Curso de Direito Administrativo
Livro 1.indb 1
21/03/2013 17:13:40
Livro 1.indb 2
21/03/2013 17:13:40
Lucas Rocha Furtado
Curso de Direito Administrativo
4ª edição revista e atualizada
Belo Horizonte
2013
Livro 1.indb 3
21/03/2013 17:13:40
© 2007 Editora Fórum Ltda. 2010 2ª edição 2012 3ª edição 2013 4ª edição rev. e atual. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrônico, inclusive por processos xerográficos, sem autorização expressa do Editor.
Conselho Editorial Adilson Abreu Dallari Alécia Paolucci Nogueira Bicalho Alexandre Coutinho Pagliarini André Ramos Tavares Carlos Ayres Britto Carlos Mário da Silva Velloso Cármen Lúcia Antunes Rocha Cesar Augusto Guimarães Pereira Clovis Beznos Cristiana Fortini Dinorá Adelaide Musetti Grotti Diogo de Figueiredo Moreira Neto Egon Bockmann Moreira Emerson Gabardo Fabrício Motta Fernando Rossi
Flávio Henrique Unes Pereira Floriano de Azevedo Marques Neto Gustavo Justino de Oliveira Inês Virgínia Prado Soares Jorge Ulisses Jacoby Fernandes Juarez Freitas Luciano Ferraz Lúcio Delfino Marcia Carla Pereira Ribeiro Márcio Cammarosano Maria Sylvia Zanella Di Pietro Ney José de Freitas Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho Paulo Modesto Romeu Felipe Bacellar Filho Sérgio Guerra
Luís Cláudio Rodrigues Ferreira Presidente e Editor
Revisão: Marcelo Belico Bibliotecária: Izabel Antonina A. Miranda – CRB 2904 – 6ª Região Indexação: Maria Clarice Lima Batista – CRB 1326 – 6ª Região Capa e projeto gráfico: Walter Santos Diagramação: Reginaldo César de Sousa Pedrosa Av. Afonso Pena, 2770 – 15º/16º andares – Funcionários – CEP 30130-007 Belo Horizonte – Minas Gerais – Tel.: (31) 2121.4900 / 2121.4949 www.editoraforum.com.br –
[email protected]
F992c
Furtado, Lucas Rocha Curso de direito administrativo / Lucas Rocha Furtado. – 4ª edição revista e atualizada. – Belo Horizonte : Fórum, 2013. xxx p. ISBN 978-85-7700-678-6 1. Direito administrativo – Brasil. 2. Administração Pública – Brasil. 3. Ato administrativo. 4. Contrato administrativo – Brasil. 5. Licitação. 6. Serviço público – Brasil. 7. Servidor público. 8. Parceria público-privada. I. Título. CDD: 341.3 CDU: 342.9 (81)
Informação bibliográfica deste livro, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2013. xxx p. ISBN 978-85-7700-678-6.
Livro 1.indb 4
21/03/2013 17:13:40
Às minhas filhas Mariana e Laura, minhas lindas princesas. Ao meu filho Pedro, meu grande amigo.
Livro 1.indb 5
21/03/2013 17:13:40
Livro 1.indb 6
21/03/2013 17:13:40
Agradeço as sugestões e os comentários apresentados pelos amigos Benjamin Zymler, Carlos Átila Lins, Luiz Felipe Almeida Simões, Guilherme Barbosa Netto, Pierre Luigi Silva, Alexandre Cardoso Veloso, Vera Lúcia de Pinho Borges, Sandro Rafael Matheus Pereira, Alexander Pinheiro Pascoal, Eduardo Bicalho Belmock, Victor de Oliveira Meyer Nascimento e Silvio Caracas de Moura Neto.
Livro 1.indb 7
21/03/2013 17:13:40
Livro 1.indb 8
21/03/2013 17:13:40
Sumário
Nota ao leitor................................................................................................................................. 25 PARTE I
Regime Jurídico Administrativo e Organização Administrativa Capítulo 1
Estado e Teoria Geral do Direito Administrativo........................................ 29 1.1 Do Estado Liberal ao Estado Social e cooperativo............................................................ 29 1.1.1 Formação do Estado.............................................................................................................. 29 1.1.2 Estado Social e cooperativo.................................................................................................. 31 1.2 Integração de países e o Direito Administrativo no século XXI..................................... 33 1.3 Modelo de Estado adotado pela Constituição Federal de 1988: Estado subsidiário e cooperativo..................................................................................................... 33 1.4 Teoria Geral do Direito Administrativo............................................................................. 36 Capítulo 2
Atividade administrativa e Direito Administrativo.................................. 39
2.1 Funções estatais..................................................................................................................... 39 2.1.1 Ato administrativo em sentido amplo............................................................................... 39 2.1.2 Jurisdição e administração................................................................................................... 40 2.1.3 Decisões proferidas pelos Tribunais de Contas................................................................ 44 2.2 Âmbito de aplicação do Direito Administrativo.............................................................. 46 2.2.1 Ato judicial e ato legislativo................................................................................................. 46 2.2.2 Ato administrativo e critério residual................................................................................ 48 2.3 Direito Administrativo e Direito Privado.......................................................................... 48 2.4 Objeto do Direito Administrativo....................................................................................... 50 2.5 Fontes do Direito Administrativo....................................................................................... 51 2.5.1 Constituição Federal............................................................................................................. 51 2.5.2 Leis........................................................................................................................................... 52 2.5.3 Tratados e acordos internacionais....................................................................................... 53 2.5.4 Decretos e regulamentos...................................................................................................... 53 2.5.5 Jurisprudência........................................................................................................................ 57 2.5.6 Doutrina.................................................................................................................................. 58 2.5.7 Costume.................................................................................................................................. 59 2.6 Âmbito público e âmbito privado....................................................................................... 59 Capítulo 3
Regime jurídico administrativo................................................................................... 63 3.1 Surgimento do Direito Administrativo.............................................................................. 63 3.2 Regime jurídico administrativo: níveis de realização...................................................... 66 3.2.1 Nível constitucional: Teoria Geral do Direito Administrativo........................................ 66
Livro 1.indb 9
21/03/2013 17:13:40
3.2.2 Nível legal............................................................................................................................... 67 3.2.3 Nível infralegal...................................................................................................................... 68 3.3 Regime jurídico administrativo e interesse público......................................................... 70 3.4 Interesse público: planos de realização.............................................................................. 73 3.5 Supremacia e indisponibilidade do interesse público..................................................... 76 3.6 Princípios gerais da Administração Pública...................................................................... 78 3.6.1 Princípios expressos.............................................................................................................. 80 3.6.1.1 Legalidade.............................................................................................................................. 80 3.6.1.2 Impessoalidade...................................................................................................................... 83 3.6.1.3 Moralidade............................................................................................................................. 86 3.6.1.4 Publicidade............................................................................................................................. 91 3.6.1.4.1 Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011).............................................................. 93 3.6.1.5 Eficiência................................................................................................................................. 96 3.6.2 Princípios implícitos........................................................................................................... 100 3.6.2.1 Razoabilidade...................................................................................................................... 100 3.6.2.2 Proporcionalidade............................................................................................................... 102 3.6.2.3 Motivação............................................................................................................................. 103 3.6.2.4 Segurança jurídica............................................................................................................... 106 3.6.2.5 Continuidade do serviço público...................................................................................... 111 3.6.2.6 Autotutela............................................................................................................................. 112 3.6.2.7 Controle judicial.................................................................................................................. 113 Capítulo 4
Organização administrativa...................................................................................... 115 4.1 As bases da Administração Pública.................................................................................. 115 4.1.1 Direito da Organização Administrativa........................................................................... 115 4.1.2 Direito Constitucional e Direito da Organização Administrativa................................ 116 4.1.3 Organização da Administração Pública e princípios gerais da Administração Pública................................................................................................................................... 116 4.1.4 Reserva legal e reserva institucional................................................................................. 118 4.1.5 Administração informal..................................................................................................... 121 4.1.6 Administração Pública em sentido orgânico e em sentido funcional......................... 123 4.1.7 Estado federado e Estado unitário.................................................................................... 124 4.1.8 Descentralização vertical e horizontal.............................................................................. 125 4.1.9 Limites à descentralização horizontal.............................................................................. 129 4.1.10 Conflitos de atribuição........................................................................................................ 130 4.1.11 Descentralização de competência: limites....................................................................... 131 4.1.12 Desconcentração administrativa....................................................................................... 132 4.1.13 Descentralização horizontal e desconcentração: distinções.......................................... 134 4.1.14 Delegação de competência: aspectos relevantes e distinções com os processos de desconcentração e de descentralização administrativa............................................ 136 4.2 Administração Pública direta............................................................................................ 137 4.2.1 Organização das entidades, dos órgãos e dos agentes públicos.................................. 137 4.2.2 Órgãos independentes........................................................................................................ 139 4.2.3 Classificação dos órgãos..................................................................................................... 141 4.2.3.1 Classificação em razão da posição do órgão na estrutura da Administração............ 141 4.2.3.2 Classificação quanto à estrutura....................................................................................... 142 4.2.3.3 Classificação quanto à composição................................................................................... 142 4.2.3.4 Classificação quanto à atuação funcional........................................................................ 142 4.3 Administração Pública indireta......................................................................................... 144 4.3.1 Entidades administrativas.................................................................................................. 144 4.3.2 Autarquias............................................................................................................................ 146 4.3.2.1 Principais características.................................................................................................... 146
Livro 1.indb 10
21/03/2013 17:13:40
4.3.2.2 Agências reguladoras......................................................................................................... 150 4.3.2.3 Agências executivas............................................................................................................ 155 4.3.2.4 Autarquias corporativas..................................................................................................... 155 4.3.3 Fundações públicas............................................................................................................. 158 4.3.4 Empresas estatais................................................................................................................. 161 4.3.4.1 Regime jurídico e características das empresas estatais................................................ 161 4.3.4.2 Serviço público e atividade empresarial.......................................................................... 167 4.3.4.3 Empresas estatais e regime jurídico de seus empregados............................................. 171 4.3.4.4 Empresas estatais e regime jurídico de licitações e contratações................................. 172 4.3.4.5 Falência de empresas estatais............................................................................................ 175 4.3.4.6 Controle de empresas estatais........................................................................................... 176 4.3.4.7 Distinções entre empresa pública e sociedade de economia mista.............................. 178 4.4 Paraestatais e terceiro setor................................................................................................ 180 4.4.1 Entidades do terceiro setor e o Estado............................................................................. 180 4.4.2 Organizações sociais (OS).................................................................................................. 181 4.4.3 Organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP)..................................... 183 4.4.4 Serviços sociais autônomos (SSA)..................................................................................... 185 4.4.5 Entidades do terceiro setor criadas pelo Estado............................................................. 186 PARTE II
Atividade Administrativa Capítulo 5
Ato administrativo............................................................................................................... 191 5.1 Atividade administrativa................................................................................................... 191 5.2 Considerações necessárias à conceituação dos atos administrativos.......................... 192 5.2.1 Ato legislativo, ato judicial e ato administrativo............................................................ 192 5.2.2 Ato administrativo e fato administrativo........................................................................ 192 5.2.3 Ato administrativo e ato de Direito Privado................................................................... 193 5.2.4 Empresas estatais e atos administrativos......................................................................... 195 5.2.5 Ato administrativo e contrato administrativo................................................................. 196 5.2.6 Ato de governo.................................................................................................................... 197 5.2.7 Atos normativos.................................................................................................................. 199 5.2.8 Controle jurisdicional......................................................................................................... 201 5.2.9 Conceito de ato administrativo......................................................................................... 201 5.3 Perfeição, validade e eficácia do ato administrativo...................................................... 201 5.4 Requisitos de validade do ato administrativo................................................................. 203 5.4.1 Competência......................................................................................................................... 203 5.4.2 Finalidade............................................................................................................................. 206 5.4.3 Forma.................................................................................................................................... 209 5.4.4 Motivo................................................................................................................................... 211 5.4.5 Objeto.................................................................................................................................... 214 5.5 Atributos do ato administrativo........................................................................................ 215 5.5.1 Atividade administrativa e prerrogativas públicas........................................................ 215 5.5.2 Presunção de legitimidade................................................................................................. 216 5.5.3 Auto-executoriedade.......................................................................................................... 217 5.5.4 Imperatividade.................................................................................................................... 219 5.6 Classificação dos atos administrativos............................................................................. 221 5.6.1 Classificação do ato administrativo quanto ao destinatário......................................... 221 5.6.2 Classificação do ato administrativo quanto ao alcance................................................. 223 5.6.3 Classificação do ato administrativo quanto ao conteúdo.............................................. 224
Livro 1.indb 11
21/03/2013 17:13:40
5.6.4 Classificação do ato administrativo quanto ao regramento.......................................... 225 5.6.5 Classificação do ato administrativo quanto à formação................................................ 227 5.6.6 Outras categorias de atos administrativos....................................................................... 231 5.6.6.1 Ato perfeito e ato inexistente............................................................................................. 231 5.6.6.2 Ato válido e ato nulo........................................................................................................... 231 5.6.6.3 Ato eficaz, ato exequível e ato consumado ou exaurido............................................... 232 5.6.6.4 Ato constitutivo, ato declaratório, ato modificativo e ato extintivo............................. 232 5.6.6.5 Atos restritivos de direito e atos ampliativos de direito................................................ 233 5.7 Revogação, anulação e convalidação................................................................................ 233 5.7.1 Desfazimento do ato e interesse público.......................................................................... 233 5.7.2 Anulação............................................................................................................................... 234 5.7.2.1 Direito Administrativo e Direito Civil.............................................................................. 234 5.7.2.2 Ato administrativo nulo e ato administrativo anulável................................................ 236 5.7.2.3 Dever ou poder de anular?................................................................................................ 238 5.7.2.4 Fundamentos para anulação.............................................................................................. 240 5.7.2.5 Prazo para anulação do ato pela Administração (legalidade x segurança jurídica)...................................................................................... 241 5.7.2.6 Anulação e colisão de princípios....................................................................................... 244 5.7.2.7 Efeitos da anulação.............................................................................................................. 245 5.7.2.8 Consequências da anulação do ato anulatório................................................................ 246 5.7.2.9 Anulação e dever de indenizar.......................................................................................... 247 5.7.2.10 Órgãos competentes para a anulação............................................................................... 248 5.7.2.11 Anulação do ato de aposentadoria e restituição dos proventos pagos....................... 250 5.7.2.12 Anulação, cassação e caducidade..................................................................................... 253 5.7.3 Revogação............................................................................................................................. 254 5.7.3.1 Fundamentos....................................................................................................................... 254 5.7.3.2 Efeitos.................................................................................................................................... 255 5.7.3.3 Atos irrevogáveis................................................................................................................. 255 5.7.3.4 Revogação e interesse público........................................................................................... 256 5.7.3.5 Revogação de atos processuais.......................................................................................... 257 5.7.3.6 Prazo para revogação.......................................................................................................... 258 5.7.3.7 Revogação e dever de indenizar....................................................................................... 258 5.7.4 Distinções entre anulação e revogação............................................................................. 259 5.7.5 Convalidação........................................................................................................................ 260 Capítulo 6
Contrato administrativo............................................................................................... 263 6.1 Contratos celebrados pela Administração Pública – fundamento constitucional....... 263 6.2 Normas gerais sobre licitações e contratos administrativos......................................... 264 6.3 Terceirização de atividades fins: impossibilidade.......................................................... 267 6.4 Contrato administrativo e ato administrativo................................................................. 270 6.5 Conceito de contrato administrativo................................................................................ 270 6.6 Outros acordos de vontade................................................................................................ 271 6.6.1 Convênios celebrados pelo poder público....................................................................... 271 6.6.2 Contratos de gestão............................................................................................................. 274 6.6.2.1 Contratos de gestão e organizações sociais..................................................................... 274 6.6.2.2 Contrato de gestão celebrado entre entidades ou órgãos públicos.............................. 276 6.6.2.3 Termos de parceria e organizações da sociedade civil de interesse público.............. 277 6.6.2.4 Parcerias público-privadas, concessões de serviço público, termos de parceria e contratos de gestão: distinções....................................................................................... 279 6.7 Distinção entre contratos administrativos e contratos celebrados pelos particulares........................................................................................................................... 279
Livro 1.indb 12
21/03/2013 17:13:40
6.8 Contrato de Direito Público e contrato de Direito Privado........................................... 281 6.9 Cláusulas exorbitantes........................................................................................................ 284 6.9.1 Mutabilidade contratual: modificações unilaterais........................................................ 285 6.9.2 Rescisão unilateral............................................................................................................... 289 6.9.3 Fiscalização da execução do contrato............................................................................... 291 6.9.4 Aplicação de sanções.......................................................................................................... 293 6.9.5 Outras cláusulas exorbitantes............................................................................................ 295 6.9.5.1 Retenção de créditos e exigência de garantias................................................................ 295 6.9.5.2 Exceção de contrato não cumprido................................................................................... 296 6.9.5.3 Anulação do contrato.......................................................................................................... 297 6.10 Contratos administrativos e empresas estatais............................................................... 297 6.11 Prazos contratuais............................................................................................................... 298 6.12 Equilíbrio econômico-financeiro do contrato.................................................................. 301 6.12.1 Teoria da imprevisão........................................................................................................... 301 6.12.2 Distinção entre recomposição, reajuste de preços e repactuação................................. 305 6.12.3 Distinção entre atualização, recomposição e reajuste de preços.................................. 308 6.12.4 Equilíbrio financeiro e contratos de concessão............................................................... 308 6.12.5 Fato do príncipe e fato da administração........................................................................ 309 6.12.6 Caso fortuito, força maior e teoria da imprevisão.......................................................... 310 6.13 Formalização do contrato-regra........................................................................................ 311 6.14 Execução dos contratos....................................................................................................... 313 6.15 Recebimento do objeto do contrato.................................................................................. 316 6.16 Extinção do contrato........................................................................................................... 317 Capítulo 7
Licitação......................................................................................................................................... 323 7.1 Administração Pública e setor privado............................................................................ 323 7.2 Finalidades da licitação...................................................................................................... 324 7.3 Processo administrativo e formalismo exagerado.......................................................... 328 7.4 Princípios da licitação......................................................................................................... 329 7.4.1 Supremacia e indisponibilidade do interesse público................................................... 329 7.4.2 Legalidade............................................................................................................................ 330 7.4.3 Impessoalidade.................................................................................................................... 331 7.4.4 Moralidade ou probidade.................................................................................................. 331 7.4.5 Motivação............................................................................................................................. 332 7.4.6 Publicidade........................................................................................................................... 333 7.4.7 Vinculação ao instrumento convocatório........................................................................ 335 7.4.8 Julgamento objetivo............................................................................................................ 336 7.4.9 Adjudicação compulsória................................................................................................... 337 7.5 Dever constitucional de licitar........................................................................................... 337 7.6 Contratação sem licitação................................................................................................... 338 7.6.1 Distinção conceitual entre dispensa e inexigibilidade de licitação.............................. 338 7.6.2 Licitação dispensada – Lista exaustiva............................................................................. 340 7.6.3 Licitação dispensável – Lista exaustiva............................................................................ 341 7.6.3.1 Licitação dispensável em razão do valor......................................................................... 342 7.6.3.2 Licitação dispensável em razão de situações excepcionais........................................... 344 7.6.3.2.1 Contrato emergencial.......................................................................................................... 344 7.6.3.2.2 Inércia do administrador causadora da emergência na contratação........................... 346 7.6.3.2.3 Renovação e prorrogação de contratos emergenciais.................................................... 347 7.6.3.2.4 Licitação deserta ou frustrada – Ausência de interessados........................................... 349 7.6.3.2.5 Convite e licitação deserta.................................................................................................. 349 7.6.3.2.6 Licitação fracassada............................................................................................................. 350 7.6.3.2.7 Contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento................................. 351
Livro 1.indb 13
21/03/2013 17:13:40
7.6.3.2.8 Outras hipóteses de contratação direta relacionadas a situações excepcionais......... 351 7.6.3.3 Dispensa em razão do objeto............................................................................................. 352 7.6.3.4 Dispensa em razão da pessoa............................................................................................ 357 7.6.4 Inviabilidade de competição e inexigibilidade de licitação.......................................... 363 7.6.4.1 Fornecedor exclusivo.......................................................................................................... 364 7.6.4.2 Serviços técnicos a serem prestados por profissionais de notória especialização....... 368 7.6.4.3 Contratação de serviços artísticos..................................................................................... 372 7.6.4.4 Outras hipóteses de inexigibilidade de licitação............................................................ 372 7.7 Modalidades de licitação.................................................................................................... 373 7.7.1 Modalidades comuns e especiais de licitação................................................................. 374 7.7.2 Critério para a utilização da concorrência, tomada de preços ou convite.................. 374 7.7.3 Utilização do leilão ou da concorrência para a alienação de imóveis......................... 375 7.7.4 Licitação internacional e adoção da concorrência.......................................................... 376 7.7.5 Adoção da modalidade de licitação mais rigorosa que a definida em lei................... 376 7.7.6 Desmembramento (fracionamento) do objeto do contrato........................................... 377 7.7.7 Criação de modalidade de licitação não prevista em lei – Impossibilidade............... 379 7.7.8 Concorrência........................................................................................................................ 379 7.7.8.1 Procedimento básico na licitação...................................................................................... 379 7.7.8.2 Fase interna e fase externa da licitação............................................................................ 380 7.7.8.3 Fase interna: providências preliminares.......................................................................... 380 7.7.8.4 Motivação da licitação – Necessidades da Administração Pública.............................. 381 7.7.8.5 Objeto da licitação............................................................................................................... 382 7.7.8.6 Necessidade da previsão dos recursos a serem gastos.................................................. 382 7.7.8.7 Edital – Elaboração.............................................................................................................. 383 7.7.8.8 Lei de Responsabilidade Fiscal e licitações..................................................................... 383 7.7.8.9 Fases da concorrência......................................................................................................... 385 7.7.8.9.1 Edital..................................................................................................................................... 385 7.7.8.9.2 Habilitação............................................................................................................................ 389 7.7.8.9.3 Julgamento (classificação das propostas)......................................................................... 407 7.7.8.9.4 Homologação do procedimento licitatório...................................................................... 418 7.7.8.9.5 Adjudicação.......................................................................................................................... 419 7.7.8.9.6 Recursos contra as decisões proferidas no curso da licitação....................................... 419 7.7.8.10 Representação ao Tribunal de Contas.............................................................................. 420 7.7.8.11 Convocação do adjudicatário para assinar o contrato................................................... 420 7.7.8.12 Prazo de validade das propostas...................................................................................... 421 7.7.9 Tomada de preços................................................................................................................ 421 7.7.10 Convite.................................................................................................................................. 422 7.7.11 Leilão..................................................................................................................................... 423 7.7.12 Concurso............................................................................................................................... 424 7.7.13 Pregão.................................................................................................................................... 425 7.7.13.1 Aspectos gerais.................................................................................................................... 425 7.7.13.2 Definição............................................................................................................................... 426 7.7.13.3 Bens ou serviços de informática e pregão........................................................................ 428 7.7.13.4 Pregão e margem de preferência prevista na Lei nº 12.349/2010................................. 430 7.7.13.5 Procedimento do pregão.................................................................................................... 431 7.7.13.6 Fase interna do pregão....................................................................................................... 431 7.7.13.7 Pregoeiro............................................................................................................................... 433 7.7.13.8 Fase externa do pregão....................................................................................................... 433 7.7.13.9 Contratação decorrente do pregão................................................................................... 438 7.7.13.10 Pregão eletrônico................................................................................................................. 439 7.8 Tipos de licitação................................................................................................................. 442 7.8.1 Noções gerais – Distinção entre modalidade e tipo de licitação.................................. 442
Livro 1.indb 14
21/03/2013 17:13:40
7.8.2 Impossibilidade de ser criado novo tipo de licitação que não tenha sido indicado pela lei................................................................................................................... 442 7.8.3 Impossibilidade de serem julgadas as propostas por meio de critérios subjetivos ou não constantes do edital............................................................................. 443 7.8.4 Menor preço – Tipo básico de licitação............................................................................ 443 7.8.5 Melhor técnica e técnica e preço........................................................................................ 444 7.8.6 Aquisição de bens e serviços de informática e o direito de preferência...................... 446 7.8.7 Outras hipóteses de utilização do tipo melhor técnica ou técnica e preço................. 449 7.8.8 Menor preço como critério decisivo, inclusive na licitação de melhor técnica.......... 449 7.9 Regime Diferenciado de Contratações Públicas............................................................. 451 7.10 Compras, contratações e desenvolvimento de produtos e de sistemas de defesa..... 453 Capítulo 8
Concessões e permissões de serviço público................................................... 455 8.1 Concessões de serviço público e a formação do Estado................................................ 455 8.1.1 Do Estado Liberal ao Estado moderno............................................................................. 455 8.1.2 Subsidiariedade e o novo modelo de concessão de serviços públicos........................ 457 8.2 Interesses envolvidos na concessão.................................................................................. 458 8.3 Empresas estatais concessionárias de serviço público................................................... 460 8.4 Legislação aplicável............................................................................................................. 461 8.5 Âmbito de aplicação das concessões................................................................................ 461 8.6 Serviços passíveis de concessão e o texto constitucional............................................... 463 8.7 Conceito legal....................................................................................................................... 466 8.8 Concessão de serviço público precedida de obra pública............................................. 466 8.9 Concessão e permissão de uso de bem público.............................................................. 467 8.10 Licitação das concessões..................................................................................................... 468 8.11 Equilíbrio econômico-financeiro da concessão............................................................... 471 8.12 Direitos dos usuários.......................................................................................................... 476 8.13 Direitos do concessionário................................................................................................. 477 8.14 Intervenção na concessão................................................................................................... 478 8.15 Extinção da concessão......................................................................................................... 478 8.15.1 Advento do termo contratual............................................................................................ 479 8.15.2 Encampação......................................................................................................................... 482 8.15.3 Caducidade.......................................................................................................................... 482 8.15.4 Rescisão................................................................................................................................. 484 8.15.5 Anulação............................................................................................................................... 484 8.15.6 Outras hipóteses.................................................................................................................. 484 8.16 Responsabilidade civil do concessionário e do poder concedente.............................. 485 8.16.1 Responsabilidade perante os usuários e perante terceiros............................................ 485 8.16.2 Responsabilidade subsidiária do poder concedente...................................................... 486 8.17 Permissão de serviço público............................................................................................. 488 8.17.1 Distinção entre permissão e concessão............................................................................ 488 8.17.2 Formalização da permissão............................................................................................... 489 8.17.3 Vigência da permissão........................................................................................................ 490 8.18 Autorização de serviço....................................................................................................... 491 Capítulo 9 Parcerias público-privadas............................................................................................ 495 9.1 Instituição das parcerias público-privadas no Direito brasileiro................................. 495 9.2 Modelos de parcerias público-privadas........................................................................... 497 9.3 Âmbito de aplicação............................................................................................................ 498 9.4 Regime jurídico das parcerias público-privadas............................................................ 501
Livro 1.indb 15
21/03/2013 17:13:40
9.5 Características das parcerias público-privadas............................................................... 502 9.6 Diretrizes e garantias das PPP........................................................................................... 503 9.6.1 Eficiência............................................................................................................................... 503 9.6.2 Responsabilidade fiscal...................................................................................................... 503 9.6.3 Distribuição dos riscos, encargos e responsabilidades.................................................. 506 9.6.4 Outras diretrizes.................................................................................................................. 508 9.7 Vedações à utilização de PPP............................................................................................. 508 9.8 Conteúdo dos contratos de PPP........................................................................................ 509 9.9 Licitação para a contratação de PPP................................................................................. 510 9.9.1 Planejamento prévio........................................................................................................... 510 9.9.2 Arbitragem........................................................................................................................... 511 9.9.3 Procedimento da licitação de PPP..................................................................................... 512 9.10 Sociedade de Propósito Específico (SPE)......................................................................... 513 9.11 Órgão gestor de PPP, ministérios e agências reguladoras............................................. 514 PARTE III
Atividade Administrativa: Conteúdos Materiais Capítulo 10
Poderes administrativos........................................................................................517 10.1 Potestades administrativas e interesse público............................................................... 517 10.2 Poderes e deveres administrativos.................................................................................... 518 10.2.1 Dever de agir........................................................................................................................ 518 10.2.2 Dever de eficiência.............................................................................................................. 519 10.2.3 Dever de probidade............................................................................................................ 520 10.2.4 Dever de prestar contas...................................................................................................... 523 10.3 Abuso de poder................................................................................................................... 524 10.4 Discricionariedade e vinculação administrativa............................................................. 526 10.4.1 Poder discricionário e poder vinculado........................................................................... 526 10.4.2 Conceito de discricionariedade......................................................................................... 527 10.4.3 Como surge a discricionariedade...................................................................................... 528 10.4.4 Discricionariedade e interpretação................................................................................... 528 10.4.5 Discricionariedade e mérito............................................................................................... 529 10.4.6 Controle judicial da discricionariedade........................................................................... 530 10.5 Poder de polícia (atividade ordenadora do Estado)....................................................... 532 10.5.1 Aspectos gerais.................................................................................................................... 532 10.5.2 Poder de polícia e demais poderes administrativos....................................................... 533 10.5.3 Poder de polícia e serviço público.................................................................................... 534 10.5.4 Áreas de atuação.................................................................................................................. 535 10.5.5 Agências reguladoras e poder de polícia......................................................................... 535 10.5.6 Impossibilidade de delegação do poder de polícia a particulares............................... 537 10.5.7 Definição do poder de polícia............................................................................................ 538 10.5.8 Formas de atuação............................................................................................................... 538 10.5.9 Atributos............................................................................................................................... 539 10.5.10 Estado constitucional e poder de polícia: pressupostos................................................ 541 10.5.11 Regulamentos de polícia.................................................................................................... 543 10.5.12 Polícia administrativa e polícia judiciária........................................................................ 545 10.5.13 Polícia geral e polícia especial........................................................................................... 546 10.5.14 Técnicas de ordenação........................................................................................................ 547 10.5.14.1 Técnica de informação........................................................................................................ 547
Livro 1.indb 16
21/03/2013 17:13:40
10.5.14.2 Técnica de condicionamento.............................................................................................. 548 10.5.14.3 Técnica sancionatória.......................................................................................................... 549 10.5.15 Obrigações positivas........................................................................................................... 552 10.5.16 Segurança e liberdade......................................................................................................... 553 10.6 Poder hierárquico................................................................................................................ 553 10.7 Poder disciplinar.................................................................................................................. 557 10.7.1 Aspectos gerais.................................................................................................................... 557 10.7.2 Processo disciplinar: servidores públicos........................................................................ 558 10.7.2.1 Sanções disciplinares.......................................................................................................... 558 10.7.2.2 Processo administrativo disciplinar................................................................................. 560 10.7.2.3 Etapas do processo disciplinar.......................................................................................... 562 10.7.3 Processo disciplinar: empresas contratadas pela Administração Pública.................. 565 10.8 Poder regulamentar............................................................................................................ 566 Capítulo 11
Serviço público e intervenção do Estado na ordem econômica..................................................................................................................................... 571 11.1 Serviços públicos e o Estado.............................................................................................. 571 11.1.1 Surgimento da atividade prestacional do Estado........................................................... 571 11.1.2 Desenvolvimento das atividades prestacionais.............................................................. 571 11.2 Serviço público e outras atividades estatais.................................................................... 573 11.3 Formas de intervenção do Estado na economia............................................................. 575 11.4 Intervenção do Estado na ordem econômica: os princípios do Estado subsidiário e do Estado cooperativo................................................................................. 577 11.5 Serviço público: concepção subjetiva e objetiva.............................................................. 580 11.6 Elementos caracterizadores do serviço público.............................................................. 581 11.6.1 Titularidade do serviço público........................................................................................ 582 11.6.2 Objeto do serviço público: atividades privadas x serviços públicos........................... 584 11.6.3 Serviço público e regime jurídico administrativo........................................................... 586 11.7 Conceito de serviço público............................................................................................... 588 11.8 Princípios.............................................................................................................................. 588 11.9 Regime jurídico do usuário: Código de Defesa do Consumidor................................. 592 11.10 Classificação do serviço público........................................................................................ 595 11.10.1 Classificação quanto ao destinatário: serviços públicos uti universi (ou gerais) e serviços públicos uti singuli (ou individuais)............................................................... 595 11.10.2 Classificação quanto à titularidade: serviços federais, estaduais e municipais......... 595 11.10.3 Classificação quanto à essencialidade: serviços essenciais e serviços não essenciais............................................................................................................................... 597 11.10.4 Classificação quanto à forma de prestação: serviço centralizado e serviço descentralizado.................................................................................................................... 597 11.10.5 Classificação quanto à gestão da prestação: gestão direta e gestão indireta.............. 597 11.10.6 Outros critérios de classificação........................................................................................ 599 Capítulo 12
Atividade de fomento......................................................................................................... 601 12.1 Desenvolvimento da atividade de fomento.................................................................... 601 12.2 Fomento e outras atividades estatais................................................................................ 602 12.3 Atividade de fomento como dever constitucional......................................................... 603 12.4 Áreas de atuação.................................................................................................................. 604 12.5 Fomento como atividade jurídica..................................................................................... 605 12.6 Técnicas de fomento............................................................................................................ 607
Livro 1.indb 17
21/03/2013 17:13:41
Capítulo 13
Desapropriação e outras formas de intervenção do Estado na propriedade privada............................................................................................................ 609
13.1 Fundamentos para a intervenção do Estado na propriedade privada........................ 609 13.2 Desapropriação e fundamentos constitucionais: necessidade ou utilidade pública e interesse social.................................................................................................... 610 13.3 Requisitos constitucionais.................................................................................................. 612 13.4 Procedimento administrativo............................................................................................ 612 13.5 Indenização.......................................................................................................................... 615 13.5.1 Indenização prévia, justa e em dinheiro.......................................................................... 615 13.5.2 Indenização em títulos........................................................................................................ 617 13.5.3 Súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre desapropriação..................................................................................................................... 618 13.5.4 Juros compensatórios.......................................................................................................... 620 13.5.5 Juros moratórios.................................................................................................................. 622 13.5.6 Acumulação de juros compensatórios e moratórios...................................................... 624 13.5.7 Atualização monetária........................................................................................................ 624 13.5.8 Honorários de advogado.................................................................................................... 625 13.6 Bens passíveis de desapropriação..................................................................................... 625 13.7 Competência em matéria de desapropriação.................................................................. 631 13.7.1 Competência para legislar.................................................................................................. 631 13.7.2 Competência para desapropriar........................................................................................ 632 13.7.3 Competência para promover desapropriação................................................................. 632 13.8 Desapropriação indireta..................................................................................................... 633 13.8.1 Distinção entre desapropriação direta e desapropriação indireta............................... 633 13.8.2 Natureza da ação de desapropriação indireta e prazo prescricional........................... 636 13.9 Desapropriação por zona................................................................................................... 638 13.10 Direito de extensão.............................................................................................................. 639 13.11 Tredestinação....................................................................................................................... 640 13.12 Anulação, cassação e retrocessão...................................................................................... 642 13.13 Requisição............................................................................................................................. 645 13.14 Limitação administrativa................................................................................................... 646 13.15 Servidão administrativa..................................................................................................... 649 13.16 Tombamento......................................................................................................................... 652 PARTE IV
Estrutura da Administração Pública Capítulo 14
Bens públicos............................................................................................................................... 661 14.1 Domínio público e domínio eminente.............................................................................. 661 14.2 Regime jurídico dos bens públicos................................................................................... 664 14.3 Bens pertencentes às empresas estatais............................................................................ 664 14.4 Destinação dos bens públicos............................................................................................ 667 14.4.1 Bens de uso comum............................................................................................................ 667 14.4.2 Bens de uso especial............................................................................................................ 668 14.4.3 Bens dominicais................................................................................................................... 669 14.5 Afetação e desafetação........................................................................................................ 671 14.6 Classificação dos bens quanto a sua titularidade........................................................... 672 14.7 Domínio público e domínio privado do Estado............................................................. 674 14.8 Características do regime jurídico dos bens públicos.................................................... 676
Livro 1.indb 18
21/03/2013 17:13:41
14.8.1 Alienabilidade condicionada............................................................................................. 676 14.8.2 Impenhorabilidade.............................................................................................................. 678 14.8.3 Imprescritibilidade.............................................................................................................. 678 14.8.4 Não onerabilidade............................................................................................................... 679 14.8.5 Características e espécies de bens públicos..................................................................... 680 14.9 Uso ordinário e uso extraordinário dos bens públicos.................................................. 680 14.10 Delegação de uso................................................................................................................. 681 14.10.1 Autorização de uso............................................................................................................. 681 14.10.2 Permissão de uso................................................................................................................. 683 14.10.3 Concessão de uso................................................................................................................. 687 14.10.3.1 Conceito e características.................................................................................................... 687 14.10.3.2 Concessão de direito real de uso....................................................................................... 688 14.10.3.3 Concessão de uso especial para fins de moradia............................................................ 689 14.10.4 Cessão de uso....................................................................................................................... 691 14.10.5 Formas de delegação de uso do Direito Privado: bens dominicais............................. 692 14.11 Alienação de bens................................................................................................................ 695 14.12 Aquisição de bens................................................................................................................ 695 14.13 Bens públicos em espécie................................................................................................... 702 14.13.1 Terrenos reservados............................................................................................................ 702 14.13.2 Terrenos de marinha........................................................................................................... 703 14.13.3 Terras devolutas................................................................................................................... 705 14.13.4 Terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.............................................................. 706 14.13.5 Plataforma continental e mar territorial........................................................................... 707 14.13.6 Águas públicas..................................................................................................................... 708 14.13.7 Ilhas....................................................................................................................................... 708 Capítulo 15
Agentes públicos..................................................................................................................... 711 15.1 Agentes públicos e atividade estatal................................................................................ 711 15.1.1 Agentes públicos e estrutura do Estado........................................................................... 711 15.1.2 Teoria do órgão.................................................................................................................... 712 15.1.3 Agente de fato...................................................................................................................... 714 15.2 Cargo, emprego e função pública..................................................................................... 715 15.2.1 Distinções e conceitos......................................................................................................... 715 15.2.2 Âmbito de utilização do emprego e do cargo público no serviço público................. 718 15.2.3 Cargo efetivo e cargo em comissão................................................................................... 720 15.2.4 Cargo em comissão e função de confiança...................................................................... 721 15.3 Categorias de agente público............................................................................................. 722 15.3.1 Agentes políticos................................................................................................................. 723 15.3.2 Servidores públicos............................................................................................................. 724 15.3.3 Empregados públicos......................................................................................................... 727 15.3.4 Servidores temporários...................................................................................................... 729 15.3.5 Agentes delegados.............................................................................................................. 731 15.3.6 Agentes honoríficos............................................................................................................. 733 15.3.7 Militares................................................................................................................................ 733 15.4 Regras constitucionais pertinentes aos servidores públicos......................................... 734 15.5 Concurso público................................................................................................................. 734 15.5.1 Obrigatoriedade................................................................................................................... 734 15.5.2 Edital e isonomia................................................................................................................. 737 15.5.3 Prazo de validade do concurso......................................................................................... 738 15.5.4 Ordem de classificação....................................................................................................... 738 15.5.5 Aprovação em concurso público e direito à nomeação................................................. 740 15.5.6 Concurso público e cadastro de reserva.......................................................................... 744
Livro 1.indb 19
21/03/2013 17:13:41
15.6 Direito de livre associação sindical e de greve no serviço público.............................. 745 15.7 Sistema de remuneração..................................................................................................... 747 15.7.1 Conceitos básicos................................................................................................................. 747 15.7.2 Fixação e revisão de remuneração.................................................................................... 749 15.7.3 Teto remuneratório.............................................................................................................. 751 15.7.4 Isonomia e paridade............................................................................................................ 754 15.7.5 Vedação de vinculação e equiparação.............................................................................. 755 15.7.6 Irredutibilidade.................................................................................................................... 756 15.8 Acumulação de cargos, empregos e funções públicas................................................... 758 15.8.1 Acumulação de cargos na atividade................................................................................. 758 15.8.2 Acumulação de proventos e vencimentos....................................................................... 762 15.9 Estabilidade.......................................................................................................................... 763 15.9.1 Requisitos............................................................................................................................. 763 15.9.2 Efetividade e estabilidade.................................................................................................. 764 15.9.3 Estágio probatório............................................................................................................... 764 15.9.4 Reprovação de servidor não estável no estágio probatório: exoneração.................... 766 15.9.5 Reprovação de servidor estável no estágio probatório: recondução........................... 767 15.9.6 Recondução a pedido.......................................................................................................... 768 15.9.7 Necessidade de servidor estável aprovado em novo concurso submeter-se a novo estágio probatório...................................................................................................... 769 15.9.8 Estágio experimental........................................................................................................... 770 15.9.9 Avaliação especial de desempenho................................................................................... 771 15.9.10 Estabilidade decorrente do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias......... 772 15.9.11 Efeitos da estabilidade........................................................................................................ 772 15.9.12 Servidor não estável ocupante de cargo efetivo............................................................. 775 15.9.13 Estabilidade e vitaliciedade............................................................................................... 776 15.10 Aposentadoria...................................................................................................................... 777 Capítulo 16 Servidores públicos federais: regime jurídico-legal (Lei nº 8.112/90)................................................................................................................................ 783 16.1 Considerações iniciais......................................................................................................... 783 16.2 Provimento........................................................................................................................... 784 16.2.1 Requisitos para a investidura............................................................................................ 784 16.2.2 Formas de provimento....................................................................................................... 785 16.2.2.1 Nomeação............................................................................................................................. 785 16.2.2.2 Promoção.............................................................................................................................. 785 16.2.2.3 Readaptação......................................................................................................................... 786 16.2.2.4 Reversão................................................................................................................................ 787 16.2.2.5 Reintegração......................................................................................................................... 787 16.2.2.6 Recondução.......................................................................................................................... 788 16.2.2.7 Aproveitamento................................................................................................................... 788 16.3 Posse, exercício e estágio probatório................................................................................ 788 16.3.1 Posse...................................................................................................................................... 788 16.3.2 Exercício................................................................................................................................ 789 16.3.3 Estágio probatório............................................................................................................... 790 16.4 Vacância................................................................................................................................ 791 16.4.1 Exoneração........................................................................................................................... 791 16.4.2 Demissão............................................................................................................................... 792 16.4.3 Posse em outro cargo inacumulável................................................................................. 792 16.5 Remoção e redistribuição................................................................................................... 793 16.6 Direitos e vantagens............................................................................................................ 794 16.6.1 Remuneração........................................................................................................................ 794
Livro 1.indb 20
21/03/2013 17:13:41
16.6.2 Férias..................................................................................................................................... 796 16.6.3 Licenças, afastamentos e concessões................................................................................ 797 16.7 Responsabilidade do servidor........................................................................................... 799 16.7.1 Responsabilidade civil........................................................................................................ 799 16.7.2 Responsabilidade penal...................................................................................................... 801 16.7.3 Responsabilidade administrativa...................................................................................... 802 16.7.4 Comunicação de instâncias................................................................................................ 802 16.8 Regime disciplinar e processo administrativo disciplinar............................................ 805 16.8.1 Regime disciplinar............................................................................................................... 805 16.8.2 Penalidades disciplinares: atividade vinculada.............................................................. 806 16.8.3 Autoridade competente para a aplicação das sanções disciplinares........................... 809 16.8.4 Prescrição das sanções disciplinares................................................................................. 809 16.8.5 Processo administrativo disciplinar (PAD)..................................................................... 810 16.8.5.1 Modalidades......................................................................................................................... 810 16.8.5.2 Processo disciplinar............................................................................................................. 812 Capítulo 17
Responsabilidade civil extracontratual do Estado............................. 815 17.1 Âmbito de aplicação da responsabilidade civil do Estado............................................ 815 17.2 Evolução da responsabilidade civil.................................................................................. 817 17.3 Teoria subjetiva e teoria objetiva....................................................................................... 819 17.4 Risco administrativo e risco integral: excludentes de responsabilidade civil............ 820 17.5 Responsabilidade civil do Estado no Direito brasileiro: regras básicas...................... 824 17.5.1 Pessoas de Direito Público ou de Direito Privado prestadoras de serviços públicos................................................................................................................................. 824 17.5.2 Ação de responsabilidade civil e direito de regresso..................................................... 824 17.6 Prescrição e a Fazenda Pública.......................................................................................... 827 17.6.1 Ações contra o poder público............................................................................................ 827 17.6.2 Imprescritibilidade da ação regressiva............................................................................. 829 17.7 Requisitos à responsabilização do Estado....................................................................... 830 17.7.1 Dano...................................................................................................................................... 831 17.7.2 Nexo de causalidade........................................................................................................... 833 17.7.3 Oficialidade da conduta causal......................................................................................... 835 17.8 Omissão e responsabilidade civil do Estado................................................................... 837 17.8.1 Teoria objetiva e teoria subjetiva....................................................................................... 837 17.8.2 Omissão do Estado e teoria da reserva do possível....................................................... 841 17.9 Responsabilidade civil do Estado e concessionárias de serviços públicos................. 843 17.9.1 Responsabilidade pelos danos causados aos usuários.................................................. 843 17.9.2 Responsabilidade dos prestadores de serviços públicos e terceiros não usuários dos serviços.......................................................................................................... 847 17.10 Responsabilidade civil do Estado por atos legislativos................................................. 849 17.11 Responsabilidade civil do Estado por atos judiciais...................................................... 852 Capítulo 18
Controle da Administração Pública.................................................................... 857 18.1 Controle como fundamento do Estado Democrático de Direito.................................. 857 18.2 Conceito e classificação....................................................................................................... 859 18.2.1 Controle prévio, controle sucessivo e controle corretivo.............................................. 859 18.2.2 Controle interno e controle externo.................................................................................. 861 18.2.3 Controle de mérito e controle de legalidade................................................................... 861 18.3 Controle de legalidade........................................................................................................ 863 18.3.1 Discricionariedade, interpretação e conceitos jurídicos indeterminados................... 863
Livro 1.indb 21
21/03/2013 17:13:41
18.3.2 Razoabilidade e discricionariedade.................................................................................. 867 18.3.3 Discricionariedade técnica................................................................................................. 869 18.3.4 Eficiência e discricionariedade.......................................................................................... 871 18.4 Controle administrativo..................................................................................................... 874 18.4.1 Fundamento e alcance........................................................................................................ 874 18.4.2 Supervisão ministerial: poder de tutela e de autotutela................................................ 876 18.4.3 Instrumentos do controle administrativo........................................................................ 877 18.5 Controle parlamentar direto.............................................................................................. 880 18.5.1 Controle político.................................................................................................................. 880 18.5.2 Controle financeiro.............................................................................................................. 883 18.6 Controle exercido pelo Tribunal de Contas da União.................................................... 887 18.6.1 Modelos de controle externo............................................................................................. 887 18.6.2 Composição dos Tribunais de Contas.............................................................................. 889 18.6.3 Natureza do controle exercido pelo TCU........................................................................ 892 18.6.4 Atribuições constitucionais e legais do TCU................................................................... 897 18.6.4.1 Opinativa ou consultiva..................................................................................................... 897 18.6.4.2 Fiscalizadora........................................................................................................................ 897 18.6.4.3 De julgamento de contas.................................................................................................... 898 18.6.4.4 De registro............................................................................................................................ 898 18.6.4.5 Sancionadora........................................................................................................................ 898 18.6.4.6 Corretiva............................................................................................................................... 899 18.6.5 Natureza das sanções aplicadas pelo TCU e poder disciplinar.................................... 899 18.6.6 Espécies de processo no TCU............................................................................................ 901 18.6.6.1 Processos de contas............................................................................................................. 901 18.6.6.1.1 Modalidades de contas....................................................................................................... 901 18.6.6.1.2 Julgamento das contas........................................................................................................ 904 18.6.6.1.3 Natureza das decisões proferidas pelo TCU no julgamento de contas....................... 906 18.6.6.1.4 Fiscalização e julgamento de contas dos gestores das empresas estatais................... 909 18.6.6.1.5 Competência do TCU para julgar contas e imunidade dos advogados...................... 909 18.6.6.1.6 Inelegibilidade e contas irregulares.................................................................................. 912 18.6.6.2 Processos de fiscalização.................................................................................................... 913 18.6.6.2.1 Objeto da fiscalização.......................................................................................................... 913 18.6.6.2.2 Instrumentos de fiscalização.............................................................................................. 916 18.6.6.2.3 Tramitação dos processos................................................................................................... 922 18.6.6.3 Processos sujeitos a registro............................................................................................... 924 18.6.7 Recursos contra as decisões do TCU................................................................................ 928 18.6.8 Tribunais de Contas estaduais e municipais................................................................... 929 18.7 Controle judicial.................................................................................................................. 931 18.7.1 Sistemas de controle............................................................................................................ 931 18.7.2 Limites ao controle judicial................................................................................................ 932 18.7.3 Etapas para o controle judicial da discricionariedade................................................... 933 18.7.4 Intensidade do controle judicial da atividade administrativa: teoria da reserva da Administração................................................................................................................ 934 18.7.5 Controle judicial e arbitragem........................................................................................... 937 18.7.5.1 Arbitragem e inafastabilidade da apreciação judicial.................................................... 937 18.7.5.2 Arbitragem, contratos administrativos e indisponibilidade do interesse público................................................................................................................................... 937 18.7.5.3 Arbitragem e controle de legalidade................................................................................ 941 18.7.6 Direitos subjetivos, controle judicial e esgotamento da instância administrativa...................................................................................................................... 943 18.7.7 Instrumentos de controle judicial..................................................................................... 951 18.7.7.1 Mandado de segurança...................................................................................................... 951
Livro 1.indb 22
21/03/2013 17:13:41
18.7.7.2 Habeas corpus........................................................................................................................ 957 18.7.7.3 Habeas data............................................................................................................................ 958 18.7.7.4 Mandado de injunção......................................................................................................... 960 18.7.7.5 Ação popular........................................................................................................................ 963 18.7.7.6 Ação civil pública................................................................................................................ 965 18.7.7.7 Ação de improbidade......................................................................................................... 966 18.7.7.8 Outras ações......................................................................................................................... 969 Capítulo 19
Processo administrativo.................................................................................................. 971 19.1 Processo judicial e processo administrativo.................................................................... 971 19.2 Processo e procedimento.................................................................................................... 973 19.3 Processo e forma do ato...................................................................................................... 975 19.4 Categorias de processos administrativos......................................................................... 975 19.5 Princípios do processo administrativo............................................................................. 977 19.5.1 Oficialidade.......................................................................................................................... 978 19.5.2 Gratuidade............................................................................................................................ 979 19.5.3 Ampla defesa e contraditório............................................................................................ 979 19.5.4 Recorribilidade das decisões administrativas................................................................. 979 19.5.5 Economia processual.......................................................................................................... 980 19.5.6 Formalismo moderado....................................................................................................... 981 19.5.7 Verdade material................................................................................................................. 982 19.5.8 Publicidade........................................................................................................................... 983 19.5.9 Motivação............................................................................................................................. 983 19.5.10 Lealdade e boa-fé................................................................................................................. 983 19.6 Processo da Lei nº 9.784/99................................................................................................. 983 19.6.1 Processo administrativo previsto na Lei nº 9.784/99 e outros processos administrativos.................................................................................................................... 983 19.6.2 Âmbito de aplicação da Lei nº 9.784/99............................................................................ 984 19.6.3 Direitos e deveres dos administrados.............................................................................. 985 19.6.4 Instauração e condução do processo................................................................................ 986 Referências...................................................................................................................................... 989 Índice........................................................................................................................................................
Livro 1.indb 23
21/03/2013 17:13:41
Livro 1.indb 24
21/03/2013 17:13:41
Nota ao leitor
A ideia de escrever o presente Curso de Direito Administrativo surgiu em função da necessidade do autor de apresentar respostas para inúmeras questões relacionadas ao Direito Administrativo. A elaboração do texto, que utiliza linguagem simples e de fácil compreensão, tem o propósito de tratar dos principais temas afetos a este ramo do Direito Público. Para enfrentar o desafio de escrever uma obra que aborde os mais variados temas relacionados ao exercício da atividade administrativa do Estado, o autor se vale da sua experiência como representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União e como professor da Universidade de Brasília (UnB). Esses dois traços são marcantes no texto. As questões tratadas no presente livro refletem, em primeiro lugar, a experiência do autor na atividade de controle da Administração Pública decorrente do exercício do cargo de procurador-geral do Ministério Público junto ao TCU. No desempenho da sua função, são enfrentadas questões reais relacionadas à aplicação do Direito Administrativo e são buscadas soluções para as mais variadas situações com que se deparam os gestores públicos e todos os que fazem do Direito Administrativo o instrumento de trabalho. A outra linha de atuação do autor, o magistério na Universidade de Brasília, permite que as questões sejam apresentadas de forma didática, sendo facilmente compreendidas pelo leitor. Esses dois traços na formação profissional do autor fazem com que o presente texto seja indicado tanto para os alunos de Direito, que buscam textos de fácil compreen são, quanto pelos profissionais que necessitam de soluções para questões práticas, relacionadas à aplicação do Direito Administrativo. São abordadas questões relacionadas ao regime jurídico administrativo, à organização administrativa do Estado, aos atos e aos poderes administrativos, às licitações e aos contratos administrativos, às concessões de serviço público e às parcerias público- privadas, à intervenção do Estado na propriedade, ao regime jurídico constitucional e legal dos servidores públicos, ao controle da Administração Pública, entre outros. Referência especial deve ser conferida a determinados temas, dentre os quais destacamos a organização administrativa do Estado, as licitações e os contratos administrativos, o regime jurídico dos servidores públicos e o controle da Administração Pública. É apresentada ampla jurisprudência, especialmente do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. Apenas para mencionar um exemplo, no capítulo que trata das licitações, são apresentadas aproximadamente 200 notas de rodapé, sendo praticamente todas elas referentes a decisões proferidas pelos mencionados tribunais. A ampla pesquisa de jurisprudência, que constitui um dos traços mais marcantes do presente trabalho, permite que o leitor tenha acesso à mais recente e mais importante jurisprudência nacional pertinente ao Direito Administrativo.
Livro 1.indb 25
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
26
Não se tem, é evidente, a pretensão de reformular por completo a teoria do Direito administrativo brasileiro. Propõe o autor, no entanto, o reconhecimento da Teoria Geral do Direito Administrativo, cujas normas, de estatura constitucional e fortemente influenciadas pelos direitos fundamentais, servem de parâmetro para todo o sistema administrativo brasileiro. Algumas teses defendidas pelo autor não se harmonizam com a doutrina majoritária brasileira. Isto se verifica, por exemplo, em relação ao princípio da legalidade e à necessidade de esgotamento da instância administrativa como requisito ao exercício dos mecanismos do controle judicial da Administração Pública. Em relação a essas divergências, o autor, que não tem a pretensão de ter a palavra definitiva para essas controvérsias, defende seus pontos de vista e expõe sua crítica ao pensamento dominante, mas apresenta as teses contrárias, seus fundamentos e as decisões judiciais que servem de amparo aos diferentes pontos de vista. Abre-se, assim, ao leitor a oportunidade de conhecer todas as correntes existentes sobre os diferentes temas do Direito Administrativo.
Livro 1.indb 26
21/03/2013 17:13:41
PARTE I
Regime Jurídico Administrativo e Organização Administrativa
Livro 1.indb 27
21/03/2013 17:13:41
Livro 1.indb 28
21/03/2013 17:13:41
Capítulo 1
Estado e Teoria Geral do Direito Administrativo
1.1 Do Estado Liberal ao Estado Social e cooperativo 1.1.1 Formação do Estado Formas rudimentares de administração podiam ser encontradas em organizações sociais primitivas. O chefe da tribo já realizava funções de administrador, cumulativamente com as de juiz e de legislador. Os julgamentos e as regras de comportamento social emanadas desses governantes eram, todavia, tão dispersas e fragmentárias que não permitiam o seu enquadramento como função de Estado, qualificação que não podia ser igualmente conferida ao grupo social. A rigor, o que cabia aos líderes de referidas organizações sociais era a administração de interesses pessoais — normalmente os do próprio governante —, e eventualmente da coletividade. De fato, algumas atividades — especialmente aquelas voltadas para a guerra — constituíram as primeiras manifestações organizadas das sociedades primitivas, que não bastavam, todavia, para configurar a existência do Estado. O que torna a existência desta entidade inequívoca, que constitui a sua essência, não é o exercício de atividades sociais de conteúdo administrativo. O que caracteriza o Estado é a sua organização: o Estado apresenta como traço essencial da sua existência a capacidade de atender a determinados fins por meio de unidades administrativas organizadas e dotadas de competência para o exercício dessas atividades. A existência do Estado pode ser mensurada, portanto, não pela sua função ou pelo exercício de atividades executivas, legislativas ou judiciais, mas pela forma organizada com que exerce essas mesmas atividades. Durante o longo período que se inicia nos séculos XI e XII, as forças políticas existentes na sociedade europeia eram organizadas em função de um objetivo básico: a guerra. Os chefes políticos pouco interferiam na vida das pessoas. Esse papel cabia à Igreja. A importância desempenhada pela Igreja durante a Idade Média foi tão marcante para a definição do Estado que seus efeitos atravessariam o período correspondente às monarquias absolutistas e iria explicar por que diversos países, como França, Espanha e Portugal, seguiram o modelo adotado pela Igreja Romana e se organizaram de forma
Livro 1.indb 29
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
30
tão centralizada. Deste longo período, a maior herança, que tem sobrevivido até os dias atuais em diversos Estados, é a tendência à centralização. Ao ser adotado o modelo eclesiástico, em que todo o poder provinha de Roma, o Estado central é visto como única fonte de poder e de Direito. O Estado moderno, conforme atualmente o conhecemos, formou-se a partir dos ideais defendidos pelas revoluções liberais ocorridas nos séculos XVIII e XIX. A fim de que se possa entender esse novo organismo — o Estado —, que se mostrará, mais do que qualquer outro fenômeno jurídico, político ou social, fundamental para a definição do destino de todos os povos, é necessário retroceder um pouco mais e verificar a realidade existente na Europa ao longo da Idade Média. A importância do modelo de organização adotado pela Igreja Romana na definição de diversos Estados, e dos seus respectivos regimes jurídicos, pode ser demonstrada quando se compara o modelo de Estado e de sociedade adotado na Europa continental com aquele surgido nos Estados Unidos da América. Em função da pouca influência exercida pela Igreja Romana na definição do modelo de organização da sociedade e do Estado norte-americano, evidencia-se a importância dada ao indivíduo em detrimento do Estado. O modelo de sociedade surgido nos Estados Unidos confere primazia absoluta ao indivíduo. As necessidades básicas de cada membro da sociedade, relativas ao emprego, à segurança, à saúde, à seguridade social etc. devem ser satisfeitas ou buscadas pelos próprios indivíduos, cabendo ao Estado papel secundário na satisfação desses interesses. De acordo com o modelo centralista de Estado adotado na Europa continental — e seguido pelos países latino-americanos —, ao contrário, a satisfação das necessidades da sociedade deve ser promovida pelo Estado. Pode ser demonstrada a diferença entre os dois modelos — norte-americano e europeu continental — quando se compara o sistema de aposentadoria adotado nos Estados Unidos, de capitalização, em que o trabalhador deve fazer sua poupança a fim de garantir seu sustento para a futura inatividade, com o regime de aposentadoria europeu e latino-americano, em que o Estado tem o dever de criar mecanismos jurídicos que assegurem aos trabalhadores o pagamento de seus proventos. A questão da segurança do cidadão também se presta para demonstrar as diferenças entre os sistemas: nos Estados Unidos cada cidadão tem direito constitucional de portar sua arma de modo a garantir sua segurança; nos países de tradição romanística, a segurança de cada cidadão é dever do Estado — ainda que nem sempre cumprido —, sendo, em muitos casos, vedado ao cidadão o porte de arma. Para a formação do Estado moderno é inequívoca a importância desempenhada pelas revoluções liberais. A Revolução Francesa e a independência norte-americana promoveram profundas modificações nas relações entre o Estado e o cidadão. O centro do poder e de todas as decisões políticas era o Estado. Todos os direitos eram exercidos pelo Estado, para o Estado e em nome do Estado. Nos regimes absolutistas o Estado não era concebido como instrumento ou meio para a satisfação de interesses dos cidadãos, mas como a única e legítima fonte de poder. Nesse ponto, ainda que a herança centralista de diversos Estados seja evidente, verifica-se a primeira aproximação entre o modelo norte-americano e o europeu. Os movimentos liberais, em especial a Revolução Francesa, promoveram verdadeira inversão nos papéis até então desempenhados por esses atores: os cidadãos passam
Livro 1.indb 30
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 1 ESTADO E TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO
31
a ser o centro do poder e os titulares de todos os direitos, e o Estado passa a constituir o instrumento para regular o exercício dos direitos individuais. De acordo com este novo modelo, o Estado justifica sua existência como meio para harmonizar, definir limites ou, em última instância, para permitir o exercício dos direitos dos cidadãos. A adoção desse modelo constituiu o primeiro passo para o surgimento do Estado de Direito. São dois os pressupostos do Estado de Direito: 1) existência de um ordenamento jurídico que defina as unidades estatais competentes para o exercício das diferentes atividades conferidas ao Estado; e 2) a criação de mecanismos que permitam aos particulares acionarem o Estado de modo a exigir o cumprimento do ordenamento jurídico, ainda que essa exigência tenha como destinatário o próprio Estado — fenômeno que resultará no desenvolvimento do sistema de controle judicial da Administração Pública. A estrita observância do princípio da legalidade passa a ser a principal característica do Estado de Direito. Apresentada a questão nesses termos, percebe-se a estreita relação entre o desenvolvimento do Direito Administrativo e a existência do Estado de Direito, não sendo possível admitir a existência de um sem a do outro.
1.1.2 Estado Social e cooperativo A mais importante contribuição dada pelo século XX à nova concepção de Estado se relaciona certamente à necessidade de conformação dos textos constitucionais aos direitos fundamentais. Com a incorporação dos direitos fundamentais ao ordenamento jurídico, a organização e as funções do Estado moderno não mais se resumem ao cumprimento de um ordenamento jurídico desprovido de valor ou de conteúdo. A formatação do novo Estado continua a ser definida pelo Direito, em estrita observância ao princípio da legalidade. Todavia, o ordenamento jurídico, ao estruturar o Estado, passa a ter nos direitos fundamentais não somente a sua fundamentação, mas também a sua própria razão de existir. O ordenamento jurídico disciplinador do Estado moderno, que deve agora não apenas ser de direito, mas também democrático, passa a definir as funções e os limites do Estado, bem como a organizar a sua estrutura, tendo em vista não apenas a realização e a harmonização dos direitos individuais, mas também a realização da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica. A partir, sobretudo do fim da Segunda Grande Guerra, o Estado passou a ser chamado a intervir de forma mais efetiva na sociedade e na economia. Com o surgimento do Estado Democrático e Social, que passou a desempenhar tarefas de empresário, de investidor e de prestador de serviços públicos, verificou-se o início do agigantamento estatal e uma de suas consequências foi a criação de empresas estatais incumbidas de desempenhar diversas atividades, inclusive aquelas que no modelo anterior haviam sido atribuídas a empresas privadas concessionárias de serviços públicos. No final da década de 1970 e, no Brasil, especialmente a partir do início da década de 1980, o resultado do processo verificado nos anos anteriores foi o imenso endividamento público e o agigantamento do Estado, cuja intervenção se fazia sentir em todos os setores da sociedade e da economia. O resultado foi o surgimento de um Estado grande, caro, ineficiente e fraco. A crise do Estado se tornou evidente durante a década de 1980 e demonstrou a incapacidade dos mecanismos do Estado Social de atender as demandas da população.
