Cartas ao director – Provas IV – 19-08-2003
1. Cara directora e caro director
Hoje, deixe-me começar por lhe contar um episódio que muito recentemente me envolveu a mim e a um director de uma escola secundária. Face à situação de degradação da qualidade do ensino e das aprendizagens no nível secundário de ensino e formação, decidi empreender um estudo sobre rendimento escolar em escolas secundárias e em escolas profissionais. Para esta abordagem seleccionei um indicador: a capacidade de um escola diplomar os seus alunos no número de anos previsto para realização completa dos seus cursos. Em ambos os tipos de escola referidos os cursos têm três anos de duração, sendo certo que, nas escolas profissionais, os estágios e as provas de aptidão profissional deslizam frequentemente para um trimestre suplementar. Os resultados recolhidos são, na realidade, muito pouco animadores. As médias nacionais de rendimento escolar são: 44% nos cursos gerais, 27% nos cursos tecnológicos e 64% nos cursos profissionais1. Mas o que lhe queria contar prende-se com a resposta que me foi dada por mais de um director de escolas secundárias. 1
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Ao devolverem os dados relativos às suas escolas, manifestaram uma enorme estupefacção diante dos resultados a que tinham chegado. Davam-se conta, pela primeira vez (e alguns jão são directores “veteranos”), dos fracos níveis de rendimento escolar (medido deste modo) e pediam, com urgência, o envio dos resultados médios globais e dos resultados das outras escolas do mesmo tipo. Quero-lhe confessar que estes factos me perseguem desde essa hora. Como é possível que um director de uma escola fique tão surpreendido perante dados que mais não fazem do que evidenciar o que se passa na sua própria escola? Como é que é possível que a realidade mais simples e mais cruel de uma escola seja alheia ao labor de quem a dirige? Será que as nossas escolas são geridas? E afinal como é que são geridas? Veja até que ponto vai o enviezamento institucional derivado do nosso modelo de administração educacional e de gestão das escolas. As escolas são criadas pelo ME, as normas que as regem emanam do ME, as escolas não estão dotadas de autonomia na sua gestão, a sua direcção é eleita pelos “colegas professores” e, no limite, é perante eles que responde; aos directores pede-se que salvaguardem que todas as normas do ME são aplicadas e que, no dia-a-dia, haja quem dê as aulas e quem a elas assista, tudo dentro da ordem e do zelo adequados.
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A própria recolha estatística que é feita nas escolas, seja de caracterização dos seus alunos, seja de aproveitamento escolar ou de aferição de níveis de conhecimentos, chegam de Lisboa pelo correio e aí regressam pela mesma via. Ou seja, tudo isto conduz a uma pergunta: quem só tem de cumprir e fazer cumprir umas normas, porque é que se há-de preocupar com a gestão da escola? Ou seja, porque é que há-de conhecer bem os alunos, os professores, os funcionários, os pais, os actores mais significativos do meio envolvente? Porque é que deve conhecer os problemas da escola, procurar encontrar soluções, avaliar os projectos empreendidos? Porquê? Porque é que deve empenharse em construir um Escola melhor? O que é que ganha com isso? A mim também diziam, quando dirigi a Escola de Lordelo (Paredes): “hás-de ter uma medalha de cortiça!”. De facto, o sistema instalado é profundamente desresponsabilizante e é o Estado que, no limite, promove esta desresponsabilização ao instituir, actualizar e reactualizar este modelo de gestão de escolas. Quem se dedica à sua escola, a cuidar seriamente dos seus alunos, professores, pessoal auxiliar e pais, e felizmente são muitos os directores que o fazem, não tem qualquer recompensa por parte do Estado ou da Comunidade (desta
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recebe vários sinais de recompensa moral e de gratidão pessoal). O que a vida me tem ensinado é que quando, numa dada organização, o mérito não se premeia é a mediocridade que é elevada à excelência. Na prática, não há meios termos. São os imperativos éticos e os compromissos morais que têm sustentado muitos directores de escolas na sua tenacidade de construir melhores escolas, escolas mais eficazes, geridas com o mínimo de autenticidade local. Mas é com muito sacrifício que o fazem, porque não podem tomar qualquer iniciativa autónoma que não possa vir a ser reprovada pela administração. Eu acabo por compreender as reacções daqueles directores aos resultados do meu inquérito. Mas não posso aceitar este estado de coisas no meu país. Nada incentiva uma boa gestão das escolas. Nada, excepto a consciência moral dos seus directores. Porque é que se hão-de esperar bons resultados? Há uma escola secundária do Porto com 9% de aproveitamento escolar, ao fim de três anos de estudo, nos cursos tecnológicos. A situação repete-se há vários anos. Perguntei à direcção o que vai fazer. A resposta foi: “aguardo que o Ministério indique o que se deve fazer, porque disse que ia haver alterações”. Há uma escola secundária no Minho em que mais de 25% dos seus alunos abandona a escola logo no 10º ano. Confrontado com
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estes dados, o director diz que pouco pode fazer, que o meio é muito adverso à escolarização, que a escola é pouco atractiva, que gostaria de a tornar diferente, mas que ninguém na administração o apoia e incentiva. Há um director de uma escola que, após dez anos de dedicação contínua à sua escola, desistiu. Abandonou o cargo e baixou os braços porque está sempre a ser vilipendiado nos seus esforços, as normas mudam cada três ou quatro anos, o seu esforço não é recompensado, ninguém acredita na inteligência que existe na sua escola. O sistema está bloqueado. Mas já assim estava em 1980, quando dirigi a Escola de Lordelo. Ou seja, o bloqueamento é grave, estrutural e os seus efeitos nocivos não pararão tão cedo de se fazer sentir. Eu continuo a crer que não estamos diante de uma fatalidade e que somos capazes de seguir um rumo diferente. Mas não posso é concordar com as fugas para a frente que ciclicamente são anunciadas por quem aterra na administração do sistema e que, em cada dia que passa, enche o rosto de pavor. Refiro-me aos “gestores empresariais para as escolas, já” e a outras saídas semelhantes. Já que deixamos chegar a gestão das escolas e a administração do sistema educativo a este estado lastimoso, diante do silêncio dos governos, e da passividade alarmante da Assembleia da República, é melhor não irmos
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atrás do primeiro que berra “fogo” e começar a chamar os “bombeiros empresariais”. Não há revolução que resolva esta situação. Se houvesse, pois que viesse! Só medidas de melhoria gradual o podem
fazer,
mas
medidas
sistematicamente
pensadas,
amadurecidas e adequadas ao nosso contexto muito preciso. Não basta tomar uma medida isolada, p. ex. nomear “gestores profissionais e empresariais”, agindo como se a corrosão não se tivesse instalado já em toda a construção. Por outro lado, uma escola é uma casa de educação de pessoas e isso pouco tem que ver com a produção de sapatos. O que não se deve concluir, que fique bem claro, é que as escolas não podem ser bem geridas, com eficácia e eficiência, com bom desempenho social. Podem e devem e com urgência. Sobre esses rumos a empreender voltaremos a falar mais adiante. Haverá que equacionar pelo menos três importantes variáveis: autonomia/liberdade, responsabilidade e rigor na gestão. A elas regressaremos. Até breve.
Para reflectir mais aprofundadamente sobre este tema recomendo um livro de João Formosinho, Fernando Ilídio Ferreira e Joaquim Machado, “Políticas Educativas e autonomia das escolas” (Edições ASA, 2000).
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2. Meu caro Director, Escrevo-lhe esta carta para lhe falar, conforme seu pedido, sobre a ética e a escola, ou mais propriamente sobre a gestão ética da escola. Começo por lhe dizer que não há outra gestão escolar que não seja a gestão ética da escola, embora reconheça que é visível a falta de ética na gestão das escolas. Uma gestão ética da escola é um bom caminho para alcançar uma boa escola, suficientemente capaz de criar condições de educação para cada um dos alunos. A par da família, a quem cabe o exercício central da missão educativa, a escola desempenha uma função social eminentemente cultural. Uma escola é uma oficina cultural, onde se alcança o passado, se procura compreender o presente, se sente a humanidade dos seres que desabrocham no quotidiano e onde se respira o futuro, um mundo que se quer sempre melhor, com o contributo activo e insubstituível de cada um dos alunos e de cada um dos professores. A escola não é nem pode ser neutra. Ela educa, transmite
normas
e
valores,
gera
climas
e
induz
comportamentos. Ela é uma organização, tem uma estrutura, um quadro institucional fortemente regulamentado e condicionador de tudo quanto se faz e de como se faz aquilo que se faz. Além
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disso, transmite um “thesaurus cultural” que compreende opções civilizacionais, categorias culturais, relações instituídas e conformadoras de comportamentos sociais. Um dos grandes equívocos da escola de hoje parece-me radicar nesta dificuldade recorrente em admitirmos isto mesmo, tanto nas escolas estatais, como nas escolas não-estatais (ou privadas). “A minha escola não é neutra, educa”. Cada escola desdobra-se numa miríade de salas de aula onde nenhum acto é neutro. E educa para quê, educa como, educa em que liberdades e em que constrangimentos? Educa que alunos? Todos? E cada um(a)? Por vezes, deixe-me confessá-lo, tenho muitas dúvidas sobre o facto de que se acredite seriamente, nas nossas escolas, no princípio da educabilidade de cada aluno. Há tantos alunos deixados por conta, tanto abandono quotidiano de crianças e jovens por parte da instituição educativa que, por vezes, me pergunto se ela está realmente empenhada em educar. Ou melhor, pergunto-me que tipo de educação pratica, que valores e comportamentos valoriza, que tipo de cidadãos quer ajudar a forjar. Uma escola onde se praticam sequências lectivas uniformes, ao longo dos meses, ano após ano, onde se atribuem trimestralmente classificações e se afixam pautas no termo de cada ano lectivo, não é uma escola neutra. Ela talvez esteja mais
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ocupada com o cumprimento de uma norma geral, que enforma educadores e educandos, do que com o desenvolvimento de cada um dos seus alunos. É bem clara, em cada gesto, a falta de neutralidade
da
escola;
mesmo
sob
os
actos
mais
institucionalizados se escondem valores que se transmitem, em cada decisão, palavra, olhar, silêncio. Por exemplo: quantas vezes, combinando silêncios e omissões, a escola fica à espera que um certo aluno ou uma dada aluna deixem de aparecer. De facto, a escola, a educação escolar não é neutra. A assunção desta permissa é fundamental. Se a escola é uma casa de aprendizagem, uma casa de educação, ela tem de assumir a missão de educar. Uma missão que não é um exclusivo de professores. Os professores sabem que não estão isolados no acto de educar, eles sabem que têm de cooperar com as famílias nessa árdua tarefa. Devem, por isso, envolvendo o maior número de famílias, encontrar, em conjunto, o norte educativo da escola, definir um rumo, caminhos para lá chegar, recursos a implicar, metas a atingir e modos de avaliar o percurso (de uns e de outros, de todos os intervenientes). Criar as condições para a construção desta missão e deste caminho, em cada escola e em cada comunidade, talvez seja o primeiro passo de uma gestão ética da escola. O Director
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convoca os adultos e educadores e cria as condições para a sua activa participação neste processo. Não é fácil, não é nada fácil. A minha experiência, em Lordelo-Paredes, bem mo recorda. Mas o diálogo entre as várias “culturas” que existem na escola e os vários grupos de pertença, requer uma liderança aberta, plural e capaz de suscitar integração, em vez de dispersão ou de selecção (ficar com os eleitos é um modo de selecção, é preciso coragem e disponibilidade por ir ao encontro de todos os universos sociais que a escola acolhe). Se não houver reflexão sobre as finalidades da escola dificilmente saberemos o que estamos a fazer numa escola, alunos, professores, pais e outro pessoal de apoio técnico e administrativo. Se não soubermos para onde queremos ir acabamos, com facilidade, por ir para onde não queremos. Quando muito a escola cai na mera reprodução dos universos culturais e das relações sociais que existem à partida. A definição participada de um rumo, de actividades, metas e recursos,
é
imprescindível
para
criar
um
clima
de
responsabilidade. É o cabide onde podemos pendurar as questões que no dia-a-dia e no termo de cada ano permitem avaliar, responsabilizar e encontrar as vias de melhoria contínua.
