Cadernos Negros O livro Cadernos Negros - Os Melhores Poemas traz textos escolhidos dos dezenove primeiros volumes da série. Os poemas têm raízes ancestrais e desenvolvem a reflexão poética sobre a vida e a cultura dos afro-brasileiros, deixando o livre-pensador em posição de vôo. A poesia contida nesta obra aloja-se em nossa alma, em nossos desejos. Os textos mostram uma fase especialmente interessante da poesia: sua dimensão social e histórica, a qual é expressa pela abordagem que se faz da verdadeira história dos afro-brasileiros, uma história extraída dos subterrâneos da memória. Os poetas também mergulham em vários temas, como a fome, o feminismo, a violência urbana, a batalha das classes excluídas e o preconceito racial contido nas relações humanas do dia-a-dia. Mas é, sobretudo, na mobilização das energias voltadas para a celebração da vida, para a exaltação da continuidade de lutas, sonhos, esperanças e amores, é aí que se encontra a força dos poemas, com seus versos polirrítmicos, com sua variadas formas, com sua musicalidade herdada de tradições africanas. EU-MULHER (Conceição Evaristo) Uma gota de leite/ me escorre entre os seios/Uma mancha de sangue/me enfeita entre as pernas/Meia/palavra mordida/me foge da boca./Vagos desejos insinuam esperanças/Eu-mulher em rios/vermelhos/inauguro a vida/Em baixa voz/violento os tímpanos do mundo/Antevejo/Antecipo/Antes- vivo/Antes - agora - o que há de vir./Eu fêmea-matriz/Eu força-motriz/Eu-mulher/abrigo da semente/moto- contínuo/do mundo/. LINHAGEM(CarlosAssumpção) LINHAGEM(CarlosAssumpção) Eu sou descendente de Zumbi/Zumbi é meu pai e meu guia/Me envia mensagens do orum/Meus dentes brilham na noite escura/Afiados como o agadá de Ogum/Eu sou descendente de Zumbi/Sou bravo valente sou nobre/Os gritos aflitos do negro/Os gritos aflitos do pobre/Os gritos aflitos de todos/Os povos sofridos do mundo/No meu peito desabrocham/Em força em revolta/Me empurram pra luta me comovem/Eu sou descendente de Zumbi/Zumbi é meu pai e meu guia/Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim Eu trago os duros punhos cerrados/Cerrados como rochas/Floridos como jardins UM SOL GUERREIRO (Celinha) (A todas as crianças negras assassinadas em Atlanta e a muitas outras crianças assassinadas todos os dias no ventre da humanidade) Já não ouço meu pranto/porque o choro emudeceu/nos meus lábios/O grito calou-se/em minha garganta o sol da meia-noite/cegou-me os olhos.../Sou noite e noite só/O meu sangue espalhou-se/pelo espaço E o céu coloriu-se de um tom avermelhado/como o crepúsculo/E eu cantei/Cantei porque agora a chuva brotará da terra./As sementes de todos os frutos/cairão sobre os nossos pés/E germinaremos juntos Embora tu não possas mais/tocar as flores deste jardim, eu sei/Mas o teu solo é livre/Cante, menino, cante uma canção que emudeça os prantos,/que repique os ataques/e ensurdeça os gritos/Porque amanhã não haverá mais/nenhum resto de esperança/não haverá mais um outro amanhecer,/pois certamente muito antes/de surgir um novo dia/um sol, guerreiro, há de raiar/à meia-noite, para despertar o teu sono,/Como uma nova alvorada. 4. EBULIÇÃO DA ESCRAVATURA A área de serviço é senzala moderna, Tem preta eclética, que sabe ler “start” ; “Playground” era o terreiro a varrer.
Navio negreiro assemelha-se ao ônibus cheio, Pelo cheiro vai assim até o fim-de-linha; Não entra no novo quilombo da favela. Capitão-do-mato virou cabo da polícia,
Seu cavalo tem giroflex ( rádio-patrulha). “Os ferros”, inoxidáveis algemas;
Ração pode ser o salário-mínimo, Alforria só com a aposentadoria. (Lei dos sexagenários) “Sinhô” hoje é empresário,
A casa-grande verticalizou-se, O pilão está computadorizado. Na última página são “flagrados” ( foto digital),
Em cuecas, segurando a bolsa e a automática: Matinal pelourinho. A princesa Áurea canta, Pastoreia suas flores. O rei faz viaduto com seu codinome. - Quantos negros? Quanto furor? Tantos tambores...tantas cores... O quê comparar com cada batida no tambor? *****
“ - A escravatura não foi abolida; foi distribuída entre os pobres.”