Livro 1.indb 31
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
32
Sem que pudessem ser abandonados os ideais do Estado Democrático e Social, novos mecanismos de intervenção estatal tiveram que ser desenvolvidos. A sociedade, diante deste processo — que se tornou conhecido como choque de eficiência —, passou a exigir respostas rápidas e eficientes do Estado. O fim do século XX mostrou a necessidade de nova evolução na concepção do Estado. O processo de globalização, os avanços tecnológicos, em especial na área das comunicações em massa, e a velocidade com que passaram surgir novas relações jurídicas ou situações nunca antes apresentadas ao Estado obrigaram-no, mais uma vez, a redefinir sua atuação. Diante do atual contexto social e econômico, a atuação do Estado não mais se restringe à prestação direta de serviços à população. O Estado atua igualmente como agente incentivador ou parceiro de entidades privadas que se dedicam ao desempenho de serviços de interesse da população. É imperioso, portanto, reconhecer a necessidade de adaptar o sistema jurídico vigente a essa nova realidade, definindo de forma mais adequada o papel dos diversos entes públicos e a forma como se relacionam com o setor privado. Esta solução certamente é mais adequada do que a simples desqualificação do Estado como instrumento realizador dos direitos fundamentais — tese que vigorou ao longo da década de 1990. Independentemente da concepção política acerca do papel do Estado, ou dos seus limites para a sua atuação, em qualquer sociedade que tenha por objetivo maior a realização da dignidade humana deve-se reconhecer a incapacidade tanto do setor público quando do setor privado, empresarial ou não, de resolverem, isoladamente, as questões básicas relacionadas à realização dos direitos fundamentais. A visão tradicional do Direito Administrativo, que reconheceu a supremacia do Estado em relação aos particulares, nos dias atuais, ainda que necessária em alguns setores — em que a edição de regulamentos gerais ou a prática de atos administrativos ainda se mostram necessárias —, é totalmente inadequada para responder a demandas de inúmeras outras situações em que o poder público é chamado a agir como parceiro do setor privado. Inconcebível aceitar o bom funcionamento de setores submetidos ao regime jurídico das concessões ou das permissões de serviço público, bem como das organizações não governamentais (ONGs) diante da visão unilateral do Estado. A delegação de serviços públicos, tais como os de telefonia, de energia elétrica, de transporte, de manutenção e conservação de estradas, e o incremento na atuação das entidades do terceiro setor, que muitas vezes buscam no Estado os recursos necessários ao desempenho das atividades de interesse social, criam relações jurídicas múltiplas entre os diversos personagens do processo (Estado, concessionárias, usuários, ONGs, órgãos de controle, mercado) e impedem que soluções unilaterais, ou de império, impostas pelo Estado realizem os interesses envolvidos, sejam eles públicos ou dos particulares. Surge a necessidade de que o Estado moderno assuma nova posição, que se poderia chamar de cooperativa. O Estado cooperativo deve dispor de instrumentos que o permitam agir de forma harmoniosa e negocial com os particulares. Deve igualmente dispor de instrumentos que assegurem a sua posição de império, cabendo ao ordenamento jurídico indicar esses instrumentos e as diferentes situações em que cada um deles se mostre mais adequado à realização dos direitos fundamentais.
Livro 1.indb 32
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 1 ESTADO E TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO
33
O moderno Direito Administrativo deve ser construído de modo a compreender a realidade atual, dotando o Estado cooperativo de instrumentos que o tornem capaz de atender às crescentes e novas demandas da sociedade.
1.2 Integração de países e o Direito Administrativo no século XXI Os processos de integração econômica e política iniciados nas últimas décadas do século XX, dos quais a criação da União Europeia é o mais importante, têm provocado grande impacto nos regimes jurídicos administrativos dos países envolvidos. A criação de entidades supranacionais importa, dentre outros relevantes aspectos, na renúncia de parcela da soberania dos diversos Estados e na redefinição dos mecanismos internos de distribuição de competência administrativa, além de impor a necessidade de adequação dos seus regimes internos aos padrões definidos no plano supranacional. As diretrizes fixadas pela União Europeia indicam como os ordenamentos jurí dicos nacionais são influenciados e, sob pena de exclusão da União, estão obrigados a se adaptar aos parâmetros supranacionais. Temas relacionados ao Direito Ambiental, ao combate à corrupção, à obrigação da adoção de mecanismos que protejam e assegurem a realização dos direitos fundamentais e dos princípios democráticos, à fixação de padrões éticos de comportamento para administradores públicos e para os particulares que se relacionam com o poder público — chamadas em alguns países de normas de bom governo —, e à definição de regras básicas em matéria de licitação e de contratação pública são apenas alguns exemplos de áreas afetadas pelos processos de integração nacionais. Evidencia-se a importância marcante dos processos de integração política, econômica e cultural, em âmbito regional e mundial, em diversas áreas do Direito, e, nesses processos, talvez mais do que em qualquer outro ramo, o Direito Administrativo é fortemente impactado. A forte influência — cultural, jurídica, econômica, tecnológica —, historicamente exercida pela Europa, provocará significativos impactos nos ordenamentos jurídicos de diversos países, ainda que não integrem a União Europeia. Convém aos operadores do Direito Administrativo nacionais manterem os olhos atentos ao processo de integração europeu — hoje o maior laboratório jurídico do planeta. O objetivo, é evidente, não deve ser a cópia das soluções ali apresentadas, mas o reconhecimento de que o novo modelo de administração pública que ali vem sendo implantado pode interessar ao Brasil.
1.3 Modelo de Estado adotado pela Constituição Federal de 1988: Estado subsidiário e cooperativo O reconhecimento da autonomia científica do Direito Administrativo, assim como a dos demais ramos do Direito Público, sobretudo a do Direito Constitucional, somente ocorreu com a necessidade de estruturação do Estado de Direito, fruto das revoluções liberais, surgido a partir dos ideais da Revolução Francesa, criado e moldado pelo princípio da legalidade e pela teoria da separação dos poderes. A definição das três funções básicas do Estado — legislativa, judicial e administrativa, ou executiva — é o principal traço definidor do Estado moderno. Busca-se nesta
Livro 1.indb 33
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
34
divisão de funções e na criação de mecanismos de controle recíprocos — checks and balances — o caminho para o Estado realizar o bem comum e os princípios democráticos. Cabe à Constituição o papel de definir a atuação de cada uma das funções estatais e como devem ser exercidos os mecanismos de controle. No modelo da separação das funções do Estado, a lei aprovada pelo Poder Legis lativo constitui o principal mecanismo de controle da função administrativa estatal. Aos administradores públicos é dado fazer tão somente o que o legislador determinar ou autorizar. A competência dos diversos agentes, órgãos ou entidades que integram a função administrativa é limitada pela lei, que se deve conformar com todos os princípios e preceitos constitucionais, expressos ou não. Ao se comparar o regime jurídico público dos dias atuais com aquele adotado nas monarquias absolutistas, percebe-se a inversão da função do Estado — em especial no que concerne à sua função de administrar — em face dos setores privados. Ao Estado absolutista reconheciam-se todas as prerrogativas. Fonte única de todo o poder político, o limite para a atuação estatal era definido tão somente pela vontade do monarca, e, no relacionamento dos particulares com o Estado, eram reconhecidos apenas os direitos que este último entendesse legítimos. Neste contexto, inconcebível identificar a existência do Direito Administrativo. Nos dias atuais, ao contrário, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, conforme dispõe a Constituição Federal (art. 1º, parágrafo único). Partindo-se dessa premissa, a relação jurídica Cidadão-Estado tem como objetivos a proteção e a preservação dos direitos e interesses do primeiro (o cidadão), e não o simples exercício de prerrogativas por parte do segundo (o Estado). Cabe ao ordenamento jurídico administrativo, desse modo, definir em que parâmetros se deve desenvolver esse relacionamento de modo a melhor realizar os direitos fundamentais. Na conformação do moderno Direito Administrativo, o limite e o fundamento para toda ação ou abstenção estatal deve ser a realização dos direitos fundamentais, que passam a constituir o verdadeiro interesse público primário. O Estado brasileiro, conforme o modelo definido pela Constituição Federal, é democrático, de direito, cooperativo e social. É democrático, em primeiro lugar, porque nascido da vontade do povo; de direito, porque se submete ao ordenamento jurídico previamente estabelecido, conforme definido na Constituição; cooperativo, porque, em inúmeras situações, necessita da participação de segmentos do setor privado para desempenhar suas atribuições; e social porque atua de modo a realizar o bem comum, visando à satisfação dos direitos relacionados à dignidade da pessoa humana — saúde, educação, cultura, segurança etc. Diante desse novo Estado, torna-se necessário redefinir os termos em que se desenvolvem as relações jurídicas entre ele e os particulares. Diante do modelo estatal definido pelos princípios constitucionais, os responsáveis pela formulação das políticas públicas devem reconhecer o caráter complementar da atuação estatal e que os princípios da reserva da lei e da livre iniciativa — este último elevado pela Constituição Federal (art. 1º, IV) à categoria de fundamento do Estado Democrático de Direito — conferem primazia às atividades privadas desenvolvidas pelos próprios indivíduos na busca pela realização das necessidades materiais da população. No cumprimento da função administrativa, o Estado deve, em primeiro lugar, identificar os segmentos ou campos de atuação em que os setores privados não são
Livro 1.indb 34
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 1 ESTADO E TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO
35
capazes de satisfazer as necessidades materiais dos particulares. Identificados esses setores, devem ser desenvolvidos mecanismos de cooperação com os particulares — e aqui desempenham papel fundamental as entidades do terceiro setor. Desenvolve-se, assim, a ideia de Estado definida pela Constituição, que deve pautar-se pela cooperação e pela subsidiariedade. A velocidade do mundo moderno faz com que surjam e se desenvolvam novas relações jurídicas e novas demandas por parte da população — a necessidade de acesso à internet pode ser apresentada como exemplo de demanda social surgida há relativamente pouco tempo. Nesse processo, surgem as seguintes questões: na repartição de tarefas entre o Estado e o setor privado, a quem cabe atender as novas demandas sociais? O princípio da reserva da lei constitui carta-branca para que o Estado, desde que se utilize de lei, possa promover todo e qualquer tipo de interferência na sociedade? As regras básicas acerca do papel do Estado e dos limites de sua atuação devem ser buscadas na Constituição Federal. No Brasil, o texto constitucional de 1988, em seu art. 1º, afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Dos fundamentos acima indicados, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a livre iniciativa são particularmente importantes para a definição das funções administrativas do Estado e dos limites da relação Estado-sociedade. Esses fundamentos reconhecem a capacidade de auto-organização da sociedade, conferem à própria sociedade a primazia na busca das soluções para as suas demandas materiais e jurídicas e tornam a interferência estatal subsidiária em relação à atuação dos agentes privados. Em função desse caráter suplementar da atuação estatal, decorrente, sobretudo, da adoção pela Constituição Federal do modelo da livre iniciativa, a atuação estatal direta na área social — com vista ao atendimento de novas e de antigas demandas sociais (acesso à internet, proteção de consumidores, assistência a pessoas idosas ou portadoras de deficiências, treinamento e aperfeiçoamento de trabalhadores, acompanhamento de gestantes etc.) — deve ocorrer somente quando não houver parceiros privados interessados em desenvolver atividades tendentes à realização desses interesses. A atuação do Estado Social é subsidiária, porque se a própria sociedade for capaz de obter satisfação para suas necessidades, por seus próprios meios, não se justifica a atuação ou a intervenção pública direta. A intervenção direta do Estado deve ser reclamada somente quando: 1) a sociedade não for capaz de atender, por seus próprios meios, essas novas demandas sociais; e 2) não houver na sociedade interessados em desenvolver parcerias com o Estado que permitam o atendimento dessas necessidades. É importante observar que na eventualidade de a sociedade não ser capaz de atender às demandas sociais da população — principalmente no que se refere às parcelas mais carentes da população —, ou de não haver na sociedade interessados em desenvolver mecanismos de cooperação com o Estado, este tem o dever de agir.
Livro 1.indb 35
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
36
A atuação do Estado deve voltar-se, portanto, em primeiro lugar, para a identificação das demandas sociais. Em segundo lugar, para a avaliação da capacidade da própria sociedade de satisfazer suas carências. Caso seja demonstrada a incapacidade da sociedade de, por seus próprios meios, promover o atendimento das suas necessidades, deve o Estado procurar cooperar, incentivar ou mediar com os agentes privados interessados na satisfação das necessidades da população. Somente quando não houver interesse por parte dos agentes privados (empresas ou terceiro setor) de atuar em determinado segmento social, deve o Estado ser chamado a agir e, nesta hipótese, está ele obrigado a agir. Diante da impossibilidade de autorregulação da sociedade, o Estado está obrigado, em face da própria concepção de que ele é democrático e de direito, a desenvolver mecanismos legais ou regulamentares que permitam e legitimem a sua atuação, bem como fixem limites para esta atuação. O caráter subsidiário da atuação estatal deve mostrar-se presente não apenas no exercício da sua função administrativa, mas também na função legislativa. Tomemos a seguinte situação: diante do diagnóstico de que o feto sofre de anencefalia, o que resulta em nenhuma expectativa de vida fora do útero materno, pode a gestante optar por manter o feto tão somente com vista à doação dos seus órgãos? Não nos interessa, aqui, a resposta a esta pergunta. Interessa-nos saber onde deve a sociedade, ou o Poder Judiciário, caso seja chamado a intervir, buscar a solução jurídica para tal problema. O Estado moderno não pode querer apresentar soluções prévias para todas as possíveis dúvidas ou demandas existentes — ou ainda por surgir — por meio de lei. O excesso legislativo e a perda de abstração ou de generalidade das leis — apontadas como as principais causas da crise do Direito — apenas contribuem para a ineficiência e baixa racionalidade da sociedade moderna, que reclama respostas rápidas, respostas que as leis nem sempre são capazes de dar. Deve-se igualmente reservar à capacidade de autorregulação da própria sociedade a primazia na apresentação das soluções jurídicas.
1.4 Teoria Geral do Direito Administrativo A vinculação da Administração Pública aos direitos fundamentais e aos princípios da legalidade e da tutela judicial torna inexorável a aproximação entre o Direito Administrativo e o Direito Constitucional. O núcleo do Direito Administrativo é composto por normas de estatura constitucional que definem o exercício da atividade administrativa do Estado. Assim, dentre outros importantes aspectos, integram o Direito Administrativo as normas constitucionais pertinentes à organização administrativa do Estado, aos princípios gerais da Administração Pública, aos principais mecanismos de intervenção do Estado na economia e na propriedade privada, às normas gerais pertinentes às licitações e aos contratos celebrados pelo poder público e aos servidores públicos, apenas para citar alguns exemplos. Este fenômeno cria extensa zona de interface entre o Direito Administrativo e o Direito Constitucional e torna descabidas as tentativas de definir limites estritos entre esses dois ramos do Direito Público. A aproximação do Direito Constitucional não põe em risco a autonomia do Direito Administrativo. É este que permite a aplicação das normas constitucionais voltadas para a consecução da função administrativa do Estado. Neste sentido, pode-se enxergar a Teoria Geral do Direito Administrativo como o Direito Constitucional aplicado ou concretizado.
Livro 1.indb 36
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 1 ESTADO E TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO
37
A Teoria Geral do Direito Administrativo, de estatura constitucional, serve de parâmetro para a elaboração de respostas para importantes questionamentos acerca dos limites para a intervenção do Estado na sociedade. Nesse sentido, qual a razão de ser regulamentado o exercício de determinada profissão, por exemplo? Está o Estado legitimado, por meio de lei, a promover qualquer intervenção na esfera privada dos cidadãos? A regra contida no art. 170, parágrafo único, da Constituição Federal, que assegura “a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”, permite ao Estado promover, desde que observe a exigência de lei, qualquer intervenção no exercício de atividades econômicas? Deve-se examinar, inicialmente, a necessidade de que qualquer intervenção estatal na esfera das liberdades individuais seja justificada em função de sua essencialidade, no sentido de que qualquer restrição de direito ou de liberdade individual deve ser justificada em função da realização de valor jurídico maior. Desse modo, qualquer intervenção estatal no âmbito de liberdade dos particulares necessita de justificação em função da própria realização dos direitos fundamentais. A intervenção do Estado na regulação de profissões na área da saúde, por exemplo, justifica-se em função da natureza essencial dos serviços prestados. Em outras palavras, há benefícios evidentes para a coletividade quando o exercício dessa atividade privada é objeto de intervenção pública e de regulação pelo Estado. Sob o mesmo pretexto, poderia ser considerada legítima a intervenção estatal na regulação das atividades dos profissionais da imprensa? Como justificar essa intervenção sob a ótica dos direitos fundamentais, sobretudo quando outros valores, como a liberdade de imprensa e de expressão, sofrerão restrições? Toda atuação do Estado, sobretudo quando interfere e restringe a liberdade dos particulares (a regulamentação de atividades profissionais pode ser mencionada como exemplo desse tipo de intervenção pública), somente se justifica se ampliar, a partir de um juízo de ponderação, o âmbito e o alcance dos direitos fundamentais. Ou seja, toda restrição de direitos ou de liberdades imposta pelo Estado à sociedade deve ser justificada e compensada — no sentido de que a restrição de determinados direitos permite a realização de outros, ainda que de natureza diversa, que gerem benefícios sociais e que compensem as restrições impostas pelo poder público. Reconhecer que os direitos fundamentais integram e impregnam a Teoria Geral do Direito Administrativo importa, efetivamente, na imposição de limites a esse tipo de intervenção estatal, que deve ser justificada do ponto de vista da sua necessidade e da sua intensidade (ou razoabilidade). Deve-se verificar os eventuais benefícios para a sociedade com a intervenção do Estado que importe em restrição de direitos, ou em que medida a imposição de sacrifícios às liberdades e aos direitos individuais encontra respostas claras no ordenamento jurídico — afinal, o Estado existe para realizar direitos dos cidadãos, e não para restringi-los. Para a proteção dos particulares contra os excessos do Estado, no exercício do poder de regulação das atividades privadas, a Teoria Geral do Direito Administrativo deve assegurar mecanismos de defesa contra a atuação estatal abusiva. É evidente que nem toda intervenção estatal importa em restrição de direitos individuais ou limita o exercício de direitos fundamentais. Em inúmeros setores da atuação estatal, principalmente na área social, em áreas sensíveis como saúde, educação,
Livro 1.indb 37
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
38
cultura ou preservação do meio ambiente, a crítica é feita à omissão do Estado, e não ao excesso de intervenção pública. A compreensão da existência da Teoria Geral do Direito Administrativo é de fundamental importância não apenas porque define os limites para a intervenção do Estado na esfera privada, mas igualmente porque impõe ao Estado o dever de agir de modo a corrigir a falta ou a omissão na prestação de serviços à população. A construção do novo Direito Administrativo pressupõe a identificação do núcleo desse ramo do Direito Público, que cuida dos princípios gerais da Administração Pública, da organização administrativa, do processo administrativo, dos atos e poderes administrativos e das atividades administrativas. Desse núcleo jurídico de estatura constitucional, surge a Teoria Geral do Direito Administrativo. A identificação da Teoria Geral do Direito Administrativo, de estatura constitucional, importa em que os mecanismos de atuação dos outros ramos do Direito Público surgidos do Direito Administrativo — como os Direitos Ambiental, Econômico e Tributário, por exemplo — devam igualmente buscar perfeita adequação com o sistema. Beneficia-se da existência do sistema de Direito Administrativo não apenas a Administração Pública, que passa a dispor de regras uniformes de atuação, o que lhe confere maior eficiência e racionalidade, mas principalmente o cidadão que encontrará na Teoria Geral do Direito Administrativo o principal parâmetro para a sua segurança jurídica.
Livro 1.indb 38
21/03/2013 17:13:41
Capítulo 2
Atividade administrativa e Direito Administrativo
2.1 Funções estatais O primeiro aspecto a ser examinado na divisão das funções do Estado diz respeito ao fato de que, em muitas situações, a definição da competência para a prática de determinado ato, no sentido de saber se ele deve ser praticado por órgão legislativo, judiciário ou executivo, passa por mero acaso ou vontade do Direito Positivo. O instituto da adoção pode ser utilizado como exemplo dessa disponibilidade de vontade ou casuísmo do legislador. Teoricamente, a competência para a prática do ato por meio do qual é formalizada a adoção poderia ter sido atribuída indistintamente a órgão executivo ou judicial, ou mesmo poderia ter sido dispensado qualquer formalismo, hipótese em que poderia ter sido reconhecida como válida a adoção por mera disposição dos interessados. O Código Civil de 2002, em seu art. 1.623, determina que a adoção obedecerá a processo judicial e, na eventualidade de o adotado ser maior de 18 anos, dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva. Vê-se que a não aplicação das regras do Direito Administrativo a referido ato não decorre da sua natureza, mas da vontade do legislador.
2.1.1 Ato administrativo em sentido amplo A primeira dificuldade a ser enfrentada na busca pela definição dos atos a serem regidos pelo Direito Administrativo é de natureza terminológica. Historicamente, o ato administrativo tem sido apresentado como a manifestação unilateral de vontade produzida pela Administração Pública tendente à produção de efeitos jurídicos, independentemente da concordância ou anuência do administrado. A importância conferida às manifestações unilaterais de vontade da Administração Pública pode ser atribuída a razões históricas haja vista ser esta a forma histórica mais comum de o Estado exercer suas funções administrativas. As atividades materiais do Estado podem ser divididas, conforme examinaremos adiante (capítulos 10, 11 e 12) em três grandes grupos: ordenadora de atividades privadas, prestacional e de fomento. Se na ordenação do exercício das atividades privadas a
Livro 1.indb 39
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
40
forma básica do Estado agir continua a ser por meio de atos unilaterais (autorizações, licenças etc.), o mesmo não ocorre no desempenho das outras atividades. Na prestação de serviços públicos, a teoria dos atos administrativos, conforme historicamente apresentada, é quase de nenhuma utilidade. Como aplicar a visão de que o Estado atua por meio de atos unilaterais às concessões de serviço público, por exemplo? Em relação às atividades estatais de fomento, o conceito histórico de ato administrativo é de serventia ainda menor. Essa forma de atuação do Estado depende sempre do consentimento dos administrados destinatários dessas atividades. Faz-se necessário rever o conceito histórico do ato administrativo de modo a incluir em seu âmbito essas outras formas de atuação do Estado, que tanto em função do volume de atos praticados, como do enquadramento jurídico, não são mais respondidas pela teoria clássica do ato administrativo. No presente capítulo, utilizaremos a expressão ato administrativo para designar toda e qualquer manifestação, unilateral ou não, do Estado no exercício da sua função executiva (ou administrativa). Não nos preocuparemos, ao menos por enquanto, com aspectos conceituais do ato administrativo — tarefa a ser enfrentada no Capítulo 5, destinado especificamente ao estudo da teoria do ato administrativo. No presente capítulo, o ato administrativo será apenas descrito, e nesta tarefa ele será apresentado em sentido amplo, compreendendo toda e qualquer forma de agir da Administração Pública. Esta abordagem nos permite utilizar o termo ato administrativo para indicar o exercício de todas as atividades da Administração Pública (ordenadora, prestacional e de fomento), incluindo, por exemplo, convênios ou contratos celebrados pelo poder público.
2.1.2 Jurisdição e administração Exame mais detalhado, e desprovido de preconceitos, quanto ao exercício das atividades administrativas ou judiciais, leva à conclusão de que jurisdição e administração não são atividades de naturezas tão distintas. Acerca da jurisdição, J. J. Gomes Canotilho a ela se refere como “actos públicos concretamente aplicativos do direito”.1 Entendida nesse sentido, como a aplicação do Direito a situações concretas por meio de instrumentos estatais impositivos, verifica-se que tanto a Administração quanto o Judiciário se utilizam da jurisdição no desempenho das suas funções, que o fazem por meio de processos que observam os princípios constitucionais básicos do contraditório, da ampla defesa, da motivação, dentre outros, e que, tanto no exercício da função administrativa quanto judicial, o Estado está autorizado pelo direito a se utilizar do exercício do poder de polícia para dar executoriedade à decisão proferida. É certo que o processo administrativo e o judicial não se confundem. A possibilidade de a Administração Pública agir de ofício — na instauração, na condução e na revisão de processos — constitui particularidade normalmente estranha ao processo judicial — ainda que em algumas oportunidades verificadas no processo penal a atuação de ofício do juiz não seja estranha. Não há como negar que decisões proferidas em determinados processos administrativos, como aqueles conduzidos no âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU)
1
CANOTILHO. Direito constitucional, p. 1000.
Livro 1.indb 40
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
41
ou do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), por exemplo, possuem tal grau de similaridade com as decisões proferidas pelos juízes que levaram o Min. Sepúlveda Pertence a referir-se ao processo do TCU como de colorido quase jurisdicional (MS nº 23.550-DF). A rigor, o TCU, que não integra o Poder Judiciário, não conduz processo quase jurisdicional. Ele exerce jurisdição. É a própria Constituição Federal que dispõe nesse sentido (CF, art. 73, caput: “O Tribunal de Contas da União (...) tem sede no Distrito Federal, quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional”).2 Ao proferir suas decisões, o TCU o faz no âmbito da sua jurisdição. Vale-se, todavia, de normas de Direito Constitucional e Administrativo. O CPC somente é aplicado subsidiariamente nos processos do TCU, conforme se depreende do art. 172, parágrafo único, do RI/TCU e da Súmula nº 103 (“Na falta de normas legais regimentais específicas, aplicam-se, analógica e subsidiariamente, no que couber, a juízo do Tribunal de Contas da União, as disposições do Código de Processo Civil”). A restrição do exercício da jurisdição aos órgãos judiciais decorre mais de razões históricas e dogmáticas, que viam nos juízes os únicos operadores do Direito, do que de tese jurídica fundamentada e estruturada. Tradicionalmente, dizia-se que o administrador atua nos limites da lei para realizar interesse público, ao passo que o papel precípuo do juiz seria o de aplicar o Direito ao caso concreto. Não há necessidade de exame muito aprofundado para se perceber que essas afirmações não se sustentam. Acaso ao juiz é dado — em seu processo de aplicação do Direito — agir fora deste, além dos limites da norma jurídica em exame? Ou, ao contrário, no processo conduzido pelo juiz de aplicação do Direito, pode ele ferir o interesse público? Em relação ao administrador, ao contrário, há como defender que ele adota soluções para casos concretos sem aplicar o Direito? Tanto o juiz quanto o administrador público atuam nos limites do Direito e com vista à realização do interesse público. Não se busca equiparar a decisão judicial àquela proferida em processo administrativo. A distinção entre essas decisões não reside, todavia, na natureza dos atos — no sentido de que uma é ato de aplicação do Direito e a outra é ato de execução do Direito. As diferenças entre uma decisão e outra decorrem do tratamento conferido pelo Direito Positivo a uma e a outra.
Sobre o exercício da atuação do TCU, vale transcrever parte do voto proferido pelo Min. Sepúlveda Pertence no julgamento do Pet nº 3.606-AgR/DF (Informativo STF, n. 441): “Vale recordar a lição do saudoso Victor Nunes Leal sobre o papel do Tribunal de Contas da União e a sua relação com a Administração Pública: “(...) Cumpre notar, porém, que a doutrina mais segura, baseando-se na natureza de sua principal atribuição, não o considera integrante do aparelhamento administrativo em sentido estrito: coloca-o acima da administração propriamente dita, pela ação fiscalizadora que sobre ela exerce. (...) Nas palavras de Francisco Campos, ‘(...) as funções de controle exercidas pelo Tribunal de Contas, ele, as exerce em nome, por autoridade e com a sanção do Parlamento. São, conseguintemente, pela sua natureza e seus efeitos, funções congressionais ou parlamentares. Não é o seu controle um controle administrativo, mas constitucional’. ‘O que torna ainda mais manifesta — escreve Guimarães Menegale — a natureza parlamentar ou congressional das funções do Tribunal de Contas é o fato de que a lei o coloca em relação direta com o Congresso, cominando-lhe a obrigação de a ele referir imediatamente os conflitos ocorridos entre o Tribunal e o Executivo’. O Tribunal de Contas — diz Castro Nunes — ‘não é uma jurisdição administrativa, senão em certo sentido, sem confusão possível, entretanto, com as instâncias administrativas que funcionam como órgãos subordinados do Poder Executivo (...)’”. Vê-se dos esclarecimentos do preclaro mestre — amparado em pronunciamentos de juristas de escol — que a atuação do Tribunal de Contas da União no exercício da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial das entidades administrativas não se confunde com aquela atividade fiscalizatória realizada pelo próprio órgão administrativo, uma vez que esta atribuição decorre do controle interno ínsito a cada Poder e aquela, do controle externo a cargo do Congresso Nacional (art. 70 da Constituição Federal)”.
2
Livro 1.indb 41
21/03/2013 17:13:41
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
42
Em primeiro lugar, deve-se dar destaque à inafastabilidade da atuação judicial — princípio básico do Estado Democrático de Direito. Em nome deste princípio, as decisões administrativas devem sujeitar-se ao devido controle judicial, não sendo possível arguir-se o instituto da coisa julgada administrativa perante o Poder Judiciário. Nesse sentido, distingue-se a decisão administrativa da judicial na medida em que a primeira pode ser revista pela própria Administração, por meio do seu poder de autotutela e pelo Poder Judiciário, ao passo que a decisão judicial somente pode ser revista pelo próprio Poder Judiciário. Em segundo lugar, não obstante ambas as decisões disponham do poder de polícia para a sua executoriedade, há limites à atuação administrativa. Ao julgar o Mandado de Segurança nº 24.182-DF, Rel. Min. Maurício Correia, proposto por servidor da Câmara dos Deputados contra este órgão legislativo, decidiu o STF que, não obstante demonstrada a responsabilidade do servidor que deu causa ao prejuízo à Administração Pública, não poderia a Câmara dos Deputados, sem o consentimento do servidor, promover a indenização do prejuízo por meio de processo administrativo que resultaria em desconto em contracheque, sendo necessária a propositura de ação judicial. Observa-se que a jurisprudência do STF reconhece a existência de limites ao poder da Administração Pública de dar executoriedade a seus próprios atos. De forma aparentemente contraditória, o mesmo STF, ao julgar o MS nº 24.544-DF, indeferiu pedido de impetrante contra ato emanado do Tribunal de Contas da União que determinara à Câmara dos Deputados o desconto da dívida na remuneração do responsável, sendo dispensável a sua manifestação de vontade, haja vista a autorização emanada do TCU ter decorrido de processo de tomada de contas especial no qual foi observado o direito de ampla defesa, bem como cumprida a exigência de notificação prévia ao impetrante do desconto, de acordo com o art. 46 da Lei nº 8.112/90. Ao considerar legítimo o desconto em folha promovido pela Câmara dos Deputados decorrente de processo conduzido pelo TCU, e ilegítimo o mesmo desconto quando oriundo de processo administrativo conduzido no âmbito da Câmara dos Deputados,3 o STF deixa inequívoco o seu entendimento acerca da existência de limites para a atuação administrativa do Estado. Não define precisamente, todavia, esses limites, questão ainda em aberto em nosso ordenamento jurídico. A atuação administrativa se distingue da judicial, em terceiro lugar, por força da impossibilidade de atuação de ofício dos juízes, que dependem de provocação, limitação não aplicável ao administrador público.4 Argui-se ainda a imparcialidade do Judiciário, assegurada pela relação tripartite do processo judicial, distintamente do que se verifica no processo administrativo, em que a Administração Pública atua como parte e como “juiz”, como distinção entre a atividade administrativa e a judiciária. Efetivamente, há juízes que condenam o Estado na vã ilusão ou no afã de condenarem os governantes ou administradores públicos, sem saber que, ao condenar o Estado, condenam, em verdade, toda a população. As unidades
Prevalece no Superior Tribunal de Justiça, no entanto, “a corrente segundo a qual, de fato, é possível à Administração Pública efetuar o desconto no contracheque dos servidores de valores indevidamente pagos. Tal procedimento encontra-se condicionado à ciência do interessado, oportunizando-lhe a observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório, em prévio procedimento administrativo, ou precedido de autorização do servidor público” (REsp nº 1.239.362/SC, 2ª Turma. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. DJe, 15 abr. 2011). 4 Exceções à impossibilidade da atuação de ofício dos juízes: no âmbito civil (prescrição e decadência) e no penal (habeas corpus, art. 654, §2º, CPP), em certas circunstâncias. 3
Livro 1.indb 42
21/03/2013 17:13:41
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
43
administrativas e judiciais são meros órgãos destinados à execução das funções estatais, conforme definidas pelo ordenamento jurídico. Tanto o juiz quanto o administrador devem, no exercício das suas atribuições, aplicar o Direito com imparcialidade e por meio de decisões fundamentadas e passíveis de questionamento. Não se pode esperar que as decisões dos juízes sejam melhores, ou mais justas, simplesmente porque proferidas por juízes. No exercício da sua atividade de controle da Administração Pública, os juízes desempenham papel essencial para a realização do princípio do Estado Democrático de Direito, daí o ordenamento jurídico positivo ter-lhes assegurado as garantias da inamovibilidade, da vitaliciedade e da irredutibilidade de subsídios (CF, art. 95, caput e incisos I a III), garantias que não beneficiam os administradores públicos, muitos deles sujeitos a exonerações de ofício. A rigor, a maior garantia conferida pelo ordenamento jurídico aos magistrados não reside naquelas indicadas pelo art. 95 da Constituição Federal, mas na inexistência de hierarquia imposta aos juízes no exercício da atividade jurisdicional.5
Informativo n. 99 Título: Conflito de Competência: Inexistência Artigo: Inexiste conflito de competência entre o STJ e os Tribunais Regionais Federais, uma vez que este incidente pressupõe decisões proferidas por órgãos entre os quais não haja hierarquia jurisdicional. Com esse entendimento, o Tribunal não conheceu de conflito negativo de competência entre o TRF da 1ª Região e o STJ tendo em vista que as decisões daquele são de competência recursal deste. Tratava-se, na espécie, de inquérito instaurado perante o TRF que, entendendo haver elementos que atraíam a competência do STJ para o processamento e julgamento do feito, remetera os autos ao STJ que, por sua vez, devolvera-os. Precedentes citados: CC 6.996-RS (RTJ 143/543); CC 6.997-PR (RTJ 143/547); CC 7.002-MG (RTJ 143/550). CC 6.990-DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, 12.2.1998. Informativo n. 154 Título: Habeas Corpus: Não Cabimento Artigo: Considerando tratar-se de uma sucessividade de pedidos de medida liminar em habeas corpus sem que tenha havido o julgamento do mérito destas impetrações. No caso, requereu-se inicialmente medida liminar em habeas corpus impetrado perante o TRF da 4ª Região em que se pretende que os pacientes aguardem soltos o julgamentos dos recursos especial e extraordinários interpostos, cujo pedido cautelar foi indeferido pelo relator e, contra esse despacho de indeferimento, foi impetrado novo habeas corpus perante o STJ em que se pretendia a concessão de liminar em substituição do despacho denegatório atacado, a Turma não conheceu de habeas corpus originário contra o despacho do relator de habeas corpus impetrado perante o STJ que indeferira a medida cautelar, já que o que se pretende é a concessão de liminar per saltum, substitutiva de duas denegações sucessivas por tribunais inferiores, o que implicaria a ofensa aos princípios processuais da hierarquia dos graus de jurisdição e da competência. Precedente citado: HC 76.347-MS (DJU, 08 maio 1998). HC 79.238-RS, Rel. Min. Moreira Alves, 22.6.1999. Informativo n. 34 Título: Cabimento de Habeas Corpus Artigo: Se a pretensão a determinado tratamento penal já foi examinada e indeferida pelo STF em julgamento de habeas corpus, a circunstância de o STJ haver decidido de modo mais favorável em relação a outro co-réu não confere ao paciente daquele HC o direito à extensão previsto no art. 580 do CPP [“No caso de concurso de agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros.”]. Não pode o STF ficar vinculado a decisão proferida por tribunal de menor hierarquia. Habeas corpus não conhecido. HC 73.886-SP, Rel. Min. Sydney Sanches, 4.6.1996. Informativo n. 178 Título: Impetração Sucessiva de Habeas Corpus Artigo: Considerando tratar-se de uma sucessividade de pedidos de medida liminar em habeas corpus sem que tenha havido o julgamento do mérito destas impetrações — no caso, requereu-se inicialmente medida liminar em habeas corpus impetrado perante o Tribunal de Justiça do Estado do Amapá contra a manutenção da prisão do paciente decretada na sentença de pronúncia, cujo pedido cautelar foi indeferido pelo relator e, contra esse despacho de indeferimento, foi impetrado novo habeas corpus perante o STJ em que se pretendia a concessão de liminar em substituição do despacho denegatório atacado para que fosse o paciente posto em liberdade —, a Turma, por maioria, não conheceu de habeas corpus originário contra o despacho do relator de habeas corpus impetrado perante o STJ que indeferira a medida cautelar, já que o que se pretende é a concessão de liminar substitutiva de duas denegações sucessivas por tribunais inferiores, o que implicaria a ofensa aos princípios 5
Livro 1.indb 43
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
44
No Poder Executivo, à exceção dos respectivos chefes de Poder em cada esfera de governo, todos os demais administradores se sujeitam, de algum modo, a diferentes mecanismos de controle político ou hierárquico e, nessa qualidade, podem ser obrigados a adotar soluções em função de ordem recebida da autoridade superior, e não por convicção própria. No Poder Judiciário, ainda que seja inegável a existência de hierarquia nas atividades meio — não é o juiz que define suas férias, mas o presidente de seu Tribunal, por exemplo —, no exercício da atividade de julgar, não se submete o juiz a qualquer tipo de relação hierarquizada. Daí a importância de que todos os atos da Administração Pública possam ser controlados pelo Poder Judiciário. Assegura-se, desse modo, que a palavra final acerca da legalidade, da adequação ao ordenamento jurídico das diversas atividades administrativas seja proferida por autoridade isenta, não obstante ser inegável que os administradores apliquem o direito e exerçam jurisdição administrativa. De modo inverso, não há igualmente como negar que os tribunais judiciários praticam atos administrativos, o que se verifica, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal decide, nos termos do seu regimento, recurso de servidor contra ato do presidente do Tribunal. O ato praticado pelo Poder Judiciário terá sua natureza judicial, desse modo, não apenas por ter sido praticado por juiz ou por tribunal judiciário, mas por ter sido praticado por estes no exercício da sua atividade fim, e desde que proferido a partir de normas de Direito Processual Civil e Penal. A definição da natureza dos atos praticados pelo Poder Judiciário, como judiciais ou administrativos, é importante porque somente os primeiros podem-se beneficiar da autoridade da coisa julgada judicial, ao passo que os segundos podem ser controlados, inclusive, por Tribunal de Contas.
2.1.3 Decisões proferidas pelos Tribunais de Contas Em relação aos atos praticados por Tribunais de Contas, não obstante os ministros ou conselheiros que compõem estas Cortes gozarem das garantias e prerrogativas dos magistrados (CF, art. 73, §3º), seus atos têm natureza administrativa. Esta conclusão decorre de dois fatos: 1) não integram os Tribunais de Contas o Poder Judiciário; e 2) as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas regem-se por normas de Direito Administrativo e Constitucional.
Livro 1.indb 44
processuais da hierarquia dos graus de jurisdição e da competência dos Tribunais. Vencido o Min. Marco Aurélio, que conhecia do habeas corpus. Precedente citado: HC 79.238 (DJU, 06 ago. 1999). HC 79.775-AP, Rel. Maurício Corrêa, 15.2.2000. Informativo n. 180 Título: Conflito de Competência: Inexistência Artigo: Inexiste conflito de competência entre o STJ e os Tribunais dos Estados, uma vez que este incidente pressupõe decisões proferidas por órgãos entre os quais não haja hierarquia jurisdicional. Com esse entendimento, o Tribunal, resolvendo questão de ordem apresentada pelo Min. Sepúlveda Pertence, relator, não conheceu de conflito de competência entre o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão e o STJ, tendo em vista que as decisões daquele Tribunal são de competência recursal deste. Trata-se de conflito de competência em que se alegava que o STJ, ao deferir liminar para cassar os efeitos das decisões do Tribunal de Justiça do Maranhão em agravo de instrumento e em ação cautelar inominada, teria usurpado a competência do mencionado Tribunal de Justiça. Vencido o Min. Marco Aurélio, que entendia configurado, na espécie, o conflito de jurisdição suscitado pelo requerente. Precedentes citados: CJ 6978-DF (RTJ 136/583), CC 6.996-RS (RTJ 143/543); CC 6.997-PR (RTJ 143/547); CC 7.002-MG (RTJ 143/550). CC (QO) 7094-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 9.3.2000.
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
45
Deve-se reconhecer que a estatura constitucional das decisões proferidas pelas Cortes de Contas — único título cuja natureza executiva decorre de dispositivo constitucional expresso (CF, art. 71, §3º) — impossibilita o seu enquadramento como meros atos administrativos. Assim sendo, ainda que sujeitas ao controle judicial, as decisões dos Tribunais de Contas, especialmente aquelas que julguem contas de administradores públicos e daqueles que derem causa a prejuízo ao erário (CF, art. 71, II), justificam a adoção de controle menos intenso por parte do Poder Judiciário, devendo ser promovida a sua anulação somente em casos de aplicação absurda do Direito ou por falhas formais do processo, de que seria exemplo a não observância de contraditório ou de ampla defesa. Admitir que as matérias de fato ou de direito examinadas pelos Tribunais de Contas possam ser completamente reexaminadas, em todos os seus aspectos, pelo Poder Judiciário, além de importar em absoluta quebra da racionalidade do sistema — afinal, qual a utilidade desses Tribunais se tudo o que eles decidirem puder ser revisto pelo Poder Judiciário? —, transferiria para o Judiciário a competência para julgar contas dos gestores públicos, competência definida na Constituição Federal como exclusiva dos Tribunais de Contas. A constatação de que as decisões proferidas pelos Tribunais de Contas, não obstante sua natureza administrativa, encontram-se em patamar jurídico mais elevado que os demais atos administrativos foi feita pelo próprio STF no julgamento dos MS nº 24.182-DF e nº 24.544-DF (já mencionados). Neste último julgado, o STF considerou legítima providência determinada pelo TCU — com vista ao desconto em folha de dano causado ao erário pelo servidor — prerrogativa que havia sido considerada ilegítima quando adotada pela Administração Pública. O STF reconheceu, desse modo, executoriedade à decisão do TCU em razão das particularidades presentes na natureza do processo conduzido no âmbito deste Tribunal, processo de colorido quase jurisdicional, na feliz expressão de Sepúlveda Pertence (MS nº 23.550-DF). A discussão acerca da natureza das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas não é nova em nosso ordenamento constitucional. Ainda sob a égide da Constituição do Estado Novo, de 1937, apreciou o STF a Apelação Cível nº 8.442, em julgamento encerrado na sessão de 3.7.1944. Disputava-se direito ao montepio militar instituído por general falecido. Litigavam, de um lado, a viúva do militar (apelante) e, de outro, a irmã do general (apelada). Também apelante, ao lado da viúva, a União. Na instância a quo, a irmã do general movera ação contra a União questionando a anulação do ato que, inicialmente, lhe concedera o montepio. A irmã alegou que vinha recebendo o montepio deixado por seu irmão militar desde 1934 e que, em 1941 — sete anos depois, portanto —, a Administração, atendendo ao pleito da viúva, anulara o ato pelo qual o montepio havia sido deferido a ela (irmã) e concedera o benefício à viúva. O caso, decidido pelo Supremo em 1944, é de relevância inquestionável até os dias de hoje. Vejamos a solução adotada pelo Supremo Tribunal Federal em 1944. Travou-se frutífero debate em relação à possibilidade de revisão pela própria Administração do ato administrativo já apreciado pelo Tribunal de Contas e a possibilidade de o próprio Tribunal rever, provocado pela Administração, sua decisão anterior. O Ministro Castro Nunes (Revisor) argumentou nos seguintes termos: Sr. Presidente, fiquei, apenas num aspecto preliminar, que, a meu ver, é tão decisivo no caso que me dispensei de fundamentar o meu voto, abordando outros aspectos. A espécie vem a ser a seguinte: perante as autoridades uma das partes se habilitou à pensão e estava no gozo da mesma quando o Tesouro lha cancelou, porque a outra parte apresentara
Livro 1.indb 45
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
46
documento mais hábil. Ora, a que estava no gozo desse direito, como pensionista, sê-lo-ia em virtude de decisão do Tribunal de Contas, que é a jurisdição constitucional e legal competente para se pronunciar sobre título declaratório de pensão. Assim, já depois disso, não poderia mais o Tesouro insurgir-se contra a decisão do Tribunal ou desconhecê-la, para atribuir o direito a quem quer que fosse, mesmo o outro parente, ainda que este outro parente tivesse melhor direito. Essa subordinação decorre da hierarquia mesma do Tribunal de Contas, no mecanismo, porque ele não é órgão administrativo; é órgão estabelecido pela Constituição, de permeio entre os poderes executivo e legislador — e é essa a teoria do instituto — e destinado a controlar a execução do orçamento. As autoridades administrativas estão subordinadas às decisões do Tribunal de Contas. Se ele defere a um dado parente a pensão, esta decisão poderá não ser conclusiva para o Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente, para a administração. (grifos nossos)
Quais os fundamentos da tese sustentada por Castro Nunes? Fundamentou-se no fato de que a Administração subordina-se ao Tribunal de Contas, não podendo descumprir suas decisões. Tal subordinação decorre da posição constitucional do Tribunal, que não integra a própria Administração, mas é o seu fiscal. Se a Administração não concorda com o que decidiu o Tribunal de Contas, pode recorrer ao Poder Judiciário, mas não pode pura e simplesmente desconhecer o que lhe foi determinado (“Essa subor dinação decorre da hierarquia mesma do Tribunal de Contas, no mecanismo, porque ele não é órgão administrativo; é órgão estabelecido pela Constituição, de permeio entre os poderes executivo e legislador — e é essa a teoria do instituto — e destinado a controlar a execução do orçamento. As autoridades administrativas estão subordinadas às decisões do Tribunal de Contas. Se ele defere a um dado parente a pensão, esta decisão poderá não ser conclusiva para o Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente, para a administração”). Essa a interpretação natural. Se a Constituição institui órgão de controle externo a quem incumbe a função de fiscalizador da Administração, atribuindo-lhe, inclusive, poderes de apenar o gestor faltoso, é evidente que suas determinações devem ter eficácia. As decisões do Tribunal de Contas podem ser questionadas pelo administrador junto ao Poder Judiciário, mas o administrador não pode ignorá-las por si só, o que caracterizaria exercício arbitrário das próprias razões. Ou seja: o Tribunal de Contas tem a palavra final sobre a Administração, com a ressalva de que a Administração pode levar a questão ao Poder Judiciário.
2.2 Âmbito de aplicação do Direito Administrativo 2.2.1 Ato judicial e ato legislativo Na tentativa de definir o âmbito de aplicação do Direito Administrativo, somos levados a concluir que ele regula toda e qualquer atividade do Estado, ressalvadas aquelas resultantes do exercício das funções judiciais ou legislativas. Essa conclusão decorre das razões a seguir expostas. Reputa-se judicial, em primeiro lugar, a decisão produzida por órgão integrante do Poder Judiciário e resultante de processo regido pelo Direito Processual (Civil, Penal ou Trabalhista).
Livro 1.indb 46
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
47
Examinar o ato legislativo constitui tarefa que se nos apresenta ainda mais desafiadora, sobretudo porque não admitimos a existência de categoria de ato fora do alcance das três funções do Estado.6 À semelhança do que se verifica com o Poder Judiciário, o Legislativo, no exercício de suas atividades meio, não pratica atos legislativos. Quando, por exemplo, o Senado Federal realiza licitação ou concurso público pratica atos administrativos. Afasta-se, de pronto, o argumento de que ato legislativo é aquele praticado por órgão integrante do Poder Legislativo. Não nos parece igualmente correto afirmar que a prática de atos de caráter concreto, de execução, seja exclusividade do Poder Executivo, e que a edição de atos de caráter normativo seja atribuição exclusiva do Poder Legislativo. Indiscutível que a função precípua do Legislativo compreende o exercício do poder normativo do Estado, e, nessa condição, atos abstratos ou gerais são produzidos. Todavia, assim como o poder normativo do Estado não se restringe ao âmbito do Legislativo, as Casas Legislativas também praticam atos concretos, sem qualquer caráter abstrato. A partir do modelo de separação de atribuições do Estado adotado no Brasil, pode-se tão somente falar em atribuição principal — a do Legislativo, editar atos abstratos; a da Administração Pública, dar execução a esses atos —, mas nunca em exclusividade de exercício de atribuições estatais. A discussão acima apresentada é necessária a fim de que se indique o regime jurídico aplicável a cada ato: ato legislativo segue as normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, ato administrativo observa as normas do Direito Administrativo, sejam elas de estatura constitucional, legal ou infralegal, e o ato judicial observa as normas do Direito Processual Civil, Penal ou Trabalhista. Para definir o ato legislativo parece-nos mais adequado considerar o processo legislativo. Este processo se encontra disciplinado no próprio texto da Constituição Federal e regula a atividade fim das Casas Legislativas. Parece-nos adequado considerar que todos os atos integrantes do processo legislativo devam ser reputados legislativos. Nos termos do art. 59 da Constituição Federal, o processo legislativo compreende a elaboração de emendas à Constituição, leis complementares, ordinárias e delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções. Desse modo, todos os atos que compõem o processo legislativo, tanto os iniciais (de que seriam exemplos a apresentação do projeto de lei, de iniciativa do chefe do Executivo, de parlamentar ou popular, ou a edição de medida provisória), quanto os finais (veto, sanção ou promulgação de lei) são atos legislativos. O processo legislativo extrapola os limites das Casas Legislativas, diferentemente do que se verifica com os atos judiciais, que estão restritos ao âmbito do Poder Judiciário. Efetivamente, cabe ao Direito Positivo, especialmente à Constituição Federal, indicar os atos que irão compor o processo legislativo. Estes são os atos legislativos, disciplinados diretamente pelo texto constitucional e pelos regimentos internos das Casas Legislativas.
6
Livro 1.indb 47
Para maiores detalhes acerca desta matéria, remetemos o leitor para o Capítulo 5, onde estudaremos mais detidamente a existência dos atos de governo.
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
48
2.2.2 Ato administrativo e critério residual Em função do que até o momento expusemos, é possível concluir que todo ato praticado pelo Estado é ato administrativo, salvo se se tratar de ato praticado por órgão do Poder Judiciário disciplinado por normas de Direito Processual, ou se for ato que integre o processo legislativo, hipótese em que o ato será reputado legislativo. Esse resíduo da atuação estatal define o objeto do Direito Administrativo e caracteriza o ato como administrativo. A utilização do critério residual para definir o ato administrativo explica o crescimento do Poder Executivo em relação aos demais poderes do Estado. Ora, se o âmbito de atuação dos Poderes Legislativo e Judiciário está restrito à prática de determinados atos, todas as novas atividades a serem desempenhadas pelo Estado têm sido conferidas pelo ordenamento jurídico ao Poder Executivo.
2.3 Direito Administrativo e Direito Privado Historicamente, o Direito Público tem sido apresentado como aquele em que o Estado é parte, figurando como sujeito nas relações jurídicas. O Direito Privado, ao contrário, seria, também do ponto de vista histórico, aquele que regula relações entre particulares sem que o Estado delas faça parte. Questiona-se, então, o que ocorre quando a Administração Pública busca no Direito Privado soluções para disciplinar o exercício da sua atividade estatal. O Direito Privado se transforma em Direito Público em função da presença do Estado, ou ele manteria sua natureza privada? O aumento da utilização das normas de Direito Privado pela Administração Pública — processo que se tornou conhecido como fuga do Direito Administrativo — está diretamente ligado à busca de eficiência pelo Estado. Os defensores dos processos de reforma do Estado no final do século passado partiam do pressuposto de que as normas de Direito Público eram responsáveis pela ineficiência do poder público, o que aumentou a utilização de normas de Direito Privado como a solução para a falta de eficiência pública. O privado era apontado como a solução para todos — ou quase todos — os males do Estado. Diante da variada gama de atividades desenvolvidas pelo Estado moderno — de intervenção no âmbito das atividades privadas, de prestação de serviço público e de fomento —, as normas de Direito Privado somente mostram-se úteis e aplicáveis em algumas áreas, sobretudo em relação à prestação de determinados serviços públicos. Antes de avançarmos no exame da questão, algumas questões preliminares devem ser enfrentadas. Quando se fala em modernidade — e hoje já se fala em pós-modernidade —, um dos primeiros aspectos que se apresenta é a impossibilidade de separação absoluta entre os dois ramos básicos do Direito, o Público e o Privado. A maior interferência do Estado no âmbito das atividades privadas torna impossível qualquer tentativa de separação absoluta desses dois ramos. É praticamente impossível, nos dias atuais, indi car relação jurídica entre particulares que não sofra alguma interferência do Estado. A relação entre marido e mulher, por exemplo, que até passado relativamente recente era tida como matéria de interesse exclusivo dos dois, hoje é fortemente influenciada por normas editadas pelo Direito Público.
Livro 1.indb 48
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
49
O processo inverso, de interferência do Direito Privado no âmbito da Administração Pública, mostra-se igualmente evidente, sendo comum o Estado se utilizar de institutos privados para tornar sua atuação mais efetiva. Importante questão a ser enfrentada consiste em saber se nas situações em que a Administração Pública se utiliza das normas de Direito Privado para a prática de determinados atos, o que ocorre com cada vez mais frequência, essas normas de Direito Privado poderiam ser consideradas fonte de Direito Administrativo. Em outras palavras, caso a Administração Pública se utilize do Direito Privado para regular algum ato, ou alguns aspectos da sua atuação, essa norma de Direito Privado se transmuda em Direito Público? Parece-nos que não. É certo que as normas do Direito Privado constituem importante fonte de Direito para a Administração Pública. Na falta de norma de Direito Administrativo para regular determinado ato, a Administração Pública pode servir-se do Direito Privado. Essa utilização, porém, não muda ou afeta a natureza das normas privadas e não as transforma em Direito Público. É importante observar, todavia, que a utilização do Direito Privado pela Admi nistração Pública não constitui mera opção discricionária do gestor público. Caso haja norma de Direito Público para regular determinado ato, o Direito Privado assume função meramente suplementar. Assim, por exemplo, existindo normas de Direito Público que regulem a execução de uma obra pública — a Lei nº 8.666/93 —, não pode o administrador preferir executar referida obra com base em regras ditadas pelo Direito Privado, que assume sempre caráter subsidiário em relação ao Direito Público. Outra observação importante consiste em que, mesmo nas hipóteses em que o Direito Privado possa ser utilizado pela Administração Pública, sempre haverá normas de Direito Público irrenunciáveis e que possuem precedência em relação às do Direito Privado. Tradicionalmente, a doutrina nacional entende que não é o simples fato de a Administração Pública figurar como parte em um contrato que faz com que este se transforme em contrato administrativo. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello,7 quando a Administração Pública procede, em suas relações jurídicas com o particular, de comum acordo com este, estabelece contratos, que podem ser: a) contratos de direito privado da Administração; ou b) contratos administrativos. A distinção entre ambos residiria na natureza do regime jurídico utilizado para disciplinar o vínculo: os contratos de Direito Privado celebrados pela Administração seriam regulados pelas normas do Direito Privado e os contratos administrativos sujeitar-se-iam às regras e princípios estabelecidos pelo Direito Público, admitida a aplicação supletiva de normas privadas compatíveis com a índole pública do instituto. Ocorre, todavia, que mesmo em relação aos ditos contratos de Direito Privado existem determinadas regras de Direito Público irrenunciáveis. Tomemos o exemplo de contrato de locação em que o poder público seja o locatário. A Lei nº 8.666/93 não disciplina o seu conteúdo. Assim sendo, nos termos do art. 54 da própria Lei de Licitações (“os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado”) a esse contrato serão 7
Livro 1.indb 49
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 377-378.
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
50
aplicadas as regras do Direito Privado previstas na legislação sobre locação para fins não residenciais. Ocorre que o art. 62, §3º, I, da Lei de Licitações determina ainda que “aos contratos de seguro, de financiamento, de locação em que o Poder Público seja locatário, e aos demais cujo conteúdo seja regido, predominantemente, por norma de direito privado” aplica-se o disposto nos artigos 55 e 58 a 61 da Lei de Licitações, “e demais normas gerais”, no que couber. Vê-se que em relação a esses contratos denominados de Direito Privado, bem como a qualquer outro ato praticado pela Administração Pública, além da inafastável observância do interesse público, sempre haverá normas de Direito Público aplicáveis. Assim sendo, não obstante a crescente importância que o Direito Privado assume como fonte para o Estado, o Direito Público mantém a precedência. Os processos de reforma empreendidos em diversos países da Europa e da América Latina ao longo das décadas de 1980 e de 1990, respectivamente, tinham como escopo conferir maior eficiência ao Estado. Nesses processos, atribuiu-se ao Direito Público parte da responsabilidade pela ineficiência da Administração Pública e se buscou no Direito Privado a solução para a falta de eficiência estatal. Após vários erros, e alguns acertos, hoje se constata a impossibilidade de total afastamento das normas e dos princípios que constituem o instrumental do Direito Administrativo. Se há novas áreas de atuação do Estado que reclamam maior agilidade, outras continuam a ser pautadas pelos instrumentos tradicionais do Direito Administrativo. De qualquer forma, hoje se verifica, de modo cristalino, que a desqualificação do Direito Público não interessa nem ao Estado nem à sociedade. Portanto, em vez de se afastar o Direito Público, deve-se buscar atualizar seus preceitos e torná-lo capaz de responder de forma pronta e eficaz às demandas que as sociedades modernas apresentam ao Estado. Este constitui o grande desafio que se apresenta aos que lidam com o Direito Administrativo: mantê-lo atualizado, capaz de atender às demandas sociais, sem se afastar dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito.
2.4 Objeto do Direito Administrativo Diversas escolas têm buscado definir o objeto do Direito Administrativo a partir da utilização de diferentes critérios. Trata-se de difícil tarefa e que nem sempre alcança resultados definitivos ou seguros. O Direito Administrativo objetiva regular todas as atividades estatais, excetuadas aquelas qualificadas como atos legislativos ou judiciais. Esta conclusão é importante porque define o regime jurídico aplicável a cada ato praticado pelo Estado e, consequentemente, os mecanismos de controle aplicáveis. Apenas para exemplificar, não é possível aplicar regra relativa ao desfazimento (anulação e revogação) do ato administrativo, conforme regulado pela Lei nº 9.784/99, aos atos legislativos ou judiciários, haja vista não serem esses atos disciplinados por este regime jurídico, mas pelo Direito Constitucional e pelo Direito Processual, respectivamente. O objeto do Direito Administrativo compreende, portanto, todas as atividades do Estado, ressalvadas aquelas inseridas no âmbito das funções legislativas e judiciais. Algumas áreas inseridas no âmbito do Direito Administrativo e diretamente ligadas às funções executivas do Estado — urbanismo, preservação do meio ambiente, regulação do mercado, apenas para mencionar alguns exemplos — têm assumido tamanha
Livro 1.indb 50
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
51
importância social que se defende sua autonomia científica — Direito Urbanístico, Direito Ambiental, Direito Econômico. O reconhecimento da autonomia científica dessas disciplinas não importa, todavia, em que suas regras estejam em desarmonia com a Teoria Geral do Direito Administrativo. No presente trabalho temos defendido a existência do sistema de Direito Admi nistrativo que se compõe de um núcleo, cujas normas compõem a Teoria Geral do Direito Administrativo, e de normas periféricas que integram o Direito Administrativo especial, que compreende as normas de Direito Ambiental, de Direito Urbanístico, o regime jurídico dos servidores públicos, o Direito da concorrência etc. Desse modo, ainda que se pretenda reconhecer, ao menos em relação a algumas dessas áreas do Direito Administrativo especial, autonomia didática e científica, essa autonomia será relativa, haja vista estarem suas normas relacionadas ao exercício de atividades desenvolvidas pela Administração Pública e sujeitas aos parâmetros constitucionais da Teoria Geral do Direito Administrativo.
2.5 Fontes do Direito Administrativo O estudo do objeto do Direito Administrativo, tarefa empreendida no item anterior, busca identificar os atos ou situações que sofrerão a incidência das normas que compõem este ramo do Direito Público. O exame das fontes do Direito Administrativo, a seu turno, tem o propósito de definir de onde surge a norma que irá disciplinar referido objeto. A Constituição Federal, as leis — complementares, ordinárias ou delegadas —, os tratados internacionais, os regulamentos, os costumes, a doutrina e a jurisprudência constituem as principais fontes do Direito Administrativo.
2.5.1 Constituição Federal A Constituição Federal tem como um de seus mais importantes propósitos a definição da estrutura do Estado. Basta essa constatação para que se perceba a importância que este conjunto de normas assume não apenas como fonte do Direito Administrativo, mas, sobretudo, como instrumento definidor do sistema jurídico do País. Conforme visto no capítulo anterior, na Constituição Federal serão encontradas as normas que compõem o núcleo do Direito Administrativo. Estas normas irão pautar todas as manifestações deste ramo do Direito. O processo administrativo, as licitações e a contratação pública, as normas básicas relativas aos servidores públicos, as competências administrativas das entidades políticas e os mecanismos da organização e de descentralização administrativa, as normas relativas à proteção ao meio ambiente, ao mercado e aos consumidores são temas afetos ao Direito Administrativo e que se encontram regulados diretamente pelo texto constitucional. As normas constitucionais servem de parâmetro para balizar a atividade do legislador e, em alguns casos, praticamente dispensam a intervenção legislativa. Tomemos como exemplo as normas relativas ao processo administrativo. Inegável a importância desempenhada pela Lei nº 9.784/99, que disciplina o processo administrativo no âmbito federal. Tão grande a importância desse texto legal que Estados e Municípios, que não se submetem a essa legislação federal, têm sido fortemente influenciados pelas regras nela
Livro 1.indb 51
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
52
estabelecidas. Ademais, as principais regras contidas na lei do processo administrativo seriam aplicáveis à União, aos Estados e aos Municípios independentemente da aprovação dessa lei.8 O contraditório, a ampla defesa, o acesso aos elementos do processo, a segurança jurídica são alguns dos diversos princípios consagrados pela mencionada Lei nº 9.784/99. Esses princípios, todavia, não decorrem da lei, mas da própria Constituição Federal. Não tivesse a lei, por acaso, fixado prazo para a Administração Pública anular seus próprios atos (art. 54), seria possível admitir que essa prerrogativa pudesse ser utilizada a qualquer tempo? A prerrogativa da Administração Pública de anular seus próprios atos não teria que observar o princípio constitucional da segurança jurídica? O caráter abstrato do texto da Constituição Federal, que costuma se utilizar de princípios ou tão somente fixar diretrizes para a atuação dos legisladores ou administradores públicos, permite que por meio das mutações constitucionais o Direito Administrativo se mantenha atualizado independentemente de qualquer reforma legislativa. A inevitável aproximação — ou mesmo confusão — entre as normas do Direito Constitucional e do Direito Administrativo não torna este último mais rígido. Ao contrário, a aplicação de referidas normas abertas aos fatos da vida, que estão em constante evolução, permite que o Direito Administrativo possa melhor responder às novas necessidades da sociedade de forma mais pronta e efetiva.
