A Poesia Trovadoresca Na Provença, o poeta era chamado de troubadour, cuja forma correspondente em Português é trovador, da qual deriva trovadorismo (que serve de rótulo geral dessa primeira época medieval), trovadoresco, trovadorescamente. No norte da França, o poeta recebia o apelativo trouvère, cujo radical é igual ao anterior: trouver (-achar); significava que os poetas deviam ser capazes de compor, achar sua canção, cantiga ou cantar. Por que o nome de canção, cantiga ou cantar ao poema? Porque era cantado com acompanhamento musical. Duas espécies principais apresentava a poesia trovadoresca: a lírico-amorosa e a satírica. A primeira dividese em cantiga de amor e cantiga de amigo; a segunda, em cantiga de escárnio e cantiga de maldizer. O idioma empregado era o galego-português, em virtude da então unidade lingüística entre Portugal e a Galiza.
As origens da Poesia Trovadoresca Como surgiu e se desenvolveu essa corrente de poesia de que as referidas coletâneas medievais galegoportuguesas dão testemunho, e por que motivo foi o galego-português a língua do lirismo peninsular desde fins do sec. XII até meados do XIV? Na Galiza, cedo liberta do domínio árabe, aberta as influências de além Pireneus através da grande rota das peregrinações a Santiago de Compostela (o santuário de maior nomeada na Europa Ocidental durante a Idade Média), parece ter florescido, já muito antes da fundação da nacionalidade portuguesa, uma poesia de inspiração tradicional, folclórica, cultivada sobretudo pelos jograis - poetas e músicos profissionais, muitos deles antigos clérigos, que se exibiam em feiras e romarias ro marias e eram também recebidos e acarinhados nas cortes dos reis e grandes senhores. Os jograis, que pela sua condição social e pela sua vida de artistas ambulantes mantinham permanente contacto com o povo rural, sempre conservador e arcaizante, e assim mergulhavam naturalmente no mundo dos afetos, costumes, tradições transmitidos de pais a filhos, teriam decerto conhecimento dos velhos, velhíssimos, cantares que as populações do Noroeste da Península repetiam nas suas festas e nos seus trabalhos. Esses cantares, como tantas vezes sucede na poesia popular mais antiga de todos os povos, eram na sua maioria cantigas de mulher, e, naturalmente, de mulher moca e enamorada. Os jograis galegos teriam tido assim o mérito de recolher, aproveitar, difundir e por fim fixar para a forma escrita essa tradição oral primitiva, vinda do fundo do tempo e da eterna alma feminina. A essa poesia jogralesca de fundo tradicional veio entretanto sobrepor-se uma influência estrangeira, bem patente e documentada na poesia das coleções que chegaram até nós: a influência do lirismo provençal. Com efeito, durante o sec. XI, no Sul da Franca - ou mais propriamente em toda a região onde se falava a langue d'oc (a que pertence o provençal) e a que se dá por isso o nome de Occitania - florescera, nas cortes dos senhores feudais a partir de Guilherme IX, duque da Aquitânia e conde da Provença, uma poesia de amor, extremamente requintada quanto ao sentimento que exprimia e quanto à técnica que utilizava. Essa poesia, de que eram agentes os trovadores (trobadors em língua de oc), difundiu-se, a partir do sec. XII, por toda a Europa e veio a influenciar profundamente a poesia peninsular emergente. Nascido nas cortes florescentes e requintadas do Mediterrâneo, mas gerado, segundo as investigações mais recentes parecem demonstrar, nos mosteiros do Limousin, onde a música litúrgica renovada ia fornecendo o modelo para o canto de amor profano; alimentado de espiritualidade cristã mas também animado de viva sensualidade; modelado, no que respeita a relação entre o poeta e a amada, pelos padrões da relação feudal de vassalagem; extremamente exigente na busca da perfeição formal - o lirismo dos trovadores provençais tem sido objeto de inesgotáveis investigações e análises, que pretendem explicar-lhe a origem o rigem e descobrir-lhe o sentido último. Uma