O livro Verbrechen (Crimes) é uma coleção de 11 contos que tratam de assassinos, ações judiciais e dos motivos pelos quais pessoas viraram assassinos. Foi lançado em 2009 e, em 2010, foi premiado com o renomado prêmio Kleist ( Kleist-Preis). O livro se tornou o maior sucesso na Alemanha e foi traduzido para 30 idiomas. A tradução para o português é de 2011 (Editora Record). O conto Glück foi foi filmado pela diretora Doris Dörrie em 2012 e a estação de televisão alemão ZDF está planejando uma minissérie com todos os contos do livro. Advogado e escritor, Ferdinand von Schirach nasceu em 1964, em Munique. Neto do nazista Baldur von Schirach, a controvérsia com a História e a questão da culpa sempre têm sido uma parte importante importante da sua obra. Ele trata sobre destinos de criminosos e de como eles chegaram a cometer os respectivos crimes tanto na visão de um advogado quanto na de um escritor. Seguindo está lógica, seu primeiro livro publicado é intitulado Verbrechen (Crimes, 2009), uma coleção de contos baseados em fatos reais de seu escritório. Em 2010, foi lançada a continuação Schuld (C (Culpa) e, em 2011, o primeiro romance Der Fall Collini (O Caso Collini ), ), que trata do sistema jurídico alemão pós-guerra e dos julgamentos de criminosos nazistas. Influenciado pelo autor Heinrich von Kleist e pelo princípio da incerteza de Heisenberg (uma citação deste autor também foi selecionado como lema do livro Verbrechen), as questões da verdade e da certeza são fundamentais na obra de Schirach, e é com base nesses dois temas que ele consegue criar um vínculo v ínculo entre literatura, filosofia e direito Em uma entrevista da Deutsche Welle-TV, ele comenta sobre os motivos para escolher ser advogado. Na verdade, ele é o primeiro advogado convidado para este programa e chama a atenção para seu papel duplo como advogado e escritor – porém, nas duas profissões ocupa-se com o mesmo assunto: a questão da culpa. A entrevista em alemão com o autor pode ser vista em: http://www.youtube.com/watch?v=EQrAXM8Vcn0
Hajo Schumacher: Olá e bem-vindos ao Typisch Deutsch (Típico alemão). Meu
convidado de hoje conhece os lados mais sombrios da natureza humana: ele defendeu
na justiça assassinos, ladrões, traficantes. Agora, adaptou seus melhores casos para a literatura. Sua coletânea de histórias Verbrechen (Crimes) rapidamente se tornou um bestseller. Bem-vindo, Ferdinand Von Schirach. HJ: O Sr. é o primeiro advogado que atua na área a participar deste programa. Por que
o Sr. escolheu esse trabalho? Ferdinand von Schirach: Não tive nenhuma outra ideia! Bom, enfim, há muitíssimos
advogados na minha família e isso estava, de alguma forma, perto de mim. Depois, nada mais da advocacia me interessou. Por exemplo, o Direito Civil, no qual a gente se ocupa em saber quem deve quanto dinheiro a quem, sempre achei muito chato. E Direito Criminal é o mais essencial. O assunto é a culpa, o que achei um assunto muito interessante. HJ: Então, essa escolha tem um nível moral? FS: A culpa sempre tem um nível moral.
(Tradução de Helena Gertz)
Pois, tanto na área de direito quanto na literatura a questão da culpa tem sido para o Ferdinand von Schirach um tema essencial que sempre lhe interessava e que ele trabalhava a partir de diferentes pontos de vista. No discurso por ocasião do prêmio Kleist, ele fala das qualidades da literatura em comparação com o direito, em desenvolver e trabalhar a questão da verdade. A verdade da literatura pode com sua linguagem, ao contrário da linguagem exata do direito, contar histórias e explicar os motivos: por que uma pessoa vira assassino? É por isso que Schirach encontrou na narrativa da literatura uma maneira de contar os casos que são baseados em casos reais do seu escritório, conta a história e os motivos dos seus clientes. Escrito em um estilo bastante concreto trata muito menos de tentar encontrar desculpas do que de entender os motivos e de iluminar – no modo de imaginação - partes da vida que normalmente ficam no escuro.
