: um declamador pronunciava o texto, interrompendo-se de tempos em tempos para deixar a palavra a cantores dos dois sexos ou a atores disfarçados de animais, de modo que o romance de Jacquemart Gielée tinha a função de um libreto, nessa representação prolongada por várias sessões." Se por vezes elas parecem confirmar o testemunho dos textos, as representações figuradas são, no entanto, de pouca utilidade, e a parte das convenções estilísticas fica difícil de delimitar, G. le Vot assinala a ambigüidade de uma miniatura interpretadá por certos musicólogos como a figuração de uma performance de uma Espístolafarsesca, em conseqüência de uma aproximação temerária com dois textos do século XII que prescreviam em Paris e Soissons o número de cantores dessas farsas litúrgicas e a natureza de sua vestimenta. Diversas xilogravuras dos séculos xv, XVI e XVII, mais raramente obras picturais posteriores a 1450, foram exploradas por historiadores do teatro como H. Rey-Flaud ou da cultura popular como P. Burke e dão alguma idéia de performances tardias, fortemente dramatizadas. Mas, para a época antiga, os-documentos são ainda mais raros. o. Sayce dedicou-se a um exame de 137
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magníficas pinturas de página inteira que ilustram o cancioneiro de Heidelberg, ou Codex Manasse, uma das principais antologias de Minnesãnger; uma comparação com os 25 retratos do cancioneiro de Weingarten permite-lhe construir sua análise." Daí resulta a probabilidade de que várias dessas imagens estilizem uma cena de performance, mas reduzindo-a a seus elementos essenciais: sempre o intérprete; geralmente o destinatário da canção, senhor feudal, dama, por vezes um casal; em muitas passagens a proximidade e o calor da presença são figurados por uma cena de conversação entre as personagens, sentadas lado a lado ou em pé cara a cara; o aspecto dramático, por uma alegoria - a pequena deusa, archote e dardo na mão, sobre o brasão de Ulrich von Lichtenstein :-; a coroa de flores de que vai ser ornado Kraft von Toggenburg. Excepcionalmente - por exemplo, a propósito de Frauenlob -, a ação é representada em seu desenrolar: o cantor, sobre um estrado, domina sete instrumentistas, que ele parece dirigir com sua batuta, enquanto a mão direita aponta um retrato de mulher para o qual se voltam os olhares de três espectadores ricamente vestidos. Gottfried von Strassburg, ele próprio, aparece sentado em meio a cinco ouvintes que manifestam com o braço seu interesse (ou estão marcando a cadência?), enquanto o poeta segura com a mão direita tabuinhas (que ele não olha) e com a esquerda marca o compasso. Reinmar, o Velho, lê um volumen desenrolado por uma dama que está sentada ao lado dele e que parece marcar o compasso com uma das mãos. Apesar do pouco de precisão informativa, essas pinturas, aliás admiráveis, testemunham a diversidade de situações possíveis na performance de uma mesma arte.
A propósito disso, as informações mais preciosas que poderíamos colher nos textos são aquelas por onde se revela um detalhe, por vezes ínfimo, mas que atesta o engajamento, na obra, tanto do corpo dos participantes quanto da convenção social que os une nessa ocasião: o sorriso de uma dama a quem agrada um voltei o de estilo de uma canção de Ulrich von Lichtenstein. Do mesmo modo, em muitas canções de gesta, vidas de santos, fabliaux, temos os apelos ao público, pedindo-lhe que avance um passo, pare um instante: nada designa a multidão, mas percebemos sua presença, imóvel, hesitante ou, ainda, caminhando pe.Ias ruas." Certas técnicas menores e truques de ofício não são menos reveladores. Assim, há o uso de fórmulas destinadas a ritmar a duração íe longas recitações: em francês, as constituídas com a ajuda do verbo commencer ("eu começarei", "aqui começa" e outras semelhantes), que servem para fechar o prólogo ou para introduzir um novo episódio e
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bem parecem significar "dizer em performance". Freqüentes nas canções de gesta, essas fórmulas encontram-se em um terço dos romances esmiuçados por P. Gallais. O Cid utiliza da mesma forma comezar e acabar. Em vários trechos, o padre Konrad recorta seu Rolantsliet pelo verso-refrão nu horen wir diu buoch sagen ("ouvimos agora o livro dizer...") ou suas variantes. Vários estudiosos interpretaram como um traço de performance o misterioso AOI que pontua certas estrofes do Roland no manuscrito de Oxford - tendo visto aí ou uma indicação melódica, como G. Reese, J. Chailley e outros, ou, curiosamente, como E. Place ou D. Brenes, um sinal que indica as partes a suprimir durante uma performance breve." Igualmente, as fórmulas de prece, invocação da clemência divina, no fim de textos narrativos, aliás sem caráter devoto: é assim no Cid, no Moniage Guillaume ou no Doon de Maience; nas obras de tema religioso, a fórmula convida a recitar um Pater ou uma Ave, a dizer Amen, todos juntos, ou a cantar o Te Deum. Por vezes, trata-se de uma bufoneria, pertencente ao arsenal brincalhão dos jograis: o "vamos beber!" pelo qual terminam muitos textos ou partes de textos. Huon de Bordeaux corta o relato pelo meio: Vaus revenés demain aprês disner et s'alons boire, car je I'ai desiré
("Voltem amanhã à noite [para ouvir a seqüência] e vamos beber, porque eu estou com bastante vontade'tj." Também há bufoneria, mas por vezes de dar dó, no pedido de dinheiro: do autor do Chevalier au cygne, de Rutebeuf implorando ao "franco rei da França", e de tanto outros, tema explícito ou dissimulado que vai subsistir na tradição poética até o século XVIIJ .•. Modo de falar? Duzentos versos antes do fim da canção de Gui de Bourgogne, o cantor interrompe-se para declarar: Qui ar voldra chançon otr et escouter si voist isnelement sa bourse deffermer, qu'i! est huimés bien temps qu'i! me doie donet:
("Oue aquele que Quer ouvir bem minha canção apresse-se em abrir sua boíSa, porque é hora de me pagar").passagem que, nesse pon1oCk) poema, seria absurda fora da perfo~mance!31 Certos escribas, por meio de rubricas, sugerem de que modo o texto que eles copiam deve ou pode ser executado. Assim, o manuscrito único (e medíocre) do Aucassin et Nicolette divide regularmente, por um ordi"ent(' 'agora se diz' ') ~um or se cante Qgora se canta' '), as partes de nrosa e de verso, estas Últimas, de resto, sobrepostas Dor u;-ã nota ção musical. A situação de performance é aí menos clara do que parece. 234
I~preciso supor dois intérpretes, ou um só, alternadamente narrador e cantor? Por vezes, qualquer outra declaração que escapa do texto esclarece as circunstâncias, ainda que pouco. Os vv. 31-2 da velha Chanson de Sainte Foy convidaram Alfaric a supor que essa obra exigia o salmodiar de muitos cantores. A colaboração de dois ou vários parceiros parece assegurada em certos casos, como aquele ao qual faz talvez alusão o equívoco v. 606 de Flamenca: l'uz diz los motz e l'autre eis nota ("um diz as palavras e o outro a música", ou: "e o outro as acompanha no instrumento"). Entre os germanistas que se questionaram sobre as narrativas romanescas em estrofes de versos curtos (o equivalente do octossílabo narrativo francês), S. Gutenbrunner, em 1956, descobria no Parzival de Wolfram von Eschenbach e no Iwein de Hartmann von Aue os indícios de uma performance com papéis diversificados, implicando uma pluralidade de leitores-recitantes: três, no Iwein, figurando um arauto, o poeta e um animador. Faral, por sua vez, a partir de 1922, a propósito do Courtois d'Arras, admitia inversamente que um jogral, por seus jogos vocais, podia encarnar várias personagens e, assim, dialogar consigo próprio. G. Cohen retomava essa idéia, a propósito das "comédias latinas" do século XII: só o elitismo estreito e a auto-suficiência das dramaturgias clássicas apagaram, com desprezo, da memória letrada e, até recentemente, de nossa consciência cultural, a própria idéia de
uma arte assim. Outra questão: qual foi o modo de performance dos numerosíssimos textos narrativos ou didáticos, em verso ou em prosa, nos quais se inserem peças líricas, segundo a moda que durou dois séculos a partir de 1200? O exemplo do Aucassin levaria a pensar que a peça intercalada, canção, rondó, lai, inteira ou fragmentada, constituiria um entreato cantado (talvez acompanhado de um instrumento) da recitação ou da leitura. Certas obras francesas do período 1250-1350, tais como Tristan em prosa (guarnecido de 26 fragmentos que totalizam perto de 1200 versos) e sobretudo o Fauvel, jogam sistematicamente com esse duplo registro. Fauvel, romance alegórico e violentamente satírico terminado em 1314por Gervais de Bus, foi reeditado dois anos mais tarde pelo músico Chaillou de Pestaing, que o intercalou com cerca de 150 trechos líricos, em francês ou em latim, alguns contando com vinte, trinta e até cinqüenta versos, que constituem uma espécie de antologia poética anticonformista. Um dos doze manuscritos que possuímos fornece 130 notações musicais, cuja presença levanta toda espécie de dúvida sobre o modo de performance.Y Froíssart ainda, no fim do século XIV, guarneceu seu Méliador com 79 rondós, virelais e baladas outrora compostas pelo duque Venceslau de Luxemburgo, seu amigo e protetor; isso só 235
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pode representar a intenção de fazer o intérprete cantá-los ou, pelo menos, destacá-los em tom especial. Na França, na Inglaterra, pregadores inserem também - como mostrei acima - em seus sermões versos, quadros, estrofes de canções conhecidas, cuja interpretação alegórica ilustra-lhes o tema; não os cantarolavam pelo menos no púlpito? Paradoxalmente, estamos quase mais bem informados sobre a performance predical do que sobre qualquer outra. Na alta Idade Média, a homilética foi, para a Igreja e para os poderes aos quais ela se associava, o principal meio de manipulação ideológica - donde a insistência dos concílios, ãõSéculo VI ao IX, na obril; gação de os padres e os diáconos não apenas pregarem, mas fazeremno de tal maneira que se pudesse atingir o conjunto do povo cristão. Pouco a pouco - justamente desde o século IX -, a poesia tornou-se apta a fornecer à prédica, em sua alta função social, uma contribuição; logo estava em condições de substituí-Ia. No essencial, as técnicas próprias para assegurar esse domínio já estavam constituídas. Desde sua aparição, na Espanha, na França, na Itália meridional, entre o século X e o XII, as formas dramatizadas da liturgia (que se supôs, sem razão, fossem de origem bizantina) mal se distinguiam, no espírito público, dos sermões propriamente ditos." A história da Coena Cypriani, lembrada por Bakhtine, ilustra em outro registro essas interferências; o texto, anterior ao século VIII, homilia paródica (ela enumera as bebedeiras cI='" tadas na Bíblia!), foi inserido por um-falsário nas obras de s. Cipriano; esquecido, depois redescoberto por volta de 850 por Rabano Mauro, este o adaptou num opúsculo para o divertimento do rei Lotário, a quem ele o dedicou; recitado quando de um banquete na corte de Carlos, o Calvo, foi um sucesso, provocando muito riso. Um diácono romano, 25 anos mais tarde, tirou daí um diálogo cômico, destinado a ser representado por ocasião da festa escolar da Páscoa." Mesmo a pregação "séria" recorre ao cômico, ao grotesco; certa jwfoneria mistura-se aí à expressão da fé. O sermão é a exioÍção de um ator que executa um drama popular: P. Burke mostrou a vitalidade de tal concepção até pleno século XVr.35 As pessoas austeras, no século XII, inquietaram-se; Aethelred of Rievaulx, Hugues de Saint-Victor, Alain de Lille advertem contra uma pregação theatralis et mimica, que visa à diversão mais que à salvação." Depois de 1200, os monges mendicantes sistematizaram-na e habitualmente a representavam em seus sermões, recorrendo às mesmas fórmulas de interpelação do público usadas pelos cantores de gesta e narradores defabliaux. A pregação conheceu aí um impulso, para a época, revolucionário em todo o Ocidente. Uma doutrina franciscana dessa arte (que Roger Bacon expõe no Opus majus) 236
acentua o uso dos meios irracionais de persuasão, tudo o que inquieta, perturba, emociona, inclusive o acompanhamento musical. 37 A partir de 1200-50, pululam as artes praedicandi, que (sob pretextos retóricos) visam a promover uma língua ritmicamente organizada, com o fim de produzir um efeito persuasivo - isto é, no essencial e na perspectiva dos séculos XII e XIII, uma língua poética ... Na base da pronunciatio predical, Robert de Basevorn, em sua Forma praedicandi, no século XIV, não hesita em colocar um color rythmicus, que se juntará ao color rhetoricus num "esplendor único"." Humbert de Romans, em sua Ars, por volta de 1250, consciente da eficácia do gesto, aprova e recomenda essa dramatização.jg impressão que o sermão deve causar passa pelo corpo do pregador, cuja arte faz-se assim à base de música e de arte jogralesca 39 Até o século XVII na Inglaterra, em certas regiõ-;;sd; Hert~ fordshire ainda no século XIX, segundo P. Burke, cantarolavam-se os ~.rmõE.pNos séculos XIV e xv, o sermão integra às vezes uma açao dramática complexa: o pregador interrompe-se, atores intervêm, uma máquina faz surgir um anjo ou um demônio. Lecoy de Ia Marche, antigamente, comparou, para o século XIII, testemunhos referentes ao desenrolar dos sermões: ele evocava as reações barulhentas do público, as interrupções, os aplausos, as coqueterias de gente mundana acompanhada de pajens portadores de almofadas, não menos que as flutuações do favor popular: vão distrair-se ouvindo um, enquanto fogem de um enfadonho." Se insistimos, por causa de um hábito crítico contestável, em falar de "teatro" medieval, é preciso incluir a pregação naquilo que assim se designa. Mas a noção que se usa implica uma delimitação que, até pelo menos o meio do século XVI, todos os fatos conhecidos desmentem. E mais: do ponto de vista pragmático, poder-se-ia constituir uma classe à parte dos textos providos, nos manuscritos,_de didascálias concernentes ora a um décor ou à modalidade de apresentaç.ãQ,_pra aos nomes e à alternância das personagens, ora a uma coisa e outra. O texto mais antigo dessa espécie que temos, o tropo de Páscoa Quem quaeretis, provavelmente de Fleury, nos meados do século x, foi-nos conservado na forma de uma série de frases imperativas, indicando o tempo e a ocasião dessa performance, o número e o traje dos intérpretes, o lugar em que deviam manter-se e a direção de seus movimentos; as palavras do diálogo inserem-se entre essas prescrições, como se, do ponto de vista de um mestre-de-cerimônias, ficassem subordinadas à ação. No século seguinte, vários textos sucessivos estabelecidos (na Itália, na Alemanha, na França) da Visitatio sepulcri são providos de indicações do mesmo gênero, mais e mais explícitas. 41 Essa tradição clerical prosse237
gue no século XII: as rubricas da Suscita tio Lazari de Hilário e dos diálogos latinos conservados no manuscrito dito de Fleury (Orléans 201), as do Ordo pascalis de Klosterneuburg ou do, bilíngüe, de Origny-SainteBenoite, assim como a do Jeu d'Adam francês, fornecem diretivas que implicam uma" mise-en-scêne" que faz do texto o suporte da ação produtora de sentido. Mas isso está longe de ser a regra geral. O manuscrito do Garçon et l'aveugle, diálogo do qual se quis fazer o ancestral das farsas do século xv, por falta de outra rubrica, põe antes de cada réplica o nome do locutor; o mesmo se dá com três dos cinco manuscritos do Babio latino. O belo Jeu de saint Nicolas de Jean Bodel não tem nenhuma outra indicação; mas é precedido de um prológo, colocado na boca de um "pregador" e que começa e termina por duas fórmulas de cantor de gesta: Oyez; oyez, seigneurs et dames e faites paix! Nada, em contrapartida (apenas semelhanças textuais entregues a nossa apreciação), esclarece-nos sobre as modalidades performanciais de dezenas de textos rotulados de "mimos", "monólogos" ou "diálogos dramáticos". Somente uma visão anacronicamente modernista justifica tais distinções - pelo menos para a época antiga, pois, no século xv, J.-Cl. Aubailly o demonstrou," a situação muda, e uma especialização já teatral, no sentido que damos a essa palavra, afeta vastas zonas do discurso poético. Antes dessa época tardia".uenhuma fronteira é segura nem, sem dúvida, legítima: opor, como se faz muitas vezes, ainda seguindõ _Faral, fabliau a mimo só.faz.sentido numa ótica "Iiterária",_em...que_o __ fabliau aparece como simples obra de escritura - redução hoje insus~l. Nada é menos seguro ao que âizer que certãSfoiãtas CÔmica~ do discurso, fanfarronadas ou ditos licenciosos, prestem-se melhor do que outras aos efeitos mímicas; por que, então, isolar como um gênero à parte os "monólogos cômicos", os sermões alegres e outras paródias? Depois do século IX, a história poética do Ocidente adorna-se de textos latinos e vulgares (desta ou daquela écloga de Walafrid Strabo aos laudiitalianos ou ao Herbst und Mai alemão) a propósito dos quais um ou outro de nossos medievalistas colocou a questão: não seria um mimo? Pergunto isso de todo texto poético entre os séculos IX e xv; mas, de saída, admito que a resposta será sim. Na obra tão rica e diversa de um Rutebeuf, eu me recusaria a imaginar que o modo de performance dos poemas sobre a universidade fosse radicalmente diferente daquele do Dit de l'herberie ... do qual há meio século meu camarada Moussah Abadie, aluno de Copeau, encenava um patético espetáculo solo. À medida que se avança no tempo e se penetra, a partir do século XI V, na pré-história difusa do teatro moderno, os textos que nos parecem mais representativos desse ponto de vista não são mais bem pro238
vidas, nem por seus autores nem por seus copistas, de indicações performanciais: são assim farsas das quais tudo o que sabemos, no melhor dos casos, é a que repertório de confraria elas pertenciam. As técnicas de performance não oferecem problema, sendo fundamentalmente idênticas na prática a todos os gêneros de poesia. Fica uma dificuldade de outra ordem: muitos dos textos, principalmente dialogados (e preguiçosamente catalogados como "teatro"), contêm passagens narrativas. É assim com a maior parte das "comédias latinas" do século XII, do Courtois d'Arras, que, transpondo para diálogo a Parábola do Filho Pródigo, introduziu em três passagens, vv. 91-5, 102 e 147-9, elos narrativos que formam a transição de uma "cena" a outra. Também acontece a mesma coisa no fragmento da Ressurreição anglo-normanda do século XIII e em determinados mistérios do século xv. Chambers, Roy e outros, por volta de 1900, relacionavam essas passagens a um animador, que intervinha entre os atores. Nada o prova. Do mesmo modo, a história dos poemas da Paixão, depois a velha "Paixão dos jograis", inteiramente narrativa, até os libretos de grandes espetáculos do começo do século XVI, não pára de entrecruzar e mesmo misturar os dois registros de discurso. Aí está, parece-me, a prova de que a linguagem narrativa não era então menos "teatral" do que outras nem requeria técnicas vocais e gestuais diferentes: sem dúvida, a distinção era quase imperceptível para os autores, atores e públicos desse tempo. Somente para as vastas representações dos séculos xv e XVI é que dispomos de uma documentação mais abundante no que se refere às performances; por aí mesmo nos é atestada a existência de uma arte, doravante, particularizada: didascálias, atas, freqüentemente contabilidade. Aí, afinal, em todo o Ocidente, nasce um teatro no seio da teatralidade circundante.
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A performance é jogo, no sentido mais grave, senão no mais sacral, desse termo: segundo as definições que dele deram antropólogos, psiquiatras ou filósofos, de Buytendijk e Huizinga a Kujawa, Scheuerl, Schechner-Schuman e Fink. Espelho; desdobramento do ato e dos atores: além de uma distância gerada por sua própria intenção (muitas vezes marcada por sinais codificados), os participantes vêem-se agir e gozam desse espetáculo livre de sanções naturais ...Para o breve tempo do jogo, afasta-se assim a ameaça latente do real; o dado compacto da experiência estratifica-se, Ós eIemenfOs âUb~à minha própria fantasia, este blefe. Do jogo poético, o instrumento (em ausência de escritura) é a voz. Mas esta, de outro modo, é também o objeto de si mesma - donde o uso geral, por parte dos intérpretes, até o século XIV pelo menos, de formas diversas de canto, de cantilação, de declamação escandida; música vocal indissociável, no espírito do público, da própria idéia de poesia: J. Maillart, a propósito de Adam de Ia Halle, mostrou-o com ênfase.' As Vidas dos trovadores o testemunham; mas essas observações concernem necessariamente, com nuances, a todos os tipos de perforrnance. A ausência de signos rítmicos nos sistemas de notação musical dessa época poderia ser intencional e revelar a liberdade, deixada ao intérprete, de variar os efeitos vocais;. cada performance torna-se, por isso, uma obra de arte única, na operação da voz. Não há dúvida de que n dccÍamação falada teria sido, ela própria, concebida dessa maneira. Musical, a voz poética emergia da onda indiferenciada dos ruídos e das p(\lavras~,!:lla criava o acontecimento. Disso podemos estar certos.imes-
mo se nos escapam os contornos desse acontecimento ... como nos foge a natureza exata dos instrumentos de música (de que madeira eram fabricados e a que tratamento eram previamente submetidos?) ... do mesmo modo que ignoramos o verdadeiro gosto da cozinha medieval, à falta de informações precisas sobre a maneira pela qual os animais eram nutridos e as plantas alimentares cultivadas! ~Toda voz emana de um corpo, e este, numa civilizaç_ão que ignor1l nossos procedimentos de~egistro e de...reprodução, permanec.e..vjsÍYeLe. alpável enq~ellLé..au.dix.d-É por isso que, talvez, um valor central permaneça ligado a ela, durante esses séculos, no imaginário, na prática e na ética comuns. As atitudes negativas, as condenações proferidas no meio esclesiástico o testemunham, a seu modo ..l2,grais e prostitutas s.fuLeng1obados-na~m~~reprovação clerical àquele que fazSQmércio de seu corpo. A tradição ascética, exaltando o jejum, a castidade e o SilêÍicio, concernia às três manifestações maiores da corporeidade: nos -costumes, tanto quanto se pode julgar; reinavam·, contirúiamente, uma grande liberdade sexual" umá paixão diipalavrae(efinles-ejo-pelo-rrre--ug,s.!l.