2.5.2 Leis O princípio da legalidade administrativa — segundo o qual a Administração Pública somente pode fazer o que a lei autorizar ou determinar — constitui um dos pilares básicos do Estado de Direito. A necessidade de impor limites ao Estado, de valo rizar os indivíduos e de buscar a realização dos direitos fundamentais confere grande importância à lei formal. Inegável, ademais, a importância das leis como instrumento básico de controle do Estado. A lei em sentido formal, resultante do processo legislativo, constitui — em seguida às normas constitucionais — a principal fonte do Direito Administrativo. A Constituição, as leis e os regulamentos, não obstante sejam fontes do Direito Administrativo, desempenham papel distinto no processo de criação das normas administrativas e se sujeitam a limites distintos na criação normativa. A Constituição não se submete, em princípio, a qualquer limite no processo de criação das normas que regulam a atividade administrativa do Estado, excetuados os limites criados pelo próprio texto constitucional (art. 60, §4º). As leis encontram seus limites na própria Constituição. Os regulamentos, que têm desempenhado papel secundário no processo de criação de normas administrativas, restringem-se, quase sempre, a indicar a opção normativa escolhida pela Administração dentre as opções normativas admitidas pelas leis. Em função de variados fatores, tem-se observado sistemática modificação na importância dessas diferentes fontes, sendo evidente a perda de importância da lei no âmbito do Direito Administrativo e a consequente redefinição do princípio da legalidade.
O STF entende que a Lei nº 9.784/99 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos demais Estados-Membros, se ausente lei própria regulando o processo administrativo no âmbito local (REsp nº 1.148.460/PR, Segunda Turma. DJe, 28 out. 2010).
8
Livro 1.indb 52
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
53
A necessidade de a Administração Pública apresentar respostas rápidas, a maior importância conferida às normas do núcleo do Direito Administrativo, de estatura constitucional, cuja aplicação não depende necessariamente de lei, os processos de inte gração supranacionais, que conferem aos tratados internacionais importância nunca antes exercida para a organização das novas entidades administrativas são alguns fatores que têm contribuído para que as leis formais percam sua importância como fonte de Direito Administrativo e para a redefinição do princípio da legalidade. Não obstante a perda de importância da lei em relação às demais fontes, as leis, ao lado da Constituição Federal, continuam a desempenhar papel fundamental no processo de criação do Direito Administrativo.
2.5.3 Tratados e acordos internacionais Os processos de integração supranacionais constituem, certamente, o fenômeno que maior impacto e, portanto, maiores desafios têm trazido para as administrações públicas neste início de século XXI.9 Independentemente dos processos de integração, acordos e convenções internacionais em matéria de meio ambiente, de combate ao terrorismo, aos crimes organizados e à corrupção têm demonstrado a influência crescente que esses textos jurídicos têm exercido sob o Direito Administrativo em inúmeros países, inclusive no Brasil. Apenas para citar um exemplo, a Convenção das Nações Unidas contra a corrupção firmada na cidade de Mérida, México, no ano de 2003, determina aos países signatários, dentre outras medidas, a necessidade de fixação de regras em matéria de contratos públicos e licitações, sobre servidores públicos, sobre o controle da Administração Pública, sobre orçamentos públicos, sobre transparência etc. Estas regras constituem fontes da maior relevância para o Direito Administrativo.
2.5.4 Decretos e regulamentos Um dos aspectos mais controvertidos do estudo das fontes do Direito Administrativo se refere à utilização e à definição dos limites para a utilização dos decretos e para a edição de regulamentos por parte do Poder Executivo.
Acerca da importância dos processos de integração, vejam a palavras do então Cardeal Ratzinger, atualmente Papa Emérito Bento XVI, em debate ocorrido em 19 de janeiro de 2004, na Academia Católica da Baviera, em Munique, com o pensador Jürgen Habermas, em que os dois pensadores analisam “as bases pré-políticas e morais do Estado democrático”: “O Islã tem um catálogo de direitos humanos próprio, diverso do ocidental. A China é, com efeito, atualmente marcada por uma forma cultural, o marxismo, originada no Ocidente, mas ainda coloca a pergunta se não se trata, no caso dos direitos humanos, de uma típica invenção ocidental, a qual deveria ser questionada... Como último elemento do direito natural, o qual desejava ser, em nível mais profundo, um direito racional, pelo menos nos tempos modernos, permanecem os direitos humanos. Eles não são compreensíveis sem o pressuposto de que o homem como homem, simplesmente por sua filiação à espécie humana, é um sujeito de direitos, que sua existência carrega em si valores e normas que devem ser descobertos, mas não inventados. Talvez a doutrina dos direitos humanos devesse hoje em dia ser acrescida de uma doutrina acerca dos deveres humanos e dos limites do homem, e isso poderia ajudar a atualizar a pergunta se não pode haver uma razão da natureza e, portanto, um direito racional para os homens e sua posição no mundo. Uma tal discussão deveria hoje ser constituída e exposta de maneira intercultural. (...) Para mim, a interculturalidade compõe hoje uma dimensão indispensável para a discussão acerca dos fundamentos do ato de ser humano, que não pode ser conduzida nem unicamente dentro do universo cristão nem totalmente dentro de uma tradição racional ocidental” (Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno Mais. Tradução de Érika Werner).
9
Livro 1.indb 53
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
54
O termo regulamento, conforme observa Celso Antônio Bandeira de Mello, não indica categoria jurídica específica, sendo possível, em diferentes regimes jurídicos, serem utilizados instrumentos distintos para a expedição desta manifestação de vontade de caráter genérico do Poder Executivo. Este último aspecto, segundo o autor, seria o que mais caracterizaria o regulamento: ser expedido pelo Poder Executivo, e, no caso brasileiro, pelo chefe deste poder por meio de decreto. O regulamento assume diferentes funções em diferentes regimes jurídicos. No direito francês, apenas para citar um exemplo, fala-se inclusive em reserva regulamentar para indicar determinados temas que não poderiam ser disciplinados por lei, sendo exclusiva do chefe do Executivo a competência para regular em caráter geral alguns temas afetos à Administração Pública. No Brasil, a grande discussão em torno do uso do regulamento busca definir os limites para a utilização do decreto, instrumento por meio do qual o chefe do executivo expede normas de caráter geral. A Constituição Federal, em seu art. 84, IV, confere competência privativa ao Presidente da República — competência que será estendida pelas constituições estaduais e leis orgânicas municipais aos governadores e prefeitos, respectivamente — para “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução”. Ademais, o art. 49, V, da própria Constituição, confere competência ao Congresso Nacional para sustar ato do poder executivo que extrapole os limites do poder regulamentar. Uma primeira observação a ser feita deve ser dirigida à redação do texto constitucional citado — o art. 84, IV. Nele é dada a impressão de que decreto e regulamento seriam coisas distintas, quando na verdade um é instrumento do outro. É por meio de decreto que o Presidente da República exerce o seu poder de regulamentar as leis. A questão que aqui se coloca consiste em saber se a única função do decreto seria a regulamentação da lei, se seria possível ao decreto exercer outras funções e, sobretudo, se poderia o Poder Executivo, por meio de decreto, cuidar, em caráter abstrato, de matérias não tratadas em lei. No Capítulo 10, a questão do poder regulamentar será tratada com maior profundidade. Desde já antecipamos nosso entendimento no sentido de que é legítimo ao decreto inovar no Direito Administrativo. O ponto de partida para o enfrentamento dessa questão consiste em saber que o poder regulamentar é uma categoria do poder normativo do Estado. Este é mais amplo e compreende o próprio poder do Estado de legislar. Se é certo que existem limites ao exercício de todos os poderes do Estado, o exercício do poder normativo não constituiria exceção. O próprio poder do Estado de legislar em matéria administrativa, que podemos denominar poder normativo legal, além da necessidade de conformação com os parâmetros constitucionais expressos, deve observar regras de razoabilidade, de necessidade e de intensidade com que a interferência do Estado ocorre na esfera privada, sendo exigido, ademais, que essas interferências públicas na esfera privada sejam sempre justificadas sob a ótica da realização dos direitos fundamentais. O poder normativo do Estado, não obstante constitua a função predominante do Legislativo, alcança todos os demais poderes — caso em que poderemos falar em poder normativo complementar.
Livro 1.indb 54
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
55
No âmbito do Judiciário podemos mencionar como manifestação dessa categoria de poder normativo a prerrogativa dos Tribunais de aprovarem seus regimentos internos ou da Justiça Eleitoral de fixar normas para a realização das eleições. No âmbito do Executivo, o poder normativo complementar não se restringe ao chefe do Executivo. Ele se espalha por vários órgãos e entidades públicas — vale mencionar exemplos como o do Banco Central do Brasil que exerce grande poder normativo sobre os mercados financeiros, ou de algumas agências reguladoras que no âmbito das suas atribuições definem, por meio de resoluções, parâmetros de caráter geral para os segmentos de mercado sujeitos à sua atuação. Para limitar o poder normativo do Estado, os particulares dispõem, como primeiro instrumento de defesa, dos princípios da reserva da lei (CF, art. 5º, II), segundo o qual “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa salvo em virtude de lei”, e do devido processo legal substantivo (razoabilidade). Observados os critérios de competência — haja vista ser inconcebível, por exemplo, a União editar ato normativo em matéria de competência dos Estados ou dos Municípios —, e desde que a edição desses atos normativos emanados do Estado não criem obrigações para os particulares, restrinjam, limitem ou condicionem o exercício de direitos, o que somente pode ocorrer por meio de lei, deve-se reconhecer liberdade para a edição de atos normativos independentemente de prévia aprovação pelo Poder Legislativo. Faz-se necessária a aprovação de lei formal — aprovada pelo Poder Legislativo — para legitimar qualquer interferência estatal na esfera dos particulares ou para disciplinar matérias para as quais o texto constitucional tenha expressamente exigido lei. Em outras situações — em que a Administração Pública tenha a necessidade de regular questões administrativas internas ou de desenvolver programas de governo que não restrinjam liberdades individuais, mas que ponham à disposição da sociedade benefícios ou facilidades, deve-se reconhecer ampla competência ao poder normativo complementar do Estado, que irá atuar por meio dos instrumentos de hierarquia inferior à lei. Em períodos de exceção democrática, em que o exercício das atribuições executivas do Estado carece de legitimidade popular, eram compreensíveis as teorias limitadoras do poder normativo complementar. Em regimes democráticos, em que todas as funções do Estado são exercidas de forma plena e democrática, não se justifica a manutenção de teses excessivamente limitadoras da atuação do Poder Executivo. Ao chefe do Executivo (CF, art. 84, IV) está afeta categoria especial do poder normativo do Estado: o poder regulamentar. O chefe do Executivo, no exercício do Poder Regulamentar, está restrito aos limites da lei a ser aplicada. O poder regulamentar, como categoria do gênero poder normativo do Estado, é de alcance bem mais restrito e tem por objetivo principal restringir a discricionariedade conferida ao administrador pela lei. No exercício do poder regulamentar, não pode o chefe do Executivo criar novas áreas de atuação para a Administração Pública, mas tão somente definir como os administradores públicos irão aplicar referida lei. Tomemos como exemplo a legislação que cuida do pregão. Temos, no caso, a Lei nº 10.520/02 e o Decreto nº 3.555/00, que regulamenta referida lei. A função do decreto não é de ampliar a atuação do administrador, mas de indicar, dentre as possibilidades de proceder permitidas pela lei aos diversos administradores, qual ou quais procedimentos devem ser adotados.
Livro 1.indb 55
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
56
O poder regulamentar apresenta algumas particularidades. Em primeiro lugar, somente serão regulamentadas as leis para cuja aplicação seja necessária a intervenção da Administração Pública. Somente as regras contidas em lei cuja aplicação necessite da intervenção da função executiva do Estado serão regulamentadas. Somente normas de Direito Administrativo — ou de outros sub-ramos do Direito surgidos a partir do Direito Administrativo (Direito Urbanístico, Direito Ambiental ou Direito Econômico) — devem ser objeto de regulamentação. Normas de Direito Privado, ou mesmo de outros ramos do Direito Público, como o Direito Penal, não podem ser objeto de regulamentação.10 Isto assim se verifica porque a função da regulamentação é de definir como as leis serão aplicadas pela Administração Pública. Ainda em relação ao poder regulamentar, é necessário observar que somente serão regulamentadas as leis que contenham dispositivo por meio do qual seja expressamente exigida essa regulamentação. Caso não se faça presente qualquer desses dois requisitos, a regulamentação será inócua ou desnecessária. O decreto regulamentar tem o propósito específico, conforme mencionado, de definir dentre as opções legais possíveis qual ou quais podem ser adotadas pela Administração Pública. Definida por meio de decreto regulamentar a solução possível dentre aquelas permitidas pela lei ao administrador, este não pode adotar solução diversa, ainda que esta outra solução fosse admitida pela lei, sob pena de praticar ato ilegal. A ilegalidade deste ato — que fere o decreto — decorre do fato de que é a própria lei que exige do chefe do Executivo a regulamentação da lei a fim de que seja indicada as soluções de execução possíveis. Assim sendo, caso o administrador público não adote a solução definida no decreto regulamentar, ele terá violado, além do próprio decreto, a lei que determinou que sua aplicação seria feita nos termos definidos em regulamento. Trata-se de poder exclusivo do chefe do Executivo vinculante para toda a Admi nistração Pública, incluídas as administrações dos Poderes Legislativo e Judiciário. Definida determinada solução em decreto regulamentar editado pelo Presidente da República, os órgãos administrativos dos Poderes Judiciário e Legislativo não podem, apesar de disporem de autonomia administrativa, adotar solução diversa daquela permitida pela regulamentação. A função precípua do decreto regulamentar é, portanto, definir a aplicação da lei pela Administração Pública, limitando a discricionariedade do administrador. É evidente que o decreto regulamentar não pode, a pretexto de limitar a discricionariedade administrativa, adotar solução contrária à lei ou restringir prerrogativas ou competências do administrador expressamente conferidas pela lei ao administrador público. A obrigatoriedade das unidades administrativas dos Poderes Legislativo e Judiciário de observarem o disposto nos decretos regulamentares nos parece evidente, e sua violação deve importar em invalidação do ato praticado. É de se observar, em primeiro lugar, que a definição das matérias a serem regulamentadas pelo chefe do Executivo não resta sob o livre alvedrio do Poder Executivo. Somente são regulamentadas as maté rias para as quais a lei tenha requerido a devida regulamentação. Essa interferência do
10
As normas penais em branco podem ser consideradas exceções a esse entendimento, uma vez que por apresentarem conteúdo incompleto exigem complementação/integração por outra norma jurídica, como por exemplo: decreto, regulamento, portaria etc.
Livro 1.indb 56
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
57
Poder Executivo na autonomia administrativa dos demais poderes se insere dentro do sistema de separação das funções do Estado, como mecanismo de freio e contrapeso. A expedição de decretos de caráter genérico, não obstante sujeito a limites outros, não se restringe apenas ao papel de regulamentar a lei. Em outras palavras: a edição de normas de caráter abstrato por parte do Poder Executivo não decorre apenas do poder regulamentar. Pode o chefe do Executivo expedir decretos para normatizar matérias não previstas em lei. Pode o Presidente da República, por exemplo, por meio de decreto, disciplinar a realização de concursos públicos, matéria não prevista em lei. Caso isto ocorra, não se poderia falar em decreto regulamentar ou em exercício do poder regulamentar haja vista não existir qualquer lei sobre a matéria para que se fale em regulamentação. O poder para a edição deste decreto decorre do poder hierárquico do Presidente da República e vincula somente os administradores a ele subordinados. Editado este decreto, de modo algum estariam as unidades administrativas do Supremo Tribunal Federal ou da Câmara dos Deputados, por exemplo, obrigadas a seguir as regras contidas em referido e hipotético decreto. Decretos expedidos pelo Presidente da República no exercício do poder hierárquico, que não têm a finalidade de regulamentar lei, mas de disciplinar temas afetos à competência do chefe do Executivo, vinculam tão somente aqueles que estejam hierarquicamente a ele subordinados, direta ou indiretamente, não podendo alcançar outros poderes do Estado. As observações até o momento feitas demonstram que não seguimos a corrente majoritária adotada na doutrina pátria segundo a qual a edição de normas de caráter abstrato por parte do Poder Executivo se restringe à edição de decretos regulamentares. É certo que o papel de expedir normas de caráter abstrato cabe, precipuamente, ao Poder Legislativo. Somente por meio de lei (CF, art. 5º, II – princípio da reserva da lei) alguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. Nesse sentido, não é possível ao legislador delegar ao Poder Executivo a competência para editar decreto que imponha restrições, limite, direitos ou crie obrigações para os particulares. A edição de decretos delegados por meio dos quais o legislador transfere ao chefe do Executivo a incumbência de cuidar de determinados temas, ainda que legítimos — legitimidade a ser aferida em função do que dispõem a Constituição Federal e a própria lei que delega a competência normativa —, deve observar o princípio da reserva da lei, bem como os limites para a delegação legislativa (CF, art. 68, §1º). Além dos decretos regulamentares, outros atos de caráter normativo editados pelo Poder Executivo são fontes de Direito Administrativo. Resoluções, instruções ou outros atos normativos podem criar normas para disciplinar a atuação da Administração Pública.
2.5.5 Jurisprudência Muito se discute na doutrina acerca de a jurisprudência ser fonte de Direito. No exercício da atividade jurisdicional, os juízes e os tribunais administrativos são obrigados a criar normas para os casos concretos levados à sua apreciação. Neste processo, surgem normas específicas que definem a solução a ser adotada em futuros casos. Neste sentido, as orientações emanadas destas decisões constituem importante parâmetro para os aplicadores do Direito. Cabe ressaltar, ademais, a importância que
Livro 1.indb 57
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
58
as decisões proferidas por determinados tribunais administrativos assumem em nosso Direito Administrativo. As decisões proferidas pelo Tribunal de Contas da União em matéria de licitações ou de pessoal, por exemplo, são de importância fundamental para os diversos gestores públicos. Basta observar que a Lei Orgânica do TCU (Lei nº 8.443/92 – art. 1º, XVII) dispõe que as decisões preferidas pelo Tribunal em resposta a consultas têm caráter normativo.
2.5.6 Doutrina A doutrina desempenha papel secundário no processo de criação de normas de Direito Administrativo. À semelhança do que se verifica com a jurisprudência, a doutrina não desempenha, no Direito Administrativo, papel significativo na criação de normas. A sua função mais relevante é a de explicar, de esclarecer aos aplicadores do Direito acerca do correto conteúdo das normas administrativas, indicando a melhor interpretação ou as interpretações possíveis destas normas. Opiniões doutrinárias contrárias às leis — ainda que válidas para que o legislador procure aperfeiçoar as normas vigentes — não podem ser admitidas como fonte de Direito Administrativo. Não existe por parte dos administradores públicos a prerrogativa de deixar de aplicar normas sob o argumento de inconstitucionalidade com base em opiniões doutrinárias, por mais abalizadas que sejam. Somente o Poder Judiciário e, excepcionalmente, os Tribunais de Contas — em razão do disposto na Súmula nº 347 do STF — podem deixar de aplicar lei sob argumento de inconstitucionalidade.11
Há que se observar, não obstante, que a Súmula nº 347 do STF foi objeto de crítica pelo Ministro Gilmar Mendes no MS nº 27.796-MC/DF, mediante o qual deferiu pedido de medida liminar, para suspender os efeitos da decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União (Acórdão nº 1.763/2008) no processo TC nº 008.815/2000-3 (Relatório de Auditoria): “Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei nº 9.478/97, e do Decreto nº 2.745/98, obrigando a Petrobras, conseqüentemente, a cumprir as exigências da Lei nº 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor da Súmula nº 347 desta Corte, segundo o qual ‘o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público’. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional nº 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988” (Publ. 9.2.2009). 11
Livro 1.indb 58
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
59
2.5.7 Costume O costume deve ser igualmente visto com fonte secundária de Direito Administrativo. Se por costume os administradores adotam determinada interpretação das normas jurídicas, a fonte primária será aquela de onde surgiu a norma — a lei, o decreto, a jurisprudência etc. O costume contrário à lei é fonte tão somente de ilegalidade e não pode ser arguido como pretexto para favorecer servidores públicos ou particulares ou para manter práticas, infelizmente, ainda frequentes em nosso Direito. Tomemos o exemplo das tradicionais licenças sabáticas concedidas em favor de professores de algumas universidades públicas. Trata-se de prática contra legem, haja vista não ter sido prevista na legislação que cuida do regime jurídico destes servidores. Em relação aos costumes praeter legem, ainda que admitidos, não criam normas que obriguem os administradores a sempre repeti-los. Se de determinada prática resulta circunstância que faz surgir direito para determinado particular, este direito deve ser protegido. Não possui, todavia, o particular direito de que referida prática seja mantida, sendo legítimo ao administrador modificar práticas ou costumes praeter legem e recomendável à Administração Pública, na eventualidade de mudança do costume, dar aos possíveis interessados a devida divulgação quanto aos novos procedimentos a serem adotados no futuro.
2.6 Âmbito público e âmbito privado A distribuição de competências entre as diferentes esferas de governo constitui o ponto de partida para qualquer estudo do Direito da organização administrativa. A sua definição ocorre no próprio texto da Constituição Federal que define se o Estado será unitário ou federado e o critério para a distribuição de competências entre as diferentes entidades políticas acaso existentes. No Brasil, a Constituição Federal estabelece a distribuição de competências em três níveis: federal, estadual e municipal (CF, art. 18: “A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”). Essa primeira distribuição de atribuições define os níveis de organização do Estado brasileiro e o critério para a distribuição de competências entre as três esferas. Ao dispor sobre essa organização, a Constituição, além de definir e distribuir as atribuições entre as pessoas jurídicas de Direito Público dotadas de autonomia política — autonomia identificada, sobretudo, pela capacidade de legislar e de tributar —, indica as tarefas em que o Estado assume primazia sobre os particulares, em oposição aos âmbitos privados de atuação em relação aos quais o Estado assume as funções de fiscalização, incentivo e planejamento (CF, art. 174). Os limites entre o público e o privado se tornam cada vez menos precisos. Serviços até recentemente considerados de competência exclusiva do Estado são transferidos aos particulares e atividades privadas passam a sofrer forte interferência estatal (defesa do consumidor, proteção das minorias, direito da concorrência etc.). A prestação dos serviços de telefonia no Brasil pode ser citada como exemplo desse processo de aproximação entre o público e o privado. Em período inferior a cinco anos, toda a prestação dos serviços de telefonia fixa e móvel passou das mãos do Estado
Livro 1.indb 59
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
60
para as de empresas privadas. O Estado, de prestador dos serviços, assume hoje posição de regulador, de fiscalizador de tarefas desempenhadas pelos particulares. A principal questão dessa discussão consiste em saber qual a função do Estado e quais os limites para sua atuação. O Estado Democrático de Direito existe como meio ou instrumento para a satisfação das necessidades da sociedade. A dúvida consiste em saber quais bens ou serviços devem ser fornecidos à sociedade pelo Estado, e quais necessidades da sociedade devem ser satisfeitas pelos próprios agentes privados. Serviços sociais, como educação, saúde, assistência aos idosos, por exemplo, são de competência exclusiva do Estado? Serviços indicados no texto da Constituição Federal como públicos, tais como de telecomunicações, de geração, distribuição e fornecimento de energia elétrica, de serviço postal, de transporte rodoviário de passageiros podem ser explorados como atividades empresariais? Como proceder na transposição dos limites entre o público e o privado? Trata-se, como afirmado, de questão extremamente complexa, cuja resposta deve ser buscada na própria Constituição Federal. O modelo de Estado adotado pelo texto constitucional valoriza o setor privado em relação ao setor público. Somente podem ser consideradas tarefas públicas aquelas indicadas pelo texto da Constituição Federal (artigos 21, 23, 25 e 30 — o que não impede, no entanto, que o poder público interfira no âmbito privado, principalmente por meio do poder de polícia) por meio do qual o Estado limita, condiciona e restringe o uso de bens e o exercício de direitos ou de atividades, interferências cuja validade deve ser examinada sob a ótica da necessidade da intervenção, da sua intensidade e da razoabilidade dos instrumentos utilizados pelo Estado. A primazia do privado sobre o público é confirmada pela possibilidade de serviços qualificados pela Constituição Federal como públicos terem sua execução delegada a particulares por meio de concessões ou permissões de serviços públicos, ou ainda por meio de convênios, termos de parceria ou contratos de gestão, que permitem a colaboração dos particulares com o poder público. Diante dessa nova realidade, em que o Estado se vale com cada vez maior frequência e intensidade da participação dos particulares, qualquer tentativa de separar serviço público de atividade empresarial torna-se vã. Ademais, atribuir a determinada atividade a qualificação de serviço público não afasta a possibilidade de a sua exploração ser feita em caráter empresarial — a atividade desempenhada pelos Correios (CF, art. 21, X), por exemplo, é considerada serviço público essencial (RE nº 220.906-DF. DJ, 14 nov. 2002), o que em nada afasta a possibilidade de esta atividade ser explorada como empresarial. A definição pela Constituição Federal da competência material ou administrativa da União (art. 21), comum (art. 23), dos Estados (art. 25, §1º) e dos Municípios (art. 30) indica as áreas em que a atuação do Estado é prioritária. Isto não afasta, todavia, a possibilidade dessas mesmas atividades poderem ser exploradas em caráter empresarial, sob regime de concessão ou de permissão de serviços públicos, em razão da previsão contida no art. 175 do texto constitucional, que autoriza o poder público, desde que se utilize de lei, a delegar a execução dessas atividades a particulares. Em relação a quaisquer outras atividades não mencionadas nos dispositivos constitucionais acima citados, a interferência do Estado somente deve ocorrer se puder ser justificada em função de possíveis benefícios para a própria sociedade. Ademais,
Livro 1.indb 60
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 2 ATIVIDADE ADMINISTRATIVA E DIREITO ADMINISTRATIVO
61
essas interferências estatais, para serem legítimas, conforme já mencionado, precisam ser examinadas sob a ótica da necessidade da interferência, bem como da intensidade com que essa interferência se verifica, da razoabilidade dos instrumentos de intervenção, além da realização dos direitos fundamentais. Demonstrada a presença desses pressupostos, a noção de subsidiariedade da atuação do Estado, impõe ao Estado o dever de agir e de praticar todos os atos ou de desenvolver todas as atividades necessárias ao atendimento das demandas sociais. Esta conclusão é relevante, dentre outros aspectos, porque distingue a subsidiariedade da atuação estatal, que defendemos, da ideia de Estado Liberal, cuja função precípua era assegurar o exercício dos direitos individuais.
Livro 1.indb 61
21/03/2013 17:13:42
Livro 1.indb 62
21/03/2013 17:13:42
Capítulo 3
Regime jurídico administrativo
3.1 Surgimento do Direito Administrativo A clássica separação do Direito em público e privado deriva do Direito Romano e apresenta mais de dois mil anos de história. O Direito Administrativo, ou o regime jurídico administrativo, como frequentemente a ele nos costumamos referir, não obstante integre o grupo formado pelo Direito Público, possui pouco mais de dois séculos de existência. A análise histórica das condições em que surgiram o Estado de Direito e o Direito Administrativo são fundamentais para que se possa compreender porque determinados institutos, como o princípio da legalidade ou o controle judicial da Administração Pública, por exemplo, são tão importantes para a formação do Estado moderno e para o exame prospectivo da relação Estado/sociedade. A partir desse exame poderemos verificar a necessidade de constante atualização desses e de outros importantes conceitos do Direito Administrativo de modo a adaptá-los à realidade de uma sociedade muito mais complexa do que aquela em que esses institutos foram criados. Conforme examinamos nos capítulos anteriores, o Direito Administrativo surge para disciplinar a atividade executiva ou administrativa do Estado,1 mas não de qualquer Estado, mas do Estado Liberal. O Estado de Direito, nascido com as revoluções liberais e inspirado na teoria da separação de poderes de Montesquieu, necessita apresentar mecanismos de contenção do poder absoluto do Estado, e esse papel cabe ao Direito Administrativo. Nesse contexto, são três os objetivos básicos do Estado de Direito: 1. Assegurar o exercício das liberdades individuais; 2. Reconhecer e assegurar o direito à propriedade privada; e 3. Estabelecer regras de responsabilidade patrimonial para o Estado. O papel histórico desempenhado pelo Direito Administrativo dentro do Estado Liberal foi limitado: atuar como mecanismo dentro do sistema de freios e contrapesos entre os poderes ou funções estatais a fim de evitar interferências indevidas da função
1
Livro 1.indb 63
“Indeed, what is Administrative Law about if not the control of discretion?” (SCHWARTZ. Administrative Law, p. 652).
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
64
executiva do Estado na órbita privada. Enfim, a função histórica do Direito Administrativo foi de contenção do Estado frente aos particulares e o principal instrumento para exercer esse poder de contenção foi o princípio da legalidade. A etapa seguinte corresponde ao surgimento do Estado Social ou do Bem-Estar Social (Welfare State), consagrado inicialmente pela Constituição mexicana de 1917 e, em seguida, na Constituição de Weimar, de 1919. De mero espectador, o Estado assume posição ativa na prestação de serviços públicos a fim de assegurar à população direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à previdência social, à proteção à maternidade e à infância (CF, art. 6º). Vê-se, aqui, a primeira necessidade de adaptação do regime jurídico responsável pela definição das regras reguladoras do exercício desse novo amplo espectro de atividades que formava o âmbito das atribuições do Estado. Os avanços seguintes por que o Estado passa não significam, nem podem significar, o abandono da visão e dos objetivos do Estado Social. O Estado Democrático traz para o ordenamento jurídico a necessidade de conformação de todas as funções do Estado aos direitos fundamentais e a incorporação do princípio democrático. De acordo com essa concepção, o Estado não é fim, mas apenas o meio para atender às necessidades de toda a população, e não apenas daquela que obtenha a maioria no Parlamento. Alain Touraine afirma que a democracia não é o triunfo do “universal sobre os particularismos, mas como o conjunto de garantias institucionais que permitem combinar a unidade da razão instrumental com a diversidade das minorias, o intercâmbio com a liberdade. A democracia é uma política de reconhecimento do outro”.2 Prossegue o autor: “A democracia não nasce só do Estado de Direito, mas da apelação a princípios éticos — de liberdade, de justiça”.3 A incorporação do princípio democrático ao Estado Social e de Direito constitui salto importante a ser dado pelo ordenamento jurídico público, mas sem afastar as premissas do Estado de Direito ou do Estado Social. Ocasionalmente afirma-se que o Estado é representante do povo, e que esse poder de representação é transferido à Administração Pública, ou, mais precisamente, aos chefes do Executivo. Essa afirmação constitui equívoco histórico. A Administração Pública não representa quem quer que seja. Ela é o instrumento de que se vale o Estado para realizar os seus fins constitucionais. A representação do povo é feita em caráter exclusivo e indelegável pelo Poder Legislativo, o que explica a importância assumida pela lei como instrumento da expressão da vontade da população. La Ley no es simplemente, como la Ley del Rey absoluto, un mandato general; por el contrario, es el instrumento adecuado para articular precisamente las libertades, que siendo propias del hombre son entre sí recíprocas. (...) He aquí por qué la Ley expresa la esencia misma de la democracia: la libertad, la igualdad, la auto disposición de la sociedad sobre sí misma.4
Como consequência do princípio democrático, a lei passa a desempenhar o papel fundamental de expressar a vontade da população e de impor o limite ao exercício da
TOURAINE. Qu’est-ce que la démocratie?, p. 11. TOURAINE. Qu’est-ce que la démocratie?, p. 37. Tradução livre. 4 GARCÍA DE ENTERRÍA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 26. 2 3
Livro 1.indb 64
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
65
atividade executiva do Estado — daí a construção do modelo a partir do qual ao Estado somente é dado fazer o que lei autorizar. Dentro do modelo de separação dos poderes desenhado por Montesquieu, a função do Poder Executivo será basicamente a de dar executoriedade à lei parlamentar e a função do Poder Judiciário, a de verificar o cumprimento das leis pelo Executivo. O novo salto que se cobra do Estado está ligado mais à forma como ele atua do que ao seu conteúdo. Diante da incapacidade do Estado de responder aos anseios da população, a primeira fórmula apresentada durante a década de 90 para a solução do problema foi a redução do Estado. Verificou-se a sua desqualificação como instrumento capaz de satisfazer às funções sociais ou democráticas que dele se esperava. Esta falsa percepção da incapacidade do Estado de atender às expectativas da sociedade gerou o chamado “choque de eficiência” e provocou o processo que se tornou conhecido como a “fuga do Direito Administrativo”. Em nome da eficiência, buscou-se no Direito Privado a regulação da Administração Pública, fenômeno que, ainda que sujeito a crítica, não pode ser negligenciado. Constata-se que o Regime Jurídico da Administração Pública não se restringe ao Regime Jurídico administrativo, mas também alcança o Direito Privado, utilizado, agora, com muito mais frequência para regular a atuação administrativa do Estado. Como separar, então, o regime jurídico administrativo do regime jurídico da Administração Pública? A resposta a esta pergunta deve ser encontrada em algumas características presentes apenas no regime administrativo, que, a rigor, jamais se afasta totalmente do Direito Público, haja vista em toda atuação da Administração Pública sempre, em alguma medida, estarem presentes regras ou princípios públicos que conferem a ela prerrogativas em face dos particulares, prerrogativas inerentes ao Direito Administrativo. Hoje, avaliados os erros e os acertos desse “choque de eficiência”, vê-se que melhor do que desqualificar o Estado como instrumento para a realização dos direitos sociais e para o atendimento das necessidades da população é dotá-lo de instrumentos capazes de exercer esse mister. Surge então o Estado cooperativo, que busca no setor privado o apoio necessário ao exercício de afazeres públicos. A função do Estado cooperativo é a de dotar a Administração Pública de instrumentos capazes de se relacionar com os segmentos privados empresariais e não empresariais de modo a atender, de modo eficiente, as necessidades da população. Vê-se que do contexto em que surgiu o Direito Administrativo, como o segmento do Direito Público responsável pela fixação de limites ao exercício da atividade administrativa do Estado, aos dias atuais, muito já se fez e, todavia, alguns operadores do Direito Administrativo ainda continuam com a mesma visão do regime administrativo vigente no Estado Liberal. A criação de um novo modelo para o Direito Administrativo, ou seja, a criação do novo regime jurídico administrativo não pode abandonar avanços essenciais à população verificados nos últimos 200 anos de história, sobretudo em relação aos valores sociais e democráticos. Não podemos, todavia, manter para os dias atuais, de globalização, de avanços tecnológicos, de surgimento de novas demandas sociais, a mesma visão do Direito Administrativo do Estado Liberal, ou querer que o Estado seja capaz de atender às expectativas que nele são depositadas com os mesmos instrumentos de atuação do Estado Liberal, totalmente destoantes dos tempos e das necessidades atuais. É em torno desses novos desafios que devemos buscar construir o novo regime administrativo.
Livro 1.indb 65
21/03/2013 17:13:42
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
66
3.2 Regime jurídico administrativo: níveis de realização Vê-se que do contexto histórico em que se formou o Direito Administrativo aos dias atuais, muito foi feito e construído em relação à teoria do Estado, sobretudo no que diz respeito ao dever de realização dos direitos fundamentais e dos interesses público e social. O regime jurídico administrativo não se restringe, hoje, ao exame da lei. Sendo ele o ramo do Direito Público que fixa os princípios e as regras que pautam a atuação das atividades administrativas do Estado, e considerando que a função do Estado Democrático é a de “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”, conforme consta do Preâmbulo da Constituição Federal de 1988, todas as normas jurídicas e, em especial, as de Direito Administrativo, devem ser interpretadas a partir dessa ótica: o Estado existe para realizar o bem-estar da sociedade, para atender às necessidades da população, enfim, para ser instrumento de realização dos direitos fundamentais.5 Com vistas ao exame sistêmico do regime administrativo, podemos apresentá-lo em três diferentes níveis: constitucional, legal e infralegal.
3.2.1 Nível constitucional: Teoria Geral do Direito Administrativo O primeiro nível em que se realiza o regime jurídico administrativo é no plano constitucional. É neste nível onde se forma a Teoria Geral do Direito Administrativo. O Direito Administrativo é o ramo do Direito Público que estabelece as regras e os princípios de que se vale o Estado para exercer sua função administrativa. Quando se examina a Constituição Federal de 1988, constata-se que as principais normas administrativas têm sede constitucional, e que essas normas constitucionais servem de parâmetro para todo o sistema que compreende o regime administrativo. As regras básicas relativas aos principais aspectos que compõem o Direito Administrativo — tais como: princípios administrativos, organização administrativa, processo administrativo, serviços públicos, incluídas as concessões e permissões, licitações e
Acerca da importância dos direitos fundamentais na formação do Direito atual e do seu papel de regulação do poder, em 19 de janeiro de 2004, reunidos na Academia Católica da Baviera, em Munique, o pensador alemão Jürgen Habermas e o então Cardeal Joseph Ratzinger, atual Papa Emérito Bento XVI, promoveram interessante análise sobre “as bases pré-políticas e morais do Estado democrático”. Seguem alguns trechos da resposta apresentada pelo então Cardeal: “A tarefa de colocar o poder sob a medida do direito remete, portanto, à pergunta seguinte: como se forma o direito e o direito deve ser constituído a fim de que seja veículo da justiça, e não um privilégio daqueles que têm o poder de estabelecer o direito? A questão de que o direito não deve ser um instrumento de poder de poucos, mas a expressão de interesse comum a todos, parece resolvido, pelo menos pelos instrumentos de formação democrática da vontade. Apesar disso, me parece, permanece ainda uma pergunta. Já que dificilmente há unanimidade entre os homens, somente às vezes permanece a delegação com instrumento imprescindível da formação democrática da vontade, outras vezes, a decisão da maioria, com o que, segundo a importância da pergunta, ordens de grandeza distintas podem ser empregadas para a maioria mas também as maiorias podem ser cegas ou injustas. A história nos mostra de maneira claríssima. Quando uma maioria, por maior que seja, reprime, com leis opressoras, uma minoria, por exemplo, religiosa ou racial, pode-se, nesse caso, ainda falar de justiça, de direito de modo geral? Os tempos modernos formulam um acervo de tais elementos normativos e diversas declarações de direitos humanos e os retiram do jogo das maiorias. Agora, com a consciência presente, podemos nos dar por satisfeitos com a evidência interna desses valores. Há em vigor, portanto, valores em si, os quais decorrem da essência do ser humano e por isso são intocáveis por todos os portadores dessa essência” (Folha de S.Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno Mais. Tradução de Érika Werner).
5
Livro 1.indb 66
21/03/2013 17:13:42
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
67
contratos administrativos, servidores públicos, entre outros — estão disciplinadas na Constituição, cabendo aos demais níveis — legal e infralegal — do Direito Administrativo papel, hoje, secundário na composição e formação do regime administrativo. A lei que disciplina o processo administrativo no plano federal, por exemplo, Lei nº 9.784/99, por acaso teria opção de adotar soluções diversas daquelas que constam em seu texto? Poderia esta lei deixar de reconhecer os princípios do contraditório, da ampla defesa, da segurança jurídica, da necessidade de fixação de prazo para a Admi nistração Pública anular seus atos, de delegação de competência, de motivação? O papel assumido pela lei em matéria de processo administrativo, bem como em todos os demais temas mencionados (contratos, licitações, serviços públicos etc.), é quase sempre o de tratar de aspectos formais e, salvo em alguns aspectos pontuais, pode a lei inovar sem que esteja o legislador compelido por força de normas constitucionais a adotar determinadas soluções constitucionais. Daí a necessidade de se reconhecer que o primeiro plano do regime administrativo corresponde àquele que indicamos no Capítulo 1, que compreende a Teoria Geral do Direito Administrativo. As normas da Teoria Geral do Direito Administrativo compõem o núcleo do regime jurídico administrativo, ou, segundo o modelo kelseniano, formam o ápice da pirâmide e exigem que todas as demais normas do regime não apenas estejam de acordo com este núcleo, mas que busquem realizá-lo. Exige-se do legislador não apenas o dever de aprovar leis que não colidam com as normas do núcleo, mas que as realizem. Questão mais teórica do que prática consiste em saber qual é o primeiro plano do regime jurídico de um país, e não apenas o regime administrativo, se são as normas constitucionais ou os direitos fundamentais. Trata-se de questão de muito pouca utilidade prática na medida em que todas constituições democráticas modernas adotam como parte integrante e fundamental de seus textos a realização dos direitos fundamentais. Torna-se, portanto, desnecessário buscar a primazia de um sobre o outro na medida em que um — o texto constitucional — adota o outro — os direitos humanos — como parte de seu corpo — ainda que não se possa negar que estes últimos gozam de importância especial na medida em que servem de balizamento para a interpretação dos dispositivos constitucionais. Dentro da Teoria Geral do Direito Administrativo, os princípios da Administração Pública desempenham papel fundamental. Deles nos ocuparemos mais adiante.
3.2.2 Nível legal A lei que, ao menos em tese, é o instrumento democrático e que representa a vontade geral do povo continua a desempenhar papel fundamental no regime jurídico administrativo.6 Muito se tem falado sobre a crise da lei. Esta crise existe, porém não se deve a essa crise a perda da importância da lei no regime administrativo. A crise da lei decorre, 6
Livro 1.indb 67
Não é objeto desse trabalho examinar as disfunções do processo democrático. Todavia, podemos apenas apresentar a grave crise por que atravessam os sistemas democráticos na medida em que os legisladores, eleitos para representar o povo, por diversas razões (submissão ao Executivo, atuação de grupos organizados ou pura e simples corrupção), afastam-se totalmente de seu papel de representação e comprometem a máxima democrática segundo a qual democracia é o governo do povo pelo povo. A salvação da democracia reside no fato de que, por pior que ela seja, por maior que seja a falta de credibilidade da população em seus representantes, ela sempre será melhor do que qualquer ditadura.
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
68
antes, da perda do seu caráter de abstração e de generalidade. Legisla-se para atender a questões particulares. Diante de determinado fato que tenha tido repercussão nos meios de comunicação, no dia seguinte já se aprova novo texto legal. A crise da lei decorre igualmente do processo de “captura” do Poder Legislativo pelo Executivo. O legislador, que deveria agir como representante do povo e aprovar leis que limitariam a atividade do administrador, principal instrumento do sistema de freios e contrapesos da teoria da separação de poderes, diante do processo de captura, passa a aprovar somente as leis que o Executivo deseja. A prova disso está no fato de que a grande maioria das leis aprovadas pelo Parlamento são de iniciativa do chefe do Executivo. A perda da importância da lei no Direito Administrativo não está, portanto, diretamente associada à mencionada crise do Direito. Ela se deve, em primeiro lugar, à valorização que o ordenamento jurídico confere às normas de estatura constitucional. Conforme visto no item anterior, os parâmetros básicos e definidores do regime jurídico administrativo se encontram no corpo da Constituição Federal, sobretudo quando esta estabelece de modo expresso ou implícito os princípios constitucionais que irão nortear o legislador em seu processo de criação legislativa. O segundo fator responsável pela perda da importância da lei corresponde à tendência de valorização das normas infralegais, conforme examinaremos em seguida.
3.2.3 Nível infralegal O terceiro plano do regime administrativo compreende as normas previstas em decretos, regulamentos, portarias, instruções normativas etc. Não se pretende, de modo algum, admitir inversão da hierarquia normativa. As normas infralegais devem observar estritamente o que dispõe a lei, não podendo, em hipótese alguma, contrariá-la. O aumento da importância dos textos infralegais se deve a alguns fatores de ordem mais prática do que propriamente jurídica. As normas administrativas devem sempre estar em condições de responder de modo satisfatório às necessidades da população. Responder satisfatoriamente às demandas da população significa dizer que a Administração deve ser capaz de apresentar soluções rápidas, tecnicamente adequadas e socialmente justas. A rapidez com que surgem novas demandas sociais impede que lei formal — em função do lento processo legislativo — seja capaz de atender às necessidades da população. Algumas circunstâncias práticas demonstram a incapacidade da lei de atender às demandas da população. Tomemos o excesso de medidas provisórias que, desde a vigência da Constituição Federal de 1988, têm sido objeto de permanente crítica. Por que todos os governos editam tantas medidas provisórias? Se o Presidente da República pode enviar ao Congresso projeto de lei e solicitar a sua tramitação em regime de urgência, por que se sujeitar a críticas e editar medida provisória? A resposta é evidente: porque com a medida provisória se obtém resposta normativa imediata para a questão que reclama regulamentação, rapidez que não será encontrada na tramitação do projeto de lei. A competência normativa conferida às agências reguladoras demonstra a necessidade de regulação técnica de determinadas matérias, outro aspecto que nem sempre se alcança com a lei. Não se pode querer, a partir dessa constatação, inferir que lei não
Livro 1.indb 68
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
69
possa tratar de questões técnicas. A rigor, observado o plano constitucional, o legislador possui ampla liberdade de criação, inclusive no campo técnico. Em muitas situações, é o próprio legislador que transfere ampla competência normativa às entidades admi nistrativas quando confere discricionariedade técnica a entidades administrativas espe cializadas em determinados temas. Estas normas técnicas são editadas por unidades administrativas — especialmente por agências reguladoras — em observância ao que dispõe a própria legislação A discricionariedade administrativa decorre da lei. Para que algum órgão ou entidade possa exercer discricionariedade, é necessário que lei tenha conferido a essa unidade administrativa a competência necessária para o exercício dessa potestade. A discricionariedade técnica, espécie de discricionariedade administrativa, fonte da capacidade das agências reguladoras para normatizar determinadas situações, decorre diretamente da lei, o que afasta qualquer pretensão de se enxergar no aumento da importância que os textos infralegais assumem no Direito Administrativo a existência de conflito ou de crise entre o órgão ou entidade administrativa que exerce competência normativa e o Poder Legislativo. Outra hipótese em se verifica expressa delegação de competência ocorre quando a lei se vale da técnica de legislar em branco. Nesta situação, o legislador expressamente remete ao administrador a função de completar o conteúdo de certas leis por meio da edição de atos normativos. Diante desse novo contexto, poder-se-ia falar em perda ou redução da importância do legislador ou do Poder Legislativo? Isto não ocorre. O que se verifica é apenas a mudança de função dos órgãos legislativos. Estes, a quem historicamente se atribuía exclusividade no processo de criação das normas de Direito Administrativo, têm esse papel reduzido, e passam a exercer a nova função na distribuição das competências do Estado. A transferência para o Executivo de parcela da competência normativa do Estado cria para o legislador novo papel, de fiscal do exercício das atividades administrativas, inclusive no que diz respeito ao exercício da competência normativa, podendo, por exemplo, sobrestar ato normativo do Executivo que extrapole os limites do poder regulamentar (CF, art. 49, V). É importante observar que a ampliação da importância normativa dos órgãos executivos possui limites bem definidos: 1. A criação de órgãos ou entidades públicas depende de lei; 2. O exercício de qualquer atribuição por parte das unidades administrativas que importe na criação de obrigações, ou na restrição ou limitação do exercício de qualquer direito ou atividade por parte de particulares depende de lei; 3. Se a Constituição Federal determina ou requer a normatização de determinada matéria por meio de lei, norma infralegal não pode regular o tema. Em relação à primeira hipótese, remetemos o leitor para o Capítulo 1 deste livro, na seção em que se examina o princípio da reserva institucional. O exercício de atribuições por parte da Administração Pública — segunda limitação ao exercício normativo pelo Executivo — merece algumas considerações adicionais, a começar pelo fato de que as atividades administrativas estatais se dividem em duas categorias básicas: 1. prestacionais; 2. interventivas.
Livro 1.indb 69
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
70
No exercício das suas atividades prestacionais, o Estado põe à disposição da sociedade utilidades, presta serviços, cria programas de governo etc. Ao exercer a sua potestade interventiva, o Estado, ao contrário, limita o exercício de direitos, de atividades. Se lei, por exemplo, confere a determinado órgão competências genéricas para exercer atividades prestacionais, é absurdo querer que cada uma das atividades desse órgão seja prevista em lei. Desde que haja previsão orçamentária, e o órgão possa legitimar sua atuação em competência legal genérica, ele pode desenvolver determinadas atividades — como um programa de governo — sem que isso importe em violação de qualquer preceito constitucional. Se o órgão exerce atribuições interventivas, que objetivam limitar o exercício de direitos e criar obrigações para os particulares, cada atividade ou a prática de qualquer ato depende de expressa e prévia previsão legal, afinal, o Estado não pode exigir que alguém faça ou deixe de fazer algo, salvo em virtude de lei (CF, art. 5º, II). Exemplo evidente de violação da terceira hipótese de limitação ao exercício de competência normativa infralegal corresponde ao Decreto nº 2.745/98, que determina, dentre outros aspectos, que as licitações da Petrobras não se submetem à lei, mas às normas do próprio decreto. Nos termos dos artigos 22, XXVII, e 173, §1º, o regime jurídico das empresas estatais exploradoras de atividades empresariais deve ser disciplinado por lei. Ora, se o próprio texto constitucional exige que lei seja o instrumento regulador de determinado tema, decreto ou qualquer outro texto infralegal, não pode, sob pena de inconstitucionalidade, tratar desse assunto. É evidente que inclusive nessas hipóteses, pode o legislador remeter ao Executivo o tratamento de alguns aspectos pontuais, técnicos e bem definidos na própria lei. Não se admite, ao contrário, que a Constituição Federal determine que lei regule certo assunto, e a lei simplesmente transferir toda a regulação ao Executivo.7
3.3 Regime jurídico administrativo e interesse público O Estado cooperativo — que compreende o Estado de Direito, Social e Democrático — tem objetivos básicos que lhes são conferidos pelas Constituições de cada país. No caso do Brasil, o art. 3º do texto constitucional estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A fim de que o Estado brasileiro, ou qualquer outro sujeito a regime democrático, possa cumprir seus objetivos, é necessário que o ordenamento jurídico lhe confira determinadas prerrogativas, e não se pode querer que a realização de tão elevados misteres seja alcançada por meio de instrumentos existentes no próprio setor privado, no mercado.
Não obstante tais considerações, necessário registrar que a Petrobras obteve liminar no STF que garante à empresa a aplicação do Regulamento de Procedimento Licitatório Simplificado (Mandado de Segurança nº 25.888).
7
Livro 1.indb 70
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
71
Não se pode negar, ao menos em sociedades como a brasileira, que padece de profundos problemas de desigualdades sociais, econômicas e tecnológicas, que os instrumentos do mercado não são capazes de organizar a sociedade de modo a buscar a realização dos objetivos da nossa República. Deve ser reconhecido que sem a participação dos setores privados empresariais e não empresariais o Estado não pode, sozinho, buscar alcançar referidos objetivos. Sem o Estado, os segmentos privados também não são capazes de se articular a fim de superar as dificuldades estruturais que fazem com que em nossa sociedade, até nos dias atuais, haja fome, pobreza, falta de assistência social, analfabetismo e diversas outras mazelas que deveriam há muito tempo ter sido eliminadas. As prerrogativas criadas pelo Direito Administrativo, e que constituem a sua principal característica, existem para permitir a realização dos objetivos do Estado de Direito, Social e Democrático, e essas prerrogativas estão diretamente relacionadas ao atendimento do interesse público. Indiscutível que o Estado é o titular mais qualificado para a formulação e o exercício desses interesses. Não possui, todavia, a exclusividade em nenhum desses dois momentos — definição do que é o interesse público ou legitimidade para o seu exercício. O conceito de interesse público não é metajurídico. Não é possível admitir a existência de interesses públicos previamente definidos fora da ordem jurídica, ordem jurídica que pressupõe a observância dos direitos fundamentais, fonte de inspiração para a elaboração de inúmeras regras e princípios constitucionais. O interesse público será concretizado por meio do processo de elaboração do Direito Positivo. Cabe à Constituição Federal, como principal fonte do Direito Administrativo, e à lei identificarem o que é o interesse público, definir como se deve proceder para dar a ele executoriedade e quem possui legitimidade para, em seu nome, exercer alguma prerrogativa. De se observar, todavia, a necessidade da legislação se conformar com a Constituição que alberga em seu núcleo os direitos fundamentais. A definição do interesse público decorre, em primeiro lugar, da realização dos direitos fundamentais concretizados em qualquer texto constitucional moderno, inclusive na Constituição Federal brasileira de 1988. Interesse público é aquele que realiza direito fundamental.8 A fim de dar maior racionalidade e segurança ao sistema jurídico, cabe ao legislador definir os parâmetros para o exercício desses direitos. Não é possível inferir-se que o Estado, ao exercer a sua função executiva, seja o único titular ou o único legitimado a se utilizar de prerrogativas decorrentes desses interesses. Em inúmeras situações, o Direito Positivo, particularmente a Constituição Federal, confere ao particular a legitimidade para realizar e defender o interesse público, ainda que esse possa ser utilizado como instrumento contrário aos interesses da própria Administração Pública — o que se verifica, por exemplo, quando juiz dá provimento a ação popular para determinar a paralisação de obra pública que não observe exigências ambientais. O Direito Positivo confere com mais frequência ao Estado prerrogativas para a realização de interesses públicos. Não é possível, todavia, inferir-se que o Estado seja o seu único titular. Sobre o tema, Marçal Justen Filho anota: “O interesse público se perfaz com a satisfação de necessidades de segmentos da população, em um momento concreto, para realizar os valores fundamentais. O interesse público é o interesse da sociedade e da população, mas voltado à realização dos valores de mais elevada hierarquia” (Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, p. 129).
8
Livro 1.indb 71
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
72
Desse modo, em primeiro lugar, merece ser qualificado como público apenas aquele interesse que pela sua importância seja elevado à categoria de interesse geral, de toda a sociedade, e em cujo nome pode-se exigir limitação ou restrição de interesse privado. É certo que na elaboração das normas de Direito Administrativo, que disciplinam o exercício da função executiva do Estado, o interesse público interfere para conferir prerrogativas a determinados titulares ou impor limites ou restrições a outros. A rigor, a participação do interesse público no processo de elaboração legislativa está longe de ser exclusividade do Direito Administrativo. Afinal, não está o interesse público sempre presente na elaboração de toda e qualquer norma constitucional, ou de Direito Penal, de modo talvez ainda mais intenso do que ocorre na elaboração da norma de Direito Administrativo? A titularidade para o exercício de interesses públicos decorre, de forma imediata, do Direito Positivo, principalmente da lei, e de modo mediato dos direitos fundamentais. Sendo decorrentes do Direito Positivo, as prerrogativas conferidas em nome de referidos interesses são exercidas nos estritos limites da lei. Além disso, possuem legitimidade para exercer prerrogativas decorrentes dos interesses públicos, no âmbito estatal, alguns órgãos independentes, como as defensorias públicas ou o Ministério Público, que postulam e zelam sistematicamente pela defesa dos interesses públicos. A ordem jurídica confere a titularidade de interesses públicos e, portanto, a legitimidade para o seu exercício aos particulares, à sociedade civil organizada — sindicatos, associações, fundações, cooperativas etc. Em regimes democráticos, interesses públicos são interesses gerais da sociedade que se sujeitam a processo de elevação a esta categoria especial. O processo legitimado a alçar interesses gerais à categoria de interesses públicos é o processo legislativo, e a Constituição Federal e a lei são os instrumentos hábeis à declaração dos interesses públicos. Feitos esses esclarecimentos, pode-se perceber facilmente que as prerrogativas conferidas pelo Direito Administrativo estão diretamente relacionadas à realização dos interesses públicos. O poder do Estado de desapropriar bens, a presunção de legitimidade dos atos administrativos, a prerrogativa do Estado de exigir, por meio de atos unilaterais, determinados comportamentos positivos ou negativos dos particulares, o poder de anular ou de revogar seus próprios atos, de modificar unilateralmente seus contratos são alguns exemplos de prerrogativas que o Direito Administrativo confere à Administração Pública. Todas essas prerrogativas existem e devem ser exercidas tendo como único e exclusivo objetivo a realização do interesse público. Poderíamos concluir que o binômio prerrogativas públicas/interesses públicos confere ao regime jurídico administrativo a sua principal característica, e esta pode ser traduzida pela seguinte expressão: o regime jurídico administrativo se caracteriza pela realização do interesse público. Em razão dessa constatação, de que é o regime administrativo que assegura os instrumentos necessários à consecução dos interesses públicos, parece ser um contrassenso a Administração Pública ir, com cada vez mais frequência, buscar no Direito Privado regras para disciplinar sua atuação. Esse contrassenso, como dito, é aparente. Em primeiro lugar, ainda que a Admi nistração possa servir-se do Direito Privado, há aspectos do Regime administrativo
Livro 1.indb 72
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
73
inafastáveis na atuação da Administração Pública, especialmente no que concerne à aplicação dos princípios gerais da Administração Pública. Ou seja, o Direito Privado aplicável à atividade administrativa do Estado não derroga ou afasta todo o Direito Administrativo. Em segundo lugar, não existe contrassenso na utilização do Direito Privado pela Administração Pública, porque somente algumas atividades administrativas do Estado podem ser disciplinadas pelo Direito Privado — sobretudo aquelas prestacionais, em que a Administração não impõe sua vontade aos particulares, mas simplesmente lhes presta serviços ou lhes põe à disposição utilidades. É possível em situações como essas, de atividades prestacionais, a Administração Pública utilizar o Direito Privado, porque simplesmente não se faz necessária a utilização de qualquer prerrogativa pública para que o interesse público possa ser alcançado. Quando a Administração, diretamente ou por meio de entidade privada, presta serviços assistenciais de apoio a deficientes físicos ou mentais, por exemplo, qual a necessidade de ser utilizada qualquer prerrogativa pública? Isto não impede, no entanto, que a prestação desses serviços, ainda que tenha sido delegada a sua execução a particulares, observe padrões de moralidade, de publicidade, de impessoalidade etc., porque, como já afirmado, o Direito Privado nunca derroga totalmente o Direito Administrativo. Quando, todavia, a Administração Pública exerce sua atividade interventiva na esfera privada — restringindo o exercício de atividades empresariais ou profissionais, condicionando o uso da propriedade privada, exercendo, enfim, o seu poder de polícia —, as normas de que ela vai-se valer são necessariamente as do regime administrativo.
3.4 Interesse público: planos de realização A grande maioria da doutrina pátria segue os ensinamentos do administrativista italiano Renato Alessi, para quem o interesse público se divide em dois: 1. Interesse público primário, que corresponde ao estrito cumprimento da lei; e 2. Interesse público secundário, entendido como a necessidade de a Administração obter vantagens para si.9 A partir dessa separação, conclui-se que o interesse público secundário somente é legítimo na medida em que se verifique o cumprimento da lei, entendido este último como o interesse público primário. Essas considerações são da mais alta importância para a compreensão do que é o interesse público, e, sobretudo, para quebrar a percepção de que os administradores podem tudo para obter vantagens para a Administração. O limite para a obtenção de vantagens é a lei, e, dentre as opções de agir que a lei faculte ao administrador, ele deve optar por aquela que mais benefício traga para o Estado. Essas considerações são procedentes e necessárias para a compreensão do que é o interesse público. Entendemos, todavia, que considerações de outra ordem também possam ser aduzidas de modo a identificar com mais precisão como surgem esses interesses e como deve o administrador (ou o particular incumbido de executar tarefa pública) agir para realizá-lo. 9
Livro 1.indb 73
ALESSI. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano apud BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 57.