5. ZUMBI
As palavras estão como cercas em nossos braços Precisamos delas. Não de ouro, mas da Noite do silêncio no grito em mão feito lança na voz feito barco no barco feito nós no nós feito eu. No feto Sim,
20 de novembro é uma canção guerreira. 6. PARA OUVIR E ENTENDER A ESTRELA Se o Papai Noel não trouxer boneca preta neste Natal meta-lhe o pé no saco! 7. OUTRAS NOTÍCIAS Não vou às rimas como esses poetas que salivam por qualquer osso. Rimar Ipanema com morena é moleza, quero ver combinar prosaicamente flor do campo com Vigário Geral, ternura com Carandiru, ou menina carinhosa / trem pra Japeri. Não sou desses poetas que se arribam, se arrumam em coquetéis e se esquecem do seu povo lá fora. Éle Semog 8. EFEITOS COLATERAIS Na propaganda enganosa paraíso racial hipocrisia faz mal nosso futuro num saco
sem fundo a gente vê e finge que não vê a ditadura da brancura Negros de alma negra se inscrevem naquilo que escrevem mas o Brasil nega negro que não se nega.
Jamu Minka 9. TEIMOSA PRESENÇA
Eu continuo acreditando na luta Não abro mão do meu falar onde quero Não me calo ao insulto de ninguém Eu sou um ser, uma pessoa como todos Não sou um bicho, um caso raro ou coisa estranha Sou a resposta, a controvérsia, a dedução A porta aberta onde entram discussões Sou a serpente venenosa: bote pronto Eu sou a luta, sou a fala, o bate-pronto Eu sou o chute na canela do safado Eu sou um negro pelas ruas do país. Lepê Correia
10. TRAÇADO O traço saído ao crespo estilo do teu cabelo trançado e escuro já mora em meu olho Márcio Barbosa SER E NÃO SER O racismo que existe, o racismo que não existe. O sim que é não, o não que é sim. É assim o Brasil ou não? 1972-1986 Oliveira Silveira
EM MAIO Já não há mais razão de chamar as lembranças e mostrá-las ao povo em maio. Em maio sopram ventos desatados por mãos de mando, turvam o sentido
do que sonhamos. Em maio uma tal senhora liberdade se alvoroça, e desce às praças das bocas entreabertas e começa: Outrora, nas senzalas, os senhores... Mas a liberdade que desce à praça nos meados de maio pedindo rumores, é uma senhora esquálida, seca, desvalida e nada sabe de nossa vida. A liberdade que sei é uma menina sem jeito, vem montada no ombro dos moleques e se esconde no peito, em fogo, dos que jamais irão à praça. Na praça estão os fracos, os velhos, os decadentes e seu grito: Ó bendita Liberdade! E ela sorri e se orgulha, de verdade,
do muito que tem feito! Oswaldo de Camargo TER NA PELE A COR DA NOITE Marcio Meireles
é preciso ter coragem para ter na pele a cor da noite ser intangível é preciso ter coragem pra estar assim no mundo bicho solto encardido a trocar olhos por luas o futuro é coisa dura de pedra e ferro montado o futuro é coisa dura difícil de se tocar é preciso ter coragem ver na noite sem ser visto pra se escrever o futuro com a pele cor do asfalto molhado de muita chuva e uma lua gêmea dupla pousada abrindo clarão mostrando tantas coisas escondidas sob a pele a quem não consegue passar da superfície do mundo quando a pele é cor da noite é preciso ter coragem pra reforjar o futuro até que ele ganhe a cor guardada dentro de todos nas rotas loucas das veias nos abismos corporais é preciso que se veja com olhos de luas gêmeas em noite escura cerrada a cor que tem o irmão quando ele guarda na alma não o vermelho do sangue
de tantas lutas travadas e sim a cor do mais fundo nada a mesma de sua pele do nada mais invisível mais absoluto nada é preciso ter coragem para se empunhar esta cor como arma como enxada como arado como fonte como estrada como língua incendiária que todas as línguas fala e torna esta cor escondida em nova cor revelada cor do dia cor do sonho de todo homem e mulher todo bicho toda mata cor a correr pelas veias a preencher os abismos criando um caminho novo pra raça humana avançar é preciso ter coragem pra ter na pele a cor da noite e sobreviver nesses dias é preciso ter coragem e olhos de lua a brilhar pra ser o futuro que se quer mesmo o que virá