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A OBRA PLENA
A voz e o corpo. Do gesto poético à dança. O espaço e o tempo. Uma teatralidade generalizada.
de suas donas." Beleza animada, cujo movimento, segundo Hugues de Saint-Victor, é um dos componentes, "não somente expressão de vida, mas de alguma maneira sua aparição" (non so/um imago vitae exprimitur, sed ipsa quodammodo vita inchoatun? Esse movimento liga-se em seqüências, encadeia-se, desenha visual e tatilmente, diante do outro, uma escritura do corpo, linguagem analógica, em continuidade ao seu ambiente circunstancial e social. Por isso mesmo, a análise filosófica e moral percebe-o em sua mais consistente unidade dinâmica, o gesto. Assim é com Hugues de Saint-Victor, ainda em seu tratado sobre a formação de noviços: "um gesto é ao mesmo tempo movimento e figuração da totalidade do corpo" (gestus est motus et jiguratio membrorum corporis ad omnem agendi et habendi modum), implica medida e modalidade e tende a um fim definível em termos de ação ou atitude. J.-Cl. Schmitt mostrou a riqueza de tal noção, que faz do gesto humano uma realização da categoria universal do movimento, central do pensamento do século xn:" esta concebe o movimento não mais como atributo do corpo, mas como resultado da interação dos elementos naturais, tanto no nível cósmico como no das sociedades e dos indivíduos vivos. Assim se justifica a metáfora pela qual o corpo é dito respublica, Estado, cidade. Ademais, jiguratio só faz sentido relativamente a uma dupla face do real: escondido/visível; interior/exterior, referindo-se de todo modo a uma evidência representativa. Os estudos de Schmitt, de uma dezena de anos para cá, permitiram situar em seu contexto intelectual e mental o De instituitione novitiorum, que foi no Ocidente o primeiro tratado de moral a dar grande espaço à gestualidade ..O ªutigo De musica de Aggstinho associa~gestus e sonus na idéia da.harmonia.musical; o vigor de.s.s_e~pensameIl:t()-l"efdel:l~s, durante"a alta Idade Média. Sobressai um último eco em Regino von Prüm, por volta de 900, e em seus imitadores: o trabalho do músico abriga, ~apliGaçãO-d~gras apropriadas, a açãó da voz e das mãos.5 Mas o próprio termo, não menos que a noção, tende a esfumar-se ou a esclerosar no uso, para invadir progressivamente o campo intelectivo só a partir do começo do século XII. Mede-se a distância percorrida: para Remi d'Auxerre, em meados do século IX, gestus designa o movimento das mãos; motus, o do corpo todo; Roger Bacon, por volta de 1260, entende por essas palavras todo movimento do corpo, percebido respectivamente seja pela vista, seja pelo tato: só o primeiro, gestus, pode entrar em harmonia com os sons, pondo em relevo por isso a musica" Desde então é a um comportamento corporal num todo que se refere assim gestus - compreendendo riso, lágrimas, "espasmos" (que 242
s textos narrativos, até o século XVIll, não param de colocar em cena!): comportamento que, tudo leva a crer, constituía de um fator necessário da performance poética. É verdade que as informações precisas a respeito disso são raras; as figurações escultóricas ou picturais, muito estilizadas para particularizar uma ação; os textos, pouco variados. Contudo, à luz das pesquisas recentes de semiologia gestual, o pouco que sabemos toma um valor eminente, organiza-se em fato incontornável. Objeto de percepção sensorial interpessoal, o gesto coloca em obra, em seu autor" elementos cinéticos (comportando quase sempre um ruído, mesmo fraco, na ausência de acompanhamento vocal), processos térmicos e químicos, traços formais como dimensão e desenho, caracteres dinâmicos, definíveis em imagens de consistência e de peso, um ambiente, enfim, constituído pela realidade psicofisiológica do corpo de que provém ... e do entorno desse corpo. Naquele que observa o gesto, a decodificação implica fundamentalmente a visão, mas também, em medida variável,.AQ,wl.idG,Q=olfat.o, o tato e uma percepção cenestési..s. Certamente, será abusivo assimilar toda seqüência gestual a uma frase, toda gestualidade a um sistema de signos, e universalizar a neo (ou pseudo) ciência que os semióticos anglo-saxônicos chamam kinesics. Fica, ao menos, que o gesto pode ser signo, na medida muito geral em que ele é culturalmente condicionado, e na medida específica em que ele traz, em meio determinado, uma significação convencional. A etnologia ensina a que ponto esse gênero de convenção pode tornar-se eficaz no uso artístico do gesto em performance: dos griots da África ocidental aos contadores japoneses de rakugo, os exemplos se encontram por toda a Terra, e é ao menos verossímil que esse recurso da gestualidade não tenha sido ignorado pelos intérpretes medievais -,tio século XIX ainda, .vários manuais de elocução destinados a.atores ou orad..g.resderam grande espaço à codificação do gesto: só nos Estados Unidos apontaram-me três, o de M. Caldwell (Filadélfia, 1859), o de A. M. Bacon (reeditado seis vezes até 1872, em Chicago), o de E. Southwick (em Nova York, 1890). Poderíamos, com prudência, de modo voluntariamente aproximativo, evocar uma gramática ou, mais justamente,. uma retórica do gesto, mantendo ou superando-a. da palavra. Entre as figuras que ela encadeia e combina, a suspensão provisória do movimento, a imobilidade repentina, não é a menos eficaz ... tanto quanto os silêncios entre os signos da voz.
Um laço funcional liga de fato à voz o gesto: como a voz, ele projeta o corpo no espaço da performance e visa a conquistá-lo. saturá-lo
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de seu movimento. A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal: ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes. Marcel Jousse, ao cabo de vinte anos de pesquisas e de tentativas de descer às próprias raízes da espontaneidade expressiva, colocava como indissociáveis o gesto e a palavra, num dinamismo complexo que ele chamava, v.erbomotor. A partir de outras premissas, e na perspectiva da performanccBrecht criou para si a noção de gestus, en- . volvendo, com o jogo físico do ator, certa maneira de dizer o texto e uma atitude crítica do locutor quanto às frases que ele enuncia. Na fronteira entre dois domínios semióticos, o gestus dá conta do fato de que uma atitude corporal encontra seu equivalente numa inflexão de voz, e vice-versa, continuamente. 7 Donde a capacidade que tem o gesto de simbolizar. As instituições feudais fizeram desse traço o uso constante que se conhece, em virtude talvez das formas degradadas daquilo que Jousse designou um "ritmomimismo" primordial, fundado em correspondências cósmicas. Gestohieróglifo, ligado a essa "virtude expansiva das palavras" de que falava Antonin Artaud, a propósito do teatro oriental. A língua do gesto é também a do sopro; ela "povoa uma espécie de reserva pré-lingüística", escreveu Y. Fonagy," e, em alguns casos de artifício extremo, ocupa totalmente o campo da expressão: linguagem gestual dos monges condenados ao silêncio, mas também a pantomima antiga, cujas técnicas subsistiam ainda na época carolíngia." Boncompagno, tratando em sua Rhetorica novissima das transposições, evoca o discurso sem palavras dos "amantes tímidos em demasia para falar", que "fazem passar seus sentimentos em gestos, sinais ou mímica". 10 De um ponto de vista lingüístico mais geral, Fonagy fala de "mímica audível", II tanto interferem nesse nível os registros sensoriais. A prática dos intérpretes de poesia inscreve-se entre esses comportamentos, que constituem para eles uma espécie de meio natural. Boncompagno assinala ainda a importância do ç&.Q..comorevelador d;-ligura da ironia;12 pôde-se afirmar (a propó'sito de relatos hagiograllêbs) que';"ífa performance dos jograis, a mímica predominava em significação sobre o canto, porque mais precisamente evocativa e, sem dúvida, mais controlãvel." As artes praedicandi testemunham a sedução que, depois de 1200, essa arte exerceu sobre as novas ordens religiosas votadas à prédica. Essa situação não podia deixar de afetar profundamente a própria natureza dos textos. Q gesto contribuía com a voz para fixar e para compor o sentido. Muitos daqueles textos que ficaram trazem-nos fugazmente
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testemunho, inscrito em sua literalidade. O belo Poême moral de Liege, de cerca de 1200, traz nos vv. 3146-7 a notação do gesto, do dedo pelo qual o intérprete marca o ritmo de seu relato. Gérard Brault, em seu livro sobre a Chanson de Roland, tira do texto várias indicações prováveis - relativas a certos gestos de que o animava o cantor, alguns dos quais constituíam talvez receitas de ofício, ao modo das "fórmulas épicas", ou então provinham de um código cultural de uso comum: multiplicação dos dêicticos, dos discursos diretos personalizados, das descrições que implicavam, pelo menos, o esboço de um jogo mímico." Ph. Ménard, quando põe em relevo numerosas "expressões corporais" que figuram no texto de Roland, traz argumentos para essa tese: como, em performance, usar tais expressões sem imitar de alguma maneira o conteúdo? Mas as canções de gesta não são as mais privilegiadas nisso. Os romances também não são menos ricos de marcas semelhantes. Apontei, em outra parte, o caso dos diálogos desprovidos de menção textual explícita das trocas de interlocutor. Citam-se muito facilmente outros fatos, absurdos, caso não se suponha a intervenção de um gesto: esta ou aquela série enumerativa, na dependência de um verbo de percepção como ver, alinhando os substantivos precedidos do artigo definido, muito fortemente "demonstrativo" em antigo francês; é assim nos vv. 3802 e ss. do Cligês de Chrétien de Troyes. Tais fatos encontram-se muitas vezes ainda nos romances em prosa do século XIII; é assim no Lancelot, XXXVI, 33, em que a indicação de lugar exige um gesto do leitor;" O Tristan de Gottfried von Strassburg não contém menos que 67 palavras ou expressões em francês, ou seja, em média uma a cada 280 a trezentos versos. Aí está, segundo tudo indica, um procedimento estilístico, colocado em forte relevo pelo próprio uso que dele se faz: aparece principalmente (34 vezes) em discurso direto, na boca de uma personagem da qual ele caracteriza a cortesia ou trai um sentimento violento; em contexto narrativo (23 vezes), serve para qualificar o herói, designar uma virtude ou um discurso cavaleiresco; enfim (dez vezes), permite um jogo de palavras ou uma figura etimológica. Um emprego valorizado a esse ponto implica, quase necessariamente, pelo menos uma mímica bucal na enunciação da palavra escolhida. Há poucos textos, antes do século xv, que, examinados de perto, não revelem assim, mesmo inconscientemente, o que me parece ser um traço profundo e universal. Compreende-se então que, muito cedo, essa civilização tenha tentado controlar a energia do gesto, fazê-Ia servir a seus fins particulares. Desde a época carolíngia, a pedagogia explora, para favorecer a memorização, a gestualidade do corpo ou das mãos e dos dedos." A maior parte dos manuais de retórica menciona pelo menos a actio; alguns,
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como a Rhetorica novella de Boncompagno, são mais explícitos: um capítulo, "De gestibus prolocutorum", trata da adequação do movimento ao discurso. E, aliás, condena seu abuso. No tempo de Boncompagno, estava efetivamente instaurada havia cerca de um século uma ética gestual, fundada sobre a analogia dos movimentos do corpo com os da alma: Hugues de Saint-Victor, no De instructione novitiorum, não usa menos que dezesseis qualificativos diferentes para designar .2§..Yalore.s _!!l0rais do g~ Aethelred of Rievaulx, Gilbert de Tournai, Alain de Lille, até Giraldus Cambrensis, inúmeros documentos eclesiásticos no curso dos séculos XII e XIII visam a moderar e a conter, em nome da virtude. a atividade g,estual. Quanto a nos, podemos conc1Ulnwe~S"sa: atividade passou, desde então, ao primeiro plano do jogo cultural, na atenção e sensibilidade comuns? Que se instaure um traço novo de mentalidade: um sentido agudo da significância de gestos. Donde as condena.ç..iie.s-.fui.I:niDantes contra a_ge.sticulação dos "histriões". Donde, ainda no começo do século XIV, o decreto do papa João XXII, Docta sanctorum patrum, que é muitas vezes evocado pelos musicólogos e que, para condenar a ars nova, prende-se, em particular, ao excesso desses gestos que dublam com imitações as palavras cantadas. 17 Indignação do prelado conservador, mas reveladora da importância que tomou o gesto, desde então, no funcionamento social..Objeto de uma disciplina (que cedo ou tarde engendraria uma etiqueta), ele preencheu, no contexto de I uma reabilitaç!Q. controlada do corpo, um oficio. Os cantores e declamadores de poesia marse puüeram sujeitar a esse quadro. Suas "gesticulações" desabrocham em outro contexto: o da universalidade da dança, no bojo da sociedade. A raridade dos documentos textuais ou iconográficos e, mais ainda, a de pesquisas sérias sobre esse ponto deixam que subsistam muitas questões insolúveis. Estamos, contudo, a ponto de depreender muitos fatos, esboçando uma perspectiva geral. Parece que é preciso distinguir dois tipos coreográficos, segundo o fato de terem sido ou não praticados por profissionais. Entre as danças às quais podiam entregar-se ao sabor das circunstâncias, todos ou cada um, o historiador (mas talvez não o dançarino dos séculos X, XII, XIV!) é levado a distinguir ainda: algumas, de longínqua _origem pagã, inicialmente ligadas a cultos agrários., permaneceram até J!Jpoca moderna tradicionais no c'ill!P..Q;o_utras, saídas dessas talvez, mas repensadas segundo um modelo inspirado nos salmos, desde a alta Idade Média foram integradas pela liturgia católica, enquanto manifestação da alegria espiritual; outras enfim, a partir do século XII, elaboração cortês das primeiras ou das segundas (ou mesmo importadas do mundo islâmico), espalharam-se no meio nobre, a título de recreação 246
mundana. Os jograis e, sobretudo, as jogralesas, que por vezes representavam, quando das danças comuns, o papel de mestre do jogo, praticam uma dança profissional que, aos olhos do público, constituía o essencial de sua arte: as representações figuradas que dela nos restam valorizam o aspecto quase acrobático; as incessantes condenações eclesiásticas sugerem sua lascívia. Os textos conservaram-nos diversas designações dessas "evoluções", conotando (como uma linguagem publicitária) sua estranheza e seu aparente exotismo; a "evolução francesa", a "da Champanhe", a "da Espanha", a "da Bretanha", a "da Lorena", a "romana", "welscher tritt" ("passo romano") e todo o resto. O sucesso dessa arte nunca se desmentiu. Ainda por volta de 1400, certa Graciosa, originária de Valência, fez gloriosa carreira de dançarina, através 18
da Espanha e da França. Supôs-se haver nessas práticas alguma sobrevivência mítica muito antiga, a necessidade animista de uma reprodução de movimentos do céu. Talvez. Pelo menos elas implicam claramente um sentimento difuso da ritualidade do universo. O homem dança, mas ainda mais a mulher, exaltando em gesticulações sua feminilidade; os anjos dançam; os demônios; no século XIV, a própria Morte se porá a dançar. .. Faral já enumerava as testemunhas dessa paixão generalizada, que as reprovações do alto clero só fizeram atiçar, como parece: do século IX ao XV, a documentação de que dispomos atesta uma difusão contínua das práticas coreográficas, sua diversificação, a invasão de toda existência pública e privada pela dança." Não há festa sem dança; e esta, em cada localidade, tem seu lugar próprio: a praça pública, na Alemanha um prado sob as tílias; nas cidades, por vezes (como em Colônia depois de 1149), uma sala reservada para esse fim; no mais das vezes, a igreja, único edifício bastante vasto e seguro. Antes do século XV, conhecem-se apenas danças de grupo, com figuras, em roda, em cadeia, das carolas às procissões dançadas; unidade no jogo, reveladora de um desígnio comum. O efeito coesivo do ritmo pode acrescer-se das batidas de mãos ou de outros processos de marcação forte: maierolles, descritas por Jean Renart no Guillaume de Dole, danças sob as árvores, danças da corte e as da Páscoa, do Pentecostes, de São João, cortejos da Candelária ou das Rogações, danças de confrarias, danças de clérigos no São Nicolau evocam juntas o laço muito forte que liga, nessa civilização, o canto e o gesto a todos os movimentos afetivos, no sentido de uma vigorosa afirmação do ser. A maioria das danças é cantada: gesto e voz, regulados um pelo outro, asseguram uma harmonia que os transcende. A parte cantada, com ou sem acompanhamento instrumental, é, em geral, mantida por um solista ou um 247
coro, respondendo aí os dançarinos por um ritornelo. O texto, determinado por sua função, aparenta-se ao gesto que ele verbaliza. Breve, reduzido à exclamação, à sentença; ou, mais amplamente, a voltas estróficas que se prestam às modulações emotivas. Entretanto, os textos que os Modernos designam "canções de dança" ou "de dançar", e não apenas eles, cabem aqui: rondet, ballette, virelai francês, estampida, saltarella, rotta, o Leich alemão em sua origem. Certamente, entre esses gêneros poéticos e musicais constituídos e a dança da qual foram inicialmente inseparáveis tinha-se instaurado um elo genético, de que provieram as determinações comuns, inelutáveis: assim a estrutura do refrão de rondó até em pleno século XVI, época em que a dissociação da dança já se tinha, depois de muito tempo, enfim operado. Mas a dança acompanhou e sustentou muitas outras formas de poesia: condutos e canções pias, impostas nas procissões dançadas durante as festas litúrgicas, litanias das Rogações, preces e fórmulas mágicas da dança dos "brandons" ou da de São João; as natalinas mais antigas poderiam remontar a canções de dança hiberna!. 20 A velha Sainte Foy dos Pireneus, que é um dos mais veneráveis monumentos da poesia occitânica arcaica e que a si mesma se declara "boa para dançar" tbella'n tresca, v. 14), foi seguramente cantada e representada sob forma processiona!. O elo que liga então a voz e o gesto é de ordem funcional, resultando de uma finalidade comum. Não é menos forte nem sem dúvida menos eficaz. Uma longa tradição ilustra-lhe a fecundidade: da Chanson de Clothalre recolhida por Hildegário de Meaux, por volta de 850, cantada por coros de mulheres, acompanhando-se de movimentos rítmicos de mãos (plaudendo), à "carola de Bovon e Mersent" (segundo denominação proposta por Verrier) a que se refere Orderic Vital, considerando-a cantada por um dançarino maldito," às canções que o arcipreste de Hita, vv. 6174-7, gaba-se de ter composto para as dançarinas, acompanhando ao tamborim o seu canto. Ainda no século XVI, entre a arraia-miúda espanhola, homens e mulheres (por causa de um antigo costume) dançavam ao canto do RomanceroP A. Pulega sugeriu, com razão, que as Danças Macabras dos séculos XIV e XV puderam formar-se pela estilização dos sermões dançados." Aumentaríamos facilmente essa lista. E, sem dúvida, poucos textos, se examinados à luz desses fatos, não revelariam em algum de seus aspectos a empresa de uma gestualidade. Alfaric já mostrou a influência da intenção coreográfica sobre a composição e o estilo da Sainte Foy. Não conheço mesmo nenhum exemplo, antes do século XIV e até do xv, de obra escrita que não traga em si o desejo do gesto ou que não o exiba.
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Na indigência de nossa informação, reduzida principalmente ao que nosso olho vê sobre a página, no instante de nossa leitura, estou certo de que um ponto de vista paradoxal nos esclareceria: consistiria em reconhecer a supremacia absoluta da dança entre as formas de arte que colocaram em obra ou em causa, durante os séculos medievais, de algum modo o corpo vivo. A "canção de dança" ou a Sainte Foy representariam o modelo realizado, do qual os outros textos se distinguem como que se aproximando de seu fim. Assim como ela requer necessariamente, salvo exceções raríssimas, a voz humana, a transmissão da poesia, entre os séculos X e XIV, exigiu o gesto humano; e, além disso, enquanto essa voz Qoética tenc\ÜLao canto, o gesto poético tendia à dÇl!lç~,suã última realizaçful. Insisto nesse ponto, a meu ver, crucia!.
Entretanto, múltiplos elementos que constituem o meio performancial onde se põe e impõe a voz não têm com ela uma relação tão essencial e constante quanto o gesto. Poderíamos classificá-los segundo ela seja mais frouxa ou mais estreita:,. Assim, a indumentária (§.eé que ela existe), o instrumento de música ou o acessório têm em tal gênero uma importância funcIOna! que não adquirem em outra parte.Osinstnmrentos-'_de acompanbamento_fo.raIll-o=Clbjeto..de-Cl&eIS_os éShidôs. :Remeto ao catálogo comentado que deles oferece W. Salmen." Quanto à roupa, as informações são raras ou equivocadas. Faral, que juntou certo número delas, concluía que os 'jQgrais" distingllliLm::s~_Il.Qr.Jllgumaexcentricidade.da.vestímenta, sobretudo a partir do ~Io XII, pelo brilho das ,c_QLes,~v:ermelho, amarelo; depois disso, muitas vezes com roupas hemipartidas no sentido vertical, à-maneira dos"bobo~ém verde e amare': 10; também pelo corteoü'SUfbelos-;-pelaaliSênciaaeoaroa. Esse retrato não se aplica, sem dúvida, a todos os intérpretes profissionais: muitos entre eles nos são apresentados como pobres esfarrapados (o que não excluiu o porte de algum sinal); outros, em posição mais estável e vivendo em meio letrado.jiâo tiveram talvez necessidade de distinguir-se assim. Ocorre que, para o conjunto do público, o cantor, o narrador, o leitor de poesia deviam ser imediatamente identificáveis_p-or seu exterior. As didascálias que acompanham, em muitos manuscritos, os textos dramáticos dialogados não insistem em vão sobre a forma ou a cor da vestimenta trazida pelo ator: assim se manifesta, de algum modo, um valor simbólico ou emblemático, ligado seja à personagem representada, seja à ação desempenhada, seja ao discurso pronunciado; desele o século x, a descrição, na Regularis concordia, do Quem quaeritis pascal, matriz de todo o "teatro litúrgico" vindouro, distribui com
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cuidado alva, capas, incensórios e palma entre quatro sacerdotes dos quais ela regula e mede os passos; as rubricas da Ordo prophetarum de Laon, no século XIIl, fixam, com minúcia, vestimenta, penteado e acessórios que assinalam e diferenciam os treze profetas; é precisado até o porte corporal: Abacuque é corcunda; Isabel, grávida; Nabucodonosor tem o porte "soberbo"; a Sibila tem o ar de uma louca ... 25 No leu d'Adam francês, segundo o manuscrito de Tours, Adão está de vermelho e Eva, de branco; ele, de "túnica"; ela, de vestido de voile;~lli:!lli,-ºe dalmática. .•.0 costume dessas prescrições manteve-se até os dramas,_em grande eS: ~tª~_ulo, do século XVI. Tal atenção votada à significância da vestimenta e do arranjo pessoal não pode deixar de estender-se para além das exigências cênicas; e a história dos gêneros poéticos sugeriria ainda mais que essas exigências, universais e alcançando em princípio toda espécie de performance, encontravam na representação dialogada de personagens múltiplas um lugar de aplicação privilegiado, mas não único. A propósito disso, põe-se a questão do uso de máscaras, Esse uso .§tá...ggUFament~ates.tado: desde o sé_culo IV uma tradição eclesiástica contínua o denuncia como ação do demônio, mentira infernal, a rejei_ção da obra dmna.26 A presença de.máscaraanaafestas carnavalescas, nos ritos funerários, nas algazarras confirmava essa opinião. Materialmente, a máscara era um rosto artificial monstruoso, muitas vezes animal, recobrindo a face e associada ou não a um travesti~; às vezes, sem dúvida, era pintada: clérigos dos séculos XII e XIII, como Jacques deVitry ou Étienne de Bourbon, evocam isso em termos referentes aos cosméticos: facies depictae, homo pictus. Mas quem as usava? Thomas of Cabham trata disso em sua diatribe contra os jograis: transformant et transfigurant corpora sua per turpes saltus et per turpes gestus, vel denudando se turpiter vel induendo horribiles larvas ... ("eles transformam e tornam irreconhecível seu corpo por suas horrendas cabriolas, seus horrendos gestos, desnudando-se vergonhosamente ou afivelandose máscaras horríveis ..."). É essa uma alusão às pantomimas que parecem esboçar-se em toda a parte, em latim e nas línguas vulgares, palavras de raiz mom-: momus, mome e momerie, mumm e mummery, momaria? Enfim, faz falta a prova do uso de máscara na performance poética. Entretanto, alguma tradição, de origem provavelmente pagã antiga, deve ter subsistido, ressurgindo plenamente na Itália, no começo do século XVI, sob a forma da commedia dell'arte ..Essa ausência quase total de máscaras na constituição da obra é, a meu ver,.~ das caracte•rísticas maiSJlotá~is..da_p-oética..medie.Y.al, implicando, sem dúvr" sentimento - confuso, mas muito forte, modalizado pelo contexto institucional cristão - da verdade própria da linguagem da poesia.
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Essa situação, pelo jogo de proibições e de corretivos que ela implica no plano moral e no dos comportamentos, parece-me aumentar o valor semântico das circunstâncias performanciais na formação da obra. Entendo por "circunstâncias" aquilo que, do ponto de vista semiótico ou lingüístico, chama-se geralmente contexto, mas cuja noção eu restrinjo ao que compõe o fato poético. B. Schlieben-Lange, num livro recente, distingue no ato locutório (eu traduzo: na performance) três elementos que contribuem para fazer da mensagem enunciada uma comunicação: _ a "situação" imediata, prendendo-se ao fato de que se fala; e mediata, tendo em conta o envolvimento discursivo, às outras palavras precedentes, seguindo ou acompanhando aquilo que se enuncia; _ a "região", pela qual é preciso entender os três espaços - geográfico, cultural ou social - em que os signos feitos obra são conhecidos e empregados; _ o "contexto", que abarca toda a realidade ambiente, considerada como o fisicamente presente na enunciação: a própria língua, pano de fundo da palavra; o campo discursivo, próximo, longínquo, temático, em que ela se enraíza; o conjunto não lingüístico, natural e empírico, histórico e mental, entre cujos elementos ela se situa." Retenho por "circunstâncias", entre os diversos aspectos desses três elementos, aqueles que situam o texto no espaço e no tempo, conferindo assim à obra sua "situação" real. As "circunstâncias" determinam a obra em sua totalidade. O texto moderno, escrito e destinado - fora de toda mediação oral - à leitura, possui uma alteridade essencial, devido a sua natureza de co~unicação diferida; essa arrenêlãaesosera~----CIda..I1QT um trabalho, documentaçãQ,Jnterpretação, controlez.O texto transmitido oralmente possui uma evidência, uma identidade na pr~en= ça, gueexclUf,(leimediãto, a impressão ae alteriaide: ele sedá, por isso mesmo, como verídico e só podeser recebTcIõComo tal. Ora, as circunstâncias modalizam, localizam, dão colorido a essa veridicidade: até certo ponto, elas a engendram. Donde sua extrema importância na recepção da obra e nos julgamentos suscitados por esta: é em razão delas, às vezes apenas por elas, que as culturas de tipo oral primário dizem que um poema é bom ou ruim;28 em regime oral misto, essa maneira de ver subsiste necessariamente em parte; .Qelo menos à obra não caberia ser apreciada sem que as circunstâncias da performance não fõS"Sélli leY."adas-em conta. É nessa direção que convém entender o sentido da expressão "poesia de circunstância", da qual se tem afirmado, com razão,: que ela designava os tipos mais antigos de poesia;" ligada ao acontecimento, é certo, mas porque dependente de uma forma qualquer de mecenato e, por isso, das circunstâncias de sua enunciação.