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
74
O regime jurídico administrativo está, conforme examinamos no item anterior, diretamente relacionado à realização do interesse público, que constitui a própria razão de ser do Direito Administrativo. O processo para a realização do interesse público deve ser examinado em três planos sequenciais, sob pena de se frustrarem as expectativas incorporadas no ordenamento jurídico e de ocorrerem desvios. São os seguintes os planos em que se devem realizar os interesses públicos: 1. Plano constitucional – ou dos direitos humanos; 2. Plano legal; 3. Plano econômico – ou da economicidade. O processo de elevação de determinados interesses à categoria de interesse público está diretamente relacionado à busca pela realização dos fins do Estado. No caso particular do Estado brasileiro, o exame dos seus objetivos que estão elencados no art. 3º da Constituição Federal leva-nos à conclusão de que, além do desenvolvimento nacional (art. 3º, II), todos os demais estão diretamente vinculados à observância dos direitos humanos, especialmente no que concerne à realização da dignidade da pessoa humana. O primeiro plano de realização do interesse público é o da busca pela realização dos direitos humanos, sobretudo em relação ao princípio da valorização da dignidade da pessoa humana. Esse é o ponto de partida para o exame do interesse público. De nada adianta o estrito cumprimento da lei, ou a obtenção de vantagens para o Estado ou para a Administração Pública se isso importa em afastamento ou o descumprimento dos direitos fundamentais. De se observar que os direitos humanos estão incorporados nos textos constitucionais e que, portanto, a interpretação e aplicação de todos os demais textos normativos infraconstitucionais devem ocorrer tendo (os direitos humanos e os pri ncípios constitucionais como parâmetro) como parâmetro os referidos direitos e os próprios princípios constitucionais. A lei, que nos sistemas democráticos é o instrumento mais abalizado para expres sar o interesse público, deve ser interpretada e aplicada tendo em vista essa superestrutura normativa. Isso evita que a lei seja simplesmente a manifestação de vontade da maioria, mas seja, desde um ponto de vista axiológico ou valorativo, o instrumento para a maioria expressar sua vontade em conformidade com limites ou parâmetros que lhes estão sobrepostos e reclamam o seu cumprimento, a sua plena realização, e não apenas a sua não infringência. Impõe-se ao legislador o dever positivo de, ao legislar, criar mecanismos para a realização dos direitos humanos. Esse primeiro nível vincula não apenas o legislador, mas o administrador, aquele responsável pela aplicação da lei. Tomemos a hipótese de determinado agente público que, diante de infração administrativa praticada por empresa disponha de duas opções ou sanções que poderiam ser indistintamente aplicadas: multa ou interdição de estabelecimento. A aplicação do princípio in dubio pro libertatis, surgido ainda nos primórdios do Estado de Direito, deve conduzir a Administração a optar pela sanção que não importe no fechamento do estabelecimento. É evidente que, se em função da infração cometida, a lei requerer a aplicação da sanção mais grave, ela deve ser aplicada. Havendo dúvida, deve-se optar pela sanção menos grave igualmente em função da aplicação do princípio da proporcionalidade. Mais do que o cumprimento da lei — que constitui o segundo nível de realização dos interesses públicos —, o primeiro nível em que se deve buscar a realização do
Livro 1.indb 74
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
75
interesse público primário está diretamente relacionado à prevalência e à necessidade de conformação da lei e dos atos praticados pela Administração aos direitos humanos. O segundo plano em que os interesses públicos devem-se realizar é no plano legal. A lei, nos regimes democráticos, é a expressão de vontade da maioria representada nos parlamentos, observados os parâmetros constitucionais de realização dos direitos fundamentais. Ainda que se verifique certa perda na importância da lei na formação do regime administrativo, perda que se pode atribuir em grande parte à maior importância que se tem atribuído diretamente aos textos constitucionais, ela continua a desempenhar função da mais alta relevância no sistema jurídico administrativo. Não obstante se constate que várias das prerrogativas públicas criadas para permitir a realização dos fins do Estado decorram diretamente do texto constitucional, a função da lei, em várias situações, é a de fixar limites ou de definir a forma ou o procedimento a ser observado pelo administrador na utilização dessa prerrogativa. Tomemos, aqui, a Súmula nº 473 do STF, que reconheceu à Administração Pública o poder de anular ou revogar seus atos, independentemente de intervenção judicial. O poder da Administração de anular seus próprios atos deve estar sujeito a limites. Antes mesmo da edição da Lei nº 9.784/99 já era reclamada a fixação de limite temporal para a Administração poder exercer a prerrogativa de anular atos administrativos, haja vista ser incompatível com o princípio da segurança jurídica a possibilidade de o poder público poder exercê-la a qualquer tempo. Coube à lei a fixação do limite de cinco anos para o exercício da prerrogativa pública — art. 54 da citada Lei nº 9.784/99. Em matéria de desapropriação, a prerrogativa da Administração de invocar necessidade ou utilidade pública ou interesse social e privar alguém de sua propriedade decorre do texto constitucional (art. 5º, XXIV). Os procedimentos a serem observados pela Administração se encontram definidos em lei. Não se pode concluir que lei não possa criar prerrogativa. Em muitas situações, a prerrogativa pública necessária à realização do interesse público não está prevista na Constituição Federal, mas é criada pela lei. Isso se verifica, por exemplo, no poder da Administração de unilateralmente rescindir seus contratos (Lei nº 8.666/93, artigos 58, II, 77, 78 e 79, I). A grande maioria das prerrogativas necessárias à realização dos interesses públi cos decorre de maneira explícita (poder de desapropriar, por exemplo) ou implícita (presunção de legitimidade dos atos administrativos) da própria Constituição Federal, cabendo à lei papel secundário no processo de criação das prerrogativas públicas. Não se pode admitir a criação de prerrogativas públicas por meio de instrumentos infralegais. Aceitamos que decretos, resoluções, instruções normativas etc. sejam fonte do Direito Administrativo. Falta-lhes, todavia, a capacidade de criar qualquer prerrogativa (CF, art. 5º, II). Deve-se, aqui, ter muito cuidado para que o legislador, a pretexto de conferir discricionariedade ou por meio de legislação em branco, não transfira ao Executivo o poder de criar prerrogativas públicas. Qualquer prerrogativa pública que importe em exercício de supremacia sobre particulares deve ter sido criada e definida em lei, a quem cumpre, inclusive, a fixação dos limites para o exercício da prerrogativa. O terceiro plano para a realização do interesse público corresponde à obtenção de vantagens para a Administração Pública. Deve-se, aqui, uma vez mais, ter cuidado. A finalidade de qualquer órgão ou entidade da Administração Pública não é, jamais, a simples obtenção de lucros ou de
Livro 1.indb 75
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
76
vantagens econômicas. Mesmo no caso de empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, a entidade existe como instrumento necessário aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput). Não se pode enxergar, aqui, vedação à obtenção de lucro, sobretudo em relação a essas empresas estatais. Mas ele não é o único, nem o mais importante objetivo de qualquer unidade administrativa, inclusive de uma empresa estatal. O Banco do Brasil, por exemplo, pode agir de modo a obter lucro, mesmo por que existe participação de particulares em seu capital social. O Estado não pode, todavia, criar entidade pública apenas para lucrar, haja vista o lucro não constituir objetivo do Estado. Impõe-se, todavia, aos gestores públicos a obrigação de considerar a atuação das unidades administrativas sob a ótica da economicidade. A rigor, a economicidade, compreende três diferentes aspectos: a eficiência, a eficácia e a efetividade. O exame da eficiência os obriga a considerar a relação custo benefício da atuação administrativa. Deve o agente público considerar o volume de insumo necessário à produção do resultado que se busca. O controle de eficácia dá relevo aos resultados. Busca-se verificar apenas se a atividade administrativa produz os resultados esperados. O exame da eficácia restringe-se tão somente aos resultados da atuação administrativa. Em relação à efetividade, busca-se verificar se os resultados programados ou planejados para determinadas atividades administrativas foram alcançados. Tomemos o exemplo de programa de governo que tenha por objetivo criar emprego para jovens. O exame da eficiência requer a ponderação de quantos recursos serão necessários para produzir determinados resultados (quantos recursos são necessários para alcançar os objetivos pretendidos?). A eficácia do programa pode ser medida examinando os resultados do programa (quantos empregos foram efetivamente criados?). E o controle de efetividade examina se os resultados projetados ou planejados foram alcançados (os empregos que o programa buscava criar foram efetivamente criados?). Atuação vantajosa é aquela que considera os diversos aspectos da economicidade para a Administração Pública. Planejamento, definição de estratégias, fixação de metas, avaliação de metas, controle de custos, controle de resultados são os aspectos a serem considerados para que seja realizado o terceiro plano do interesse público. É evidente que dentro desse processo devem os agentes procurar, por exemplo, contratações mais vantajosas — o que não significa, necessariamente, contratações mais baratas. A redução dos custos é apenas uma das tarefas a ser cumprida pelos administradores para a realização do terceiro plano do interesse público.
3.5 Supremacia e indisponibilidade do interesse público Nos itens anteriores, examinamos os níveis em que ocorre a realização do interesse público e vimos ainda que a principal característica do regime jurídico administrativo consiste na presença de prerrogativas necessárias à realização dos interesses públicos. A realização do interesse público importa em dois aspectos fundamentais, que são normalmente apresentados como as características do mencionado regime, são elas: 1. Supremacia do interesse público sobre o interesse privado; 2. Indisponibilidade do interesse público.
Livro 1.indb 76
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
77
Acerca da supremacia do interesse público, a primeira observação a ser feita é no sentido de que não existem interesses públicos presumidos ou ilimitados. Eles somente existem após serem reconhecidos pela Constituição Federal ou por lei como tais, e necessariamente terão limites também fixados pela Constituição ou pela lei. A segunda observação questiona a legitimidade ou o momento em que é feita a valoração acerca da necessidade de determinados interesses serem elevados à categoria de públicos e de se sobreporem a outros interesses, igualmente legítimos. Essa valoração ou definição de hierarquia de interesses é tarefa que cabe ao legislador, ou ao constituinte, e não ao administrador público. Cabe à Constituição ou à lei proceder a esse juízo de ponderação e atribuir a alguns interesses supremacia sobre outros. Realizado esse trabalho de ponderação, o legislador irá conferir a determinadas pessoas, sobretudo ao Estado, determinadas prerrogativas públicas, que extrapolam do Direito comum, prerrogativas necessárias à realização desses interesses que foram reconhecidos pelos representantes da população como os mais importantes para o País. Coube ao legislador reconhecer, por exemplo, que a Administração Pública poderia melhor realizar os seus objetivos legais ou constitucionais se tivesse o poder de unilateralmente modificar seus contratos. Nos termos da Lei nº 8.666/93, artigos 58, I, e 65, I e §1º, é conferida à administração contratante a prerrogativa de proceder, como regra, a modificações unilaterais de até 25% do valor inicial do contrato, tanto para os aumentos quanto para as supressões. Em que consiste, no caso, o que se denomina supremacia do interesse público sobre o interesse privado? Consiste no exercício, por parte do administrador, responsável pela aplicação da mencionada norma, da utilização de referida prerrogativa. Outro exemplo, este de estatura constitucional, de exercício de prerrogativa pública corresponde ao próprio poder expropriatório do Estado (CF, art. 5º, XXIV). De um lado temos o interesse do particular de conservar sua propriedade, reconhecida pela Constituição Federal (art. 5º, caput) como direito fundamental. Do outro, o interesse da Administração Pública de dar ao bem finalidade de interesse social ou de necessidade ou utilidade pública. Coube à própria Constituição conferir à Administração Pública referido poder expropriatório outorgando-lhe a prerrogativa de, após o pagamento de indenização prévia, justa e, como regra, em dinheiro, independentemente de consentimento do particular, tomar-lhe sua propriedade. Mais uma vez, a ponderação acerca de quais interesses devem prevalecer sobre outros foi feita pela Constituição Federal e disciplinada por lei e resultou na prerrogativa expropriatória do Estado. A supremacia do interesse público sobre o interesse privado consiste, portanto, tão somente, no exercício das prerrogativas públicas, prerrogativas que afastam ou prevalecem sobre outros interesses. A realização do interesse público não se restringe, todavia, à noção de supremacia, mas alcança igualmente a indisponibilidade do interesse público. Não falamos em indisponibilidade do interesse público pela Administração Pública porque não necessariamente cabe apenas à Administração a legitimidade para o exercício da potestade pública. Falar em indisponibilidade importa em cobrar do agente público ou privado responsável pelo exercício da prerrogativa fidelidade aos fins visados pelos criadores dessa prerrogativa. Conforme mencionamos, as prerrogativas são criadas pela Constituição e pelas leis. Cabe àqueles que as aplicam identificarem os fins que justificaram a criação da prerrogativa pública — e aqui nos reportamos aos três níveis de realização
Livro 1.indb 77
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
78
dos interesses públicos: constitucional, legal e econômico — e atuarem de modo a realizar referidos fins.
3.6 Princípios gerais da Administração Pública O regime jurídico administrativo compõe-se de preceitos jurídicos disciplinadores do exercício da atividade administrativa do Estado. Estes preceitos estão contidos em normas de duas diferentes categorias: os princípios e as regras.10 Os princípios constituem as proposições básicas do sistema. Todas as demais normas que integram o regime jurídico administrativo devem buscar a sua conformação com esses princípios; são eles, portanto, que dão coesão e lógica ao sistema jurídico administrativo. A importância dos princípios está no fato de que, em primeiro lugar, eles servem de parâmetro para a interpretação de todas as regras. Se determinado dispositivo legal ou regulamentar permitir mais de uma interpretação possível, deve-se optar por aquela que melhor realize os princípios. Outra grande função dos princípios é a de apresentar soluções para questões não tratadas diretamente pelas regras. Se determinado agente público se depara com situação para a qual deve apresentar solução e existe regra jurídica que aponta de forma evidente a solução, deve ele seguir essa regra. Todavia, isso nem sempre ocorre. Quantas vezes vê-se o administrador público diante de situação para a qual nem a lei, nem os regulamentos, nem a doutrina, nem qualquer outra fonte possível apresenta solução e ele é, por dever de ofício, chamado a tomar alguma medida ou decisão. Como proceder em situações como essas, tão comuns no serviço público? A solução está na utilização dos princípios. Devido ao seu elevado nível de abstração, os princípios prestam-se a resolver questões e permitem que o administrador apresente soluções juridicamente fundamentadas. Se não existe regra que permita, por meio de sua aplicação direta, apresentar a solução jurídica para o problema real, o exame dos princípios gerais da Administração Pública sempre apresentará a solução. A moralidade, a impessoalidade, a eficiência, a razoabilidade, a finalidade, a motivação e tantos outros sempre permitem a construção de soluções juridicamente adequadas tanto para questões já enfrentadas quanto para as novas situações nunca enfrentadas e que requerem a adoção de solução por parte do administrador. Desde que o administrador motive a decisão adotada, motivação que terá como fundamento para decidir a utilização de princípios, é possível até que algum órgão de controle interno ou externo discorde da solução, mas não poderá, de modo algum, atribuir responsabilidade àquele gestor. Questão tormentosa se verifica quando dois princípios aparentemente entram em colisão. Este tema — da colisão de princípios — tem sido objeto de estudo mais detido no âmbito da hermenêutica constitucional. Como deve proceder, por exemplo, quando a adoção da solução proposta pela lei importar em quebra da eficiência? Ou se determinada solução legal violar a moralidade?
10
José Joaquim Gomes Canotilho: “as regras e princípios são duas espécies de normas; a distinção ente regras e princípios é uma distinção entre duas espécies normativas” (Direito constitucional e teoria da Constituição, p. 1160).
Livro 1.indb 78
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
79
No âmbito da hermenêutica constitucional, a doutrina majoritária não estabelece hierarquia de princípios.11 Na eventualidade da aplicação de um princípio importar em quebra de outro, não cabe falar que se deva dar primazia a um em detrimento do outro princípio.12 O aplicador das normas do Direito Administrativo, bem como de qualquer outro ramo do Direito, deve procurar solução que concilie os princípios. Se a lei permite mais de uma solução de agir, deve o administrador buscar aquela que melhor realize a eficiência. Não se admite, todavia, que o argumento de que determinada solução legal é ineficiente importe em descumprimento da lei, ou em adoção de solução estranha à lei — o que em Direito Administrativo equivale a violar a lei. Não pode o princípio da eficiência importar em afastamento do administrador do princípio da legalidade. O inverso é igualmente verdadeiro. Ao interpretar a lei, deve o gestor buscar a solução mais eficiente, de modo a realizar os dois princípios (legalidade e eficiência), e não apenas um deles. Em casos de aparente conflito entre moralidade e legalidade, o mesmo raciocínio deve ser utilizado. Se lei permite mais de uma interpretação possível, deve o administrador optar por aquela que realize a moralidade. A razoabilidade, que é princípio da Administração Pública e requer sempre juízo de ponderação, é, nos dias atuais, instrumento extremamente útil para auxiliar o aplicador das normas administrativas na eventualidade de surgirem aparentes conflitos entre princípios. Temos utilizado, aqui, o termo aparente porque a utilização correta dos mecanismos de interpretação e de aplicação das normas jurídicas evitam que na construção da norma do caso ocorra referida colisão. Essa colisão ou conflito é sempre aparente. Ela somente se verifica em tese. Quando o aplicador da norma administrativa se deparar com essas situações, no processo de interpretação do Direito — que parte da situação fática a ser regulada, das normas em abstrato e chega à norma do caso, aquela que apresenta a solução juridicamente adequada para o caso que se examina —, o conflito desaparece se for utilizado critério de ponderação e de acomodação dos princípios, evitando-se sempre que a aplicação de um princípio afaste outro, mas, ao contrário, buscando-se, ao máximo, dar a maior efetividade possível aos princípios. A utilização da expressão princípios gerais se deve ao fato de que examinaremos, agora, apenas os princípios aplicáveis a todo o sistema, aqueles que fazem parte fundamental da Teoria Geral do Direito Administrativo. Existem, no regime administrativo,
Paulo Bonavides aborda a questão da seguinte maneira, reportando-se aos ensinamentos de Dworkin: “O conceito de validade da regra é conceito de tudo ou nada apropriado para a mesma, mas incompatível com a dimensão de peso, que pertence à natureza do princípio. Entenda-se bem: peso ou valor”. E mais adiante, assinala: “A dimensão de peso, ou importância ou valor (...) só os princípios a possuem, as regras não, sendo este, talvez, o mais seguro critério com que distinguir tais normas. A escolha ou hierarquia dos princípios é a de sua relevância”. E arremata: “Das reflexões de Dworkin infere-se que um princípio, aplicado a um determinado caso, se não prevalecer, nada obsta a que, amanhã, noutras circunstâncias, volte ele a ser utilizado, e já então de maneira decisiva” (Curso de direito constitucional, p. 282). 12 Canotilho: “A pretensão de validade absoluta de certos princípios com sacrifício de outros originaria a criação de princípios reciprocamente incompatíveis, com a conseqüente destruição da tendencial unidade axiológiconormativa da lei fundamental. Daí o reconhecimento de momentos de tensão ou antagonismo ente os vários princípios e a necessidade, atrás exposta, de aceitar que os princípios não obedecem, em caso de conflito, a uma ‘lógica do tudo ou nada’, antes podem ser objecto de ponderação e concordância prática, consoante o seu ‘peso’ e as circunstâncias do caso” (Direito constitucional, p. 1182). 11
Livro 1.indb 79
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
80
outros princípios que não recebem a caracterização de gerais porque são de aplicação restrita. São exemplos desta última categoria alguns princípios aplicáveis a determinados processos administrativos (oficialidade, gratuidade etc.), ou tão somente às licitações (julgamento objetivo, vinculação a instrumento convocatório etc.). Princípios gerais são aqueles que norteiam toda a atividade administrativa do Estado porque têm sede constitucional expressa ou implícita. Em função de sua estatura constitucional, os princípios gerais vinculam igualmente o legislador, bem como os demais responsáveis pela criação das normas que compõem o regime jurídico administrativo, normas estas que, se não se adequarem a referidos princípios, resultam inconstitucionais.13 Feitas essas considerações, devemos passar ao exame dos princípios gerais expressos e implícitos.
3.6.1 Princípios expressos 3.6.1.1 Legalidade O princípio da legalidade, ou da reserva de lei, está previsto como direito fundamental pela Constituição Federal que, no seu art. 5º, II, dispõe nos seguintes termos: Art. 5º (...) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
Ao lado do controle judicial da Administração Pública e da proteção ao direito de propriedade, o princípio da legalidade constitui uma das maiores conquistas do Estado de Direito. No campo do Direito Administrativo, a doutrina tem admitido a existência de dois princípios da legalidade. O primeiro está contido no art. 5º, II, acima transcrito, e também denominado de princípio da reserva de lei. Ele é apresentado como a legalidade do setor privado, no sentido de que nenhum particular pode ser obrigado a fazer ou deixar fazer algo senão em virtude da lei. A segunda versão do princípio da legalidade seria a legalidade administrativa, que é tão somente mencionada pelo caput do art. 37 do texto constitucional. Os dois são apresentados como distintos ou, que o segundo — a legalidade administrativa — decorreria e estaria contido no primeiro, o princípio da reserva da lei. De acordo com a visão tradicional, e dominante em nossa doutrina, a legalidade administrativa, denominada de legalidade restrita, ou estrita, cria a situação de que a Administração Pública somente pode agir se e quando a lei autorizar a atuação. De acordo com essa interpretação dominante, ainda que a atividade estatal não importe em impor qualquer conduta positiva ou negativa de qualquer cidadão, a Administração
Não é dado ao administrador deixar de aplicar norma sob o argumento de inconstitucionalidade. Ao administrador é dado buscar dentre as opções normativas possíveis a que melhor realize os princípios e demais regras constitucionais. O controle de constitucionalidade de leis e demais atos normativos está afeto ao Poder Judiciário. Fora deste, o único órgão competente para, em casos concretos, negar aplicação à lei ou a outros atos normativos sob argumento de inconstitucionalidade são os Tribunais de Contas em função do que dispõe a Súmula nº 347 do STF.
13
Livro 1.indb 80
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
81
estaria impedida de agir. Deu-se, desse modo, à legalidade administrativa (CF, art. 37, caput) alcance maior do que o definido no art. 5º, II, do texto constitucional, ainda que o citado art. 37 tenha-se restringido a simplesmente mencionar a aplicação da legalidade à Administração Pública. Discordamos dessa distinção e entendemos que os dois são manifestações distintas de um único preceito. Quando a Constituição dispõe que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei, ela dirige o postulado tanto aos particulares quanto ao Estado. O particular não pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer algo senão em virtude de lei porque somente por meio desse instrumento, a lei formal, aprovada pelo Parlamento, pode o Estado exigir algo do particular, impondo-lhe o dever de agir ou de se abster de fazer algo. É esse o ponto que buscamos avançar no exame do princípio da legalidade administrativa. Se existe órgão ou entidade administrativa dotado de competência genérica para desenvolver atividades administrativa, não é necessário que seja aprovada lei que trate especificamente de cada ato ou atividade a ser desenvolvida por essas unidades, salvo se esse ato ou essa atividade administrativa impuser ao particular a obrigação de fazer ou de deixar de fazer algo. No amplo campo das atividades prestacionais (saúde, educação, trabalho, lazer, proteção à maternidade ou à infância), o Estado não atua por meio de atos que importem em qualquer tipo de imposição unilateral de vontade. Exigir que cada programa de governo, que cada ato praticado ou atividade desenvolvida tenham sido detalhadamente disciplinados por meio de lei se trata de equívoco acerca da interpretação do princípio da legalidade. Essa visão extremamente restritiva pode ser justificada em períodos de exceção democrática, em que o Poder Executivo carece de legitimidade. Essa é, todavia, destoante da realidade dos dias atuais, em que o Executivo está legitimado pelo voto popular e que dele se espera maior agilidade para atender as novas necessidades da população. A lei é necessária, do ponto de vista do exercício de atividade administrativa do Estado, para: 1. Criar entidades (CF, art. 37, XIX) ou órgãos públicos (CF, art. 61, §1º, II, “e”); 2. Obrigar particular a fazer ou deixar de fazer alguma coisa (CF, art. 5º, II); 3. A adoção de qualquer outra medida para a qual a Constituição Federal tenha exigido lei (por exemplo: a criação de cargos, empregos ou funções públicas – art. 61, §1º, II, “a”; o regime jurídico dos militares, provimento de cargos, promoções, estabilidade, remuneração, reforma e transferência para a reserva – art. 61, §1º, II, “f”; contratação temporária por tempo determinado – art. 37, IX; a realização de despesa pública – art. 166; a realização de investimentos, a abertura de crédito extraordinário etc.).14 14
Livro 1.indb 81
STF: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. Medida liminar. Decreto 1.719/95. Telecomunicações: concessão ou permissão para a exploração. Decreto autônomo: possibilidade de controle concentrado. Ofensa ao artigo 84-IV da CF/88. Liminar Deferida. A ponderabilidade da tese do requerente é segura. Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (artigo 84-IV da CF/88). A Emenda Constitucional nº 8, de 1995 — que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do artigo 21 da CF — é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
82
A interpretação sistemática da Constituição Federal nos leva à conclusão acima. Afinal, se houvesse necessidade de lei para disciplinar qualquer atividade da Administração, por que teria o texto constitucional tido o cuidado de indicar, apenas para algumas situações específicas, a necessidade de lei? Se qualquer atividade ou atuação administrativa necessitasse de legislação prévia, qual o sentido de ter sido elaborado tão longo elenco de situações para as quais a Constituição exige lei como requisito ao exercício de alguma atividade estatal? Não teria sido mais simples a Constituição Federal ter simplesmente afirmado que qualquer atividade administrativa do Estado depende de lei? A realização de concursos públicos para a investidura em cargos ou empregos públicos (CF, art. 37, II), por exemplo, consiste em atividade administrativa do Estado realizada independentemente da existência de qualquer lei. Em face da inexistência de lei sobre a matéria, o Poder Executivo não apenas pode, como deveria, por meio de decreto autônomo, regular a realização dos concursos públicos. No caso, haveria violação do princípio da legalidade estrita? Dentro da visão tradicional que tem sido utilizada para definir o alcance desse princípio, parece-nos que sim. Ocorre que essa visão tradicional da legalidade estrita deve ser adequada à realidade que nos cerca. Como a realização de um concurso público não incide em nenhuma das situações acima indicadas para as quais é exigida a regulação por meio de lei, pode a questão ser regulada por meio de decreto ou de qualquer outro ato de estatura infralegal. O STF, ao admitir o cabimento de ação direta de inconstitucionalidade contra o decreto autônomo, reconhece implicitamente a compatibilidade desta categoria normativa com o nosso sistema constitucional.15 Ato infralegal não pode, no entanto, a pretexto de regular matérias não tratadas em leis, estabelecer restrição ao exercício de direito, de que seria exemplo o estabelecimento de critérios restritivos para o ingresso em determinadas carreiras, como a Polícia Federal. Hely Lopes Meirelles adota pensamento similar ao que aqui defendemos. Afirma o autor que “a doutrina aceita esses provimentos administrativos praeter legem para suprir a omissão do legislador, desde que não invadam as reservas da lei, isto é, as matérias que só por lei podem ser reguladas”. E mais adiante: “Advirta-se, todavia, que os decretos autônomos ou independentes não substituem definitivamente a lei: suprem, apenas, a sua ausência, naquilo que pode ser provido por ato do Executivo, até que a lei disponha a respeito”.16 Relativamente ao princípio da reserva de lei, questão que merece estudo mais aprofundado — e cujo objetivo não se inclui nas pretensões deste trabalho — diz respeito à utilização de medidas provisórias. Instituto típico dos sistemas parlamentaristas, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 62, criou esse instituto em substituição à figura do decreto-lei do regime a exige. A Lei 9.295/96 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto. Pela ótica da maioria, concorre, por igual, o requisito do perigo na demora. Medida liminar deferida” (ADI-MC nº 1.435-DF). 15 Nesse sentido, vide ADI nº 708-DF: “Ação direta de inconstitucionalidade. Pedido de liminar. Decreto n. 409, de 30.12.91. Esta Corte, excepcionalmente, tem admitido ação direta de inconstitucionalidade cujo objeto seja decreto, quando este, no todo ou em parte, manifestamente não regulamenta lei, apresentando-se, assim, como decreto autônomo, o que da margem a que seja ele examinado em face diretamente da Constituição no que diz respeito ao princípio da reserva legal”. 16 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 175.
Livro 1.indb 82
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
83
militar. A expectativa era a de que sua utilização ocorresse em situações excepcionais, “em caso de relevância e urgência”, e não como instrumento de substituição da legitimidade do Poder Legislativo. A forma como esse instituto tem sido utilizado por todos os chefes do Executivo federal constitui agressão a um dos princípios mais básicos do Estado de Direito. O problema não se encontra na forma como o texto constitucional trata o tema, mas como esse texto tem sido utilizado para usurpar do Legislativo a sua função de legislar, transferindo-a a quem deveria encarregar-se de cuidar da aplicação e execução da lei. As alterações inseridas por meio de emendas constitucionais ao mencionado art. 62, em vez de restringir, têm aumentado o número de medidas provisórias editadas, e os problemas decorrentes da sua edição, sobretudo em relação ao disposto no §6º do art. 62, que provoca o trancamento da pauta — vale dizer: ficam “sobrestadas, até que se ultime votação, todas as demais deliberações legislativas” — da Casa Legislativa onde estiver tramitando a medida provisória caso ela não seja apreciada em até quarenta e cinco dias contados da sua publicação. É importante e necessário que o chefe do Executivo disponha de instrumento constitucional como a medida provisória. As críticas feitas se dirigem à banalização da sua utilização. Caso fossem efetivamente observados os requisitos constitucionais de relevância e urgência, bem como os demais indicados no §1º do art. 62 — que indica matérias que não podem ser disciplinadas por meio de medida provisória (nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos, Direito Eleitoral, Direito Penal, Processual Penal e Processual Civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros, planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos suplementares e adicionais, que vise à detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou de qualquer outro ativo financeiro, reservada a lei complementar, já disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República) —, bem como os demais dispositivos constitucionais pertinentes, a medida provisória seria instrumento útil para o sistema democrático. Cumpre aos que devem zelar pelo cumprimento da Constituição Federal — e não nos referimos aqui apenas ao Supremo Tribunal Federal, mas igualmente ao Congresso Nacional — a adoção de providências com vistas a evitar os abusos reiteradamente cometidos. Além da edição de medida provisória, pode-se apontar o estado de defesa (CF, art. 136) e o estado de sítio (CF, artigos 137 a 139) como situações previstas no texto constitucional e que podem constituir algum tipo de restrição ao princípio da reserva de lei. Isso se deve à possibilidade de restrição de direitos admitida durante a vigência desses dois institutos (CF, artigos 137, §1º, e 139).
3.6.1.2 Impessoalidade Este princípio, em face das múltiplas formas de aplicação, é certamente o que mais gera dificuldade de aplicação. O princípio da impessoalidade admite seu exame sob os seguintes aspectos: 1. Dever de isonomia por parte da Administração Pública;
Livro 1.indb 83
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
84
2. Dever de conformidade ao interesse público; 3. Imputação dos atos praticados pelos agentes públicos diretamente às pessoas jurídicas em que atuam. A partir da primeira perspectiva, o princípio da impessoalidade requer que a lei e a Administração Pública confiram aos particulares tratamento isonômico, vale dizer, não discriminatório. Todos são iguais perante a lei e o Estado. Este é o preceito que se extrai da impessoalidade quando examinado sob a ótica da isonomia. A isonomia, ou o dever que a Constituição impõe à Administração Pública de con ferir tratamento não diferenciado entre os particulares, é que justifica a adoção de procedimentos como o concurso público para provimento de cargos ou empregos públicos ou a licitação para a contratação de obras, serviços, fornecimentos etc.17 Existem, a rigor, dois critérios admitidos para o provimento de cargos públicos: em comissão e em caráter efetivo. O primeiro, como define a Constituição Federal (art. 37, II), é feito em função da confiança que o dirigente do órgão possua na pessoa a ser nomeada. No provimento em comissão, são obedecidos critérios pessoais e de confiança; o ocupante do cargo em comissão é indicado porque o dirigente do órgão ou entidade pública o conhece e nele confia. O segundo, no provimento em caráter efetivo, o cargo deve ser preenchido em razão de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos. Para o provimento do cargo efetivo, deve a Administração Pública publicar o edital, admitir inscrição de todos os interessados que atendam às exigências nele contidas, aplicar provas, divulgar os resultados e convocar para nomeação os candidatos aprovados a partir da sua estrita ordem de classificação. A pergunta simples é a seguinte: qual dos dois provimentos melhor realiza o princípio da isonomia? Evidentemente que o provimento em caráter efetivo, que se caracteriza pela necessidade de prévia aprovação em concurso público. A Constituição, ainda que admita a nomeação em comissão, considera essa forma de provimento excepcional na medida em que, no art. 37, V, determina que eles se destinam apenas ao exercício de atribuições de direção, chefia e assessoramento. Somente essas atividades podem justificar a criação de cargo em comissão, e o objetivo da Constituição resta evidente: dado que o provimento de cargos em caráter efetivo, que pressupõe prévia aprovação em concurso público, melhor realiza o princípio da isonomia, ele deve ser adotado como regra; e o provimento em comissão, que atende a critérios pessoais para escolha do ocupante, e que somente pode ser utilizado para cargos cujas atividades ou funções sejam de direção, chefia ou assessoramento, é a exceção.18 O mesmo raciocínio acima é aplicável às contratações de empresas pela Administração Pública, sendo expressa a Lei nº 8.666/93 nesse sentido: o art. 3º, ao indicar
STF: “Direito Constitucional e Administrativo. Concurso público. Princípio da isonomia. Provas de capacitação física e investigação social. Ação Direta de Inconstitucionalidade do parágrafo 6º do art. 10 da Lei nº 699, de 14.12.1983, acrescentado pela Lei nº 1.629, de 23.03.1990, ambas do Estado do Rio de Janeiro, com este teor: ‘§6º Os candidatos integrantes do Quadro Permanente da Polícia Civil do Estado ficam dispensados da prova de capacitação física e de investigação social a que se referem o inciso, I, in fine, deste artigo, e o §2º, in fine, do artigo 11’. 1. Não há razão para se tratar desigualmente os candidatos ao concurso público, dispensando-se, da prova de capacitação física e de investigação social, os que já integram o Quadro Permanente da Polícia Civil do Estado, pois a discriminação implica ofensa ao princípio da isonomia. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente pelo Plenário do STF” (ADI nº 1.072-RJ). 18 Fórmula encontrada para burlar a exigência constitucional de concurso público é a terceirização de mão de obra na Administração. Ao invés de realizar o devido concurso para atividades que não têm natureza de chefia, direção ou assessoramento, contrata-se empresa para fornecer pessoal sem que exista qualquer critério isonômico para a indicação dos que irão ser escolhidos para trabalhar para o serviço público. 17
Livro 1.indb 84
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
85
os objetivos da licitação define que, além da busca pela proposta mais vantajosa, ela se destina à realização da isonomia. É fato relativamente comum, infelizmente, administradores que não realizam licitação justificarem-se sob o argumento da obtenção de vantagens para a Administração. Ainda que não tenham ocorrido outros desvios, como fraudes, ou sobrepreços, a não realização da licitação constitui em si violação de um princípio básico da Administração, o da isonomia, daí por que a não realização desse certame é tipificada pelo art. 89 da Lei nº 8.666/93 como crime, e pela Lei nº 8.429/92, como ato de improbidade. Dado que a licitação realiza a isonomia, a própria Constituição Federal a impõe como regra, admitindo que em face de situações especiais a lei possa criar as hipóteses de contratação sem licitação (art. 37, XXI). É sob a ótica da isonomia que mais suscitam dúvida quanto à aplicação do princípio da impessoalidade. Afinal, pode o edital de um concurso público estabelecer como requisito para inscrição a comprovação de altura mínima ou de idade máxima? Como aferir se as exigências do edital de uma licitação são necessárias à execução do objeto do contrato ou, ao contrário, se essas exigências não ferem a isonomia entre licitantes — e também o subprincípio da competitividade nas licitações? O sistema de cotas — de afro descendentes, de deficientes, de mulheres — para as universidades públicas ou para o serviço público realiza ou viola o princípio da isonomia? Vê-se que a questão admite diversos enfoques e está longe de ser pacífica. O ponto de partida para o exame deste aspecto da isonomia consiste em saber que ela não constitui preceito formal, segundo o qual todos são iguais. O tratamento jurídico isonômico pressupõe considerações acerca da realidade fática em relação à qual os preceitos jurídicos são aplicados. São igualmente indispensáveis considerações acerca dos fins buscados pela Administração. Em relação à adoção da altura ou da idade dos candidatos, existe alguma relevância na adoção desses critérios para provimento de cargos relacionados a atividades de docência, por exemplo? O professor ser mais alto ou mais moço, de algum modo é relevante para a atividade de docência? No caso de agente da polícia civil, ao contrário, do qual se pode exigir esforço físico no exercício de sua atividade, é absolutamente pertinente que se estabeleça alguma exigência de altura ou de idade.19
O STF, ao examinar questões relativas a exigências de editais de concurso público, estabelece três critérios neces sários para legitimar tratamento discriminatório: 1. que haja pertinência entre o critério de discriminação e atividade do cargo; 2. que o critério seja fixado em parâmetros razoáveis; 3. que o critério tenha sido previsto em lei. Assim, ainda que relevante para o exercício das atribuições e fixado em parâmetros razoáveis, a Administração somente pode estabelecer qualquer critério discriminatório se houver previsão em lei. Do contrário, a exigência em editais resulta ilegal. Nesse sentido, vide: STF: “Concurso Público – Agente de Polícia – Altura mínima – Viabilidade. Em se tratando de concurso público para agente de polícia, mostra-se razoável a exigência de que o candidato tenha altura mínima de 1,60m. Previsto o requisito não só na lei de regência, como também no edital de concurso, não concorre a primeira condição do mandado de segurança, que é a existência de direito líquido e certo” (RE nº 148095/MS). STF: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Exigência de altura mínima para o ingresso nos quadros da Polícia Militar do Distrito Federal. Inexistência de lei formal restritiva de direito. Fixação em edital. Impossibilidade. Concurso público para o cargo de policial militar do Distrito Federal. Altura mínima. Impossibilidade de sua inserção em edital de concurso. Norma restritiva de direito que somente na lei tem sua via adequada. Agravo regimental a que se nega provimento” (AI-AgR nº 518.863/DF). STF: “Concurso público. Altura mínima. Requisito. Tratando-se de concurso para o cargo de escrivão de polícia, mostra-se desarrazoada a exigência de altura mínima, dadas as atribuições do cargo, para as quais o fator altura é irrelevante. Precedente (RE nº 150.455, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ, 07 maio 1999)” (RE nº 194.952-MS, grifos nossos). 19
Livro 1.indb 85
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
86
O segundo enfoque para o exame do princípio da impessoalidade é o da realização do interesse público. Nesta hipótese, ele se equipara ao princípio da finalidade. Sob a ótica da finalidade, sempre que o administrador praticar ato de favorecimento ou de perseguição, haverá violação ao princípio da impessoalidade porque não se realizou o interesse público. O terceiro enfoque da impessoalidade retira dos agentes públicos a responsabilidade pessoal, perante terceiros, pelos atos que praticam. Se determinado agente público, no exercício da função pública, pratica ato, a responsabilidade é atribuída diretamente à pessoa jurídica à qual o órgão em que o agente esteja lotado está vinculado. A rigor, os atos praticados pelos agentes públicos foram praticados diretamente pelas respectivas pessoas jurídicas. Tomemos o exemplo de agente público cuja investidura venha a ser futuramente anulada. Seria possível a terceiro anular os atos praticados pelo agente público sob o argumento de que ele não poderia tê-los praticado? Neste exemplo, a aplicação do princípio da impessoalidade leva-nos à conclusão de que o ato não foi praticado pelo agente A ou pelo agente B, mas que ele foi praticado pela Administração Pública, o que impede a sua anulação. Não se pode, a partir dessa situação, concluir que particular não possa suscitar incompetência de agente público. Efetivamente que sim. O que não é possível é a arguição de que a perda da competência do agente invalide os atos praticados por este agente enquanto detinha a competência para a sua prática. Este enfoque da impessoalidade suscita igualmente questionamentos quanto à responsabilização da Administração pelos atos praticados pelos denominados servidores de fato.
3.6.1.3 Moralidade Poucos institutos jurídicos são de definição tão difícil quanto o princípio da moralidade. É certo que a moralidade administrativa, como afirma com correção Hely Lopes Meirelles, não se confunde com a moralidade comum. Igualmente correta a afirmação de Celso Antônio Bandeira de Mello de que os administradores têm o dever de observar padrões éticos de comportamento.20 Todavia, quando se afirma que a moralidade administrativa não se confunde com a moralidade comum, não se define nem uma nem outra. Buscar na ética a solução para o conteúdo da moralidade administrativa também não parece resolver o problema, pois saímos de um conceito abstrato, o de moralidade, para outro tão ou mais abstrato ainda. Desvio de finalidade, dever de honestidade, boa-fé são termos normalmente utilizados para buscar alguma aproximação teórica com a moralidade administrativa. Este princípio talvez se enquadre como alguns fenômenos impossíveis de defi nição. Temos que compreendê-lo ou apreendê-lo apenas por meio da descrição de condutas que afetem seu âmbito de atuação ou que sejam a ele contrárias. A Lei nº 9.784, em seu art. 2º, parágrafo único, IV, exige “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”, o que, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, constitui “referência evidente aos principais aspectos da moralidade administrativa”.21
20 21
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 109. DI PIETRO. Direito administrativo, p. 79.
Livro 1.indb 86
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
87
A dificuldade — ou mesmo impossibilidade — de definir a moralidade administrativa levou a própria Constituição Federal (art. 37, §4º) a exigir a aprovação de lei para definir os atos de improbidade administrativa, os quais “importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário”. É certo que o princípio da moralidade não pode ser restringido por meio de lei, quer se busque por meio dela apresentar uma definição do que seja moralidade, quer se pretenda, por meio dela, apresentar-se uma lista de condutas contrárias à probidade administrativa — como fez a lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92). Quando a Constituição Federal expressamente menciona a moralidade administrativa e a eleva à qualidade de princípio distinto da legalidade, pretende que o primeiro princípio não se confunda com o segundo. A moralidade administrativa é o instrumento conferido pela Constituição Federal aos responsáveis pelo controle da Administração Pública a fim de que se possa exigir da Administração, sob pena de ilegitimidade dos atos decorrentes de condutas imorais, comportamento que, além de cumprir as exigências legais, seja ético (conforme observa o ilustre Celso Antônio Bandeira de Mello), observe padrões de boa-fé, de honestidade, que não incorra em desvio de finalidade etc. Questão controvertida diz respeito à nomeação de parentes para ocupar cargos em comissão no serviço público. Existem, inclusive, leis que vedam essa prática. Diante desse quadro, surgem algumas questões. 1. É necessária a existência de lei para impedir essa prática reprovada por toda a sociedade — exceto por aqueles que dela se beneficiam? 2. A criação de discriminação dessa ordem — no sentido de todos podem ocupar o cargo em comissão exceto o filho, os parentes próximos ou o cônjuge do titular do cargo — não importaria em violação ao princípio da isonomia? Resposta à primeira pergunta, por maior que seja o sentimento de reprovação a essa prática, até recentemente, vinha sendo no sentido de que, onde não houvesse lei, não seria vedada a nomeação de parentes para tais cargos de livre nomeação. Esta visão demonstrava que a moralidade, como conceito vago, isoladamente, sem que houvesse lei, salvo em situações extremas, não impedia a prática de atos reprovados socialmente. Este contexto começou a mudar quando o Conselho Nacional da Justiça, por meio da Resolução nº 7/05, vedou a nomeação de parentes para cargos em comissão em todo o Poder Judiciário — inclusive no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados em que, salvo honrosas e raras exceções, em razão da ausência de lei proibitiva, imperava o nepotismo —, e o STF, ao apreciar a ADI nº 3.617/DF, julgou legítima mencionada resolução, independentemente de expressa previsão em lei. Mais recentemente o STF editou a Súmula Vinculante nº 13,22 publicada no dia 29 de agosto de 2008, sustentando que a vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal, uma vez que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal, em especial o da moralidade. Assim, a nomeação de cônjuge, companheiro ou parente até o terceiro grau tornou-se proibida em toda a administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e dos municípios.
22
Livro 1.indb 87
“A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da união, dos estados, do distrito federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
21/03/2013 17:13:43
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
88
Em relação à segunda questão, não obstante a criação de efetiva discriminação — afinal todos podem ser nomeados para os cargos de livre nomeação, exceto os parentes do dirigente do órgão —, a vedação existe especificamente para realizar a moralidade. Nesse sentido, se a proibição de nomear parentes poderia ensejar dúvidas acerca do princípio da isonomia, ela realiza o princípio da moralidade. Trata-se de hipótese de aparente conflito ou colisão de princípios, em que a realização de um requer restrição na aplicação do outro princípio. Deve ser mencionado que tão ou mais reprovável que a nomeação direta de parentes são as operações “casadas”, tão comuns no serviço público e, infelizmente, em tribunais judiciários. Nessas operações, para fugir aos mecanismos de fiscalização, o dirigente nomeia parente de dirigente de outro órgão, e vice-versa. Em boa hora, a Resolução nº 7/05 do CNJ igualmente vedou essa possibilidade. A decisão do STF no julgamento da ADI nº 3.617/DF é relevante porque admite a plena efetividade da moralidade administrativa independentemente da existência de lei que proíba a conduta reprovada. Do contrário, teríamos reduzido a moralidade à legalidade, o que não é o propósito da Constituição Federal, que separa e distingue os dois princípios.23 No Brasil, somente em situações extremas de violação da moralidade tem ocorrido a reprovação social e jurídica, independentemente da existência de lei. É o caso de avós, servidores públicos, que, por meio de vergonhosos procedimentos de justificação judiciais, declaram que seus netos vivem sob sua dependência. O objetivo é um só: a fraude. Buscam essas pessoas perpetuar pensões transferindo-as a seus netos, em evidente burla ao instituto da pensão, prevista na Lei nº 8.112/90 e em diversas leis estatuais.24 Não se exige dos administradores públicos o mero cumprimento da lei. De todos os administradores, sobretudo daqueles que ocupam os cargos mais altos na estrutura do Estado, exige-se muito mais. Exige-se — e se deve exigir — dos ocupantes dos altos cargos do Estado conduta impecável, ilibada, exemplar. Se dos particulares podem ser admitidos pequenos deslizes, pequenas falhas, que merecem a reprovação do Direito — como o chamado dever cívico de não pagar imposto —, tal postura não se pode admitir dos administradores públicos. A moralidade cobra da Administração — e, repito, sobretudo dos ocupantes dos altos cargos de nosso País — conduta exemplar e inatacável. Sobre o tema, merece registro deliberação do STJ (Acórdão ROMS nº 15.166-BA) que admitiu, mesmo sem previsão legal específica, a desconsideração da personalidade jurídica feita pela própria administração, ao estender a outra empresa os efeitos da sanção de inidoneidade para licitar cominada a determinada empresa, cujos sócios atuaram fraudulentamente. Trecho do voto condutor: “A ausência de norma específica não pode impor à Administração um atuar em desconformidade com o Princípio da Moralidade Administrativa, muito menos exigir-lhe o sacrifício dos interesses públicos que estão sob sua guarda. Em obediência ao Princípio da Legalidade, não pode o aplicador do direito negar eficácia aos muitos princípios que devem modelar a atuação do Poder Público. Assim, permitir-se que uma empresa constituída com desvio de finalidade, com abuso de forma e em nítida fraude à lei, venha a participar de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Público, afronta aos mais comezinhos princípios de direito administrativo, em especial, ao da Moralidade Administrativa e ao da Indisponibilidade dos Interesses Tutelados pelo Poder Público”. 24 TCU: Acórdão nº 586/05, Plenário. Deliberação que negou provimento a agravo interposto contra medida cautelar que suspendeu pagamento de pensão instituída por avó em favor do neto. Trecho do Voto condutor: “A busca da guarda de netos, menores de 21 anos, por avós, sequiosos de prolongar a percepção do benefício econômicofinanceiro, configurado nas pensões pelas respectivas famílias, ostenta evidente conteúdo anti-social, nitidamente ofensivo ao princípio da moralidade administrativa. Entendo, pois, absolutamente dissonante com os princípios que orientam o ordenamento jurídico, bem como com suas regras básicas, o comportamento consistente na obtenção judicial da guarda de menores por avós, com o objetivo final de deixar-lhes a pensão. Nestes termos, saliento que pensão não é herança, dela discrepando tanto na definição legal, como nos objetivos que alberga”. 23
Livro 1.indb 88
21/03/2013 17:13:43
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
89
No momento em que aceitamos como inevitáveis, ou mais grave ainda, como normais, determinadas condutas impróprias de nossos governantes, constatamos quão frágil são nossa democracia e os valores morais que conduzem nossas consciências. A violação da moralidade administrativa importa em ilegitimidade do ato. Não obstante se trate de conceito jurídico vago, sempre que em situações concretas for constatada a sua violação deve ser declarada, quer pela via judicial, quer pela via administrativa, a nulidade do ato. Se este ato, ademais, se enquadrar em uma das condutas descritas pela Lei nº 8.429/92 como ato de improbidade, deve ser instaurada a competente ação com vista à aplicação das sanções cabíveis. Relativamente à ação de improbidade, algumas considerações podem ser desde já apresentadas. A primeira observação diz respeito ao fato de que o ato de improbidade constitui ilícito civil. Punível por meio da aplicação de sanções de diversas ordens, inclusive política, mas o ilícito é civil. Não possui natureza penal em razão do próprio texto constitucional (art. 37, §4º) que dispõe que a aplicação das sanções previstas em lei ocorrerá “sem prejuízo da ação penal cabível”. A confirmação da natureza civil da ação de improbidade está no fato de que o procedimento adotado para a sua tramitação observa os padrões da lei da ação civil pública (Lei nº 7.347/85). Determinado ato pode ser considerado ato de improbidade — o que ensejará a aplicação das sanções elencadas no art. 12 da mencionada Lei nº 8.429/92 —, ilícito penal — o que importará na instauração do processo penal e eventual aplicação das penas cabíveis — e ilícito administrativo disciplinar, com a consequente instauração do processo administrativo disciplinar e aplicação da sanção disciplinar respectiva. Trata-se de instâncias distintas e autônomas, o que importa em dizer que pode haver condenação em uma instância e absolvição em outra. Somente haverá vinculação de instâncias quando a decisão proferida em sede de processo penal concluir pela absolvição do acusado, e desde que o fundamento para a decisão for a negativa do fato ou da autoria.25 As sanções aplicáveis aos atos de improbidade encontram-se elencadas no art. 12 da mencionada lei e compreendem a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade dos bens, o ressarcimento ao erário, a aplicação de multa, a perda da função pública — que abrange não apenas a função, mas também cargos e empregos públicos —, proibição de contratar com a Administração Pública ou de receber benefícios fiscais ou creditícios, dentre outras previstas em lei. Deve ser considerado, todavia, que em função da gravidade e das circunstâncias que envolvem o ato, o juízo de ponderação pode levar o juiz processante a aplicar somente uma ou algumas das sanções indicadas. A legitimidade ativa para a propositura da ação é do Ministério Público ou da pessoa jurídica interessada (art. 17). Entende-se por pessoa jurídica interessada uma daquelas indicadas pelo art. 1º da lei e desde que o ato tenha ocorrido em seu âmbito. Caso a ação seja proposta por esta pessoa jurídica, o Mistério Público atuará necessariamente como fiscal da lei (art. 17, §4º). STF: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal tem reiterado a independência das instâncias penal e administrativa afirmando que aquela só repercute nesta quando conclui pela inexistência do fato ou pela negativa de sua autoria” (MS nº 23.188-RJ) STF: “Mandado de segurança. – É tranquila a jurisprudência desta Corte no sentido da independência das instâncias administrativa, civil e penal, independência essa que não fere a presunção de inocência, nem os artigos 126 da Lei 8.112/90 e 20 da Lei 8.429/92” (MS-AgR nº 22.899-SP).
25
Livro 1.indb 89
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
90
No polo passivo da ação de improbidade deve constar agente público, haja vista a prática do ato de improbidade requerer necessariamente a participação de agente público. Não se pode entender com isso que somente o agente público possa praticar ato de improbidade, mas que um particular, sem vínculo com o serviço público não pratica ato de improbidade. A lei, em seu art. 2º, apresenta o conceito de agente público nos seguintes termos: “todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função”.26 Trata-se de conceito amplo que compreende não apenas servidores públicos, mas igualmente agentes políticos e particulares que colaboram com a Administração, incluídos nestes últimos os que mantenham vínculo meramente contratual. Em relação aos agentes políticos, deve ser considerada a existência de imunidades constitucionais, o que impede, por exemplo, que por meio de ação de improbidade seja determinada a perda de cargo de parlamentar.27 Questão tormentosa diz respeito ao exame da constitucionalidade da regra inserida no Código de Processo Penal pela Lei nº 10.628/02 e que estendeu à ação de improbidade o foro privilegiado que algumas autoridades possuem em processos criminais. Trata-se de questão controvertida, porque o STF já possui jurisprudência pacífica no sentido de que a existência de foro privilegiado é matéria constitucional, não sendo possível lei criar esse benefício (Observação: o Supremo Tribunal Federal, pelo seu Plenário, em 15.9.2005, no julgamento da ADI nº 2.797-DF e ADI nº 2.860-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 10.628, de 24.12.2002, que acresceu os parágrafos 1º e 2º ao art. 84 do Código de Processo Penal).28 São três as modalidades de ato de improbidade previstas na lei: 1. Os que importam em enriquecimento sem causa (art. 9º); 2. Os que causam prejuízo ao erário (art. 10); e
STJ: “1. São sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa, não só os servidores públicos, mas todos aqueles que estejam abrangidos no conceito de agente público, insculpido no art. 2º, da Lei nº 8.429/92: ‘a Lei Federal n. 8.429/92 dedicou científica atenção na atribuição da sujeição do dever de probidade administrativa ao agente público, que se reflete internamente na relação estabelecida entre ele e a Administração Pública, superando a noção de servidor público, com uma visão mais dilatada do que o conceito do funcionário público contido no Código Penal (art. 327)’. 2. Hospitais e médicos conveniados ao SUS que além de exercerem função pública delegada, administram verbas públicas, são sujeitos ativos dos atos de improbidade administrativa. 3. Imperioso ressaltar que o âmbito de cognição do STJ, nas hipóteses em que se infirma a qualidade, em tese, de agente público passível de enquadramento na Lei de Improbidade Administrativa, limita-se a aferir a exegese da legislação com o escopo de verificar se houve ofensa ao ordenamento” (REsp nº 416.329-RS). 27 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 683. 28 O STJ, no julgamento da Rcl nº 2.790-SC, firmou orientação de que o foro por prerrogativa de função para as ações penais é também extensível às ações de improbidade administrativa (Rcl nº 2.790-SC, Rel. Min. Teori Zavascki. DJ, 04 mar. 2010). Nas palavras do Relator, se “há prerrogativa de foro para infrações penais que acarretam simples pena de multa pecuniária, não teria sentido retirar tal garantia para as ações de improbidade que importam, além da multa pecuniária, também a perda da própria função pública e a suspensão dos direitos Políticos”. De acordo com a conclusão a que chegou o Ministro Teori Zavascki (que merecidamente agora passa a ocupar cadeira na Suprema Corte) não se poderia reconhecer a “competência de juiz de primeiro grau para processar e julgar ação civil pública por improbidade administrativa [de Governador de Estado], que pode acarretar a perda de cargo para o qual foi eleito por sufrágio popular, fonte primária de legitimação do poder (CF, art. 1º, parágrafo único)”. STF: “Questão de ordem. Ação civil pública. Ato de improbidade administrativa. Ministro do Supremo Tribunal Federal. Impossibilidade. Competência da Corte para processar e julgar seus membros apenas nas infrações penais comuns. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros. 2. Arquivamento da ação quanto ao Ministro da Suprema Corte e remessa dos autos ao Juízo de 1º grau de jurisdição no tocante aos demais” (Pet nº 3.211-QO/DF, Plenário. Rel. Min. Menezes Direito. Julg. 13.03.2008. DJ, 27 jun. 2008). 26
Livro 1.indb 90
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
91
3. Os que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). De se observar que a prática do ato de improbidade não requer a intenção de fraude, sendo admitida a sua modalidade dolosa e culposa (art. 5º). Maiores considerações sobre a ação de improbidade administrativa são apresentadas no Capítulo 18, relativo ao controle da Administração Pública.
3.6.1.4 Publicidade O princípio da publicidade pode ser traduzido como o dever da Administração de dar transparência aos seus atos. A divulgação dos atos e dos procedimentos administrativos realiza, ademais, a moralidade administrativa. A publicidade é consequência direta do princípio democrático. Somente em regimes ditatoriais pode ser admitida — até porque não há outra opção — a prática de atos secretos, sigilosos. É direito da população, e dever do administrador, divulgar os atos praticados pela Administração a fim de que possam os cidadãos tomar as providências necessárias ao controle da legalidade, da moralidade, da eficiência das atividades do Estado. Se democracia é o governo do povo, pelo povo, é necessário que o povo saiba o que ocorre nas entranhas das repartições públicas. Nos momentos atuais, a modernização dos meios de comunicação, sobretudo em relação à transmissão e divulgação de informações por meios magnéticos, deve ser incorporada pela população como instrumento de acompanhamento e controle da atividade administrativa do Estado. É dever do Estado o de desenvolver soluções em informática que permitam o controle da Administração, sobretudo em relação à execução dos gastos públicos. Quantas vezes não são liberados recursos públicos para execução de obras em municípios, a obra não é executada e ninguém tem sequer ideia de que houve referida liberação! Somente a efetiva participação da população no controle da Administração Pública, sobretudo em relação à execução dos gastos públicos, o que pode ser feito pela adoção dos mecanismos de transparência a serem disponibilizados na internet, pode possibilitar o efetivo controle dos gastos públicos por meio do tão sonhado controle social.29 A Constituição Federal põe à disposição da população o instituto do habeas data (art. 5º, LXXII), com a finalidade de: 1. Assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou banco de dados de entidades governamentais ou de caráter público; e 2. Retificar dados, quando não prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.30
O TCU, pelo Acórdão nº 477/2008, Plenário, determinou à Petrobras que disponibilizasse em seu sítio na internet (e mantivesse mensalmente atualizado) informações quanto a todos os patrocínios (nacionais e internacionais) culturais, esportivos, institucionais da empresa, objetivando atender ao princípio da publicidade, entre outros. A deliberação foi confirmada em grau de recurso (Acórdão nº 158/2009, Plenário). Trecho do voto condutor: “No caso em tela, a legalidade se afirma no dever de dar publicidade a seus atos e contratos, com transparência, como condição indispensável à realização de outros princípios; o da impessoalidade e da moralidade. Em razão da imensa discricionariedade da escolha das Entidades a serem patrocinadas é que a publicidade se impõe maiúscula, a evitar desvios de finalidade neste tipo de procedimento”. 30 Se o objetivo for a obtenção da informação ou a retificação de dados, o instrumento adequado é o habeas data. Se o objetivo for a obtenção de certidão em que constem referidos dados e o órgão ou entidade não a expedir, o instrumento a ser utilizado é o mandado de segurança. 29
Livro 1.indb 91
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
92
O texto constitucional admite, todavia, poucas exceções ao princípio publicidade. O art. 5º, XXXIII, dispõe que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.31 Outro dispositivo que igualmente permite alguma restrição à divulgação dos atos (art. 5º, LX) dispõe no sentido de que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou interesse social o exigirem”. Desses dois dispositivos podem ser extraídas algumas conclusões. A primeira é no sentido de que não cabe ao administrador criar regras de sigilo. Somente à lei é dada essa possibilidade. A segunda conclusão é no sentido de que a restrição legal somente pode ocorrer em situações de: 1. Segurança da sociedade e do Estado; 2. Quando a intimidade ou o interesse social o exigirem. Outras hipóteses de restrição à divulgação de informações por parte do poder público não previstas em lei e estranhas a essas duas hipóteses resultam em inconstitucionalidade. Ainda em relação à publicidade, deve ser mencionado que ela não se confunde com a publicação de atos. Esta, a publicação, que salvo disposição legal em sentido contrário deve ser entendida como publicação em órgão oficial (diário oficial), é uma das formas possíveis de dar publicidade aos atos administrativos. São várias as outras formas de publicidade existentes: notificação direta, afixação de avisos, internet etc. A dúvida pode surgir no sentido de saber quais atos devem ser publicados em diário oficial e quais podem admitir outra forma de divulgação. O ponto de partida para a solução desse problema é a lei. Se a lei que cuida do ato indica a forma de divulgação, que se observe a lei. Em matéria de licitação, por exemplo, a Lei nº 8.666/93, art. 21, expressamente determina a publicação de editais em diário oficial e em jornais de grande circulação. No caso do convite, uma das moda lidades, a lei (art. 22, III) requer tão somente a afixação do instrumento convocatório em local apropriado — leia-se: afixação em quadro de avisos. No caso do pregão, a Lei nº 10.520/02, determina que em função do valor da contratação, a divulgação tenha que ser feita por meio de diário oficial, jornal de grande circulação e pela internet. Desse modo, quando a lei define a forma de divulgação, basta que o administrador observe o que dispõe a lei. Quando a lei não define a forma de divulgação dos atos, deve o administrador atentar para a classificação dos atos quanto ao alcance, classificação que divide os atos em duas categorias: internos e externos. Ato interno é aquele cujos efeitos são produzidos dentro da Administração; ato externo, aquele cujos efeitos alcançam pessoas estranhas
31
STJ: “1. Dentre os Direitos e Garantias Fundamentais capitulados no art. 5º da Constituição Federal está inserido o de que ‘todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo em geral, que serão prestados no prazo de lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado’ (inciso XXXIII). 2. Inequívoco que os documentos cuja exibição foi requerida pelos impetrantes não estão protegidos pelo sigilo prescrito no art. 38 da Lei 1.595/64, sendo sua publicidade indispensável à demonstração da transparência dos negócios realizados pela Administração Pública envolvendo interesses patrimoniais e sociais da coletividade como um todo. 3. Recurso ordinário conhecido e provido para, reformando o acórdão impugnado, conceder a segurança nos termos do pedido formulado pelos recorrentes” (RMS nº 10.131-PR).
Livro 1.indb 92
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
93
ao serviço público. Os atos externos devem ser divulgados por meio de publicação em órgão oficial de divulgação; os atos internos devem ser divulgados, mas não necessitam de ser enviados para publicação em diário oficial, motivo que leva diversos órgãos públicos a criarem seus boletins internos, cuja função, como o nome indica, é a de divulgar atos internos.32 A nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo, é ato externo, e não havendo na lei indicação específica quanto à forma como deve ser divulgada, esta deve ocorrer por meio de publicação em diário oficial. Caso esse mesmo servidor, uma vez empossado, solicite a averbação de tempo de serviço, o ato que conceda ou negue sua pretensão é ato interno, motivo pelo qual não necessita de publicação em diário oficial, mas de divulgação por outro meio, como a publicação em boletim interno.
3.6.1.4.1 Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011) Com a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação, o Estado dá um grande passo no que se refere à transparência administrativa, conferindo maior efetividade ao direito fundamental de acesso à informação previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do §3º do art. 37 e no §2º do art. 216 da Constituição Federal. Reflete, sem dúvida, o amadurecimento da democracia país, onde a publicidade deve ser encarada como preceito geral e o sigilo como exceção. Somente com a ampla divulgação dos negócios do Estado é que a atividade de controle encontra espaço para se desenvolver eficazmente, sobretudo o controle social. A Lei nº 12.527/2011 é uma lei federal de âmbito nacional, cujas disposições se aplicam à administração direita e indireta das três esferas de governo (Federal, Estadual e Municipal), bem como às entidades privadas sem fins lucrativas que recebem recursos públicos, no que se refere especificamente à administração desses recursos.33 A lei exige postura proativa dos órgãos e entidades públicas na divulgação de informações de interesse coletivo ou geral por eles custodiadas, determinando que tais informações devem estar disponíveis ao cidadão em local de fácil acesso, sem que para isso seja necessário qualquer tipo de requerimento. Obriga a divulgação de informações públicas em sítios oficiais da internet, dispensando de tal exigência os municípios com população de até dez mil habitantes. Com a nova legislação, os órgãos e entidades do poder público ficam obrigados a criar o serviço de informações ao cidadão (SIC), que deve estar preparados para (art. 9º, inciso I): a) atender e orientar o público quanto ao acesso a informações; b) informar sobre a tramitação de documentos nas suas respectivas unidades; e c) protocolizar documentos e requerimentos de acesso a informações. A Lei nº 12.527/2011 também estabelece regras procedimentais para disciplinar o atendimento de solicitações de acesso a informações dirigidas aos órgãos e entidades públicas. O art. 10 dispõe que qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso
STF: “Reforma Agrária – Instrução Normativa nº 8/93, do INCRA – Publicidade. Tratando-se de instrução interna, visando aos trabalhos administrativos, descabe a exigência de publicidade via Diário Oficial” (MS nº 25.022-DF). 33 Digno de nota que, na esfera federal, a lei foi regulamenta pela Presidente da República que editou o Decreto nº 7.724, de 2012. 32
Livro 1.indb 93
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
94
a informações, por qualquer meio legítimo, devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida. Neste particular, é interessante notar que a solicitação não precisa estar acompanhada dos motivos determinantes que fizeram o cidadão requerer as informações, havendo proibição expressa na norma de qualquer exigência nesse sentido (art. 10, §3º). Aliás, quando o acesso à informação não puder ser concedido de imediato, a lei fixa prazo não superior a 20 dias para atendimento da solicitação, prorrogável por mais 10 dias. A administração deverá orientar o cidadão sobre a possibilidade de interposição de recurso quando lhe for negado acesso à informação, a exemplo do que pode ocorrer com a alegação de sigilo. Como não poderia ser diferente, em observância ao que a Constituição Federal dispõe sobre a matéria, a lei disciplina a restrição de acesso às informações que sejam consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado.34 Neste aspecto, foram definidos três graus de sigilo, de modo que a informação poderá ser classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada, cujos prazos máximos de restrição de acesso são de 25 anos; 15 anos; e cinco anos, respectivamente. Sem destoar da ordem constitucional, também neste particular, a lei preservou as informações de caráter pessoal, estabelecendo que o seu tratamento deve ser conduzido com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. O art. 31, §1º, inciso I, esclarece que as informações pessoais “terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”. Questão polêmica envolvendo a aplicação da Lei de Acesso à Informação e de seu decreto regulamentador (Decreto nº 7.724/2012) refere-se à divulgação nominal da remuneração de autoridades e servidores nas páginas da internet de órgãos e entidades públicas. A discussão gira em torno da necessidade de se expor o nome do servidor e a correspondente remuneração ou se haveria forma alternativa de divulgação da folha de pagamento que a um só tempo satisfizesse a finalidade contida na lei referente à maior transparência da gestão pública e à necessidade de preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem dos servidores. Para aqueles que defendem posição contrária à divulgação de lista nominal, a Administração alcançaria plenamente o propósito a que se dirige a lei, inclusive com a exposição individualizada da remuneração, mas sem referência a nomes de servidores, mediante a adoção de outros expedientes de divulgação, tais como matrícula, lotação,
O art. 23 da lei enumera oito hipóteses passíveis de receber tratamento sigiloso, isto é, quando a ampla divulgação da informação: I - pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional; II - prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais; III - pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população; IV - oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País; V - prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas; VI - prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional; VII - pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou VIII - comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.