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A escola uniforme, integrada, como uma peça da engrenagem, no sistema nacional da educação, construída em torno de um mesmo programa, um mesmo horário, um mesmo calendário, um mesmo tipo de turmas e de professores, um mesmo contexto, essa escola não existe, está desde há várias décadas em ruinosa desagregação. Existem escolas, cada uma com os seus alunos próprios, os seus próprios professores e pais, o seu contexto sociocultural. E cada escola torna-se uma instituição de educação, na medida em que se liberta desta opressão do “sistema”, das finalidades colectivistas, ou seja, na medida em que descobre o seu rosto próprio, construído com os rostos e as mãos dos seus próprios educadores e educandos. Precisamos de descultar o código ética da escola trazendo para a luz do dia as nossas opções. Não há professores neutros, não há aulas neutras, não há espaços de aulas neutros, não há directores de turma ou psicólogos neutros. Não há directores escolares neutros. É neste contexto que nascem o Projecto Educativo de Escola (PEE) e o Plano Anual de Melhoria Gradual da Escola (PAMEGE). No meu entender são dinâmicas que se materializam em documentos curtos e incisivos. Vejo frequentemente PEE enormes, onde está tudo, mas onde muito provavelmente não está ninguém. São geralmente documentos
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construídos mais segundo o método “copy-paste” do que segundo uma dinâmica escolar participada. Não precisamos de elaborar documentos com muitas páginas e capítulos e subcapítulos (nem sequer deve haver qualquer norma para a sua elaboração). Importa que digam o mais importante e que seja “assinado” pelos professores, pelos pais, pelos alunos (no nível secundário). Uma boa gestão escolar, se requer um PEE, ele não pode quedar-se por aí. Esta é uma condição necessária mas insuficiente para uma gestão ética da escola. Falta-lhe construir um rumo anual, um quadro de responsabilidades, uma dinâmica de melhoria contínua e gradual, um cimento de coerência, permanentemente re-construído. Meu caro Director, não vale a pena escamoteá-lo: a escola é uma instituição social muito incoerente. Elaboramos normas e documentos, a começar na Lei de Bases do Sistema Educativo e a acabar no PEE, que enunciam objectivos e actividades que são irrealizáveis. Pior, acabamos por realizar aquilo que não queremos. A escola diz que serve para algo que depois não consegue alcançar, acabando, tantas vezes, por servir para aquilo que diz que não serve, pelo menos em teoria ou em sede normativa. Por exemplo: “A escola é para instruir e formar todos os alunos”. Se é para todos os alunos, não pode ser
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só para alguns. Então teremos de armar o estaleiro necessário para atingir este objectivo, em cada escola, em cada ano de escolaridade, em cada turma. Uma instituição educativa incoerente é uma instituição que educa na e para a incoerência, a falta de objectividade, a des-responsabilidade e a mentira, (como vê, as nossas escolas não são neutras, não!). A responsabilidade, diz J. M. Duart, “no quadro da construção ética das organizações, é a ponte entre a organização e as suas finalidades; e entre as pessoas e a organização”. A escola, como organização ética, deve assumir as suas responsabilidades perante cada um dos alunos, pais e professores e perante a sociedade, não apenas quando e porque elas o solicitem, mas porque faz parte integrante da sua missão social. O PAMEGE pode ser um instrumento útil para uma gestão ética da instituição educativa escolar. Porque é um Plano, o resultado de uma visão partilhada e de uma construção comum, um consenso alcançado para uma orientação geral da escola num dado ano lectivo. Porque é Anual, ou seja, os intervenientes estabelecem metas curtas, concretizáveis, que os animam, que os responsabilizam, que são por sua vez indicadores de avaliação e de recomeço. Por exemplo: reduzir o abandono escolar no 10º ano, em 5%, e verificar, no termo do
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ano lectivo, os modos como se alcançou ou não o objectivo planeado. Porque é de Melhoria, isto é, porque coloca a comunidade escolar numa viagem concreta em ordem a alcançar melhorias concretas no desempenho social da instituição. Que pode uma instituição de educação fazer de mais nobre que este acto de todos os anos empreender melhorias, com a convicção de que as pode alcançar, com um quadro claro de actividades – responsáveis – metas – recursos – resultados avaliação. Já pensou como se pode melhorar a qualidade da educação no nosso país seguindo esta via? Cada vez estou mais certo de que não há outra via. As outras, de que tanto se fala, as reformas, os decretos-lei, as circulares, são obras feitas fora das escolas, que ninguém envolvem e ninguém comprometem. E estas são tantas e infrutiferamente repetidas ao longo de décadas que, como diz A. Etzioni, “adormecem a consciência moral” dos cidadãos. Os actores concretos do PAMEGE desenvolvem uma conduta de melhoria Gradual das suas organizações, conscientes dos limites e das potencialidades que agregam. Tem de haver compromissos morais que se definem localmente e que devem ser o sustentáculo da melhoria da educação, ano a ano. Nada muda de repente, nada muda “de uma vez por todas”, contrariamente ao que tantas vezes repetimos, nenhuma lei
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“nua”, em prol da “qualidade da educação”, passará do Diário da República (veja só o que aconteceu à legislação sobre a “autonomia das escolas”, o célebre decreto-lei 115/1998, que tudo mudou, tendo acabado por ficar tudo mais ou menos na mesma). É da melhoria da Escola que falo, da instituição de educação no seu todo, não de um projecto ou outro, de um programa ou outro, mais ou menos marginal. Devemos, por isso, tornar bem claro o que queremos que melhore na nossa escola, em cada ano, e como é que os actores e os órgãos da escola se vão envolver nos processos de melhoria gradual nos quais vamos apostar. Existem, como todos sabemos, graves falhas na qualidade da educação em Portugal. Mas elas existem também porque há falhas ainda mais graves na gestão desta situação, pois face a ela não fazemos mais do que emitir lamentos, redigir textos cínicos e pedir o regresso da escola do passado, elaborar reformas sobre reformas sem perceber que o seu destino é mudar as normas para perpetuar a situação de que se parte. A melhoria da qualidade da educação das nossas escolas requer estratégias consequentes e metodologias de acção que permitam alcançar ganhos concretos, com eficiência e eficácia. E ao estabelecermos esta estratégia e esta metodologia de acção não
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vejo outro caminho a trilhar que não seja o de um PAMEGE (que é um não-lugar e que pode ser uma estrela na nossa “noite”). Já vai longa esta carta em torno da gestão ética da escola. Ficam muitos aspectos por abordar, mas fica ainda mais conversa para continuar. Deixo, apenas, uma reflexão final. Um bom gestor de uma instituição de educação escolar só pode praticar uma gestão ética da escola. Não há, nem pode haver, nas
instituições
verdadeiramente
educativas,
gestores
profissionais que se articulam com gestores pedagógicos, que se articulam, por sua vez, com gestores administrativos. Um bom gestor de uma escola é o que aplica e faz aplicar o código ético da escola. Um bom gestor de uma escola, como diz J. M. Duart, é um guia, um facilitador, que ouve e ajuda a transformar ideias e iniciativas em planos, que reúne e aplica recursos, que actua e faz actuar, avalia e faz avaliar, que liga e que une o que pode andar separado pelos campos administrativos, financeiros, pedagógicos, o que anda disperso por ser “de dentro da escola” e por ser “de fora da escola”. O pior que pode suceder a uma instituição social tão determinante e tão complexa como uma escola é o seu director estar convencido da bondade de uma gestão tecnocrática da escola.
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Para leitura posterior recomendo “La organización ética de la escuela y la transmisión de valores”, de Joseph Maria Duart (Ed. Paidós, Barcelona, 1999).
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3. Cara Directora e caro Director
O mundo que envolve a escola tem mudado muito. Hoje, a escola já não é mais aquela instituição social elitista, distante, colocada num pedestal, em localidades onde predominavam o analfabetismo e as débeis qualificações escolares. De uma “escola-enclave”, como uma vez lhe chamei, estamos a evoluir para uma nova situação, num contexto novo. Os portugueses procuram, cada vez mais, a educação escolar e esta procura está prenha de promessas: mobilidade social ascendente; melhoria do estatuto social e do grupo profissional dos filhos, em comparação com o dos pais; reconhecimento social acoplado às credenciais escolares; elevada expectativa nas virtualidades educadoras das escolas, capazes de formar bons cidadãos e futuros trabalhadores, com emprego ao sair da escola. Mas a distância que se pode percorrer entre o prometido e o alcançado leva-nos a falar quotidianamente em “crise da instituição escolar”. De facto, a diversidade de universos culturais “acampou” nas escolas, as fontes de aprendizagem tornaram-se muito diversas e as necessidades de actualização
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são cada vez mais permanentes, ao longo de toda a vida e comuns à generalidade dos cidadãos. O futuro da escola, não será construído sobre a projecção linear do sistema educativo do passado. Impõe-se, segundo consigo perceber, um processo de re-fundação, que será necessariamente um caminho de humildade. A escola “serviço local do Estado”, essa “escola-enclave” deverá evoluir para uma escola “serviço local de educação”, como instituiçãocharneira mergulhada na sociedade, em cada localidade do país. O lugar central da educação escolar deveria equacionar-se agora num quadro mais vasto em que a própria centralidade se tem de reconstruir com a reconstrução do lugar das escolas nos territórios e nas comunidades locais. O referencial que tenho proposto para pensar esta nova centralidade é o das comunidades (de) aprendentes. Em cada território, crescentemente constituído por cidades, todos os cidadãos são aprendentes, ao longo de toda a vida. As comunidades locais devem dar uma especial relevância a esta condição de cada um – ser aprendente – pois ela é fonte de desenvolvimento
pessoal,
de
edificação
de
atitudes,
comportamentos e modos de vida entrelaçados com o bem comum, fonte de aquisição das referências culturais básicas e
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comuns essenciais para a compreensão do mundo e de si próprio e para o exercício de uma cidadania activa. Aprender a saber, a saber-fazer, aprender a ser, aprender a viver em comum, aprender a ler a realidade, aprender a dialogar, a argumentar, a interrogar, aprender em confronto com o passado e com o presente, aprender a exprimirse, a situar-se e a saber ser aquilo que se é, fazendo aflorar a misteriosa e maravilhosa multiplicidade de seres que somos, em cada comunidade. Como assinala a UNESCO, a aprendizagem ao longo da vida não é um ideal longínquo mas uma realidade que tende cada vez mais a inscrever-se nos factos quotidianos: “a educação ao longo de toda a vida deve fazer com que cada indivíduo saiba conduzir o seu destino, num mundo onde a rapidez das mudanças se conjuga com o fenómeno da globalização, para modificar a relação que homens e mulheres mantêm com o espaço e o tempo.(…) A educação ao longo de toda a vida torna-se assim, para nós, o meio de chegar a um equilíbrio mais perfeito entre trabalho e aprendizagem e ao exercício de uma cidadania activa. O conceito de educação ao longo de toda a vida é a chave que abre as portas do Século XXI.”