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Não confundamos, entretanto, num meio social dado, a ambiência do texto performatizado (sempre relativo à posição, nesse meio, do corpo performante) com a consciência que dele têm o intérprete e seu auditório. Ocorre (feliz então o medievalista!) que essa consciência tenha força suficiente para que a circunstância inscreva-se no texto, como o faria uma citação. No mais das vezes, é o público que é designado: quando ele é muito numeroso e, sem dúvida) reunido ao ar liyre,-ªRóstrofes integradas n~ n!!!Iªtiva o interpelam; quando é cavaleiresco, o texto comporta alguma alusão a uma alta personagem ou a certa corte. Por vezes, ãaIusão passa por denegrir os concorrentes, incapazes de fazê-lo tão ~.~s~vocações, geralmente Tugazes,são ãSmai~merosas, por motivos evidentes: elas podem comportar uma sanção econômica; para assegurar o óbulo ou o presente final, importa ao intérprete "personalizar" o oferecimento do texto. Outras alusões concernem ao tempo da obra: assim, na laisse 3 do Girart de Roussillon, o texto situa-se num momento do ano, em plena primavera, abril. Longas narrativas, como as canções de gesta e certos romances, comportam articulações textuais que marcam, segundo tudo indica, a passagem entre duas ou mais performances sucessivas, exig!.ç!aspela realização da obra. A retêfência podé ser indireta e tomar a forma de umãOêScrição; 'mas só tem sentido e função no texto quando é entendida como aplicando-se a si própria, por efeito de elipse, litote ou ironia. Assim é com a laisse inicial do Doon de Nanteuil, por volta de 1200, cujo intérprete disse chamar-se Huon de Villeneuve. Esses dados textuais, no entanto, para não serem excepcionais, permanecem em geral equívocos. Temos de tentar uma abordagem externa, sempre muito incompleta, das circunstâncias. Pelo menos alguns traços gerais depreendem-se, permitindo medir aproximadamente aquilo que a simules leitura do texto (nossa legura) perde da obra tal como clª-ioi ...Limito-me a propor, quanto a isso, algumas observações concernentes ao tempo, lugar e ocasião social da performance.
A obra existe no tempo de duas maneiras: pela duração da performance, o que já chamei em outra parte de seu tempo integrado; e pelo momento em que ela própria se integra na duração social; O tempo in~feriamuito, pod.e:::se~upol,=da_?uração textual, resultante da simples adição de c_ertonúmero de fonemas: ele comportava os neces~árjos efeitosrítmi_cos, retardo ou aceleração do tempo, por parte do intérpLete no "desempenho" do texto; aí cabiàin os não menos necéssá" • rios silêncios, 5!0s~ nos élmposs~el apreci~r ~xtensão, variável,
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sem dúvida, a cada performance e conforme o estilo pessoal de cada contador_ ou c_antor. ImpossívenamlJerrl,õÜÍJelÔ menos mmto dífíêil," perceber de que maneira, e em que medida, o "tempo integrado" correspondia ou não ao momento da cronologia em que se deu a performance. Esse tempo (o "tempo de integração") é freqüentemente nosso conhecido. Ora, organizado sobre a duração sócio-histórica, não nos pode ser indiferente porque a relação que ele implica com a duração é, no seio da performance, criadora de valores. Às vezes, o tempo de integração situa-se num ponto determinado: _ de algum ciclo cósmico, como as canções de entrada do verão, que deixaram as marcas que sabemos na canção trovadoresca e das quais, antigamente, Bédier construía o protótipo do lirismo "popular", e Scheludko, um gênero amplamente difundido; _ do ciclo da existência humana, tal qual cantos ou narrativas ligados à morte de um membro do grupo, como os J!Janctus, planh e outras lamentações; _ de um ciclo ritual, como a maior parte da poesia litúrgica, em latim ou nas línguas vulgares, compreendendo aí as formas antigas do "teatro"; como também os cânticos natalinos que começam a aparecer em nossos textos, através de toda a Europa, entre os séculos xv e XVII, cuja tradição, no entanto, deve remontar a tempos bem recuados; como talvez as canções de Páscoa, das quais consigo discernir traços entre os Romanzen de Bartsch. _ da duração social, enfim, medindo acontecimentos, públicos ou privados, recorrentes mas de freqüências imprevisíveis: encontro amoroso, combate, vitória; ou mais expecificamente tal festa, tal acontecimento político. Os exemplos são certamente numerosos, embora bem menos individualizáveis, porque essa classe de texto, sem dúvida pouco ritualizada, mal se distingue da performance "livre", aquela que só é situáve1 em relação à duração pessoal e íntima do intérprete ou de seu ouvinte. O elo pelo qual aí se prende o poema escapa de novo à nossa percepção. Nem por isso ele deixou de existir, e disso nós sabemos. Que tal Vida de santo tenha sido lida para a festa de um ouvinte de mesmo nome; talfabliau, contado por alusão a uma ocorrência recente; tal romance, como lembrança de um casamento de príncipes; tal canção de cruzada cantada na partida de um cavaleiro: a ocasião, mesmo fugaz e discreta, integrava-se na performance e contribuía para dar-lhe um sentido. Aí está uma regra absolutamente geral e que tem que ver com a natureza da comunicação oral: o tempo de integração conota toda performance. O Roland cantado (admitamos) na primeira fileira dos combatentes da batalha de Hastings seria (levando em conta outros fatores
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da movência) o mesmo que o Roland cantado diante, quem sabe, de um átrio de castelo senhorial, no salão, entre cavaleiros desarmados, sua gentalha, seus cães? Evidentemente não. Quanto a essa diferença, nada nos dispensa de levá-Ia em conta ... a não ser nossos pressupostos literários. As modalidades espaciais da performance interferem nas do tempo. O lugar, como o momento, pode ser em aparência aleatório, imposto por circunstâncias alheias à intenção poética. Mas uma tensão por vezes se manifesta então entre as conotações esperadas e aquelas que provocam essa situação: tensões exploráveis mimeticamente, aptas a produzir, por sua vez, efeitos poéticos positivos. Tal é, sem dúvida, um dos planos de significação de numerosos prólogos épicos. O lugar da performance é o espaço aberto ao desenrolar da obra: um espaço, enquanto realidade topográfica, é sempre uma construção sociocultural. Que na França ou na Espanha do século XIII poemas satíricos tenham sido lidos nos lugares públicos, esse fato os conota fortemente e contribui, em medida não desprezível, para sua significância: assim é em Paris, no tempo da ."querela da Universidade", ou nas lutas sectárias da Castela de Afonso x.30 A localização do canto na igreja e sua inserção num ou noutro momento da liturgia constituem uma parte essencial da "poesia hínica" das seqüências e tropos de toda a espécie. Assim é com as "epístolas farsescas", recentemente estudadas por G. Le Vot - texto latino cantado na missa, interpolado de versos franceses, occitânicos ou catalães que o comentam e do qual é possível reconstituir, com verossimilhança, o modo de declamação: por dois ou três subdiáconos revestidos de ornamentos solenes. Sua tradição fica assegurada do século XII ao xv; do mesmo modo, do século X ao XII, na era francesa e na occitana, a das "canções de santo", cantadas visando a fiéis iletrados, ou em coro por estes, sem dúvida durante ou imediatamente após os ofícios noturnos, e dançadas, em certos casos, como a Sainte Foy. Cada poema parece ter seu lugar marcado, menos por causa de imposições externas do que por uma percepção global da existência - porque.v-era.necessário que todo,o espaço da vid_aso.sial fosse p_oeticament~ ,ocupado. À sombra da igreja, por assim dizer, atrás dos muros do convento, transmite-se uma poesia monástica à qual devemos vários belos textos, da Aube de Fleury, do século x, aos Vers de Ia Mort do abade cisterciense Hélinant de Froimont, compostos por volta de 1195, que seriam ainda lidos pelos monges durante o século XVI. No adro e em seus arredores imediatos, a poesia floresceu em volta de relíquias sagradas ou em centros de peregrinação: os Miracles de Notre-Dame, os contos piedosos e ainda os Vers de Ia Mort, no século XIII, se cremos em Vincent de Beauvais." Bédier situava aí, um pouco abusivamente, as can-
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ções de gesta. Entretanto, outros lugares performanciais conferem à obra que ali se manifesta um caráter oficial, contribuindo simbolicamente à exaltação do poder público: skops anglo-saxônicos nos festins reais, escaldos islandeses no Thing, onde se reunia a assembléia do povo. Lembrei em outra parte, Q costume do canto épico. antes ou durante os com~John Barbour, em 1376, em seu poema sobre o rei da Escóciâ J Robert Bruce, conta que este, estando em retirada diante do senhor de Lorn, quis atravessar o lago Lomond; mas, não dispondo senão de um minúsculo barco, viu-se forçado a dividir em pequenos gr.upos seu exército: a op.eraçª-o.leYOu-24-h0Fas~dUIante todo esse tempo, para manter a moral da tropa, o rei lia em voz alta o Romance de Ferrabrás! A circunstância, o lugar levavam a seu mais alto grau o poder do efeito performancial.. . Certas formas parecem ter sido sobretudo (mas não exclusivamente) destinadas ao uso de pequenos auditórios, reunidos em lugar fechado e privado. Assim, os fabliaux que o contador recita como presente a um hóspede, e mais geralmente romances." Citei o Yvain de Chrétien de Troyes, vv. 5350-68, Froissart e Méliador. Gower exprime ao rei Henrique IV o desejo de ler suas baladas diante da corte reunida. Testemunhos desse gênero balizam seis séculos de história, em todo o Ocidente. Vários germanistas, no curso dos anos 50 e 60, supuseram, seguindo E. Jammers, que tais leituras eram feitas em voz cantante, ritmicamente bem diferente da fala comum; se essa tese é verdadeira, pode-se deduzir que, pelo menos em terras alemãs, uma aproximação se instaurava entre a performance particular e a pública, transformando idealmente, pelo tempo de leitura, a natureza e a significação do lugar performancial. Pode-se também deduzir que a leitura solitária (é verdade que atestada com menos freqüência) eLa por veze.s~pratic.ada-do..'rrleS;;lO modo; assim, a jovem dama, na estrofe 1100 do Frauendienst de Ulrich von Lichtenstein, Ias ("lia") a canção enviada pelo poeta: das interpretações diversas dessa passagem resulta a probabilidade de que 1~1' 'ter' 'J=aqui quisesse ~r~cantar-IJara-si,mesmo' '. 33 Lugar e tempo da performance podem ser determinados pela ocasião social em que ela se produz. Certamente, no seio da comunidade, poetas, cantores, contadores de histórias se misturavam a todos os acontecimentos que lheritmavam o futuro. Mas alguns desses acontecimentos, eminentes no curso dos dias, pareciam ter provocado mais particularmente, e de modo costumeiro, o divertimento poético. Os dados fornecidos por Faral, Menéndez Pidal e Salmen em seus livros sobre os "jograis" confirmam-se reciprocamente: festas religiosas ou principescas, banquetes, núpcias, expedições militares, viagens; estes costumes
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eram comuns aos povos do Ocidente, desde a Escandinávia até a Sicília. Uma crença generalizada atribuía ao canto de um jogral ou à leitura em voz alta uma influência benéfica, não somente sobre a melancolia, mas também sobre doenças corporais e até feridas ..piversDs Leis de Castela e de Aragão achavam, por esse motivo, que a audição de poesia ~úsica era indispensá~el à boa ordeiil desua vid~. 34 Out'?c)sprín:: cipes partilhavam ao certo dessa ~iãWode-se admitir que ela motivou a organização, nos séculos XII e XIII, de alguns grandes encontrosdebates de poetas, cuja lembrança se conservou: aquele - no castelo catalão de Puivert d'Agremont, em 1161 - que ilustra a canção de Peire de Alvernhe, Cantarai d'aqestz trobadorz; ou a Wartburgkrieg alemã.
!Jm desejo age sobre esse mundo para fazer de toda a realidade um espetáculo. Não ocorre, certamente, outra coisa na relação de nosso mun.- -'...... ----do conosco, já desde uns trinta ou quarenta anos, quando nossa principal motivação é publicitária, os meios são de massa, e a finalidade, comercial. Até bem depois do século xv, a motivação foi uma sede de -conhecer; o meio, a participação sensorial; e a finalidade, uma alegria comum. Operando (no mais alto nível da existência) como o elo e as incessantes transferências entre o homem e Deus, entre o universo sensível e a eternidade, a liturgia ilustrava essa tendência de modo exemplar: espetacular em suas menores partes, ela significava as verdades da fé, por um jogo complexo oferecido às percepções auditivas (música, canto, leitura) e visuais (pelo esplendor das construções; por seus atores, sua roupa, seus gestos, sua dança, seus décors), táteis mesmo: tocase a parede santa, deixa-se um beijo ao pé da estátua, no relicário, no anel episcopal; respira-se o perfume do incenso, a cera das velas. Na base da sociedade civil, a cerimônia de prestação de vassalagem, ligando uns aos outros, dominantes e dominados, em procissão hierárquica, constitui uma performance, que diríamos teatral; o ordálio, que coloca a justiça divina como parte na administração do direito, manteve-se até o século XII, menos como prova do que como rito; e, ainda no século xv, as miniaturas do Sachsenspiegel testemunham a importância, em território germânico, dos gestos e posturas estilizados na reivindicação judiciária; o fato é tão generalizado que persiste: ainda em nossos dias, levantamos a mão para prestar juramento. A corte do príncipe, centro de coesão social de onde emana o poder, é um palco no qual se representa um drama público, colocando em cena um repertório limitado (mas que se renova pouco apouco) de temas e imagens. Desde a época merovíngia, a rotina dos reis desenrola-se como uma parada emblemática: 256
os carolíngios dão relevo à tradição; os Capetos a encontram por sua conta, do mesmo modo que os grandes senhores feudais. No século XIII, os reis da França atribuem a esse teatro um lugar doravante fixo: seu palácio; os de Nápoles e os duques da Borgonha os imitarão, depois os outros, até Carlos v e os senhores do Escorial. Abrindo caminho, o espetáculo concentra-se sobre alguns atos privilegiados do príncipe, cujos cronistas do século xv vão rivalizar entre si esboçando descrições esplêndidas: festas dinásticas, torneios (em que, a partir do século XIII, inspira-se uma dança nobre de damas, ocasião para um gênero poético novo!), "felizes entradas"; mais do que tudo, porém, desde uma época bem recuada (séculos VIII-IX), a refeição: instante notório em que o Mestre retoma força e vida, consome (num simbolismo homofágico muito antigo, de que não se percebe mais a significação) a oferenda da terra, segundo um protocolo em que o luxo ostentatório aumenta no século XII e que os borgonheses levarão a sua extrema complexidade. Por aí se firma, sobre o público espectador, a autoridade daqueles que o governam. A partir do fim do século XIII, o teatro da corte perde toda a inocência; prepara os espíritos para a irresistivel crença vindoura no poder do Estado. Da Igreja e das cortes difunde-se assim o modelo da Festa. Mas a festa está em toda a parte, nessa sociedade, explosão periódica de paixão e de riso, contra ou a favor, celebração ou carnaval (mas, com o correr do tempo, o carnaval foi recuperado pelas forças da Ordem!), integrando, numa vasta comédia coletiva, as contradições abertas ou latentes daquilo que representava, daquilo com que brincava o espetáculo. Ora, é justamente aí que se insere na matéria social o jogo poético ue eu evoco sob a denominação teat!!!!S!ad_e-,=t~.rmo~que...s_e.Jefere de m~nusso-teauoeaPrática implicada or este. O elemento estruturales-emâmíco c-omum en re os termos assim dados por contínuos - performance medieval, teatro moderno - reside na presença física simultânea, articulada em torno-de um corpo humano pela operação de sua voz, de todos os fatores sensoriais, afetivos, intelectivos de uma ação total. Donde o desprezo afetado por muitos letrados, até o século XIII, pela poesia em língua vulgar: assim é com Gautier Map em muitas passagens do De nugis/" Em seu latim, é a palavra mimus que surge sob a pena: as formas teatrais antigas (comoedia, tragoedia), recebidas comumente como diálogos letrados, destinados apenas à leitura, não deixavam outro termo disponível. No curso do século XII, uma mudança esboça-se na atitude de alguns letrados. O primeiro, Hugues de Saint-Victor, antes de 1140, elaborando uma classificação das artes, no livro II do Didascalicon, intro257
duziu (capítulo 28) entre as sete artes mechanicae as theatrica. A idéia e, em parte, o próprio texto são tomados de empréstimo a Isidoro, Etymologiae, livro XVIII, que assinalava os jogos da Roma imperial como uma arte maldita, instigadora de idolatria; o texto de Hugues apaga essas conotações desfavoráveis. Redigido no pretérito (enquanto todos os verbos nos outros capítulos estão no presente), refere-se implicitamente a costumes que já mudaram. Por que essa inovação, ou essa redescoberta, depois de seis séculos de esquecimento? Não há dúvida de que se exercia sobre os doutos, na primeira metade do século XII, uma pressão cultural que não os deixava ignorar a teatralidade da poesia nem o conjunto de técnicas e de efeitos que ela mobilizava. Seguindo a tradição agostiniana, corrigida no sentido de uma confiança maior no homem, Hugues considera as artes remédios dados por Deus à raça de Adão, depois do pecado, a fim de permitir-lhe, se ela os utiliza corretamente, restaurar sua inteligência do mundo (no caso, as artes "teóricas"), sua virtude (as artes "práticas") e seu poder sobre as coisas (as artes "mecânicas"). Estas últimas formam um setenário, em que três membros constituem os meios pelos quais a natureza humana preserva-se das agressões exteriores, e quatro (agricultura, caça, medicina e theatrica) graças aos quais ela entretém seu corpo. A colocação das theatrica nessa hierarquia é tanto mais significativa porque a poesia (poetarum carmina) figura em outra parte, entre as artes da lógica, parte "dissertativa"! A distinção parece-me refletir aquilo que um espírito cultivado deva perceber entre a escrita latina e a poesia em língua vulgar. Uma glosa inserida, sem dúvida ainda no século XII, na Philosophia mundi de Guillaume de Conches faz referência ao capítulo de Hugues e coloca a questão: por que as theatrica, e aqui mesmo? Resposta: porque duas necessidades vitais patenteiam-se no homem: dotar-se de movimento (entenda-se: de imaginação?), para combater a lassidão do espírito; e de prazer, a fim de compensar a fadiga das tarefas corporais." As theatrica, conjunto de procedimentos dos quais resulta a teatralidade, não .•. ~ ,. -' '---' . . ~>-p_o.r.tantol m~ em SI mesmas; sao, no maxlmo, pengosas, o que jUS_tifica a sexerídade eclesiástica Rara com os mimos e histriões. A voz vi: ~tQgE!L--ª-'p-alavra_gesticulada dos p_oetas, a música, a dança, esse jQg.o_c_ênico_e-v:erbaLgue_(~Jinguagem do corpo e colocação em obra das 'sensualidades carnais - tudo isso, aqui ea;'~ também remédío, equí.~ocoJrlas-eficaz,-das_~ A investida assim operada pelo filósofo so tem um alcance limitado: ao pensamento de então faltavam instrumentos epistemológicos adequados a conceitualizar esses jogos do corpo. Nada disso impede que, quando por volta de 1150, no Policraticus, John of Salisbury evoca os atores do teatro antigo, a descrição que ele dá seja -
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manifestamente inspirada pelos intérpretes de poesia que encontra em torno de si: "eles recitavam em público histórias inventadas, obra dos gestos de seus corpos, da habilidade de suas palavras e das modulações de sua voz" (gestu corporis arteque verbo rum et modulatione vocis jactas ej jictas historias sub aspectu publico rejerebant).37 Decadência do interesse dos doutos: se Richard de Saint-Victor, em seu Liber exceptionum (por volta de 1150-60), retoma a passagem de seu mestre Hugues, Geoffroy de Saint-Victor, no Microcosmus, exclui as theatrica da série das artes mecânicas; Raoul de Longchamp, em seu comentário a Alain de Lille, em 1216, não as menciona senão como lembrança, seguidas de um "e de outras coisas semelhantes" que as banaliza; as enciclopédias do século XIII geralmente as rejeitam." Vincent de Beauvais, no livro XI do Speculum doctrinale, por volta de 1250, retoma, modificando-a, a lista de Hugues; mas o próprio caráter de sua obra limita nesse ponto o alcance; ele compila um repertório de auctoritates, antologia de tudo o que, depois de Isidoro, foi escrito sobre o teatro; o interesse pessoal está ausente. Robert Kilwardby, De ortu philosophiae, XI, na mesma época, afasta das artes as theatrica, inconvenientes para os crentes. Depois deles, fez-se silêncio. Mas já os franciscanos começavam a interessar-se pela teatralidade da palavra; e logo Tomás de Aquino esboçará, relativamente à realidade de seu tempo, a primeira reflexão crítica sobre esse "trabalho" destinado a fornecer uma delectatio." Quando, por volta de 1400, Eustache Deschamps, no Miroir de Mariage, vv. 9254-67, enumera com agrado as "artes mecânicas", começa por aquilo que consiste em "fazer os cantos e cantar por arte música": figura de repetição que justifica, sem dúvida, nesse contexto, o desejo de valorizar a parte de uma atividade corporal, a garganta, mas também as mãos, tocando um instrumento de acompanhamento, e os movimentos assim gerados. Chegamos, enfim, à atualidade viva. Para um intelectual nutrido de lembranças antigas reinterpretadas, em contexto escolar, como puros produtos da escritura, o espetáculo que oferecia efetivamente a poesia em língua vulgar sofria de uma ambigüidade congênita: localizada numa zona-limite entre a arte e a vida, participando de uma ou de outra, portanto suspeita de dois pontos de vista opostos. De fato, é verdade (mas até que ponto esses homens se davam conta disso?) que existe uma contradição permanente, pelo menos virtual, entre a arte e certas regras socialmente aceitas pelo grupo. Uma estilização opõe-se à norma social como, a uma ética, uma estética. Ou então a estilização da poesia vulgar contempla, para além do texto, a ação de seu intérprete e as modalidades de sua recepção. Donde a multiplicação de mal-entendidos. As codíficações, de resto muito tênues, ado259
tadas pelos diversos gêneros poéticos em língua vulgar detinham (até mesmo em razão de sua visualidade) a "língua das imagens" picturais e esculturais, recentemente decifrada por F. Garnier. Na época carolíngia, os homens da Igreja condenavam globalmente o uso desses códigos, declarando-o "pagão" ou "diabólico". Sem dúvida, já farejariam aí a manifestação de uma profunda necessidade de sacralização do vivido - essa necessidade de onde tinham saído juntas, num passado muito distante, as formas religiosas e as formas poéticas, concorrência intolerável para a ortodoxia do catolicismo medieval. A ritualidade - a "teatralidade" - poética termina, certamente, em longa duração, por atenuar-se, mas não em suas manifestações concretas, porque, até o século xv e, parcialmente, até o XVII, o corpo ficou aí totalmente comprometido. Foi seu objeto que se deslocou pouco a pouco (na medida da difusão da escritura), ao ponto que, passado 1500, em todo o Ocidente, a poesia aparece como um empreendimento, a partir de então laicizado e metaforizado, de teatralização do cotidiano. Nada isola aí (antes desta época tardia) aquilo que chamamos abusivamente o teatro e que designa então um vocabulário flutuante, referente à idéia de jogo regulado: ardo, ludus, jeu, pla1i.§pgl. Raramente retóricos, como Geoffrey of Vin"Sàufe John of Garlande, interrogandose a propósito das comédias de Terêncio, tomaram emprestado de ~ ,tão a expressão genus dramaticon ("tipo de discurso dramático"}, definido pelo fato de que o autor aí se exprime pela boca das personagens." Distinção inaplicável à língua vulgar, assim como, em grande medida, à poesia latina desse tempo: o intérprete, ainda que fosse um leitor público, é aqui personagem; e~o~faltam os exemplos~em-qÜe~ um parceiro lhe dá uma réplica e um músico os acompanha ... donde a pluralidade da performance. A dificuldade que experimentaram os medievalistas classificadores do século XIX em situar num paradigma as formas ditas, em desespero de causa, monólogo ou diálogo "dramáticos" testemunha essa aparente ambigüidade. O significante do significado textual é um ser vivo. Jargão à parte, <,~aduziria que o sentido.do texto se lê eI,!UJresença e no jogo de um ~ humano. O texto torna-se quente, segundo a terminologia de McLuhan: a performance não é divertimento senão secundariamente; ela não é em absoluto uma ocasião especialmente agradável; é comunicação de vida, sem reserva. Preenche para o grupo a função que tem o sonho para o indivíduo: liberação imaginária, realização lúdica de um desejo. Donde seu extraordinário poder na economia dessa civilização.