34
Livro 1.indb 94
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
95
cargo etc.. Neste caso, o que se diz é que restaria assegurado o acesso a informações de interesse geral e coletivo, dentro o espírito da lei de ampliar o controle social, sem que houvesse, contudo, violação a direito fundamental do servidor por meio da divulgação de informações de cunho estritamente pessoal, sem o seu prévio consentimento. A questão foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal que, tanto em âmbito judicial, quanto administrativamente, considerou lícita a divulgação nominal da remuneração dos servidores.35 A compreensão da Suprema Corte é no sentido de que a divulgação da remuneração de servidores públicos não afrontaria os princípios da intimidade ou da vida privada. A esse respeito, cabe reproduzir a ementa da SS 3.902-AgR, de relatoria do Ministro Carlos Ayres Britto, que bem ilustra o entendimento do STF, in verbis: Suspensão de Segurança. Acórdãos que impediam a divulgação, em sítio eletrônico oficial, de informações funcionais de servidores públicos, inclusive a respectiva remuneração. Deferimento da medida de suspensão pelo Presidente do STF. Agravo Regimental. Conflito aparente de normas constitucionais. Direito à informação de atos estatais, neles embutida a folha de pagamento de órgãos e entidades públicas. Princípio da publicidade administrativa. Não reconhecimento de violação à privacidade, intimidade e segurança de servidor público. Agravos desprovidos. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divul gação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo “nessa qualidade” (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O “como” se administra a coisa pública a preponderar sobre o “quem” administra — falaria Norberto Bobbio —, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos.
No plano jurisdicional, vale conferir os seguintes julgados: Suspensão Liminar nº 630, Rel. Min. Carlos Ayres Britto; Ag. Reg. na Medida Cautelar no MS nº 28.177-4, Rel. Min. Marco Aurélio; Ag. Reg. na Suspensão de Segurança nº 3.902-SP, Rel. Min. Carlos Ayres Britto; Ação Cível Originária nº 1.993-DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa.
35
Livro 1.indb 95
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
96
No âmbito administrativo, em 22.05.2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade divulgar, nominalmente, salários e vantagens percebidos pelos seus ministros e servidores. É inegável que tal iniciativa funciona como parâmetro para os demais órgãos públicos, que, se ainda não abriram suas folhas de pagamento, tenderão a fazê-lo em breve, a exemplo do que já ocorreu com o Tribunal de Contas da União.
3.6.1.5 Eficiência Antes de tratar deste princípio, podemos apresentar como exemplo situação não tão hipotética quanto pode pensar o leitor. No início da década de noventa, determinado órgão da Administração federal alugou edifício privado para uso próprio. A contratação não decorreu de licitação, mas foi realizada pesquisa de preço e, nos termos do art. 24, XI, da Lei de Licitações, foi celebrado o aluguel com dispensa de licitação. Antes de iniciar o efetivo uso, o órgão contratante constatou a necessidade de realização de licitação para proceder à reforma de todo o sistema elétrico do edifício, que não comportava a rede de computadores. Foi realizada a licitação e executado o contrato. Decorridos alguns meses de pagamento de aluguel, e após concluído e pago o contrato de reforma da rede elétrica, antes porém de se iniciar o uso deste prédio, decidiu o órgão pela aquisição de sede própria. Em resumo, após o pagamento de algumas centenas de milhares de reais — mas o que representa isso para um país tão rico quanto o Brasil? — por conta da execução dos dois contratos — aluguel e reforma — o citado prédio nunca foi usado. Nunca! Observados todos os procedimentos e requisitos legais e formais, jogou-se dinheiro público fora. Conclusão: como a “queima” do dinheiro público observou as exigências legais — das leis de licitações e orçamentárias — não foi possível impor qualquer sanção ou punição aos gestores. Observamos ao leitor que essa situação não tão hipotética ocorreu no início da década de 1990. Ainda que muito criticada por alguns setores — especialmente do Direito — e excessivamente valorizada por outros — da economia e da administração de empresas, sobretudo —, o princípio da eficiência é realidade que deve fazer parte do mundo jurídico, que deve ser incorporado como instrumento de trabalho dos juristas e administradores públicos, assim como o são a legalidade, a publicidade, a moralidade etc. A eficiência, que foi elevada pela Constituição Federal à categoria de princípio geral da Administração Pública, é um dos aspectos da economicidade. Esta, além da eficiência, compreende a eficácia e a efetividade. Temos, portanto, que economicidade é gênero do qual a eficiência, a eficácia e a efetividade são suas manifestações.36 Acerca da economicidade, a Constituição Federal dela trata no seu art. 70 quando dispõe que a fiscalização a ser exercida pelo Congresso Nacional compreende a legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receita. A eficiência requer do responsável pela aplicação dos recursos públicos o exame da relação custo/benefício da sua atuação. O primeiro aspecto a ser considerado em termos de eficiência é a necessidade de planejamento, de definição das necessidades e a indicação das melhores soluções para o atendimento dessa necessidade pública. A Lei nº 8.666/93, em seu art. 6º, apresenta a necessidade de elaboração do projeto básico Informamos ao leitor que há importantes segmentos de nossa doutrina que equiparam a economicidade à eficiên cia. Trata-se de discordância meramente terminológica sem qualquer reflexo prático.
36
Livro 1.indb 96
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
97
e do projeto executivo para obras e serviços. A Lei nº 10.520/02, que trata do pregão, dá importância especial à fase interna da licitação, aquela em que deve ocorrer a definição dos parâmetros para que os contratos sejam executados não apenas em conformidade com os formalismos que a lei apresenta, mas também que atendam às necessidades da Administração de modo a apresentar resultados favoráveis com os menores custos possíveis. A área de informática dos diversos órgãos públicos certamente é uma das que mais recursos consomem. Gastam-se centenas de milhões de reais anualmente com bens e serviços de informática. Será que existe algum planejamento ou programa de informática nestes órgãos? Ou, ao contrário, será que a Administração Pública, por falta de planejamento, não está adquirindo o que interessa aos fornecedores desses bens e serviços? A constatação a que se chegou na década de 1990, em todos os países desenvolvidos — alguns já tinham chegado a essa constatação uma década antes, como Alemanha, Estados Unidos e França — e em alguns países em desenvolvimento, foi a de que a capacidade de arrecadação dos Estados estava chegando a limites intransponíveis e, por outro lado, a demanda da sociedade por novos serviços ou atividades — sobretudo na área social, incluída a previdência e assistência social — continuava e continua em crescimento. Como proceder? Resposta: gerir melhor os recursos arrecadados. Aplicá-los corretamente, o que pressupõe, necessariamente, o planejamento das atividades estatais a serem desenvolvidas. O primeiro passo para o desenvolvimento de atividades de modo eficiente corresponde à necessidade de planejamento dos gastos públicos; o segundo passo a ser dado está ligado à definição das metas; e o terceiro passo corresponde ao exame dos custos necessários à realização das metas. Além do controle da eficiência, exige-se igualmente do administrador o exame da eficácia e da efetividade de sua atuação, eis que o próprio texto constitucional estabeleceu que a Administração Pública haverá de ser fiscalizada sob a ótica da economicidade, consoante seu art. 70. Por eficácia se deve entender o simples exame dos resultados. Realizada qualquer atividade estatal, deve-se buscar examinar em que medida aquela atividade gerou benefícios para a sociedade. O interesse público, reiteramos, deve ser realizado em diferentes níveis. O primeiro diz respeito ao dever de realização dos fins do Estado Democrático de Direito, relacionado à satisfação das necessidades da população. O exame da eficácia, como aspecto da economicidade, confere importância especial aos resultados decorrentes do exercício de qualquer atividade estatal. Tomemos um exemplo fora da Administração Pública, mas dentro do Direito. Será eficaz a atividade de um juiz que, a pretexto de julgar conforme sua consciência, tem todas a suas decisões corrigidas pelo Tribunal? Será que a manutenção desse juízo realiza algum interesse para o Estado ou para a sociedade? O exame da eficácia requer do administrador público a avaliação dos resultados que as atividades por ele desenvolvidas geram em favor da sociedade. Se não houver benefícios, devem os responsáveis por referido órgão corrigir os rumos por meio da definição de novos modelos ou estratégias. A efetividade, terceiro passo para a realização da economicidade, pressupõe o cumprimento das duas etapas anteriores. Como parte da eficiência, foram definidas as metas de atuação. No exame da eficácia, foram constatados os resultados da atividade
Livro 1.indb 97
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
98
administrativa. No exame da efetividade deve ser feita a comparação entre os objetivos ou metas que haviam sido fixadas por ocasião do planejamento e os resultados efetivamente alcançados. É certo que o amplo espectro de atividades administrativas do Estado requer diferentes abordagens. Os modelos de economicidade de uma universidade pública, por exemplo, não podem ser comparados com os de órgão responsável pela construção de estradas. Considerando suas particularidades, todas as atividades do Estado podem, em alguma medida, serem incluídas dentro da ótica da economicidade. Uma universidade pública, um posto de saúde, um departamento de trânsito, um órgão de arrecadação tributária, enfim, todos os órgãos ou entidades públicos podem definir metas, avaliar custos, verificar os resultados de atividade, comparar esses resultados com os fixados por ocasião da fase de planejamento. Há, todavia, limites à eficiência. O mais importante encontra-se na própria legalidade. “La famosa eficacia, si pretendiese hacerse a costa del Derecho y como una alternativa al mismo, no es más que la fuente de la arbitrariedad, como enseña la experiencia humana ya más vieja y hoy vívidamente renovada.”37 Em razão da impossibilidade de arrecadação ilimitada do Estado para financiar os gastos públicos, e da própria moralidade administrativa, exige-se dos administrativos que sejam “econômicos” em suas atividades. O limite insuperável nessa busca de soluções eficientes, eficazes e efetivas é a lei. Dentre as opções de atuação previstas em lei, deve o administrador encontrar aquela que melhor satisfaça referidos parâmetros de economicidade. Como exemplo de atuação eficiente, podemos apresentar solução adotada pelo STF para a aquisição de veículos novos. Se normalmente a Administração Pública não compra muito bem, suas alienações, com muito mais frequência ainda, são realizadas em condições ainda menos vantajosas para o poder público. No caso do STF, havia a necessidade de adquirir novos veículos e de alienar os antigos. No próprio edital do pregão para a aquisição dos novos veículos, foi estabelecido que parte do pagamento a ser efetuado pela Administração em favor do vendedor contratado seria feita por meio da entrega dos veículos antigos, que haviam sido previamente avaliados e cujos preços constavam — a partir da avaliação prévia — igualmente no edital. Desse modo, além de serem obtidas condições vantajosas na venda dos veículos usados, evitou-se a realização de leilão — ou seja, evitou-se a realização de outra licitação. Economizaram-se tempo, trabalho e dinheiro público. Este exemplo apresenta solução perfeitamente legal e extremamente eficiente. Questão tormentosa consiste em saber se a falta de eficiência pode ser sancionada. Não nos referimos, aqui, evidentemente, à punição pelo Direito Penal, que requer tipificação fechada, o que impossibilita o enquadramento das condutas ineficientes. Não nos referimos, igualmente, a alguma sanção política — no sentido de que os gestores sejam reprovados pela população nas eleições seguintes —, mesmo porque vários dos gestores públicos não se submetem a eleições. Buscamos outra forma de punição. Não se deve pensar que os gestores que não alcançarem padrões excelentes de eficiência devam ser sancionados. Não é esse o objetivo. Buscamos mecanismos que sancionem, pela via administrativa, hipóteses absurdas de desperdício de dinheiro público, ainda que isso não importe em violação de dispositivos legais específicos. 37
GARCÍA DE ENTERRÍA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 105.
Livro 1.indb 98
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
99
Do ponto de vista da ética, da moralidade, a fraude, o desvio de recursos públicos é mais reprovável que a falta de eficiência. Quanto a isto não resta dúvida. Do ponto de vista do resultado para a população, todavia, se a escola não ficou pronta, se a construção do hospital foi abandonada, se a estrada não leva a lugar algum porque não foi concluída, se o programa de vacinação de crianças não pode ser cumprido porque expirou o prazo de validade das vacinas, seja por motivo de fraude ou por falta de planejamento, de eficiência do administrador público, o resultado é um só: a população, que paga impostos e mantém o Estado, não se beneficiará de referidos serviços. A solução para a punição de hipóteses absurdas de falta de eficiência — e o instrumento adequado para proceder à identificação dessas hipóteses absurdas é o princípio da razoabilidade — encontra-se na própria Constituição Federal. Em seu art. 70, ao dispor sobre o controle externo dos gastos públicos, cujo titular é o Congresso Nacional, mas cuja execução é constitucionalmente conferida ao Tribunal de Contas da União (TCU), refere-se ao controle da economicidade dos gastos públicos. No art. 71, VIII, dispõe o texto constitucional que ao TCU compete “aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário”. Vê-se que o texto constitucional não prevê a aplicação de sanção pecuniária apenas para casos de ilegalidade, mas também para outras situações que importem em irregularidade de contas. A lei que regulamentou esse dispositivo constitucional é a Lei nº 8.443/92, que em seu art. 57 estatuiu que o TCU poderá aplicar ao responsável que for condenado a reparar o prejuízo que causou ao Erário multa de até cem por cento do valor atualizado do dano causado. De igual modo, mencionada lei, nos termos de seu art. 58, inciso III, permite ao TCU a aplicação de multa de outra natureza — não mais proporcional ao dano, mas com valor máximo fixado no próprio diploma legal — por ato de gestão antieconômico. A conclusão necessária é que tanto o texto constitucional quanto o texto legal disponibilizam mecanismos de sanção pela falta de eficiência. Reiteramos, todavia, que a punição não se deve aplicar aos que simplesmente não forem eficientes, mas aos que adotarem soluções absurdamente ineficientes. Esse o propósito. No campo judicial, a partir dos parâmetros desenvolvidos pelos Tribunais de Contas, órgão com maior capacidade técnica para aferir a falta de eficiência e único competente para julgar contas, pode-se cogitar da utilização da ação de improbidade administrativa — Lei nº 8.429/92, que em seu art. 11 prevê a prática de ato de improbidade pela violação de princípio da Administração Pública. O Ministério Público pode, a partir dos dados fornecidos pelos Tribunais de Contas, propor ação de improbidade com fundamento no art. 11 da lei, a fim de dar maior efetividade ao princípio da eficiên cia e punir as hipóteses absurdas de ineficiência na aplicação dos recursos públicos. Os princípios gerais da Administração não podem ser considerados meras cartas de intenção. O cumprimento efetivo de todos eles deve ser considerado dever a ser cumprido por todos os responsáveis pela gestão dos recursos públicos. Na eventualidade de a lei facultar adoção de várias opções ou possibilidades de agir, deve ele adotar aquela que melhor realize todos os princípios da Administração Pública. A rigor, se a lei permite interpretação que possa ferir a moralidade, a impessoalidade, a eficiência ou qualquer outro princípio, deve o administrador descartar essa interpretação porque contrária ao Direito. A adoção de soluções eficientes, morais, impessoais é vinculante para o administrador, e não pode se inserir em seu âmbito de discricionariedade. Opção
Livro 1.indb 99
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
100
discricionária é aquela permitida pelo Direito; opção arbitrária, aquela contrária à lei ou a qualquer princípio da Administração. Não concordamos, portanto, que se possa conferir ao princípio da eficiência, ou ao da economicidade, status diferenciado dentro do regime administrativo, no sentido de que o cumprimento dos demais princípios é vinculante e o cumprimento da eficiência mera opção discricionária e, portanto, insusceptível de controle judicial ou de punição. Não há, em todo o ordenamento jurídico, justificativa para a exclusão do princípio da eficiência do mundo do Direito e para a sua transferência para o campo da discricionariedade como mera opção de conveniência ou de oportunidade. No momento em que todos os que lidam com o Direito Administrativo se conscientizarem da necessidade de dar maior efetividade a todos os princípios, inclusive ao da economicidade, que compreende além da eficiência a efetividade e eficácia, o cidadão brasileiro talvez possa contar com serviços públicos compatíveis com a carga tributária praticada no nosso País.
3.6.2 Princípios implícitos 3.6.2.1 Razoabilidade Juntamente com a moralidade, a razoabilidade talvez seja o princípio mais difícil de definir. Em função do seu alto grau de abstração, mais fácil do que defini-lo, é descrevê-lo. Para tanto, podemos apresentar o seguinte exemplo. Consideremos que determinado servidor público federal, tendo se ausentado injustificadamente por uma hora do serviço público, foi punido com a pena de adver tência, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 129. Duas semanas após a aplicação da pena, voltou o servidor a se ausentar sem qualquer justificação ou consentimento de sua chefia. Nos termos da Lei nº 8.112/90 (art. 130), a reincidência no cometimento de infração punível com advertência deve ser apenada com suspensão, que será de um a 90 dias. No presente caso, consideremos que não houve qualquer outro prejuízo ou dano ao erário ou a terceiro, poderia, ainda assim, a Administração aplicar ao servidor a pena de suspensão de 90 dias? Devemos lembrar que para servidor efetivo, mais grave do que a suspensão de noventa dias, somente a de demissão. Se se considera a questão em tese, é evidente que a pena de suspensão de 90 dias pode ser aplicada ao servidor reincidente no cometimento de infração punível com advertência. Todavia, nas circunstâncias do caso concreto — que não gerou nenhum dano ao erário ou a terceiro, os antecedentes do servidor (que já foi punido pela primeira falta), a jurisprudência de processos disciplinares, que somente utiliza suspensão de 90 dias para infrações gravíssimas, mas não tão graves a ponto de justificar a demissão — a conclusão é de que é descabida a aplicação da pena. Os que lidam com processos disciplinares sabem que, para esse tipo de falta, a pena a ser aplicada talvez seja a suspensão de um, dois, no máximo três dias. Noventa dias, no entanto, é absurdo.38
STJ: “As regras de direito tributário devem ser aplicadas sem perquirir o intérprete a intenção do contribuinte. Diferentemente, as regras que impõem sanção administrativa devem ser aplicadas dentro dos critérios da razoa bilidade e da proporcionalidade, quando as circunstâncias fáticas, devidamente comprovadas, demonstram a não- intenção do agente no cometimento do ilícito. Embarcação estrangeira que ingressa para permanência temporária no país apenas para realização de obras e reparos necessários em estaleiro nacional, sem nenhuma intenção de deixar internalizado o bem apreendido. Aplicação exacerbada e desproporcional da pena de perdimento. Recurso especial improvido” (REsp nº 576.300-SC).
38
Livro 1.indb 100
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
101
Qual o critério de que se deve utilizar o administrador, ou quem o controla, para aferir se a solução é absurda e, sendo absurda, contrária à ordem jurídica? A resposta se encontra no princípio da razoabilidade, cujo fundamento ou sede constitucional reside no princípio do devido processo legal — daí por que a razoabilidade também é denominada devido processo legal substantivo ou material. O princípio da razoabilidade foi construído pelo Direito Administrativo — e não pelo Direito Constitucional como certamente desejariam alguns constitucionalistas — para controlar a legitimidade dos atos administrativos. A razoabilidade se apresenta como mecanismo de controle da discricionariedade administrativa e pode ser representada pela seguinte expressão: adequação entre meios e fins. É possível que a lei administrativa, considerada em tese, apresente ampla liberdade ao gestor. O processo de interpretação e aplicação, que parte da norma em tese, e que resulta na construção da norma do caso, aquela que será aplicada à situação concreta e que apresenta a solução normativa a ser adotada, deve considerar todas as particularidades do caso que reclama solução. Esse processo de construção da norma do caso, que parte da norma em abstrato, resulta invariavelmente em restrição da discricionariedade administrativa. Considerando o exemplo apresentado, se em tese é possível afirmar que é legítima a aplicação de uma pena de suspensão de 90 dias a servidor público, na hipótese apresentada, a adoção de referida solução revela-se absurda. Todavia, e se se descobrir que o servidor do exemplo apresentado era médico, que estava em seu horário de plantão, e que, em função de sua ausência, determinado paciente faleceu por falta de atendimento? Mais uma vez é o juízo de ponderação que nos leva a concluir que a pena de suspensão de 90 dias certamente seria branda, devendo ser mais adequado aplicar pena de demissão. Pode-se observar que, no Direito Administrativo, somente é possível utilizar o princípio da razoabilidade para situações concretas, com o propósito de definir se a solução adotada é compatível com as peculiaridades que o caso concreto comporta. A importância prática da razoabilidade reside no fato de que ela permite o controle de legitimidade da discricionariedade administrativa. O exame de razoabilidade não importa em invasão do mérito; a solução contrária à razoabilidade não é inconveniente ou inoportuna de modo que não se pode acusar aos que se utilizam desse princípio para controlar a atividade administrativa discricionária de invadir o mérito dessa atividade. A solução desarrazoada é ilegítima porque arbitrária. Discricionariedade significa a adoção de opções dentro dos limites permitidos pela lei. Adotada solução não razoável, ela estará fora dos limites que a norma do caso faculta ou disponibiliza ao administrador, o que importará em atuação arbitrária, haja vista ter-se extrapolado os limites permitidos pelo Direito, com base nos limites da norma do caso. Alguns autores veem no princípio da razoabilidade o mecanismo para a indicação da solução ótima, aquela que se não for adotada pelo administrador importará na prática de ato ilegítimo. Não nos parece ser essa a função do princípio da razoabilidade. No processo de construção da norma do caso, o juízo de ponderação que guia o intérprete-aplicador do Direito deve levá-lo a descartar as soluções que se apresentem como absurdas. Utilizando-nos mais uma vez do exemplo exposto, não nos parece correto afirmar que em função do princípio da razoabilidade a solução ideal seja a aplicação de pena de um dia, ou de dois dias. A função da razoabilidade é evitar a aplicação de pena de 90 dias, ou de 80 dias, ou de qualquer outra que se mostre absurda em função do caso concreto.
Livro 1.indb 101
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
102
A importância do princípio da razoabilidade se deve, ademais, ao fato de que a interpretação ou aplicação de qualquer outro princípio ou regra jurídica deve ser feita considerando critérios de razoabilidade.39 Quando examinamos o princípio da impessoalidade, verificamos que a adoção do critério de altura mínima como requisito à inscrição em concurso público deve considerar, além da necessária previsão em lei, a existência de pertinência entre este critério de discriminação e as atividades do cargo, bem como os necessários parâmetros de razoabilidade, conforme jurisprudência do STF.40 Nesse sentido, a função da razoabilidade, aplicada aqui como parâmetro para a isonomia, é a de informar ao administrador e ao legislador que não pode ser adotada altura incompatível com a realidade social. A função da razoabilidade, no caso, não é a de fixar a altura ideal mínima para inscrição em concurso público em 1,60 metro de altura, mas a de informar ao administrador, e ao próprio legislador, que se for exigida altura mínima absurda, de que seria exemplo a fixação de 1,90 metro, o edital será ilegal e a lei inconstitucional. É o princípio da razoabilidade que guia o aplicador do Direito e indica as soluções adequadas, excluindo do âmbito de aplicação da norma do caso aquelas soluções que, em função das circunstâncias da situação, seriam tidas como absurdas.
3.6.2.2 Proporcionalidade Em relação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade sempre haverá dúvidas, inclusive de ordem terminológica. Há autores que defendem que os dois termos são sinônimos,41 outros defendem a distinção entre ambos, no sentido de que a proporcionalidade não é senão uma faceta da razoabilidade.42 Adotamos a segunda tese. A razoabilidade deve ser entendida em sentido amplo: sempre que o administrador tiver que exercer sua discricionariedade e houver mais uma opção possível em função da norma em abstrato, as circunstâncias da situação concreta devem ser consideradas para a construção da norma do caso, norma que irá restringir referida discricionariedade. A proporcionalidade é mecanismo a ser utilizado para conter o uso da imperatividade, atributo dos atos administrativos e do poder de polícia administrativa, com o objetivo de conter ou limitar a reação da Administração Pública diante de determinadas situações em que ela se vê obrigada, inclusive, ao uso da força física. Considere que determinados manifestantes se decidem pela invasão de determinado prédio público: o Congresso Nacional, por exemplo. Deve a polícia administrativa ser convocada a fim de manter a tranquilidade e a ordem públicas. Qual o limite para o uso da força pela polícia? Pode ela usar arma de fogo para impedir a invasão? Basta
O STF, vislumbrando violação aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, suspendeu cautelarmente lei estadual que determinava a pesagem de botijões de gás à vista do consumidor, com pagamento imediato de diferença a menor. 40 STF: “I - Pode a lei, desde que o faça de modo razoável, estabelecer limites mínimo e máximo de idade para ingresso em funções, emprego e cargos públicos. Interpretação harmônica dos artigos 7º, XXX, 39, §2º, 37, I, da Constituição Federal” (RE nº 177.570-BA). 41 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 80. 42 BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 101. 39
Livro 1.indb 102
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
103
que se faça cordão de isolamento? A resposta a essas perguntas deve ser encontrada no princípio da proporcionalidade, cuja aplicação segue o mesmo raciocínio utilizado no Direito Penal quando examina situações de excesso de legítima defesa. Até onde pode ir a Administração no uso das suas prerrogativas — uso de força, aplicação de sanções administrativas — é resposta que deve ser buscada na proporcionalidade. Conforme defendemos a proporcionalidade nada mais é do que aspecto impor tante da razoabilidade. Por isso mesmo, para avaliar o atendimento ao primeiro princípio é necessário avaliar a existência de adequada correlação entre meios e fins. O STF enfrentou interessante caso ao apreciar recurso em que o Município de Blumenau e sua Câmara Municipal alegavam a inexistência de violação aos princípios da proporcionalidade e da moralidade no ato administrativo que criou cargos de assessoramento parlamentar de livre provimento. O Supremo — salientando que a criação de cargos em comissão e confiança deve ter o caráter de exceção, vez que a regra é o concurso público — entendeu que houve ofensa ao princípio da proporcionalidade, haja vista que, dos 67 funcionários da Câmara dos Vereadores, 42 exerceriam cargos de livre nomeação e apenas 25, cargos de provimento efetivo.43
3.6.2.3 Motivação Em regimes democráticos, em que o Estado atua de modo a atender às necessidades da população e de modo a realizar fins compatíveis com os direitos fundamentais e com a realização da Constituição, não se admite a prática de atos não motivados, não justificados. Ao motivar seus atos, deve o administrador explicitar as razões que o levam a decidir, os fins buscados por meio daquela solução administrativa e a fundamentação legal adotada. Ao motivar, deve o administrador indicar as circunstâncias de fato e de direito que o levam a adotar qualquer decisão no âmbito da Administração Pública.44 O dever de motivar não se restringe à prática de atos vinculados ou de atos discricionários. Todos os atos administrativos devem ser motivados, à exceção de um: a exoneração de ocupante de cargo em comissão, a denominada exoneração ad nutum, que possui tratamento constitucional próprio. Conforme dispõe o texto constitucional (CF, art. 37, II), os cargos em comissão caracterizam-se por serem de livre nomeação e de livre exoneração. É da própria essência
STF: “Agravo interno. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ato normativo municipal. Princípio da proporcionalidade. Ofensa. Incompatibilidade entre o número de servidores efetivos e em cargos em comissão. I - Cabe ao Poder Judiciário verificar a regularidade dos atos normativos e de administração do Poder Público em relação às causas, aos motivos e à finalidade que os ensejam. II - Pelo princípio da proporcionalidade, há que ser guardada correlação entre o número de cargos efetivos e em comissão, de maneira que exista estrutura para atuação do Poder Legislativo local. III - Agravo improvido” (RE nº 365.368-AgR/SC). 44 STJ: “1. A margem de liberdade de escolha da conveniência e oportunidade, conferida à Administração Pública, na prática de atos discricionários, não a dispensa do dever de motivação. O ato administrativo que nega, limita ou afeta direitos ou interesses do administrado deve indicar, de forma explícita, clara e congruente, os motivos de fato e de direito em que está fundado (art. 50, I, §1º, da Lei 9.784/99). Não atende a tal requisito a simples invocação da cláusula do interesse público ou a indicação genérica da causa do ato. 2. No caso, ao fundamentar o indeferimento da autorização para o funcionamento de novos cursos de ensino superior na ‘evidente desnecessidade do mesmo’, a autoridade impetrada não apresentou exposição detalhada dos fatos concretos e objetivos em que se embasou para chegar a essa conclusão” (RMS nº 19.210). 43
Livro 1.indb 103
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
104
do cargo em comissão a liberdade de que dispõe o titular do órgão para a adoção de medida tendente a exonerar quem ocupa o referido cargo sem que haja necessidade de ser dada qualquer justificação para o afastamento. É a própria Constituição Federal que isenta a exoneração ad nutum do dever de motivação e o faz quando afirma que são livres a nomeação e a exoneração do cargo. Influenciados pela existência da exceção constitucional, e justamente pelo fato dessa exceção ser ato discricionário, alguns autores, dentre eles Hely Lopes Meirelles, generalizaram suas conclusões relativas à exoneração ad nutum — máxima vênia —, no sentido de que somente os atos vinculados devem ser motivados; e, portanto, que se o ato for discricionário, o administrador motivará o ato somente se assim o desejar. A motivação do ato discricionário é de fundamental importância para a ordem jurídica. O ato discricionário não motivado se torna imune ao controle judicial, ou este se exercerá de forma bastante precária. O controle judicial dos atos administrativos é preceito básico do Estado de Direito. Admitir a desnecessidade de motivar qualquer ato, em especial do discricionário, importa em retroceder 200 anos de evolução do Direito Público, importa em atacar postulados básicos do Direito segundo os quais todos os atos praticados pela Administração estejam sujeitos ao controle judicial (CF, art. 5º, XXXV). A motivação dos atos discricionários levou a doutrina a construir a teoria dos motivos determinantes. A teoria dos motivos determinante preceitua que o ato discricionário, uma vez motivado, vincula-se aos motivos indicados pelo administrador; vincula-se às circunstâncias de fato ou de direito que o levaram a praticar o ato, de modo que se esses motivos não existirem ou se não forem válidos, o ato será nulo. Não se pode, a partir dessa teoria, concluir que todos os atos são vinculados. Quando a lei, diante de determinado motivo — entendido este como a circunstância de fato ou de direito que leva o administrador a adotar determinada solução —, faculta ao administrador a adoção de mais de uma opção, ele está diante do ato discricionário. Tomemos o exemplo da Lei nº 8.112/90 que faculta à Administração conceder ao servidor licença para tratar de interesse pessoal (art. 81, inciso VI). O motivo para a concessão é a existência do requerimento do servidor que preencha todos os requisitos por meio do qual ele solicita a concessão da licença. Somente será concedida a licença se houver o requerimento. Todavia, a Administração pode ou não conceder. Eis a discricionariedade. Não está a Administração obrigada a adotar a solução A, no sentido de conceder, ou a solução B, de não conceder. Qualquer que seja a solução, deve ela ser motivada. Deve a Administração — negue ou conceda a licença — indicar os motivos da sua decisão, e se esses motivos não forem válidos ou não existirem, o ato é nulo. Tomemos outro exemplo, de professor de universidade federal que solicite afastamento para estudo no exterior (Lei nº 8.112/90, art. 95), com vista a cursar doutorado. Considere que a Administração adote como fundamento para negar o pedido de afastamento o fato de que referido professor não dispõe do título de mestre. Caso o referido solicitante demonstre que dispõe da referida titulação, o ato que negou sua solicitação é nulo. Isto não importa em afirmar, todavia, que o juiz ao anular o ato deva conceder o afastamento. A decisão de conceder ou não o afastamento é da Administração Pública. Anulado o ato discricionário pelo Poder Judiciário, o processo administrativo deve retomar seu curso e resultar na produção de nova decisão, que evidentemente deve-se pautar na moralidade, na boa-fé, na impessoalidade a fim de evitar casuísmos ou perseguições.
Livro 1.indb 104
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
105
O controle judicial exercido em relação aos atos discricionários é de intensidade mais branda do que o referente aos atos vinculados. Nesta hipótese, de se tratar de ato vinculado, pode o juiz determinar que o administrador decida e adote a solução previamente definida pelo juiz ou, conforme particularidades do acaso, pode o próprio juiz adotar a solução que o caso requer. Diante de ato discricionário anulado judicialmente, deve o juiz tão somente restituir ao administrador o poder de tomar nova decisão, ciente este último, todavia, de que se, pelos mesmos fundamentos, for adotada a solução anteriormente anulada, poderá incorrer em crime de desobediência. No caso de ato discricionário, pode o juiz, se assim for solicitado pela parte, fixar prazo para a adoção de nova solução. Feitas essas considerações acerca do controle judicial do ato discricionário, percebe-se a importância da motivação como elemento indispensável ao exercício do controle judicial. Ainda em relação à dúvida acerca da possibilidade de que somente determinados atos devem ser motivados, cumpri-nos examinar a Lei nº 9.784/99, que em seu art. 50 dispõe nos seguintes termos: Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. §1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato. §2º Na solução de vários assuntos da mesma natureza, pode ser utilizado meio mecânico que reproduza os fundamentos das decisões, desde que não prejudique direito ou garantia dos interessados. §3º A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.
Vê-se que a técnica legislativa adotada na redação do dispositivo acima leva-nos à conclusão de que nem todos os atos administrativos devem ser motivados. Ora, se o legislador efetivamente tivesse o objetivo de exigir do administrador público a motivação de todos os atos, teria a lei dito isto: todos os atos devem ser motivados. Ao invés, apresentou-nos uma lista dos atos a serem motivados. Apesar da intenção do legislador, a má técnica utilizada nos permite buscar na própria redação do dispositivo mencionado a necessidade de motivação de todos os atos. A redação do inciso I do transcrito art. 50 — “neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses” — exige que todos os atos sejam motivados. Ora se o próprio conceito de ato administrativo, conforme será examinado adiante, pressupõe que ele seja a manifestação de vontade da Administração Pública tendente a criar, modificar, declarar direitos ou impor obrigações a si própria ou ao particular, a conclusão é a de que todos os atos, em função do disposto no art. 50, I, da
Livro 1.indb 105
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
106
Lei nº 9.784/99, devem ser motivados. A redação do mencionado art. 50 é tão mal feita que o inciso primeiro compreende todas as hipóteses dos demais incisos e muito mais. A questão, porém, não se resolve no plano legal. A Lei nº 9.784/99 pode ser mencionada apenas para ilustrar a necessidade de motivação dos atos administrativos. O dever de motivar decorre, todavia, do conceito de Estado de Direito que requer a possibilidade de controle judicial de todos os atos administrativos. A questão que resta é a seguinte: se o ato administrativo não for motivado, ele é irremediavelmente nulo, independentemente de qualquer outro vício? A nulidade de qualquer ato administrativo se sujeita à regra básica de que não haverá nulidade se não houver prejuízo. É de se exigir dos gestores a motivação dos seus atos. Todavia, se o ato não afetar direito ou interesse de quem quer que seja, não há por que anulá-lo. Se o ato não motivado, ao contrário, afetar direito ou interesse de particular ou de servidor público, o só fato de não ter sido motivado, independentemente de qualquer outra violação, deve importar em sua anulação.
3.6.2.4 Segurança jurídica O fundamento constitucional do princípio da segurança jurídica reside no art. 5º, XXXVI, que impede que lei possa retroagir para afetar direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Por mais contraditório ou sem sentido que possa parecer, o princípio da segurança jurídica surge para conter ou limitar a aplicação do princípio da legalidade administrativa, sobretudo em relação à possibilidade de a Administração Pública anular atos ilegais que tenham, todavia, gerado benefícios favoráveis a terceiros. Consideremos, por exemplo, que a Administração tenha realizado concurso público para a contratação de servidores públicos e que, decorridos dez anos, decida ela, em face da violação de normas legais ou mesmo constitucionais, anular seu ato. Seria isso possível? Ainda que o terceiro que será diretamente prejudicado não tenha dado causa à ilegalidade? Vê-se que entram em conflito dois princípios: o da legalidade, que impõe ao administrador o dever de anular o ato; e o da segurança jurídica, que não permite que as relações jurídicas possam ser indefinidamente revistas ou modificadas, ainda que o fundamento para a modificação sejam razões de ilegalidade.45 A análise a ser empreendida deve buscar o ponto de equilíbrio entre os dois grandes princípios que se contrapõem de maneira quase inconciliável quando se trata, por exemplo, de rever ato administrativo em prejuízo do beneficiário. 45
O STF, no MS nº 22.357, fundamentado no princípio da segurança jurídica, deferiu o writ, contra deliberação do TCU que determinara à Infraero a regularização de admissões feitas sem concurso público logo após a CF de 1988. Trecho da Ementa: “Transcurso de mais de dez anos desde a concessão da liminar no mandado de segurança. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 6. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua aplicação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso de circunstâncias específicas e excepcionais que revelam: a boa-fé dos impetrantes; a realização de processo seletivo rigoroso; a observância do regulamento da Infraero, vigente à época da realização do processo seletivo; a existência de controvérsia, à época das contratações, quanto à exigência, nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso público no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo período de tempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contratações dos impetrantes”.
Livro 1.indb 106
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
107
No Direito Positivo brasileiro, em período recente, duas leis, em especial, introduziram regras concretas de respeito à segurança jurídica e à estabilidade das relações jurídicas: a Lei nº 9.784/99 e a Lei nº 9.868/99. A Lei nº 9.868/99, ao disciplinar o processo e julgamento das ações de controle de constitucionalidade (ADI e ADC), abriu para o Supremo Tribunal Federal, “tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social”, a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade de ato normativo “com eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha ser fixado” (art. 27). Dessa forma, procurou-se romper com o dogma do Direito Constitucional brasileiro que associa a declaração de inconstitucionalidade à nulidade ex tunc do ato viciado, com vistas a garantir a intangibilidade dos atos concretos praticados com fundamento na norma viciada antes da declaração pelo Supremo. Percebe-se claramente a mitigação do princípio da legalidade, pela possibilidade de o Supremo decidir sobre a conveniência de se preservarem as relações jurídicas constituídas à luz de lei posteriormente declarada inconstitucional. A Lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, elencou a “segurança jurídica” como princípio a ser observado pela Administração, ao lado de outros, como a legalidade, a moralidade, a motivação. Nos artigos 53 a 55, inseridos no Capítulo XIV, a lei tratou da anulação, da revogação e da convalidação dos atos administrativos. O art. 54 fixou em cinco anos o prazo decadencial para que a Administração anule os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo nos casos de comprovada má-fé. O art. 53 utilizou o verbo “dever”, aparentemente para deixar claro que a anulação do ato ilegal não é mera faculdade da Administração, mas um dever. Isso não significa, todavia, prevalência absoluta do princípio da legalidade. Nos artigos seguintes, o princípio é mitigado: o art. 54 estabelece o prazo de decadência dentro do qual a Administração poderá anular; e o art. 55 prevê as circunstâncias em que o ato poderá — ou “deverá”, segundo alguns autores, como Weida Zancaner46 — ser convalidado. A fixação de prazo dentro do qual a Administração exerça o seu poder-dever de anular os seus próprios atos eivados de ilegalidade e dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados era exigência antiga de considerável parte da doutrina e da jurisprudência, que não admitiam que o destinatário do ato vivesse em eterno sobressalto, à espera de possível mudança de posicionamento da Administração. Ainda em 1987, em artigo publicado na Revista de Direito Público com o sugestivo título “Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo”, o Professor Almiro do Couto e Silva analisou com profundidade a questão relativa ao conflito entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica, e criticou a excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo, especialmente no âmbito do Direito Administrativo.47 Esse artigo foi fonte fundamental para outro mais recente, de 1997, do Professor Márcio Nunes Aranha, intitulado “Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato nulo pela imputação do valor de segurança jurídica em concreto à junção da boa-fé e
Cf. ZANCANER. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. COUTO E SILVA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 46-63.
46 47
Livro 1.indb 107
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
108
do lapso temporal”48 (grifamos). Esse último artigo fez referência ao então projeto de lei, que seria posteriormente convertido na Lei nº 9.784/99. A questão — diga-se uma vez mais — não é trivial e envolve o sentimento de justiça e de respeito ao princípio da isonomia. Por que, por exemplo, aposentadoria concedida pela Administração com flagrante ofensa à lei, cujos proventos sejam muito superiores aos que determina a lei, não poderia ser revista em razão do simples transcurso do tempo? Por que perpetuar situação ilegal ou mesmo não exigir o ressarcimento de pessoa que receba proventos muito superiores aos de todos que se aposentaram na mesma situação? Por que deveria a sociedade sustentar tais pagamentos, quando evidenciada a irregularidade do ato de concessão? É justo manter pagamento ilegal pelo simples fato de os servidores estarem com suas remunerações ou proventos defasados? Essas questões práticas devem ser respondidas com equilíbrio. Assim como a legalidade e a isonomia, a segurança jurídica é bem jurídico e princípio a ser respeitado. Valemo-nos de algumas passagens do artigo do Professor Almiro do Couto e Silva a que nos referimos. Se é antiga a observação de que justiça e segurança jurídica freqüentemente se completam, de maneira que pela justiça chega-se à segurança jurídica e vice-versa, é certo que também freqüentemente colocam-se em oposição. Lembre-se, a propósito, o exemplo famoso da prescrição, que ilustra o sacrifício da justiça em favor da segurança jurídica, ou da interrupção da prescrição, com o triunfo da justiça sobre a segurança jurídica. Institutos como o da coisa julgada ou da preclusão processual, impossibilitando, definitivamente o reexame dos atos do Estado, ainda que injustos, contrários ao Direito ou ilegais, revelam igualmente esse conflito. (...) No fundo, porém, o conflito entre justiça e segurança jurídica só existe quando tomamos a justiça como valor absoluto, de tal maneira que o justo nunca pode transformar-se em injusto e nem o injusto jamais perder essa natureza. A contingência humana, os condicionamentos sociais, culturais, econômicos, políticos, o tempo e o espaço — tudo isso impõe adequações, temperamentos e adaptações, na imperfeita aplicação daquela idéia abstrata à realidade em que vivemos, sob pena de, se assim não se proceder, correr-se o risco de agir injustamente ao cuidar de fazer justiça. Nisso não há nada de paradoxal. A tolerada permanência do injusto ou do ilegal pode dar causa a situações que, por arraigadas e consolidadas, seria iníquo desconstituir, só pela lembrança ou pela invocação da injustiça ou da ilegalidade originária. Do mesmo modo como a nossa face se modifica ou se transforma com o passar dos anos, o tempo e a experiência histórica também alteram, no quadro da condição humana, a face da justiça. Na verdade, quando se diz que em determinadas circunstâncias a segurança jurídica deve preponderar sobre a justiça, o que se está afirmando, a rigor, é que o princípio da segurança jurídica passou a exprimir, naquele caso, diante das peculiaridades da situação concreta, a justiça material. Segurança jurídica não é, aí, algo que se contraponha à justiça; é ela a própria justiça. Parece-me, pois, que as antinomias e conflitos entre justiça e segurança jurídica, fora do mundo platônico das idéias puras, alheias e indiferentes ao tempo e à história, são falsas antinomias e conflitos. Nem sempre é fácil discernir, porém, diante do caso concreto, qual o princípio que lhe é adequado, de modo a assegurar a realização da Justiça: o da legalidade da Administração Pública ou o da segurança jurídica? A invariável aplicação do princípio da legalidade da Administração Pública deixaria os administrados,
ARANHA. Segurança jurídica stricto sensu e legalidade dos atos administrativos: convalidação do ato nulo pela imputação do valor de segurança jurídica em concreto a função da boa-fé e do lapso temporal. Revista de Informação Legislativa, p. 59-73.
48
Livro 1.indb 108
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
109
em numerosíssimas situações, atônitos, intranqüilos e até mesmo indignados pela conduta do Estado, se a este fosse dado, sempre, invalidar seus próprios atos — qual Penélope, fazendo e desmanchando sua teia, para tornar a fazê-la e tornar a desmanchá-la — sob o argumento de ter adotado uma nova interpretação e de haver finalmente percebido, após o transcurso de certo lapso de tempo, que eles eram ilegais, não podendo, portanto, como atos nulos, dar causa a qualquer conseqüência jurídica para os destinatários. (...) Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50, na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o principio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do principio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido. Embora o confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa etc., o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se trata de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria. É este, com algumas críticas, formuladas pelas autorizadas vozes de Forsthoff e Bachof, o status quaestionis na Alemanha, como se pode ver dos manuais mais recentes.49
A influência do Direito alemão para a evolução do Direito Constitucional brasileiro, sobretudo no que se refere às técnicas de controle de constitucionalidade das normas e dos efeitos das declarações de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, é indiscutível, sendo flagrante na Lei nº 9.868/99. Ao extrapolar o campo do controle de constitucionalidade, essa influência se faz sentir também no Direito Administrativo, sendo evidente na Lei nº 9.784/99. Ao examinar o Direito francês, Almiro do Couto e Silva destaca que, desde o affaire Dame Cachet, de 1923, os atos maculados de nulidade só podem “ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses” — “mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalide dos atos administrativos”. Enfatiza que, do caso Cachet até hoje, nada se alterou no Direito francês em matéria de revogação e anulamento dos atos administrativos. “Rivero esclarece que a razão disto está em que ‘a jurisprudência considera a segurança jurídica mais importante do que a própria legalidade’. Completamente uniformes, sobre este tema, são as opiniões de Laubadere, Francis-Paul Benoit, George Vedel e Marcel Waline”50 (grifamos). O Professor Almiro do Couto e Silva prossegue suas incursões no Direito Comparado, e cita as soluções para o conflito entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica no Direito italiano e no Direito português. Em seguida, antes de analisar o problema no Direito brasileiro, analisa a solução dada para a antinomia entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica no Direito Constitucional norte-americano, e conclui que, mesmo naquele sistema, do qual COUTO E SILVA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 54-56. 50 COUTO E SILVA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 56-57. 49
Livro 1.indb 109
21/03/2013 17:13:44
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
110
herdamos o dogma de que a lei declarada inconstitucional seria null and void, cresce a preocupação com a segurança jurídica, admitindo-se muitas exceções ao princípio da nulidade da lei inconstitucional: É o que exprimiu a Suprema Corte americana ao sentenciar que “nem sempre o passado pode ser apagado por uma nova declaração judicial. Estas questões situam-se entre as mais difíceis das que atraíram a atenção das cortes, estadual e federal, e resulta manifesta de numerosas decisões que a afirmação inteiramente abrangente do princípio de uma invalidade absolutamente retroativa não pode ser justificada”. A orientação tradicional, como atesta o magnífico repositório do Direito norte-americano, que é o Corpus Juris Secundum, é a de que “uma decisão de um Tribunal competente no sentido de que uma lei é inconstitucional tem o efeito de tornar essa lei null and void; o ato, sob o ponto de vista legal, é tão inoperante como se nunca tivesse sido exarado ou como se nunca tivesse sido escrito, é tido como inválido ou írrito, desde a data de sua emissão, e não apenas da data na qual foi declarada inconstitucional”. Mas logo adiante registra a orientação mais recente, referindo numerosas decisões que têm apreciado a questão: “de outro lado, tem sido sustentado que esta regra geral não é universalmente verdadeira ou nem sempre absolutamente verdadeira; que comporta muitas exceções; que é afetada por muitas considerações; que uma visão realista tem erodido essa doutrina; que tão amplo princípio deve ser entendido como [com] temperamentos e que mesmo uma lei inconstitucional é um fato operativo, pelo menos antes da declaração de inconstitucionalidade e que deve ter conseqüências as quais não podem ser ignoradas”. Cresce de ponto o significado da penetração do princípio da segurança jurídica no Direito norte-americano, em tema de inconstitucionalidade das leis, quando é sabido que lá prepondera, em matéria de efeito retro-operante das decisões dos Tribunais, a ficção de Blakstone, segundo a qual o juiz não faz outra coisa senão exprimir a verdadeira regra jurídica tal como sempre existiu, desde as suas origens, mas que temporariamente não se havia reconhecido.51
A solução adotada pelo legislador brasileiro para fixar o prazo de decadência dentro do qual a Administração pode exercer o seu dever de autotutela é, essencialmente, a mesma adotada pelo Conselho de Estado da França, desde o caso Cachet, de 1923. A diferença está apenas no dimensionamento do prazo, significativamente maior no Direito brasileiro, de cinco anos, quando, na França, é de apenas dois meses. Nos dois sistemas, contudo, o critério foi o de fixar o prazo para a Administração anular os seus atos dos quais decorram benefícios indevidos para o administrado idêntico ao prazo que o administrado tem para impugnar o ato administrativo que considere que lhe é indevidamente prejudicial. No caso francês, o particular tem apenas dois meses para impugnar o ato no contencioso administrativo. No caso brasileiro, a lei fixa, como regra geral, o prazo de cinco anos das ações judiciais contra atos do poder público (Decreto nº 20.910, de 06.01.1932, art. 1º, com força de lei). Aliás, no Direito brasileiro, esse prazo de cinco anos tende a se estabelecer como regra geral tanto para o cidadão quanto para o Estado. Além dos dois normativos já mencionados, podem ser citados o Código Tributário Nacional, que fixa no art. 174 o prazo prescricional de cinco anos das ações judiciais do poder público para cobrança de tributos e, no art. 173, igual prazo para a decadência do direito de constituir o crédito tributário; a Lei nº 9.873/99, que fixa “em cinco anos a prescrição da ação punitiva COUTO E SILVA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 58-59.
51
Livro 1.indb 110
21/03/2013 17:13:44
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
111
da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor (...)”; a Lei nº 4.717/65, que fixa em cinco anos o prazo de prescrição da Ação Popular; a Lei nº 9.494/97, que fixa os mesmos cinco anos para a ação visando à indenização por danos causados por pessoas jurídicas de Direito Público ou de Direito Privado prestadora de serviços públicos. Há exceções, como o prazo para impugnar atos referentes a concursos públicos, que é de um ano, nos termos da Lei nº 7.144/83.
3.6.2.5 Continuidade do serviço público O Estado Democrático de Direito se notabiliza pela prestação de serviços à população em segmentos da sociedade considerados sensíveis e necessários. Conforme examinamos no Capítulo 2, é papel da Constituição Federal definir as atribuições do Estado e, dentro dessas atribuições, indicar os serviços a serem prestados pelos poderes públicos. Ainda que a escolha dessas funções estatais seja matéria de política legislativa, ela não ocorre de modo leviano. As atividades mais necessárias à população são elevadas à categoria de serviço público e, conforme define o texto constitucional (art. 175), “incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou de permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. A necessidade de prestação dos serviços públicos sem interrupções é igualmente demonstrada pelo texto constitucional quando assegura ao servidor público civil o direito de livre associação sindical (art. 37, VI), mas condiciona e admite restrição ao exercício do direito de greve ao dispor que este direito “será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica”. O princípio da continuidade do serviço público foi objeto de exame em recente decisão proferida pelo STF no julgamento do RE nº 220.906 — acórdão que será melhor examinado no Capítulo 4. Na fundamentação do voto vencedor, em nome da realização desse princípio, o STF admitiu exceção ao sistema segundo o qual as prerrogativas públicas aplicáveis às empresas públicas e sociedades de economia mista são somente aquelas especificamente definidas pelo texto constitucional. Em nome desse princípio, admitiu o STF que lei possa conferir a pessoa de direito privado, como é o caso dos Correios, prerrogativa pública, correspondente à impenhorabilidade dos seus bens. No exame do presente caso, ainda que possa ter ocorrido supervalorização do princípio — que poderia justificar, independentemente de qualquer lei, tão somente a impenhorabilidade dos bens imprescindíveis à prestação dos serviços dos Correios, regra, aliás, aplicável a qualquer outra empresa pública ou privada que tenha a incumbência de prestar serviços públicos essenciais — demonstra-se a importância que o princípio assume para a Teoria Geral do Direito Administrativo. Tomemos outra situação, relacionada aos conselhos que fiscalizam o exercício das profissões regulamentadas. Ao julgar a ADI nº 1.717/DF, o STF reafirmou a natureza autárquica dessas entidades. Ora, se são autarquias, a elas se aplica o dever constitucional de prover seus cargos e empregos por meio de concursos públicos, o que somente ocorreu em raros casos. Como proceder diante das situações em que a contratação de pessoal por parte dessas entidades não tenha sido precedida do devido concurso público? Evidentemente, o primeiro princípio a ser utilizado em defesa da manutenção do pessoal contratado sem concurso público é o da segurança jurídica, haja vista essas
Livro 1.indb 111
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
112
contratações, até a data em que o STF se manifestou pela necessidade da realização do concurso público, eram tidas como lícitas e regulares. O princípio da continuidade do serviço público também pode ser considerado. Dado que a grande maioria das contratações de pessoal realizadas por mencionadas entidades não foi precedida de concurso público, o afastamento de mencionado pessoal, que seria a solução apontada pelo princípio da legalidade, importaria em paralisação das atividades desenvolvidas, verificar-se-ia o choque entre três princípios: de um lado a legalidade, do outro, a segurança jurídica e a continuidade do serviço público. Diante dessa aparente colisão, a solução deve favorecer a realização dos dois últimos princípios. Também com apoio no princípio da continuidade do serviço público, o Tribunal de Contas da União, ao identificar falhas em certame licitatório que originou a contratação de determinada empresa para a prestação de serviços essenciais à Administração Pública, tem, em determinadas situações, optado por determinar ao órgão ou à entidade contratante que realize nova licitação para a contratação dos serviços, em vez de fixar prazo para que o órgão anule o contrato, permitindo, com isso, a manutenção do contrato pelo tempo estritamente necessário à realização da nova contratação.52
3.6.2.6 Autotutela Este princípio decorre diretamente da supremacia do interesse público sobre os interesses privados. Conforme examinamos neste capítulo, determinados interesses gerais, em função de sua importância para a sociedade, são elevados à categoria de interesses públicos e acabam por gerar a existência de prerrogativas ou potestades públicas. A autotutela decorre diretamente da supremacia do interesse público sobre os interesses privados e, no Brasil, o seu reconhecimento verificou-se independentemente de lei específica. Por meio da Súmula nº 473, o STF reconheceu à Administração Pública o poder de anular ou de revogar seus próprios atos. A anulação dos atos jurídicos ocorre, no mundo do Direito Privado, necessariamente por meio da intervenção judicial. Não é possível a um particular declarar nulo ato ou contrato, haja vista essa prerrogativa ser privativa do Estado. Quando o poder público for parte de uma relação jurídica, ao contrário, independentemente de intervenção judicial, ele tem a faculdade de, após assegurar direito ao contraditório e à ampla defesa, anular seus atos ou contratos sem que seja necessária qualquer intervenção judicial. Quanto à necessidade do contraditório e da ampla defesa, eles somente são devidos em hipóteses de atos individuais, entendidos estes como os atos que afetam pessoa ou pessoas determinadas. Na hipótese de anulação de um concurso público, por exemplo, que constitui processo composto por diversos atos gerais, não há necessidade de ser assegurado contraditório ou candidatos. Considere, por hipótese, que se descobre que servidor do órgão teve acesso ao gabarito das provas e a elas deu divulgação ilícita. Diante da necessidade de anulação do certame, por que se deveria assegurar aos candidatos inscritos direito ao contraditório ou de ampla defesa? Contraditório 52
TCU: “Acerta, a meu ver, a unidade instrutiva ao propor que o Tribunal determine à ICC a imediata realização de procedimento licitatório para a supressão da impropriedade acima referida e, ao mesmo tempo, sugerir a continuidade da execução dos serviços por parte da atual prestadora. Essa solução parece-me consentânea com o princípio da continuidade do serviço público que não permite a interrupção dos serviços referidos, necessários à preservação do patrimônio público” (Acórdão nº 57/00, Plenário)
Livro 1.indb 112
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 3 REGIME JURÍDICO ADMINISTRATIVO
113
ou ampla defesa contra o quê? Distinta situação se verifica quando a Administração anula a inscrição de um candidato específico ou a sua nomeação, caso aprovado. Nessas hipóteses, estamos diante de atos individuais, que afetam pessoas determinadas. Aqui, a fim de que o poder público possa exercer sua prerrogativa de anular seus próprios atos, será obrigatória a realização do contraditório e da ampla defesa. A revogação dos atos administrativos, faculdade que igualmente decorre diretamente do princípio da autotutela e, indiretamente, da supremacia do interesse público, está relacionada a aspectos de conveniência e de oportunidade. Salvo hipóteses especiais relacionadas a características de alguns atos que impedem a revogação destes, como é a hipótese de se tratar de ato vinculado, de atos exauridos ou de ato individual que tenha gerado direitos adquiridos (conforme será examinado no Capítulo 5), o poder público, por força da supremacia do interesse público, dispõe da prerrogativa de desfazer determinados atos que tenham produzido em razão de critérios de oportunidade ou de conveniência. Na eventualidade de ter sido praticado ato vinculado, a impossibilidade de revogação decorre do simples fato de que ela ocorre por motivo de conveniência ou de oportunidade, e o que notabiliza o ato vinculado é exatamente a não interferência de motivos de conveniência ou de oportunidade na formação do ato. No caso do ato exaurido, ou consumado, entendido este como aquele que já produziu todos os efeitos que dele se poderia esperar, a impossibilidade de revogação se deve ao fato de que esta, a revogação, não pode retroagir, não pode alcançar efeitos pretéritos. A revogação produz efeitos ex nunc. Ora, se o ato consumado é aquele que já produziu todos os efeitos que dele se poderia esperar, o resultado resta evidente: o poder da Administração de revogar atos administrativos não alcança atos exauridos ou consumados, haja vista todos os seus efeitos se encontrarem no passado. À exceção dos atos acima indicados, a supremacia do interesse público gera o poder, ou princípio, da autotutela e permite que o poder público possa, por exemplo, conceder a particular determinada autorização e, posteriormente, revogá-la. Este poder se encontra atualmente expressamente previsto em lei. O art. 52 da Lei nº 9.784/99 reproduziu quase literalmente o enunciado da Súmula nº 473 do STF e, em relação ao poder da Administração de anular seus atos, fixou prazo dentro do qual pode ser exercida essa faculdade.
3.6.2.7 Controle judicial Aliado ao princípio da autotutela, que permite à Administração Pública rever seus atos, a inafastabilidade da apreciação judicial cria, na Teoria Geral do Direito Admi nistrativo, o princípio do controle judicial da Administração Pública. Evidentemente a importância deste tema requer o seu tratamento em capítulo próprio (Capítulo 18). Cumpre, agora, tão somente reiterar que todos os atos praticados pelo Estado, e aí se incluem os atos administrativos, estão sujeitos a controle judicial. Este controle examina a legalidade em sentido amplo dos atos administrativos, ou seja, a conformidade destes com todas as regras e princípios que compõem o ordenamento jurídico. Fixada esta premissa — de que o Poder Judiciário examina a legalidade de todos os atos administrativos — temos que desenvolver mecanismos que permitam o adequado exame dos diversos atos praticados pelo Estado no exercício da sua função executiva. O Poder Judiciário não pode controlar a legalidade de ato praticado por entidade que
Livro 1.indb 113
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
114
dispõe de ampla discricionariedade técnica servindo-se do mesmo instrumental de que se vale para aferir a legitimidade de ato vinculado, por exemplo. Conceitos jurídicos indeterminados, discricionariedade técnica, a necessidade de eficiência que se espera da Administração, a existência dos atos de governo ou políticos são alguns desafios que se apresentam aos juízes por ocasião do controle que exercem sobre a atividade administrativa. No Brasil, valoriza-se muito o controle judicial da atividade administrativa, o que é salutar para a nossa democracia. Nada mais absurdo ou antidemocrático do que pretender que a natureza eletiva dos cargos ocupados pelos chefes do Poder Executivo lhes exima de controle. Os representantes do povo são os legisladores, e a importante função a ser exercida pelo Poder Judiciário no desempenho da sua atividade de controle da Administração Pública é a de verificar se a vontade do povo, manifestada por meio de seus representantes — os legisladores — está sendo respeitada. A função do juiz no exercício do controle da Administração Pública é a de verificar o cumprimento da lei, entendida esta em sentido amplo, no sentido de conformidade com todos os princípios e regras que compõem o ordenamento jurídico. Valoriza-se, todavia, em demasia, a possibilidade de todos os atos serem a qualquer tempo, inclusive antes de se esgotar a instância administrativa, submetidos ao controle judicial. Esse excesso de acesso judicial sob a atividade administrativa — tudo é levado à apreciação judicial, a qualquer tempo — acaba por comprometer a eficácia da atividade administrativa e a própria capacidade dos juízes de responderem adequadamente às demandas da sociedade. Tão importante — ou talvez ainda mais importante ainda — quanto o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial é o princípio da efetividade da tutela judicial. Muitos de nossos tribunais, cada vez mais empenhados em defender suas próprias competências ou seu campo de atuação, ampliam o controle judicial da atividade administrativa e o resultado são milhares de ações judiciais não julgadas. A fim de defender o bom, correto, necessário e democrático controle judicial da atividade administrativa, temos de fixar os limites desse controle de modo a impedir que os juízes possam simplesmente substituir a atividade dos administradores públicos. Todas essas questões serão estudadas mais detalhadamente no Capítulo 18.
Livro 1.indb 114
21/03/2013 17:13:45
Capítulo 4
Organização administrativa
4.1 As bases da Administração Pública 4.1.1 Direito da Organização Administrativa A organização da Administração Pública ganha relevo especial na formação da Teoria Geral do Direito Administrativo. Sua importância se deve ao fato de que toda atividade administrativa se desenvolve, direta ou indiretamente, ou ao menos se inicia, por meio da atuação de órgãos ou de entidades públicas. O Estado moderno, de feição social e cooperativa, é chamado a interferir em todas as áreas da sociedade. Impossível imaginar área em que o Estado não se faça, de algum modo, direta ou indiretamente, presente. Essa é uma característica das sociedades modernas: o grande intercâmbio de informações e de atividades entre os setores público e privado. Se é verdade que a atividade do Estado é cada vez mais influenciada pelo Direito Privado — a ponto de, em razão das reformas gerenciais empreendidas entre nós ao longo da década de 1990, ter-se falado em processo de fuga do Direito Administrativo — não se pode igualmente negar que as atividades privadas — empresariais ou não — nunca sofreram tanta influência do Estado, ainda que a atividade estatal hoje esteja muito mais voltada para a regulação, orientação, fornecimento de dados e de apoio aos setores privados do que propriamente para a intervenção direta do Estado na sociedade. Considerando que o Estado somente se torna capaz de atuar por meio de suas unidades administrativas — entendidas estas como órgãos ou entidades públicas —,1 devemos proceder ao estudo da organização do Estado dentro de uma
A Constituição Federal, em seu art. 71, IV, confere competência ao Tribunal de Contas da União para realizar inspeções e auditorias “nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II”. Na mesma linha, a Lei nº 9.784/98, que cuida do processo administrativo no âmbito da Administração Pública federal, dispõe nos seguintes termos: “Art. 1º (...) §2º Para os fins desta Lei, consideram-se: I - órgão – a unidade de atuação integrante da estrutura da Administração direta e da estrutura da Administração indireta; II - entidade – a unidade de atuação dotada de personalidade jurídica; (...).” Em face da redação utilizada pelo texto da Constituição Federal e pela lei do processo administrativo, o termo unidade administrativa é gênero, do qual são espécies as entidades, que se caracterizam pela existência de personalidade jurídica própria, e os órgãos, como partes integrantes da estrutura das entidades.