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Esta visão faz-nos desembocar de imediato na “cidade educadora”: um tecido repleto de redes e de encontros, uma manta multicultural inter-conectada, uma sociedade que pode oferecer a todos, sem excepção, múltiplas e flexíveis oportunidades de aprender, de saber-ser, de aprender a viver juntos. Ser cidadão é ser aprendente, aprender é exercer a cidadania, é partilhar limitações, é ousar ir mais além, ser mais, sempre em comum, porque ninguém é aprendente sozinho. A cidade educadora é uma longa mesa posta (sempre a ser posta), feita de instituições fortes, de acordos, associações de interesses e protocolos, projectos conjuntos e vínculos sociais, onde todos têm um lugar, independentemente da sua idade, do seu sexo, da sua origem social e do seu nível de escolarização. É neste sentido que uso o termo “comunidade de aprendentes”. As redes de informação e de conhecimento irrompem, actualmente, de todos os lados, agora com capacidades antes impensáveis não só de transmissão de dados, imagens e sons numa faceta relacional ainda pouco rica, mas sempre em evolução - mas também de inter-comunicação, de fomento de aprendizagens permanentes entre oficiais do mesmo ofício e entre qualquer cidadão, em praças mais ou menos virtuais, num ambiente de grande liberdade. Somos todos aprendentes. O tempo de uma escola, um professor, uma disciplina, uma aula,
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uma hora (tenha ela os minutos que tiver), uma turma, um número e uma pauta é um tempo em estrondosa ruína. Mas, ruína maior é não o percebermos, sob o pretexto de que a escola que herdamos ainda funciona. As tendências deste movimento são cada vez mais claras, apesar da sua complexidade: do ensino para a aprendizagem; do ensino conferente de graus para a aprendizagem conferente de inclusão social e de realização pessoal; do ensino na infância e na juventude para a aprendizagem ao longo de toda a vida; do ensino transmitido nas escolas para a aprendizagem em qualquer lugar e a qualquer hora; do ensino unidireccionado para a aprendizagem em rede e para as comunidades de aprendentes, que ensinam e aprendem; dos saberes que se transmitem de uma vez por todas para as arcas de competências que se enchem ao longo de toda a vida, seja com os saberes escolares formais, seja com saberes ligados ao exercício profissional e à empregabilidade, seja, ainda, com saberes ligados à fruição cultural, à ocupação dos tempos livres, aos interesses e motivações pessoais profundas e próprias, ao exercício de uma cidadania plena e responsável. Já não deve haver, como mundos isolados, o de dentro das escolas e dos centros de formação e o de fora das escolas e dos centros de formação. Há apenas o de dentro das cidades-
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comunidades ao serviço da aprendizagem de cada uma e de cada um, em qualquer lugar, a qualquer hora, qualquer que seja o ponto de partida. Museus, teatros, associações culturais e recreativas, fábricas, fundações, organismos públicos estatais, centros de saúde e de cultura, jornais, bibliotecas, bombeiros, serviços de fornecimento de água e energia, clubes desportivos, serviços de segurança pública, colectividades de bairro, câmaras e juntas de freguesia, todos são convocados para serem actores de educação e de formação ao longo da vida, porque assim serão actores de socialização, tecedeiras de capital social, factores de abertura e comunicação intercultural. Todos são promotores de competências, as mais diversas e ricas, assim se percebam e revejam como instituições construtoras de capital social. Para enfrentarmos os dramas das desigualdades, da corrosão das identidades pessoais e dos vínculos sociais e da violência, precisamos de fomentar e cimentar a comunicação cultural permanente e viva, pois ela, em si mesma, é promotora de educação e de aprendizagem para a participação social e para a criação de laços interpessoais e de comunidade. Sou dos que acreditam que a inteligência se aprende, se fomenta e se incrementa, sempre que houver um contexto favorável, um caldo estimulante e um esforço pessoal condizente. A aprendizagem requer esforço e trabalho
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(participação) do aprendente, capacidade de iniciativa e liberdade criadora. As incertezas, as mudanças e o ritmo vertiginoso a que ocorrem, são geradoras de tensões permanentes, requerem capacidade de empreendimento e assunção de riscos, o que reclama, no seu conjunto, uma crescente capacidade de resiliência humana. Num contexto social estimulante, como o da cidade educadora, que vai muito para além das fronteiras das escolas e dos centros de formação, com políticas públicas e particulares objectivas, determinadas e mobilizadoras, todos e durante toda a vida podem aprender e desenvolver competências. Assim haja a capacidade de colocar todos em rede, de fazer com que as redes sejam acessíveis a cada cidadão, em qualquer lugar, tanto nos centros como nas periferias e nas “novas periferias” ainda mais periféricas. Os “sistemas educativos”, nesta óptica, deixarão de ser organizações fabris onde imperam actuações mecânicas e repetitivas, reguladas do(s) centro(s) para a periferia, mas organismos vivos, onde pulula uma multiplicidade de instituições educacionais diversas, articuladas horizontalmente em cada território, numa textura social rica e interdependente, organismos estes que se servem da aprendizagem como
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ferramenta básica da sua sobrevivência e de uma vida digna e em comum. Aqui situados, qual será o lugar da educação escolar, o ensino básico, secundário e superior? As instituições educativas escolares não podem ir atrás de modas ou de conveniências de momento, deste ou daquele. Ser instituição social contracorrente, inserida numa comunidade e actuando em rede dentro dela, não é tarefa fácil. Creio que a escola terá um lugar próprio, específico e muito importante, um lugar que será construído, sob vários ângulos, em contra-corrente. A escola deve ser um espaço de ensino-aprendizagem da herança cultural comum, dos conceitos e das categorias elementares do pensamento humano, sobre as quais hão-de repousar as actualizações, refutações das teses, a criação cultural e a inovação. A escola deve ser o espaço-tempo da lentidão, da reflexão crítica, da hierarquia dos conceitos e dos valores, diante da voragem e da anarquia próprias da sociedade da informação. A escola deve ser um espaço-templo da consolidação do saber, da aprendizagem do erro e da verdade, numa perspectiva sempre aberta, sempre livre, simultaneamente sólida e humilde. A escola deve ser uma instituição aberta à cooperação com as demais instâncias as educação, sem ter por isso de perder o seu lugar próprio e a sua missão específica. A escola deve ser o lugar onde se ensinam e
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aprendem, ao longo dos preciosos anos (e longos anos) da infância, da adolescência e do início da juventude, as atitudes e os valores caros à comunidade local, onde se desenvolve uma consciência humanística e ética, essencial ao viver juntos, em paz e em melhoria constante da comunidade, que deve manter sempre como pontos de referência tanto uma pertença concreta, a comunidade local, como a terra, na sua pequena vastidão, a comunidade de destino da espécie humana. Creia, cara directora e caro director que esta reflexão me ajuda muito a pensar a escola de hoje. Pode ser que a si lhe possa dizer algo também e, sobretudo, nos coloque a pensar em conjunto, sobre a nova centralidade da instituição escolar numa sociedade em tão profunda transformação. Até breve.
Se dispuser de algum tempo e quiser aprofundar alguns destes temas recomendo: “Gobierno local y educación”, de Joan Subirats i Humet, editado pela Ariel (Barcelona, 2002); “Escolas, projectos, redes e territórios”, de João Barroso (Ministério da Educação – PEPT, 1993). Na minha página na Internet tenho um texto
sobre
a
temática
das
comunidades
de
aprendentes
(www.joaquimazevedo.com).
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4. Cara Directora e Caro Director,
Dou comigo muitas vezes a pensar sobre o que passará pela sua cabeça naqueles dias de Agosto e de Setembro de cada ano, em que, além do fim das férias e do início de um novo ano lectivo, lhe caem em cima os resultados do “ranking” nacional das escolas secundárias. Imagino que, diante de situações escolares tão díspares, as reacções também o sejam. Imagino até que sejam reacções individuais muito contraditórias, tais como: “como é possível esta loucura de se querer avaliar escolas com base em resultados de exames nacionais de 12º ano?” e “a nossa escola está numa boa posição!” ou ainda “o que terei de fazer para tirar a nossa escola desta posição desconfortável?”. É pena, como já tenho referido insistentemente, que se tenha entrado na vasta problemática da avaliação institucional das escolas por esta porta. Mas, quando não se abrem a tempo as portas necessárias, jogando por antecipação, as múltiplas pressões acabam por arrombar a porta que estiver mais a jeito. E o Ministério da Educação (ME), mais uma vez, só agiu depois de ameaçado, coagido administrativamente, quando há muito podia e devia ter informado convenientemente os cidadãos sobre os resultados de investimentos tão avultados em
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educação. A máquina administrativa do ME possui os elementos que permitem informar adequadamente a população e detém, muito para além disso, o poder e o dever de avaliar permanentemente
o
sistema
educativo
e
de
induzir
gradualmente nas escolas uma “cultura de avaliação”. Houve várias tentativas e alguns projectos de avaliação das escolas. O que alcançou maior dinamismo foi a chamada “avaliação integrada das escolas”, praticada pela IGE. Mas, desde 2002, está tudo paralisado de novo, reduzido à publicação de listas ordenadas de escolas secundárias, supostamente ordenadas segundo a sua qualidade e eficácia, com base exclusivamente nos referidos resultados de exames. Somos peritos em voar baixinho, rente ao chão, não vá cairmos e magoarmo-nos. É muito triste e até escandaloso que se assista a este triste espectáculo sem que a crítica fundamentada ressoe e sem que outros processos e outras dinâmicas se instalem no terreno. De facto, como é possível assistir, sem mais, a esta divulgação de resultados que não consegue transmitir qualquer informação sobre a qualidade do trabalho educativo que se faz nas escolas, que faz tábua rasa dos públicos (muito diversos) que cada escola recebe, que ignora o tipo de cursos que cada escola
oferece,
que
incita
as
escolas
a
reprovarem
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sistematicamente os alunos no 10º e no 11º anos e a promoverem o seu abandono escolar, pois quanto mais o fizerem, mais limpam o terreno de escolhos e melhor podem ficar na fotografia que vem em todos os jornais e telejornais? Como é possível que se aceite tão brandamente que escolas que recebem alunos muito “difíceis” e que realizam com eles um trabalho
notável
de
integração
aprendizagens, com importantes
e
de
progressão
nas
e louváveis resultados
educativos, sejam tratadas como escolas incapazes? Como é possível comparar o trabalho desenvolvido em escolas como o Colégio do Sagrado Coração de Maria, em Lisboa, e o Externato de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no Porto, com base em resultados de exames nacionais de 12º ano? Como é possível deixarmos instalar práticas social e humanamente degradantes, em escolas secundárias públicas estatais, induzidas por estes “rankings”, tais como: recusa em receber matrículas a alunos menos “apresentáveis para o nível da nossa escola”; recusa em receber cursos tecnológicos porque isso só vai fazer descer a média no “ranking”; orientação mais ou menos explícita para reprovar o mais possível os alunos no 10º ano, provocando se possível o seu abandono, pois cada um destes que sai é menos um problema que fica, etc.
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E, é preciso dizê-lo, o objectivo está a ser amplamente alcançado: já reprovam mais de metade dos alunos no 10º ano e já está a abandonar o 10º ano, em Portugal, um em cada quatro alunos. Notável recorde português! Já tínhamos o recorde do país da Europa com menos população escolarizada no nível secundário e, agora que estávamos a escolarizar mais e mais jovens com o nível secundário, também já alcançamos o recorde do maior abandono escolar no ensino secundário. Palmas para nós, que atingimos todos os recordes! Uma certa intelectualidade portuguesa apoia estas medidas só porque se trata de “avaliação” de instituições públicas estatais, porque isso agora está na moda, mas não realiza qualquer esforço para estudar e compreender o que é que está em causa. No meio de um chá e de uns bolos, pois que vivam os “rankings”! Cara directora e caro director, com a educação não se devia brincar. E a sua reacção, que eu sei que é de insatisfação com este triste espectáculo, não se consegue fazer ouvir. Tem sido realmente difícil passar da reacção à acção, a uma outra maneira de se encarar a necessidade inultrapassável de avaliar o desempenho das escolas. O que nelas se faz é tão importante para as pessoas e o que nelas todos investimos é tão relevante e
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caro para o país, que a sua avaliação tem mesmo de se fazer. Mas como? Que avaliação? Quem intervém? Para quê? Bom, vamos por partes. Este tipo de “avaliação” das escolas deve ser rejeitado. Nem sequer de avaliação se trata. E mais: estes modos de interrogar a eficácia das instituições escolares só contribuem para afastar os professores e os directores escolares de uma serena e necessária avaliação do desempenho social das escolas. Se o objectivo é o de ir paulatinamente instaurando uma “cultura de avaliação nas escolas”, então o caminho a trilhar não pode ser exactamente aquele que coloca os professores e os directores da escolas contra a avaliação, porque é injusta, porque fomenta práticas administrativas e educativas degradantes, porque conduz ao ridículo e ao império do cinismo. Não basta querer avaliar tudo e todos e de qualquer maneira, é preciso saber o que se quer avaliar, para que se quer avaliar e como se vai avaliar. A cultura de avaliação tem de cair na terra boa que existe nas escolas, nascer e crescer gradualmente, até ganhar raízes. E conseguir tudo isto em instituições que nunca foram avaliadas, nem de dentro nem por fora, é muita lavoura, uma labuta que deve ser calculada desde o início para durar umas décadas. E, porque demora muito, é preciso começar já!