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F. Lopez Estrada o dizia recentemente, em outros termos, a propósito de textos espanhóis antigos: a obra só se completa quando une letra, melodia e situação." De um ponto de vista semiológico, diríamos que sua comunicação opera-se segundo dois circuitos encaixados e mutuamente dependentes: o intérprete que enuncia o texto a um ouvinte funciona, ao mesmo tempo, como "narrador" (segundo a literalidade desse texto) e como informante, pelo viés das circunstâncias, constituindo elas um "comentário" à letra, mas um comentário integrado indissociavelmente nela própria. Nesse sentido, a obra medieval está mais para nosso filme cinematográfico do que para nossa literatura." Donde a ação exercida pelas condições performanciais sobre a textualidade, que certas pesquisas recentes parecem revelar (é assim com o uso dos tempos verbais na canção de gesta) ou observações de ordem muito geral, por exemplo, sobre a extensão média respectiva dos textos, sejam narrativos, sejam "líricos", e suas variações no curso do tempo parecem confirmar: assim, o fato de que, do século X ao XII, dá-se um alongamento regular dos relatos cantados; a curva média, entre o ano 900 e 01100, inscreve-se no corte de duzentos a seiscentos versos; entre 1100 e 1150-60, de 1500 a 2500; em seguida, de mais de 5 mil; essa progressão, por saltos, não ocorre, pelo menos em parte, ligada à modificação das condições da performance? Já há muito tempo Jean Rychner afirmava, contra muitos outros, a influência dessas últimas sobre a composição dos poemas." O que ele escrevia então da epopéia merece ser prudentemente generalizado, ao que me parece. É por isso que podemos questionar as distinções que, prisioneiros de uma estética classicizante, somos levados a fazer entre os gêneros poéticos da época anterior ao século XVI. A verdadeira distinção, para aquelas pessoas, não provinha de circunstâncias performanciais mais do que de qualquer outro fator? F. Bâuml, no volteio de uma frase, perguntava-o em 1980.44 Um gênero, com efeito, resulta do agenciamento - na história - das propriedades semânticas e pragmáticas do discurso, análogo ao que é, no instante, o ato da palavra. Ele se define segundo os três eixos que determinam seus traços estruturais, suas relações com os outros gêneros e suarelação com o contexto histórico. Ora, em performance, os elementos desse contexto são assumidos, real ou simbolicamente, pelo corpo em presença. A estilização do jogo vocal, dos movimentos, do ambiente, sua codificação, mesmo se frouxa, contribuem poderosamente para o estabelecimento da relação em questão, reconhecível, de chofre, e objeto de julgamentos qualitativos. Não é isso o que entendia P. Bec quando escrevia que a "chanson de femme" constitui menos um "gênero" do que um "tipo lírico"? Não é às necessidades geradas pelo modo 261
franciscano de teatralização predical que se deve a formação do gênero dos laudi? A oposição entre farsa e sottie no século xv (problema discutido, e como!) não resultaria simplesmente da diferença de veste dos atores? Daí, ademais, o que conservam de fluido e informal todas as distinções genéricas até meados do século XVI. Nada do que se vem escrevendo sobre os fabliaux há 150 anos pôde fornecer uma definição estável do gênero. O próprio roman, chegado tarde, é limitado por fronteiras imprecisas; e, entre os grands rhétoriqueurs de por volta de 1500, os únicos "gêneros" identificáveis (tal como o rondó) o são em virtude de sua relação com a música ou com a dança ... Em performance, o texto pronunciado constitui, primeiramente, um sinal sonoro, ativo como tal, e só secundariamente é mensagem articulada. Donde, para o medievalista, uma aporia crítica, já que não pode apreender in situ a performance. Contudo, essa impossibilidade não justifica em nada a negligência com que se tende a pôr entre parênteses, ou a ignorar, com soberba, o problema. Não é inconcebível, diante do que falta, reconstituir (em muitos casos particulares que se tenham por exemplares, e ajudando-se com prudência de trabalhos etnológicos) os fatores da operação performancial (tempo, lugar, circunstâncias, contexto histórico, atores) e perceber, ao menos globalmente, a natureza dos valores investidos - entre os quais aqueles que o texto veicula ou produz. Em condições ótimas de informação, somos conduzidos até o ponto extremo em que a imaginação crítica aspira a alternar com a pesquisa: onde ouço, de repente, abafado mas audível, este texto; onde percebo, num relance, esta obra - eu, sujeito singular que uma erudição prévia tenha (esperemos!) despojado dos pressupostos mais opacos que se prendem a minha historicidade, a meu enraizamento em outra cultura, a nossa ... Certamente, em si, caso se chegue a ela, a reconstituição permaneceria folclórica, e não se saberia, tudo contribuindo para isso, verdadeiramente fundar um conhecimento. Parece-me, contudo, necessário que a idéia de sua possibilidade e, se posso dizer, a esperança de sua realização sejam interiorizadas, semantizadas, integradas em nossos julgamentos e em nossas escolhas metodológicas.
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CONCLUSÃO
13 E A "LITERATURA"?
o caso
do romance. A ilusão literária.
Em várias passagens, nos capítulos precedentes, fiz alusão a alguma especificidade do "gênero" romance. Por aí, com efeito, passam diversas questões históricas (o que é o "romance"? donde ele vem?), coloca-se um problema de civilização: num mundo da voz, o "romance" . arece pretender abafá-Ia. E será que abafa realmente? Sem dúvida, não. Certamente, se reservamos (como o fazem os medievalistas franceses em geral) o termo romance para designar as formil§. poéticas narrativas mais novas que apareceram, no cmrér da' segunda metade do século XII, na ~ ;d;pois na Alemanha (é o -caso das obras de Chrétien de Troyes), é forçoso constatar que seu funcionamento só deixa à voz o estatuto de instrumento, subserviente ao texto escrito que ela tem por oficIO fazer conhecer, mediante leitura em voz alta. Há, em relação ao conJunto de tradlçoes poéticas de então, uma grande diferença prática, mas não há uma situação fundamentalmente contraditória. O historiador deve simplesmente registrar o fato de que, ao cabo de dois ou três séculos, essa diferença iria produzir considerável mudança qualitativa e afetar a consciência que o homem moderno tem de suas relações com a linguagem. F. Bâurnl, em seu estudo sobre os Nibelungen, sustenta que. quando da performance oral propriamente dita, teatralmente desenvolvida, os ouvintes percebem imediatamente, e em bloco, o autor, o reeitante, o narrador e o texto, formando esses quatro elementos um todo indissociável; na leitura em voz alta, no entanto, o ouvinte só percebe desse modo o recitante e o texto. Donde um efeito de distância que um autor avisado pode explorar de várias maneiras. Mais próximo da desrazão que da razão, o problema, ao ser enunciado, foi em termos de gênese: uma abundante literatura crítica,
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ainda nos anos 40, 50, 60 de nosso século, tratou da "passagem" da epopéia ao romance. O que se queria dizer com passagem permanecia obscuro, a menos que, à maneira de F. M. Marín, se esclarecesse a discussão, de um ponto de vista quase meta físico, do avanço da linguagem a partir de formas arquetípicas: para aquele autor espanhol, o "romance" constitui, com a epopéia, uma das duas ramificações de um discurso narrativo primordial. 1 Uma concepção análoga, de origem romântica, está implicada no uso dos medievalistas alemães, que se servem das palavras Epos, Epik para designar tanto o Eneit de Veldeke, o Tristant de Eilhart, o Iwein de Hartmann quanto o Nibelungenlied ou o Dietrich. Uma perspectiva abre-se assim, muito geral para ser eficaz, na interpretação dos textos; mas permite, parece-me, situá-Ias melhor. O "romance" surgiu, com efeito, por volta de 1160-70, na junção da oralidade e da escritura. Logo de saída colocado por eSCrIto, transmis- ' sÍyeJ apenas pela leitura (com a intenção, é verdade, de atingir ouvintes), o "romance" recusa a oralidade das tradições antigas, que termi\ narão, a partir do século xv, marginalizando-se em "cultura popular". Formalizado em língua vulgar, mas por causa de altas exigências narrativas ou retóricas, o romance não recusa menos, de fato, a supremacia do latim, suporte e instrumento do poder do clero. Contrariamente aos contos de que se nutre o povo em geral, ele requer vastas dimensões: longas durações de leitura e de audição, em que os encadeamentos da narrativa, por mais embrulhados que por vezes pareçam, são projetados para um adiante nunca fechado, exclusivo de toda circularidade. O discurso acha assim, em seu nível próprio, garantindo conotações mais ricas, o traço de incompletude e de indefinição das palavras comuns, as que no fio dos dias dizem a vida. Nisso ele se opõe ao discurso redundante e fechado da poesia mais antiga. A expressão mettre en roman, freqüente no francês do século XII, designa o processo que permite atingir esse fim: operada por um indivíduo apenas arranhado pela cultura livresca, a colocação em romance tem por destinatário qualquer pessoa do meio cavaleiresco e nobre. O primeiro promove, por meio da pena e da tinta, com a intenção, em princípio, exclusiva do segundo, um enunciado de sua língua natural comum ao estatuto autorial do livro. Foi por dissociação da expressão que nasceu nosso nome romance: iniciativa, segundo tudo indica, de Chrétien de Troyes, em que se marca a força de impacto das práticas escolares sobre a prática desse escritor. Romance, originariamente advérbio, provindo do latim romanice, refere-se ao vernáculo - portanto, de modo primário, ao oral. Donde uma ambigüidade. Por isso os "romancistas" se defendem, protegem-se de um lado e de outro, opondo, a cada vez, 266
seu "romance" ao escritos latinos (à altura dos quais ele se alça) e às narrativas disseminadas pelos contadores de histórias, que eles afastam com desprezo. Sem dúvida, por volta de 1180, alguns tinham esquecido (ou fingiam ignorar) o sentido primeiro de pôr em romance: abusivamente transformada por muitos medievalistas em "traduzir", a expressão me parece referir-se, mais do que apenas à transferência lingüística, ao comentário que um mestre pronuncia sobre um livro de autoridade. Pôr em romance é propriamente "glosar" em língua vulgar, "pôr, clarificando o conteúdo, ao alcance dos ouvintes", "fazer compreender, adaptando às circunstâncias' '. Como entender de outro modo os primeiros versos do Guillaume de Dole, ou o prólogo do Cligés, vv. 1-25, testemunho explícito? Esta história é autêntica, diz Chrétien, porque está contida num livro da biblioteca de Saint-Pierre em Beauvais; desse livro foi tirado o conto (bem conhecido) do qual eu vos dou aqui a adaptação explicada, por isso significando mais - como outrora vos ofereci a da Ars amandi de Ovídio. O "romance" desmarca tudo o que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração. Reivindica mais fortemente (mesmo que fosse, como aqui, por um jogo de passa-passa) seu parentesco com algum texto latino. Recentemente, fundou-se sobre essa característica a distinção entre os gêneros do "romance" e do {ai, criações contemporâneas das quais a segunda se dá expressamente, ao contrário, como derivada da tradição oral." Os primeiros "romancistas", portanto, não se podiam mostrar unânimes na definição de seu propósito, e observam-se, durante meio século ou mais, muitas flutuações que traem as designações hesitantes de um gênero novo: romance, conotado pela idéia de glosa, conservará muito tempo por concorrentes conto, alusão a uma oralidade daí por diante dominada; aventura, evocando uma projeção num tempo aberto; e história, que é a verdade realizada.' Qualquer que tenha sido a tomada de posição pessoal de cada autor, o valor eminente que ele atribuía à escritura de fato v sua;~relações, não somente com seu texto mas também com o ouvinte. É isso o que entendem os medievalistas americanos, para os quais a "ironia" é constitutiva do gênero. O "romance" procede a uma iniciação crítica de seu ouvinte, ele o envolve (de maneira menos ou mais hábil) numa busca de sentido, uma investigação, certamente limitada pelas injunções simbólicas que pesavam sobre a cultura de então, ir realizável , no entanto, sem a intervenção do escrito. Tudo se passa como se a genealogia da narrativa escrita de língua vulgar, até por volta de 1200 quaisquer que fossem o argumento, a extensão e a complexidade -, 267
remontasse a uma das "formas simples" antigamente catalogadas por Jolles, o Casus,.narração consistindo em interrogar: onde está a verdade? Onde a justiça? É, muito literalmente, o tema central do Tristan de Béroul ou, com humor, do Éracle. Sente-se a pressão da corrente dialética que atravessa o século. Uma reflexão sobre a escritura (independente da tradição retórica) esboça-se assim, em língua vulgar, a propósito de narrativas de ficção, excluindo todos os outros textos. Ora, os "romances" dessa época constituem no Ocidente as mais antigas ficções confessadas como tal, sob o véu transparente de uma pretensa historicidade. Esse laço que liga a ficcão à consciênçia da escritura prende-se talvez ao fato de ue uma performance reduzida à leitura elimma os elementos mais fortes da teatralidade poética. Além disso, a icção e a exigência "irônica" de uma descoberta de sentidos trabalham em favor da lenta emergência, entre 1150 e 1250, dos valores individuais, da noção de personalidade; em favor da implicação de um sujeito em sua linguagem." Donde a utopia inerente a esse discurso" e (por causa dos vestígios totalitários que daí emanam?) a má consciência, a necessidade de justificação, as remissões estereotipadas à história, a pretensão de veracidade. Para os homens da Igreja, os "romances" são apenas fábulas vãs, nugas, mentiras ou romances de vaidades. Essas tensões vão atenuar-se pouco a pouco, do século XIII ao XIV, na medida e na proporção da difusão da escritura na classe domininte e da diminmção do prestígio da voz A equivocidade de base do gênero' 'romanesco" trai essa situação. Uma poesia cujo funcionamento implica a predominância da voz manifesta uma verdade que não se discute, possui por isso uma plenitude que torna possível seu perpétuo recomeço. O discurso de uma poesia cuja parte vocal é reduzida, divide-se, joga contra si mesmo, gera em si próprio a contradição. O homem que o diz e aquele que o escuta começam a saber que não se entenderão jamais, O poder de abstração aumenta, entretanto, com o papel da escritura na gênese e na economia dos textos, mas ele nega toda a equivalência entre linguagem e verdade, ~guivalência gue,-'lO contrário, exalta a per fOrmance teatralizada. A una• gem sensível do corpo em performance foi em grande parte fixada: nesse branco se esboçam os primeiros traços, ainda desajeitados e pálidos, que projetam o perfil de um autor ausente, provedor de significação. É assim que o "romance" dos séculos XII e XIII, e ainda do XIV, oferecese como uma resposta poética adequada à demanda do mundo cavaleiresco; mas, sob a obra, trabalha-a uma tensão entre esse desígnio social e o desejo de um autor. Sua língua perdeu a perfeita transparência, quando ele próprio aspira confusamente à universalidade. Nessa segunda me268
tade do século XI!, só a língua vulgar falada é verdadeiramente língua materna: escrita, ela se desvia para o lado do latim, do Pai, dos Poderes, do Outro. O romance, porque a escritura inscreve-se no próprio projeto, torna-se então o lugar de uma experiência mal exprimível e pouco conveniente: a língua que foi aquela da infância, que permanece a dos trabalhos e dos dias, altera-se, de repente "língua estranteira", este bel mentir que evoca Ogrin no v. 2327 do Tristan de Béroul, a propósito da epístola que ele vai compor: então, ressoando sob a máscara (exibidos e dissimulados em conjunto) os ecos das profundezas perturbadoras, em vão (parece) reprimidos, esse "murmúrio da língua" de que fala Roland Barthes, esse excesso de sentido ... Na grande mistura de novidades que agita a segunda metade do século XI!, a palavra viva permanece, de fato, uma fonte insubstituível de informações: Chrétien de Troyes, ele próprio, intervindo como autor em seus romances ou recorrendo à intermediação de narradores (como Calogrenant no Chevalier au Lion), integra "en abyme" em sua literalidade uma vocalidade fictícia." Na mesma época, Marie de France, no prólogo em que elabora seus Lais, insiste na audição que precedeu a escritura e da qual ela tira sua justificação final, de sorte que a voz não cessa de estar presente.' O autor do Tyolet, louvando, em seu exórdio, a virtude dos tempos antigos, lembra que então as belas narrativas de aventura, imaginadas pelos cavaleiros, eram contadas de viva voz na corte ou que os clérigos as colocavam em latim, por escrito: cabe-nos então traduzi-Ias ... Numerosos "romances" do século XII invocam esse trânsito do relato oral ao escrito, muitas vezes pela mediação de um primeiro texto latino (sem dúvida fictício): do Érec de Chrétien ao Méraugis de Raoul de Houdenc, ao Rei Inconnu, ao Guillaume de Dole, à Violette, ao Chatelain de Couci, ao Tristan de Thomas, ao de Gottfried, ao de Eilhart! Os romances em prosa do século XII, tanto o Lancelot francês quanto o Tristano italiano ou a Demanda portuguesa, mostram-se como projeção de um conto, ao mesmo tempo narrador impessoal e fonte do relato: "O conto diz então ...", "Então se cala o conto ...", frasesrefrãos que não ocorrem menos de cem vezes só nos tomos I e I! do Lancelot-Graal (ed. Oscar Sommer). Eles aí escandem e organizam a narrativa, desenhando o espaço enunciativo em que se atualiza, à leitura pública, uma relação performancial caracterizada pelo apagar-se qualquer traço de um narrador externo." Estranha culminação de um longo esforço filosófico, jurídico, moral e até lingüístico do século XII, que tendeu a uma desalienação da palavra, apressou, à força, a substituição do discurso organizado e da contestação oratória - e foi desembocar, finalmente, num reforço dos poderes da escritura! A história das poe269
sias em língua vulgar é tomada nesse movimento, segue os meandros e integra suas contradições. Em meados do século XIII, as coisas ainda não tinham acontecido. Certamente, o texto do "romance" tinha desde então adquirido, graças em parte ao uso da prosa, uma capacidade de abstrair e de refletir sobre si mesmo, autotelia que ele não possuía em regime mais livremente vocal. O escrito retira suas amarras, se assim posso dizer, aspira a ir à deriva, recusa o presente da voz, complica-se" proclama sua existência fora de nós, fora deste lugar. Ora, para tais efeitos a prosa presta-se mais ~e o verso: este, por seu ritmo, pelo jogo dos sons, pela mímica mais marcada que exige sua recitação, mantém com mais tenacidade e evidência todos os elementos de uma presença física e de seu ambiente sensível. Por volta de 1200, em vários meios letrados, toma-se consciência: o verso, em virtude dessa presença mesmo, indiscutível, escapa ao controle racional; o que ele enuncia é recebido pelo ouvinte como verdadeiro, sem nenhum outro critério: seu discurso é, portanto, em realidade e de maneira fundamental, "mentira". É esse o termo que empregam, nos anos 1190-1220, tanto o tradutor do pseudo-Turpin quanto Pierre de Beauvais em seu Bestiaire, o anônimo autor da Histoire ancienne, um adaptador das Vies des pêres, o cronista do reino de Filipe Augusto; o clérigo alemão que colocou em prosa o Elucidarium para o imperador Henrique, o Leão, embora mais discreto, não pensava menos nisso: os versos, diz ele, niht schriben van die warheit ("não transmitem a verdade")." Mas também uma mudança mais profunda se produz, no nível do sentido narrativo, nesse repúdio ao verso tradicional. Muitas vezes já foi comentado: o "romance" em verso é feliz, aberto, otimista; o "romance" em prosa tende a acabar em tragédia. O primeiro foi aproximado, por este traço, aos velhos contos folclóricos. Não é esse um dos efeitos da presença comum dos corpos na performance - efeitos muito atenuados, se não suspensos, na leitura em voz alta, expressiva mesmo, de longos textos de prosa? Na época em que se constituem os primeiros, aparecem também as primeiras memórias ditadas e anotadas em prosa, as de Villehardouin e de Robert de Clari; em breve, o eu, quando surge no texto poético, perde sua universalidade, vai fissurar-se em contato com um sujeito individual, vai deixar filtrar alguma confissão. Como nós talvez, em nosso fim de século, nossos predecessores do século XII, atentos aos sinais de decrepitude que seu mundo mostrava, experimentaram a necessidade de um discurso "verdadeiro" (eles não podiam pensar, como nós, "científico") sobre sua história, para assegurar-lhe, ao menos em esperança, os fundamentos. De fato, durante os séculos XIV e xv, mais e mais o "romance", escrito em prosa, 270
fantasia-se de narrativas históricas, mistura suas invenções maravilhosas à lembrança de uma família principesca bem verídica (Mélusine e os Lusignan), de uma personagem "verídica", Fouke Fitz Warin ou Moriz von Graün alemão, ou Jacques Lalaing sob a máscara do pequeno Jean de Saintré. Dom Quixote vai inscrever-se, por um lado, nessa perspectiva. Entretanto, esses deslizamentos sucessivos, a longo prazo essas reviravoltas, não bastam para reduzir a nada a operação vocal na difusão da obra nem para apagar do texto todas as marcas de sua profunda oralidade. Quaisquer que tenham sido os cuidados dos doutos, os efeitos da obra, para o praticante, continuam até o século xv, e mais tarde ainda em vários meios, a depender de sua recepção por um auditório. Tanto poetas como intérpretes ficam aí sensibilizados; tal é, sem dúvida, a principal razão da manutenção tardia do verso, ao lado da prosa, nos gêneros narrativos: Froissart, já em 1358-88, escolheu essa forma para seu Méliador. As freqüentes intervenções do "romancista" em seu texto - seus apelos ao dedicatário, por vezes aos ouvintes - prolongam também uma tradição formada sob um regime de livre oralidade, mas sua interpretação é mais ambígua. A longo prazo, elas anunciam uma interiorização da relação entre o escritor e o escrito; formalmente, nunca se afastam das exclamações dos cantores de gesta nem da sedução do jogral: elas implicam um jogo performancial. O emprego, notável na narração, do presente do indicativo - traço muitas vezes sublinhado - explica-se menos como figura de "presente histórico" do que como presença vocal- conforme se demonstrou para o romance em verSO;1O o procedimento não é desconhecido na prosa, como naquela da Estoire du Graal. A abundância de discursos diretos, monólogos e diálogos, mesmo que em si própria inócua, favorece na leitura os efeitos de voz e de mímica - ou seria o inverso? Da mesma forma, a importância temática ligada à palavra e à voz em romances como o Iwein de Hartmann ou o Tristan de Gottfried: Tristão é bem falante, conhece línguas estrangeiras, canta maravilhosamente; Isolda partilha desses talentos ... De que modo o leitor dava vida a tais passagens? A questão merece ser, pelo menos, posta. Fatos dessa espécie são numerosos. As miniaturas do manuscrito BN fr. 378 do Roman de Ia Rose, acompanhadas de rubricas assinalando mudanças de interlocutor no diálogo dos vv. 1881-1952,visam a uma explicação dramática dos papéis. Elas opõemse a outras miniaturas rubricadas, marcando articulações da narrativa. 11 De todo o modo, o texto brilha assim cenicamente, referindo-se a alguma realização performancial real ou fictícia. Que esta tenha sido não apenas real, mas também mais fortemente teatralizada por algo mais do que por uma simples leitura bastante neutra, a tradição manuscrita mui271
to diversificada de vários romances o faria supor: assim é com casos extremos, o Tristant de Eilhart ou o Lancelot do holandês medieval. Muitos "romances" oferecem traços estruturais que evocam as técnicas de teatralização do texto. O Tristan de Béroul, cuja composição colocou tantos falsos problemas, constitui em francês um dos exemplos mais notáveis. O aspecto arcaico que se presume ele oferece não é senão a face textual de um caráter geral fortemente mímico. Não duvido nada de que estejamos aí em presença de um "romance" interpretado, no sentido quase cênico da palavra ... como o foi, segundo meu modo de ver, o Éracle de Gautier d'Arras e como o foram ainda, sem dúvida, segundo A. C. Baugh, na Inglaterra dos séculos XIII e XIV, King Horn, Guy of Warwick e alguns outros.