coisa é certa: essa poesia corresponde a um elevado ideal de relações entre os sexos, a uma quase divinização da mulher e a um alto conceito do amor e da poesia, que aparecem, unidos, como expoentes de perfeição do homem. Na canso (canção) de amor provençal, o trovador celebra os raros dons morais e físicos da senhora a quem diz amar e servir com total devoção; proclama a grandeza desse amor e exulta por poder cantar tão nobre sentimento e tão excelsa senhora. Faz usando uma linguagem polida e escolhida, e uma métrica de grande variedade e riqueza. Para compreender o lirismo de amor provençal - e o galego-português, na medida em que este deriva daquele não basta conhecer a língua em que está escrito, mesmo superando a barreira do arcaísmo: necessário se torna estar de posse de outro código, que não a já lingüístico - o código do amor cortês (amor a moda da corte), que implica uma serie de regras rígidas, um formulário do serviço do perfeito namorado. O segredo quanto à identidade da da-
ma celebrada - necessário até porque o trovador provençal cantava geralmente um amor proibido, pois dirigia sempre as suas homenagens a senhoras casadas; a mesura, qualidade complexa dos que amam ou merecem o amor feita de boas maneiras, prudência, moderação; a renúncia a todo o prazer que seja para a dama c ausa de desgosto; a fidelidade e constância sem limites; o sentimento de que amar e o supremo bem e de que nada se deve esperar em troca do amor puro: eis outros tantos tópicos desse amor cortês que informava o lirismo vindo da Provença. Entre os fatores que contribuíram para a divulgação na Península Ibérica de poesia chamada provençal ou trovadoresca contam-se as alianças matrimoniais de príncipes peninsulares com princesas provençais ou francesas, que geralmente traziam no seu séquito músicos e poetas das respectivas nações; a presença das ordens religiosas e militares de origem francesa nos primeiros tempos da nacionalidade, colaborando na Reconquista ou na colonização do território recuperado aos mouros; os contactos comerciais e as grandes peregrinações (como as que se dirigiam da Península ao santuário de Santa Maria de Rocamadour na Provença, e as que vinham de além Pireneus a Santiago de Compostela, na Galiza), onde a musica e o canto profano se juntavam ao culto religioso. Do encontro dessa corrente provençalizante com a tradição folclórica recolhida e elaborada pelos jograis do Noroeste da Península, terá surgido a poesia galego-portuguesa, que desde os alvores do sec. XIII aparece documentada nas seleções a que chamamos Cancioneiros.
Características gerais 1. SUBJETIVIDADE: a poesia medieval portuguesa é lírica, predominando a função emotiva da linguagem, ou seja, seu conteúdo expressa as emoções, os sentimentos,a visão de mundo do emissor (do eu - lírico), marcadas no texto através de palavras na um a. pessoa (verbos, pronomes), das interjeições, das exclamações; 2. TEOCENTRISMO : o eu - lírico expressa sua religiosidade extrema através da palavra Deus - sempre presente nas cantigas - dos nomes de santos, de elementos do Cristianismo, festas e lugares santos, etc. 3. CONVENCIONALISMO : todo o convencionalismo social está marcado nas cantigas medievais através da presença de pronomes e verbos nas 2 a. pessoa do plural e dos pronomes de tratamento : senhora, dom, dona, amigo, etc. 4. SUPERIORIDADE FEMININA NO AMOR: como já foi visto, nas cantigas de amor (às vezes até em outras), ao declarar-se à amada, o homem finge-se inferior, submisso a ela (VASSALAGEM): ela é c ultuada como um ser superior, divino, ao contrário do que acontece na realidade; 5. PATRIARCALISMO : marcado nas cantigas medievais através do desabafo que o eu - lírico feminino faz nas cantigas de amigo a outra mulher, à natureza ou a Deus. Como se pode notar, as cantigas medievais portuguesas contêm marcas do tipo de cultura, do momento em que elas foram elaboradas: elas são, portanto, verdadeiros documentos de época (documentos históricos).