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Mas a precipitação é má conselheira. Os resultados que estão à vista são: a opacidade aumentou, continua a não se perceber onde estão os bons processos e os bons resultados educativos,
há
até
mais
degradação
ética
e
práticas
administrativas intoleráveis e haverá mesmo mais directores contra a avaliação do que a seu favor. Mas proponho-lhe pensar isto de outro modo. Vamos partir da singela e fecunda ideia dos planos de melhoria gradual (de que já falamos) e vamos escolher esta outra porta para entrar na temática da avaliação da escola. Se a escola se coloca numa dinâmica de melhoria gradual do seu desempenho é esta mesma rota que deve constituir o seu norte. Os professores, organizados de diversas formas, seja nos Departamentos Disciplinares seja nas Direcções de Turma, seja nos Conselhos de Turma ou em outros modos de prestação do serviço educativo, juntamente com os alunos, o pessoal auxiliar e os pais, são chamados a construir esse plano de melhoria gradual. Para isso, como já referi em outra carta, é preciso começar por avaliar. Os actores da escola começam por fazer o diagnóstico da sua situação, o ponto de onde partem (que muitas vezes está feito e outras vezes parece que está mas não está), e definem quais são as áreas-problema que querem enfrentar no seu plano. Para tal é preciso promover uma auto-avaliação, cuja extensão e
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profundidade dependem de cada escola e da experiência já acumulada. A auto-avaliação é a mais importante das dinâmicas de avaliação, mas tem de nascer de dentro, no seio de dinâmicas que projectem a escola para a sua melhoria gradual. De outro modo pode ser um enxerto que nunca pega, algo marginal nas actividades da escola. A própria avaliação externa, quando existe, se não tem pontes e pontos de apoio internos, inscritos em acções concretas de melhoria do desempenho da escola, dificilmente produz resultados sobre os processos de educação que aí se desenvolvem. Depois, quando os actores de uma escola definem os objectivos e metas que querem alcançar, as actividades a desenvolver e os recursos a afectar para lá chegar, também são chamados a estabelecer critérios para avaliar permanentemente o seu plano, seja enquanto ele decorre seja no seu termo. Ora, aqui temos de novo a avaliação a desempenhar um papel crucial de auto-regulação do desempenho de cada escola. São os actores da escola a promover a avaliação, ou seja a detectar os avanços e as resistências, a ter de perceber o seu porquê, em cada contexto, e a manter ou, eventualmente, a ter de mudar de trajectória e a corrigir erros cometidos. Mas ao fazê-lo a organização aprende, os profissionais constroem inteligibilidade
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sobre os processos que desencadeiam e sobre os resultados que alcançam. E isto é crucial, pois é com eles e só por eles que se melhoram ou não esses processos e esses resultados Claro que uma intervenção externa pode ser muito útil e complementar. Ou seja, se uma entidade for chamada a promover uma hetero-avaliação, que construa uma visão independente e autónoma da escola, esta dinâmica pode favorecer um confronto de olhares e, desse modo, pode suscitar outros pontos de vista, novas abordagens das situaçõesproblema e até sugerir outras vias de acção. A hetero-avaliação pode ser, de facto, da maior utilidade. Por vezes, mesmo quando não é promovida por iniciativa das escolas, como sucedeu no Estado de Rhode Island, nos EUA, a avaliação externa pode revelar-se muito útil. Mas, com base nesta experiência, para que tal aconteça, é necessário que haja uma “equipa de melhoria” constituída dentro de cada escola, que é responsável por promover ao mesmo tempo a auto-avaliação. Normalmente esta avaliação interna combina indicadores qualitativos com os indicadores quantitativos que são oriundos da avaliação externa, promovida pelo Estado. Adicionalmente e ainda neste caso, cada cinco anos a escola recebe uma “visita” de um grupo de professores e de membros da comunidade que são responsáveis por elaborar
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um relatório sobre a escola. Uma vez enviado este relatório ao órgão de gestão da escola, este decide com autonomia o que fazer e as lições a tirar. Este sistema não contém recompensas, mas comporta mecanismos ágeis de ajuda a todas as escolas que estiverem em dificuldades, ou que revelem uma avaliação pouco positiva. Neste caso, tal como o OFSTED2 tem vindo a fazer no Reino Unido, a intervenção do Estado é tanto maior quanto maiores forem as dificuldades de cada escola em sair da situação difícil em que se encontra. Por outro lado, a existência desta avaliação externa, mesmo na ausência de dinâmicas de avaliação interna, pode ser indutora de maior atenção a certos problemas, de melhor gestão das escolas. Como os indicadores de avaliação são os mesmos para todas as escolas (mas com uma composição que os coloca longe da farsa avaliativa que é feita com base nos resultados dos exames de 12º ano), os resultados de cada escola podem ser confrontados com os de outras escolas e esta dinâmica mais útil do que a total ausência de indicadores nacionais de avaliação das escolas. Como já lhe referi noutra carta, na ausência de qualquer mecanismo de avaliação, seja interno seja externo, a generalidade das escolas vive alheia face aos seus próprios processos e resultados. E isto é que é muito grave. E os 2
OFSTED – Office for Strudards in Education (Reino Unido).
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directores dizem, ao mesmo tempo, que cumprem as normas. E isto ainda é mais grave. E mais grave se torna quando o espaço que fica vazio é ocupado (e sê-lo-á sempre) seja por “avaliações” que de avaliação institucional nada têm seja pelos juízos e pelos veredictos da praça pública. Mais vale ocupar o espaço vazio com algo de mais positivo. Assim como já lhe tinha afirmado que a melhoria do desempenho das escolas não há-de vir consagrada em nenhum decreto-lei ou reforma e que este hábito, que alimentamos durante décadas, de ficar à espera de uma nova reforma para mudar o que tem ser mudado e está à nossa frente, assim também a porta de entrada para a avaliação das escolas deve ser sobretudo o processo interno de melhoria gradual da escola. Dadas as características das instituições escolares, muito fragmentadas, com públicos muito diversos que transportam experiências, interesses e expectativas também muito diversas, sob o efeito de uma multiplicidade de pressões sociais (quantas vezes contraditórias entre si), sob o completo controlo da administração e sem qualquer margem real de autonomia, educadas na e para a dependência, não é de esperar que sejam elas próprias a “descobrir” a auto-avaliação ou a aceitar promovê-la porque a administração assim o deseja, a não ser
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que a enquadrem em dinâmicas de melhoria que tenham decidido empreender. Este é o meu ponto de vista. Se assim o desejar, pode expressar o seu ponto de vista para o endereço que apresento no final destas cartas.
Para saber mais: ver o artigo de Denis Meuret (França)
sobre
“O
papel
da
auto-avaliação
dos
estabelecimentos de ensino na regulação dos sistemas educativos” e uma artigo de Jorge Adelino Costa e Alexandre Ventura sobre a “Avaliação integrada das escolas: análise em torno de opiniões divergentes”, que integram um livro todo ele com muito interesse “Avaliação de organizações educativas”, editado pela Universidade de Aveiro, sob coordenação de Jorge Adelino Costa, António Neto-Mendes e Alexandre Ventura. As Edições Asa tem três livros interessantes sobre esta problemática: um intitulado “Avaliação dos resultados escolares”, edição que eu próprio coordenei e que reúne comunicações de vários autores sobre o tema, um outro de Miguel Santos Guerra, “Entre bastidores: o lado oculto da organização escolar” e um guia ainda mais recente sobre
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“Auto-avaliação de escolas. Pensar e Praticar”, da autoria de Vítor Alaía, Eunice Góis e Conceição Gonçalves.
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5. Cara Directora e Caro Director, Espero
que
tenha
alguma
disponibilidade
para
continuarmos esta conversa, um monólogo que um dia já foi diálogo, nas minhas múltiplas visitas às escolas e que, provavelmente, voltará a ser diálogo nos diversos momentos de debate em que participo. Se os decretos mudassem francamente a realidade da educação há muito que as nossas escolas eram acolhedoras de todos, peritas a lidar com a diferença, promotoras de personalidades livres e de cidadãos responsáveis. Mas não, não são os decretos que mudam as relações e os poderes estabelecidos, nem alteram os corações humanos e as suas atitudes. Eles podem apoiar melhorias, mas as melhorias têm de consistir em dinâmicas sociais concretas, que implicam pessoas concretas e órgãos precisos dentro das organizações. São os objectivos definidos de modo participado, são os planos de melhoria estabelecidos e executados, com eficácia e eficiência, é a determinação no caminho a seguir e a persistência na rota acordada, é a avaliação e a correcção das trajectórias, é a gestão eticamente fundada e a liderança eficiente, é isso que pode ajudar a mudar uma escola, cada escola concreta.