O seguinte trecho faz parte do primeiro conto do livro, intitulado com o nome do protagonista, Fähner:
Friedhelm Fähner passara a vida inteira como clínico geral em Rottweil; 2.800 consultas por ano, consultório na rua principal, presidente do Centro Cultural Egípcio, membro do Lions Club, sem antecedentes criminais ou sequer pequenos desvios de conduta. Além da sua casa, tinha outros dois imóveis alugados, um Mercedes Classe E com três anos de fabricação, estofamento de couro e ar-condicionado, cerca de 750 mil euros em ações e obrigações do tesouro e um seguro de vida. Fähner não tinha filhos. Seu único parente ainda vivo era a irmã seis anos mais nova, que vivia com o marido e dois filhos em Stuttgart. A vida de Fähner realmente nada tinha de interessante. Exceto o caso Ingrid. Aos 24 anos, Fähner conhecera Ingrid no 60º aniversário de seu pai, que também fora médico em Rottweil. Rottweil é uma cidade essencialmente burguesa. O estrangeiro que chega não precisa perguntar para saber que a cidade foi fundada pelos Staufer e é a mais antiga do estado de Baden-Württemberg. Com efeito, pode-se encontrar aqui fachadas medievais e lindos brasões do século XVI. Os Fähner sempre viveram aqui. Pertenciam às chamadas primeiras famílias, gerações de conceituados médicos, juízes e farmacêuticos. Friedhelm Fähner se parecia com o jovem John F. Kennedy. Tinha um rosto afável, e todos o consideravam uma pessoa despreocupada, de bem com a vida. Olhando cuidadosamente, no entanto, percebia-se um quê de tristeza em sua fisionomia, algo de velho e sombrio que não se vê com muita frequência por estas bandas, entre a Floresta Negra e os Alpes da Suábia. Os pais de Ingrid, farmacêuticos em Rottweil, levaram sua filha à festa de aniversário. Três anos mais velha do que Fähner, ela exibia uma pujante beleza provinciana e seios fartos. De olhos azulados, cabelos
negros e pele muito clara, tinha consciência da impressão que causava. Sua voz metálica, de tom singularmente elevado e monocórdio, irritava Fähner. Mas, quando falava baixo, suas palavras soavam como uma melodia. Não chegara a concluir o ensino médio e trabalhava como garçonete. “Temporariamente”, disse ela a Fähner. Isso não lhe importava. Em
outras áreas que mais lhe interessavam, ela já era formada. Até então, Fähner tivera apenas dois breves contatos sexuais com mulheres, que só lhe haviam trazido insegurança. Imediatamente apaixonou-se por Ingrid. Dois dias após a festa, ela o seduziu, na volta de um piquenique. Debaixo de uma marquise, Ingrid deu conta do recado com perfeição. Fähner ficou tão perturbado que, uma semana depois, a pediu em casamento. Sem hesitar, ela aceitou. Fähner era o que se chamava de bom partido; estudava Medicina em Munique, era atraente e carinhoso e estava às vésperas dos primeiros exames finais. Porém, o que mais a atraía era a sua seriedade. Ela não sabia como descrevê-la, mas dizia às amigas que Fähner jamais a abandonaria. Quatro meses depois, estava morando com ele. Na lua de mel, viajaram para o Cairo, conforme ele desejava. Mais tarde, quando lhe perguntavam sobre o Egito, ele dizia que “não sentira a força da gravidade”, embora soubesse que ninguém o entendia. Lá, ele
foi o jovem Parsival, imune aos males do mundo, e foi feliz. Pela última vez em sua vida. Na noite que antecedeu a viagem de volta, ficaram deitados no quarto do hotel. As janelas estavam abertas, mas o calor persistia; o ar quente parecia estar preso no interior do pequeno aposento. Era um hotel barato, que cheirava a fruta podre, e eles podiam ouvir os ruídos que vinham da rua. Apesar do calor, haviam feito sexo. Fähner, deitado de costas, acompanhava o movimento do ventilador de teto. Ingrid fumava um cigarro. Virando-se de lado, ela apoiou a cabeça em uma das mãos e
pôs-se a contemplá-lo. Ele sorriu. Durante um bom tempo, permaneceram calados. Então, ela começou a falar. Falou dos homens antes de Fähner, das decepções que tivera e dos erros que cometera, mas sobretudo do tenente francês que a engravidara e do aborto que quase a matara. Estava chorando. Surpreso, ele a abraçou. Em seu peito, sentia o coração dela pulsar, desamparado. Ela confia em mim, pensou. “Você tem de jurar que vai cuidar de mim. Você não pode me abandonar.” A voz de Ingrid era trêmula.