Cultura e Língua As literaturas iniciam-se normalmente por obras em verso. É que nas civilizações do passado a mais corrente forma de comunicação e de transmissão da obra literária não é a escrita mas sim a oral. Em Portugal os conventos de Lorvão, Santa Cruz de Coimbra e Alcobaça foram célebres nas suas oficinas de manuscritos, mas a escrita constituía então um meio acessório de transmissão da cultura. É com a transmissão oral, através dos jograis-recitadores, cantores e músicos ambulantes que divulgam nas feiras, castelos e cidades um repertório musical e literário, que a mesma cultura tem de contar. Esse repertório, dirigido a um público iletrado de vilões, burgueses e nobres, servia-se das línguas locais, inspirava-se na vida e interesses do público e consistia sobretudo em poemas e narrativas versificadas. Na verdade, a forma mais corrente de comunicação e de transmissão da obra literária não é a escrita, mas sim a oral, quando esse ritmo se baseia no isossilabismo, isto é, na regularidade quanto ao número de sílabas reforçada pela rima. A nossa poesia primitiva obedeceu, sem dúvida, a estes cânones. Para a sua propagação muito contribuiu a língua que na faixa ocidental da Hispânia sempre se distinguiu do falar/falares das outras regiões. Do romanço aí falado veio a constituir-se, ao norte, o dialeto galaico-português. Com as conquistas este se estendeu progressiva-
mente sobre a parte meridional, absorvendo o romanço que aí existia, ou identificando-se com ele, e penetrando no Algarves, no reinado de D. Afonso III. Dada a independência política de Portugal, deveria necessariamente resultar o que de fato resultou: a diferenciação entre o português e o galego.
Cantiga de Amigo Escrita igualmente pelo trovador que compõe cantigas de amor, e mesmo as de escárnio e maldizer, este tipo de cantiga focaliza o outro lado da relação amorosa entre ele e uma dama: o fulcro do poema é agora representado pelo sofrimento amoroso da mulher, via de regra pertencente às camadas populares (pastoras, camponesas, etc.). O trovador, amado incondicionalmente pela moça humilde e ingênua do campo ou da zona ribeirinha, projeta no íntimo e desvenda-lhe o desgosto de amar e ser abandonada, por causa da guerra ou de outra mulher. O drama é o da mulher, mas quem ainda compõe a cantiga é o trovador: 1) Pode ser ele precisamente o homem com quem a moça vive sua história; o sofrimento dela, o trovador é que o conhece, melhor do que ninguém; 2) Por ser a jovem analfabeta, como acontecia mesmo às fidalgas. O trovador vive uma dualidade amorosa, de onde extrai as duas formas de lirismo amoroso próprias da época: em espírito, dirige-se à dama aristocrática; com os sentidos, à camponesa ou à pastora. Por isso, pode expressar autenticamente os dois tipos de experiência passional, enquanto ele próprio, e enquanto a mulher que por ele desgraçadamente se apaixona. É digno de nota que essa ambiguidade, extremamente curiosa ainda como psicologia literária ou das relações humanas, não existia antes do trovadorismo nem jamais se repetiu depois. No geral, quem fala é a própria mulher, dirigindo-se em confissão à mãe, às amigas, aos pássaros, aos arvoredos, às fontes, aos riachos. O conteúdo de sua confissão é sempre forma do duma paixão incorrespondida ou incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e alma. Ao passo que a cantiga de amor é idealista, a de amigo é realista, traduzindo um sentimento espontâneo, natural e primitivo por parte da mulher, e um sentimento donjuanesco e egoísta por parte do homem. Tal paixão haveria de ter sua história: as cantigas surpreendem "momentos" do namoro, desde as primeiras horas da Corte até as dores do abandono, ou da ausência, pelo fato de o bem-amado estar no fossado ou no bafordo, isto é, no serviço militar ou no exercício de armas. Por isso, a palavra amigo pode significar namorado e amante. A cantiga de amigo possui caráter mais narrativo e descritivo que a de amor, de feição acentuadamente analítica e discursiva. E classifica-se de acordo com o lugar geográfica e as circunstâncias em que decorrem os acontecimentos, em serranilha, pastorela, barcarola, bailada, romaria, - alva ou alvorada (surpreende os amantes no despertar dum novo dia, depois de uma noite de amor).