1
Livro 1.indb 115
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
116
perspectiva de que ele não é, em si, jamais, o fim, mas apenas o meio para a satisfação das necessidades da população. A organização da Administração Pública deve considerar que o Estado não é hermético, mas que está em constante comunicação com a sociedade. Um papel a ser desempenhado por esta parte do Direito Administrativo consiste, portanto, na definição de como os particulares podem interagir — termos de parceria, convênios, concessões permissões, parcerias público-privadas etc. — com a estrutura administrativa de modo a desempenhar atividades de interesse geral da sociedade. A esta parte do Direito Administrativo nos reportaremos como o Direito da Organização Administrativa. Suas regras assumem importância central no sistema, pois serão elas que irão disciplinar e permitir o desempenho de todas as atividades administrativas, sejam elas prestadas diretamente pelas próprias unidades administrativas, sejam elas transferidas por meio de diferentes acordos de vontade aos particulares que colaboram com o Estado na execução das atividades públicas ou de interesse coletivo.
4.1.2 Direito Constitucional e Direito da Organização Administrativa Ao se inserir na Teoria Geral do Direito Administrativo, o Direito da Organização Administrativa passa a sofrer influência direta do Direito Constitucional em dois aspectos principais. Em primeiro lugar, as regras básicas definidoras das funções do Estado, inclusive no que concerne à separação dos poderes, e da distribuição de atribuições ou de competências entre as diferentes esferas de governo — federal, estadual e municipal —, têm estatura constitucional, o que obriga o legislador a ter de sempre considerar essas normas constitucionais quando pretender interferir na organização da Administração Pública. A segunda grande influência exercida pelo Direito Constitucional sobre o Direito da organização decorre do papel desempenhado pelos direitos fundamentais na defesa de interesses individuais e gerais, tanto em relação à necessidade de o Estado agir de modo a assegurar a dignidade da pessoa humana — dever de atuação positiva —, quanto em relação ao estabelecimento de limites à atuação estatal, o que lhe impõe o dever de respeitar o âmbito das liberdades individuais em face de interferências estatais impositivas — dever de atuação negativa.
4.1.3 Organização da Administração Pública e princípios gerais da Administração Pública A interferência exercida pelo Direito Constitucional sobre o Direito da Organização Administrativa reclama de toda atuação administrativa a necessária legitimidade — decorrente da concepção de Estado Democrático de Direito. Essa legitimidade deve ser buscada, inicialmente, na lei. Cabe a esta dar legitimidade às unidades administrativas, tanto em relação à sua criação quanto em relação à sua atuação. Quanto à atuação, a legitimidade pode ser alcançada por outros meios democráticos, e não apenas pelo caminho estrito da lei. Neste ponto, o Estado de Direito parece entrar em conflito com o Estado Demo crático. O primeiro reclama a necessária aprovação de lei para legitimar as interferências estatais na sociedade; o segundo, pertinente à legitimidade, não prescinde da necessária
Livro 1.indb 116
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
117
aprovação da sociedade relativamente a toda e qualquer interferência estatal. O ponto de equilíbrio para esse aparente conflito deve ser encontrado na necessária edição de lei como requisito formal imprescindível para legitimar a criação de toda e qualquer unidade administrativa, bem como para definir, ainda que de forma genérica, suas atribuições. Fere o princípio do Estado de Direito admitir a criação de unidades administrativas por outro processo que não a lei. Todavia, criada por lei, e desde que compatível com suas atribuições genéricas, a atuação da unidade administrativa — dever de atuação positiva — pode encontrar outras fontes de legitimação, como, por exemplo, a obtenção de resultados benéficos para toda a sociedade. Se é certo que a concepção da necessária submissão da Administração Pública à legalidade estrita desempenhou seu papel histórico de conter o Estado império, de impor-lhe limites, a fim de que as esferas privadas de liberdade fossem respeitadas, também é certo que essa concepção não mais responde a todas as necessidades do Estado moderno, de atuação precipuamente social e cooperativa. A lei continua a desempenhar função básica no Direito da Organização Administrativa. Cabe à lei definir a estrutura básica da Administração Pública, na medida em que a criação de qualquer entidade ou órgão público necessita de lei. Cabe a ela definir as atividades que, de acordo com a Constituição Federal, são desempenhadas pelo Estado e aquelas cuja execução será transferida a particulares. E, sobretudo, cabe à lei dar racionalidade à organização da Administração Pública, garantido a devida segurança jurídica ao particular que se relaciona com o Estado. A elevação do Direito da Organização Administrativa a nível constitucional cobra legitimidade também em relação aos resultados a serem alcançados pela atividade administrativa. A partir da concepção de que o Estado moderno é instrumento para a satisfação das necessidades da sociedade, a legitimidade democrática reclama das diversas unidades administrativas, além da necessidade de observância ao princípio da reserva da lei, a ideia de eficiência. A legitimidade da atividade administrativa não se resume à estrita observância da legalidade institucional — que exige lei para criar e autorizar o exercício de atividades administrativas. Ela vai além. A partir dessa visão instrumental do Estado moderno, deve haver transparência nos processos que definem as diferentes funções do Estado. Esses processos devem estar sujeitos a mecanismos de controle por parte do próprio Estado e da sociedade, controle esse que, entre outros aspectos, considera como requisito de legitimidade a relação custo/benefício para a sociedade das diferentes atividades ou funções administrativas. É evidente que o exame de eficiência não se restringe a aspectos financeiros. Como seria possível, por exemplo, aferir, sob a exclusiva ótica financeira, a eficiência de uma universidade, de uma escola fundamental, ou de um programa de governo destinado a erradicar a pobreza ou a fome? Todavia, o aspecto financeiro, ainda que não seja o único, é de fundamental importância e por isso deve ser levado em consideração. Os custos financeiros gerados pela atividade estatal devem ser sopesados em função dos benefícios sociais, econômicos, ambientais ou mesmo financeiros visados com o desempenho das atividades estatais. O Direito da Organização Administrativa deve cuidar do novo formato do Estado, que assume função subsidiária no que toca ao papel de suprir as necessidades da sociedade, o que não importa, todavia, em redução de sua importância. Tomemos o caso dos serviços de telefonia, de competência da União, e que há poucos anos tinha
Livro 1.indb 117
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
118
sua prestação realizada diretamente pela Administração Pública. Nos atuais, o Estado mantém seu dever de assegurar à sociedade serviços de telefonia adequados (Lei nº 8.987/95, art. 6º), mas a sua função deixou de ser prestadora e passou a ser a de agente regulador e fiscalizador de referido serviço. Essa mudança de função não permite qualquer conclusão acerca da redução da importância do Estado. A forma de cumprir sua atuação é que mudou; de prestador, passa o Estado a ser garantidor de serviços adequados. Uma consequência natural desse processo é a criação de unidades administrativas especializadas (agências) na função de garantir a qualidade desses de serviços e dotadas de elevada autonomia administrativa, financeira e gerencial. Esse novo quadro gera situações impossíveis de serem respondidas satisfatoriamente pela visão tradicional do Direito Administrativo, que trabalha com regras que asseguram à Administração Pública posição de supremacia presumida em face dos particulares. Não há como essas regras responderem às diversas situações fáticas apresentadas e que afetam, por exemplo, as relações estabelecidas entre a Administração centralizada e as agências, entre as agências e as concessionárias, entre estas e os usuários de referidos serviços, entre os usuários e os órgãos de controle (Judiciário e Tribunais de Contas) e, ainda, entre os usuários e as agências. A criação de agências, o aumento da participação de empresas privadas na prestação de serviços públicos, seja por meio de concessões, seja por meio de parcerias público-privadas, e o incremento de relações entre a Administração Pública e entidades não governamentais são alguns exemplos da nova forma de atuação do Estado. Este novo quadro impõe a adoção de um novo Direito Administrativo, mais moderno, capaz de responder de forma mais adequada, racional e eficiente à nova realidade da sociedade. Não se pode negligenciar, todavia, que esses novos mecanismos de atuação do Estado ainda convivem com a estrutura tradicional da Administração Pública, constituída pelas entidades da Administração direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e da Administração indireta (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista). As regras que compõem o Direito da Organização não admitem visão isolada. Elas devem ser examinadas, em primeiro lugar, em face da Constituição Federal e da observância dos direitos fundamentais. Em segundo lugar, deve ser considerado que a atuação de todas as unidades administrativas está sujeita a exame de adequação de resultados e de meios. Em relação a este último, ganha relevo a observância das regras do processo administrativo, haja vista a atuação de toda e qualquer unidade administrativa decorrer de processo administrativo. Daí por que não se pode dissociar o estudo do Direito da Organização das regras pertinentes ao processo administrativo. Ademais, os resultados buscados e eventualmente obtidos pela atuação das diversas unidades administrativas devem ser considerados no juízo de ponderação quanto à formação do juízo de legalidade ou de conformidade com a ordem jurídica, sobretudo quando esses resultados tiverem sido explicitados na motivação do ato administrativo e tiverem sido determinantes como razão de decidir dos responsáveis pelas unidades administrativas. Finalmente, devem também ser considerados no estudo do Direito da Organização os demais princípios administrativos e as normas orçamentárias pertinentes.
4.1.4 Reserva legal e reserva institucional A visão tradicional de que se vale o Direito Administrativo, e os seus operadores, para definir a organização da Administração Pública não mais atende às expectativas
Livro 1.indb 118
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
119
criadas em torno do papel a ser desempenhado pelo Estado moderno. A principal característica da moderna Administração é sua atuação multifacetada. Em algumas áreas, o Estado assume função prestacional — Estado Social; em outras, age como interventor em atividades econômicas, interfere no exercício de direitos de particulares, impõe-lhes obrigações ou abstenções. Não se pode conceber que o instrumental jurídico que o Estado utiliza em todas essas distintas tarefas seja o mesmo. Constitui uma das grandes dificuldades para o Direito Administrativo cuidar de situações tão diversas quando, muitas vezes, o instrumental jurídico posto à disposição dos administradores é extremamente limitado. A atualidade do Direito Administrativo depende da verificação da sua capacidade de responder de forma efetiva às diferentes formas de atuação do Estado. Diante das inúmeras e tão variadas necessidades que as sociedades modernas apresentam, diversos institutos do Direito Administrativo devem ser reexaminados e adaptados a essas distintas realidades, de modo a permitir que o Estado possa mais bem desempenhar sua função de atender às demandas e necessidades sociais. O princípio da reserva de lei — segundo o qual a Administração somente pode fazer o que a lei autoriza — é adequado para regular a atuação do Estado intervencionista. Essa visão tradicional do princípio da legalidade se mostra insatisfatória para cuidar da atuação do Estado prestacionista. A cada dia, a cada instante, surgem novas e mais demandas sociais. Querer que todas essas atividades estatais tenham sido previamente autorizadas por lei formal é desnecessário e impossível. Desnecessário, em primeiro lugar, porque a prestação de serviços estatais não irá, na maioria das vezes, interferir no âmbito de direitos individuais. É conveniente que a Administração Pública, por meio de atos normativos, discipline todas as suas atividades de modo que toda atividade estatal possa ser controlada a partir de parâmetros previamente definidos. Essa regulação deve ser feita por meio de lei em sentido formal somente quando a interferência estatal impuser obrigação ou abstenção aos particulares ou quando a Constituição Federal expressamente a exigir. Não se pode conceber, por exemplo, que o Ministério das Relações Exteriores somente possa realizar uma exposição de obras de arte em suas dependências se houver prévia autorização legal. A lei em sentido formal é necessária quando a Constituição a exigir. Do contrário, ocorrerá indevida limitação da atividade administrativa do Estado e o maior prejudicado é a própria sociedade. Situação em que a Constituição Federal reclama lei em sentido formal diz respeito à criação de órgãos ou de entidades públicas. A subsunção da estrutura administrativa à lei, e que podemos denominar de reserva institucional, é ponto marcante no Direito da Organização Administrativa. Todavia, se essa vinculação da estrutura administrativa à lei deve ser observada — o art. 61 da Constituição Federal, em seu §1º, II, “b” e “e”, confere competência privativa ao Presidente da República para a iniciativa de lei que disponha sobre organização administrativa e criação de órgãos, bem como o art. 37, XIX, requer lei para a criação, ou autorização para a instituição de entidades —, em relação à atuação dessas mesmas unidades, a própria Constituição Federal mitiga a aplicação do princípio da legalidade estrita ao permitir que o Presidente da República possa, mediante decreto, dispor sobre a organização e o funcionamento dos órgãos. Vê-se que a criação de unidades administrativas, por força de disposições constitucionais expressas, observa estritamente o princípio da legalidade. O mesmo não se
Livro 1.indb 119
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
120
verifica de forma tão estrita em relação à atuação dessas mesmas unidades, sendo cada vez mais comum a técnica da legislação em branco. Ao adotar essa técnica, o legislador define as atribuições básicas das unidades administrativas e remete para normas infralegais o dever de detalhar sua atuação. A técnica da legislação em branco vem ao encontro da necessidade de que a Administração Pública deve estar preparada para responder mais adequadamente às novas demandas sociais da sociedade. A utilização de regulamentos para definir a atuação das unidades administrativas deve ter limites. Em relação aos processos externos, que regulam o relacionamento da unidade com os particulares e que afetem seus direitos ou interesses, o princípio da segurança jurídica requer o seu tratamento por meio de lei. Em relação à atuação interna que não afete direitos ou pretensões de particulares é cada vez mais comum a utilização de regulamentos para cuidar da atuação administrativa. A visão estática e formal do Direito da Organização Administrativa é válida, tão somente, para a definição da estrutura administrativa do Estado. As demandas que a sociedade moderna apresenta não mais podem ser atendidas quando se adota a visão tradicional, centralizada e hierarquizada de que toda e qualquer atuação estatal depende de lei. Esta continua a exercer papel fundamental na organização da atividade administrativa, no sentido de regular a atuação estatal e, principalmente, de impor-lhe limites. Em alguns segmentos, em que o Estado assume a função de agente mediador de necessidades da sociedade, de agente cooperativo ou parceiro em atividades de utilidade pública ou empresariais, de incentivador de atividades a serem desenvolvidas pelos particulares, de agente regulador de serviços públicos cuja prestação tenha sido delegada a particulares, deve ser reconhecido maior nível de informalidade à atuação da Administração Pública, devendo o controle sobre essas atividades estatais pautar-se sobretudo pela aferição dos resultados e pela observância de princípios da moralidade, da impessoalidade, da publicidade etc. O princípio da reserva legal, segundo o qual “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (CF, art. 5º, II), é apresentado como distinto ou mesmo oposto à legalidade administrativa indicada no caput do art. 37 do texto constitucional. A legalidade da Administração, ao contrário, é tida como a legalidade restrita ou estrita, no sentido de que a Administração Pública somente pode praticar qualquer ato ou desenvolver qualquer atividade se houver lei que autorize ou determine a prática desse ato ou a desempenho dessa atividade. Essa visão tradicional, que opõe o princípio da reserva da lei ao da legalidade administrativa, parece-nos equivocada. Possuem os dois dispositivos a mesma natureza e o mesmo alcance. O artigo 5º da Constituição tem por destinatário o particular; o artigo 37, a Administração Pública. Tratam os dois dispositivos apenas de enfoques distintos para o mesmo princípio. Quando o texto constitucional, por força da própria separação de poderes, impõe à Administração Pública (art. 37) a legalidade, visa a impedir que a Administração imponha ao administrado qualquer obrigação — positiva ou negativa — sem que o faça por meio de lei. Afirmar que ninguém, vale dizer, que os particulares somente podem ser obrigados a fazer ou a deixar de fazer algo em função de lei tem o mesmo sentido que afirmar que a Administração Pública somente pode intervir no âmbito de atuação dos particulares impondo-lhes obrigações, condicionando-lhes o exercício de atividades, limitando-lhes o exercício de direitos, por exemplo, se se utilizar de lei. Todavia, nem toda atividade da Administração do Estado importa em intervenção no âmbito de
Livro 1.indb 120
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
121
atuação dos particulares, de modo que se pode concluir que a Administração Pública possui certa margem de atuação que prescinde de lei. Este instrumento — lei em sentido formal, aprovada pelo Poder Legislativo — é necessário quando (1) o Estado promover intervenção no âmbito de atuação dos particulares e (2) quando a Constituição Federal expressamente o exigir — por exemplo, a criação de órgãos ou entidades públicas ou a realização de despesa pública, que pressupõe previsão orçamentária. Se a atividade a ser desempenhada pela função executiva do Estado não importar em invasão na esfera privada dos particulares ou não se enquadrar em hipótese para a qual a Constituição tenha expressamente exigido lei, não há como se concluir que toda e qualquer atividade administrativa do Estado estejam a depender de lei prévia autorizativa. As privatizações, as concessões e permissões de serviços públicos, a utilização pelo Estado, cada vez mais frequente, de organizações não governamentais para desempenhar atividades de interesse social, a constatação de que o Estado moderno atua muitas vezes como incentivador, e não como interventor direto, de atividades desenvolvidas em parceria ou colaboração com a sociedade impõem a revisão da concepção tradicional e amplamente aceita de que toda atividade administrativa do Estado depende de expressa previsão legal. A realidade atual reclama a pronta atuação do Estado em novas áreas ou setores — o acesso à internet, o apoio à inclusão social, o apoio a gestantes, idosos ou a pessoas com deficiências etc. —, e não se pode formalizar excessivamente a atuação da Administração Pública no desempenho dessas atividades que não importam em qualquer intervenção ou limitação de direito de particular. Tomemos o exemplo de Município que tenha a pretensão de desenvolver programa social que objetive informar à população desempregada as oportunidades de emprego disponíveis no mercado. Desde que sejam indicados os recursos orçamentários necessários e que exista órgão público com competência genérica para desenvolver programas sociais — uma secretaria de ação social ou do trabalho —, a execução desse programa de governo independe de previsão expressa em lei. Reconhecer certa margem de informalidade à capacidade da Administração de desenvolver determinadas atividades de interesse social apenas justifica a razão de ser e de existir do Estado: instrumento de satisfação das necessidades da sociedade, em especial no que relaciona à dignidade da pessoa humana. A lei, em seu sentido formal, continua a desempenhar papel fundamental no Direito Administrativo. Cabe a ela conferir racionalidade e segurança à sociedade. Todavia, é de se reconhecer a necessidade de mais flexibilidade e de liberdade ao Estado para exercer sua função executiva. Surge, desse modo, o que se pode denominar Administração Pública informal.
4.1.5 Administração informal A grande dificuldade em se reconhecer a existência de certo nível de informalidade na atuação da Administração Pública decorre da concepção dominante quanto à aplicação do princípio da legalidade. Conforme examinado, a legalidade administrativa não nos pode levar ao exagero de estabelecer como requisito de legitimidade de que todo e qualquer ato administrativo tenha sido prévia e detalhadamente disciplinado em lei. Esta, a lei, exerce papel fundamental para o desempenho da função administrativa do Estado, sobretudo para a definição de soluções racionais, para evitar conflito de atribuições entre diferentes unidades administrativas, e para conferir segurança jurídica à sociedade e ao próprio Estado.
Livro 1.indb 121
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
122
Há áreas ou atividades administrativas em que a informalidade deve ser tida como totalmente descabida. Não se pode admitir informalidade, por exemplo, na condução de processos restritivos de direitos, de que seria exemplo o processo disciplinar, que devem observar o devido processo “legal”. Igualmente não se pode admitir informalidade em processos que permitem à Administração Pública a imposição de obrigações aos particulares, para criar órgãos ou entidades, para desempenhar atividades para os quais a Constituição Federal imponha a necessidade de lei ou para delegar atividades estatais a particulares. A informalidade administrativa não se presta para invadir a esfera privada dos particulares, impondo-lhes obrigações ou restringindo-lhes o exercício de direitos. Todavia, na condução de inúmeras atividades administrativas internas, que não afetam a liberdade ou o âmbito de direitos dos particulares, negar informalidade, além de ausência de fundamentação jurídica, demonstra total desconhecimento da realidade administrativa. A fim de confirmar a existência dessa informalidade pode ser utilizado como exemplo a lei de licitações, que determina que nas contratações sem licitação deve ser justificado o preço do contrato. Como deve proceder o administrador público para definir o valor de referência a ser utilizado nessas contratações? Diante do dever de justificar o preço contratado, exigência imposta pela legislação, e da inexistência de parâmetros legais para proceder a essa justificação, como esperar que o administrador siga trâmites formais se não há qualquer legislação dispondo quanto a esse formalismo? A existência de informalidade na atividade administrativa não importa em conferir carta-branca ao administrador. Impõe-se a este o dever de motivar seus atos, além de ter de realizar interesse público. A adoção de soluções informais não pode impedir, restringir ou criar embaraços ao exercício dos mecanismos e procedimentos de controle quanto à sua conformidade com a ordem jurídica — moralidade, transparência, motivação, eficiência, razoabilidade etc. Informalidade não importa, desse modo, em liberdade absoluta ou em imunidade aos mecanismos de controle. É entendimento corrente que todo ato somente pode ser praticado se houver expressa previsão legal. É contra esse entendimento, com a devida vênia, que nos insurgimos. É certo que as atividades ou os programas a serem empreendidos pela Administração Pública devem encontrar fundamento em competência genérica prevista em lei ou na própria Constituição. Não é necessário que todo ato ou contrato a ser praticado com vista à realização de determinada finalidade ou ao exercício de certa atividade que pode ser licitamente desenvolvida por órgão ou entidade pública necessite de expressa previsão legal. Em relação à celebração de contratos, inclusive no que concerne àqueles regidos pelo Direito Privado, não se exige e jamais se questionou a necessidade de lei que autorize a celebração de cada contrato, de forma específica, conforme preceitua o entendimento dominante. A fim de que determinada unidade administrativa cumpra suas atribuições, devem ser celebrados todos os contratos ou praticados todos os atos necessários, independentemente de expressa previsão em lei. Tomemos o exemplo de unidade administrativa cujo prédio onde funciona seja embargado pela defesa civil por razões de segurança. Somente será possível a esta unidade contratar a reforma de suas instalações, alugar outro edifício, contratar seguros etc. se houver sido expressamente autorizada a celebrar esses contratos? Qual a lei, que de forma expressa ou implícita, autoriza as unidades administrativas a contratar a assinatura de jornais ou revistas, por exemplo? Desde que se indique a fonte orçamentária da qual podem ser buscados
Livro 1.indb 122
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
123
os recursos para a realização das despesas, nenhum desses contratos poderá ter sua legitimidade questionada por falta de autorização legal, porque são eles necessários ao exercício das atribuições do órgão ou entidade pública. E se esse entendimento, quanto à possibilidade de serem celebrados contratos pela Administração sem que haja expressa e específica previsão legal, é inquestionável, não há por que não se admitir o mesmo para os atos a serem praticados pela Administração, desde que observados os parâmetros apresentados — de que não criem obrigação aos particulares, não restrinjam o exercício de atividades etc. A fim de conferir racionalidade, eficiência e maior segurança à sociedade e à própria Administração, ainda que possa ser dispensada a aprovação de lei específica, convém à Administração valer-se de normas ou de regulamentos para regular o exercício de suas atividades informais. A informalidade administrativa não pode ser confundida com a discricionariedade administrativa, ainda que não se possa negar que se trate de áreas extremamente próximas. A discricionariedade decorre da lei e deve ser exercida nos limites da lei. A informalidade na condução de determinadas atividades administrativas decorre, ao contrário, da ausência de lei. Todavia, encontrando-se o administrador obrigado a cumprir determinadas finalidades institucionais, vê-se ele obrigado a seguir certos procedimentos, praticar atos ou celebrar contratos não autorizados ou disciplinados em lei. Desse modo, ainda que sujeito a controvérsias, deve ser reconhecida a existência de informalidade em atividades administrativas cujos efeitos são sentidos pela sociedade, desde que não importem em restrição ou interferência no âmbito de direitos ou de interesses privados. Se for identificado fundamento em competência constitucional genérica para o exercício de atividades por parte de determinada unidade administrativa, é legítima a realização de políticas públicas ou programas de governo a serem implementados por meio de atos ou de contratos não previstos ou disciplinados em lei específica. Tomemos o seguinte exemplo: o Ministério dos Esportes — idêntico raciocínio vale para uma Secretaria Estadual ou Municipal — deseja desenvolver atividades ou programas de incentivo à participação de pessoas deficientes em atividades de seu âmbito de atuação. Essas atividades somente poderão ser desenvolvidas se houver expressa previsão legal? A resposta, parece-nos, é negativa. A criação do Ministério ou da Secretaria em questão decorre de lei. Esta confere competências genéricas para o exercício de atividades no âmbito de atuação do Ministério ou da Secretaria. Observados os parâmetros aqui indicados, e desde que haja previsão orçamentária, é legítimo à Administração, independentemente de lei autorizativa específica, desenvolver atividades que extrapolem os limites internos da Administração e que afetem a sociedade, desde que isto importe em benefícios ou em vantagens para a sociedade.
4.1.6 Administração Pública em sentido orgânico e em sentido funcional A divisão das funções do Estado — executiva, legislativa e judicial — constitui aspecto fundamental do Estado moderno e o ponto de partida para o estudo do Direito Administrativo. Este tem por objetivo disciplinar a atuação da Administração Pública, tanto em relação a suas atividades internas — quando cuida do regime jurídico dos servidores públicos, por exemplo —, quanto em relação às relações estabelecidas entre a Administração e os particulares — concessão de licenças, regime jurídico de contratos
Livro 1.indb 123
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
124
administrativos, concessões e permissões etc. Cumpre, portanto, determinar o âmbito de atuação da Administração Pública a fim de que possa estabelecer o objeto do próprio Direito Administrativo. A expressão Administração Pública pode ser entendida em sentido orgânico ou em sentido funcional. Do ponto de vista orgânico, a Administração Pública compreende as diversas unidades administrativas (órgãos e entidades) incumbidas de cumprir os fins do Estado, incluídos aqueles afetos às funções legislativas ou judiciais. Os órgãos incumbidos de exercer essas atividades — legislativas e judiciais —, no exercício de suas atividades fins, não se sujeitam ao Direito Administrativo. Eles integram, todavia, a Administração Pública e submetem-se ao Direito Administrativo em todos os demais aspectos de sua atuação. Desse modo, as Casas Legislativas — Câmara dos Deputados, Senado Federal, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores — e os tribunais judiciários — Supremo Tribunal Federal, Tribunais Regionais Federais, Tribunais de Justiça etc. — integram as administrações diretas em suas respectivas esferas de governo e, nesta condição, submetem-se a regras do Direito Administrativo. Fixada essa premissa, o Direito Administrativo passa a ter por objeto regular e disciplinar toda e qualquer atividade desenvolvida pelo Estado, excetuadas aquelas que, em função de determinação constitucional ou legal, tenham sido conferidas aos órgãos judiciais ou legislativos. A definição da natureza judicial, legislativa ou administrativa das atividades estatais, bem como saber se existiriam atos praticados pelo Estado não sujeitos ou não passíveis de enquadramento nestas três funções, constitui objeto de intermináveis discussões doutrinárias.
4.1.7 Estado federado e Estado unitário A Constituição de qualquer Estado moderno possui dois objetivos primordiais: 1. Reconhecer e positivar os direitos fundamentais; e 2. Definir a organização administrativa do Estado. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 18, dispõe que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Direito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. A importância do sistema de organização do Estado brasileiro é confirmada quando o próprio texto constitucional (art. 60, §4º, I) insere dentre as denominadas cláusulas pétreas e, portanto, veda “proposta de emenda” constitucional tendente a abolir “a forma federativa de Estado”. No processo constitucional de organização do Estado, uma das tarefas mais difíceis é a de definir as atribuições ou atividades estatais, os limites para a atuação do Estado e como este irá exercer suas atribuições. Nos Estados unitários, a questão se simplifica, haja vista todas as competências públicas serem conferidas a um único ente. Nos Estados federados, de que é exemplo o Brasil, cabe à Constituição, além de definir o que é público e o que é privado, distribuir atribuições públicas às unidades que integram a federação, processo que temos denominado de descentralização vertical. As atribuições ou funções do Estado não restam, desse modo, dispersas ou fluidas. Quando a Constituição Federal ou a lei prevê determinada competência estatal, esta não é conferida ou atribuída ao “Estado” ou ao “Poder Público” de maneira indeterminada ou genérica. Ocorre, no âmbito da organização do Estado, o processo de personificação
Livro 1.indb 124
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
125
das organizações públicas, que são constituídas, à semelhança do Direito Privado, em pessoas jurídicas, sujeitos, portanto, de direitos e obrigações. Ao definir as atribuições do Estado, a Constituição as distribui entre as diferentes entidades ou entes que integram as administrações públicas diretas nos diferentes níveis de governo: federal, estadual, distrital e municipal. É importante notar que o conceito de entidade administrativa está diretamente ligado ao de pessoa jurídica, sendo possível definir entidade como a unidade administrativa dotada de personalidade jurídica, simplesmente. As entidades que recebem atribuições diretamente da Constituição Federal, e que, nos termos e limites da Constituição Federal, exercem atribuições políticas, sobretudo atribuições de legislar e de tributar, podem ser denominadas de entidades políticas ou primárias. No processo de organização do Estado, a primeira etapa corresponde à distribuição de atribuições entre essas entidades políticas, que compõem as administrações públicas diretas. Se todas as atribuições do Estado são conferidas a uma única entidade primária, que poderá, eventualmente, distribuí-las a terceiras entidades vinculadas e, portanto, sujeitas a algum mecanismo de controle político a ser exercido pela primeira, teremos o Estado unitário. Ao contrário, se a Constituição distribui atribuições públicas diretamente a entidades primárias em diferentes níveis, autônomas entre si, o modelo adotado é o do Estado federado. É evidente que essa distribuição de atribuições não segue padrão único. É possível, dentro do modelo do Estado federado, identificar a existência de diferentes gradações. Há situações em que, não obstante seja adotado o modelo federativo de distribuição de atribuições, quase todas as atribuições, ou ao menos aquelas que realmente desempenham ou exercem importância política, social ou econômica, são conferidas ao ente central, restando poucas e insignificantes competências a serem exercidas pelas unidades federadas. Em outros casos, ao contrário, a maior parte das atribuições é outorgada pela Constituição às unidades descentralizadas, o que se verifica no modelo de federalismo adotado nos Estados Unidos da América. Experiência jurídica muito interessante e rica ocorre na União Europeia. Até o momento, em função das peculiaridades verificadas no processo de unificação da Europa, não foi possível definir a natureza jurídica desta entidade supranacional. Não é ainda certo se se trata de confederação de Estados, de Estado federado ou de realidade nunca antes verificada ou diagnosticada no mundo jurídico. É tema ainda aberto que, em função da riqueza de informações e de sua importância política, econômica, social etc., certamente tende a se repetir, inclusive no âmbito do Mercosul — caso venha a ser tornar politicamente viável.
4.1.8 Descentralização vertical e horizontal O processo de descentralização administrativa ocorre quando se distribui competências materiais entre unidades administrativas dotadas de personalidades jurídicas distintas. Este processo é identificado com maior frequência dentro de uma mesma esfera de governo. Nesta hipótese, a entidade primária, integrante da Administração Pública direta — União, Estado, Município ou Distrito Federal —, por meio de lei (CF, art. 37, XIX), transfere alguma ou algumas de suas atribuições a entidades que irão compor as suas respectivas administrações indiretas. Este processo de distribuição de atribuições,
Livro 1.indb 125
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
126
e que resulta na criação de entidades autárquicas, fundacionais ou de empresas estatais, corresponde à descentralização horizontal. Ganha esta denominação em função de a distribuição de atribuições ocorrer em um mesmo nível de governo. Não obstante se trate de questão de pura semântica, entendemos que o termo descentralização administrativa possa ser também utilizado para indicar a distribuição de atribuições estatais entre entidades de diferentes níveis. Neste caso, ocorre a descentralização vertical quando a própria Constituição Federal promove a distribuição de atribuições entre as diferentes entidades políticas ou primárias — União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Também por razões terminológicas temos que esclarecer que utilizamos as expressões Administração Pública “direta” e “centralizada” como sinônimas, e que o mesmo ocorre com os termos “indireta” e “descentralizada”. O Decreto-Lei nº 200, de 1967, como observa Celso Antônio Bandeira de Mello,2 buscou diferenciá-los. Nos termos daquele decreto-lei, dentro da Administração descentralizada seriam também incluídos os particulares que prestam serviços públicos, como concessionários e permissionários, o que não ocorreria com a Administração indireta. Entendemos, todavia, que em face do modelo de organização administrativa adotado pela Constituição Federal de 1988, não seja possível incluir os particulares que, nessa qualidade, prestam serviços à população em categoria alguma de Administração Pública, independentemente da adjetivação utilizada. Diante dessa nova realidade constitucional, que exclui qualquer possibilidade de incluir particulares que colaboram com o Estado no âmbito da Administração Pública, os termos podem ser apresentados como sinônimos. Feitos esses esclarecimentos de ordem terminológica, devemos prosseguir no exame da descentralização administrativa. Os critérios utilizados para promover a distribuição de potestades públicas entre as entidades primárias são de ordem política e, eventualmente, técnica. Desse modo, a Constituição Federal promove tal distribuição entre União, Estados e Municípios a partir de critérios casuísticos e sujeitos a eventuais alterações. Sendo definida pela Constituição Federal, qualquer modificação nesta distribuição depende de alteração do texto constitucional. Como já antes mencionado, dentre as matérias constantes do rol das denominadas “cláusulas pétreas” encontra-se a vedação de emenda à Constituição “tendente a abolir” a forma federativa de Estado (CF, art. 60, §4º, I). A existência desta vedação impede a adoção, entre nós, do modelo de Estado unitário. Não impede, todavia, a definição de novos modelos ou critérios de distribuição de atribuições. É perfeitamente compatível com a Constituição emenda cujo propósito seja o de, por exemplo, transferir a Municípios atribuições dos Estado ou da União. Dentro de nosso modelo de federação, questão curiosa diz respeito à criação de órgãos de atuação em âmbito nacional e dotados de competência para interferir nas órbitas federal e estadual. Seria exemplo o Conselho Nacional da Magistratura criado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2005. Não obstante este órgão integre formalmente a estrutura da União, possui ele atribuições que extrapolam os limites desta esfera, exercendo, conforme observa o relator da ADI nº 3.367/DF, Min. Cezar Peluso, 2
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 142.
Livro 1.indb 126
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
127
atribuições de âmbito nacional. De acordo com a pretensão dos responsáveis pela sua criação, esse órgão tem atuação suprafederativa, e, ainda que administrativamente vinculado à estrutura federal, ele paira acima de todas as esferas ou níveis de governo e exerce atribuições em relação a todos estes diferentes níveis. Trata-se de inovação em nosso modelo jurídico que deve ser examinada e acompanhada com muito cuidado. A perspectiva de criação de órgãos dessa natureza pode permitir que a esfera federal possa, de modo disfarçado, interferir nas outras esferas sob o pretexto de que a interferência estaria sendo exercida não pela União, mas por órgão “suprafederativo”. Feitas essas considerações acerca da descentralização vertical, cumpre observar que bem mais usual é a descentralização verificada dentro de uma mesma esfera de governo. A rigor, sempre que o termo descentralização for utilizado de modo isolado, sem qualquer adjetivação, ele deve ser entendido como o processo de distribuição de atribuições entre pessoas jurídicas distintas verificado dentro de uma mesma esfera de governo. O instrumento próprio para a descentralização horizontal é a lei em sentido formal. Somente mediante lei específica pode ser criada autarquia ou autorizada a instituição de fundações públicas, de empresas públicas ou de sociedades de economia mista. De igual modo, o processo de centralização administrativa ocorre quando, igualmente por meio de lei específica, determinada atribuição anteriormente descentralizada é devolvida à Administração direta. A centralização pode ser parcial ou total. Verifica-se a centralização parcial quando o deslocamento de atribuição da entidade descentralizada para a entidade centralizada ou direta é feito sem que isto importe em extinção da entidade descentralizada. Se apenas algumas atribuições são centralizadas e é preservada a personalidade da entidade descentralizada para exercer as atribuições restantes, verifica-se a centralização parcial. Quando a centralização ocorre de modo a transferir todas as atribuições da entidade descentralizada para a entidade centralizada, o que importa em extinção da pessoa jurídica descentralizada, verifica-se a centralização total. Nesta última hipótese, a entidade centralizada sucede a entidade extinta em todos os seus direitos e obrigações, independentemente de disposição legal nesse sentido. A transferência de direitos e de obrigações decorre diretamente da própria extinção da pessoa jurídica extinta. Desde que não haja prejuízo para os credores da pessoa descentralizada extinta, a lei que tenha determinado a centralização total poderá adotar outra forma de liquidação de obrigações, o que ocorreria com a designação de inventariante para liquidar essas obrigações, o que em nada afasta a responsabilidade subsidiária da entidade política centralizada — União, Estado etc. Ao afirmar que lei cria autarquia e autoriza a instituição das demais entidades mencionadas, a Constituição cria a reserva institucional. Por meio desta reserva, impõe-se a necessidade de prévia aprovação de lei como requisito necessário ao processo de descentralização horizontal. No caso da autarquia, a lei cria a pessoa jurídica. Não há necessidade de qualquer outra providência administrativa ou regulamentar para que a autarquia possa ser considerada sujeito de direitos e de obrigações, salvo se a própria lei dispuser em sentido contrário. Isto poderia ocorrer se a própria lei exigir a sua regulamentação como condição para o surgimento da pessoa jurídica. Em relação às demais entidades — sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações públicas —, a Constituição Federal, à semelhança do que se verifica em relação às autarquias, exige lei. Todavia, o texto constitucional dispõe que para essas hipóteses a lei irá, tão somente, autorizar a
Livro 1.indb 127
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
128
instituição dessas entidades. Em face deste tratamento diferenciado, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a lei, ainda que necessária, não é suficiente para criar estas últimas pessoas. Outras providências tornam-se necessárias, entre elas o registro em junta comercial ou em cartório, conforme a entidade a ser criada tenha por objeto social a exploração de atividade empresarial ou não. Caso o objeto seja empresarial, o registro far-se-á em junta comercial; se não for empresarial o objetivo social, o registro ocorrerá em cartório. A necessidade de registro relaciona-se ao fato de estas serem pessoas de Direito Privado, afirmação que, em relação às fundações públicas, será adiante objeto de exame mais detalhado, haja vista ser possível a criação de fundações públicas de natureza pública, hipótese em que o registro é dispensado, ou de fundação pública de direito privado, conforme disponha a lei que a crie ou autorize a sua instituição. O rigor relacionado à criação ou à autorização para a instituição de autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista ou fundações públicas, previsto no texto constitucional (art. 37, XIX), que pressupõe a prévia aprovação de lei específica, é aparentemente estendido pela redação do artigo 37, XX, à criação de entidades subsidiárias àquelas (CF, art. 37, XX: “depende de autorização legislativa, em cada caso, a criação de subsidiárias das entidades mencionadas no inciso anterior, assim como a participação de qualquer delas em empresa privada”). Em relação à criação dessas subsidiárias, a primeira observação a ser feita diz respeito ao fato de que por autorização legislativa deve-se entender lei, ou seja, o instrumento hábil a ser utilizado pelo Poder Legislativo para autorizar a criação de subsidiárias é lei. A segunda observação relaciona-se à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O, repito, aparente rigor da expressão “em cada caso” contido no mencionado art. 37, XX, do texto constitucional foi mitigado pela jurisprudência do STF (ADI nº 1.649/DF). Ao julgar esta ação, o STF firmou entendimento de que “é dispensável a autorização legislativa para a criação de empresas subsidiárias, desde que haja previsão para esse fim na própria lei que instituiu a empresa de economia mista matriz, tendo em vista que a lei criadora é a própria medida autorizadora”. Nesses termos, ainda que se possa criticar a interpretação conferida pelo STF ao texto constitucional (CF, art. 37, XX), é esta a interpretação a ser seguida pelas empresas estatais na eventualidade de decidirem pela criação de subsidiárias ou pela participação em capital social de empresas privadas. Se a lei que autorizou a criação da empresa pública ou da economia mista tiver autorizado a criação de subsidiárias ou a realização de participações societárias, não há necessidade de nova autorização legislativa, sendo suficiente a adoção das providências previstas pelo Direito Privado. A descentralização horizontal se verifica dentro de determinada esfera de governo e tem como instrumento a lei; a descentralização vertical opera-se mediante a criação de diferentes níveis de governo. Estas entidades resultantes do processo de descentralização vertical integram a Administração direta em cada nível de governo: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Vê-se que o estudo do Direito da organização da Administração Pública tem o seu ponto de partida no processo de descentralização vertical, cujo instrumento é o próprio texto da Constituição Federal. O ordenamento constitucional define, desse modo, as atividades ou atribuições a serem exercidas pelo Estado e as distribui entre as diferentes entidades políticas.
Livro 1.indb 128
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
129
Estas entidades — União, Estados, Municípios, Distrito Federal — podem optar por que suas atribuições sejam exercidas diretamente por essas mesmas entidades, ou seja, podem optar pela centralização da prestação dos serviços ou exercício de atribuições que lhes são conferidas. Ao contrário, em função de razões de conveniência política, técnica, administrativa etc., pode cada uma das diversas entidades políticas preferir a descentralização (horizontal) de atribuições que lhes foram conferidas pela Constituição. A título de exemplo, pode ser examinada a competência estatal para a emissão de moeda (CF, art. 21, VII). No processo de descentralização vertical empreendido pela Constituição, trata-se de competência da União. Diante dessa realidade, pode a própria União, pessoa de Direito Público, prestar esse serviço ou, por hipótese, de acordo com critérios políticos, técnicos, administrativos etc. transferir essa atribuição para outra entidade sujeita a controle político da própria União. A opção da União, no caso, foi pela descentralização horizontal dessa atribuição, tendo sido criada a Casa da Moeda do Brasil, como autarquia, e, posteriormente, transformada em empresa pública (Lei nº 5.895/73).
4.1.9 Limites à descentralização horizontal Aspecto relacionado à descentralização administrativa que merece atenção diz respeito ao fato de que a Constituição Federal somente autoriza as entidades políticas a criar autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista (art. 37, XIX). Ainda que seja utilizada lei, não é possível a criação de entidades de natureza distinta destas, vedação que decorre diretamente do princípio da reserva institucional. Essa sistemática não tem sido, todavia, cumprida. Tomemos o exemplo da Agência Brasileira de Desenvolvimento Institucional (ABDI), criada pela Lei nº 11.080, de 2004. Dispõe o art. 1º desta lei nos seguintes termos: Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a instituir Serviço Social Autônomo com a finalidade de promover a execução de políticas de desenvolvimento industrial, especialmente as que contribuam para a geração de empregos, em consonância com as políticas de comércio exterior e de ciência e tecnologia. §1º O Serviço Social Autônomo de que trata o caput deste artigo, pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos, de interesse coletivo e de utilidade pública, denomina-se Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI.
Conforme será examinado adiante, não existe, até o momento, qualquer definição acerca da natureza jurídica das entidades que compõem o denominado Sistema “S” (SESI, SESC, SENAC etc.). Sabe-se, todavia, que o enquadramento de uma entidade como integrante do Serviço Social Autônomo não lhe define a natureza. No caso acima, a União, por meio de lei, autoriza a criação de uma entidade como Serviço Social Autônomo. Trata-se não apenas de anomalia jurídica, mas de efetiva inconstitucionalidade cujo propósito é evidente: fugir aos ditames do Direito Administrativo. No momento em que a União cria entidade que não integra a Administração Pública direta ou indireta, esta entidade fica automaticamente liberada do cumprimento dos deveres impostos pelo art. 37 do texto constitucional às entidades e órgãos da Administração Pública. Referida entidade não se submete ao dever de licitar da Lei nº 8.666/93, não realiza concurso público para a contratação de pessoal etc.
Livro 1.indb 129
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
130
Não se pretende, aqui, impedir, ou mesmo questionar, a legitimidade do poder público de criar entidade cuja finalidade seja a “de promover a execução de políticas de desenvolvimento industrial”. Deve ser observado, no entanto, que se o poder público pretende criar entidade para a execução desta ou de qualquer outra finalidade pública, deve fazê-lo por meio de autarquia, fundação pública, empresa pública ou sociedade de economia mista. Do contrário, incorrerá em evidente inconstitucionalidade.
4.1.10 Conflitos de atribuição A distribuição de atribuições entre as entidades que compõem as diferentes esferas da Administração Pública está sujeita a inúmeras possibilidades de conflitos. A existência de crises institucionais, de conflitos de competência positivos — que se verificam quando uma entidade reconhece a sua competência para o exercício de determinada atividade pública em detrimento da competência de outra entidade — ou negativos — verificado quando nenhuma entidade pública reconhece sua competência pública e a atribui a outra entidade —, além de afetarem a capacidade de atuar do Estado, contribui para a baixa legitimidade da Administração Pública perante a população. A rigor, poucos fatores afetam de modo tão direto a legitimidade do Estado quanto à existência de crises ou de conflitos entre entidades públicas. Para a população, o Estado é um só. A existência de diversas entidades primárias (União, Estados etc.) e secundárias (autarquias, fundações públicas etc.) que compõem a estrutura da Administração não é fenômeno facilmente compreendido para grande parte da população. À população interessa que o Estado atenda a suas necessidades. Se essas necessidades não são atendidas por conta de crises de competência positivas ou negativas, o resultado é o afastamento da população em relação ao Estado, que, em alguns casos, passa a ser considerado inimigo da população. Diante da imensa possibilidade de surgimento de conflitos, as diversas entidades públicas devem desenvolver mecanismos que permitam a sua rápida solução. Essas crises devem ser solucionadas, em primeiro lugar, com base em critérios de coordenação e de subordinação. A via administrativa deve ser utilizada, se possível, de modo preventivo. Se for detectada a possibilidade da ocorrência de conflito, antes mesmo de ele ocorrer, devem as entidades envolvidas buscar a sua solução por meio de acordos de cooperação de modo a definir as atribuições das diversas entidades envolvidas no processo e evitar que o conflito se instale. Quando o conflito se verifica, a via administrativa deve ser igualmente buscada. Se houver a possibilidade de composição do conflito entre os envolvidos, a solução administrativa, em que as entidades definem como as atribuições públicas serão exercidas, é sempre mais rápida e adequada do que a outra opção existente: a via judicial. Se as entidades envolvidas são de uma mesma esfera de governo — entre a União e uma autarquia federal, ou entre uma autarquia federal e uma empresa pública federal, por exemplo — deve-se buscar nos mecanismos de controle político existentes a solução de conflitos. Ainda que não exista relação de subordinação entre as entidades primárias e as entidades secundárias de mesma esfera, estas últimas estão vinculadas administrativamente às primeiras. Por meio desta vinculação — que permite à entidade primária indicar e afastar os dirigentes das entidades secundárias — é possível identificar a fonte do conflito e compor a sua solução.
Livro 1.indb 130
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
131
É igualmente imprescindível a cooperação entre as entidades públicas, ainda que vinculadas a diferentes níveis ou esferas de governo. Acerca dessa necessidade de cooperação, a Constituição Federal (art. 23, parágrafo único) dispõe que leis complementares fixarão as normas para a cooperação entre a União, Estados, Municípios e Distrito Federal, e, ainda que não tenham sido aprovadas referidas leis complementares, é indiscutível a importância que o texto constitucional confere ao tema. Com base no princípio da cooperação, deve-se, em primeiro lugar, evitar a existência de conflitos. Identificada a existência ou a perspectiva da ocorrência de conflito, deve-se buscar a sua solução. Todavia, diante da impossibilidade de se compor, pela via administrativa, por meio da cooperação que deve existir entre as entidades integrantes da Administração Pública, para a solução do conflito, a própria Constituição Federal aponta o Poder Judiciário como o caminho a ser buscado para a solução de conflitos dessa natureza. A via judicial deve, no entanto, ser a última a ser buscada. Certamente as questões administrativas terão solução mais rápida e adequada se esta solução for buscada no âmbito das próprias entidades públicas, por meio de cooperação. Verificado impasse entre “a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da Administração indireta”, a Constituição (art. 102, I, “f”) aponta o Supremo Tribunal Federal – STF, como competente para a sua solução. Se o conflito envolver “autoridades administrativas e judiciárias da União, ou entre autoridades judiciárias de um Estado e administrativas de outro ou do Distrito Federal, ou entre as deste e da União”, a competência para processar e julgar será do Superior Tribunal de Justiça – STJ (CF, art. 105, I, “g”).
4.1.11 Descentralização de competência: limites Questão tormentosa consiste em buscar definir limites ao processo de descentralização horizontal, isto é, se haveria matérias que pela sua natureza ou âmbitos de atuação exigiriam a intervenção obrigatória das entidades da Administração Pública direta. Conforme examinado no Capítulo 3, do princípio da reserva legal decorre o subprincípio da reserva institucional. Diversas limitações ao processo de descentralização administrativa decorrem deste último. De modo direto, a primeira limitação imposta por este princípio ao processo de descentralização relaciona-se ao fato de que somente podem ser criadas entidades mediante lei específica. A segunda conclusão reside no fato de que, da descentralização, somente podem ser criadas as entidades expressamente mencionadas pela Constituição Federal. Como decorrência ampla do princípio da reserva legal, o poder público somente está autorizado a fazer o que lhe foi autorizado. Partindo-se desta premissa, o poder público fica proibido de criar entidades estranhas àquelas mencionadas no texto constitucional (CF, art. 37, XIX). Como a Constituição Federal somente autoriza a criação de autarquias, de fundações públicas, de empresas públicas e de sociedades de economia mista, a consequência direta está na impossibilidade de o poder público, ainda que se utilize de lei, criar ou autorizar a criação de entidades estranhas a estas, da reserva legal. Impõe-se a tipicidade institucional. Assim sendo, não pode o Estado criar entidade com natureza diversa destas. Há Estados que, de modo equivocado e inconstitucional, têm criado entidades denominadas “Organizações Sociais”. A criação destas entidades relaciona-se muito
Livro 1.indb 131
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
132
mais à tentativa de fugir aos rigores que a Constituição Federal impõe às entidades integrantes da Administração Pública, tais como a licitação obrigatória, o concurso público como requisito ao provimento de cargos ou de empregos públicos etc. No plano federal, existem entidades privadas que podem ser qualificadas pelo poder público como organizações sociais, conforme dispõe a Lei nº 9.637/98. Trata-se de entidades privadas que, qualificadas como organizações sociais, podem firmar contratos de gestão com o poder público de modo a viabilizar o repasse de recursos públicos para a realização de atividades de interesse público — ensino, pesquisa, preservação do meio ambiente, cultura etc. As organizações sociais lícitas são entidades privadas, criadas sem fins lucrativos pelos particulares e que desempenham atividades de colaboração com o Estado. Totalmente diversa é a situação de entidade criada pelo poder público, que recebe repasse de recursos diretamente dos orçamentos estaduais, e que não integraria, segundo a pretensão do legislador, as Administrações indiretas estaduais. A rigor, o fato de estas ou de quaisquer outras entidades não terem tido sua criação autorizada pela Constituição Federal não faz com que, uma vez criadas, essas entidades sejam consideradas estranhas à Administração Pública. Este raciocínio está equivocado. O fato de não haver autorização constitucional para a criação dessas entidades deve conduzir ao impedimento constitucional para a sua instituição. Eis em que consiste a tipicidade institucional. Tendo sempre como parâmetro o princípio da reserva legal, é de se concluir que as atividades legislativas e judiciais não podem ser descentralizadas. Por meio da descentralização, transfere-se a outra pessoa jurídica competência para o exercício de atividade de competência originária da entidade política. Este processo somente obteve autorização constitucional para atribuições administrativas, tanto que se encontra inserido no capítulo relativo à Administração Pública. Assim sendo, não havendo qualquer permissivo constitucional que legitime a criação de autarquias ou mesmo de fundações públicas no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário, deve-se concluir pela impossibilidade de ocorrer esta descentralização. Resta a dúvida de saber se haveria matérias de competência do Poder Executivo que, pela sua própria natureza, não poderia ser objeto de descentralização. Em primeiro lugar, deve ser observado que há determinadas matérias que, em função de dispositivos constitucionais expressos, não podem ser descentralizadas. A competência da União para declarar guerra (CF, art. 21, II), por exemplo, não pode ser objeto de delegação haja vista a própria Constituição Federal (art. 84, XIX) conferir esta atribuição, de forma privativa, ao Presidente da República. Impossível, portanto, admitir-se a criação de entidade autárquica para cuidar de atribuição inerente ao exercício do cargo do Presidente da República. Excetuadas, no entanto, as matérias a que a própria Constituição Federal tenha de forma expressa conferido a órgão ou a autoridade expressamente nominada, as demais poderiam ser descentralizadas. A própria competência da União para manter relações com Estados estrangeiros (CF, art. 21, I), por exemplo, poderia ser descentralizada e conferida a uma autarquia sem que se impusesse qualquer impedimento de ordem material ou formal.
4.1.12 Desconcentração administrativa O Direito Administrativo buscou no Direito Privado a solução para o exercício das atividades administrativas. As atribuições são definidas e distribuídas a diferentes
Livro 1.indb 132
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
133
pessoas jurídicas. Estas atuam por meio de unidades de organização denominadas órgãos, e nestas unidades, nos órgãos, são lotados os agentes responsáveis pela prática dos atos que imputam responsabilidade diretamente à pessoa jurídica. Quando a autoridade competente dentro da organização da estrutura administrativa do Estado pratica determinado ato, este ato foi praticado pela pessoa jurídica em cujo órgão o agente ou autoridade está lotado. A teoria do órgão ou da imputação de responsabilidade utilizada amplamente pelo Direito Privado é perfeitamente compatível com a necessidade do Estado de se organizar e de atuar. Desse modo, paralelamente à descentralização, o processo de desconcentração administrativa assume grande importância prática para o exercício das inúmeras atividades estatais. A organização da estrutura administrativa do Estado baseia-se, portanto, na existência de entidades. Estas se encontram subdivididas em inúmeros órgãos. Conforme examinado no item anterior, o processo de descentralização administrativa resulta na criação de entidades dotadas, portanto, de personalidade jurídica distintas. Trata-se de processo externo, por meio do qual se transfere determinada atribuição pública a outra pessoa. O processo de descentralização horizontal tem sido utilizado no Brasil de forma ampla. É certo, todavia, que inúmeras atribuições das entidades políticas ou primárias são mantidas dentro desta mesma entidade. Nela permanecem e são executadas pelas próprias pessoas jurídicas integrantes da Administração direta. Teremos, no caso, a centralização administrativa. Essas atribuições restantes, que permanecem dentro da entidade política, não restam desorganizadas. Se é certo, por exemplo, que o Ministério dos Transportes integra a estrutura da União, é igualmente certo que nem todas as atribuições que permaneceram centralizadas na União podem ser exercidas por este órgão federal. É necessário que se proceda à organização interna dessas diversas potestades. A esse fenômeno interno de distribuição ou organização interna de atribuições denomina-se desconcentração administrativa. Diferentemente da descentralização, que é fenômeno externo, haja vista transferir atribuições a outra pessoa, a desconcentração é processo interno de organização e de definição das unidades internas, a quem será atribuída a competência para a prática de certos atos ou o exercício das diferentes atribuições da pessoa jurídica. O resultado concreto decorrente da desconcentração administrativa é a criação de diferentes órgãos, entendidos estes como unidades administrativas desprovidas de personalidade jurídica. Não sendo titular de personalidade jurídica própria, o órgão integra a estrutura da própria pessoa jurídica originária e, ao atuar, imputa responsabilidade a esta pessoa jurídica. O órgão não é, portanto, sujeito de direito e de obrigações. Isto não significa que o órgão não possa praticar atos que importem na criação de direitos ou obrigações, mas que estes direitos e estas obrigações são titularizados pela pessoa jurídica em cuja estrutura o órgão se insere. A criação de órgãos pode observar dois critérios básicos: o material ou o territorial. Quando são criados órgãos distintos para o exercício de atribuições de natureza distinta, tem-se a desconcentração de acordo com o critério material. A criação do Ministério da Defesa, do Ministério da Saúde, do Ministério dos Transportes etc., por exemplo, segue o critério material. Ao contrário, quando são criados órgãos distintos em função de sua localização territorial, observa-se a desconcentração territorial (Delegacia da Receita Federal no Estado de São Paulo, no Distrito Federal, no Estado do Rio de Janeiro etc.).
Livro 1.indb 133
21/03/2013 17:13:45
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
134
À semelhança da descentralização horizontal, a criação de órgão também necessita de lei de iniciativa do chefe do Poder Executivo (CF, art. 61, §1º, II, “e”). Já a organização e o funcionamento destes mesmos órgãos podem ser feitos por meio da edição de simples decretos (CF, art. 84, VI, “a”).
4.1.13 Descentralização horizontal e desconcentração: distinções Os dois processos em exame, a descentralização horizontal e a desconcentração administrativa, como traço em comum, constituem mecanismos de distribuição de competências ou de potestades públicas, e necessitam de lei. Importante observar que tanto a criação de órgãos quanto de entidades necessita de lei em sentido formal. A organização e o funcionamento dos órgãos, todavia, desde que não importem em aumento de despesa, poderão ocorrer por meio de simples decreto (CF, art. 84, VI, “a”). As distinções entre os dois processos são, todavia, nítidas. A descentralização é processo externo; a desconcentração é organização interna de atribuições. A descentralização cria entidades; a desconcentração, órgãos. Surge, assim, a mais importante distinção entre os dois processos: a descentralização cria unidades administrativas dotadas de personalidade jurídica; enquanto a desconcentração cria unidades administrativas sem personalidade jurídica. Verificada a descentralização, a relação entre a entidade primária ou política criadora e a entidade secundária ou administrativa resultante da criação é de vinculação administrativa. Isto importa em que o controle a ser exercido pela entidade primária em relação à entidade secundária não é de natureza hierarquizada. Não existe por parte da entidade primária poder de dar ordens, de rever atos, de avocar atribuições etc. da entidade secundária. Constituindo a relação entre a entidade primária e a secundária mera vinculação administrativa, o controle a ser exercido pela primeira em relação à segunda será de natureza política, mediante a possibilidade de indicação ou de afastamento a qualquer tempo dos dirigentes das entidades secundárias e, em alguns casos, de natureza orçamentária. Seria incorreto afirmar que não existe controle na vinculação administrativa. Este controle, todavia, é de âmbito mais reduzido do que o verificado nas relações hierarquizadas. Assim, se a entidade secundária não seguir as orientações emanadas da entidade primária, o que resta a esta última é a possibilidade de designar novos dirigentes a fim de que estes cumpram referidas orientações. Os mecanismos de controle político encontram-se ainda mais mitigados quando lei confere aos dirigentes de algumas das entidades secundárias mandato, o que ocorre, por exemplo, em algumas agências reguladoras. Nestas hipóteses, a legislação somente admite o afastamento dos dirigentes antes de findo seus mandatos se houver prévia autorização pela maioria dos membros do Senado Federal. Esta questão será mais bem examinada adiante. O produto da desconcentração administrativa, como dito, é a criação de novos órgãos, diferentemente da descentralização, que cria entidades. Não é correto falar-se em relação entre o órgão e a entidade pública. Aquele integra a estrutura da entidade. Criado determinado órgão, passa ele a compor a estrutura interna da entidade. Esta, a entidade, passa a agir por meio de seus órgãos, e a subordinação de um órgão se verifica em relação a outro que lhe seja hierarquicamente superior, e não em relação à entidade que ele integra. Encontrando-se hierarquicamente subordinado a outro órgão, o titular
Livro 1.indb 134
21/03/2013 17:13:45
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
135
do órgão subordinado está obrigado a cumprir ordens, a rever decisões, estará sujeito à fiscalização etc. a partir de determinações emanadas do agente titular do órgão que lhe seja superior. Outro aspecto que diferencia o órgão da entidade diz respeito à capacidade processual. Os órgãos, não possuindo personalidade jurídica própria, não podem, salvo raras exceções, estar em juízo. Quando o órgão precisa propor alguma ação, esta deve ser proposta pela entidade que ele integra. Em relação às demandas a serem propostas contra os órgãos, o mesmo ocorre. Tomemos o exemplo de particular que se envolva em acidente com veículo de Tribunal de Justiça de determinado Estado e decida pedir indenização pelos prejuízos sofridos. A ação de indenização não será proposta contra o Tribunal de Justiça, que é órgão, mas contra o próprio Estado. A defesa deste será feita pela advocacia ou procuradoria do Estado, e não pelo órgão a quem incumbe o dever de fornecer os elementos necessários à defesa. Para melhor compreensão deste aspecto da distinção entre órgão e entidade, podemos ainda apresentar a situação de dois servidores públicos que propõem ações judiciais para a incorporação de vantagens remuneratórias. Caso o primeiro servidor esteja lotado no Ministério das Relações Exteriores, que é órgão da União, e o segundo no Banco Central do Brasil, que é autarquia federal, a ação do primeiro servidor será proposta contra a União, ao passo que a ação do Banco Central deve ser proposta contra o próprio Banco Central, que é entidade. Salvo exceções, os órgãos não possuem capacidade processual e devem estar em juízo representados pelas pessoas jurídicas que eles integram. Algumas exceções, todavia, conforme dito, existem. A jurisprudência do STF3 admite que alguns órgãos possam propor mandado de segurança para a defesa de suas prerrogativas ou atribuições. Nem todos os órgãos possuem essa legitimidade, mas somente aqueles que integram a cúpula do Estado (órgãos independentes) e os que lhe são hierarquicamente subordinados (órgãos autônomos). Órgãos independentes são os que exercem as atribuições básicas do Estado — julgar, legislar e administrar — além do Ministério Público e dos Tribunais de Contas — que não se subordinam hierarquicamente a qualquer outro órgão ou autoridade, ao passo que são autônomos aqueles que estão imediatamente subordinados aos independentes. Neste sentido, o Ministério da Fazenda é órgão independente e a Receita Federal, autônomo; o Ministério da Justiça, independente; a Polícia Federal, que está imediatamente subordinado àquele, autônomo. O STF tem reconhecido a estes a legitimidade para propor mandado de segurança, fato que pode ser atribuído à circunstância de que, em muitas ocasiões, o órgão independente ou autônomo vê-se envolvido em conflito com a própria entidade que ele integra ou com órgão daquela mesma esfera. Esta hipótese ocorreu quando o TCU decidiu realizar auditoria na Receita Federal, e esta, sob o argumento de ser descabida a auditoria, propôs mandado de segurança a fim de ser suspensa referida auditoria. O mandado de segurança apresenta, pois, esta outra particularidade, além de poder ser proposto por determinados órgãos, pode ser também proposto contra o órgão. A rigor, no polo passivo do mandado de segurança figura a autoridade pública (CF, art. 5º, LXIX). Esta autoridade contra quem a ação será proposta pode ser um agente — o ministro de Estado, por exemplo —, um órgão, caso o ato seja atribuído ao Ministério e a não ao agente (ministro), ou à própria entidade 3
Livro 1.indb 135
RDA, Rio de Janeiro, 15/46.