Comovido, ele tentou acalmá-la. Já o havia jurado na igreja, durante as bodas, era feliz com ela, queria... Ela o interrompeu bruscamente, e sua voz se elevou, assumindo aquele tom metálico e vulgar. “Jure!”
De súbito, ele entendeu. Não se tratava de uma conversa entre amantes. Num átimo, haviam desaparecido todos os clichês — o ventilador, o Cairo, as pirâmides, o calor do quarto de hotel. Ele a afastou um pouco, a fim de poder olhar em seus olhos, e depois falou. Falou lentamente, e sabia o que estava dizendo. “Eu juro.”
Puxando-a novamente para si, ele a beijou no rosto. E mais uma vez fizeram sexo. Dessa vez foi diferente. Ela se sentou sobre ele e fez dele o que quis. Foram momentos de autenticidade, alheamento e solidão. Ao gozar, ela o esbofeteou. Ele ainda permaneceu acordado por muito tempo, olhando fixamente para o teto. Faltou luz, e o ventilador parou de girar.
Como pode observar-se já no começo do conto, o protagonista tem uma vida bem burguesa, definida por produtos como um Mercedes Classe E e ser membro do Lions Club, na pequena cidade de Rottweil no estado de Baden-Württemberg, que fica no Sul da Alemanha. Trata-se de uma pessoa absolutamente mediana e que ninguém imaginaria que pudesse se tornar um assassino. Fähner apaixona-se por Ingrid, eles se casam e tudo parece ótimo. No final do trecho, quando o casal está na viagem de lua
de mel, ele pensa “Ela confia em mim“ e ju ra que vai cuidar dela. E é lá onde a tragédia
começa. No decorrer do tempo, Ingrid se enfurece, destrói a coleção de CDs dele, não gosta da maneira como ele está comendo, chama ele de idiota e de outras coisas, e inclusive torna-se violenta de vez em quando. A vida dele parece um inferno, mas ele sente-se preso à promessa que tinha feito a ela na lua de mel. O único refúgio de Fähner é o trabalho no jardim. Um dia, depois de muitos anos de matrimônio, ele está trabalhando no jardim. A esposa, repentinamente começa a humilhá-lo novamente, chamá-lo de idiota e ele acaba matando-a com um machado. Depois há um julgamento, no qual são tratadas questões de filosofia de direito e, sobretudo, a questão do juramento. Para o homem moderno, e também para o sistema jurídico atual, o juramento não vale mais muito, mas, para Fähner, era a base de tudo – é aquela a linha de defesa. Ele tinha prometido ficar com sua esposa para sempre e é por isso que não tinha alternativa. São exatamente estes tipos de histórias que os contos contêm: pessoas simples, que por uma sequência de casualidades viram assassinas. Assim, Ferdinand Von Schirach consegue contar partes das vidas de seus clientes que o discurso jurídico não cobre. São ao mesmo tempo reflexões inteligentes e elaboradas sobre filosofia de direito e questões gerais como culpa, liberdade e verdade. Em 2010, foi lançada a continuação Schuld (Culpa), que segue o mesmo conceito de contos curtos, inspirados em casos do seu escritório, e, em 2011, o primeiro romance Der Fall Collini (O caso Collini), que trata do sistema jurídico alemão pós-guerra e dos
julgamentos de criminosos nazistas. Sonja Arnold (DAAD/UFRGS) mail:
[email protected]
site: www.ufrgs.br/setordealemao