Classificação das cantigas quanto à forma Cantigas de refrão
No fim de cada estrofe repete-se sempre o mesmo estribilho. Cantigas de mestria
São as que não têm refrão ou estribilho. Paralelísticas
Entre as cantigas de refrão encontramos as cantigas paralelísticas que têm uma estrutura especial. O paralelismo consiste na repetição da ideia expressa numa estrofe na estrofe seguinte, formando pares, sendo cada uma delas encerrada por um refrão. Cantiga finda
Cada estrofe contém um pensamento e acaba por ponto final ou pontuação equivalente. Cantiga Atá-Finda
Cada estrofe continua o pensamento na estrofe seguinte, isto é, o último verso de cada estrofe é continuado no 1º verso da estrofe seguinte. O encadeamento da ideia é feito por um pronome ou conjunção.
Cantiga Pren
O pensamento da 1ª estrofe é continuado na 2ª, o da 2ª na 3ª e assim sucessivamente. Cantiga Leixa-Pren
O último verso de cada estrofe é repetido como 1º verso na estrofe seguinte.
Cantiga de Amor Neste tipo de cantiga, o trovador empreende a confissão, dolorosa e quase elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões porque de superior estirpe social, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído. Uma atmosfera plangente, suplicante) de litania, varre a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplação platônica, mas entranham-se no mais fundo dos sentidos: o impulso erótico situado na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se. Tudo se passa como se o trovador "fingisse", disfarçando com o véu do espiritualismo, obediente às regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença, o verdadeiro e oculto sentido das solicitações dirigidas à dama. A custa de "fingidos" ou incorrespondidos, os estímulos amorosos transcendentalizam-se, graças ao torturante sofrimento interior que se segue à certeza da inútil súplica e da espera dum bem que nunca chega. É a coita (= sofrimento) de amor que, afinal, ele confessa. As mais das vezes, quem usa da palavra é o próprio trovador, dirigindo-a em vassalagem e subserviência à dama de seus cuidados (mia senhor ou mia dosaa = minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. E este se orienta de acordo com um rígido código de comportamento ético: as regras do "amor cortes", recebidas da Provença. Segundo elas, o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudônimo (senhal), e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases:
A primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; A segunda é a de pecador, de quem ousa declarar-se e pedir; Entendedor é o namorado; Drut , o amante.
O lirismo trovadoresco português apenas conheceu as duas últimas fases, mas o drut (drudo em Português) se encontrava exclusivamente na cantiga de escárnio e maldizer. Também a senhal era desconhecida de nosso trovadorismo. O trovador, portanto, subordina todo o seu sentimento às leis da Corte amorosa, e ao fazê-lo, conhece das dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que o levaria à consecução dum bem impossível. Mais ainda: dum' bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requisitos do trovador) que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria por fim ao seu tormento masoquista, ou início dum outro Maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa. E ao tentar exprimir-se, a plangência da confissão do sentimento que o avassala, - apoiada numa melopeia 1 própria de quem mais murmura suplicantemente do que fala -, vai num crescendo até a última estrofe (a estrofe era chamada na lírica trovadoresca de cobra; podia ainda receber. o nome de cobra ou de talho). Visto uma ideia obsessiva estar empolgando o trovador, a confissão gira em torno dum mesmo núcleo, para cuja expressão o enamorado não acha palavras muito variadas, tão intenso e maciço é o sofrimento que o tortura. Ao contrário, parece que seu espírito, caminhando dentro dum círculo vicioso, acaba por se repetir monotonamente, apenas mudando o grau do lamento, que aumenta em avalanche até o fim. O estribilho ou refrão, com que o trovador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante ideia fixa para a qual ele não encontra expressão diversa. Quando presente o estribilho, que é recurso típico da poesia popular, a cantiga chama-se de refrão. Quando ausente, a cantiga recebe o nome de cantiga de maestria, por tratar-se dum esquema estrófico mais difícil, intelectualizado, sem o suporte facilitador daquele expediente repetitivo.
Estrutura formal
1
1 Arte de fazer acompanhamentos musicais. 2 Peça musical ou toada que serve de acompanhamento a um recitativo. 3 Toada doce. 4 Declamação agradável ao ouvido.