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Vivemos,
hoje,
como
náufragos
num
mar
de
desresponsabilização. É este o resultado de décadas de políticas educativas iluminadas, que mudam necessariamente todas as leis, das maiores às mais pequenas normas. Ninguém o faz por mal. Então porque é que é sobretudo isto que se faz, ano após ano, década após década? Creio que é uma defesa e um modo retrógrado de fazer política, de exercer o poder. Como não há outro caminho nem outro paradigma para a concepção e execução das políticas públicas, opta-se por redigir novas orientações normativas, com todo o espectáculo mediático associado, que até faz crer que o problema que existia (insucesso, abandono precoce, má gestão, violência) deixou de existir, no dia em que o Conselho de Ministros aprova as novas normas ou no dia em que o Diário da República as torna públicas ou ainda no dia em que são primeira página nos jornais. Trinta anos volvidos sobre Abril de 1974 e sobre a reconstrução da democracia, é tempo de travar às quatro rodas, pois a situação global da educação está em nítida degradação. Uma recolha estatística feita pelo Ministério da Educação sobre o Recenseamento Geral da População de 2001 revela isso mesmo, sem margem para dúvidas. Há progressos imensos na escolarização, mas há também retrocessos no processo de
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escolarizar, na gestão da educação e nos resultados escolares esperados. Precisamos de dar continuidade aos esforços de várias gerações de portugueses. Mas dar continuidade não significa fazer o mesmo, adoptando o mesmo paradigma de acção e o mesmo quadro conceptual de análise. O mundo mudou muito, nestes últimos trinta a quarenta anos que nos trouxeram até ao séc. XXI. O desgaste das políticas assentes na crença do poder regenerador das leis está visível diante de todos. O seu reverso é a desconfiança permanente nas instituições, públicas e privadas. Com a memória bem viva do passado e com uma análise rigorosa do presente, temos de imaginar novos possíveis e mudar efectivamente de rota, para que o naufrágio não leve a escola ao fundo, pois a educação é um dos meios mais preciosos de construção do bem comum, de promoção da justiça social e de realização humana de cada pessoa. Como é que cada escola pode vir a ser uma instituição social responsável, eticamente gerida, capaz de prestar um serviço público de qualidade (seja estatal, seja não-estatal)? Que condições básicas é preciso reunir para tornar viável este desiderato? Gostava de lhe falar da autonomia e da liberdade, cara directora e caro director, como algo oposto à desconfiança, ao
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medo e ao autoritarismo da administração. Gostava de lhe falar da autonomia como algo que se aprende, como um modo de ser escola, de organizar o processo educativo, de estabelecer uma interacção com as famílias, de cooperar com a comunidade local. A escola é uma organização que aprende, que precisa de desconstruir
concepções
iluminadas
e
normativistas
de
autonomia e construir planos de melhoria, recuperando a memória do que já foi feito na escola e deu bons resultados. A inteligência da escola tem de ser activada (porque está adormecida) e alocada ao serviço de uma boa gestão da escola e da melhoria gradual do seu desempenho. Há vários tipos de inteligência mais ou menos adormecida nas escolas. Falarei de três, a título exemplificativo, entre tantos outros (ver por exemplo Guerra, A Escola ...). O primeiro é a capacidade de capitalizar o conhecimento sobre o contexto social que envolve a escola, as suas diversas culturas, as expectativas das famílias face à escola e aos seus filhos, os principais actores locais, as suas disponibilidades e os seus recursos e as páginas já escritas em conjunto pelos de dentro da escola e pelos de dentro da comunidade. O segundo tipo de inteligência consiste na acção e na reflexão acumuladas sobre a acção pedagógica da escola, assente nas suas actividades permanentes (e quase sempre
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mecânicas) de ensino e de aprendizagem. Há vários órgãos que podem favorecer o desenvolvimento deste tipo de inteligência, como sejam o Conselho de Turma e o Conselho Pedagógico, desde que se estabeleçam práticas de sumariar e decantar a reflexão feita e as aprendizagens resultantes das acções empreendidas e dos resultados obtidos. Há muitas das aprendizagens que se fazem quotidianamente, com base em processos e resultados
que podiam até ser registado como
memória e inteligência comum. O terceiro traduz-se na capacidade da escola ganhar um lastro de aprendizagens éticas, que se relacionam quer com as finalidades da educação, quer com os valores partilhados, quer ainda com as regras e normas de conduta, desde a direcção à sala de aula ou ao relacionamento com as famílias. Estas três dimensões da inteligência da escola, para serem capitalizados no plano organizacional, requerem um esforço concreto de activação, uma direcção e intencionalidade apropriadas. De facto, as organizações escolares podem valorizar ou desvalorizar as múltiplas inteligências que existem no seu seio. Há muitas escolas que as desperdiçam por entre a rotina quotidiana e a espuma dos dias. Aos directores incumbe um papel de valorização e activação das inteligências que habitam dormentes nas
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organizações escolares. A gestão ética das escolas também passa por aqui, pois destas atitudes depende em larga medida a valorização das pessoas e das suas capacidades, ao serviço do desenvolvimento dos alunos, isto é, de cidadãos construtores de um futuro melhor. Cada escola tem de actuar num quadro de liberdade e de respeito pela diversidade. Estas são condições inerentes ao exercício da responsabilidade. As normas nacionais devem ser genéricas e deve ser dada muita liberdade de acção aos órgãos competentes de cada escola para que, em cada contexto social preciso, as competências destes órgãos realmente se exerçam. Diante dos problemas concretos é necessário encontrar caminhos de melhoria concretos e esses procuram-se em cada escola, só podem ser construídos pelos actores presentes em cada escola. Não há melhorias retóricas do desempenho de cada escola. Ou melhora, ou não melhora. No plano concreto de cada escola não há meias-tintas, o plano retórico é com elas que se adorna. As instituições escolares dispõem, além disso, de quadros superiores qualificados em quantidade e qualidade suficientes para analisarem os problemas, estabelecerem os planos de melhoria e avaliarem a sua execução, ano a ano.
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E esta liberdade é condição de acolhimento da diversidade social. Os contextos são muito diferentes, de escola para escola. As escolas dos grandes centros urbanos chegam a acolher populações profundamente heterogéneas. Uma escola em Cinfães é frequentada por uma população muito diferente, nas suas competências culturais e profissionais e nas suas expectativas sociais, da que frequenta uma escola em Paços de Ferreira, ou em Mértola, que por sua vez são diferentes da população que dá vida ao Colégio S. João de Brito (Lisboa). Face à diversidade da realidade social só se pode responder com políticas inteligentes, abertas, sustentadas na confiança, face a cada complexidade local só se podem conceber soluções complexas locais, dentro de quadros genéricos nacionais de referência. A imposição da solução única e pronto-a-vestir – que é o que temos tido até hoje – radica numa lógica de pensamento único, estalinista, que foi transportada para a acção do Estado, como se ele fosse intérprete colectivo e perfeito de todos os grupos, interesses e expectativas existentes na sociedade. Ainda por cima, no campo da educação escolar, toda a acção do Estado é subsidiária da actuação das famílias, o berço e a bússola da educação humana. Temos de destruir, sem hesitação e sem medo, estes paradigmas, desde a construção normativa
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até à gestão das escolas. O fracasso deste caminho está à vista e é desvastador, sobretudo para os mais pobres, cultural e economicamente falando. As desigualdades sociais no acesso e no sucesso persistem, apesar da espantosa conquista que representa escolarizar todas as crianças e adolescentes até aos 16 anos. O abandono escolar precoce atinge números elevadíssimos, sobretudo no 10º ano de escolaridade. A liberdade de ensinar e aprender e a autonomia de cada escola, com os consequentes sistemas de responsabilidade, são condições necessárias para melhorar a educação em Portugal. Reconheço, no entanto, que não são condição suficiente. E é sobre esta insuficiência que lhe quero falar agora. De facto, a liberdade e a autonomia devem andar a par de uma outra e mais inteligente intervenção do Estado: (i) acompanhamento
das
escolas
por
parte
de
agências
especializadas (e não pelos milhares de funcionários dos serviços centrais e regionais); (ii) criação de sistemas coerentes transparentes de avaliação externa do desempenho das escolas; (iii) estabelecimento de corajosos e atempados programas de apoio às escolas com maiores dificuldades, particularmente às suas direcções, deslocando equipas técnicas de apoio, altamente
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especializadas, aptas a reforçar uma autonomia com qualidade e responsabilidade, (iv) realização contínua de acções de disseminação das boas práticas e dos bons resultados (e elas e eles existem, em muitos locais do país, geralmente mais ignorados e esquecidos do que as más práticas e os maus resultados), pois por esta via se dignifica quem se dedica à causa pública e nobre educação; (v) apoio e incentivo ao voluntariado social e ao mecenato para apoio a cada escola local, onde deverá passar a haver um livro de registo formal das dúvidas, em tempo e em espécie, que são doadas a cada escola. Já não acredito em qualquer nova construção normativa que venha trazer a salvação, após os desaires dos modelos de 1989-92 e de 2000. O sistema educativo está mais desregulado, a gestão das escolas perdeu sustentabilidade e coerência e os processos educativos e os resultados escolares são fracos (???) quando comparados com os meios que nestes últimos trinta anos foram colocados ao serviço da educação em Portugal. Não sei como será viável estancar esta sangria da “construção normativa e retórica da educação”, característica em que somos peritos há mais de um século. Mas aqui fica enunciado um outro caminho, no qual sinceramente acredito. Pela sua mente, como pela minha, deve saltitar a ideia de que só com outra administração pública é que será viável
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este quadro de liberdade e de autonomia. E nisso estamos de acordo.
É
preciso
refazer
profundamente
a
máquina
administrativa que o Estado colocou ao serviço do serviço público educacional. Ela não serve para aquilo que diz servir. Esta esquizofrenia tem de ter limites. Haja a coragem de reestruturar todos os serviços, centrais e regionais, ordenandoos segundo critérios de subsidariedade e apoio permanente e de qualidade às unidades escolares, o centro nevrálgico de todo o serviço público educacional (seja estatal seja não-estatal). Sem que estes passos sejam dados é impossível pensar em qualquer dinâmica de real autonomia e de liberdade. Mesmo que se continuem a produzir belos decretos sobre “novos modelos de gestão das escolas”! Puras manobras de diversão! Não acha? Não deixe de debater estas tão importantes questões. Um bom director escolar sabe que raramente as questões urgentes são importantes e aquelas que verdadeiramente importam nunca são urgentes. Dedique parte do seu tempo ao que mais importa. Muito cordialmente, até breve.
Como
sugestão,
caso
disponha
de
alguma
oportunidade, recomendo a leitura de “A escola que aprende”, de Miguel A. Santos Guerra (ASA, 2000).
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6. Cara Directora / Caro Director Creio que concordará comigo se disser que não haverá processos de melhoria nas escolas sem a construção, em cada escola, de um clima propício. E esta construção não é fácil, num contexto de desgaste e de frustração que se vive em grande parte das escolas. Os esforços de participação na melhoria da educação têm sido conduzidos de fora para dentro, por iniciativa da administração central, e não têm conduzido a bons resultados. Passam-se os anos e, no caso particular das escolas secundárias, apesar de tanta participação de tantos milhares de professores, em encontros e debates pouco acontece. Como enfrentar este clima de frustração, que levou tantos profissionais dedicados a baixar os braços (já para não falar mesmo de alguma degradação moral e deontológica)? Em primeiro lugar, os processos de melhoria só podem construir-se nas escolas. É preciso destruir o mito de que a “salvação” vem de uma norma, de um novo decreto, de um novo ministro. Não, isso nunca ocorrerá. Desculpe insistir neste tema. Ter plena consciência disto é o primeiro passo para decidir empreender um clima propício para a melhoria progressiva da educação em cada escola.
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Você, como director(a), tem aqui um importante papel: convocar alguns professores e pais, mais activos e despertos para este novo rumo, com os quais vai conversando e que o podem apoiar na fase inicial. E o caminho é o diálogo, a conversa, os encontros formais e informais, em que se analise o que se tem passado, para onde é que se quer ir, o que é que deve melhorar e quem está disponível para participar neste processo de melhoria. E aqui, como já lhe referi, temos de ser muito precisos, muito concretos. O que é que é prioritário melhorar na minha escola? Qual vai ser neste ano o objectivo eleito? E esta é uma construção que deve implicar os órgãos da escola e o máximo de participantes. Pouco interessa redigir grandes documentos, papéis que lêem dois ou três; importaria talvez impedir que tal sucedesse e criar um ambiente em que fossem valorizados instrumentos práticos onde fosse possível espelhar muito sinteticamente as situações-problema e as prioridades eleitas para as/os ultrapassar. A este primeiro passo deve seguir-se o planeamento das acções que se vão desenvolver, os recursos que se vão mobilizar e quem se vai implicar e comprometer. Este é outro momento decisivo para colocar a escola na rota da melhoria gradual. Tem de haver compromissos. E estes tanto implicam os de “dentro”,
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por exemplo, os Directores de Turma, o Serviço de Psicologia e Orientação, como os de “fora”, a Associação de Pais, a Autarquia, o Centro de Saúde. Quando tal for conveniente, os compromissos deveriam ser escritos e assinados. Não falo de protocolos. Às vezes eles abrem portas e por isso são úteis. Mas são, em geral, maneiras de enterrar ideias generosas e, quantas vezes, mal se assinam, fecham-se as portas de novo. Falo de assinaturas datadas que firmem um envolvimento muito concreto de cada um, pessoa, parceiro, entidade. Uma fase importante de elaboração deste plano de acção anual consiste na definição, à partida, de parâmetros de avaliação daquilo que se quer realizar. Todos devem saber, desde o início, como se vai avaliar, quem o fará, que critérios e indicadores se vão aplicar. É que não há melhorias sem avaliação e a avaliação é potencialmente uma alavanca dos processos de melhoria gradual. A avaliação é uma fonte de aprendizagem. Creio que você deve estar particularmente atento ao tipo de projectos e dinâmicas que se pretende desenvolver, tendo em vista evitar fugas para a frente, grandes construções e muitas acções, mas pouca implicação concreta sobre o que se ensina e o que se aprende. Quantas vezes os projectos que se
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desenvolvem na aula são como que “projectos extra-escolares” desenvolvidos num dado espaço escolar. Procure sempre convocar os planos e os seus mentores à realidade concreta, às situações-problema, ao contributo real que eles podem dar para melhorar efectivamente o que se decidiu melhorar. E, já agora, outra sugestão: não deixe que os projectos descolem dos órgãos e das dinâmicas próprias e instituídas na escola, sobretudo daquelas e daqueles que podem dar contributos mais positivos para os fins em vista. Por vezes é útil a escola, de novo numa atitude de humildade, socorrer-se do apoio e do incentivo de uma pessoa e/ou uma entidade externa. Estas podem desempenhar um papel muito útil de conselho, de animação e facilitação dos processos de melhoria, ajudando a visualizar o já feito e o ainda por fazer, colocando
novas
interrogações,
ajudando
a
ultrapassar
equívocos e até conflitos pontuais internos. Se o projecto de melhoria da sua escola tiver articulação com outros projectos de melhoria de outras escolas, funcionando em dinâmica de rede de projectos e de ajuda mútua, este apoio externo pode ser mais eficaz e de mais fácil obtenção (além de se tornar mais económico para o seu orçamento).