A invenção do romance no século XII marca, no itinerário poético do Ocidente, um começo quase absoluto. Hoje em dia, pode-se ter o fato por estabelecido, a despeito das incertezas que obscurecem ainda os detalhes dessa história ... Sobretudo a despeito da avalanche de estudos sobre o romance à qual assistimos no curso dos anos 70 e sq, na França mais que alhures. O resultado foi uma deslocação de perspectiva, certamente justificável, mas sobretudo uma grave distorsão moderno-centrista da idéia que fazemos de "Idade Média". Globalmente, o fenômeno romanesco aparesenta um aspecto homogêneo: o mesmo feixe de causas produziu localmente efeitos de tal modo semelhantes que o crítico vê-se bastante tentado a reduzir-Ihes a identidade. Talvez conviesse insistir na diversidade. Assim, não se poderia negar que o romance, na encruzilhada entre a oralidade poética tradicional e a prática escritu"fcl.ria latina, tenha surgIdo como o resultado de uma reflexao ahva sobre essa dualidade do dizer - uma reação ao conflito de autoridade que ela gera. Embocados em matéria até então entregue apenas às transmissões orais, os romances ditos "bretões" (como os de Chrétien de Troyes) operam uma transmutação em escritura, tão radical quanto a que podiam sonhar os alquimistas em seu atanor. Mas é a operação inversa que se perpetua nos romances ditos'~os": uma tradição escrita e latina aí se vê adaptada, graças a uma série de transformações, pelo menos a certas condições de oralidade - que poderiam ser apenas o uso da língua vulgar e do que ela implica em todos os planos. Donde - para tomar exemplos eminentes -, no Éneas não menos do que no Érec, os elementos de um dialogismo fundamental, o levar em conta, simultaneamente, discursos que tendem a neutralizar-se um ao outro sem conseguir. Mas a tendência, aqui ou ali, é diferentemente polarizada, e não se saberia, sem abuso, descrevê-Ia nos mesmos termos. 272
O que nos fazem ouvir esses textos, coletivamente, é uma pluralidade não apenas de temas e de tons (pOUCOimporta), mas de tipos de discurso. E o que os distingue fundamentalmente, penso eu, é a posição que ocupam na encruzilhada que evoquei; a dupla relação que os une ou opõe à escritura e aos hábitos vocais e inscreve-se na genealogia de sua forma. Certas obras desse grande e arrazoado século XII mostram seu lado caótico, arcaico talvez, ou barroco. Mas ponho em causa menos esse caráter como tal do que o traço inicial de onde provém, e que indiretamente ele manifesta: a preponderância, entre os valores postos em jogo pela escritura, daqueles que se prendem ao modelo performancial, isto é, dramático - no sentido mais completo do termo. P. Dronke já punha em relevo o aspecto programaticamente "agramatical" de uma longa série de textos desde o fim do século XI, como (ele dizia) o Ruodlieb _ por uma recusa daquilo que, sem dúvida, parecia a certos autores uma servidão às exigências de uma escritura alienante. Tanto que, quando Wolfram no Parzival gaba-se de ser [letrado, eu entenderia que ele finge banir uma concepção totalizante da letra - o que esse autor logo comenta (115.21 a 116.4), denegando ao seu poema o estatuto de livro. O escritor de língua vulgar, nesse fim do século XII, transita entre a voz e a escritura, entre um fora e um dentro: ele entra, instala-se, mas conserva a lembrança mitificada de uma palavra original, saída de um peito vivo, do sopro de uma garganta singular. Ainda no século xv, o narrador (usando da primeira pessoa), na Demanda do Santo Graal portuguesa, invoca ao mesmo tempo como fonte e garantia um livro latino e um conto, evidentemente oral. Nessa tensão que o produz e sustenta, o significante tende a transbordar o que está escrito na página, a expandir-se na matéria teatral não como tal registrada, mas presente no bojo do texto, sob o aspecto de uma vontade de "dicção", no sentido em que esse termo se referiria a uma retórica da voz e a uma gramática dos movimentos do corpo. Num ensaio já citado muitas vezes, estudei desse ponto de vista o Éracle de Gautier d'Arras, opondo-o aos textos contemporâneos de Chrétien de Troyes: romance mal alinhavado desprovido de unidade, parasitado por digressões adventícias, mas de um ardor em que se fundem numa liga brilhante mil elementos heterogêneos; de um verdor alternadamente cáustico, galante, heróico, enternecido; em que o verbo tanto adere à nudez do vivido quanto tremula ao vento das palavras como uma bandeira: alegre, levando seu ritmo sem muito cuidado de horários _ ao contrário da ciência sintetizante da medida interiorizada, do trabalho em plena espessura semântica, de um Chrétien de Troyes, que 273
foi, sem dúvida na Corte da Champanhe, em alguma ocasião entre 1170 e 1180, "companheiro" de Gautier d'Arras. Um e outro clérigos, verdadeiramente eclesiásticos - e rivais, se admitimos que o prólogo do Chevalier à Ia Charette se refere à dedicatória do Éracle. Enquanto Chrétien cava e concentra em profundidade, Gautier desdobra uma história à maneira dos futuros contadores picarescos. Éracle estica, como nossa própria existência, como a de seu herói, do nascimento à morte, uma infinita seqüência variegada de acontecimentos, por sua vez maiores ou menores; condensa, num tempo de leitura - de escuta - relativamente curto, um tempo narrativo muito longo. Donde um efeito surpreendente, tanto de retenção como de expansão, de movimento centrípeto e de explosão centrífuga. A extrema diversidade da narração reúne-se, sem nada perder em frescor, não propriamente no sentido de uma intenção evidente, mas no da unicidade de uma ação; a de Gautier, pela qual ele se dirige a nós. A forte mas confusa unidade da obra é a unidade de uma performance. Gautier d'Arras aparece assim como um admirável contador - daqueles talvez que Chrétien de Troyes acusa, no prólogo do Érec, de "depreciar e corromper" sua matéria. Gautier tem apenas de fazer concessões estéticas pelas quais certa escritura culta semantiza um discurso, fixando-o. Sua operação ziguezagueante o faz passar, de um verso a outro, da abstração refinada do universo cortês à aparente banalidade e truculência do comum. Mas esse contraste, em si mesmo, não faz sentido - faz prazer. É essa a sua finalidade. Daí o aspecto descentrado que às vezes toma o texto; seu lado menos incoerente do que irremediavelmente fragmentário. Tudo se passa como se, paradoxalmente, o texto não fosse mais do que um dos jogos da ação que nele se ata e desata. No relato que inscreve sua pena, o autor proclama a imanência de valores que são os da voz amada - inominada. Ele nisso procede simultaneamente em vários níveis ou segundo vários eixos: - no nível estilístico (trivial e o menos decisivo), adotando procedimentos ou técnicas muito freqüentes na poesia, oral para constituir, por cumulação, uma alusão global, uma imitação eficaz; - no nível temático, tecendo na rede narrativa um motivo recorrente que se refere à palavra, ao som ou ao efeito da voz, ao poder do verbo pronunciado; - no eixo das finalidades, situando o texto inteiro na perspectiva concreta de uma performance: integrando aí as qualidades específicas exigíveis na realidade corporal desta. Longe de mim a idéia de apresentar Gautier como um arauto da poesia oral; nem seu romance como uma espécie de canção de gesta.
Gautier me aparece, mais no texto do Éracle, como não estando ainda preso, nesse terceiro quartel do século XII, às mentalidades escriturais, então em rápida expansão entre os clérigos de meio cortês. Seria útil instaurar neste ponto uma comparação com Ille et Galeron, o outro romance de Gautier, que ele declara posterior ao Éracle. Pode-se, não sem motivo, perguntar se Gautier - durante os dez ou quinze anos (entre 1170 e 1185) em que se tem prova de que ele atuou - não estava dilacerado entre duas concepções estéticas dificilmente compatíveis: a que privilegia a voz viva e a que se apóia nas propriedades e implicações da escritura. Gautier não foi o único, sem dúvida, nessa situação. Desde meados do século XII, com efeito, os clérigos começam a perceber uma diferença de estatuto quase ontológica entre a escritura e a voz: os prólogos de noSSOS"romances" a formulam em termos de auctoritas, o que eu traduziria por legitimidade, diante de uma verdade transcendente. Donde, por parte do escritor, uma reivindicação autojustificadora de clerezia, ciência assegurada, e, para o texto que ele escreve, da qualidade de livro. De umas trinta ocorrências desse último termo, registradas por Mólk, em diversos prólogos, entre 1150 e 1250, dois terços, é verdade, designam por isso alguma obra latina culta, fonte pretendida e garantia de um relato; mas os outros, depois de 1170 aproximadamente, designam sua própria obra. Assim é com Chrétien de Troyes, Lancelot, vv. 24-5. a contraste é significativo; mas traz problemas, e estes, interiorizados, manifestam-se por vezes no nível dos motivos ou da sintaxe narrativa. Assim é no longo episódio da carta de agrin, nos vv. 2330-2652 do Tristan de Béroul. Três quartos de século mais tarde, os atores (talvez uma equipe de clérigos da Champanhe) do LancelotGraal, vasto ciclo romanesco em prosa constituído no decorrer dos anos 1225-35 (depois refeito na maior parte das línguas européias), retomam com um tom sério e um certo peso escolástico os termos do que permanece para eles uma dificuldade conceitual: como, por quê, a que fim uma escritura _ e de língua comum - neste universo onde a maior parte dos poderes passa pe a voz. es respondem a essas questões colocando em cena o própno fexto que elaboram - e o fazem pela transcrição de um relato ditado por Merlin a seu secretário Blaise. Na Demanda portuguesa, livre adaptação do ciclo francês, o próprio rei Artur exige a colocação por escrito do relato de aventuras, constituindo esse romance: o autor, no século xv, requer a garantia do poder político supremo. a de Merlin tinha em seu tempo um sentido mais denso de conotações. Merlin (de cuja historicidade só tardiamente se começou a duvidar) é um profeta ilustre, anunciador e garantia do reino glorioso de Artur; e, além disso, nasceu de uma virgem com o demônio, redimido 275
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pela santidade de sua mãe, anticristo invertido! A segunda parte do ciclo conta, de forma circunstanciada, essa história, a fim de assentar a autoridade do conjunto. O profeta intermediário de uma mensagem providencial funda a realidade daquilo que assenta o escritor. O autor desconhecido do romance livra-se, por intermédio de Blaise, da responsabilidade que lhe impõe a exigência de veracidade ligada à história que ele conta e da qual proclama a muito alta e obscura verdade. Um ator é assim, ao mesmo tempo, narrador das ações que produz e faz produzir a outros; um segundo narrador, subordinado a este, registra o que sob sua pena está prestes a transformar-se em livro. O discurso de um terceiro (que chamaremos "autor"), engloba, reproduz e atualiza o todo. O que lemos situa-se, assim, no final de uma genealogia das palavras, assumindo, sob formas hierarquicamente encaixadas, os avatares de uma original voz viva.
Único - entre os gêneros poéticos cuja tradição se atesta antes dos meados do século XIII -, o "romance" tende, em sua especularidade, a dar-se por atividade, tendo em si seu próprio fim. Explícita ou implícita, sua reivindicação de tal estatuto distingue-se de todas as outras artes desse tempo, cujo projeto fica inseparável das tensões e movimentos religiosos, políticos, familiares, interpessoais, em suma, de um projeto global de sociedade, em que se integram funcionalmente. Essa originalidade do romance parece, à primeira vista, menos clara em relação aos trovadores, na medida em que o "grande canto cortês" supõe jogo, desvio, artimanha discursiva, incessante malabarismo verbal e conceitual. Mas o malabarismo é uma das constantes de toda poesia, do século VI ao xv e talvez ao XVI; e a intenção romanesca é menos gozar o mundo, a vida, a linguagem do que não os gozar para, por último, substituí-Ias por um universo à mercê do homem. Por isso, só o "romance", entre as práticas dos séculos XII, XIII, XIV ainda e, em medida menor, do xv, entra (forçando um pouco, mas sem muito prejuízo) no quadro, ao mesmo tempo ideal e ~ragfRáti69j "y~ Q8~igna nosso termo llteratura
discurso sobre "Idade Média", escapar ao preconceito ou à inércia pelas quais (depois do romantismo) se tem a tendência de falar de literatura (mas, também hoje, de escritura ou de texto) como de uma essência ou de um funcionamento à parte dos condicionamentos temporais. Não que simplesmente as modalidades da "literatura" se transformem, no curso de séculos, nem que os desvios de plano bastem para dar conta desses estados sucessivos: não existe a categoria "literatura" em si. Os comentários iniciais de T. Todorov a respeito disso, em seu Gêneros do discurso, aplicam-se não somente, de modo teórico, ao conjunto dos textos modernos mas, historicamente, a toda sucessão dos discursos. 13 A "literatura" não existiu (como não existe ainda) senão como parte de um todo cronologicamente singular, reconhecível por diversas marcas (tais como a existência de disciplinas parasitárias, denominadas "crítica" ou "história" literárias), entretanto difícil de especificar em teoria~ literatura é parte de um ambiente cultural em que podemos nomeá-Ia; e nos interrogarmos sobre sua validade é, para nós, mais ou menos, distanciarmo-nos de nós mesmos. posicionada entre nós, depois de três ou quatro séculos de discurso dominante, ela certamente não parou de ser contestada em suas variações a partir do interior; ela não o foi, até nossos dias, em suas constantes. Não se pode duvidar de que a linguagem é um fato universal, de finitório da humanidade. É provável que todo dado primário da experiência constitua o fundamento possível de uma arte (assim como a linguagem, de uma poesia). Mas a literatura não pertence, como tal, a essa ordem de valores. Mais ainda que a idéia de natureza, ela pertence ao arsenal dos mitos que constituiu para si, pouco a pouco, na aurora dos tempos mo ernos, a socie a e burguesa em expansão; esta a conser~ou, contra tudo e contra todos, por tanto tempo que a animou um verdadeiro projeto, manifestação de seu dinamismo e recurso mesgotavel ~de justi lcaçã2;. A literatura se terá mantido ao longo desse projeto; e, se sua legitimidade, sua existência mesmo são hoje postas em causa, é porque o projeto foi conservado em fogo lento enquanto nenhum outro assegurou a substituição. A literatura constitui assim um fato histórico complexo, mas, na perspectiva das longas durações, necessariamente tansitório. Globalmente e a prazo longínquo, talvez pudéssemos considerá-Ia sem desvantagem crítica como fenômeno pontual, de duração limitada, estreitamente condicionado por uma situa.ção cultural. Dessa última, os séculos medievais, até por volta de 1150-1200, aproximaram-se passo a passo, com lentidão e sem consciência sempre clara do que se tramava neles.
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A história da palavra literatura lança alguma luz sobre essa evolução.j O latim litteratura, calcado sobre o grego grammaticê, denotava na época de Cícero, e ainda na de Tácito, o fato de traçar letras ou, por extensão, o próprio alfabeto, enquanto Quintiliano o empregava como substituto dos termos gregos que designavam a gramática e a filologia. No uso dos Padres da Igreja, o termo refere-se à erudição geral con enda pelo ensinamento pagão, donde uma freqüente nuance pejorativa: Quoniam non cognovi litteraturam, diz o Salmo na Vulgata, introibo in potentias Domini ("Porque eu ignoro a 'literatura', entrarei na glória do Senhor"). Para Tertuliano, litteratura significa mais ou menos "idolatria". A tradição latina medieval elimina a conotação desfavorável, mas recorre raramente a essa palavra erudita, preferindo litterae. Estamos ainda aí nos séculos xv e XVI; entretanto, os humanistas tendem a restringir a significação, consideram o único conhecimento o dos "bons" escritores da Antigüidade, aqueles mesmos que fundam então o cânone poético e fornecem modelos para a arte de escrever. As línguas vulgares que, em várias nações ocidentais, tomaram emprestada a palavra latina para vesti-Ia a seu modo afastaram-se dela semanticamente apenas. Assim, o francês do século XII usa simultaneamente as formas lettreüre e littérature para designar o conhecimento do escrito e dos livros que são autoridade, às vezes a própria materialidade da escritura. Lettreüre, tornado lettrure, desaparece no século XIV. Quanto a seu par, ele sofre a concorrência de lettres, depois, por referência aos autores antigos tidos por "clássicos", bonnes lettres no século XVI e, desde 1650, belles-lettres, digno par de beaux-arts. Por volta de 1730, muda o vento, e letras recua diante de literatura _ movimento comum a todas as nossas línguas. O inglês Samuel Johnson, pelos idos de 1780, por literature quer dizer tanto uma cultura pessoal fundada sobre leituras refinadas quanto a produção de textos próprios a tais leituras. Na mesma época, na França, a littérature é também o conjunto desses textos. Essa extensão de sentido é um fato internacional, ligado à constituição de uma ciência estética na Europa do século das Luzes. Essa ciência, quando se aplica à obra de linguagem, leva em conta um tip particular de discurso, excluindo todos os outros. É a ele que se reter, literatura, não menos que ao grupo de homens que são seus produtores e consumidores privilegiados. 14 Criam-se expressões, precisando essa última perspectiva: littérateur tenta em vão, no tempo da Regência, dcsütuir o homem de letras; nó meio do século evoca-se a gent litteraire, O monde littéraire ... isto é, já enquanto membros de uma instituiç~o. Literatura e sua família lexical davam assim, pouco antes ele 1800, forma e rosto a um conjunto de representações e tendências errantes 278
e tardiamente associadas - na consciência européia desde quatro, cinco ou seis séculos: pré-história confusa, que lentamente tinha emergido das zonas do não-dito. Uma noção nova se constituía, no seio das tradições existentes, pela imposição de vários esquemas de pensamento, funcionando de maneira oculta como parâmetros críticos: idéia de um "sujeito" enunciador autônomo, da possibilidade de uma apreensão do outro, a concepção de um "objeto" reificado, o primado atribuído à referencialidade da linguagem e simultaneamente à ficção; pressuposição de alguma sobretemporalidade de certo tipo de discurso, socialmente transcendente, suspenso num espaço vazio e constituindo por ele mesmo uma Ordem. Donde a criação de uma categoria imperativa, promovida a portadora de valores que a Idade Média tinha atribuído comodamente aos auctores antigos, e subsumindo, em seu nível, todos os fatores do saber; fixação, nas línguas vulgares, de um cânone de textosmodelos, propostos à admiração e ao estudo: fechamento do horizonte imaginário, oposto à incessante abertura dos formulismos primitivos. Mas a formação de um cânone, na cultura de um grupo social, talvez entremostre o pavor que sentem os indivíduos desse grupo, do fundo de sua necessidade de sobreviver. Que medo, se isso é verdadeiro, que dúvidas, que desesperança manteve entre nós, dando-lhes figura, durante três ou quatro séculos, nossa "literatura"? Talvez a Antigüidade tenha concebido alguma noção próxima a essa. Ao menos, fica assegurado que ela não foi transmitida e que não terá havido aí continuidade. A tese contrária de,Curtius. num livro célebre mas hoje ultrapassado, simplificava abusivm;ente esta história. A tradição antiga, presa à alta época medieval por letrados como Fortunato, revivificada, por suas virtudes políticas, nos tempos carolíngios, ficou sufocada nos próprios séculos em que os letrados tomavam consciência da existência autônoma das línguas vulgares. Foi em torno da idéià e, em francês, do termo clergie, provenientes dos meios escolares do século XII, que se operou a primeira cristalização de elementos que, muito mais tarde, contribuiriam para a formação da idéia de "literatura". Uma tendência, herdada de retóricos da baixa Antigüidade ou haurida na leitura dos auctores, demarcava então, no espírito dos clérigos, a concepção do discurso escrito como relativamente autônomo, linguagem liberada de seu contexto imediato. Enquanto essa reflexão concernia apenas ao latim, ela permaneceu específica demais para afetar de modo duradouro as mentalidades e as condutas: seu campo de aplicação era, no final de contas, condenado à retração; de I'nto, passado o ano de 1250 e por dois ou três sécu los, o latim vai descmpcnhar sobretudo a função de língua técnica. Mas, a partir ele uma
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época que, conforme o lugar, estende-se de 1150, aproximadamente, ao fim do século XIII, são colocados por escrito os textos de relatos, de canções, de peças litúrgicas em língua vulgar. Talvez mesmo alguns desses textos tenham sido compostos por estilete ou cálamo, manualmente. Pelo viés dessa tecnologia, introduzia-se, discretamente, o que Luís Costa Lima chama um "controle do imaginário", cuja eficácia só aparece plenamente depois de 1500, após uma era de tensões crescentes, comum (sob diversos aspectos) a todas as nações ocidentais: tensões entre as energias poéticas tradicionais e as forças que procuram impor ao verbo uma racionalidade própria, em detrimento da palavra viva; uma capacidade reflexiva em falta da presença. A cultura ocidental, à medida que, desde o século XII, já se laicizava, transferia assim aos detentores da escritura a velha concepção teológica do Locutor divino. A linguagem já não servia mais à simples exposição de um mistério do mundo, não era mais o instrumento de um discurso fora de questão em si mesmo; daí em diante, a linguagem se faz: os discursos desagregados não têm mais autoridade que o indivíduo que os escreve. A idéia moderna de autor e as práticas que ela comanda, a relação que daí decorre entre o homem e seu texto: tudo começa a tomar forma, esporadicamente, no século XII. Apontou-se, em latim, Orderic Vital; em francês, Chrétien de Troyes e Gace Brulé, longínquos ancestrais ... 15 Essas mutações empreendem-se num mundo onde já se tenta instaurar uma ordem social em que dominarão os fatores econômicos; uma zona de "cultura" vai isolar-se, cercar-se de barreiras preservadoras; um "de fora" vai opor-se a um "de dentro": texto versus fora-do-texto; depois, num dia ainda longínquo, literatura versus o resto. Desde o fim do século XII, uma percepção difusa dessas implicações desponta em algumas confissões, em certas fanfarronadas de "autores" de língua vulgar: assim se dá com os protestos de tantos romancistas contra os contadores (seus rivais, apoiados na tradição oral), os jograis, rebeldes à disciplina da escritura - simples clichê? Talvez, porque também os cantadores de gesta a isso recorram, o que não é menos revelado r por sua própria universalidade. O autor russo do Dito da campanha de Igor, na mesma época, distingue sua arte daquela mais precária de um bardo chamado Boyan. Na Espanha do século xv, o marquês de Santillana, em seu Proemio, posiciona-se com desprezo contra os fabricantes desses romances e dessas histórias de que tiram seu prazer pessoas de condição baixa e servil! Nessa época, a maior parte das cortes do Ocidente tem seus menestréis efetivos, assalariados, estáveis: precursores de nossos homens de letras. A consciência de uma diferença estava tomada, inapagável. 280