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
136
(União). Nesse contexto, caso a prática do ato seja atribuída ao órgão, o mandado de segurança deve ser proposto contra o próprio órgão. Vê-se, assim, que em matéria de mandado de segurança existe a possibilidade de órgãos figurarem tanto no polo passivo quanto no polo ativo.4 Além disso, o STF, mitigando a ausência de capacidade processual do TCU, entende que o representante jurídico daquele tribunal de contas pode atuar mediante sustentação oral em defesa do órgão, sempre que eventual mandado de segurança verse sobre sua competência.5 Em outras raras situações também se admite legitimidade processual de órgão, como a que se verifica, por exemplo, quando a Mesa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal propõe ação direta de inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade. Ressalvadas essas hipóteses, nega-se ao órgão capacidade processual, sendo esta reconhecida apenas às entidades que aqueles integram.
4.1.14 Delegação de competência: aspectos relevantes e distinções com os processos de desconcentração e de descentralização administrativa As distinções entre desconcentração e descentralização foram examinadas no item anterior. No presente item examinaremos outro processo que envolve transferência de competência, a delegação de competência. Na desconcentração, por meio de lei, é indicada a unidade administrativa competente para o exercício de atribuição pública da entidade direta ou política. Não envolve a desconcentração, a rigor, uma transferência, mas, tão somente, uma definição ou organização interna de competências. Na descentralização administrativa, ao contrário, é feita a transferência de competência a fim de que a entidade que recebe a atribuição a exerça como sua. Esta outorga se deve ao fato de que o instrumento utilizado para a transferência é a lei, que pode transferir não apenas a incumbência da prestação, mas a própria titularidade da potestade. Desse modo, outorgada determinada competência, isto é, realizada a descentralização, não pode a entidade centralizada simplesmente avocá-la. Somente por meio de nova lei será possível o retorno da atribuição outorgada à entidade política. No sentido de que a excepcional personalidade judiciária reconhecida aos órgãos autônomos e independentes restringe-se à defesa de suas prerrogativas institucionais: “1. Doutrina e jurisprudência entendem que as Casas Legislativas — câmaras municipais e assembleias legislativas — têm apenas personalidade judiciária, e não jurídica. Assim, podem estar em juízo tão somente na defesa de suas prerrogativas institucionais. Não têm, por conseguinte, legitimidade para recorrer ou apresentar contrarrazões em ação envolvendo direitos estatutários de servidores. 2. Tratando-se de ação ordinária em que os autores, servidores do quadro de pessoal da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, postulam a equiparação de seus vencimentos, a qual fora julgada procedente, a legitimidade recursal recai na Fazenda Pública do Estado de Goiás, tendo em vista que tal matéria extrapola a mera defesa das prerrogativas institucionais da Assembleia Legislativa, assim compreendidas aquelas eminentemente de natureza política. Precedentes do STJ” (STJ, AgRg no AREsp nº 44.971-GO, 1ª Turma. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. Julg. 22.05.2012. DJe, 05 jun. 2012). 5 Decisão: Preliminarmente, por unanimidade, o Tribunal resolveu a questão de ordem formulada pelo Min. Marco Aurélio, Relator do Mandado de Segurança nº 25.181, e decidiu que o Consultor Jurídico do Tribunal de Contas da União pode, em nome deste, sustentar oralmente as razões do Tribunal, quando esteja em causa controvérsia acerca da competência do Órgão. Cf. STF. MS nº 25.181-DF, Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. 10.11.2005. DJ, 16 jun. 2006. 4
Livro 1.indb 136
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
137
Na delegação de competência, é transferida apenas a incumbência para a prestação do serviço. A titularidade da atribuição é mantida com o delegante, de modo que, a qualquer tempo, poderá a atribuição ser avocada. A delegação, ao menos enquanto não revogada ou avocada, impede o delegante de exercer a atribuição delegada. Delegada determinada competência, salvo disposição expressa em sentido contrário no termo de delegação, resta o delegante impedido de exercer a sua atribuição, de modo que o ato praticado pelo delegante, sem que tenha ocorrido a prévia revogação da delegação, pode ser anulado ante a falta de competência para a sua prática. Na desconcentração administrativa, verifica-se a criação de órgãos; na descentralização, a criação de entidades. Na delegação de competência, ao contrário, não se cria qualquer nova unidade administrativa (órgão ou entidade). Ocorre tão somente a transferência de atribuição para a prática de determinado ato ou exercício de atividade entre órgãos ou entre entidades já existentes. O instrumento próprio para a descentralização ou para a desconcentração é a lei. Somente mediante a provação de lei em sentido formal é possível criar órgãos ou entidades no âmbito da Administração Pública. A delegação de competência opera-se mediante ato unilateral ou por meio de acordos de vontade como os convênios. A delegação de competência pode ser formalizada por meio de ato unilateral quando houver hierarquia entre o delegante e o delegado, haja vista o exercício do poder hierárquico conferir àquele competência para referida delegação independentemente do consentimento ou concordância do órgão ou autoridade delegada. Caso não haja hierarquia, a delegação somente será efetiva se houver a concordância por parte do delegado. É por meio de convênio que, por exemplo, os DETRANs estaduais, que são autarquias, podem delegar competência às polícias militares estaduais — órgãos da Administração direta dos Estados — para o exercício das funções de polícia de trânsito de veículos, inclusive para a aplicação de multas. Para outras considerações acerca da delegação de competência, remetemos o leitor ao Capítulo 5.
4.2 Administração Pública direta 4.2.1 Organização das entidades, dos órgãos e dos agentes públicos Essa primeira divisão de atribuições cria as entidades que compõem as administrações públicas diretas, a que aqui nos temos referido como entidades políticas ou primárias: União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Parte das atribuições constitucionais dessas entidades são, em função de critérios políticos, técnicos, gerenciais etc., transferidas, por meio de lei, a outras pessoas que compõem, em cada nível ou esfera de governo, as diversas entidades administrativas ou secundárias (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista). Estas entidades compõem, em cada nível de governo, as respectivas administrações públicas indiretas. A este processo temos nos referido como descentralização horizontal. Esse modelo acima apresentado corresponde ao processo ou ao mecanismo pelo qual a entidade que conhecemos como Estado — ou ao menos o Estado brasileiro — se
Livro 1.indb 137
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
138
organiza para exercer suas atribuições: em entidades políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), independentes entre si; e em entidades administrativas (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista), que se sujeitam a controle político a ser exercido pelas entidades políticas a que se vinculam. Conforme já observado, o Direito Público buscou no Direito Privado os mecanismos de organização e funcionamento do Estado. De acordo com o modelo adotado e testado pelo Direito Privado — que por meio de inúmeras teorias desenvolvidas ao longo dos dois últimos séculos tem buscado, talvez em vão, explicar como a uma entidade fictícia pode ser atribuída a aptidão para ser sujeito de direito e de obrigações —, as pessoas jurídicas se subdividem em unidades de competência, e, por meio dessas unidades internas, se manifestam, praticam atos, celebram contratos, enfim, podem expressar-se e agir para adquirir direitos ou contrair obrigações. No Direito Privado, a teoria mais aceita para explicar o processo de formação de vontade das pessoas jurídicas é a teoria do órgão. De acordo com essa teoria, o órgão é uma unidade integrante de uma pessoa jurídica, e quando age, a responsabilidade por sua atuação é atribuída diretamente à pessoa jurídica. Não se trata de regra de representação ou mandato. O órgão não é representante nem possui mandato para agir em nome da pessoa jurídica. Quando o órgão atua, é a própria pessoa que atuou. Cria-se, assim, a ideia de imputação de responsabilidade, núcleo da teoria do órgão. Essa ideia organicista do Direito Privado foi aceita e é utilizada pelo Direito Público na organização do Estado sem maiores dificuldades. Conforme examinamos no item referente ao processo de desconcentração administrativa, as atribuições das entidades políticas não restam dispersas ou fluidas. Elas são conferidas a unidades de competência denominadas órgãos públicos. Do ponto de vista do Direito Administrativo, o estudo da Administração Pública direta nada mais é do que o estudo do órgão público, que pode ser apresentado como unidade administrativa, sem personalidade jurídica própria, em que são lotados os agentes responsáveis pelo exercício das diversas potestades públicas. No âmbito do Direito Administrativo, os órgãos são unidades de lotação de cargos públicos. O cargo, a seu turno, pode ser apresentado como o lugar ocupado pelo agente na organização da Administração Pública. No estudo do processo de formação da vontade do Estado, ou de qualquer outra pessoa jurídica, é necessário chegar ao agente, que é uma pessoa física. Este, o agente, até hoje, é o único ser capaz de se expressar, de se comunicar e de efetivamente praticar atos com a aptidão para criar direitos e gerar obrigações jurídicas. O modelo de organização das entidades políticas pode ser apresentado nos seguintes termos: os agentes ocupam seus cargos; os cargos são distribuídos entre os diferentes órgãos; estes constituem as unidades em que as entidades políticas se subdividem. Desse modo, quando um agente ocupante de cargo lotado em determinado órgão exerce atribuição inerente a sua função — que nada mais é do que o conjunto de atribuições afetos ao cargo —, a responsabilidade pelo exercício dessa atividade e dos atos dela decorrentes é atribuída diretamente à pessoa jurídica, no caso a entidade política. Assim, quando um servidor lotado no Ministério das Relações Exteriores, agindo nessa qualidade, pratica determinado ato, este considera-se como praticado pela União,
Livro 1.indb 138
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
139
que é a pessoa jurídica. Quando motorista da Câmara dos Deputados se envolve em acidente automobilístico e causa prejuízo a particular, este deve propor ação de indenização contra a União, que é quem responde pelos atos praticados por seus agentes.
4.2.2 Órgãos independentes Dentro da estrutura das entidades políticas, os órgãos encontram-se organizados a partir de critérios de hierarquia. Na cúpula, exercendo as funções estatais básicas de legislar, julgar e administrar, são identificados os denominados órgãos independentes ou constitucionais. Estes não se subordinam a quem quer que seja. São eles, no âmbito do Poder Executivo, a Presidência da República e respectivos ministérios, os gabinetes dos governadores estaduais e do Distrito Federal e suas secretarias de governo e os gabinetes dos prefeitos municipais, bem como suas respectivas secretarias municipais. Há órgãos que não integram a estrutura do Poder Executivo, são responsáveis pelo exercício de atribuições definidas diretamente pela Constituição Federal e não se encontram hierarquicamente subordinados a ninguém. A rigor, hierarquia é relação verificável tão somente no âmbito do Poder Executivo ou no desempenho de atribuições de natureza executiva. Assim, no âmbito do Poder Judiciário, por exemplo, somente se verifica hierarquia em relação aos órgãos responsáveis pelo exercício de atividades administrativas. No âmbito de Tribunal de Justiça estadual, é correto afirmar que a diretoria geral está subordinada à presidência do Tribunal, ou que a diretoria de pessoal é subordinada à diretoria geral. Totalmente descabido falar, ao contrário, que no exercício de atividades judiciárias o juiz substituto esteja subordinado ao presidente do seu tribunal. Administrativamente, o próprio juiz se encontra subordinado à presidência do seu respectivo tribunal. Assim, cabe a este último conceder-lhe férias, autorizar-lhe os afastamentos ou licenças legais. Todavia, no exercício da sua função jurisdicional, não pode o presidente do tribunal dar ordens, rever decisões ou avocar atribuições do juiz, haja vista essas prerrogativas estarem ligadas e decorrerem do exercício do poder hierárquico, inexistente fora do exercício das atividades administrativas ou executivas do Estado. Idêntico raciocínio pode ser adotado no âmbito do Poder Legislativo. O servidor da Câmara dos Deputados que exerce atribuições administrativas se subordina aos seus superiores. Os deputados federais, ao contrário, ao exercerem suas atividades políticas não se subordinam a qualquer outro órgão ou autoridade. Isto não lhes desobriga, todavia, de terem de observar as regras constitucionais e legais relativas, por exemplo, à fidelidade partidária, que não impõe regras de subordinação, mas de mera sujeição a regras de comportamento político-partidário fixadas em lei ou na própria Constituição Federal. Além dos órgãos independentes do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, chama atenção a situação de dois órgãos independentes e de estatura constitucional: o Ministério Público e os Tribunais de Contas. O Procurador-Geral da República, por exemplo, não se encontra subordinado ao Presidente da República. Este pode, por exemplo, dar ordens a seus ministros de Estado haja vista a relação de hierarquia estabelecida. Não exerce o Presidente da República qualquer poder hierárquico sobre o Procurador-Geral da República ou sobre quaisquer dos membros do Ministério Público. Aliás, à semelhança do que se disse quanto à inexistência de hierarquia no exercício da atividade judicial, o mesmo se pode dizer
Livro 1.indb 139
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
140
em relação ao exercício da atividade de todos os membros do Ministério Público, que têm como um de seus princípios institucionais a independência funcional reconhecida expressamente pela Constituição Federal (art. 127, §1º). Situação peculiar na organização do Estado é assumida pelos Tribunais de Contas. Ao dispor sobre o controle externo de gastos públicos, a Constituição Federal, em seu art. 71, afirma que este será exercido pelo Congresso Nacional “com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete (...)”. O termo auxílio mencionado pelo texto constitucional gerou alguma dúvida quanto à existência de eventual subordinação do TCU ao Congresso Nacional, dúvida já superada pelo Supremo Tribunal Federal. A existência de eventual subordinação do TCU ao Congresso Nacional permitiria que este último pudesse dar ordens, rever decisões, avocar atribuições etc. De modo diverso, ainda que o texto da Constituição defina o controle externo como “a cargo do Congresso Nacional”, esse texto também determina que as atribuições tendentes ao exercício deste mesmo controle (julgamento de contas de administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, realização de inspeções ou de auditorias nas unidades dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário etc.) são de competência do próprio TCU. Este não atua por delegação, e nenhum de seus atos ou decisões pode ser revisto pelo Congresso, o que torna totalmente descabida qualquer tentativa de submeter este órgão de controle ao Congresso. Em termos orgânicos, ou de mero enquadramento institucional, encontra-se o TCU no âmbito do Poder Legislativo. Isto se deve ao simples fato de que, sendo esse o Poder responsável pela aprovação dos orçamentos públicos, a esse mesmo Poder deve caber a tarefa de acompanhar a execução orçamentária. Se formalmente integra o TCU o Poder Legislativo, seus atos não têm natureza legislativa. Ao contrário, exerce o TCU jurisdição administrativa e, portanto, são administrativos os atos por ele praticados. É certo que em função do sistema jurídico-constitucional que serve de amparo para as decisões do TCU — que legitima inclusive a competência para julgar contas (CF, art. 71, II) — estes atos administrativos recebem do ordenamento jurídico tratamento especial e diferenciado em relação aos demais atos administrativos. Estão as decisões do TCU sujeitas a controle de legalidade por parte do Poder Judiciário. O próprio Supremo Tribunal Federal, todavia, reconhece a necessidade de que o controle judicial seja efetivado de modo menos invasivo. Não se encontrando submetido ou subordinado ao Poder Legislativo, mas integrando tão somente a sua organização formal, o TCU, à semelhança do que se verifica com o Ministério Público, é órgão independente ou constitucional. Em termos organizacionais, o TCU, o Ministério Público, a Presidência da República, as duas Casas que compõem o Congresso Nacional, todos os órgãos da estrutura do Poder Judiciário da União (STF, STJ, TRFs, juízes federais etc.) são órgãos independentes, haja vista não se subordinarem administrativamente a qualquer outro órgão. Verifica-se que a subordinação ou hierarquia é inerente ao exercício de atividades administrativas. No âmbito dos demais Poderes — Legislativo e Judiciário — e dos órgãos independentes — Ministério Público e Tribunais de Contas —, a subordinação somente se verifica em relação ao exercício de suas atividades meio, o que confirma a regra geral de que relações hierarquizadas somente se verificam no exercício das funções administrativas do Estado. A fim de que os órgãos independentes dos Poderes Legislativo e Judiciário possam bem desempenhar suas funções constitucionais, necessitam de plena autonomia
Livro 1.indb 140
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
141
ou independência funcional. Isto afasta totalmente a subordinação destes órgãos e de seus titulares a qualquer outro órgão ou autoridade. Importante observar, todavia, que a independência funcional não afasta a possibilidade de que os agentes responsáveis pelo exercício das atribuições desses órgãos não possam ser responsabilizados por ilegalidades ou abusos que pratiquem. Ausência de subordinação hierárquica significa, tão somente, que os agentes incumbidos de exercerem as potestades dos referidos órgãos não estão obrigados a cumprir ordens ou determinações de quem quer que seja. Todavia, esses mesmos agentes se vinculam às leis e à própria Constituição Federal, de modo que podem ser chamados a responder civil, administrativa e criminalmente por eventuais ilícitos cometidos.
4.2.3 Classificação dos órgãos 4.2.3.1 Classificação em razão da posição do órgão na estrutura da Administração Quando se estuda a classificação dos órgãos públicos, o primeiro critério busca identificar em que posição se localiza o órgão na estrutura da organização da Administração Pública. A partir de critérios de hierarquia, uma vez identificados os órgãos que compõem a cúpula ou no ápice da estrutura governamental — que, conforme vimos no item anterior, são os órgãos independentes —, poderemos verificar a posição de todos os demais, a partir de critérios de subordinação. De acordo com esse critério, os órgãos classificam-se em: 1. Órgãos independentes; 2. Órgãos autônomos; 3. Órgãos superiores; e 4. Órgãos subalternos. Os órgãos independentes localizam-se no ápice do organograma do Estado. Os órgãos autônomos se subordinam diretamente aos independentes. Nesse sentido, o Ministério da Fazenda pode ser apontado como órgão independente; a Receita Federal, órgão autônomo. O mesmo vale para o Ministério da Justiça — que é independente — e para a Polícia Federal — que é autônomo — posto que subordinado diretamente ao primeiro. Descendo no organograma do Estado, encontraremos os órgãos superiores e, logo abaixo destes, os subalternos. A exemplo disso, tem-se que as secretarias de controle interno e os departamentos financeiros são órgãos superiores e a seção de pagamento de inativos, órgão subalterno. A particularidade desta classificação reside no fato de que, conforme jurisprudência do STF já mencionada,6 reconheceu-se tão somente aos órgãos independentes e autônomos capacidade para a propositura de mandado de segurança para a defesa de suas atribuições.
6
Livro 1.indb 141
RDA, Rio de Janeiro, 15/46.
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
142
4.2.3.2 Classificação quanto à estrutura Os órgãos, de acordo com essa classificação, dividem-se em: 1. Simples; e 2. Compostos. São simples aqueles que não sofrem nenhum tipo de subdivisão interna — hipótese somente verificável em órgãos pequenos ou subalternos, de que seria exemplo uma divisão de inativos de um Ministério ou de uma Casa Legislativa. Órgãos compostos são aqueles que se subdividem internamente em outros órgãos, que têm sua estrutura composta de outros órgãos. A Câmara dos Deputados, por exemplo, de acordo com o presente critério, é órgão composto, dado que se subdivide em diretorias legislativa e administrativa, divisões de pessoal etc.
4.2.3.3 Classificação quanto à composição Em função da composição, os órgãos são: 1. Singulares; e 2. Colegiados. Este critério de classificação objetiva examinar a formação da vontade do órgão. Mais especificamente, este critério procura identificar quantas manifestações de quantos agentes são necessárias para formar a manifestação do órgão. Afirmar que um órgão é singular não significa necessariamente afirmar que nele se encontra lotado apenas um agente, mas apenas que o órgão é titulado por um só agente. É o caso de um Ministério, por exemplo. Ele é órgão singular porque, em nome do órgão, fala um só agente, o ministro de Estado, não obstante existam inúmeros agentes lotados no órgão. O Conselho de Contribuintes da Receita Federal, por outro lado, é órgão composto. Para que se possa identificar a manifestação do Conselho são necessárias as manifestações dos diversos agentes — Conselheiros. A Constituição Federal, ao dispor sobre a composição da Justiça Federal (art. 106), definiu como “órgãos” os Tribunais Regionais Federais e os “juízes federais”. A rigor, a menção feita ao juiz federal como órgão é uma impropriedade. Ele não é órgão, mas simplesmente o agente que titula o órgão singular que é o juízo federal de primeiro grau.
4.2.3.4 Classificação quanto à atuação funcional Esta classificação normalmente apresenta os órgãos em três diferentes categorias: 1. Ativos; 2. Consultivos; e 3. De controle. A terminologia adotada praticamente dispensa qualquer outra explicação: órgãos ativos são aqueles cujas competências os levam a praticar atos administrativos de execução de atividades estatais; órgãos consultivos são os que apresentam pareceres com o fundamento de subsidiar as decisões dos órgãos ativos; e órgãos de controle exercem atribuições de fiscalização das atividades praticadas pelos órgãos ativos. Questão curiosa relacionada à atuação dos órgãos consultivos, e de interesse especial para as consultorias jurídicas de órgãos públicos, foi objeto de exame pelo STF.
Livro 1.indb 142
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
143
O TCU, utilizando-se de dispositivo constitucional — art. 71, II, que determina que devem ser responsabilizados, além dos gestores públicos, todos “aqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário” —, passou em seus acórdãos a responsabilizar, solidariamente com o gestor, o responsável pelo parecer jurídico que serviu de fundamento pelo ato ilegal que tenha causado prejuízo. A questão, é certo, não tardou a ser levada em mandado de segurança ao STF, que a examinou por ocasião do julgamento do MS nº 24.073.7 Ao argumento de que os advogados são imunes em suas opiniões, adotou o STF a tese de que qualquer cidadão que cause prejuízo ao erário federal pode ser responsabilizado pelo TCU, exceto os advogados. O argumento de que se valeu o STF não foi o de se tratar apenas de órgão consultivo, mas de se tratar de manifestação de advogado. Ou seja, se um contador produzir manifestação técnica, na condição de órgão consultivo, que sirva para a prática de desfalque ao erário, o contador pode ser responsabilizado; o advogado ou procurador público, não. O que resta discutir é a própria serventia da manifestação do órgão jurídico. Se ele não é, salvo raríssimas exceções previstas em lei, vinculante para o gestor,8 ou seja, independentemente do que diga o jurídico, o gestor pode fazer o que quiser, para que serve esse parecer? A resposta é a seguinte: esse parecer pela legalidade — e sempre há como se obter parecer pela legalidade — será utilizado na defesa do gestor que pratica ato ilegal. Este sempre alega que tendo agido com fundamento em parecer do jurídico que lhe atestava a legalidade, não pode ser responsabilizado. Em outras palavras, se for STF: “Constitucional. Administrativo. Tribunal de Contas. Tomada de contas: Advogado. Procurador: Parecer. C.F., art. 70, parág. único, art. 71, II, art. 133. Lei nº 8.906, de 1994, art. 2º, §3º, art. 7º, art. 32, art. 34, IX. I. – Advogado de empresa estatal que, chamado a opinar, oferece parecer sugerindo contratação direta, sem licitação, mediante interpretação da lei das licitações. Pretensão do Tribunal de Contas da União em responsabilizar o advogado solidariamente com o administrador que decidiu pela contratação direta: impossibilidade, dado que o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa. Celso Antônio Bandeira de Mello, ‘Curso de Direito Administrativo’, Malheiros Ed., 13ª ed., p. 377. II. – O advogado somente será civilmente responsável pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros, se decorrentes de erro grave, inescusável, ou de ato ou omissão praticado com culpa, em sentido largo: Cód. Civil, art. 159; Lei 8.906/94, art. 32. III. – Mandado de Segurança deferido” (MS nº 24.073-DF, Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julg. 6.11.2002. DJ, 31 out. 2003). 8 Hipótese que nos parece vinculante está prevista na Lei nº 8.666/93, que em seu art. 38, parágrafo único, requer manifestação de órgão jurídico como condição para a realização da licitação. Esse entendimento encontra respaldo em precedente atual do Supremo Tribunal Federal, consubstanciado no julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631-DF (Rel. Min. Joaquim Barbosa. DJ, 1º fev. 2008), cuja ementa se segue: “Constitucional. Administrativo. Controle externo. Auditoria pelo TCU. Responsabilidade de procurador de autarquia por emissão de parecer técnico-jurídico de natureza opinativa. Segurança deferida. I. Repercussões da natureza jurídico-administrativa do parecer jurídico: (i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade administrativa se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídica deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir. II. No caso de que cuidam os autos, o parecer emitido pelo impetrante não tinha caráter vinculante. Sua aprovação pelo superior hierárquico não desvirtua sua natureza opinativa, nem o torna parte de ato administrativo posterior do qual possa eventualmente decorrer dano ao erário, mas apenas incorpora sua fundamentação ao ato. III. Controle externo: É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa. Mandado de segurança deferido” (grifos nossos). 7
Livro 1.indb 143
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
144
utilizado parecer de órgão consultivo jurídico para atestar, por exemplo, a legalidade de contratação sem licitação em situação em que deveria ser instaurado o procedimento licitatório, não será responsabilizado o procurador ou advogado que produziu o parecer que amparou a ilegalidade em face da jurisprudência do STF, assim como também será utilizado esse mesmo parecer para tentar afastar a responsabilidade do gestor. No Capítulo 18, que trata do controle da Administração Pública, outras considerações são apresentadas acerca da responsabilidade do que emite parecer jurídico.
4.3 Administração Pública indireta 4.3.1 Entidades administrativas O Direito Administrativo, cuja existência e autonomia somente foram reconhecidas há pouco mais de dois séculos, tempo muito curto, sobretudo quando comparado ao Direito Civil, foi buscar neste os mecanismos para organizar a estrutura do Estado. Esse ente conhecido como Estado adotou as formas privatistas de subjetivação, segundo o modelo criado pelo Direito Privado, e adotou o modelo de pessoas jurídicas. A ideia de conferir personalidade jurídica ao Estado, conforme observa García de Enterría, nada mais é do que uma tentativa de esconder uma verdade: o Estado é apenas um instrumento de dominação do homem pelo homem.9 Quando examinamos o processo de descentralização horizontal, vimos que as atribuições conferidas pela Constituição às entidades políticas podem, a critério destas, ser transferidas a outras pessoas que se vinculam administrativamente às primeiras. É constitucionalmente prevista e disciplinada (art. 37, XIX e XX) a possibilidade de criação das entidades administrativas, desde que o façam por meio de lei específica. A descentralização administrativa está diretamente relacionada à busca pela eficiência no desempenho das atividades estatais. A ideia básica relacionada ao processo de descentralização horizontal é a de que a criação de uma pessoa jurídica dotada de autonomia administrativa, gerencial e financeira, bem como de pessoal especializado, permite a realização de atribuições de modo mais eficiente. O processo de descentralização relaciona-se à concepção de especialização e de autonomia, que evidentemente não é absoluto. Sempre haverá relação de vinculação administrativa entre a pessoa política criadora, que será sempre entidade política ou primária, e a pessoa jurídica resultante do processo, a entidade administrativa ou secun dária, vinculação que assegura à primeira mecanismos de controle sobre a segunda. No processo de descentralização horizontal devem ser considerados fatores de ordem técnica, administrativa, social, econômica, jurídica, territorial. O aspecto político, todavia, é o mais importante. A decisão de criar entidade administrativa é eminentemente política.
O próprio autor mitiga suas afirmações quando procede ao estudo da formação do Estado Democrático de Direito e sua sujeição ao princípio da legalidade: “La Ley no es simplemente, como la Ley del Rey absoluto, un mandato general, un iussum; por el contrario, es instrumento adecuado para articular precisamente las libertades, que siendo propias de todo hombre son entre sí recíprocas. (...) He aquí por qué la Ley expresa la esencia misma de la democracia: la libertad, la igualdad, la auto disposición de la sociedad sobre sí misma” (GARCÍA DE ENTERRÍA. Democracia, jueces y control de la administración, p. 35-36).
9
Livro 1.indb 144
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
145
Conforme examinado anteriormente, as atribuições estatais são distribuídas entre as diferentes entidades políticas — processo que aqui temo-nos referido como descentralização vertical — que compõem, em cada nível ou esfera de governo, as respectivas administrações públicas diretas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Cabe a cada uma dessas entidades políticas, sempre por meio de lei, criar ou autorizar a instituição de entidades administrativas ou secundárias que irão compor suas respectivas administrações públicas indiretas. A Constituição Federal não autoriza a criação de outras entidades fora as quatro expressamente indicadas (autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista – art. 37, XIX), bem como de suas subsidiárias – art. 37, XX. Afora estas, as entidades políticas não podem criar qualquer outra entidade, sob pena de incorrem na prática de atos inconstitucionais. A criação, pelo poder público, de entidades que não integram a Administração indireta — cujo objetivo normalmente é de fugir à aplicação das normas de concurso público, de licitação, de Lei de Responsabilidade Fiscal etc. — não é autorizada pela Constituição Federal. Referimo-nos, aqui, expressamente, às entidades que compõem os Serviços Sociais Autônomos, conhecido como Sistema “S”. São entidades criadas pelo poder público, mantidas com recursos públicos por meio do recolhimento de contribuições parafiscais, mas que não integram a Administração Pública. Mais do que contradição, a criação e a existência dessas entidades trata-se de verdadeiras inconstitucionalidades.10 Não se questiona a importância da atividade que algumas delas desempenham, mas a impossibilidade de o poder público criar entidade fora da Administração Pública, ainda que o instrumento utilizado seja lei em sentido formal. Observados os parâmetros constitucionais para a criação das entidades integrantes da Administração Pública indireta, critério a ser observado, conforme afirmado, para indicar se a entidade a ser criada terá natureza autárquica, fundacional ou estatal é eminentemente político. Deve ser considerado, todavia, o fato de que as autarquias são indicadas para o desempenho de atividades típicas de Estado; as fundações públicas, para o desempenho de atividades de utilidade pública; e caso o poder público opte pela exploração de atividades empresariais, devem ser criadas empresas estatais (empresas públicas ou sociedades de economia mista). Evidente que o critério da natureza da atividade como indicativo da entidade a ser criada está sujeito a inúmeras controvérsias. Inicia-se a discussão pela definição do que é atividade típica de Estado. Não existe parâmetro constitucional ou legal para essa definição. Flutuamos, aqui, ao sabor de concepções políticas sujeitas a mutações ao longo do tempo e do espaço. A defesa do território nacional, a manutenção de relações com outros países, a emissão de moeda, por exemplo, podem ser apontadas como atividades típicas de Estado. Esta afirmação, todavia, baseia-se em conceitos metajurídicos,
10
Livro 1.indb 145
No Título IX da Constituição Federal, relativo às disposições transitórias, o art. 240 faz expressa referência às “atuais contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas às entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical (...)”. Essa referência importa em convalidação tácita da criação das entidades componentes do denominado Sistema “S”, desde que essa criação tenha ocorrido antes do advento da Constituição de 1988. Nessas hipóteses, sanado o vício de criação, é perfeitamente válida a existência do SESI, por exemplo. A partir da vigência do texto constitucional de 1988, qualquer entidade a ser criada pelas entidades políticas deve necessariamente enquadrar-se em uma das quatro modalidades mencionadas pelo art. 37, XIX, vale dizer, deve ser autarquia, fundação pública, empresa pública ou sociedade de economia mista.
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
146
impossíveis de serem questionados ou demonstrados com base em critérios de Direito. Sabemos apenas que não há país no mundo onde essas atividades sejam exploradas por particulares. Em outras palavras, a definição do que é típico de Estado decorre mais de constatações fáticas do que de conceitos ou de regras jurídicas estabelecidas. Entre nós, firmou-se o entendimento de que o exercício do poder de polícia se caracteriza como atividade tipicamente estatal. Nem lei, nem mesmo a própria Constituição Federal assim dispõem de modo expresso. Todavia, esta afirmação, de que o poder de polícia constitui atividade típica de Estado, tem sido bastante para a declaração de inconstitucionalidade de leis que, de alguma forma, busquem transferir a entidades privadas atividades desta natureza. Ao julgar a ADI nº 1.717/DF, por exemplo, o STF firmou o entendimento de que os conselhos que fiscalizam o exercício das profissões regulamentadas possuem natureza autárquica, haja vista a atividade por eles desenvolvida envolver o exercício do poder de polícia e este ser insuscetível de delegação, ainda que por lei, a entidades de direito privado. Em função da natureza de cada uma dessas entidades — pública ou privada — podemos ainda, como será visto em seguida, afirmar que não se admite que autarquia, em face de sua personalidade jurídica ser de Direito Público, possa explorar atividade empresarial ou, ao contrário, que uma empresa estatal, que é pessoa de Direito Privado, possa explorar atividade típica de Estado. Passaremos ao estudo de cada uma das entidades da Administração Pública indireta, onde voltaremos a tratar da questão da atividade a ser explorada por cada uma das entidades administrativas.
4.3.2 Autarquias 4.3.2.1 Principais características A principal característica das autarquias consiste na natureza da atividade que desenvolvem. É certo que existem autarquias cujas atividades não se podem considerar exclusivas do Estado. A Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, desempenha atividade de ensino, pesquisa e extensão universitárias, que não são consideradas típicas de Estado. Todavia esta universidade é uma autarquia. Se existem, desse modo, entidades autárquicas cujas atividades não são exclusivas ou típicas do Estado, sempre que as entidades políticas descentralizam atividades desta natureza, típicas de Estado, a entidade a ser criada é uma autarquia. O fato de serem criadas para desempenharem atividades típicas de Estado pode ser apontado como a primeira característica das autarquias, característica que irá marcar todas as demais. A segunda característica das autarquias diz respeito à natureza de sua personalidade jurídica, que é de Direito Público. Ora, se as autarquias são criadas para desempenhar atividades típicas das entidades primárias (União, Estados etc.), é certo que o ordenamento jurídico deve conferir-lhes personalidade de mesma natureza jurídica, vale dizer, de Direito Público. Definida a personalidade como de Direito Público, a característica seguinte das autarquias será a sua sujeição a regime jurídico de Direito Público. A rigor, um aspecto conduz ao outro. Quando se afirma que determinada pessoa jurídica é de Direito Público ou de Direito Privado, a consequência necessária será a definição da natureza das
Livro 1.indb 146
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
147
normas a serem observadas por essa pessoa tanto em relação a suas questões internas quanto em relação a aspectos externos. Sendo a autarquia pessoa de Direito Público, o seu regime jurídico será de Direito Público. A situação das autarquias, em relação ao seu regime jurídico, é a mesma da entidade política a que ela esteja vinculada. Neste sentido, se para regular determinada situação não disciplinada pelo Direito Administrativo, de que seria exemplo a celebração de contrato de locação de imóvel em que a autarquia figure como locatária, a entidade política necessitar servir-se do Direito Privado, o mesmo ocorrerá com a autarquia. Em relação ao regime jurídico do seu pessoal, a situação ganha contornos diferenciados. Cabe à lei criar empregos ou cargos públicos e, neste último caso, definir o regime jurídico desses servidores. Com o fim do Regime Jurídico Único decretado pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998, lei poderia, por exemplo, estabelecer que o pessoal de determinada autarquia observará o regime de emprego público, conforme disciplinado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao passo que o pessoal da Administração Pública direta daquela mesma esfera de governo poderá adotar ou manter regime jurídico estatutário. Em relação à adoção do regime da CLT para a Administração Pública direta ou indireta, a única restrição constitucional existente diz respeito à natureza da atividade a ser desempenhada pelo agente. Não existe, a rigor, impedimento constitucional à adoção do regime da CLT para agentes lotados em autarquias ou mesmo em órgãos da própria entidade política.11 Não é em função da lotação do agente que se verifica o impedimento constitucional. Este se deve à natureza da atividade a ser desempenhada pelo agente. A Emenda Constitucional nº 19, de 1998, teve a pretensão de criar no Brasil carreiras típicas de Estado, a serem indicadas em lei complementar, e que, à exceção destas, todas as demais carreiras passariam a ser regidas pelo regime da CLT. Esta lei nunca foi editada — e certamente jamais o será. A ausência dessa legislação não impede, não obstante, que se reconheça que deter minadas atividades são típicas de Estado, como a Polícia Federal, a Receita Federal ou o TCU. Reconhecidas essas atividades como típicas de Estado, seria inconstitucional a adoção da CLT para disciplinar os servidores lotados em referidos órgãos. A sujeição das autarquias ao mesmo regime jurídico das entidades da Administração Pública direta importa em que as prerrogativas conferidas pelo ordenamento jurídico a estas últimas também alcançam e beneficiam as autarquias. Podem ser apresentadas como prerrogativas aplicáveis às autarquias: - Prazos processuais especiais (para recorrer ou contestar); - Pagamento de dívidas decorrentes de condenações judiciais efetuado por meio de precatórios (CF, art. 100); - Possibilidade de inscrição de seus créditos em dívida ativa e a sua respectiva cobrança por meio de execução fiscal (Lei nº 6.830/80); - Impenhorabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade de seus bens;
Ocorre, todavia, que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 2.135-MC/DF, declarou inconstitucional liminarmente o art. 39, caput, da Lei Maior, segundo a redação que lhe foi atribuída pela Emenda Constitucional nº 19/98, em razão de vício relacionado ao processo legislativo de aprovação das emendas constitucionais. Nesse cenário, o julgamento cautelar da ADI nº 2.135-DF acarretou o retorno da obrigatoriedade do regime jurídico único originalmente previsto pela Constituição de 1988 no âmbito da Administração Direta, Autárquica e Fundacional. Essa questão será analisada com mais profundidade no Capítulo 15 (agentes públicos).
11
Livro 1.indb 147
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
148
- Vedação à União, Estados, Municípios e Distrito Federal de instituir impostos incidentes sobre o patrimônio, renda ou serviços vinculados a finalidades essenciais das autarquias ou delas decorrentes (CF, art. 150, §2º). Em relação a esta última prerrogativa — a imunidade tributária —, é de se observar que ela não é aplicável de forma plena às autarquias. Caso a União seja proprietária de imóvel que não esteja, de qualquer modo, vinculado ao exercício de atividade fim da Administração federal, ainda assim não haverá a incidência do IPTU. Caso este mesmo imóvel pertença a uma autarquia — federal, estadual ou municipal — haverá a incidência do imposto incidente sobre a propriedade urbana, cobrança a ser efetuada por Município. Caso o imóvel urbano pertença a uma autarquia (ou fundação pública), somente não haverá a incidência do imposto se ele estiver ligado a atividade fim ou decorra de exercício de atividade fim desta autarquia.12 Vê-se que as prerrogativas das entidades políticas são plenamente aplicáveis às suas autarquias, à exceção da regra da imunidade recíproca (CF, art. 150,VI, “a”), que somente favorece as autarquias e fundações públicas em relação aos bens, serviços e rendas vinculados às suas atividades fins ou dela decorrentes (CF, art. 150, §2º). Última característica das autarquias está ligada à sua criação, que depende de lei específica. Nos termos da Constituição Federal (art. 37, XIX), somente por meio de lei específica será criada a autarquia. O texto da Constituição dispõe que “somente por lei específica poderá ser criada a autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação (...)”. A distinção entre as duas expressões — lei cria autarquia e lei autoriza a instituição de empresa pública etc. — reside no fato de que, para a criação de todas as entidades secundárias ou administrativas, há necessidade de lei específica. Todavia, no caso de autarquia, basta a lei. Salvo se esta criar outras exigências ou condições, ao entrar em vigência a lei, a autarquia reputa-se criada, dotada de personalidade jurídica própria e, portanto, apta a contrair direitos e obrigações. Conceito muito pouco preciso em nosso Direito Administrativo corresponde ao de autarquia em regime especial. Esta qualificação está ligada ao nível de autonomia da autarquia e decorreria da própria lei que a criou. A rigor, a expressão constitui uma deturpação do conceito de autarquia, pois, em princípio, a autonomia administrativa deveria ser característica de toda e qualquer autarquia, e não apenas das que sujeitam a “regime especial”. É certo que a definição do nível de autonomia a ser reconhecido a uma autarquia decorre de fatores de natureza política, sendo perfeitamente possível que a entidade política responsável pela criação da autarquia não tenha a intenção de lhe conferir, por exemplo, plena autonomia orçamentária. A expressão autarquia em regime especial deveria indicar a existência de plena autonomia administrativa, gerencial, orçamentária financeira etc., o que, na prática, não se verifica. A rigor, algumas autarquias federais em regime especial necessitam de autorização da Administração direta até para poderem contratar pessoal e se sujeitam a contingenciamentos orçamentários tão rigorosos que sua própria efetividade fica comprometida. O reconhecimento em lei de que determinada autarquia possui essa
12
Enunciado da Súmula nº 724 do STF: “ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, ‘c’, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades”.
Livro 1.indb 148
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
149
natureza indica tão somente a vontade ou intenção do legislador de que os dirigentes da autarquia pudessem tomar determinadas medidas independentemente da vontade da Administração direta, ou até mesmo contra a vontade desta. Como as leis que conferem essa atribuição normalmente não indicam como essa autonomia se expressa, se manifesta ou se exerce, leis acabam por se transformarem em letra morta. Historicamente, coube à lei criadora da autarquia a função de indicar alguns parâmetros para o exercício de sua autonomia. A partir da Emenda Constitucional nº 19/98, esse papel vem sendo substituído e exercido pelo contrato de gestão. Nos termos da Constituição Federal (art. 37, §8º) “a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da Administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato (...), que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho (...)”. A redação do dispositivo acima indica o objetivo preciso de busca por uma maior flexibilização dos instrumentos que podem ser utilizados para definir o nível de autonomia dos órgãos e entidades da Administração Pública. Se o instrumento é a lei, a entidade política perde a liberdade para, em determinados momentos, ampliar e, em outros, restringir a autonomia das entidades da Administração Pública indireta, bem como dos próprios órgãos da Administração direta com os quais será celebrado o contrato de gestão. Não obstante a perspectiva de celebração de um contrato entre a entidade política — integrante da Administração direta — e um órgão desta mesma entidade constitua pura heresia jurídica, haja vista se tratar de contrato celebrado consigo mesmo, temos observado em alguns casos a existência e a correta execução desses contratos. Existe, por exemplo, contrato de gestão firmado entre os Comandos das Forças Armadas — Exército, Marinha e Aeronáutica — e a União, com o propósito de dar maior autonomia àqueles órgãos. A ideia básica do contrato de gestão, ideia que se mostra evidente quando a Constituição Federal fala em “fixação de metas de desempenho”, é a da busca pela eficiência, de que a autonomia conferida à entidade ou ao órgão irá permitir que essas unidades administrativas possam melhor cumprir sua função. Definidas as metas, o controle a ser efetuado pela entidade política, controle que, em termos práticos, será executado por meio do Ministério a que a entidade administrativa se vincula, passa a ser de resultados. A ideia é conferir autonomia aos gestores da entidade administrativa ou do órgão, afastando-se a interferência de quem exerce supervisão ministerial, no caso de entidade administrativa, ou controle hierárquico, no caso de órgão, de modo que esses gestores respondam pelos resultados de sua atuação, responsabilidade política que poderá resultar em afastamento desses dirigentes caso as metas não sejam alcançadas. Importante observar que a autonomia a ser conferida pelo contrato de gestão não tem o poder de afastar a incidência das normas de Direito Administrativo. O contrato não pode, por exemplo, definir que o órgão ou a entidade contrate pessoal sem o prévio concurso público ou firme contratos sem a incidência da lei de licitações. O contrato de gestão pode, tão somente, autorizar a prática de determinados atos ou execução de certas despesas, tais como a realização de concursos públicos para a contratação de pessoal ou a celebração de contratos, por exemplo, independentemente de autorização da entidade política que integre, no caso de órgão, ou a que esteja vinculada, no caso de entidade. Para tornar a questão mais clara, podemos apresentar a situação da Administração Pública federal, onde a contratação de pessoal em todos os órgãos do Poder Executivo e em diversas entidades administrativas — incluídas várias
Livro 1.indb 149
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
150
agências — depende de autorização do Ministério do Planejamento. Firmado o contrato de gestão entre o Comando do Exército e a União, poderá ser autorizado esse órgão a contratar seu pessoal sem que haja necessidade da prévia manifestação ou autorização do Ministério do Planejamento. Vê-se que, ainda que na teoria o contrato de gestão firmado com o órgão possa caracterizar a estranha figura do contrato consigo mesmo, situação impossível de ser admitida pelo Direito, na prática, afastadas as questões de ordem teórica, o contrato pode até produzir bons efeitos. Importante notar que o contrato de gestão também tem sido utilizado em situação totalmente distinta e com objetivos distintos. Quando ele é firmado com entidade privada qualificada como organização social, o seu objetivo, conforme veremos adiante, é viabilizar o repasse de dinheiro público, a fim de que essas entidades possam executar atividades de utilidade pública, nos termos da Lei nº 9.637/98.
4.3.2.2 Agências reguladoras No Brasil, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1990, constatou-se o que diversos países europeus já haviam verificado na década anterior: a incapacidade do modelo de Estado até então adotado de atender às expectativas da população. Dentro do modelo de reforma proposto, o Estado assume novo papel, e, não obstante conserve a titularidade para o exercício de inúmeras atividades e potestades públicas, ele perde a primazia na prestação de inúmeros serviços, ainda que, como se disse, conserve a titularidade desses serviços. Isto importa em dizer que o Estado deixa de ser prestador de inúmeros serviços e, em relação a esses, assume a posição de garantidor de sua prestação de forma adequada à população. A prestação dos serviços é transferida por diferentes meios ou instrumentos jurídicos a entidades privadas (concessionárias e permissionárias de serviços públicos, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público etc.). Diante dessa nova forma de prestação de alguns serviços, sobretudo aqueles que possam ser explorados por entidades privadas como atividades empresariais, surge no Brasil o modelo de agências e se atribui a estas o novo papel do Estado brasileiro em inúmeras áreas. Apenas para exemplificar, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) não tem competência para prestar serviços de energia elétrica, mas de assegurar que os diversos agentes privados envolvidos no processo de geração, transmissão, distribuição etc. de energia elétrica — e o mesmo ocorreu em outros setores como telefonia, manutenção de estradas e rodovias — prestem serviços adequados, nos termos da legislação pertinente. Fator de grande influência na definição do novo modelo a ser adotado é certamente a grande velocidade com que as inovações tecnológicas são operadas, o que exige do Estado respostas rápidas e tecnicamente adequadas. Diante desse quadro, em que a intervenção direta do Estado cede espaço à atuação de empresas privadas, e cientes de que esses setores não poderiam ser relegados aos desígnios do mercado, surge a necessidade de regulação setorial. Enfim, surge a figura do Estado regulador — o que tem levado alguns autores a falarem em “Direito da Regulação”. É certo que a alta complexidade das matérias objeto desse processo não poderia encontrar respostas na mera criação de órgãos integrantes da estrutura das entidades políticas, sujeitos que são a fortes influências hierarquizadas e à flutuação de conveniências políticas. A atuação das entidades políticas não atenderia às necessidades do
Livro 1.indb 150
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
151
setor regulado ou mesmo da própria população usuária dos serviços. A necessidade de profissionalismo, de capacidade técnica, de autonomia administrativa e, sobretudo, de eficiência, indicou que somente por meio dos mecanismos de descentralização administrativa seria possível ao poder público buscar fórmulas para atender às demandas surgidas a partir da implantação desse novo modelo de Estado. A criação do modelo de agências não constitui, portanto, grande inovação em nosso Direito Administrativo. São elas apenas o produto ou o resultado do processo de descentralização horizontal da Administração Pública. As agências possuem natureza de autarquia em regime especial, o que, conforme visto, indica a vontade do legislador de que lhes sejam conferidos mecanismos de autonomia administrativa, financeira, gerencial etc. a fim de que possam atingir seus objetivos, dentre eles o de assegurar a prestação de serviços públicos adequados. As novidades do modelo de agências podem ser identificadas em alguns fatores, haja vista a criação da autarquia ser feita para reduzir o tamanho do Estado e não para ampliar suas atribuições, bem como nas funções que elas assumem, de regulação de importantes áreas da economia e dos serviços públicos. A maior inovação verificada nesse novo modelo de organização administrativa talvez seja a ampliação da autonomia dessas entidades administrativas, autonomia asse gurada sobretudo pela existência de mandato definido em lei para os seus dirigentes. A criação do modelo das agências, em especial das reguladoras, no Brasil, está diretamente relacionada à imperiosa necessidade de que seja criado campo seguro, confiável e, portanto, propício à realização de pesados investimentos, fato que talvez tenha contribuído para alguns identificarem como objetivo primordial da atuação de algumas agências a defesa dos interesses dos agentes privados responsáveis pela realização desses investimentos. Ao contrário, o que se quer buscar é a criação de um modelo em que as regras passem a ser definidas de modo claro e rápido, que sejam regras tecnicamente adequadas. No Brasil, o marco inicial para a implantação do modelo de regulação setorial sob a responsabilidade das agências se verificou com a vigência da Lei nº 9.491/97, que redefine o Plano Nacional de Desestatização. Em nível constitucional, a criação desses novos espaços regulatórios estatais deu-se com a promulgação das Emendas Constitucionais nº 8 e nº 9, ambas de 1995, que tratam dos setores de telecomunicações e petrolífero, respectivamente. No plano legal, o passo seguinte foi a edição das Leis nº 9.472, que cuida do setor de telecomunicações e cria a ANATEL; a Lei nº 9.427, relativa a energia, cria a ANEEL; Lei nº 9.478, que regula o setor petrolífero e cria a ANP; e a Lei nº 10.233, que cuida do setor de transportes e cria a ANTAQ e a ANTT. A rigor, o termo “agência”, ainda que transmita a ideia de flexibilidade e autonomia, está a requerer maior estudo jurídico. Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que “o vocábulo agência é um dos modismos introduzidos no direito brasileiro no movimento da globalização. Foi importado do direito norte-americano, onde tem sentido mais amplo, que abrange qualquer autoridade do governo dos Estados Unidos”.13 A rigor, não obstante a terminologia adotada no Brasil tenha sido importada do Direito norte-americano, não se pode falar em coincidência de formas de atuação. A rigor, 13
Livro 1.indb 151
DI PIETRO. Direito administrativo, p. 385.
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
152
nos EUA, agência indica a existência de unidade administrativa — entidade ou órgão público — dotada de competência para produzir ou criar normas, além de não necessariamente atuarem em regulação de mercado. No Brasil, a qualificação de entidades como agências, que pode decorrer da lei que cria ou altera o funcionamento da entidade administrativa, como igualmente de eventual contrato de gestão celebrado com órgão ou entidade pública, não faz com que a entidade tenha sua natureza alterada. Daí é de se concluir que essa autonomia não pode, por exemplo, afastar a aplicação das normas e princípios da Administração, de que seriam exemplos a licitação e o concurso público. Traço distintivo e peculiar na atuação das agências diz respeito à independência que lhes é conferida e que visa garantir atuação imparcial, ou ao menos mais imparcial do que a que seria exercida por órgãos governamentais mais sujeitos a interferências e flutuações de humores políticos ocasionais. Essa independência encontra-se definida de forma explícita e indelével no §2º do art. 8º da Lei nº 9.472/97, que, ao dispor sobre a ANEEL, afirma, in verbis: Art. 8º. (...) §2º A natureza de autarquia especial conferida à Agência é caracterizada por independência administrativa, ausência de subordinação hierárquica, mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes e autonomia financeira. (grifos nossos)
Ao comentar sobre as agências — a quem se refere quase sempre em tom crítico — Maria Sylvia Zanella Di Pietro afirma que a independência destas entidades releva-se em relação aos três poderes do Estado do seguinte modo: “(a) em relação ao Poder Legislativo, porque dispõem de função normativa, que justifica o nome de órgão regulador ou agência reguladora; (b) em relação ao Poder Executivo, porque suas normas e decisões não podem ser alteradas ou revistas por autoridades estranhas ao seu próprio órgão; (c) em relação ao Poder Judiciário, porque dispõe de função quase jurisdicional no sentido de que resolvem (...) litígios entre os vários delegatários e entre estes e os usuários dos serviços públicos”.14 A própria autora, todavia, afirma que essa independência, sobretudo em relação aos Poderes Legislativo e Judiciário, deve ser entendida de forma mitigada. Em relação ao primeiro, o Legislativo, por força, sobretudo, da fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial exercida pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, conforme dispõe o art. 70 do texto da Constituição Federal;15 em relação ao Judiciário, tendo em vista a inafastabilidade da atuação judiciária, definida no art. 5º, XXXV, do mesmo texto constitucional. DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 131. O Tribunal de Contas da União, ao apreciar recurso acerca de concessão de serviços públicos na área de rodovias, deixou assente na oportunidade que compete ao TCU fazer determinações às agências reguladoras em geral e, no caso concreto, à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), exceto quanto àquilo que diga respeito à conveniência e oportunidade de atos praticados no âmbito discricionário de tais entidades, para os quais caberiam recomendações. O voto condutor coube ao Ministro Relator Benjamin Zymler que, a respeito, assim se pronunciou, verbis: “(...) entendo que compete a este Tribunal recomendar a adoção das providências que se fizerem necessárias para tornar mais eficiente a atuação finalística e discricionária das agências reguladoras. De maneira semelhante a que se verifica nas auditorias operacionais, agora tão freqüentes nesta Corte, o produto final das auditorias realizadas nessas atividades deve ser um conjunto de propostas e recomendações, cuja implementação propiciará uma maior qualidade na prestação de serviços públicos. Porém, quando for detectado o descumprimento de uma norma jurídica, o TCU pode e deve determinar a adoção das medidas tendentes a ilidir essa irregularidade” (Pedido de Reexame no TC-006.931/2002-0. Acórdão nº 1.703/04, Plenário. Rel. Min. Benjamin Zymler. Sessão de 3.11.2004. Ata n. 41/04. DOU, 17 nov. 2004).
14
15
Livro 1.indb 152
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
153
Aliado à independência administrativa, orçamentária, política e financeira, o poder normativo conferido às agências — que ao expedirem normas técnicas e setoriais muitas vezes inovam no mundo jurídico — confere-lhe traço peculiar e exige muito cuidado, posto essas normas estarem sujeitas a eventuais confrontos com normas editadas pela Administração centralizada. Não se pode confundir o poder normativo de algumas agências, o poder de regular determinados segmentos, com a competência do Poder Executivo para regulamentar a lei mediante a edição de decreto, pois, consoante o que dispõe a Constituição Federal, art. 84, IV, compete privativamente ao Presidente da República “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Esse dispositivo constitucional impede qualquer agência de editar norma que possa se sobrepor à lei ou ao respectivo e eventual decreto editado pelo chefe do Executivo. O poder regulamentar de que dispõem os chefes do Executivo decorre de forma genérica da Constituição Federal, e no caso específico da lei a ser regulamentada. Somente pode ser exercida essa potestade por parte do chefe do Executivo se, quando e nos limites definidos pela lei a ser regulamentada. Todavia, regulamentada a lei, todas as unidades administrativas responsáveis pela aplicação desta lei devem obrigatoriamente observar o que dispõe o decreto que a regulamentou. Em outras palavras, a agência se sujeita ao poder regulamentar do chefe do Executivo a que esteja vinculada. O poder das agências de regular determinado segmento de mercado não se inclui no poder regulamentar, de que é titular exclusivo o chefe do Poder Executivo. O poder das agências de regular determinado segmento de mercado insere-se, ao contrário, no poder discricionário conferido ao administrador público por lei, a ser exercido, portanto, nos estritos limites legais, tendo em consideração a impossibilidade de o legislador definir a priori a melhor solução a ser adotada para todas as situações concretas possíveis de serem apresentadas ao administrador público. O mérito da atuação administrativa, vale dizer, o juízo de conveniência e oportunidade a ser adotado para definir o conteúdo da manifestação do administrador, no caso das normas expedidas pelas agências, deve estar em estrita sintonia com a adoção de soluções que, sob o ponto de vista técnico, econômico e social, sejam consideradas mais adequadas para a realização do interesse público. Inserir o poder das agências de regular determinado segmento do mercado no campo da discricionariedade, e não do regulamentar, não importa em outorga-lhes independência absoluta. Ao contrário, há muito se discute a possibilidade de ser exercido, não apenas pelos Tribunais de Contas, mas também pelo próprio Poder Judiciário controle de legitimidade sobre a atuação discricionária do administrador, podendo o princípio da razoabilidade ser apontado como apenas um dos instrumentos adequados para tal mister. Sob a ótica do Poder Legislativo, o poder de que dispõe o Congresso Nacional, por meio de seu braço operante, que é o TCU, de realizar auditorias operacionais permitiria a fiscalização da atuação das agências sob ótica mais ampla, incluindo além de aspectos de legalidade e de legitimidade, aspectos de economicidade — o que importaria, segundo abalizada doutrina, exame do próprio mérito da atuação administrativa. A rigor, o termo discricionariedade técnica — tão importante para o tema que ora examinamos — foi utilizado pela primeira vez na Áustria,16 e a sua justificativa está 16
Livro 1.indb 153
Conforme DI PIETRO. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas, p. 195.
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
154
diretamente relacionada à necessidade de que certas decisões administrativas devem considerar tal nível de especialização que somente aquele órgão ou entidade teria elementos necessários para a valoração da melhor solução a ser adotada. Ademais, o poder discricionário conferido às agências é ampliado pelo fato de que as leis que definem suas atribuições utilizam, muitas vezes, conceitos genéricos, e tratam as questões que lhes são apresentadas apenas como princípios, fixando apenas standards ou parâmetros a serem observados pelas agências no exercício do poder de regular determinados setores. Surge, assim, o amplo espaço de atuação das agências e que certamente irá resultar em conflitos com as entidades políticas a que estejam vinculadas, caso não haja absoluta sintonia entre a atuação das agências e a atuação, ou falta de atuação, do Poder Central. Na definição das potestades conferidas às agências, há uma que não lhe é conferida: a de definir ou de formular políticas públicas. Essa tarefa é inerente às entidades políticas. Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal formularem as políticas para os diversos setores regulados, cabendo às suas respectivas agências o papel de executá-las. Tomemos aqui o exemplo do setor energético a fim de verificarmos as causas de tantas desavenças entre o setor regulado, o poder central e as agências reguladoras. A Lei nº 9.478/97, a lei do petróleo, além de criar a Agência Nacional do Petróleo (ANP), criou o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão integrante da Administração direta, cuja função é a de sediar o debate, de forma multidisciplinar, sobre a problemática energética em nosso País. Temos, assim, que o CNPE fica com o encargo de definir a política energética, enquanto a regulação e execução dessas políticas ficam sob a responsabilidade das agências ligadas a essa área: ANEEL e ANP. Devem as agências regular os setores sob sua responsabilidade; não devem elas, todavia, desempenhar a função do Poder Central de formular políticas públicas, função que deve ser definida em nível ministerial, com a efetiva participação do chefe do Executivo e do respectivo Poder Legislativo. Nesse contexto, insere-se, por exemplo, a necessidade de definição, pelas entidades políticas, da política tarifária a ser seguida pelas agências. Os mecanismos de revisão e os parâmetros a serem adotados por ocasião das revisões tarifárias devem ser fixados de modo claro pelo Poder Executivo, devendo estar expressos nos editais de licitações e nos próprios contratos de concessão ou de permissão de serviços públicos. A discricionariedade a ser utilizada pelas agências, como agentes de implementação dessas políticas, deve estar definida em lei, sob pena de se subverter a própria lógica do sistema, que pressupõe normas claras e previamente definidas, de modo a que os investidores possam agir com a certeza de que não haverá alterações inesperadas nos rumos definidos para os setores regulados. Se é certo que as estruturas tradicionais da centralização administrativa mostram-se inadequadas para responder às demandas da população e do próprio setor regulado em matérias tão sensíveis social, econômica e politicamente, a implantação desse novo modelo de atuação do Estado deve ser acompanhada com muito cuidado por todos os que zelam pelo império do interesse público. Acerca das dificuldades dessa solução apontada pelo modelo gerencial, a doutrina norte-americana busca definir o relacionamento entre as agências e o setor regulado por meio de ciclos. No início, a agência responde à demanda que resultou na sua criação; na segunda fase, trabalha com vigor, ainda livre das forças corruptivas no seu entorno; na terceira etapa, denominada de “porta giratória”, ocorre
Livro 1.indb 154
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
155
troca de pessoal entre a agência e o setor regulado, e, na quarta, a agência passa a ser inteiramente dominada pelo setor regulado.
4.3.2.3 Agências executivas As agências reguladoras têm desempenhado importante função no modelo de organização do Estado brasileiro implantado a partir das reformas administrativas ocorridas nos últimos anos no Brasil. A sua importância está no fato de regularem atividades públicas que foram transferidas a empresas privadas. Diante do incremento dessa forma de proceder do Estado, que cada vez mais se utiliza de particulares para executar atividades estatais, a tendência é que essas entidades assumam importância cada vez maior em nosso modelo de Estado. Em relação às agências executivas, todavia, o cenário não lhes é muito animador. Até o momento não tem sido possível sequer identificar em que consistem ou qual a sua função. Elas são disciplinadas pelos decretos nº 2.487 e nº 2.488, ambos de 1998. Nos termos desses normativos, autarquias e fundações, inclusive as já existentes, podem ser qualificadas pelo Ministério a que se vinculem como agências executivas, desde que tenham “celebrado contrato de gestão” e que apresentem plano estratégico “para a melhoria da qualidade de gestão e para a redução de custos”. Qualificada como agência executiva, a autarquia ou fundação pública estaria sujeita a “regime especial”. A ideia de agência executiva não está ligada, portanto, ao exercício de atividade específica. Qualquer autarquia ou fundação pública, independentemente de sua área de atuação, pode vir a se qualificar como agência executiva a fim de se submeter a “regime especial”. O que, até o momento, não se explicou é em que consiste referido regime especial. A única referência feita em nossa legislação acerca das agências executivas consta da Lei nº 8.666/93. Em seu art. 24, §1º, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 9.648/98, é estabelecido que as agências executivas, assim como os consórcios públicos, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, podem contratar, sem licitação, obras e serviços de engenharia de valor não superior a R$30.000,00, e compras e demais serviços de até R$16.000,00, em razão de dispensa. Esses valores correspondem ao dobro do limite de dispensa aplicável aos demais órgãos e entidades públicos. Se é este o tratamento que a lei confere às agências executivas, ele não tem absolutamente nada de especial. Quanto à possibilidade de o contrato de gestão conferir às autarquias ou às fundações públicas maior autonomia, isto independe de elas serem ou não qualificadas como agências executivas. Vê-se, pois, que as agências executivas constituem tema absolutamente irrelevante em nosso Direito Administrativo.