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Como lhe dizia no início desta carta, não haverá processos de melhoria sem se criar na escola um clima propício à construção dessa melhoria. Mas com isto não quero dizer que deva ficar à espera que surja este clima, como que nascido do chão onde a escola se implante, para empreender projectos anuais de melhoria. As mais das vezes é o próprio processo de melhoria que cria o clima adequado (o caminho que se faz ao caminhar, como dizia o poeta). É preciso, isso sim, coragem. Só um real sentido ético de gestão escolar, que se traduz em compromissos concretos em prol do bem comum e da edificação de boas escolas, pode catapultar as nossas escolas para estas novas dinâmicas autónomas de melhoria contínua. A participação é um conceito-chave na actuação de um gestor e líder. Na educação ainda mais. “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, diz um provérbio africano. Não vale a pena avançar com muitas iniciativas e deixar os actores da escola a trabalhar cada um para seu lado, como se nada se passasse. No momento em que seja necessário responder a questões tão difíceis como esta, “como ensinar a quem não quer aprender?”, você não pode estar sozinho e cheio de actividades na mão.
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Esta
participação,
que
engloba
sobretudo
os
professores, os alunos e os pais, é ainda mais difícil importante no momento em que esta sociedade tende a “descolar” da escola por que tanto ansiou, fugindo atrás do cheiro de outra carrela (o consumo desenfreado, a mediatização do mal e da desgraça, os heróis pré-fabricados que alcançam o dinheiro e o sucesso tão facilmente, o individualismo e o egoísmo etc.), esta outra carrela que as escolas despovoa. Desejo-lhe, por isso, muita coragem, pois “o nível moral das tropas”, como se costuma dizer, é muito débil e vãolhe ser requeridas muitas energias suplementares. Mas creio que estas também emergem ao fazer o caminho, sem sabermos como, nem quando, nem onde, quase como os pequenos rebentos que vejo brotar de árvores totalmente despidas, neste início de Primavera. Receba as minhas cordiais saudações,
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7. Cara Directora e Caro Director,
Volto a escrever-lhe desta feita para equacionar a sua questão: “nós queremos uma escola aberta e atenta às necessidades do meio envolvente, mas os pais não participam, os representantes das autarquias pouco aparecem e outros sectores nem sequer querem saber da escola”. “Como será possível dirigir eficientemente, neste contexto, uma escola?”, parece ser, de outro modo, a sua pergunta. A sua inquietação é pertinente e é comum. De facto, a escola é uma instituição pobre, pequena, esquecida ou relegada para segundo plano, até ao dia e à hora em que algo ocorra que diga respeito aos nossos filhos. A criação das escolas, uma qualquer E.B. 2,3 ou uma qualquer escola secundária é uma decisão habitualmente tomada fora da comunidade local (embora esta possa pressionar a sua abertura) e, mais importante do que este facto, o modelo de escola a criar consiste num “package” que se recebe sem pestanejar, totalmente pré-formatado, pronto a usar, qualquer que seja o local, rural, urbano ou suburbano, qualquer que sejam os seus utentes potenciais. A nossa reflexão deve começar por aqui, sob pena de ficarmos bloqueados numa
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infindável e estéril querela sobre a não participação dos pais e de outros interessados. A escola começa por ser uma instituição enclave, justaposta sobre a realidade social local, totalmente definida através de centenas de normas e de regulamentos específicos que, para funcionar normalmente, em nada carece da acção de outros intervenientes que não sejam professores, alunos e pessoal auxiliar de apoio. A presença de pais e de outros representantes sociais locais nos órgãos de administração e gestão da escola está ela mesma subordinada a normas prévias que limitam de modo claro a participação desses “intrusos”. Para dizer de modo breve: em qualquer decisão que seja necessário tomar estarão sempre em minoria e, mais do que isso, as decisões são habitualmente envoltas em tal tecnicidade burocrática que mais vale desistir antes de qualquer confronto começar. Assim pensam os que são de “fora da escola” e que consideram os conflitos de interesses desencadeados no palco escolar algo profundamente genuíno e promissor, única saída para uma activa e consequente participação “dentro da escola”. Percebe-se, assim, que não seja apetecível, para quem está de fora, participar na escola. Acresce que há vários sinais que a escola emite e que sinalizam que esta participação não é importante. As horas de
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atendimento dos pais coincidem com o horário normal de trabalho, as horas a que estes são convocados pela escola para dialogarem com os professores directores de turma sobre o desenvolvimento e a progressão escolar dos seus filhos são impróprias para quem trabalha por conta de outrém, e a participação em órgãos como a Assembleia de Escola, Conselho Pedagógico ou Conselho de Turma é realizada sempre em condições
minoritárias,
para
não
dizer
excessivamente
minoritárias. Além disso, quantas vezes os pais vão a uma reunião de turma ouvir, em público, dizer que “o seu filho deve estar a atravessar uma crise”, ou “o seu filho, todos os professores o dizem, é um malcriado”, ou “a sua filha não estuda, é uma cabeça no ar, que incomoda os colegas”. Ora, não há uma mãe ou um pai que goste de ouvir tais afirmações produzidas nestes contextos. Não é, por isso, desejável participar em instituições onde não somos desejados e onde a nossa palavra sentida não conta. Acresce, ainda, o facto de que o desencanto face à escola é cada vez maior. Por um lado, se a escola não é uma instituição onde os pais sejam desejados, por outro, os pais percebem também que muitas promessas sociais associadas à escolarização e à obtenção de títulos académicos não passam de
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miragens (o emprego, a ascensão social, a educação em valores etc.). E convém lembrar, ainda, que o nosso país é composto maioritariamente por uma população adulta muito pouco escolarizada que, no actual contexto de crise das credenciais escolares, ainda menos acredita nas virtualidades da escola e da sua educação. Não é, por isso, importante ir à escola. Acresce também a circunstância de que os docentes, como lembra Perrenoud, “sempre sonharam e sonham ainda, com pais que sejam auxiliares dóceis do processo de escolarização, que façam com que os alunos durmam, que vigiem os seus trabalhos de casa, que os incentivem a prepararse para as avaliações e que, sobretudo, lhes digam, todos os dias, que é importante trabalharem na escola, concentrarem-se e levarem os estudos a sério”. Ora, muitos pais, sobretudo os mais favorecidos, levantam a sua voz diante da escola, como utentes activos e exigentes, requerendo uma escola mais educadora e, geralmente, mais elitista. Mas, hoje, a escola está aberta a todos e muitos pais que nada têm a ver com essas figuras dóceis e cooperantes com os professores, havendo mesmo uma boa parte que está em conflito permanente com os professores e outra parte que está totalmente ausente de uma escola que cada vez menos importante para o futuro dos seus filhos.
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Quando fui Presidente de uma Associação de Pais de uma escola secundária, que acolhia sobretudo jovens filhos da classe média, pude constatar que uma parte significativa dos pais não participava em qualquer actividade por verificar que de nada valia a sua participação, pois umas vezes eram os docentes que faziam ouvidos de mercador face às suas queixas e sugestões e outras vezes era a direcção que afirmava a sua impotência, a sua falta de poder, a sua incapacidade para “endireitar” o que quer que fosse. Para quê, por isso, participar activamente na escola? É neste quadro geral, muito rapidamente traçado, Senhora Directora e Senhor Director, que creio dever ser equacionada a magna questão da participação dos pais e da cooperação pais-professores. Os pais são os primeiros e os mais importantes educadores dos seus filhos e os professores, em escolas estatais e privadas, cooperam com os pais na missão de instruir e educar as novas gerações. Quando falamos do incentivo a esta cooperação devo dizer-lhe que a bola está sobretudo no campo da escola. Quando os responsáveis da escola não actuam, instala-se este clima de desconfiança mútua e os pais são, de facto, afastados da escola. Quem preenche o vazio são uns quantos pais, geralmente em grupos repletos de pais-professores, com destaque para os
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profissionais liberais (com horários para poder ir à escola a qualquer hora, por mais descabelada que ela seja), que assim se tornam indevidamente as vozes dos interesses de todos os pais. Ora, os alunos mais “problemáticos” e aqueles pais que a escola mais precisa de cativar, esses ficam de fora e nada se faz (ou muito pouco) para os trazer e acolher no seio da instituição educativa escolar. Quando os responsáveis da escola actuam, e é essa a atitude que defendo, podem ter uma acção positiva e inequívoca de acolhimento de todos os pais, sejam favorecidos, sejam desfavorecidos, indo de encontro sobretudo a estes últimos. Os directores escolares têm na sua mão (porque a bola está no seu campo, repito) a possibilidade de construir uma relação de parceria e de confiança entre pais e professores. De nada valem as lamúrias acerca da não participação dos pais quando o verso desta atitude é um quotidiano de suave e discreta expulsão dos pais do universo escolar (“um universo muito técnico, exclusivo de professores”, dizem eles). Lembro-me de, em Lordelo, termos trazido à escola centenas de pais que, tradicionalmente, não vinham à escola. Mas recordo-me também que isso só aconteceu após a escola ter tomado várias iniciativas, ao longo de vários anos, de ter ido ao encontro da comunidade, com iniciativas próprias,
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manifestando vontade clara e confiança na cooperação, tomando decisões que aproximavam cada vez mais os pais da escola (ligação a grupos culturais locais, participação da escola em festas e actividades locais, alterações curriculares para aproximar a escola da realidade social local, parcerias com a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal etc.). Importa voltar ao princípio. A escola que se implanta num dado território é sempre um enclave que cultiva a sua relação vertical, obedecendo à norma e à hierarquia. A construção de escolas charneira, como um dia lhes chamei, requer rasgo e projecto, determinação e persistência, muita vontade e crença nos benefícios da (difícil) cooperação entre professores, pais e outros membros da comunidade local. À natural verticalização é preciso opor, com tenacidade e remando contra a maré institucional, a articulação horizontal. No meu livro sobre “O Ensino Secundário na Europa” (2000) coloquei uma figura para melhor exemplificar esta perspectiva. Aí falo da necessidade de configurar uma nova institucionalidade, no quadro da qual as direcções das escolas possam agir com coerência. De facto, de pouco ou de nada vale “fazer coisas diferentes” na escola (uma ingenuidade fatal!), uma escola que institucionalmente em tudo actua para ser aquilo que é, a tal escola enclave, prisioneira.