* * * Todos esses traços, espalhados a perder de vista, começaram a reunirse, com efeito, ao mesmo tempo em que eles se manifestavam, no curso dos séculos XIV-XV.OS sinais desde então se multiplicam. É assim que, a partir da segunda metade do século XIII, constituem-se as antologias às quais a poesia do "grande canto cortês" europeu deve o fato de ter escapado ao esquecimento. Cancioneiros occitânicos, compilados na França setentrional ou na Itália depois da ruína do mundo meridional; cancioneiros franceses, canzonieri. cancioneros, ao longo dos anos 1300, 1400, por vezes recopiados, refeitos e recombinados por aficionados no século XVIe no XVIIainda, testemunhos de uma vontade de colocar à parte e em destaque, de formar um cânone que constituísse autoridade em língua vulgar; de designar noVOSclássicos. Já por volta de 1300 essas intenções exprimiam-se entre as linhas do De vulgari eloquio III, lI, 8, quando Dante invocava o exemplo desses "doutores ilustres" que são Bertran de Bom, Arnaut Daniel, Giraut de Bornelh, Cino da Pistoia. O primeiro texto de língua românica traduzido (no sentido em que entendemos essa palavra, e não adaptado, refeito) em outras línguas românicas foi o Decameron de Boccaccio: novo indício de "canonização", ao mesmo tempo que de fechamento dessas línguas, até então mutuamente abertas umas às outras. Outro sinal ainda: a dissociação progressiva, desde o século XIIIna Itália, depois geral no século XIV,do texto poético e da música, isto é, o abandono do canto (deixa para que um especialista, mais tarde, "coloque em música" esses versos); a redução da operação vocal ao registro falado. Guillaume de Machaut, morto em 1377, foi na França o último poeta músico; na Alemanha, Oswald von Wolkenstein, morto em 1445, o último poeta-cantor. .. e de quem se gabava a voz. Outro sinal: a personalização do discurso poético, aqui e ali, que se insinua depois de 1200, avançando após 1300 e triunfando pouco depois em Petrarca, mais tarde em diversos aspectos em Charles de Orléans, em Villon, em vários autores do Cancionero de Baena. Uma ficção de verossimilhança relaciona ao autor o "eu" do enunciado; e as circunstâncias em que o texto o diz sujeito, a uma experiência concreta e particular. Essa ficção representativa (inimaginável no século XII)implica uma duplicidade de linguagem,je éjeu enganador, e a retórica dominante expulsa do discurso poético toda reivindicação de verdade. A obra de Villon ilustra melhor do que qualquer outra, pelo biografismo ingênuo e vão que ela suscitou entre os intérpretes, a argúcia de uma linguagem absolutista, voltada para si mesma. Pouco falta desde então para que se atinja, segundo a expressão de Victor Brombert, "essa fronteira-transgressão, a partir da qual a palavra é substituída pela literatura, e o homem, pelo autor-pena".16 A despeito das ambigüidades e incertezas que subsis281
tiam antes que começassem a rimar os grands rhétoriqueurs borgonheses, os dados já estavam lançados. A Art de dictier de Eustache Deschamps, em 1392, e as ''Arts de seconde rhétorique" que lhe sucedem na França durante mais de cem anos, o Const van Rhetoriken do flamengo Mathys Castelein esboçam uma reflexão sobre a escritura, histórica e técnica ao mesmo tempo, multiplicando as referências a autoresmodelos, fortemente individualizados, que se consideravam garantia da "forma nova" e que lhe conferem, no tempo, suas cartas de nobreza - porque essa forma é, também e sobretudo, saber-fazer distinto, a serviço de uma função de entesouramento cultural. A difusão da imprensa fez cair os últimos obstáculos à constituição do que se tornaria, depois da "Idade Média", uma literatura. Por fim, ela viraria de ponta-cabeça as relações entre o autor e seu texto, entre este e o público. A obra dos mais antigos rhétoriqueurs, um Chastellain, um Robertet, o grande Molinet, nos ficou a partir de seu manuscrito vivo; a segunda geração, a de Gringore, Andrieu de La Vigne, Jean LerrÍaire, beneficiou-se da tecnologia nova: esse fato marcou a poesia, assim difundida, menos em sua forma aparente do que em suas intenções motoras, abertura para um público mais impessoal, ao mesmo tempo que "mise en abyme" do eu escritor. Nesse mesmo tempo, através da Europa apenas convalescente de uma das piores crises de sua história, uma classe dominante ameaçada exerce suas repressões em nome de uma ordem na qual ninguém mais acredita. O discurso poético desdobra-se em si mesmo, isola-se em seu próprio prazer e, de qualquer pretexto temático que ele se orne, procura em si próprio sua justificação e liberdade; essa interiorização, devido às circunstâncias de um mundo transformado, foi, sem dúvida, o fator constitutivo determinante de nossas "literaturas". As poesias européias, antes do fim do século XII, aqui e ali até do XIII, não tinham conhecido nada semelhante. Mesmo quando aparecem no horizonte da França e da Alemanha de 1150-80 os primeiros textos anunciadores de uma "literatura", eles se integram ainda, com todas as suas raízes e por sua configuração imediata, na cultura globalmente oral do século XII. De certa maneira, é verdade, a literarização de uma obra começa com sua colocação por escrito. Mas isso é apenas aparência. No "romance", e ainda mais fortemente em outros gêneros poéticos, o que subsiste, no coração do texto, de uma presença vocal basta para frear, ou bloquear, a mutação. É apenas bem lentamente, e não sem atalhos e voltas, que se desprende das vocalidades originais essa literatura em gestação. Esta, por suas estruturas, por seu modo de funcionamento e pelos valores que ela promove e impõe pouco a pouco à
sociedade européia, opõe-se de maneira quase contraditória às práticas poéticas tradicionais. Essas últimas já são velhas, nas línguas vulgares, de três ou quatro séculos quando aparecem os primeiros pródromos de uma era literária; elas vão resistir dois a três séculos ainda a essa pressão, só vão ceder completamente no dia em que tremerem sob elas seus fundamentos epistêmicos, ideológicos, sócio-políticos - o universo ao qual elas davam voz. Então, nas distâncias dos séculos XVII e XVIII, a literatura terá impregnado o discurso poético de uma necessidade de regulação, terá despertado nele o desejo de uma sistematização de textos, concebida miticamente como ganho qualitativo, como universalidade ou como humanismo. Antes disso, apesar de muitas formas ou setores da poesia seguirem essa tendência, a diversidade dos discursos não tem limites: a própria retórica não os traça verdadeiramente; vários ilustres medievalistas dos anos 1910 a 1950, de Wilmotte a Faral e a Curtius, sobrevalorizaram essas limitações e construíram um modelo abstrato, numa relação apenas ocasional com as práticas, premidos que estavam, mesmo sem consciência, pelo cuidado de provar que a palavra poética medieval pertencia à mesma ordem de realidade que nossa literatura. Certamente, uma regulação qualquer do discurso é sempre necessária para marcarlhe o caráter monumental: a única regulação sempre assegurada nas poesias tradicionais não é, ou não é apenas, textual, ela é vocal, e assim é recebida. Donde uma diferença de estatuto na memória coletiva. Aí o texto tradicional não permanece jamais isolado, colocado à parte de uma ação; ele é funcionalizado como jogo, do mesmo modo que os jogos do corpo, de que ele participa realmente, em performance. Como jogo, ele provê um prazer que vem das repetições e das semelhanças. O texto "literário", pouco depois de sua primeira difusão, inscreve-se no arquivo justamente denominado "cultura literária", a esse título privilegiado, confirmando, desde sua gênese, aquilo que basicamente é um academicismo. O texto tradicional, entre os discursos do grupo social, não desempenha nessa condição e fora da performance nenhum privilégio. É por isso que, sem dúvida, a noção de plágio não emerge antes do século XVI, de negação da fecunda intertextualidade oral.'? O texto "literário" é fechado: simultaneamente por causa do ato que, material ou idealmente, o circunscreve e na intervenção de um sujeito que efetua esse fechamento. Mas essa intervenção provoca o comentário, suscita a glosa, de modo que, nesse nível, o texto abre-se, e um dos traços próprios à "literatura" é sua interpretabilidade. O texto tradicional, em contrapartida, pelo simples fato de que transita pela voz
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e pelo gesto, só pode ser aberto, numa abertura primária, radical, a ponto de escapar, por lampejos, à linguagem articulada; por isso ele se esquiva à interpretação, pelo menos a toda interpretação globalizante. Quando nossa "literatura" se instaura enfim, na época que chamamos de clássica, as diversas partes do discurso social serão dissociadas por causa de competências a partir daí descontínuas, política, moral, religiosa, ameaçando deixar uma lacuna que para a sociedade é vital preencher: a de um discurso total e homogêneo, apto a assumir o destino coletivo. A literatura vai desempenhar esse papel. 18 Ela se tornará instituição. Vai exercer uma hegemonia, de fato, sobre as representações socioculturais que a Europa e depois a América formam de si próprias. Absorverá, substituindo-se aí a retórica e sua função normativa, as "belas-letras" e a idéia de cultura "liberal" que a ela se prende; vai deslocar para o praticante literário a noção de auctor que a tradição medieval referia às fontes permanentes do saber. Resulta disso uma tendência moralmente totalitária, que se estende aos próprios discursos mantidos sobre a literatura - a da Idade Média, em particular, na prática dos medievalistas. Tal é o círculo que importa quebrar. O texto poético medieval não foi em seu tempo hegemônico; simplesmente foi útil. A literatura serve quase inevitavelmente ao Estado. Desde o fim do século xv, reis e príncipes confiam aos rhétoriqueurs o cuidado de sua propaganda; a memória de Chapelain a Colbert, por volta de 1660, compromete a literatura francesa e, depois, a européia num caminho do qual ela não se afastará mais até os nossos dias: as revoltas ideológicas ou aquilo que assim se proclama, o trabalho do texto, as colocações em questão da linguagem, os ensaios de desconstrução, nada impedirá o discurso literário, ainda que contra os sujeitos que o proferem, de visar a uma totalidade, e esta, o mais das vezes, de ser recuperada e identificada a uma Ordem. A sociedade em que se formaram e transmitiram as poesias tradicionais ignorava todo monopólio de poder. O discurso poético aí dizia o universo e a liberdade, se não a incoerência do que existe, e nada do que ele propunha era verificável, para além de uma esfera estreita, em volta de cada um de seus ouvintes - no alcance de uma voz. Os reis do século XII, na Inglaterra, na França, na Espanha, na Alemanha, tentaram apropriar-se desse poder. Foi o tempo das primeiras emergências "literárias". O movimento estava definitivamente assegurado quando, três séculos mais tarde, impunham-se as monarquias absolutas; sua culminação coincidiu com a formação dos nacionalismos. Esses sincronismos não têm nada de anedótico. Eles dimensionam, na história, a incubação e depois o crescimento de uma realidade nova, de componentes mal dissociáveis. A "Idade Média" e suas tradições discursivas não
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se concernem, aqui, senão muito parcialmente; e de modo algum nas épocas antigas, apenas mais tarde, um pouco durante aquilo que Huizinga chamou de seu outono.
O termo "literatura" coloca assim uma tela entre o medievalista e o objeto de seu estudo, exclusivo de toda instituição dessa espécie. É certamente viável analisar em sua significação os traços de extensão muito geral: constituição de um "monumento" de linguagem, reflexividade e o resto. Estas marcas transbordam e referem-se menos à especificidade "literária" do que àquilo que possui de radical o fato poético. Uma parte das proposições enunciáveis a propósito de nossa "literatura" é aplicável aos textos medievais. Mas não se saberia tomá-I os como ponto de partida. Não me vejo, exprimindo-me assim, formulando um juízo de valor, mas tentando discernir um fato. A literatura é o que veio depois: num período da história ocidental em que se transformavam, enfraqueciam, por vezes se "viciavam", os antigos costumes a partir dos quais se geraram as formas poéticas da "Idade Média". A literatura é o que se produziu num esforço admirável dos homens para ultrapassar sua crise de consciência, esse "desencantamento" do mundo de que falava Max Weber. Seria melhor tirar proveito, em nossa reflexão sobre as culturas medievais, de dúvidas difundidas hoje sobre o sentido, a função, o futuro do "fato literário"? Sartre já colocava a questão de sua perenidade. Passados alguns anos, tende a dissipar-se como objeto de conhecimento ou, simplesmente, de percepção. Simultaneamente, o estatuto da "história da literatura" é recolocado em questão. Tais incertezas não são próprias de nossa época; elas se associam aos queixumes que inspira periodicamente, há três séculos, uma pretensa decadência da cultura livresca: constante paradoxal, em que se poderiam discernir os acessos recorrentes de uma nostalgia da voz viva. Mas a lógica discursiva que constituiu nossa "literatura" funciona hoje cada vez pior: uma ameaça de alienação conota mais ou menos todos os sentidos produzidos por ela. Prova-o o destino que jogou durante uma vintena de anos com a "teoria literária": compensação - talvez envergonhada - de uma perda de fé na validade das literaturas. O alemão designa com uma palavra pesada, mas sem ambigüidade, "desdiferenciação" (Entdifferenzierung), essa morte metafórica da literatura, imersa na cultura de massa. Ora, a literatura de massa, paraliteratura, TrivialLiteratur ou qualquer nome com que se a designe, produto de substituição (para além das fraturas culturais sucessivas dos séculos xv, XVI, XVIII) de uma velha poesia vocal, recolheu e preservou muitos traços
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desta; funcionalmente, ela a substitui prolongando-a. Os romances de Eugene Sue reutilizavam truques dos cantores de gesta; ainda sob o segundo Império, nos imóveis parisienses de bairros operários, ocorria que o porteiro fazia em voz alta a leitura de um folhetim aos locatários reunidos; não há muito tempo, lia-se assim em família. Em nossos dias, deslocam-se os lugares dessa voz: séries radiofônicas, televisivas e, mais sutilmente, a onipresente revista em quadrinhos, que substituiria no século XIX os almanaques em vias de desaparecer. A palavra triunfa aí, inscrita em balões pintados que saem das bocas, em contraponto a uma imagem oferecida à percepção direta e bruta, reduzindo a quase nada a operação de decodificação. Dessa experiência, que faça o medievalista seu mel. É de uma cultura de massas que se ergue globalmente a poesia medieval, e não de uma "literatura". Os clérigos, escritores, gente de escritura no exercício de sua função, precursores certos do mundo moderno, formam na sociedade européia dos séculos medievais uma minoria ínfima - de influência, é verdade, considerável, mas não é isso que está aqui em causa. Os jograis, os recitantes, os menestréis, gente do verbo formam a imensa maioria daqueles para quem a poesia se insere na existência social: ela aí se insere por obra da voz, único mass medium existente então; e, quanto melhor o texto se presta ao efeito vocal, mais intensamente preenche sua função; quanto mais a vocalidade que ele manifesta parece intencional, melhor ele age. Pensar "literatura" a propósito disso, com as conotações que lhe parasitam a idéia, é correr o risco de um fechamento elitizante. Também de um fechamento etnocêntrico, numa experiência historicamente limitada, própria das nações européias e americanas dos séculos precedentes. Desde então se falseiam as perspectivas, tão logo o olhar se desloca no espaço ou no tempo. A única operação que talvez rompa o círculo, vindo a estabelecer uma visada mais justa, inspira-se numa antropologia cultural, e não se proporia a respeito do objeto outra coisa senão situá-lo entre as existências concretas e as circunstâncias em que foi percebido.
Posfácio
A LETRA E A VOZ DE PAUL ZUMTHOR
Um livro como A letra e a voz é, para os estudiosos de literatura, de cultura medieval e de literaturas orais (como é o caso da tradicional nordestina), um divisor de águas. Também para os que se ocupam de teoria da literatura ou de questões de poética. Neste momento, em que se buscam tantas revisões, nenhum texto pode ser mais sugestivo do que este, instigante e inovador, em princípios e propósitos - tal é a densidade e o alcance com que Paul Zumthor elabora conexões entre os campos de interferência da voz e da escritura; o papel da voz em certas séries institucionais como a Igreja e a Escola e em séries mais difusas: os costumes, o cotidiano, a vida cultural. O medievalista/poeta pretende arquivar de vez procedimentos de uma certa "arqueologia textual", rotuladora e antiquada, e tenta avançar no sentido de destruir os limites cristalizados, colocando por terra muitos dos preconceitos que sempre estiveram presentes na hístoriografia da literatura ocidental. É uma questão de postura. Ampliando a noção de texto literário, procedendo a uma grande síntese de algumas das mais importantes teorias contemporâneas, como a estética da recepção, e passando pelos aportes de McLuhan, o texto quer dizer muito mais e compreende desde a parte física de sua emissão até o espaço material e corpóreo de sua realização íntegra e de sua acolhida: "O texto se tece na trama das relações humanas múltiplas, que, sem dúvida, na experiência vivida foram tão discordantes quanto contraditórias". A oralidade se faz um princípio do texto poético, permitindo-lhe deslocar a dicotomia popular/erudito, evitando discriminações. O reconhecimento profundo da materialidade produtiva da voz, com seus atributos intercorrentes que abalroam o signo - nomadismo radical, intervocalidade, eroticidade, movência, dissipação de autoria - propõe de fato novos caminhos.
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Aliás, desde trabalhos de muitos anos atrás, ele nos diz que a poesia medieval, em certo sentido, se aproxima dos mass media; que o texto trazido por ela se dirige a um público formado pelas artes de representar e pelos ritos; olhar e gesto. A voz geraria a terceira dimensão deste espaço para uma sociedade praticamente analfabeta, no medievo. Mesmo hoje, muitas das obras poéticas escritas com que lidamos talvez devessem ser lidas levando-se mais em conta as várias possíveis gradações d~ inscrição vocal na escritura, a par da importância concedida às relações semióticas dos níveis sonoro, gráfico e visual. O que se está procurando ver não é se o texto é produzido ou reproduzido por dominantes ou dominados, ou saber, no caso, quem controla os meios de comunicação, embora isso possa ser trazido para esclarecer, em outras instâncias, fatos que se liguem àquilo que se pretende explicar. É de fato a sua "semiose" que está em causa. O que conta é~ .1LQ.!lservaçãodo texto poético vivo, em suas diversas formas de oralida-4 em suas gradações, na relação vária com o escrito e com os meios mediatizantes. A letra e a voz é uma espécie de comprovação de tópicos, de temas, questões que o autor foi desenvolvendo nas centenas de artigos que escreveu, ao longo de provocante percurso crítico, como por exemplo no antológico "La circularité du chant", que publicou, já há tantos anos, no número 2 da revista Poétique. É como se o autor viesse semeando e voltasse recolhendo os resultados, para continuar sua obra em curso. Muito importante, em se tratando de oralidade, a relação contínua, e em vários graus, com a escritura, que se destaca em capítulo deste livro e no conjunto de sua obra. Pode-se perceber aí o complexo deslinde de formas e técnicas, aquilo que se avalia, a partir do que ocorre com a formulação dos itens "As maneira de ler" ou "A voz do escrito". Deixanos aberta uma via, em que se recupera um mundo de conhecimentos, para os situar, o passado relacionado sempre ao futuro, uma aproximação que se dirige à pluralidade das maneiras de expressar mas também a uma espécie de continuidade una do poético. As linguagens são vistas como o centro da sociedade e da história. Passam a valer muito alguns problemas da comunicação, como o das mediações na emissão do texto, que tem sua condição semiótica definida. Portanto, não se situa aqui o que é "melhor" ou "pior", mas propiciam-se as condições para entender o fenômeno da letra e da voz enquanto princípios em relação. O texto se apresenta como produção do corpo, do gesto. da yoz,..canalizando a teatralidade de antigas culturas e as de nosso tempo. Fica sendo tudo um grande conjunto, em que a permanência se faz marcada pelo que de mais rico traz, segundo ele,
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a experiência humana: a dimensão emotiva da comunicação, o alcance dos princípios que garantem - a plenos sentidos - uma presença corpórea, memória imperecível, toda vez que se presentifica. Este livro é um daqueles fundantes, obra a partir da qual se é convidado a rever tudo aquilo que parecia estar à espera de revisão. Espantamo-nos às vezes com algumas formulações que consideramos exageradas, mas, em seguida, relativizando, alguns dos achados de Paul Zumthor nos parecem tão claros que nos surpreendemos, pensando em "por que" não tínhamos atinado antes. É este exercício que se faz à medida que se avança por seus estudos. Traduzi e remeti-lhe, em forma de poema, há muitos anos, uma seqüência de seu livro Le masque et Ia lumiêre. Em carta, respondeu-me que lhe ficava cada vez mais claro que sua obra teórica era mesmo poética. Por isso, sua postura é a menos afinada com um cientificismo textual que comprove ou demonstre; pelo contrário, é a partir de uma certa "heurístic
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nios, em-todos os níveis, consagraram o essencial das suas energias a interiorizar suas contradições". Não é, portanto, por acaso que a palavra.a:[Quler [recaJcar, reprimir] aparece tanto, sob várias formas, em sua obra. Constante é a sua preocupação com incursões antropológicas, com a fundamentação de uma outra etnologia que apresente ao entendimento da literatura processos e alicerces para o ritual do entendimento. Numa carta de 1989, diz o quanto acha importante que se atue tendo como suporte a antropologia, fundamento de análise que nos permite renovar perspectivas, elemento de relativização e de confronto, desabafando: "Parece-me que, depois de uma dezena de anos, os estudos literários não avançam (piétinent), repetem-se, engendram uma retórica que não tem a ver com a "realidade". Colocando em xeque uma etnologia míope, conforme denomina, seguiria as trilhas de Roman Jakobson e Bogatirev (Questions de poétique. Paris, Seuil, 1973, pp. 59-72) ao valorizar uma espécie de meta-conhecimento poético que as comunidades detêm, e ao analisar a produção poética em relação a ele. Oferece-nos para trabalhar conceitos como réconnaissance, o reconhecimento que se faz do que se ouve, implicando textos múltiplos e públicos vários, em que têm peso as noções de performance, realização concreta da oralidade em seu meio, de intervocalidade para contrapontear com a noção de intertexto. Chega mesmo a criar a unidade mínima e'~e desta atuação, que denominatyõcem"ãl(ironizando em seguida a denominação, mas não o que ela significa). Passa-nos, enfim, a idéia de que o texto, em suas gradações, é historicamente provisório mas poeticamente definitivo. A formação do autor provém da filologia tradicional e se abre para o efeito e o alcance renovadores, a partir do conhecimento dos trabalhos de Hjelmslev (em 1960) e Roman Jakobson (em 1964), conforme ele mesmo declara em sua entrevista concedida à Folha de S. Paulo (17/12/88), com o título "Poesia, tradição e esquecimento", quando de sua passagem pelo Brasil. Vamos encontrando também evidências de obras com que dialoga, como é o caso do teórico russo Mihail Bakhtin (a que teve acesso somente em 1970-71): o dialogismo, o grande texto corporal e sensitivo, e, em certa medida: ;-modo de resgatar dados das fontes tradicionais de informação. A sólida erudição que, em vez de se fazer esmagadora vai, em volutas, buscando a ponta de múltiplos indícios. Sua escrita, torrencial e profusa, conduz e transmite, bem diante de nossos olhos, fundamentos de algumas das principais discussões deste século, trazendo-as a seu ritmo mais intenso. Traduzir Paul Zumthor não é simples, e aqui não se trata de saber mais ou menos francês, mas de aceitar o desafio, de respeitar uma con-
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dição de pensar e de se exprimir, as inversões repentinas, o difícil que aparentemente complica o fácil, a sintaxe que violenta a ordem francesa mais habitual, a explicação encadeada, a linguagem que se faz carregar de emotividade, perplexidade, prazer. Pontuada, a seu modo, numa sucessão que parece obedecer a elos sem fim. As metáforas de ângulo aberto se fazem seguir, a precisão conceitual se reúne à paleta de um pintor "impressionista", aos tons que aí se esmaecem ou escurecem, a depender. Encontramos muitas vezes o apelo a métodos de avaliação muito tradicionais, como a presença de procedimentos da estilística quantitativa que, segundo ele, são restos de velhos hábitos filológicos, e de repente irrompem insights m~ito especiais, às vezes fulminantes: que se injetam num ou noutro tipo de formulação. É quando a linguagem do escritor mais se recria e re-inventa. Neologismos são usados e, de repente, o próprio inovador reflete sobre eles, fazendo-os acompanhar de parênteses e exclamações. Lê-lo, e ainda mais traduzi-lo, é 12articipar inticffiamente desta rota de criação) e ainda do universo luminoso da escolha de temas inquietantes
e percucientes ...