A diferença entre o lirismo provençal e o dos Cancioneiros peninsulares revela-se principalmente na estrutura formal. O gênero provençal característico, a canso (canção), não se aclimatou na Península, a não ser muito mais tarde, no século XVI, por influência de Petrarca. As cantigas de amor sem refrão nem repetições - conhecidas pelo nome de «cantigas de meestria» por serem aquelas que exigiam maior conhecimento da técnica provençal - constituem minoria. O refrão encontra-se, efetivamente, na maior parte das cantigas de amor, assim como o paralelismo, embora atenuado e por vezes mascarado. O poeta galego-português só por exceção desenrola um pensamento com princípio, meio e fim ao longo de uma série de estrofes; prefere o processo de repetir em cada estrofe, variando palavras e rimas, a mesma ideia. Esta construção dá à maior parte das cantigas de amor um tom de lamento repetido e insistente, quando muito um desenvolvimento, por assim dizer em espiral, espécie de compromisso desajeitado entre a retórica firmemente retilínea dos provençais e a estética repetitiva, circular, das bailias. Mais do que produto de uma sensibilidade étnica, parece-nos que isto resulta de faltar aos poetas peninsulares ocidentais (portugueses, galegos, leoneses, castelhanos) uma preparação cultural que lhes permitisse acompanhar o largo fôlego, a complexa estrutura e a eloquência discursiva da canso provençal. Nestas condições, vazaram os temas provençais, aliás imperfeitamente assimilados, dentro dos moldes praticados pela escola jogralesca local, isto é, dentro do paralelismo e do refrão; a isso ajustaram os seus dons, às vezes notáveis.
Cantiga de Escárnio e Cantiga de Maldizer A Cantiga de Escárnio é aquela em que a sátira se constrói indiretamente, por meio da ironia e do sarcasmo, usando "palavras cobertas, que hajam dois entendimentos para lhe lo não entende rem", como reza a Poética Fragmentária que precede o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancuti). Na Cantiga de Maldizer , a sátira é feita diretamente, com agressividade, "mais descobertamente", com "palavras que querem dizer mal e não haverão outro entendimento senão aquele que querem dizer chãmente", como ensina a mesma Poética Fragmentária. Essas duas formas de cantiga satírica, não raro escritas pelos mesmos trovadores que compunham poesia lírico-amorosa, expressavam, como é fácil depreender, o modo de sentir e de vi ver próprio de ambientes dissolutos, e acabaram por ser canções de vida boêmia e escorraçada, aquela que encontrava nos meios frascários e tabernários seu lugar ideal. A linguagem em que eram vazadas admitia, por isso mesmo, expressões licenciosas ou de baixocalão: poesia "forte", descambando para a pornografia ou o mau gosto, possui escasso valor estético, mas em contrapartida documenta os meios populares do tempo, na sua linguagem e nos seus costumes, com uma flagrância de reportagem viva. Visto constituir um tipo de poesia cultivado notadamente por jograis de má vida, era natural propiciasse e estimulasse o acompanhamento de soldadeiras (= mulheres a soldo 2), cantadeiras e bailadeiras, cuja vida airada e dissoluta fazia coro com as chulices que iam nas letras das canções. A cantiga de escárnio
Na cantiga de escárnio, o eu - lírico faz uma sátira a alguma pessoa. Essa sátira era indireta, cheia de duplos sentidos. As cantigas de escárnio (ou "de escarnho", na grafia da época) definem-se, pois, como sendo aquelas feitas pelos trovadores para dizer mal de alguém , por meio de ambiguidades, trocadilhos e jogos semânticos, num processo que os trovadores chamavam "equívoco". O cômico que caracteriza essas cantigas é predominantemente verbal, dependente, portanto, do emprego de recursos retóricos. A cantiga de escárnio exigindo unicamente a alusão indireta e velada, para que o destinatário não seja reconhecido, estimula a imaginação do poeta e sugere-lhe uma expressão irônica, embora, por vezes, bastante mordaz. A cantiga de maldizer
Ao contrário da cantiga de escárnio, a cantiga de maldizer traz uma sátira directa e sem duplos sentidos. É comum a agressão verbal à pessoa satirizada , e muitas vezes, são utilizados até palavrões. O nome da pessoa satirizada pode ou não ser revelado. 2
Moeda de ouro, dos antigos romanos. Nome de várias moedas antigas de Portugal, em ouro, prata e cobre.