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A nova institucionalidade de que aqui lhe falo, em síntese, compara-se a uma árvore em crescimento. Trata-se de um modelo aberto, porque em desenvolvimento e em construção permanentes. Dois eixos principais estruturam, como numa árvore viva, uma instituição educativa: o eixo da horizontalidade e o eixo da verticalidade. O primeiro, o eixo da horizontalidade, é o que molda o rosto da escola. É este o eixo que exprime a construção social e local da educação escolar e que se relaciona quer com as relações de poder e os valores partilhados por cada comunidade, quer com todos os esforços para aprofundar a cooperação social, tais como as redes e as parcerias entre as instituições e os agentes que podem participar activamente na educação dos jovens; habitualmente estes actores sociais são mais e mais ricos do que aquilo que “dentro da escola” se julga. A figura que se segue procura evidenciar o leque das oportunidades que tantas vezes está à volta de cada escola, oportunidades sempre diversas em cada situação concreta. Este é também o eixo da confiança e da proximidade, em que se cultivam as relações comunitárias de vizinhança e os laços de convivência, tão decisivos nos processos de coesão social e de integração de cada uma e de cada um dos seus membros. É em torno destas dinâmicas associativas que a
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educação escolar pode ser ou não uma construção social e local, que cada instituição educativa se molda ou não como um serviço público local de educação e formação. Pelo eixo da horizontalidade passa igualmente grande parte da capacidade das escolas virem a servir as necessidades de aprendizagem ao longo da vida, cada dia mais prementes, independentemente da idade de cada cidadão. Por este eixo passam também as redes de cooperação inter-escolas, dirigidas ao desenvolvimento de projectos e iniciativas comuns. O eixo da verticalidade é aquele em que se estabelece a espinha dorsal da missão educativa de cada instituição escolar, definição esta que passa pelo cruzamento que se vai estabelecendo entre a definição das grandes orientações nacionais de política educativa e a construção social e local de que falamos, e na qual se consubstanciam as finalidades, os objectivos, as actividades, os recursos, a organização e a avaliação, tanto interna como externa. Desta espinha dorsal ou marco de referência, o tronco da árvore por onde corre a seiva da missão educativa, emanam os ramos, que são as diferentes opções nucleares e os diversos projectos centrais de cada escola. Ambos os eixos se cruzam (Ponto A da figura abaixo), numa
zona
de
confluência
entre
a
verticalidade
e
horizontalidade. É aqui que se situa a pedra-de-toque da
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mobilização da sociedade portuguesa para o investimento na educação, a matriz onde se pode gerar uma nova geração de contratos sociais para a educação. Se nós só cuidamos da verticalidade, continuamos a colocar a escola no seu pedestal tradicional, uma instituição fechada, de pendor centrípeto e hegemónico, enclausurada em torno dos professores, fechando-os sobre si mesmos e fechando a instituição escolar aos demais agentes educativos e ao apoio dos recursos da comunidade. Este é um tronco facilmente agitado pelo vento, pelas modas didácticas, pela rotação contínua de docentes (sobretudo em algumas escolas), sem raízes locais, uma instituição que menospreza a negociação e o conflito de interesses, a articulação de vontades e a força das sinergias locais, uma instituição social que quer ser firme e nunca mais sabe como o ser, sempre à espera do dia M, o dia dos milagres. A atenção exclusiva a esta dimensão impede que a escola seja uma instituição social atenta, capaz de equacionar e responder aos múltiplos desafios da formação ao longo da vida. No contexto actual, que continua a ser de forte dependência do poder central e do poder desconcentrado, cuidar só do eixo da verticalidade traduz-se, as mais das vezes, no reforço do funcionalismo burocrático e da dependência hierárquica e funcional de cada escola.
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Se só cuidamos da horizontalidade, podemos correr riscos sérios de criar escolas com muitas actividades e, no entanto, escolas pouco educativas, muito folclóricas e pouco assertivas, com muitos protocolos e com poucos actores concretos, disponíveis, realmente promotores da educação. Ninguém cresce humanamente e com harmonia sem referência a um lugar, sem uma pertença definida, sem uma espinha dorsal e um projecto educativo concreto, mas todos precisam de abrir horizontes e de romper com as identidades primárias que fecham os membros de uma comunidade no interior de um território. Esta pode também ser uma escola agitada, sem leme e sem vertebração educacional. Uma escola que se perde na definição da horizontalidade pode ser uma escola perdida, de facto, que busca caminhos fáceis de desresponsabilização social. Cuidando de ambas as dimensões, podemos construir, passo a passo, com os recursos adequados à concretização das opções básicas estabelecidas, escolas melhores, escolas verdadeiramente autónomas, com mais qualidade humana, escolas mais capazes de conciliar os dois desideratos centrais da esducação escolar, o da socialização e o da subjectivação. Transpondo este modelo para o plano nacional e público, estatal e não estatal, podemos falar verdadeiramente de
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“construção social da educação escolar” (regressando à categorização de Soysal e Strang, 1989). Só o cruzamento entre estas duas dimensões dará origem a um novo tipo de pactos sociais, à mobilização dos diversos parceiros sociais para compromissos sociais concretos e duráveis, compromissos estes que, como referimos, nada têm que ver com exaustivas definições tecnocráticas acerca das missões da educação e do papel dos parceiros sociais. A sociedade portuguesa bem precisa de trilhar este caminho, no alcance de uma autêntica “sociedade educativa”, tão desmobilizada ela está para os direitos e os deveres da aprendizagem ao longo da vida, de todos e de cada um dos portugueses. Como assinalam Álvaro Marchesi e Elena Martín3, a grande maioria dos estudos sobre o funcionamento das escolas assinalam que uma boa equipa de direcção, firme e propositiva, é um dos factores associados com a qualidade da instituição educativa. Mas, ao mesmo tempo, investigações similares insistem na importância em proporcionar a participação dos distintos sectores da comunidade educativa – pais, professores e alunos – para garantir a vinculação de todos com os objectivos que a escola quer prosseguir. Como assegurar a harmonia entre
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No seu livro Evaluación de la educación secundaria. Fotografía de una etapa polémica, edição da Fundación Santa Maria, Madrid, 2002.
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uma direcção estável e decidida e a participação de todos num projecto de escola devidamente partilhado e construído? Como é que a escola pode contar com o esforço educativo concertado de pais e de professores? Como vai a sua escola cativar os pais, o maior número possível de pais, para uma participação activa e baseada na confiança? Que projectos e que medidas institucionais pode a sua escola promover para que nela se crie o espaço para a irrupção da cooperação confiante dos professores e da participação activa dos pais? Com estas questões me despeço, até breve.
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8. Cara Directora e Caro Director,
Ver mail
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9. Cara Directora e Caro Director,
Volto ao contacto consigo para lhe falar acerca do perfil do director escolar. Quando falo de director escolar, como já se apercebeu, falo daquela mulher e daquele homem, professores, que assumem, de facto, a liderança do governo da escola. Além de propor uma reflexão sobre o perfil de um(a) director(a) de uma escola, o que é muito oportuno no momento em que se fala na nomeação de “gestores profissionais” para as escolas (sem se esclarecer o que se pretende realmente fazer), quero também expressar a minha opinião sobre o modo como vejo viável a criação de uma nova geração de líderes escolares. Importa começar por distinguir entre gestão e liderança. A maior parte dos nossos directores escolares procura ser um bom gestor, dentro de um quadro institucional em que boa gestão é equivalente à verificação da conformidade com a norma instituída. Alguns procuram também ser líderes, ou seja, assumir o seu papel de animadores e condutores dos membros da organização escolar para o cumprimento da sua missão educativa, procurando envolver todos na melhoria permanente do desempenho social da escola. Esta distinção é importante, pois dirigir uma escola não se pode resumir a manter a escola
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aberta, segundo as normas instituídas, pela simples razão de que uma escola educa e forma pessoas e essa sua particularidade vinca toda a diferença. Sabemos ambos muito bem que uma escola é uma instituição muito peculiar, uma instituição que coopera com a comunidade na instrução e na educação das crianças e dos jovens. Uma escola não é uma empresa e, por mais que seja legítimo
e
operacionalmente
frutífero
recolher
bons
ensinamentos na gestão empresarial, para os adaptar à gestão escolar, gerir uma escola é bastante diferente de gerir uma empresa. Um gestor tem de se confrontar com questões como: como ensinar quem não aprende? Cumprindo o mandato social que lhe está cometido, como vai uma dada escola ensinar quem não quer aprender? Como lidar com a violência entre os alunos e entre estes e os adultos? Como é que a escola se organiza para educar para a responsabilidade e para a autonomia? Como é que a escola educa para uma cidadana responsável e para sermos capazes de viver juntos e solidários a nossa condição humana? Como lidar com o abandono escolar e com o abandono da sociedade face à escola? Como motivar equipas de professores para que exerçam a sua actividade com profissionalismo, sendo exemplos a seguir e seres com uma visão optimista? Estas e
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muitas outras perguntas defluem sobre a cabeça do director de uma escola. São perguntas específicas que exigem respostas únicas, em cada contexto em que cada escola se situa. O que equivale a dizer que um bom gestor profissional pode não ser um bom gestor escolar. De facto, uma escola é uma instituição que lida com pessoas e com relações humanas, que se baseia em actividades de ensino e de aprendizagem, recortadas sobre comportamentos e actividades humanas, e cujo desempenho social se traduz em criar boas condições para que cada aluno aprenda, progrida e se desenvolva, num ambiente de trabalho e de optimismo permanentes. Ou seja, uma escola tem de fazer com que cada aluno aprenda, progrida constantemente e se desenvolva com equilíbrio, numa organização que recebe (por exemplo) mil alunos, mil pessoas diferentes que moram nesses alunos, mil alunos provenientes de mil diferentes agregados familiares, de etnias, estatutos culturais e meios sociais diversos. A tarefa não é impossível, mas é árdua e é, sobretudo, muito importante para toda a comunidade, para cada família. De facto, gerir uma escola não é só manter a escola aberta e a funcionar segundo a lei. Esta função pode ser assegurada por um qualquer dirigente administrativo que pode estar longe de ser um bom gestor. Uma escola é uma instituição social muito peculiar e com um elevadíssimo impacto humano e
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social. (ESTA IDEIA ESTÁ IMPLÍCITA NUM PARÁGRAFO ACIMA...) Além disso, uma escola, para cumprir a sua missão, não precisa de ter apenas bons gestores, carece de bons líderes, pois a educação e a formação das crianças e dos jovens requer da parte
do
director
escolar
uma
enorme
capacidade
e
disponibilidade para criar ambientes estimulantes de ensinoaprendizagem para todos os alunos, para apoiar os professores na sua tarefa de ensinar e estimular a cooperação entre os professores e os pais, para manter vivos os valores da escola e do seu projecto educativo, para incentivar todos e cada um dos intervenientes a promover ao máximo o desenvolvimento de cada aluno, ensinando cada um deles a viver com os demais. A um director de uma escola deve exigir-se que além de ser um bom gestor seja um bom líder da comunidade escolar, que esteja permanentemente preocupado (e ocupado) a incentivar as equipas de trabalho e a melhorar continuamente a qualidade da educação. Este gestor e líder tem de saber edificar equipas e definir orientações com a colaboração dessas equipas, ter autoridade e poder para tomar decisões e saber conduzir a instituição educativa para uma melhoria permanente. E este perfil dificilmente nasce com as pessoas, neste caso com os professores. É preciso investir muito em formação
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e num certo tipo de formação. Ou seja, não basta ensinar e aprender as normas das escolas e as teorias gerais da gestão, é preciso aprender com outros líderes a assimilar o que é, de facto, ser um bom gestor e um bom líder numa comunidade escolar. Por exemplo: - aprender a ser humilde, a confiar e a ser facilitador do trabalho das várias equipas; - aprender a recolher informação no quotidiano, a estudá-la e a tomar decisões; - aprender a ensinar com o seu próprio exemplo e com a sua opinião sobre o que é a educação; - aprender a construir uma visão para a melhoria da sua escola e a manter um rumo claro para a prosseguir; - aprender a ser flexível, a negociar, a comunicar permanentemente com os vários intervenientes na vida escolar, sobretudo professores, alunos e pais; - aprender a ser um animador e a alimentar a esperança na melhoria gradual do desempenho da instituição educativa; - aprender a acreditar no trabalho em equipa; - aprender a melhorar o seu desempenho profissional, nomeadamente através da troca de experiências com outros directores e gestores;
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- aprender a sistematizar os principais referentes da instituição, normativos e simbólicos, valores e tradições numa cultura própria, capaz de dar sentido ao que cada um faz e ao rumo da instituição.