Seria difícil afirmar que se seguiu toda a obra de Paul Zumthor, pensador universal, talo volume de leituras, a extensão e a diversidade que obrigariam a um investimento quase exclusivo. Ensaio, ficção, poema, conforme lista em anexo, ou até alternando poema, teatro, ficção. A atividade do criador vai acompanhando a produção da obra teórica. Seria, por exemplo, muito esclarecedor um estudo que procurasse seguir os trânsitos de uma à outra para alcançar de que modo elas se entrelaçam, completam, como se confirmam as dominâncias. Personagens e procedimentos se repetem: da magia dos magos, profetas, pregadores aos elementos de uma história cotidiana, do preciosismo que se revela aos mistérios que se escondem. Note-se que a atitude de selecionar, de antologiar Victor Hugo em seu lado maldito, poeta de Satã, textos de Bernardo de Claraval, fundamento da poética trovadoresca, do cavaleiro ao santo, dos rhétoriqueurs ao mundo epistolar de Abelardo e Heloísa, é uma deliberação em conjunto. Diga-se de passagem que sua introdução a estas cartas é também um exemplo de como interpretar documento e vida, ficção e escritura, de como relacionar a personagem e a imaginação que as cria e conduz: "Pouco importa, narração fictícia ou confissão autobiográfica, o texto traz seu próprio sentido, engendrando neste lugar utópico, em que ressoam os ecos do mundo (o dos séculos XII e XIII) contra o qual ele se constrói, assimilando-o. Abelardo e Heloísa, designo assim, de ora em
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diante, as "personagens" revestidas desses nomes (Correspondência de Abelardo e Heloísa. São Paulo, Ed. Martins Fontes, 1989). Seu estudo sobre a cultura holandesa de que me falara Antonio Candido, há muitos anos, e com grande entusiasmo, antecipa-se a muitos dos atuais e importantes trabalhos sobre a vida cotidiana, que surgiram em várias partes da Europa. Encontramos aí a repercussão do clima plástico e miniaturista do mundo flamengo, em que os tons dos muros, os marrons dos tijolos e das peças de caça nos levam à alvura das toucas e dos aventais engomados, aos ofícios, um compromisso de interpretar vida e arte num contínuo. Publicado em 1960 pela Hachette e logo depois no Brasil pelo Círculo do Livro, tendo em 1989 uma edição de sucesso, A Holanda no tempo de Rembrandt (Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989) é de fato urna obra-prima. Não se sabe mesmo dizer como é possível que tantos dados tenham sido retirados de documentos e se juntassem para formar o painel que nos lembra o virtuosismo e a iluminação de um filme como Barry Lindon, de Kubrick, e em que cada detalhe avulta, para depois se compatibilizar no conjunto: "Uma linha castanha-avermelhada, ou negra, ou rosa sobre o verde uniforme das pastagens. Talvez no extremo horizonte um perfil de dunas. Eis a cidade pousada horizontalmente no solo ... Algumas torres, um campanário, telhado, desenhando-se logo abaixo do imenso céu neerlandês, brumoso de garoa ou de luz suave. Um longo muro de tijolos, um molhe de terra". Este livro se construiu, de fato, a partir da leitura de numerosos textos holandeses do século XVII e do exame atento e sistemático dos quadros do museu Mauritshuis de Haia. Foi concebido como uma homenagem à Holanda, onde viveu de 1950 a 1970. Sua tese de doutoramento, publicada e republicada em 1943 e 1973 (Geneve, Slatkine reprints), Merlin le prophête, e que tem como subtítulo "um tema da literatura polêmica da historiografia e dos romances", procura seguir o texto da esperança bretã do ciclo arturiano, que se tornou profecia política, e onde já nos diz que Merlin pode ser apenas uma voz a quem se empresta uma nuance espiritual. Discute a profecia e a voz, o tema da esperança salvadora, e termina por recuperar o mago como personagem de um mundo histórico nebuloso mas fabulosamente vivo. Merlin, o mago, o profeta, feiticeiro, personagem, ensina magia e usa-a para agir, no sentido tradicional da profecia. Note-se aí a contemporaneidade da atuação de Paul Zumthor, que nos declara ter construído este trabalho sob a influência dos grandes medievalistas, seus mestres, F. Lot e E. Faral, aparecendo-nos porém nitidamente delineado o caráter de transformação que iria dar a sua obra. 292
Histoire Iittéraire de Ia France médiévale (PUF, 1954 e republicada em 1973) é um monumento de informação, trazendo aquele viés crítico que se iria desenvolver depois, e, como sempre, levantando pontas de questões vitais à discussão dos "gêneros", por exemplo, ou dos modos de transmissão de textos. Em verdade, ao fazer história, o discurso do autor vai do ensaístico ao poético, empenhando-se por vivificar os repertórios. Nele, o cumulativo não ocorre nunca sem que se dê uma irrupção de criatividade. O trabalho nos leva a pensar na urgência da sistematização histórica da nossa literatura popular, na necessidade de se escrever uma outra história da literatura oral, aproveitando o legado de Câmara Cascudo, dando porém alguns passos além, rumo a uma "poética" . É com Essai de poétique médiévale (Paris, Seuil, 1972; traduzido em várias línguas) que Paul Zumthor recupera a experiência anterior e dá um grande avanço em sua construção teórica. O Essai teve um primeiro esboço em Langue et techniques poétiques à l'époque romane (Paris, Klincksieck, 1963), que constituiu a primeira ruptura com a filologia t@dicional e a aproximação ao estruturalismo. Organiza aí seu lastro, -COiltifumdo a intuição às cOTI:trí15UÍÇões teóric;;pelas quais vai passando. Eclético, mas sempre fiel a uma direção que assumiu e que iria continuar em sua obra presente. Foi então criado, de fato e pela primeira vez, um espaço para abrigar o conhecimento da literatura medieval sob UQyoprisma, acolhendo lingÜísti~,ãTnquietação que afasta dos teóricos que se apoiaram na retórica, na hermenêutica filosófica tradicional ou apenas na filologia. Teríamos naturalmente de aproximar esta démarche da que fez o historiador.AIou Qmu:évitch.(v. Les catégories du temps. Paris, Gallimard, 1978), que também dá um passo à frente quanto aos estudos de história medieval. Criou-se, de fato, uma outra medida para os estudos medievais, outro parâmetro, espécie de base para todos os que sentem a propulsão inovadora, querendo pensar em novos moldes questões de texto e de cultura. Poesia é, como aí designa Paul Zumthor (e hoje já nos parece tão claro), tanto !!!!!S.2.I)-~de textos ditos poéticos como a atividade que os produziu: o corpo, o gesto, os meios. Diz-nos então que uma cultura de caráter arcaico, como é a da Idade Média, engendra um texto que assume, revestindo nele em geral duas funções que não estão bem separadas: uma relativa à percepção do sagrado, e outra desprovida desta carga misteriosa, que poderíamos dizer prática. Mostrando a que ponto se faz a ligação poesia/psicodrama, nos revela como o poeta reforça a coesão de um grupo social e que sua tarefa consiste em aplicar as regras (sic) de uma arte venerável comprometida com os ritos ensinados e aprendidos. 293
Em Langue, texte, énigme (Seuil, 1975), reúne vários estudos que compreendem o livro enquanto objeto aos poemas chamados Carmina Figurata, observando aí a semioticidade que se concentra nesta relação palavra-imagem. Há, como sempre, uma unidade prévia aglutinando tudo aquilo que poderia parecer disperso, razão que o leva a nos dizer que estes ensaios desenham em grandes traços, em diacronia, da alta Idade Média até o século xv, a curva de preocupação própria deste tempo. O referido texto sobre os Carmina Figurata dá uma atenção profunda às dimensões espaciais da poesia. No capítulo "Jonglerie et Langage" passa-nos o seu profundo conhecimento de arte poética, mostrando-nos a ocorrência dos A. B. C. medievais (gênero que permanece na literatura oral brasileira) e seus jogos, a ordem e o próprio desenho do discurso. Não seria portanto por acaso que, quando nos conhecemos, na década de 70, tenha me falado com tanto entusiasmo de Haroldo de Campos e da poesia concreta brasileira. Quando chegou ao Brasil, em 1977, como professor convidado pela Unicamp, trazia em sua bagagem um corpo de poetas que então estudava ..Qs rhétoriqupw:s, aúlicos franceses que não apenas desenvolveram um coeso exercício poético, como criaram a possibilidade de uma fecunda discussão sobre o sistema e a margem, o mundo oficial da cultura e o submundo que irrompe nos interstícios, Discute, a partir deles, a festa, atentando para os ritos jocosos e obscenos no espaço da criação poética. Confirmando uma justificada aproximação a Bahktin, teórico de quem se permite freqüentem ente tanto se aproximar quanto se afastar, procura ver como se dão neste universo os mecanismos da criação. Através do estudo da expressão, da linguagem de um conjunto de textos, vai estabelecendo sofisticadas distinções, como a que organiza e desenvolve entre alegoria e alegorese, entre a simbolização e a realização do discurso alegórico nos seus processos de linguagem. Na seleção que prepara destes poetas, a partir de tão profundo convívio com suas obras (Anthologie des grands rhétoriqueurs. Paris, Union Générale d'Éditions, 1978), revela o conhecimento objetivo do modo de ,ser deste "artefato" medieval - o verso. O tema encontraria um mais amplo espaço em Le masque et Ia lumiêre (Paris, Seuil, 1978), em que se liga a análise dos fazeres de um grupo de poetas aos princípios e razões de um século. Discerne, num todo, uma espécie de operação geral e a idéia de um saber novo que implica intensa formalização de linguagem. Consegue neste livro, que se faz um modelo de trabalho, oferecer uma amostra de possibilidades.
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Traça aí um grande panorama que abriga crenças, práticas, ritos e nos conduz pela trama das idéias, pelo traçado das questões do tempo, levando-nos a ver como nesta unidade de informação e procedimentos estava patente a "descoberta" da América. Fala-nos de uma Europa cheia de barulho e de furor, de extravagâncias e de êxtases, dizendo-nos que nesses poetas se enraízam as futuras utopias. Situando o universo em que se organizam literariedade e cosmovisão daqueles que estuda, assim ele nos transmite: O passado deriva progressivamente, afasta-se do presente com o qual até então se relacionava à maneira de fundo de ouro, pintado por trás dos personagensdo retábulo! Eis que se descobre o passado sem deixar de instaurar, em figura mítica, um futuro; generalização da perspectiva visual em pintura; tendência à estabilização das relações temporais em sintaxe: invenção (no primeiro terço do século XIV) e depois difusão dos relógios mecânicos, concebidos primeiramente como autômatos para reproduzir os movimentos astrais. Uma distância se cava entre o homem e o universo, sensível cotidianamente aos próprios costumes e à "civilidade" que, a partir daí, distingue as "classes dominantes".
Aparecido em 1983 logo depois de sua vinda ao Brasil, e sem deixar de mostrar as marcas desta experiência, Introduction à Iapoésie orale é um trabalho que pensa a literatura oral em tipos e gradações que formam um contínuo, um grande texto, aproximando-se naturalmente da noção de texto único formulada pelo semioticista soviético)úri Lotman, mas dele diferindo quanto a circunscrevê-I o a classes sociais. Procura aí processar os níveis de formalização, discutindo "gêneros", afirmando a força da oralidade e confirmando-nos a noção básica de performance: "É a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida no momento". Sua experiência é mais do que um percurso numa direção teórica. Ele próprio tem corrido mundo, reunindo materiais para pensar este conjunto, que às vezes pode pa-' recer tornar-se abstrato, quando sujeito à amplitude da perspectiva, mas que se faz viável, na medida em que sobre ele incidem o húmus de sua experiência e a força de insights fulminantes. Poderíamos então glosar, dizendo-nos diante de uma "semiose participanttC, pois ao exercício interpretativo se vem unir toda uma poética da observação viva. Nada lhe escapa: das antigas línguas em extinção cuja voz ressoa, em eco distante e plangente, às canções contemporâneas, dos roqueiros e metaleiros e seus aparatos à indústria do disco. Seria preciso esperar por 1992 para receber do inquieto e criativo
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Paul Zumthor um romance que traz o universo múltiplo, psicológico e relacional da aventura da "descoberta' '. É em La traversée (Montréal, L'Hexagone, que está sendo traduzido em Portugal) que o ficcionista exercita os conhecimentos que vêm do seu exercício de entendimento do mundo de expressão e do universo - suporte da criação dos poetas que escolhera para estudar: os rhétoriqueurs. Provém daí a captação das metáforas poéticas dos navegadores, a síntese de todo o ambiente, em que ele conseguiu distinguir dois discursos que se opõem. O primeiro se adapta ao sistema, o segundo se sobrecarrega de contradições referenciais, e vai em busca da festa. Diz-nos então que a festa substitui as zonas de sombra pela luz de uma ficção de felicidade. Tanto no estudo quanto no romance há pistas comunicantes que levam a um sutil conhecimento vertical, que paradoxalmente se espraia e estende. Conseguimos alcançar o quanto Paul Zumthor é um historiador, mesmo quando opera com sincronias ou explica modos de ser, um intérprete, quando reúne dados da materialidade mais imediata, aqueles de um mundo distante, que precisa recompor e que se transformam em seu fio de prumo, sua poética, quando associa aos órgãos dos sentidos toda uma sutileza de conhecimentos. Encontram-se, em sua obra, a força do político pelo poético, os passos dados rumo a uma outra sociologia da criação, o assentamento de uma espécie de história nuclear que se constrói a partir de momentos, de situações mais semantizadas da cultura ocidental: um megatexto cultural que a desborda. Jerusa Pires Ferreira (colaboração
de Amálio Pinheiro)
NOTAS
I. PERSPECTIVAS
(pp. 15 - 34)
(1) Curschmann 1967; Haymes; Voorwinden-Haan. (2) Calin-Duggan. (3) Fonagy, pp. 57-176. (4) Dragonetti 1984, p. 369. (5) Jauss 1978, pp. 46-63. (6) Zumthor 1978, p. 11. (7) Zumthor 1978, pp. 22-53, e 1980a, pp. 77-8; cf. Garin, pp. 21-35 e 74-88; Gumbrecht 1985. (8) Muchembled, pp. 213-21 e 382-4; Gourevitch, p. 42. (9) Duby em Gourevitch, "Préface"; Chaunu, pp. 15-6 e 21.
2. O ESPAÇO
ORAL
(pp. 35 - 54)
(1) Segre 1971, vv. 1014, 1466, 1517; Bezzola, pp, 200-7. (2) Môlk 1969, p. 6; Sayce, pp. 73-4. (3) Poirion 1972, pp. 11-4 (4) (5) (6) (7) (8) (9)
Salmen, pp. 42-3. Sayce, pp. 348-9 e 370. Gallais 1964, pp. 491-2. Winkler, p. 288; Scholz 1984, pp. 144-5. Crosby, p. 90. Môlk 1969, p. 61.
(10) Scholz 1984, p. 139. (11) Môlk 1969, p. 78; Crosby, pp. 90-1 e 99-100. (12) Crosby, p. 90. (13) Avalie 1965, p. 23, e 1966a. (14) Wardropper, p. 177; Ker, p. 137; Lomazzi-Renzi, p. 607. (15) Storey, pp. 22-3. (16) Wapnewski, p. 33.
296
297
(17) Zaal, pp. 58-60; cf. Miilk 1983. (18) Renzi, pp. 4-14; Laforte, pp. 8-48 e 261-6; Langlois, p. 315; Stappler.
(30) Gourevitch, p. 85. (31) Arnold, vv. 10 543-86; Gschwind, vv. 251-792.
(19) (20) (21) (22) (23) (24) (25) (26) (27) (28) (29) (30)
(32) (33) (34) (35)
Anders; Buchan; Jonsson; Metzer etc. Davenson, pp. 157-62. Holzappel 1978. Boutiere-Schutz, p. 14. Goldin 1983, pp. 38-9. Comunicação de G. Le Vot, 1985. Romeralo 1969, pp. 365-6. Heger; Hilty; Romeralo 1969, pp. 347-64. Boutiere-Schutz, p. 236. Números de Pillet-Carstens 112, 262, 70. Lamb-Phlipps. Bahat.
3. OS INTÉRPRETES (I) (2) (3) (4) (5) (6) (7)
(pp. 55 - 74)
Faral 1910, p. 323; cf. Salmen, p. 19. Baldwin, p. 143. Salmen, pp. 110-3; Gérold, p. 367. Lopez Estrada 1970, p. 249. Menéndez Pidal 1924, pp. 52 e 432; Duggan 1981, p. 311; Salmen, p. 66. Menéndez Pidal 1924, pp. 36, 110, 426-7; Burke, pp. 97-8. Zumthor 1983, pp. 218-21.
(8) Payen 1968, p. 497. (9) Salmen, pp. 55-62; Stegagno-Picchio, 11, pp. 65-7. (10) Stegagno-Picchio, 11, p. 68. (11) Fry. (12) Harvey. (13) Salmen, p. 10. (14) Respectivamente: br. I b, vv. 2403-580 e 2857-3034; vv. 12 803-18; vv. 5-8 e 83-118;
~ II
vv. 1386-1404. (15) Bezzola, pp. 48 e 195; Haskins, p. 142. (16) Miilk 1969, n? 74, vv. 43-5. (17) Ibid., pp. 13-4. (18) Faral 1910, p. 64. (19) Salmen, p. 80. (20) Hartung. (21) Salmen, pp. 53, 74, 95; Triaud, p. 764. (22) Bullock-Davies, pp. 67-173; Faral 1910, p. 61. (23) Menéndez Pidal 1924, pp. 99-109; cf. Faral 1910, pp. 87-92. (24) Goldin 1983, p. 46. (25) Gitton; cf. Faral 1910, pp. 55-9. (26) Sayers. (27) Salmen, p. 63. (28) Sayce, p. 422; cf. Schnabel, pp, 274-7. (29) Faral 1910, pp. 44-50 e 62; Casagrande-Vecchío, p. 923; Salmen, p. 43.
298
Diverres, vv. 4703-5098. Rey-Flaud 1973, p. 21. Pulega, pp. 63-5; Lerer, pp. 102-3. Bezzola, pp. 214-39.
4. A PALAVRA FUNDADORA
(pp. 75 - 95)
(1) Duby, pp. 27-31. (2) Auerbach, p. 217; Pulega, pp. 11-3; Avalie 1984, pp. 52-4 e 87. (3) Leclercq 1975, pp, 671-2 e 686. (4) Clanchy, p. 159. (5) Zink 1976, pp. 365-76; Bremond-Le Goff-Schrnitt,
p. 99.
(6) Bourgoin, p. 261. (7) Pulega, pp. 22-3. (8) Vauchez. (9) Saxer. (10) Beaujouan, pp. 587-8. (11) Ong 1967, pp. 203-6. (12) Duval, pp. 519-609. (13) Gagnon 1977, pp, 54-70. (14) Speroni, p. 30. (15) Knepkens-Reijnders, pp. X-XLII. (16) Riché 1985, pp. 137-43; Thorndike. (17) Lusignan 1986, pp. 16-7 (18) Boogaard 1985, pp. 109-24. (19) Grabcís, pp, 616-21. (20) Guénée, pp. 77-85; Lacroix, pp, 50-3. (21) Ray. (22) Woledge-Clive, p. 27. (23) Lacroix, p. 53. (24) Byock, pp. 155-6. (25) Stock 1983, pp. 42-59. (26) Gourevitch, pp. 157-211. (27) Clanchy, pp. 6, 11, 21. (28) (29) (30) (31)
Waelkens. Labatut, "Introduction". Chapelot-Fossier, pp. 63-4, 169-72, 187. Muchembled, pp. 21-55; Delumeau 1978, pp. 143-70.
(32) Boutiere-Schutz,
5. A ESCRITURA
p. 254.
(pp. 96 - 116)
(1) Clanchy, p. 230_ (2) Miilk 1969, p. 91.
299
(3) Riché 1979, pp. 300-3; Clanchy, pp. 82 e 131-2; Delisle. (4) Stiennon, pp. 146-63; Clanchy, pp. 88-115. (5) Stiennon, pp. 124-9. (6) Rieger 1985, p. 399. (7) Garand, pp. 80-1; Ouy-Reno; Williarns. (8) Stock 1983, pp. 75-6. (9) Stiennon, pp. 16-8. (10) Gruber, pp. 28-9 (11) Stiennon, pp. 19-25; Scholz 1980, pp. 35, 47, 187-8,200-1; Stock 1983, pp. 13-7. (12) Riehé 1979, p. 298. (13) Riehaudeau, pp. 242-56; Richaudeau-Gauquelin, pp. 39-41; Cranney, p. 528. (14) Porras Barrenechea, p. 439. (15) Saenger. (16) Ong 1982, pp. 119-22; Marchello-Nizia 1978, pp. 32-4 e 43-4. (17) Garand, p. 103; cf. Nigris. (18) (19) (20) (21) (22) (23) (24) (25) (26) (27) (28) (29) (30)
Chaunu, p. 11. Scholz 1980, pp. 211-20. Thornpson, p. 196. Baurngartner 1985, pp. 96-7. Zurnthor 1984b. Eisenstein. Stiennon, pp. 137-46 e 169; Clanchy, pp. 126-30. Clanchy, p. 264; Poulin. Foerster-Koschwitz, pp. 172-4. Le Goff 1980, p. 355. Riché 1979, pp. 329-40; Gérold, pp. 352-67. Werf, pp. 29-30; Rackel, pp. 19-25. Lug, pp. 257-8.
(17) Segre 1957, pp. 4-6. (18) Cf. Ollier 1974a, pp. 359-63, e 1974b, pp. 33-6. (19) (20) (21) (22) (23) (24) (25) (26) (27) (28) (29)
Jaeger. Bezzola, p. 28; Bruyne, p. 165. Casagrande-Vecchio, p. 917. Bezzo1a, pp. 23-7. Bologna 1982, p. 731. Zipoli: capo 23, 36 etc. Agarnben, p. 66. Bruyne, pp. 272-7. Flandrin, p. 103. Rigoni, pp. 76-85. Schrnitt 1985, pp. 98-9; Certeau, pp. 123-5.
(30) Clanchy, p. 202. (31) Agarnben, pp. 64-5. (32) Stock 1983, pp. 363-403. (33) Hunt, pp. 120-1. (34) Faral 1924, pp. 259-60. (35) Goldin 1983, pp. 26-8 e 95-7. (36) Wapnewski, p. 100; Ribard 1970, p.. 9. (37) Bruyne, p. 311. (38) Riché 1979, pp. 237-8. (39) Bruyne, p. 217. (40) Gérold, pp. 358-60. (41) Srnoje, p. 267; Gérold, p. 361. (42) Lomazzi-Renzi, pp. 618-9.
7. MEMÓRIA 6. UNIDADE E DIVERSIDADE
(pp. 117 - 136)
(I) Stock 1983, pp. 245-51. (2) Cirese, pp. 15-6; Chartier 1985a, pp. 376-88. (3) Molho; A1var 1974, pp. 576-9; Lewicka; Bec, pp. 30-3 e 59-60. (4) Grundrnann; Bâuml 1980; Clanchy, pp. 214-20; Franklin, pp. 8-10. (5) Clanchy, pp. 177-85 e 219. (6) Flori, p. 360. (7) Stock 1983, p. 27. (8) Bologna 1982, p. 732. (9) Riché 1979, pp. 542-3; Goldin 1978, pp. 14-6. (10) Davy, p. 55. (11) Bãuml 1980, p. 259. (12).Zurnthor 1978, pp. 254-5. (13) Clanchy, pp. 245-8. (14) Rychner 1983, pp. 276-9. (15) Joutard, p. 223. (16) Singleton; cf. Branca 1964, pp. 219-23.
300
E COMUNIDADE
(pp. 139 - 158)
(1) Yates 1969, pp. 81-4. (2) Guénée, pp. 78-85. (3) Goldin 1983, pp. 104-18. (4) Werner, pp. 169-70. (5) Zurnthor 1972, pp. 75-82. (6) Hilka-Schumann, I, p. 247. (7) Menéndez Pidal 1968, I, p. 45. (8) Maddox-Sturm-Maddox. (9) MüIJer. (10) Roncaglia 1984. (11) Kilito, pp. 24-9. (12) Lord 1971, p. 220; Zwettier, p. 23. (13) Suard; Galrnés de Fuentes 1979. (14) Roncaglia 1977. (15) Lecoy; Matsubara. (16) Menéndez Pidal 1968, I, pp. 301-34. (17) Krauss 1980, pp. 5-24; Duhoureau. (18) Sayce, pp. 4-5 e 102-3.
301
(19) Pasqualino 1969; Pires Ferreira; Peloso. (20) Picchio; Bowra (índice, sub voce bytiny). (21) Faral 1910, p. 67. (22) Le Vot 1983b, pp. 264-8; Gonfroy, pp. 188-90.
8. DICÇÃO E HARMONIAS
(pp. 159 - 180)
(I) Zumthor 1983, pp. 79-83. (2) Menéndez Pidal 1968, I, pp. 70-5; Bowra, pp. 302-3 e 326-9. (3) Buschinger
1983, pp. 97-8.
(3) Faral-Bastin,
Bulst, pp. 170-4. Mõlk 1969, n? 14. Ibid., n~S 6, 8, 9, 22. Lote, pp. 53-6 e 69-78. Le Vot 1982, p. 70. Ernest, pp. 47-8. Ahern. Comunicação de B. Roy, 1986 (a ser publicada em G. Di Stefano e P. Stewart,
302
(20) Ollier 1976. (21) Hasenohr. (22) Cerquiglini; Schulze-Busacker.
RETÓRICA
(pp. 201 - 218)
(I) Vecchi 1952, pp. 56-60 e 362; Strecker 1926, p. 84. (2) Zumthor 1983, pp. 132-4; Wardropper, pp. 177-80.
(I) Wapnewski, p. 103; Woledge-Clive, p. 27.
(10) Bruyne, pp. 305-6. (\I) Leupin, pp. 211-2.
1973.
Rieger 1975; Kully. Menéndez Pidal 1968, I, pp. 52-62. Zumthor 1963a, pp. 142-61. Ollier 1986a e 1987; Perret 1986. Faral 1924, pp. 55 e 201.
10. A AMBIGÜIDADE
(pp. 181 - 200)
eds., Actes du colloque sur te théâtre médiéval,
(15) (16) (17) (18) (19)
(25) Kilito, p. 19.
(14) Scholz 1980, pp. 184-6. (15) Zumthor 1987, "Introduction"; Vecchi 1951. (16) Maillart 1961; Sayce, pp. 368-407; Cummins. (17) Klopsch; Norberg; AvalIe 1984, pp. 46-51. (18) Burger. (19) Bahat, pp. 299-300. (20) Zumthor 1975, pp. 55-67. (21) Menéndez Pidal 1968, I, pp. 137-40; Weber 1975. (22) Sayce, pp. 45-6 e 156-7. (23) Renoir-Hernandez. (24) Turville-Petre; Lawto.
(2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9)
(13) Goldin 1983, pp. 76-8. (14) Taeger, Bulatkin, Hardt, Buschinger
(23) Peloso, p. 45. (24) Avalie 1960, I, pp. 22-5; Sayce, pp. 306 e 434.
(4) Salmen, p. 63. (5) Sayce, pp. 241-3. (6) Siraisi. (7) Bruyne, pp. 116-27. (8) Zumthor 1975, pp. 125-43. (9) Lote, p. 30. (10) Faral 1924, pp. 361-70. (11) Lote, p. 63. (12) Zumthor 1972, p. 399. (13) Bruyne, pp. 18-20; Haskins, pp. 141-5.
9. O TEXTO VOCALIZADO
(12) Gérold, pp. 353-67; Riché 1979, pp. 225, 274-6 e 370-1.
Montréal).
11,
pp. 268-71.
(4) Nigris, pp. 424-8. (5) Faral 1924, p. 260. (6) Maguire. (7) Ollier 1978, pp. 100-1. (8) Dragonetti 1982, p. 66. (9) Bar; Batany 1982, pp. 40-1. (10) Battaglia, pp. 129-44. (11) Weinrich 1973, pp. 25-64; Ricoeur, pp. 287-320; Rychner 1971; Ollier 1978. (12) Avalie 1966b, pp. 155-69. (13) Zumthor 1973, índice, sub vocem mime e monotogue. (14) Hamori, pp, 3-30. (15) Boutiere-Schutz, p. 59. (16) Pearcy. (17) Erlich, pp. 27-36. (18) Zumthor 1983, pp. 137-8. (19) Zink 1976, pp. 293-301; Stock 1983, pp. 409-10. (20) Bremond-Le Goff-Schmitt, (21) Jauss 1959, pp. 142-52.
11. A PERFORMANCE
p. 147.
(pp. 219 - 239)
(1) Chaytor, p. 55. (2) Gallais 1964, p. 483. (3) Kaiser, pp. 386-7. (4) Scholz 1980, pp. 57-64 e 84-8. (5) Boogaard 1985, p. 68.
303
(6) Crosby, p. 101. (7) Ibid., pp. 108-10. (8) Hackett, v. 11; corrijo avaire, incompreensível, em a dire. (9) Duggan 1981, pp. 249-52. (10) Koopmans, p. 84. (11) Raynaud de Lage, li, p. 148. (12) Jackson 1965, pp. 58-75. (13) Boogaard 1985, pp. 60-1 e 179-89. (14) Pike, pp. 23-46; Kaiser, pp. 401-13; cf. Marinis, pp. 7-11. (15) Auerbach, pp. 231-3; Bologna 1984, pp. 315-6. (16) Scholz 1984, p. 138. (17) Ibid., pp. 145-7. (18) Salmen, p. 34. (19) Paden 1983, pp. 78-80. (20) Romeralo, pp. 364-5. (21) Faral 1910, p. 273, n? 6a. (22) Dembowski, pp. 54-7. (23) Buschinger 1980, pp. 3-5; Mõlk 1969, pp. 59-60. (24) Mõlk 1969, pp. 10-2. (25) Pulega, pp. 119-21. (26) Boogaard 1985, pp. 143-4. (27) Sayce, pp. 63-73. (28) Faral 1910, pp. 48-9. (29) Mermier, pp. 483-4. (30) Riquer, p. 75. (31) Ibid., p. 76. (32) Dahnke. (33) (34) (35) (36) (37) (38)
Donovan, pp. 6-12; Pulega, pp. 8-11; Avalie 1984, p. 84. Bakhtine, pp. 286-8. Burke, p. 118. Casagrande-Vecchio, p. 926, n? 25. Zink 1976, p. 271; Casagrande-Vecchio, pp. 919-24. Bruyne, p. 72.
(39) (40) (41) (42)
Casagrande-Vecchio, p. 921; Schmitt 1981, p. 389. Lecoy de Ia Marche, pp. 209-16. Avalie 1984, pp. 73, 98-9, 107; Mazouer, pp. 361-7. AubaiJly, pp. 108-209.
(8) Fonagy, p. 207. (9) Faral 1910, pp. 19-20. (10) Goldin 1983, p. 129. (11) Fonagy, pp. 51-5. (12) Goldin 1983, p. 59. (13) Apollonio, pp. 82-3. (14) Brault, pp. 111-5. (15) Micha, li, p. 15. (16) Riché 1978, p. 195. (17) Chailley 1950, p. 238 e n? 617-22. (18) Faral 1910, p. 319 e texto n? 235; Salmen, p. 115. (19) Faral 1910, pp. 90-2; Salmen, pp. 74-5. (20) Sahlin, pp. 152-3 e 179-81. (21) Verrier; Metzer. (22) Menéndez Pidal 1968, I, pp. 98-101. (23) Pulega, pp. 126-31. (24) Salmen, pp. 130-4. (25) Donovan, pp. 12 e 176-7. (26) Schmitt 1984b; Casagrande-Vecchio, pp. 925-6, n? 21; Bologna, p. 274. (27) Schlieben-Lange 1983, pp. 13-25. (28) Boyer, p. 243. (29) Matvejevitch, pp. 77-87 e 191. (30) Freeman, p. 107; Poirion 1985, p. 13. (31) Speculum historiale, XXIX, 108 (comunicação de S. Lusignan). (32) De acordo com Gallais 1964, pp. 487-8; Ménard 1983, pp. 94-5. (33) Scholz 1980, pp. 144 e 170. (34) Menéndez Pidal 1924, pp. 107-9. (35) James, pp. 187, 189, 203, 207, 224. (36) Taylor, p. 205, n? 68. (37) Webb, p. 46. (38) Lusignan 1982, pp, 35-8; Bruyne, pp. 392-3. (39) Casagrande-Vecchio, pp. 922-3; Tatarkiewicz, pp. 263-72. (40) Hult 1983, pp. 53-6. (41) Lopez Estrada 1983, p. 17. (42) Cf. Casetti, pp. 22-7. (43) Rychner 1955, pp. 46-59. (44) Bãuml 1980, p. 246, n? 23.
13. E A "LITERATURA',?
(pp. 265-286)
12. A OBRA PLENA (pp. 240 - 262) (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)
(1) (2) (3) (4) (5) (6) (7)
Maillart 1982, pp. 52-4. Bruyne, pp. 287-90. Ibid., p. 225. Schmitt, 1984a, pp. 127-9. Bruyne, p. 126. Schmitt 1981, p. 384. Pavis, pp. 29-30.
304
Marín, pp. 49-57. Schmolke-Hasselmann, p. 14. Ibid., pp. 22-3. Gourevitch, pp. 310-1; Bloch 1977, pp. 188-202; Zink 1985, pp. 27-46. Ollier 1984. Ollier 1974a e b. Dragonetti 1973, pp. 32-3; Ollier 1983, pp. 76-7.
305
(8) Perret 1982; Burns, pp. 35-54. (9) Woledge-Clive, pp. 27-30. (10) Ollier 1978. (11) Hult 1984, pp. 260-1. (12) Kuhn 1968, pp. 247-8. (13) Todorov, pp. 13-26. (14) Wolfzettel, pp. 8-15. (15) Garand, pp. 101-3; Baumgartner
1984, p. 9; Zink 1985, pp. 38-41.
DOCUMENTAÇÃO
(16) Brombert, p. 418. (17) Ruhe. (18) Reiss 1982a, pp. 57-107.
Os títulos ou subtítulos de certos estudos citados aqui são muito longos. Eu os abrevio reduzindo-os a suas primeiras palavras, sem que esta operação Ihes altere o sentido. Designo pelas abreviações seguintes algumas revistas às quais as referências são numerosas: CCM: Cahiers de Civilisation Médiévale MER: Medievo Romanzo OL : Olifant (publicação do ramo usx-Canada
da Société Rencesvals)
P : Poétique RLR : Revue des Langues Romanes SP : Speculum TLL : Travaux deLinguistique et de Littérature (publicados pelo Centro de Filologia e de Literaturas Românicas da Universidade de Estrasburgo) Além disso, emprego, nos títulos: Z. f. para Zeitschrif für; A. para Archive(s), Archiv etc.; M. para "Idade Média, moyen ãge, Mittelalters, medievo" etc.; m. para os adjetivos correspondentes em diversas línguas: ed(s). designa o editor responsável por um volume coletivo; ed., uma edição de texto. Adler, S. 1975, Epische Spekulanten, Munique. Aebischer P. 1964, Le mystêre d'Adam, ed., Genebra e Paris. Agamben G. 1983, "La glossolalie comme probleme philosophique",
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Litteratus e illitteratus referem-se, portanto, menos a indivíduos tomados em sua totalidade do que a níveis de cultura que podem coexistir (coexistem freqüentemente) no interior de um mesmo grupo, até no comportamento e na mentalidade do mesmo indivíduo. O iletrado - a parte "iletrada" de mim, de você, desta sociedade inteira - domina menos as palavras e menos das palavras, mas está mais próximo destas e sofre mais seu poder; sem dúvida, é por isso que (como a própria "letra" do Evangelho aponta) convém fazer triunfar em si a illettrure para assegurar a salvação: Francisco de Assis entendeu "literalmente" essa metáfora e rejeitou a curiositas dos livros." Pela pena ou pelo ensinamento dos sábios, uma teoria se esboçou desde o século IV e tomou forma em Isidoro e Gregório, o Grande, para atravessar a época medieval até os versos bem conhecidos de Villon: aos letrados a escritura, aos iletrados as imagens, com igual veracidade;" intueri ("decifrar com os olhos e penetrar" o texto) contra contemplari, segundo os termos de uma resolução do sínodo de Arras, em 1205, que parece excluir toda situação mediadora. 10 O cristianismo ocidental não compartilha nem as tendências iconoclásticas de certos orientais nem a prudência do islamismo, o qual, por horror à idolatria, faz da própria escritura, em suas grafias, o fundamento de toda arte visual e plástica. Gregório, o Grande, já havia tomado posição: instruir-se por meio de uma representação figurada não significa adorar essa pintura." Inversamente, Omnis mundi creatura quasi liber et pictura .
("a criação inteira nos é como livro e pintura "): esses célebres versos de Alain de Lille nos impedem de dissociar liber de pictura, retomados juntos, na linha seguinte, pela palavra speculum ("espelho"). Desse ponto de vista, a escrita tende menos, em sua função primária, a anotar as palavras pronunciadas do que a fundar uma visualidade emblemática; ela lê, sobre a página, o universo. Este - mesmo que a queda de Adão lhe tenha arrebatado essa virtude - havia sido o ideograma traçado por Deus para o homem. O afresco, o capitel narrativo, o vitral, a fachada da igreja são, por isso mesmo, eles também ideogramas potenciais, que uma vontade de leitura atualiza. Estruturada, mas não linear, projetada em setores que harmonizam as proporções de suas massas, do centro às extremidades, de cima para baixo, de baixo para cima, nas duas direções da horizontal, demarcada por figuras esculpidas que funcionam à maneira de "chaves" de certas escrituras complexas: a fachada, que é Página, como a Palavra de Deus, Pagina sacra, desenha uma Idéia,
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uma procissão de idéias hierarquicamente articuladas, cuja interpretação não deixa lugar para o equívoco, apesar da diversidade dos discursos que a glosam. No francês antigo, o verbo escrire significa tanto "desenhar" ou "pintar" quanto traçar letras: a escritura é uma figuração. E o que nos aparece como uma flutuação semântica é profundamente motivado nas mentalidades desse tempo: o grego bizantino graphein se refere, ele também, à inscrição e à imagem, ao relato e ao afresco. No limite de seu próprio impulso, a prática das escrituras confina com o rébus. Citei anteriormente alguns exemplos do século xv ou do início do XVI. 12 Mais do que uma tentação ocasional, porém, o rébus parece constituir então, como ao termo das tradições medievais, o modelo ideal e paradoxal do acabamento poético. Mais comum ente, a iluminura associa na página a escritura e a pintura, numa mesma geometria cujos componentes tendem a trocar suas funções ou a superá-Ias juntos, com vistas a simultaneamente ritmar a palavra e produzir uma significação mais rica e mais segura. Alhures, o texto se insinua no quadro, em legenda, em divisa, pintado em bandeirola ou bordado sobre o vestido, afixado por entre os cenários do teatro ou da festa principesca. O texto traz os sinais lingüísticos da mensagem, evocando os fatos e a interpretação etímológica de suas designações; a ilustração pictural modifica esse dado, estabelece suas correlações espirituais e garante a integração de todos esses elementos, unidos em relações alegóricas. Numerosos manuscritos inserem nas ilustrações tituli que indicam, com maior ou menor sutileza, a relação com o texto. Freqüentemente, o titulus se expõe perto da boca de uma personagem, da qual anota as palavras; dá-se assim que entre duas personagens se estabelece um breve diálogo, não extraído do texto conjunto. A diferença entre esse procedimento e nossos quadrinhos deriva da ausência de narrativa explícita. O diálogo visualizado, por oposição ao texto que constitui materialmente seu lugar, volta-se para a ordem sensorial. Restitui ao olho as condições empíricas, concretas, das percepções "naturais". O artista não dispõe de meios para fazer escutar a voz; mas pelo menos a cita intencionalmente naquele contexto, confiando ao olho a tarefa de sugerir ao ouvido a realidade sonora. Essa transferência de um sentido a outro perde aqui a pura abstração que teria na leitura muda e solitária. Entretanto, a arte plástica conserva sua autonomia no interior de tal sistema de intercâmbios. Se às vezes alegoriza de maneira manifesta o texto que ilustra, ocorre-lhe proceder pelas vias mais indiretas de uma "dialetalização" narrativa (conforme termo de V. Branca). Assim os desenhos marginais do célebre "Saltério de Utrecht"; assim as miniaturas
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tatada é a performance, e pode-se admitir que o repertório dos intérpretes ia renovando-se lentamente. O poema se desdobra, existe de modo dinâmico, transforma-se, alia-se, engendra-se no bojo de um espaço-tempo cujas dimensões não são mais mensuráveis hoje em dia, mas foram, por vezes, consideráveis. No meio desse espaço-tempo, atua a paródia, que foi uma das principais energias da tradição poética; atuam as alusões, as pontas que evocam num texto outro texto, incessante mosaico de referências, sérias ou humorísticas, uma das características universais dessa poesia; assim é entre trovadores ainda ou Minnesiinger, mas também num Chrétien de Troyes e num Gautier d'Arras, em autores de fabliaux ou narradores do Roman de Renart ... O poeta joga, como registros de um instrumento, com o material tradicional, bem demarcado -lugares-comuns retóricos, motivos imaginários, tendências lexicais _ segundo os níveis de estilo, os gêneros ou a finalidade proposta ao discurso. Assim, os mesmos poetas portugueses dos séculos XIII e XIV bebem, com arte e coerência, no repertório de uma outra das três tradições então firmemente estabelecidas em seu terreno: as cantigas de escárnio, de amigo e de amor. Não possuímos nenhum manuscrito poético autógrafo antes do fim do século XIV; isso significa que, de todos os nossos textos, sem exceção até aquela data, o que percebemos pela leitura é a reprodução, não a produção. Os ouvintes dos séculos XII e XIII não estavam em situação diferente. De fato, desde que um texto tenha sido recolhido duas ou mais vezes por escrito, suas variações testemunham a existência de tradições que são mais ou !Uenos distintas (às vezes orais e escritas, paralelamente, como se mostrou nas muitas Vidas de santos) e que, por acumulação de diferenças, bifurcam-se em determinado momento. Os stemmas da tradição filológica apenas levam em conta esse fenômeno. Os críticos mais prudentes ficam de acordo em distinguir duas tradições da Chanson de Roland, cinco do ciclo de Guillaume; e o próprio romance, o menos estranho a nossos hábitos "literários", não escapa a essa lei: consideráveis divergências existem entre os manuscritos do Roman de Thêbes, entre os do Roman de Troie; um capítulo preliminar de oitocentos versos, o "Bliocadran", está inserido no começo do Conte du Graal em dois manuscritos do século XIII e é retomado pelo autor da versão em prosa de 1530. No limite, explode a identidade do texto; é o caso, segundo D. McMillan, da Chevalerie Vivien. Ao contrário, ocorre que no único texto subsistente a erudição pode recuperar a convergência de muitas tradições, assumidas em conjunto pelo poeta: tal é o caso do Pernán Gonzâlez espanhol ou dos Nibelungen. É assim que perdem toda substância tanto o mito positivista das
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"fontes" quanto uma série de noções provindas de nossa prática clássica da escritura: estabilidade do texto, autenticidade, identidade - e todas as metáforas estéreis de nossas "histórias literárias"; como origem, criação, destino de uma obra; evolução, apogeu, decadência de um gênero ... e, sem dúvida, a imagem paternal do autor. Imprimir um texto medieval (como somos forçados - felizmente - a fazer) comporta um contra-senso histórico que as prudências editoriais não podem simplesmente corrigir. Na noção de "texto autêntico" (a mais perversa e ainda vigorosa, apesar dos periódicos questionamentos), perdura um pensamento teológico, relativo (paradoxalmente) à tradição da Palavra de Deus. Toda vez que uma pluralidade de manuscritos nos permite controlar sua natureza, a reprodução do texto nos aparece fundamentalmente como re-escritura, re-organização, compilação. Durante os mesmos séculos, os teóricos árabes fizeram expressamente desses caracteres o próprio ser da poesia que designaram com o nome saripat (literalmente, "plágio")." A era ontológica do poema é a tradição que o suporta. Uma voz o atualiza, mas não tem origem nem destino, não evolui nem decai, não reivindica nenhuma filiação; é formalizada pelos movimentos físicos do corpo, ainda mais do que pelas palavras pronunciadas. Tudo o que tende a esse ato da performance é como se estivesse previamente demarcado; orienta-se em todas as suas partes e de todo o modo para este fim; a quem ouve, ele faz referência a um campo poético concreto, extrínseco, que se identifica com quem o percebe aqui e agora. Pode-se compreender o pavor que experimentaram, a partir do fim do século XII, alguns autores de espírito "moderno", como Chrétien de Troyes, diante da idéia de que seu texto inevitavelmente lhes escapava, fugia a seu controle de qualquer maneira; donde as precauções derrisórias, as defensivas, as condenações indignadas aos narradores que "cortam em pedaços" e "corrompem" o que declamam. Mas um verdadeiro cuidado de autenticidade autoral só vai aparecer mais tarde, num Boccaccio, através das correções que traz ao Decameron, e, um pouco depois, num Guillaume de Machaut. M. Jousse falava da tradição como de "uma coisa viva". Historiadores, projetamos restrospectivamente sobre a "Idade Média" a idéia de uma tradição que confirma, em nosso uso, uma terminologia crítica; ela nos permite reter e exteriorizar um fato global, resultante de um modo de ser, totalmente interiorizado na consciência daqueles que a viveram. Se ele importa à poesia dessa época, é por causa da intimidade profunda, indiscutida, que o francês antigo chamou coustume. O "costume" é o meio e a medida do homem, mas também o meio e a medida da poesia. A voz dos portadores de poesia não cessa (como voz mesmo
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cia que, desde o Éneas, tomam os monólogos, "interiores" ou não, a~ sim como, na maioria dos autores, os diálogos. Ora, a finalidade esscn cial está tão profundamente entranhada no texto que, numa leitura silenciosa, numerosas passagens desse discurso só são facilmente com preensíveis graças aos artifícios dos editores. É assim com breves mo nólogos que um falante reporta no curso de seu próprio monólogo co mo palavras de um terceiro: somente um jogo de aspas permite ao leito!' reencontrar-se. Nos diálogos, a passagem de um interlocutor a outro, às vezes marcada por uma apóstrofe, amiúde só é indicada visualmente, por um travessão, na edição: o Tristant de Eilhart conta com uma dezena deles, totalizando cerca de trezentos versos. Os diálogos interiores do Éracle seriam incoerentes sem esses truques tipográficos. O que significa isso senão que, na própria intenção dos autores, o texto exige uma glosa vocal-tonal, mímica ou gestual? Mesmo quando o diálogo é raiado de apóstrofes, o que elas fazem é confirmar esse caráter teatralizando-o de maneira explícita. No Éracle, o número, a divisão, a própria estrutura dos discursos diretos concorrem para uma valorização não apenas da voz, mas principalmente dos procedimentos que a oralidade do discurso pode exaltar. A narrativa contém 41 diálogos e 51 monólogos, de todas as extensões. Eles recobrem bastante regularmente o texto: a mais longa passagem que não tem nenhum comporta menos de trezentos versos. No total, os monólogos preenchem 13070 do texto; os diálogos, 32070 - cifras eloqüentes. Não apenas quase metade do texto (45070) é "falada", mas também ele é sobretudo dialogado e, portanto, teatralizado: 32070de sua extensão textual representam bastante mais em duração, e isso acontece por causa da multiplicação de pausas, mesmo breves, que resultam da troca de falantes. Os diálogos contêm 240 réplicas: os mais complexos contam respectivamente com 31, dezoito, doze, onze e dez; os outros, com dois a nove. Donde um movimento constante, que por vezes se precipita, à medida que as réplicas se contraem respondendo-se taco a taco, a intervalos de um, dois, três versos. O conjunto dialogado se encontra assim amarrado ao ritmo acelerado do relato. O efeito é revelado pelo modo de prender-se à narrativa: com algumas exceções, um dit-il, fait-il, introduz as palavras do primeiro interlocutor; as dos outros seguem sem outras marcas senão os travessões postos pelo editor. Gautier, aliás, esforça-se para atenuar a oposição oratória e dramática que existe entre discursos dialogados e monologados. Chega a unir, por meio de uma breve transição narrativa, dois monólogos num diálogo de fato; ou um monólogo com o diálogo que o segue; ou, ainda, dar a um longo monólogo uma curta réplica terminal que o transforma, 'retrospecti210
vumente, em diálogo. Acumulando esses procedimentos, Gautier tempera o que o puro monólogo pode ter de estático; introduz no discurso um elemento quase polifônico e virtualmente gestual; à voz do monologante responde uma contravoz, revelando a presença de outro corpo. Da mesma forma, em muitos trechos não é entre dois interlocutores que se trocam as palavras, mas entre um indivíduo e uma multidão, cuja intervenção nos é relatada como unânime e, por assim dizer, coral! Antigamente, O. Jodogne sugeria, a propósito de Éneas, que a técnica do monólogo; especialmente o interior, consagra no século XII a passagem de uma estética do contador de histórias tradicional à do romancista. Por conta disso, o uso - aliás, refinado - feito desse procedimento novo em língua vulgar implicaria, em muitos autores, uma vontade de integrá-Io no procedimento mais antigo, de subordiná-Io a uma concepção de arte que foi a dos cantores de gesta e que permanecia a dos recitadores deJabliaux. Este ou aquele autor tira efeitos mais fortemente contrastantes dos mesmos instrumentos lingüísticos e retóricos, numa instância mais urgente. Globalmente, a situação é a mesma. Procedi no Cligés (escolhido entre os romances de Chrétien por sua semelhança aproximativa com o Éracle) a um levantamento dos discursos diretos, segundo os critérios usados em meu estudo de Gautier. O número total desses discursos é, notavelmente, o mesmo: 98. Mas o número de versos que ocupam difere em cerca de um terço: para 2995 versos de discurso (sobre 6570) no Éracle, o Cligés apresenta apenas 2028 (sobre 6664), ou seja: em monólogos, 16070do romance; em diálogos, 1407ó.Ademais, o Cligés conta com 72 monólogos para 26 diálogos, ou, em média, 2,75 monólogos por diálogo; no Éracle, essa proporção não passa de 1,25. E, ainda, os diálogos do Cligés comportam menos réplicas, 85 no total, pouco mais de um terço do que se observa no Éracle. Quanto às durações respectivas desses dois tipos de discurso, elas testemunham no Éracle uma tendência nítida - ausente no Cligés - para a expansão de diálogos e a concentração de monólogos. Interpreto como uma nuance semelhante a ausência quase completa, no Éracle, de discursos indiretos, que, ao contrário, são freqüentes em Chrétien. Gautier aparentemente se recusa, em narração, a esse tipo de discurso, como se ele abafasse a voz. Último eixo em que se opera o impulso das energias secretas do texto: o eixo que eu diria "temático", no sentido em que se fala do tema de uma proposição. Um motivo referente à palavra, ao som ou ao efeito da voz, ao poder do verbo pronunciado, introduz-se e mantém-se no 211