Não existe, em Portugal, um modelo altamente selectivo de recrutamento nem um posterior programa de formação de directores escolares. Por outro lado, entre os directores escolares, é escassa a tradição de reflectir em conjunto sobre o seu exercício profissional e sobre a cultura das organizações escolares. É pena. Compreende-se que tal facto ocorra se tivermos em conta que não temos cultivado este tipo de perfil profissional, pois sempre se diluiu a função de director num quadro de “gestão colegial” das escolas que, por sua vez, se insere quer num outro quadro ideológico chamado “gestão democrática das escolas”, quer no modelo de gestão burocrático e centralizado do sistema educativo nacional. Todos os gestores e líderes escolares que se distinguem em Portugal, e felizmente há muitos, são profissionais docentes que aprenderam a função exercendo-a, dentro e apesar do quadro normativo e ideológico em que trabalham e, muitas vezes, contra esse quadro cerceador da liberdade, da autonomia e da responsabilidade. Há lideranças que coabitam com pouco
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rigor na gestão e são inconsequentes, há gestores que burocratizam a função e gestores que são incapazes de exercer lideranças activas dentro das instituições escolares. Há sobretudo profissionais extremamente dedicados às suas escolas, que procuram fazer o melhor como elementos de equipas de direcção, mas que nunca ousaram nem puderam ser verdadeiramente gestores ou líderes, num quadro administrativo tão burocrático e centralizador. Como já referi em outra carta, o quadro institucional actual molda um certo tipo de exercício da função de direcção, criando fortes obstáculos à assunção do cabal papel de gestor e de líder, com autonomia e responsabilidade. Estou convicto de que é necessário e possível alterar este quadro legal e esta tradição. Não me parece que seja uma boa solução procurar “gestores profisisonais” para gerir as escolas, mas já me parece correcto seleccionar, por concurso público nacional, e formar, de modo sistemático no seio da actividade profissional os professores com melhor perfil para virem a protagonizar uma nova de geração de gestores e líderes escolares. Esta nova geração deve ser oriunda de entre os professores mais experientes e capazes, pois estes profissionais são os que melhor conhecem a natureza específica das
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organizações escolares e aqueles cujas convicções sobre a educação mais facilmente os conduzem a compromissos pessoais e profundos e à assunção de papel de verdadeiros líderes destas peculiares comunidades humanas. Só assim a gestão das escolas poderá ganhar direcção e magnitude, sustentada em profissionais disponíveis e preparados para darem o melhor de si mesmos. A gestão das escolas só pode entender-se, dada a natureza dos principais actos que aí se praticam, sustentados na relação humana, como gestão eticamente solidificada, erguida sobre valores, conhecimentos, convicções e vontade pessoais. Não será bom gestor e líder escolar quem quer, mas quem reúne um perfil técnico e emocional e uma maturidade e experiência capazes e adequadas (por exemplo: saber ouvir e compreender, acreditar no desenvolvimento humano de cada criança, jovem ou adulto escolarizados, estabelecer prioridades, manter uma atitude positiva, facilitar o sucesso de todos os intervenientes e das equipas de trabalho, procurar a opinião dos outros, saber decidir com firmeza, ser íntegro, saber conceber, planear e executar um projecto, acreditar nas capacidades dos vários intervenientes nos processo educativo, incentivar a criação de ambientes estimulantes para a aprendizagem, estimular a cooperação dos vários actores, querer ser avaliado, saber e ensinar a avaliar as
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consequências das acções e dos projectos que se empreendem, saber comunicar com colegas, alunos e pais, estar sempre disponível para aprender mais). Voltando à perspectiva do PAMEGE (ver carta nº 2), o Plano Anual de Melhoria Gradual da Escola, o gestor e líder tem neste instrumento um precioso auxiliar para afirmar e confirmar uma visão, para ajudar a que os vários intervenientes atribuam um sentido positivo ao que fazem e para que a instituição escolar consiga alcançar os objectivos que se propõe, em cada ano que passa. A avaliação e a reflexão sobre as práticas de gestão devem ser instrumentos eleitos e quotidianos para o bom desempenho profissional dos directores. Rejeitar a avaliação, a auto e a hetero-avaliação é impedir, à partida, a melhoria gradual da qualidade, tanto da função de direcção, como da educação que a escola promove. Para apoiar esta nova geração de directores escolares, que já não serão legitimados apenas pelo voto dos seus colegas, mas dele serão independentes, escapando à tendência para o colega director ficar prisioneiro dos colegas professores que o elegeram, seria necessário melhorar substancialmente o seu estatuto social, criar dispositivos de apoio permanente ao exercício da sua função (através de uma agência ou unidade de
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missão) e gerar dinâmicas de reflexão e de avaliação contínuas acerca das práticas profissionais de gestão e de liderança. Entre estas dinâmicas estão também as iniciativas de auto-organização e auto-estudo, como por exemplo, a criação de pequenos círculos de estudo à volta de uma temática nuclear seleccionada, o debate de experiências inter-directores em torno de
problemas
concretos,
a
troca
de
experiências,
o
aperfeoçoamento em dinâmicas de gestão e liderança, feitas em grupos de directores. Importa criar uma dinâmica autoreflexiva, com base na sua experiência quotidiana, recorrendo a apoio de peritos externos sempre que necessário. Entendo que estas iniciativas podem ser ais eficazes para melhorar o seu desempenho e a qualidade do serviço prestado pela sua escola do que o mero recurso a formações por catálogo, baseadas em adestramento técnico, embora estas possam também ter o seu lugar. Portugal precisa de dar outros sinais de que ama as suas escolas e dignifica os seus profissionais. O reconhecimento social dos directores escolares é parte essencial deste processo. Escolas bem geridas e geridas por bons líderes, desde que actuando num quadro legal de real autonomia e de responsabilidade social, é meio caminho andado para melhorarmos a qualidade da educação escolar.
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Esta é, cara directora e caro director, a minha modesta opinião. Não podemos ficar à espera que este novo modelo de gestão e de liderança das escolas caia do céu, precisamos de o fazer vingar, aqueles que acreditamos que esta pode ser, na prática, uma via, entre outras, para mudar a face negra da educação escolar no nosso país. Creia-me disponível para prosseguir o debate.
Como complemento útil de leitura recomendo o livro de Antonio Bolivar.
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Cara directora e caro director, Na sequência desta última carta, entendi que seria útil aprofundar um pouco mais a ideia de reforço da articulação horizontal de cada escola dentro de cada comunidade. E faço-o convicto de que “a escola é uma instituição única e essencial para o nosso futuro comum”, como diz Edgar Morin. Uma instituição demasiado importante e demasiado difícil de conduzir para ficar fechada sobre si mesma ou entregue exclusivamente aos professores. Corremos hoje o risco, depois de termos desenvolvido processos maravilhosos de escolarização de toda a população, pelo menos até aos 15 anos, num tempo em que as famílias e a sociedade tudo tendem a esperar da escola que agora a todos acolhe, corremos o risco de ter as escolas abandonadas pela mesma sociedade. As famílias utilizam a escola para ocupação dos filhos durante o máximo de horas diárias, a sociedade despeja sobre a escola todo o tipo de funcionalidades e missões sociais, sem cuidar de aquilatar até que ponto uma instituição tão limitada pode dar resposta a tamanho monte de ovos colocado no seu cesto, os governos pagam o sistema e consideram que o seu papel é fazer umas novas leis sempre que os ministros mudam.
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Passada a parte caricatural, importa reter a mensagem, pois assistimos a uma nova vaga de normas e à criação de um conjunto de organismos nos quais as escolas se estão a ver envolvidas, sem que isso resulte de uma acção ponderada e reflectida dentro das escolas. Mais uma vez, a inovação surge pela via normativa, filha predilecta da mera retórica política. Por um lado, os municípios são chamados a elaborar as “cartas educativas”, onde a definição do lugar de cada escola na comunidade tende a ser entregue a uma empresa qualquer contratada pelas autarquias. Por outro, são criados os novos Conselhos Municipais de Educação (em Junho de 2002), onde as escolas passam a ser obrigadas a estar juntamente com outras escolas e outros parceiros sociais. Tudo isto em cima da experiência acumulada por cada escola na sua ligação à comunidade envolvente. Neste contexto, não é fácil manter o norte e a tranquilidade. Churchill dizia que “um pessimista vê a dificuldade em cada oportunidade e um optimista vê a oportunidade em toda a dificuldade”. Vamos pelo optimismo, essa marca distintiva de qualquer educador, procurando discernir, em cada caso, o melhor caminho a seguir. Sem querer intrometer-me nesse caminho que só a si e à sua escola diz respeito, ouso deixar umas notas de reflexão
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suscitadas por este novo enquadramento que tende a redifinir normativamente e fora da escola e dos seus órgãos próprios, o lugar de cada escola em cada comunidade. Adepto, como já referi, de um reforço dos laços que prendem uma escola à sua comunidade, desde logo constituída pelas famílias dos seus alunos, entendo que pode ser muito útil para a escola aproveitar estes novos espaços de participação social, cabendo-lhe sobretudo definir o que pretende dar e o que quer receber. Participar por participar não conduzirá a nada, será uma frustrante perda de tempo. Mas a definição do lugar da sua escola na comunidade, a par de outras instituições educativas é uma tarefa muito importante e à qual você deveria dedicar algum tempo e afectar alguns recursos. As “cartas educativas”, como processos burocráticos e exteriores à acção de cada escola, podem ser prejudiciais se a sua escola não se antecipar e procurar definir o perfil de instituição educativa que quer seguir. Entendo que o lugar e a função social da sua escola devem ser construídos em diálogo com outras escolas, optimizando recursos e procurando prestar o melhor serviço público possível. Mas as escolas não são os únicos recursos educativos da comunidade. E se outros há, às escolas cabe muitas vezes um papel relevante na sua inventeriação e na sua mobilização.
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Importa, por isso, realizar a cartografia local de todos os recursos educativos, desde os jornais locais aos centros de saúde, desde os museus às fábricas, desde as associações culturais aos grupos desportivos, desde as bandas de música até aos grupos de teatro,... É esta imensidade escondida de recursos que é preciso trazer à luz do dia e articular com a acção educativa das escolas. Os relatório do PISA, o célebre estudo da OCDE, têm evidenciado
que
as
escolas
com melhores
níveis
de
aprendizagem são aquelas que estão envolvidas nos ambientes culturais mais ricos, a saber, onde há hábitos comuns de leitura, de acesso ao cinema e a outras actividades culturais, onde os pais mobilizam recursos culturais, familiares e locais para o ensino e onde os alunos Têm acesso a oportunidades de aprendizagem de elevada qualidade, tanto criadas na escola como fora da escola, na sua envolvente social. Este mesmo estudo conclui que, sendo certo que os contextos socioeconómicos de cada escola influenciam o desempenho dos alunos e a performance da escola, também é verdade que as políticas e as práticas de cada escola podem produzir
importantes
diferenças,
mesmo
em
contextos
semelhantes. A sua responsabilidade é, por isso, enorme, pois as escolas também fazem a diferença.
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Servem estas referências para fortalecer a perspectiva de que cada escola pode enriquecer muito a sua acção educativa se cartografar os recursos educativos da comunidade e procurar gerar o máximo de sinergias, ao serviço do enriquecimento cultural da comunidade. Devia ser essa a finalidade principal dos Conselhos Municipais de Educação e das “cartas educativas”, dinâmicas que infelizmente se fecham com facilidade em questões administrativas e burocráticas. No desenho de uma carta educativa de um concelho ou de um agrupamento de concelhos, não deve ser o somatório das escolas ou o mero redimensionamento da rede escolar que deve ser equacionado com privilégio. Estes processos devem subordinar-se a orientações superiores como seja o objectivo de mobilizar todos os recursos educativos e culturais de uma comunidade em prol da melhoria das condições de vida da população. Todos os membros de uma comunidade são aprendentes, ao longo de toda a sua vida, como referi em carta anterior. E se acreditamos nesta orientação da acção social e do exercício da cidadania, a ela devemos subordinar as redes escolares e educativas de cada comunidade. Pena é que a administração do ME seja tão insensível a esta orientação e que as autarquias promovam tão pouco a mobilização permanente de todo o tipo de inteligências e de recursos da comunidade,
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colocando-os, em interacção, ao serviço da comunidade de aprendentes e, em especial, das novas gerações e, por isso, de um futuro melhor.
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