4.3.2.4 Autarquias corporativas Este tema sempre foi objeto de infindável discussão entre os juristas. Afinal, qual é a natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),17 dos Conselhos
17
Livro 1.indb 155
No julgamento da ADI nº 3.026-DF, o eg. Supremo Tribunal Federal, sem negar a natureza autárquica dos conselhos de fiscalização das profissões regulamentadas, afirmou que a Ordem dos Advogados do Brasil não é
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
156
Regionais ou Federais de Medicina, Odontologia, de Educação Física etc.? A particularidade dessas entidades consiste no fato de que são criadas por lei, desempenham atividade típica de Estado, correspondente ao poder fiscalizar o exercício de atividades profissionais, gozam de prerrogativas típicas das entidades de Direito Público (tais como imunidade tributária relativa a seus bens, rendas e serviços e possibilidade de cobrança de seus créditos por meio de execução fiscal), sem que, todavia, estejam vinculadas ou subordinadas direta ou indiretamente a qualquer entidade política. Em termos de Direito Positivo, a questão poderia ser considerada esgotada com o julgamento da ADI nº 1.717/DF, haja vista o STF ter confirmado com este julgamento a natureza autárquica destas entidades. Estamos, porém, longe de qualquer consenso sobre o tema. Relativamente ao dever de prestar contas ao Tribunal de Contas da União, parece-nos questão superada. A natureza pública de seus recursos — as contribuições dos profissionais para manutenção das entidades são contribuições parafiscais — e o autarquia. Resta saber, em razão dessa decisão, se as seccionais da Ordem continuarão isentas de pagar os impostos incidentes sobre seu patrimônio, renda e serviço haja vista a imunidade se basear exatamente na natureza autárquica antes reconhecida à OAB. Ressalvada, portanto, a possibilidade de lei estadual ou municipal criar isenções, não subsiste mais fundamento para o não pagamento de IPTU, IPVA e ISS pela OAB. Importa ainda observar que o casuísmo dessa decisão não pode conduzir à conclusão de que entidades privadas possam exercer poder de polícia, atividade exclusiva das pessoas de direito público. O acórdão proferido foi ementado nos seguintes termos: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. §1º do artigo 79 da Lei n. 8.906, 2ª Parte. ‘Servidores’ da Ordem dos Advogados do Brasil. Preceito que possibilita a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha do regime jurídico no momento da aposentadoria. Indenização. Imposição dos ditames inerentes à administração pública direta e indireta. Concurso público (art. 37, II, da Constituição do Brasil). Inexigência de concurso público para a admissão dos contratados pela OAB. Autarquias especiais e agências. Caráter jurídico da OAB. Entidade prestadora de serviço público independente. Categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. Autonomia e independência da entidade. Princípio da moralidade. Violação do artigo 37, caput, da Constituição do Brasil. Não ocorrência. 1. A Lei n. 8.906, artigo 79, §1º, possibilitou aos ‘servidores’ da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [artigo 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. 9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei n. 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido” (STF. ADI nº 3.026-DF, Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set. 2006, grifos nossos).
Livro 1.indb 156
21/03/2013 17:13:46
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
157
fato de serem autarquias constituem, individualmente, motivos suficientes para terem de se submeter à fiscalização do TCU. A Ordem dos Advogados do Brasil, que deveria ser a primeira a cumprir seu dever republicano de prestar contas, realizar concursos públicos e licitações, vergonhosa e injustificadamente não o faz — máxima vênia. Utiliza-se, ao contrário, do argumento de que exerce função política — e mais ainda de seu poder político — para obter decisões judiciais e administrativas sem fundamentação jurídica sólida que justifique a sua liberação desses misteres. Se o Presidente da República, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o próprio Supremo Tribunal Federal, que exercem, cada qual a seu modo, funções políticas, prestam contas, por que a OAB não o faria? A resposta deve ser buscada no mundo político, e não em fundamentações jurídicas. Assim, à exceção da OAB, todas as demais entidades responsáveis pela fiscalização do exercício das profissões regulamentadas, além de prestarem contas, têm sido obrigadas a fazer licitação e concurso público. Outras questões restam pendentes, tais como: a elas se aplica a Lei de Responsabilidade Fiscal? Devem observar as normas relativas à execução orçamentária previstas na Lei nº 4.320/64? É ponto pacífico em nossa doutrina e jurisprudência que o poder de polícia somente pode ser exercido por pessoa de Direito Público. Ora, se as únicas entidades dotadas de personalidade jurídica de Direito Público admitidas em nosso ordenamento jurídico são as entidades políticas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e as autarquias (aí incluídas as fundações autárquicas), a única opção de enquadramento jurídico possível que sobra às entidades responsáveis pela fiscalização das profissões regulamentadas é na forma de autarquias. Dado que são autarquias, a elas se aplica o Direito Público, porém, em função de particularidades que lhes são próprias, de forma mitigada. A Constituição Federal dispõe, por exemplo, que a criação de cargos, empregos ou funções públicas depende de lei. Seria, portanto, necessária a aprovação de lei federal para criar um emprego de secretária ou de ascensorista ou qualquer outro para o Conselho de Educação Física, por exemplo? Parece-nos que a observância das normas públicas não pode ocorrer de forma plena ou absoluta sob pena de se mostrar, por vezes, totalmente absurda. São autarquias especiais. A sua especialidade — e neste ponto não podem ser confundidas com as autarquias em regime especial — está no fato de que não integram a Administração Pública. Elas não se subordinam ou vinculam a nenhuma outra entidade. No desempenho de suas atribuições, devem dispor de plena e absoluta liberdade administrativa, gerencial, financeira e orçamentária, tendo como limite a lei que as criou e os princípios constitucionais. Dado este fato, ao se relacionarem com o mundo exterior, vale dizer, quando contratam empresas ou empregados, devem observar, dentre outros, o princípio da impessoalidade. Isto importa na necessidade de realização de licitações e de concursos públicos.18 Quando exercem suas atribuições de fiscalização, devem observar, em especial, os princípios do contraditório e da ampla defesa. Nestes aspectos, sujeitam-se Enunciado da Súmula nº 277 do TCU: “Por força do inciso II do art. 37 da Constituição Federal, a admissão de pessoal nos conselhos de fiscalização profissional, desde a publicação no Diário de Justiça de 18.05.2001 do acórdão proferido pelo STF no mandado de segurança 21.797-9, deve ser precedida de concurso público, ainda que realizado de forma simplificada, desde que haja observância dos princípios constitucionais pertinentes”.
18
Livro 1.indb 157
21/03/2013 17:13:46
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
158
às normas de Direito Público. Mas ao desempenharem atribuições internas que não importem em violação de qualquer dos princípios constitucionais, não se justifica a aplicação de normas de Direito Público. Essas autarquias especiais devem, assim, em suas contrações realizarem a prévia licitação. Estas não necessitam, todavia, observar fielmente as regras previstas na Lei nº 8.666/93. As licitações das autarquias corporativas devem observar regras eventualmente editadas previamente por elas mesmas, regras que busquem realizar a impessoalidade, a publicidade, a moralidade, a eficiência etc. À OAB, ao CREA, aos Conselhos de Contabilidade etc. não se justifica a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal — Lei Complementar nº 101/02 — ou da Lei nº 4.320/64. Estas leis existem para disciplinar e limitar os gastos públicos efetuados pelas entidades da Administração Pública. Dado que as autarquias corporativas não integram a Administração Pública, a elas não se aplicam essas leis. A necessidade de que os cargos, empregos ou funções a serem criados na Administração Pública decorra de lei é forma de controle a ser exercido pelo Legislativo sobre o Executivo. Em relação às autarquias corporativas, que dispõem de plena autonomia administrativa, gerencial, financeira etc., não se justifica a necessidade de lei para criar empregos. O dever de realizarem concurso público e licitação decorre da aplicação dos princípios constitucionais de moralidade, de impessoalidade, de publicidade etc.
4.3.3 Fundações públicas Em relação às fundações públicas (mantidas pelo poder público, instituídas e mantidas pelo poder público, ou seja qual for a forma como a Constituição Federal a elas se refere), existe uma grande dúvida: qual a sua natureza jurídica? São elas pessoas de Direito Público ou de Direito Privado? Inicialmente, o Decreto-Lei nº 200, de 1967, com a redação dada pela Lei nº 7.596/87, ao dispor sobre a organização da Administração Pública, conferiu-lhes personalidade de Direito Privado. O Supremo Tribunal Federal, independentemente de qualquer declaração de inconstitucionalidade de referido decreto-lei, firmou o entendimento de que as fundações públicas em nada se diferenciavam das autarquias, e lhes conferiu personalidade de Direito Público.19 Esse entendimento do STF — de que as fundações públicas possuem natureza autárquica — decorria do fato de que sempre que a Constituição Federal fazia qualquer menção em relação a uma, à autarquia, referia-se à outra, à fundação pública, em idênticos termos (CF, arts. 22, XXVII; 37, XVII e XIX; 150, §2º, dentre outros). O enquadramento das fundações públicas como pessoas de Direito Público por equiparação com as autarquias justifica, por exemplo, que até os atuais fundações públicas como a Fundação Nacional do Índio – FUNAI, sejam julgadas pela Justiça Federal. Ora, se a Constituição Federal, em seu art. 109, I, determina que aos juízes federais compete processar e julgar “as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes (...)” e não faz qualquer menção expressa à competência para julgar fundações públicas federais, como se justifica que estas sejam julgadas por estes mesmos juízos? A resposta
19
STF. RE nº 101.126-RJ, Pleno. Rel. Min. Moreira Alves. Julg. 24.10.1984. DJ, 1º mar. 1985.
Livro 1.indb 158
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
159
está no simples fato de que, para todos os fins, inclusive de competência, as fundações públicas federais seriam autarquias federais. A questão parecia superada até que a Emenda Constitucional nº 19/98 deu nova redação ao art. 37, XIX, e conferiu tratamento distinto às duas entidades. Determinou que somente por meio de lei específica poderá ser “criada autarquia” e “autorizada a instituição de empresa pública, sociedade de economia mista e de fundação”. Temos, portanto, que o texto constitucional vigente determina que as fundações públicas observem todas as normas pertinentes às autarquias, exceto em relação a um aspecto, relativo à criação dessas entidades. Neste ponto, as normas a serem aplicadas às fundações públicas são aquelas pertinentes às empresas públicas e sociedades de economia mista, que são, indiscutivelmente, pessoas de Direito Privado. A pergunta a ser feita é a seguinte: o fato de as fundações públicas observarem, em todos os seus aspectos, exceto em relação a um (CF, art. 37, XIX), as regras constitucionais pertinentes às autarquias afeta a definição da natureza da sua personalidade jurídica? Essa única modificação do texto constitucional justifica modificação no tratamento que o Supremo Tribunal Federal lhes conferiu, de pessoas jurídicas de Direito Público? A abertura dada pelo mencionado dispositivo constitucional, conforme ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro,20 justifica a separação das fundações em duas categorias. Elas podem ser de Direito Público ou Privado, conforme dispuser a lei que a tenha criado ou autorizado sua instituição. A criação ou a autorização para instituição de fundação pública depende sempre de lei. Cabe a esta lei, em função da atividade a ser desempenhada, definir se a fundação pública será de direito público ou de direito privado, conforme ensina a ilustre autora. Se o legislador optar pela criação de fundação pública com personalidade jurídica de Direito Público, ela nada mais será do que uma autarquia. Nesta hipótese, em que estaremos diante de uma autarquia fundacional, a sua criação decorre da própria lei. Não haverá necessidade de qualquer outra providência a fim de que seja considerada constituída a pessoa jurídica, salvo se a lei criar ou exigir essa providência, de que poderia ser exemplo a necessidade de regulamentação da lei. Criada a fundação pública com natureza autárquica, hipótese em que seria, a rigor, mais correto falar tão somente em autarquia fundacional, todas as regras e explicações pertinentes às autarquias apresentadas anteriormente neste capítulo lhes serão aplicáveis (normas de Direito Público, impenhorabilidade de bens, pagamento de dívidas decorrentes de condenações judiciais por meio de precatório, cobrança de seus créditos por meio de execução fiscal etc.). Se em função da atividade a ser atribuída à fundação pública a ela for conferida personalidade jurídica de Direito Privado, o seu regime jurídico será o Direito Civil, sendo-lhe aplicável as normas do Direito Civil, inclusive aquelas pertinentes à necessidade de registro em cartório (Código Civil, art. 62, caput), às áreas em que as fundações privadas podem atuar (Código Civil, art. 62, parágrafo único) e à fiscalização a ser feita pelo Ministério Público (Código Civil, art. 66). Não lhe são aplicáveis as normas privatistas somente quando forem expressamente derrogadas pela Constituição Federal. A regra da imunidade tributária prevista no art. 150, §2º, do texto constitucional, por exemplo, deve ser-lhe aplicável ainda que se trate de fundação pública de Direito 20
Livro 1.indb 159
Cf. DI PIETRO. Direito administrativo.
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
160
Privado, haja vista a Constituição não estabelecer, nesta e em várias outras hipóteses, qualquer distinção entre fundação pública de Direito Público e de Direito Privado. O mesmo vale para a vedação de acumulação de cargos ou de empregos públicos (CF, art. 37, XVII), para a obrigatoriedade de realização de licitação (CF, art. 22, XXVII), para a necessidade de contratação de pessoal por meio de concurso público (CF, art. 37, II), que são alguns exemplos de situações em que a Constituição Federal determina a aplicação de normas de Direito Público, independentemente de se tratar de fundação pública de Direito Público ou de Direito Privado. Em outras hipóteses, ao contrário, as normas constitucionais somente alcançariam as fundações públicas de Direito Público. O art. 100 da Constituição Federal, ao dispor sobre os precatórios, menciona a expressão fazenda pública, expressão que não inclui pessoas de Direito Privado. Desse modo, as fundações públicas de Direito Público, cujos bens são impenhoráveis, teriam a prerrogativa de pagamento de suas dívidas decorrentes de condenação judicial por meio de precatório. Idêntico raciocínio se aplica ao foro privilegiado do art. 109 do texto constitucional, que trata da competência dos juízes federais. Somente as fundações públicas federais de Direito Público, dado que estão equiparadas às autarquias federais, poderiam beneficiar-se desse foro, devendo as fundações públicas federais de Direito Privado serem processadas e julgadas pelos juízos comuns estaduais. Aspecto importante dessa discussão consiste em saber se as fundações públicas de Direito Privado seriam entidades administrativas ou secundárias e integrariam, portanto, a Administração Pública indireta em sua respectiva esfera de governo. A resposta parece ser positiva. Não existe qualquer razão para que as fundações públicas de Direito Privado sejam excluídas do âmbito da Administração Pública indireta. A existência de legislação anterior à vigência da Constituição Federal de 1988 que tenha tido a pretensão de excluir do âmbito da Administração Pública indireta as fundações públicas de Direito Privado (Decreto-Lei nº 900/69) deve ser considerada revogada pelo texto constitucional. As normas relativas ao Direito da Organização Administrativa são de estatura eminentemente constitucional e servem de parâmetro para a interpretação de todas as leis pertinentes ao tema. Não havendo qualquer dispositivo constitucional que permita concluir que as fundações públicas de Direito Privado não integram a Administração, deve-se afastar essa interpretação. A criação de fundações públicas de Direito Privado fora do âmbito da Administração Pública, de que são tristes exemplos as fundações de apoio de várias universidades federais, decorreu nada mais do que de tentativas de fugir dos mecanismos de controle estatais existentes. Em nome de uma maior flexibilidade gerencial para o desempenho de atividades acadêmicas, o que se tem verificado em inúmeros casos é a pura e simples malversação de recursos públicos e a utilização das referidas fundações de apoio para fugir ao dever constitucional de licitar e de fazer concurso público. Último aspecto controvertido das fundações públicas diz respeito à fiscalização a ser empreendida pelos Tribunais de Contas e pelo Ministério Público. Toda fundação pública, qualquer que seja a natureza de sua personalidade, integra a Administração Pública indireta. Isto nos parece inquestionável. Não é possível querer afastar a fiscalização a ser empreendida por parte do respectivo Tribunal de Contas, em função do que dispõe o art. 71, II e IV, da Constituição Federal. Em relação ao Ministério Público, a questão deixa de ser tão simples. Em primeiro lugar, deve-se deixar assente que os atos dos dirigentes das fundações públicas,
Livro 1.indb 160
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
161
independentemente da sua natureza, podem ser impugnados por meio de ações civis públicas, ações populares, ações de improbidade etc. propostas pelo Ministério Público competente. Essa possibilidade de atuação do Ministério Público não pode ser questionada e não é dela que se pretende falar. A fiscalização do Ministério Público em relação às fundações a que aqui nos referimos diz respeito àquela prevista no Código Civil (art. 66). Esta forma de fiscalização que o Ministério Público dos Estados exerce de forma sistemática sobre todas as fundações privadas deve alcançar as fundações públicas de Direito Privado de igual modo. Assim sendo, quando se discute sobre a fiscalização das fundações públicas, não se afasta em hipótese alguma a competência dos Tribunais de Contas ou a possibilidade de atuação do Ministério Público por meio das ações penais e civis cabíveis. Em relação às fundações públicas de Direito Privado, a particularidade está no fato de que, além de se sujeitarem a essas formas, estão submetidas à fiscalização sistemática a ser empreendida pelo Ministério Público dos Estados, conforme dispõe o Código Civil.
4.3.4 Empresas estatais A primeira questão a ser enfrentada no estudo das empresas estatais é de caráter terminológico. Até muito recentemente, as expressões empresas estatais e paraestatais eram apresentadas como sinônimas. A Lei nº 8.666/93, em seu art. 17, inciso 1º, ao dispor sobre alienação de imóveis, por exemplo, faz referência às entidades “paraestatais”. A rigor, o exame sistemático da lei leva à conclusão de que o legislador utilizou esse termo para fazer referência às empresas públicas e às sociedades de economia mista, que atualmente não mais se consideram paraestatais, mas empresas estatais. A adoção de um ou de outro termo se trata de mera convenção terminológica independentemente de qualquer previsão legal específica. É importante o leitor saber que aqui, utilizaremos as expressões em sentidos distintos. O termo empresa estatal aplica-se às empresas públicas e às sociedades de economia mista, que são entidades administrativas que compõem a Administração Pública indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios. As paraestatais são entidades que se encontram fora do âmbito da Administração Pública. Elas desempenham atividades de interesse da Administração, são mantidas exclusiva ou predominantemente com recursos públicos, mas não são entidades administrativas ou secundárias. São exemplos de paraestatais as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e os serviços sociais autônomos, e delas nos ocuparemos no item seguinte. Feitas essas considerações, deve ficar esclarecido que, sempre que for utilizada a expressão empresa estatal, estaremos nos referindo às empresas públicas e às sociedades de economia mista.
4.3.4.1 Regime jurídico e características das empresas estatais As empresas estatais são pessoas jurídicas dotadas de personalidade jurídica de Direito Privado (Decreto-Lei nº 200/67), somente por meio de lei específica poderá ser auto rizada sua instituição (CF, art. 37, XIX), sujeitam-se ao regime jurídico de Direito Privado (CF, art. 173, §1º, II), ressalvadas as hipóteses previstas na Constituição Federal. Relativamente à sua finalidade, podem desenvolver atividades de natureza empresarial ou
Livro 1.indb 161
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
162
prestar serviços públicos. As empresas estatais não necessariamente se prestam para explorar atividades empresariais; todavia sempre que as entidades políticas decidirem pela exploração dessas atividades, será criada empresa estatal. Essas são características típicas das empresas estatais. Outras também lhe são aplicáveis, ainda que, a rigor, sejam comuns a todas as entidades administrativas como a sujeição a controle estatal, e vinculação aos fins definidos na lei que lhes autorizou a instituição. Em relação a essas entidades, a maior dúvida reside na definição do seu regime jurídico. É certo que sendo pessoas de Direito Privado, o regime jurídico a ser-lhes aplicável é o Direito Privado. Integram, todavia, a Administração Pública indireta, o que impõe-lhes a observância, por força do disposto no art. 37 da Constituição Federal, dos princípios da impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade etc. A observância dos princípios gerais da Administração Pública é inafastável. Não é possível, todavia, presumir que a aplicação dos princípios importe em conferir às empresas estatais prerrogativas públicas, de que seria exemplo a anulação administrativa dos contratos que firme. A discussão acerca do regime jurídico a ser observado pelas empresas estatais se torna evidente quando se examina a possibilidade de os atos dos dirigentes serem questionados por meio de mandado de segurança. No caso de concurso público realizado por órgão público integrante da estrutura de pessoa de Direito Público, por exemplo, não há dúvida de que é cabível a segurança. Se o concurso público é realizado por empresa pública, a jurisprudência do STJ entende igualmente cabível;21 se se trata de concurso público realizado por sociedade de economia mista exploradora de atividade empresarial, sob o argumento de que se trata de ato de gestão, o STJ não admite o cabi mento da ação.22 Em relação aos atos praticados por empresas estatais na condução de licitação, o entendimento do STJ é pacífico no sentido de que se tratam de atos de império23 passíveis de serem atacados por meio de mandado de segurança. Nesse sentido, STJ: “Processual Civil e Administrativo. Recurso Especial. Mandado de Segurança. Legitimidade passiva. Agente da Caixa Econômica Federal. Decadência. Inocorrência. Idade mínima fixada para concurso público. I - Ao se submeter a normas de direito público para seleção e contratação de servidores, instituindo concurso e convocando-os pela ordem de classificação, a empresa pública sujeita-se a controle através de mandado de segurança” (REsp nº 588.017-DF, 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer. Julg. 13.4.2004. DJ, 07 jun. 2004). 22 Nesse sentido, STJ: “Administrativo. Banco de Brasília. Seleção de empregados. Concurso público. Ato de gestão. Exclusão do Mandado de Segurança. 1. Sociedade de economia mista que explora atividade econômica, como por exemplo o Banco Regional de Brasília, sujeita-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, estando, portanto, seus dirigentes excluídos, em princípio, do âmbito do mandado de segurança. A seleção de empregados através de concurso público não exterioriza ato de autoridade e nem exercício de competência delegada, mas simples ato de gestão. 2. Recurso especial não conhecido” (REsp nº 164.443-DF, 6ª Turma. Rel. Min. Vicente Leal. Rel p/ acórdão Min. Fernando Gonçalves. Julg. 14.9.1999. DJ, 28 fev. 2000). 23 Nesse sentido, STJ: “Processual Civil. Recurso Especial. Mandado de Segurança. Ato coator praticado por diretor de sociedade de economia mista (Banrisul). Licitação. Cabimento. 1. Consoante a doutrina clássica e a jurisprudência dominante, o conceito de autoridade coatora deve ser interpretado da forma mais abrangente possível. 2. Sob esse ângulo, a decisão proferida em processo de licitação em que figure sociedade de economia mista é ato de autoridade coatora, alvo de impugnação via Mandado de Segurança, nos moldes do §1º, do art. 1º da Lei 1.533/51. Precedente: REsp 598.534/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ, 19 set. 2005. 3. É cediço na Corte que o ‘dirigente de sociedade de economia está legitimado para ser demandado em mandado de segurança impetrado contra ato decisório em licitação’. (REsp 122.762/RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ, 12 set. 2005) 4. Deveras, a doutrina do tema não discrepa desse entendimento, ao revés, reforça-o ao assentar: ‘Cumpre, ademais, que a violação do direito aplicável a estes fatos tenha procedido de autoridade pública. Este conceito é amplo, Entende-se por autoridade pública tanto o funcionário público, quanto o servidor público ou o agente público em geral. Vale dizer: quem quer que haja praticado um ato funcionalmente administrativo. Daí que um dirigente de autarquia, de sociedade de economia mista, de empresa pública, de fundação pública, obrigados a atender, quando menos aos princípios da licitação, são autoridades públicas, sujeitos passivos de mandado de segurança em relação aos atos de licitação (seja quando esta receber tal nome, seja rotulada concorrência, convocação geral ou designações quejandas, não importando o nome que se dê ao certame destinado à obtenção de bens, obras ou serviços)’ 21
Livro 1.indb 162
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
163
A incidência das prerrogativas do Direito Público às empresas estatais somente se verifica nas hipóteses expressamente previstas em lei, conforme já afirmado, pressupõe o exercício de atividade estatal, como a prestação de serviço público, e que a empresa estatal não atue em regime concorrencial.24 Em relação a esta última exigência, é de se concluir que se uma empresa estatal presta serviços públicos e o faz em regime de concorrência com a iniciativa privada (por exemplo: empresa pública municipal que presta serviço de transporte público de passageiros em regime de competição com empresas privadas permissionárias de serviço público), não é legítimo ser assegurado à empresa estatal prerrogativa que não tenha sido estendida às empresas privadas permissionárias. Admitimos como legítimo o exercício de potestade pública por parte de empresa estatal. Esse exercício deve ser admitido somente em situação excepcional. As empresas estatais devem observar os princípios gerais da Administração Pública e pautarem
(Licitações, pág. 90) (Celso Antônio Bandeira de Mello, citado pelo e. Min. Demócrito Reinaldo, no julgamento do REsp nº 100.168/DF, DJ, 15 maio 1998) (REsp 639.239/DF. Relator: Min. Luiz Fux. DJ, 06 dez. 2004). 5. Recurso Especial provido” (REsp nº 683.688-RS, 1ª Turma. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Rel. p/ acórdão Min. Luiz Fux. Julg. 4.5.2006. DJ, 25 maio 2006). 24 A distinção acerca do regime jurídico da empresa estatal exploradora de atividade econômica e daquelas que em regime não-concorrencial, vide a seguinte decisão do STF: “Desapropriação, por Estado, de bem de sociedade de economia mista federal que explora serviço público privativo da União. 1. A União pode desapropriar bens dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos territórios e os Estados, dos Municípios, sempre com autorização legislativa especifica. A lei estabeleceu uma gradação de poder entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a prevalecer o ato da pessoa jurídica de mais alta categoria, segundo o interesse de que cuida: o interesse nacional, representado pela União, prevalece sobre o regional, interpretado pelo Estado, e este sobre o local, ligado ao Município, não havendo reversão ascendente; os Estados e o Distrito Federal não podem desapropriar bens da União, nem os Municípios, bens dos Estados ou da União, Decreto-lei n. 3.365/41, art. 2., par. 2. 2. Pelo mesmo princípio, em relação a bens particulares, a desapropriação pelo Estado prevalece sobre a do Município, e da União sobre a deste e daquele, em se tratando do mesmo bem. 3. Doutrina e jurisprudência antigas e coerentes. Precedentes do STF: RE 20.149, MS 11.075, RE 115.665, RE 111.079. 4. Competindo a União, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, f, da CF, esta caracterizada a natureza pública do serviço de docas. 5. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado. 6. Inexistência, no caso, de autorização legislativa. 7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. 9. O artigo 173, par. 1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas públicas ou sociedades de economia mista; seu endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante. 10. O disposto no par. 2., do mesmo art. 173, completa o disposto no par. 1., ao prescrever que ‘as empresas publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos as do setor privado’. 11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a uma empresa privada, seus bens não poderiam ser desapropriados por Estado sem autorização do Presidente da Republica, Súmula 157 e Decreto-Lei n. 856/69; não seria razoável que imóvel de sociedade de economia mista federal, incumbida de executar serviço público da União, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante. 12. Não se questiona se o Estado pode desapropriar bem de sociedade de economia mista federal que não esteja afeto ao serviço. Imóvel situado no cais do Rio de Janeiro se presume integrado no serviço portuário que, de resto, não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o próprio serviço de que esta investida. 13. RE não conhecido. Voto vencido” (RE nº 172.816-RJ, Pleno. Rel. Min. Paulo Brossard. Julg. 9.2.1994. DJ, 13 maio 1994, grifos nossos).
Livro 1.indb 163
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
164
sua conduta com base no Direito Privado. Evidente que em hipóteses em que o Direito Privado entre em conflito com princípio geral, este deve prevalecer. Deve ser dito, uma vez mais, que a necessidade de observar a moralidade, a impessoalidade, a publicidade etc. não permite ou legitima, por si só, o exercício de prerrogativas públicas. Não obstante a aparente simplicidade, a definição das situações em que deve ser aplicado o regime público ou o privado gera inúmeras controvérsias práticas, sobretudo em relação àquelas que exploram atividades empresariais. Nos termos do art. 173 da Constituição Federal, as empresas estatais exploradoras de “atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços” se sujeitam “ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários”. A aplicação dos preceitos de ordem pública, todavia, já se mostra presente no caput do próprio art. 173 quando dispõe que a “exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. Este dispositivo constitucional basta para que se conclua que a empresa estatal, ainda que explore atividade empresarial, está ligada em sua própria existência a finalidades que não têm a ver com a obtenção de vantagens financeiras para o Estado, mas a “imperativos de segurança nacional” ou a “relevante interesse coletivo”. Por mais liberal ou permissiva que seja a interpretação deste dispositivo, ela nos conduz a duas conclusões imediatas: 1. não resta dúvida de que o texto constitucional torna excepcional a intervenção direta do Estado na atividade empresarial; e 2. o Estado precisa justificar a criação de empresa estatal sob um dos argumentos indicados — “segurança nacional” e “relevante interesse coletivo”. Não nos parece correto, ademais, afirmar que desde que a entidade política decidiu pela exploração direta de atividade empresarial, os requisitos constitucionais estarão satisfeitos. Parece-nos perfeitamente legítimo o questionamento e exame, pela via judicial, do preenchimento de ao menos um dos requisitos. Demonstrado que nenhum dos dois se faz presente, a lei que tenha autorizado a instituição de empresa estatal é inconstitucional. Outro importante aspecto relativo à aplicação do Direito Público decorre da inclusão das empresas estatais como entidades integrantes da Administração Pública indireta, nas disposições do art. 37 da Constituição Federal pertinentes à Administração Pública. Desse modo, ainda que submetidas como regra ao Direito Privado, devem, em primeiro lugar, observar todos os princípios gerais da Administração Pública expressos (moralidade, impessoalidade, publicidade, legalidade e eficiência) e implícitos. Em decorrência da aplicação das normas de Direito Público às empresas estatais, não obstante sejam pessoas com personalidade de Direito Privado e sujeitas ao regime jurídico privado, podem, excepcionalmente, exercer alguma prerrogativa pública. Pelos atos ilícitos civis praticados por seus agentes que causem prejuízos a terceiros, a responsabilidade civil das empresas estatais é subjetiva, nos termos do Código Civil, o que exigirá daquele que pede a indenização a comprovação de que houve culpa por parte de quem agiu em nome da empresa estatal. As regras básicas relativas à responsabilidade civil do Estado estão previstas no art. 37, §6º, do texto constitucional. Ali é definido que somente as pessoas de Direito Público, situação que não se aplica às empresas estatais, ou as pessoas de Direito Privado, prestadoras de serviços públicos, situação em que podem eventualmente se enquadrar as empresas estatais, respondem pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
Livro 1.indb 164
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
165
causarem a terceiros, independentemente de culpa. Nesse sentido, a empresa estatal pode assumir responsabilidade civil objetiva. Esta condição decorre da atividade que ela venha a explorar, no caso de ser serviço público, e não de sua condição de empresa estatal. Esta última condição importa, ao contrário, em princípio, em que sua responsabilização se verifique com base em critérios de responsabilidade civil subjetiva, conforme definidos pelo Código Civil. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, apenas para citar alguns poucos exemplos de empresas estatais, posto que não prestam serviços públicos, não assumem a responsabilidade civil objetiva prevista no citado dispositivo constitucional. A Empresa Brasileira de Correios, ao contrário, que presta serviços públicos essenciais e contínuos — conforme jurisprudência do STF —, responde objetivamente pelos prejuízos que seus agentes causem a terceiros. O pagamento de suas dívidas ocorrerá por meio de penhora de bens. A Constituição Federal (art. 100) dispõe que os pagamentos devidos à Fazenda federal, estadual ou municipal, em decorrência de sentença judiciária, observará a ordem de apresentação do precatório.25 O pagamento far-se-á, nesta hipótese, mediante a apresentação do precatório cujo valor é de inclusão obrigatória no orçamento das entidades de Direito Público, conforme dispõe o §1º deste mesmo dispositivo constitucional. Evidente, portanto, que essa regra constitucional não se aplica às empresas estatais. Todavia, o Decreto-Lei nº 509/69, que cuida da Empresa Brasileira de Correio e Telégrafos (ECT), dispõe que seus bens são inalienáveis. Este dispositivo teve sua validade questionada perante o STF que, ao julgar o RE nº 220.906, decidiu pela sua constitucionalidade.26 Esta decisão cria exceção ao que temos defendido, e que, até então era tido como ponto pacífico na doutrina e jurisprudência: somente a Constituição Federal pode conferir à empresa estatal prerrogativa de Direito Público. A decisão do STF teve por fundamento o princípio constitucional da continuidade do serviço público. A rigor, caso a penhora de determinado bem de qualquer empresa estatal ponha em risco a continuidade na prestação de serviço público essencial, independentemente de ser ou não a ECT, deve o juízo recusar o pedido de penhora desse bem. Trata-se de hipótese de colisão de direitos. De um lado o direito do credor de satisfazer seu crédito mediante a penhora do bem; do outro, a continuidade da prestação de serviço essencial à população. No caso da ECT, ainda que determinado bem seja de insignificante A única exceção à regra do precatório para a Fazenda pública está prevista no §3º do art. 100 da Constituição Federal e está relacionada aos pagamentos de obrigações definidas em lei como de pequeno valor — que atualmente corresponde a 60 salários mínimos. No caso de o crédito ter natureza alimentícia, ainda assim o precatório faz-se necessário, salvo se o valor for inferior aos 60 salários mínimos. Não obstante o texto do caput do citado art. 100 considerar que referidos créditos alimentícios constituem exceção, entendeu o STF que a ressalva diz respeito tão somente à ordem de apresentação do precatório, e não à desnecessidade do precatório. Criam-se, assim, duas filas, uma relativa aos precatórios de natureza alimentícia e outra relativa aos demais créditos. Outro aspecto curioso do pagamento do precatório diz respeito ao fato de, não obstante seja obrigatória a sua inclusão no orçamento, caso não haja disponibilidade financeira, ele não será pago e, afinal de contas, nada ocorrerá com a entidade pública. 26 STF: “Recurso Extraordinário. Constitucional. Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-Lei nº 509/69. Execução. Observância do regime de precatório. Aplicação do artigo 100 da Constituição Federal. 1. À Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, pessoa jurídica equiparada à Fazenda Pública, é aplicável o privilégio da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços. Recepção do artigo 12 do Decreto-Lei nº 509/69 e não-incidência da restrição contida no artigo 173, §1º, da Constituição Federal, que submete a empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. 2. Empresa pública que não exerce atividade econômica e presta serviço público da competência da União Federal e por ela mantido. Execução. Observância ao regime de precatório, sob pena de vulneração do disposto no artigo 100 da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido” (RE nº 220.906-DF, Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002). 25
Livro 1.indb 165
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
166
importância técnica ou operacional e não ponha em risco a prestação dos serviços desta empresa estatal, esse bem não pode ser penhorado. Com a decisão do STF, todos os bens da ECT são impenhoráveis, o que importa em dizer que haverá necessidade de ser emitido precatório, ou criado algum sistema semelhante ao do precatório, para viabilizar o pagamento das dívidas da ECT. A conclusão do STF em relação à ECT não vale para as demais empresas estatais prestadoras de serviços públicos, salvo em relação aos bens que estejam diretamente ligados à prestação do serviço e a sua penhora possa importar em solução de continuidade desse serviço. Em outras palavras, todos os bens da ECT são impenhoráveis; os bens de outras empresas estatais somente o serão se estiverem diretamente ligados à prestação de serviços essenciais e sua penhora puser em risco a prestação do serviço. A discussão em relação à ECT demonstra que a regra de que as empresas estatais se submetem ao regime jurídico do Direito Privado somente é válida para as empresas estatais que explorem atividade empresariais. Caso a empresa estatal preste serviço público, lei poderá conferir-lhe prerrogativas do Direito Público não necessariamente previstas na Constituição. Assim, pode lei definir que os servidores de empresa estatal prestadora de serviço público se submetam a regime administrativo, e não ao regime da CLT, ou que os seus bens sejam impenhoráveis, por exemplo. Enfim, em função do que foi decidido pelo STF no julgamento do mencionado RE nº 220.906, a prestação de serviço público justifica a criação de prerrogativa pública para a empresa estatal por meio de lei. Em relação à aplicação de regras constitucionais de Direito Público às empresas estatais, podemos apresentar as seguintes: - Possibilidade de que atos de seus dirigentes sejam questionados judicialmente por meio de ação popular – “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural (...)” (CF, art 5º, LXXIII); - Aplicação dos princípios gerais da Administração Pública – “a Administração Pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)” (CF, art. 37, caput); - Obrigação de contratação de empregados por meio de concurso público – “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso publico de provas ou de provas e títulos (...)” (CF, art. 37, II); - Vedação da acumulação de empregos, cargos ou funções públicas, ressalvadas as hipóteses expressamente indicadas na Constituição – “é vedada a acumulação de cargos públicos, exceto quando houver compatibilidade de horários (...)” (CF, art. 37, XVI); “a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público” (CF, art. 37, XVII); - Necessidade de lei para autorizar a instituição de empresa estatal – “somente por lei específica poderá ser criada autarquia e autorizada a instituição de empresa pública, de sociedade de economia mista e de fundação (...)” (CF, art. 37, XIX); - Necessidade de autorização legislativa para a criação de subsidiária de empresa estatal ou de sua participação em empresa privada (CF, art. 37, XX);
Livro 1.indb 166
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
167
- Aplicação da regra do teto constitucional de remuneração prevista no art. 37, XI, às empresas estatais que recebam recursos públicos para pagamento de pessoal ou de custeio em geral – “O disposto no inciso XI aplica-se às empresas públicas e às sociedades de economia mista, e suas subsidiárias, que receberem recursos da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios para pagamento de despesas de pessoal ou de custeio em geral” (CF, art. 37, §9º); - Fiscalização direta do Congresso Nacional (CF, art. 49, X); - Submissão aos limites globais e às condições para as operações de crédito externo e interno fixados pelo Senado Federal (CF, art. 52, VII); - Vedação para os deputados federais e senadores de “firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes” (CF, art. 54, I, “a”); - Sujeição à fiscalização pelo Tribunal de Contas da União (CF, artigos 70 e 71, II e IV); - Sujeição à Lei Orçamentária Anual, que compreenderá o orçamento fiscal, o orçamento de investimento e o orçamento da seguridade social (CF, art. 165, §5º); - Necessidade de prévia dotação orçamentária para a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, bem como para a própria criação de empregos (CF, art. 169, §1º).
4.3.4.2 Serviço público e atividade empresarial Constitui erro comum a apresentação da exploração de atividade empresarial como uma característica das empresas estatais. Efetivamente, sempre que uma entidade política decidir intervir diretamente em atividade econômica, deverá fazê-lo por meio de empresa estatal. As autarquias, que são pessoas de Direito Público e têm como característica a prestação de serviços típicos de Estado, não se prestam a essa função. As fundações públicas são criadas para desempenharem atividades de utilidade pública. Restam as empresas estatais como opção para a exploração de atividades de produção de bens ou de prestação de serviços de caráter empresarial. Existem, todavia, inúmeras empresas estatais — sobretudo as empresas públicas — que se dedicam a atividade que não mantém qualquer relação com o mundo empresarial e que prestam serviços tipicamente públicos — como a limpeza e conservação das vias públicas, por exemplo. Neste ponto, o maior desafio é o de tentar separar a atividade empresarial dos serviços públicos, tarefa que, se em alguns casos pode parecer simples (manutenção de relações com outros países ou a defesa do território nacional, por exemplo), em outras situações suscita dúvidas infindáveis: serviços postais, serviços de telecomunicação, manutenção e conservação de estradas e rodovias etc. Não obstante a definição do que seja serviço público ou atividade empresarial possa parecer tarefa inalcançável, haja vista essa definição depender de contextualizações de tempo e de espaço, além de envolver considerações ou convicções de ordem política, a Constituição Federal pode ser utilizada como parâmetro para auxiliar nessa tentativa. Conforme examinamos no Capítulo 11, podem ser consideradas como serviço público as tarefas de natureza prestacional conferidas pela Constituição às entidades políticas (União, Estados etc.), no sentido de que são comodidades ou utilidades que o
Livro 1.indb 167
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
168
poder público tem o dever de pôr à disposição da população. Qualquer outra atividade é privada e, se puder ser explorada como atividade de risco e com fins econômicos ou lucrativos, é atividade privada empresarial. Vê-se que a primazia no atendimento das necessidades da população foi conferida pela Constituição Federal (art. 1º, IV; art. 170 et seq.) ao setor privado, cabendo ao Estado exercer determinadas atividades, entre elas a prestação dos serviços públicos. Não obstante a falta de clareza dessa distinção, não resta dúvida de que, em função do que dispõe a Constituição, os serviços postais (CF, art. 21, X), de telecomunicações (CF, art. 21, XI), de radiodifusão (CF, art. 21, XII, “a”), de energia elétrica (CF, art. 21, XII, “b”), são serviços públicos. Conferir a essas atividades a natureza de serviços públicos retira-lhes, por acaso, a possibilidade de serem exploradas como atividades empresariais? Nos termos do Código Civil, considera-se empresa “a atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços” (art. 966). Nos termos do vigente Código ou da própria Constituição Federal, não se verifica qualquer empecilho para que determinada atividade qualificada como serviço público pela Constituição possa ser explorada em caráter empresarial, ou seja, se a atividade de distribuição de energia elétrica, por exemplo, indicada pela Constituição como serviço público pode ser explorada de forma organizada com fins econômicos, de obtenção e de distribuição de lucros, ela é atividade empresarial. O fato de a Constituição Federal ter-lhe atribuído natureza de atividade pública (serviço público), o que pode ser atribuído a razões de ordem técnica, social e econômico ou simplesmente à vontade política do constituinte, não retira dessa atividade o caráter de atividade empresarial, mas tão somente atribui ao Estado a titularidade do serviço, bem como sua respectiva prestação, prestação que pode, nos termos da própria Constituição Federal (art. 175), ser transferida a particulares que a explorarão como atividade empresarial. Atividade empresarial e serviço público não são atividades opostas ou incompatíveis. O que buscamos afirmar é que há determinados serviços públicos que, sem perder essa característica, podem ser explorados por empresas privadas como atividades empresariais. A possibilidade de que determinados serviços possam ser transferidos (ou delegados) a empresas privadas depende tão somente da vontade do legislador e da própria natureza da atividade, que em alguns casos, como, por exemplo, a competência para assegurar a defesa nacional ou para a emissão de moeda (CF, art. 21, II e VII), não permitem a sua exploração com fins econômicos. Até o momento não se cogita que uma empresa possa se organizar e explorar com fins lucrativos os serviços de defesa nacional — ainda que já existam países que o façam. É a impossibilidade de que esse serviço seja explorado como atividade empresarial — e não por qualquer outro motivo de ordem jurídica — que faz com que essa atividade não possua natureza empresarial. Mais importante do que distinguir os serviços públicos das atividades empresariais é saber quais serviços públicos são prestados por empresas estatais em regime concorrencial ou em caráter exclusivo, ou não concorrencial. Caso uma empresa estatal explore atividade sem que haja qualquer outra empresa privada atuando em regime de concorrência, é possível que lei lhe assegure prerrogativas de Direito Público além daquelas expressamente previstas na Constituição Federal. Todavia, se a empresa estatal explora atividade em regime de concorrência com empresas privadas, em que elas disputam clientela ou mercado, a aplicação do disposto no art. 173 do texto constitucional impede a concessão de prerrogativas públicas, ressalvadas as que tenham sido previstas no próprio texto da Constituição.
Livro 1.indb 168
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
169
Tomemos o caso do Banco do Brasil. Trata-se de empresa estatal que explora atividade empresarial, tão somente. Não é prestadora de serviços públicos porque a titularidade dos serviços que presta, serviços financeiros, não é definida pela Constituição como serviço público. Trata-se de empresa estatal que não pode receber qualquer prerrogativa de Direito Público por dois motivos: 1. Não é prestadora de serviço público; e 2. Explora atividade empresarial em regime concorrencial. Consideremos, todavia, hipótese distinta. A situação de empresas públicas muni cipais criadas para prestar, em regime concorrencial, serviços públicos de transporte coletivo de passageiros (CF, art. 30, V). Poderia a lei, em função de se tratar de prestadora de serviço público, conferir a essa empresa estatal prerrogativas de Direito Público não extensível às empresas privadas que atuam no mesmo setor? A resposta, aqui, mais uma vez deve ser negativa. Não obstante haver, neste caso, a prestação de serviço público, o simples fato de haver concorrência entre essa empresa estatal e outras empresas privadas impede a concessão de prerrogativas à empresa estatal não extensíveis às demais empresas privadas — de que seria exemplo a isenção de Imposto sobre Serviços (ISS). A terceira hipótese é de empresa estatal que desempenha atividade em regime não concorrencial com empresas privadas. Vê-se que nesta terceira hipótese a atividade desempenhada pode ser considerada serviço público ou não. Tomemos o exemplo de empresa pública existente no Distrito Federal cujo objeto consiste na Administração de imóveis pertencentes ao próprio Distrito Federal, a Companhia Imobiliária do Distrito Federal (Terracap). Não presta essa empresa serviços públicos. Não há, todavia, qualquer forma de competição entre ela e empresas privadas, de modo que eventuais benefícios de natureza pública, que o Distrito Federal queira, por lei, conferir a essa empresa estatal é absolutamente irrelevante ou indiferente ao setor privado — por exemplo, a concessão de isenção de IPTU. Nesta terceira situação, pode lei conferir prerrogativas públicas à empresa estatal, haja vista não ser aplicável o disposto no art. 173 da Constituição Federal. Esse dispositivo constitucional (art. 173) também não se aplica, é evidente, às situações em que o poder público atue em regime de monopólio (art. 177), por razões óbvias e que se incluem na terceira hipótese acima apresentada. Não queremos afirmar que o fato de empresa estatal prestar serviço público seja irrelevante ou que não possa produzir efeitos jurídicos diversos. Se se trata de uma empresa estatal que preste serviço público, isto importará, por exemplo, em que a sua responsabilidade civil pelos atos praticados por seus agentes que causem prejuízos aos usuários dos serviços será objetiva. O mesmo, todavia, ocorre caso o serviço público seja prestado por empresa privada — é a hipótese de serviços públicos prestados por empresas privadas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos, que também assumem responsabilidade civil objetiva. Vê-se, em conclusão, que mais importante do que examinar se a empresa estatal explora atividade empresarial ou presta serviço público — distinção que vimos ser irrelevante para os fins que aqui examinamos — é buscar a existência de competição entre a empresa estatal e o setor privado. Se houver essa competição, o regime jurídico da empresa estatal deve ser idêntico àquele adotado pelas empresas privadas, ressalvadas as hipóteses constitucionalmente previstas. Se não houver competição entre a empresa estatal e o setor privado, poderão ser concedidos, por lei, benefícios de Direito Público às empresas estatais.
Livro 1.indb 169
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
170
Esse entendimento, infelizmente, não foi adotado pelo STF. Ao julgar o RE nº 220.906, já mencionado, o fundamento utilizado pelo relator do acórdão que concluiu pela constitucionalidade, e consequente recepção do Decreto-Lei nº 509/69 que reconhecia à ECT a impenhorabilidade de bens, foi o fato de que essa empresa pública federal presta serviços públicos: Vê-se, pois, que a legitimidade da participação do Estado na economia se fundamenta em três conceitos fundamentais: segurança nacional, serviço público econômico e interesse público. 13. A Constituição Federal, em seu artigo 173, cuida da exploração direta de atividade econômica pelo Estado. A respeito da matéria escreveu o constitucionalista CELSO RIBEIRO BASTOS que “por tais atividades deve entender-se toda função voltada à produção de bens e serviços, que possam ser vendidos no mercado, ressalvada aquela porção das referidas atividades que a própria Constituição já reservou como próprias do Estado, por tê-las definido como serviço público nos termos dos incisos XI e XII do artigo 21 do Texto Constitucional. Ou então quando forem reservadas a título de monopólio da União (CF, art. 177). Tal circunstância é que justifica a inserção da cláusula ‘ressalvados os casos previstos nesta Constituição’” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º v, p. 75). 14. Assim, a exploração de atividade econômica pela ECT – Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos não importa sujeição ao regime jurídico das empresas privadas, pois sua participação neste cenário está ressalvada pela primeira parte do artigo 173 da Constituição Federal (“Ressalvados os casos previstos nesta Constituição...”), por se tratar de serviço público mantido pela União Federal, pois seu orçamento, elaborado de acordo com as diretrizes fixadas pela Lei nº 4.320/64 e com as normas estabelecidas pela Lei nº 9.473/97 (Lei de Diretrizes Orçamentárias), é previamente aprovado pelo Ministério do Planejamento e Orçamento – Secretaria de Coordenação e Controle das Empresas Estatais, sendo sua receita constituída de subsídio do Tesouro Nacional, conforme extrato do Diário Oficial da União acostado à contracapa destes autos. Logo, são impenhoráveis seus bens por pertencerem à entidade estatal mantenedora. Ante o exposto, tenho como recepcionado o Decreto-Lei nº 509/69, que estendeu à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos os privilégios conferidos à Fazenda Pública, dentre eles o da impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, devendo a execução fazer-se mediante precatório, sob pena de vulneração ao disposto no artigo 100 da Constituição de 1988. (STF. RE nº 220.906-DF, Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julg. 16.11.2000. DJ, 14 nov. 2002)
Com a devida vênia, a expressão contida na parte inicial do caput do art. 173 da Constituição Federal — ressalvados os casos previstos nesta Constituição — não diz respeito a situações em que a exploração direta de atividade empresarial pelo Estado não se submete ao Direito Privado. Sempre que o Estado explorar atividade empresarial em regime concorrencial, deve submeter-se ao Direito Privado, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Constituição. Vê-se que a ressalva diz respeito a situações em que o próprio texto constitucional afasta o Direito Privado e impõe a aplicação de regra de Direito Público — o que ocorre quando a Constituição determina a realização de concurso público (art. 37, II), a observância de princípios da Administração Pública (art. 37, caput), a vedação da acumulação de cargos, empregos ou funções públicos (art. 37, XVI e XVII) etc. A interpretação adotada pelo STF — que acreditamos será corrigida — permite o surgimento de situações em que o Estado intervenha em determinadas atividades em regime de concorrência com empresas privadas, assegure a si próprio prerrogativas ou vantagens comparativas e acabe por tornar a competição inviável, afastando as empresas privadas do setor. Essa possibilidade parece-nos incompatível com a vontade da Constituição Federal que confere ao Estado papel subsidiário no atendimento das
Livro 1.indb 170
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
171
necessidades da população. O regime constitucional adotado pela Constituição de 1988 dispõe que a República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos “a livre iniciativa” (art. 1º, IV) e, ao dispor sobre a ordem econômica (art. 170), estabelece que ela se fundamenta “na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa” e tem como um de seus fundamentos a livre concorrência (art. 170, IV). Propomos a adoção de concepção de um novo modelo de Estado, que denominamos de cooperativo. O raciocínio adotado pelo STF no julgamento do citado recurso extraordinário seria compreensível na época em que ele foi editado, em pleno regime militar, em que o modelo de intervenção direta do Estado na economia era visto pelo regime como a única solução para o desenvolvimento do Brasil. Nos atuais, com os fundamentos constitucionais adotados pela Constituição de 1988, impõe-se a adoção de nova visão do Estado, da sociedade e da economia.
4.3.4.3 Empresas estatais e regime jurídico de seus empregados Nas empresas privadas, os empregados não costumam propor reclamações trabalhistas contra seus empregadores. Normalmente o fazem contra seus ex-empregadores, e caso o façam contra seus empregadores, terão grande chance de se tornarem ex-empregados. Caso o empregado de empresa estatal proponha reclamação trabalhista contra seu empregador, poderia este sob este motivo, ou mesmo imotivadamente, demiti-lo, ainda que lhe pague todas as indenizações relativas à sua demissão sem justa causa? A necessidade de observância dos princípios da moralidade, da impessoalidade e da motivação, a necessidade de que todos os atos da Administração Pública tenham de ser justificados à luz da realização do interesse público tornam irremediavelmente nulo o citado ato de demissão. O regime jurídico dos empregados das empresas estatais que exploram atividades empresariais é o Direito do Trabalho (CF, art. 173). Isto não afasta, todavia, a aplicação das regras e, principalmente, dos princípios do Direito Público. A demissão de empregado de empresa estatal deve ser sempre motivada, e se o fundamento para a demissão for comportamento ou conduta desabonadora, deve ser-lhe assegurado o contraditório. Ao contrário, consideremos, por exemplo, situação em que o Banco do Brasil decida fechar agências deficitárias ou com reduzido movimento de clientes e, para tanto, vê-se obrigado a demitir empregados. Desde que a demissão seja motivada, que haja o pagamento dos direitos trabalhistas, e que sejam observados critérios de impessoalidade, parece-nos que o ato de demissão seria legítimo, independentemente de contraditório, posto que não se atribui ao empregado demitido qualquer conduta contra a qual ele deva ou possa se defender. Outro aspecto relacionado ao regime jurídico dos empregados das empresas estatais exploradoras de atividades empresariais ou prestadoras de serviços públicos diz respeito à necessidade de prévio concurso público de provas ou de provas e títulos (CF, art. 37, II). Neste ponto preocupa-nos o fato de que algumas empresas estatais têm publicado editais de “seleção pública” de empregados, e não de concurso público. A rigor, o nome que se dá ao certame é o que menos importa. Desde que sejam observados critérios de ampla publicidade, de impessoalidade, de moralidade, que haja classificação a partir da aplicação de provas ou de provas e títulos, pouco interessa se é feita seleção
Livro 1.indb 171
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
172
pública ou concurso público. Por detrás dessa terminologia o que efetivamente causa preocupação é a existência de intenções não necessariamente legítimas. É de se observar que a única nulidade que decorre direta e expressamente da Constituição Federal está relacionada à não realização de concurso público (art. 37, §2º). Em relação aos dirigentes das empresas, a primeira observação a ser feita é a de que eles não são empregados. A eles, ou a qualquer outro dirigente de empresa privada, não se aplicam as regras da CLT. A relação entre o diretor de uma sociedade anônima e a própria sociedade anônima é de Direito Privado, disciplinada diretamente pelas regras da Lei nº 6.404, de 1976, que cuida das sociedades anônimas. Alguns poderiam ser inadvertidamente levados a crer que esses dirigentes ocupariam cargos em comissão ou, mais absurdo ainda, empregos em comissão — figura absurdamente estranha ao nosso Direito Constitucional. Em uma empresa estatal que explore atividade empresarial, todos são empregados, exceto os dirigentes. Todos, portanto, precisam se submeter a prévia aprovação em concurso público, à exceção dos presidentes, diretores e membros dos conselhos de administração e fiscal, que se sujeitam integralmente às regras do Direito Privado e podem ser nomeados ou afastados a qualquer tempo de suas atribuições, nos termos da Lei nº 6.404/76. Em algumas empresas estatais têm sido criados cargos de nível inferior ao de diretoria — em nível de gerência — de livre nomeação. Esta prática não se coaduna com a regra constitucional do concurso público. A rigor, não pode haver cargo em comissão em empresa estatal que adote o regime da CLT. O cargo em comissão é de natureza eminentemente administrativa e, em função do que dispõe a Constituição Federal (art. 173, §1º, II), o regime jurídico a ser observado pelas estatais exploradoras de atividades empresariais é o próprio das empresas privadas. Em relação ao emprego em comissão, a absoluta falta de previsão constitucional impede a adoção desse regime. Desse modo, ressalvados os dirigentes — que são o presidente, diretores e membros dos conselhos de administração e fiscal —, que se regem pelas normas de Direito Comercial, em especial pela Lei nº 6.404/76, todos os que trabalhem em empresas estatais que explorem atividades empresariais são empregados e se sujeitam à necessidade de prévia aprovação em concurso público. É de se observar, todavia, que se a empresa estatal for prestadora de serviço público, não se lhe será aplicável o art. 173 da Constituição Federal, sendo permitido que lei adote, inclusive para o seu pessoal, regras de Direito Público.
4.3.4.4 Empresas estatais e regime jurídico de licitações e contratações Talvez em nenhum outro aspecto o regime jurídico das empresas estatais suscite tantas indagações e dúvidas quanto em relação ao que ora enfrentaremos. A razão de tantos questionamentos está no fato de que deveria ter sido editada lei que, nos termos do art. 173 da Constituição Federal, viria a disciplinar o estatuto jurídico das empresas estatais exploradoras de atividades empresariais, lei que, até o presente momento, não foi editada. A Constituição Federal, em seu art. 22, XXVII, confere à União competência privativa para aprovar duas leis distintas, contendo, ambas, normas gerais em matéria de licitação e contratação. A primeira dessas leis, que deve observar o que dispõe o art. 37, XXI, do texto constitucional, serve para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e
Livro 1.indb 172
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
173
fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Cabe à Lei nº 8.666/93 essa primeira função. A segunda, a ser utilizada pelas empresas estatais, iria observar o disposto no art. 173, §1º, III; lei, como afirmado, de que até o momento não se têm notícias. Diante da omissão legislativa, a conclusão evidente é de que a Lei nº 8.666/93 deve ser utilizada por todas as entidades da Administração Pública, e que qualquer tentativa de fugir a esta regra importa em violação de regras constitucionais e legais. O intuito da Constituição Federal é evidente: as empresas estatais, em especial as que exploram atividades empresariais necessitam de um regime jurídico de contratação mais flexível, mais ágil do que aquele utilizado pelas entidades autárquicas ou mesmo pelas entidades políticas. É evidente que a Petrobras não pode, no exercício de sua atividade fim, empresarial, se submeter ao mesmo regime do qual se utiliza a administração do STF para comprar veículos. Diante dessa realidade, a jurisprudência do Tribunal de Contas da União firmou entendimento de que no exercício de suas atividades fins, as empresas estatais estão sujeitas ao regime jurídico do Direito Privado. Esta solução lhes desobriga de observar os procedimentos ou formalidades da Lei nº 8.666/93, mas não de serem fiscalizadas e de terem de justificar as soluções adotadas em função de princípios constitucionais, em especial o da eficiência. Quando, por exemplo, o Banco do Brasil contrata a construção de um prédio, o que não se inclui em seus fins, deve licitar a partir dos parâmetros da Lei nº 8.666/93; quando o Banco do Brasil realiza atividade financeira, o regime jurídico aplicável é o Direito Privado — o que não afasta, todavia, a necessidade de serem observados os princípios constitucionais de moralidade, impessoalidade, publicidade etc. Buscou-se, no presente caso, encontrar solução intermediária de aplicação equilibrada de preceitos constitucionais que, aparentemente, estariam em colisão. A solução encontrada impõe às empresas estatais exploradoras de atividades empresariais a observância dos princípios constitucionais previstos no art. 37, pertinentes à aplicação de regras e princípios do Direito Público, princípios que devem ser observados, inclusive, quando essas empresas estiverem no exercício de suas atividades empresariais.27 Assegurou-lhes, todavia, a liberdade de contratação com base no Direito Privado, liberando-as do dever de observarem a Lei nº 8.666/93 quando celebrarem contratos diretamente ligados às O Tribunal de Contas da União, examinando representação contra irregularidades ocorridas no Banco do Brasil S/A relativamente a atos de gestão inseridos na atividade finalística do banco praticados de forma contrária aos princípios constitucionais e legais da moralidade e publicidade administrativa, firmou entendimento de que o controle do TCU não conflita com o controle exercido pelo Banco Central e pela CVM. Nesse sentido o Voto condutor do Acórdão, prolatado nos seguintes termos: “35. Em que pese o fato de o art. 173, §1º, da Constituição Federal poder causar certa impressão contrária ao acenar com o regime jurídico de direito privado às sociedades de economia mista, na verdade tal parágrafo deve ser interpretado em conjunto com os demais dispositivos constitucionais, em especial com o art. 37. As empresas estatais nunca estarão submetidas a um regime puramente de direito privado. O regime delas sempre será misto, com forte influência do direito público. (...) 39. Ademais, e uma vez que a fiscalização do Banco Central é específica para assuntos correlacionados com o Sistema Financeiro Nacional, conforme Lei nº 4.565/64 e Resolução Bacen nº 1.065/85, enquanto a da Comissão de Valores Mobiliários volta-se para o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários, especialmente com vistas à proteção dos direitos dos acionistas minoritários, na forma da Lei nº 6.385/76, a exclusão do Controle Externo redundaria na desertificação do controle das ações administrativas do Banco do Brasil. (...) 44. Na inspeção a que procedeu a 2ª Secex com vistas a sanear o presente processo foram verificados atos que têm repercussão direta no fechamento do balanço do Conglomerado Banco do Brasil e afetam a apuração do lucro e o patrimônio líquido daquela instituição, estando, portando, inseridos na competência deste TCU de realizar fiscalização contábil, financeira, operacional e patrimonial de entidade da administração indireta prevista nos arts. 70 e 71, inciso IV, da Constituição Federal” (Representação no TC-006.542/2003-0. Acórdão nº 399/04, Plenário. Rel. Min. Benjamin Zymler. Sessão de 7.4.2004. Ata n. 11/04. DOU, 20 abr. 2004).
27
Livro 1.indb 173
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
174
suas atividades empresariais, fundamentado no art. 173, que determina a aplicação de normas de Direito Privado às empresas estatais.28 Em matéria de licitação, a questão pode ser apresentada, portanto, nos seguintes termos: 1. Todas as empresas estatais estão obrigadas a licitar; 2. O procedimento da licitação deve observar o que dispõe a Lei nº 8.666/93; 3. As empresas estatais que explorem atividades empresariais, somente quando celebrarem contratos diretamente relacionados ao exercício de atividade fim, estão desobrigadas de observarem a Lei nº 8.666/93, devendo, no entanto, seguir os princípios constitucionais de impessoalidade, moralidade, eficiência etc. Impõe-se às empresas estatais, observada a ressalva acima, o cumprimento dos preceitos da Lei nº 8.666/93, tanto em relação às suas licitações quanto em relação aos contratos que celebrem.29 Em relação aos contratos firmados com base na Lei nº 8.666/93, há ainda importante aspecto a ser considerado. O art. 58 da citada Lei de Licitações dispõe que os contratos administrativos caracterizam-se pela presença de determinadas cláusulas que asseguram à Administração contratante uma série de prerrogativas, dentre elas a de modificar unilateralmente os contratos, de rescindi-los unilateralmente, de aplicar sanções ao contratado etc. As prerrogativas da Lei nº 8.666/93 relativas à Administração contratante não se esgotam no mencionado art. 58. Dispõe ainda a Administração Pública do poder de anular seus contratos (art. 59), de exigir que o contratado mantenha a execução do contrato ainda que ocorra atraso de até 90 dias (art. 78, XV). Essas prerrogativas ou potestades materializam-se em cláusulas denominadas exorbitantes, que recebem este nome pelo simples fato de que extrapolam o Direito comum e conferem prerrogativas públicas a uma das partes do contrato, no caso, a Administração contratante. A questão que aqui se coloca é a de saber se as empresas estatais, que são pessoas jurídicas de Direito Privado, podem se beneficiar de prerrogativas do Direito Público. Parece-nos que não. Isto não importa em afastar a Lei nº 8.666/93, mas tão somente em impedir que uma empresa estatal, em especial as que exploram atividades empresariais e que, no exercício dessas atividades estão submetidas ao Direito Privado, possam se beneficiar de potestades típicas do Direito Público. Caso a Petrobras ou o Banco do Brasil celebrem contratos
A esse respeito cumpre ainda lembrar o teor da Súmula TCU nº 61: “O controle externo exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União, bem como o controle interno exercido pelos órgãos competentes do Sistema de Administração Financeira, Contabilidade e Auditoria, têm objetivos distintos da fiscalização a cargo do Banco Central do Brasil, sobre as instituições financeiras públicas que se situem na órbita da Administração Federal”. 29 Quanto à polêmica discussão acerca da obrigatoriedade ou não de a Petrobras se submeter à Lei n.º 8.666/1993 nas suas contratações, a posição do TCU é firme no sentido de que a estatal deve se submeter, sim, aos ditames daquela lei, pelo menos até que o Congresso Nacional edite a lei a que se refere o artigo 173, §1º, da Constituição, ou até que Supremo Tribunal Federal decida sobre a constitucionalidade do artigo 67 da Lei nº 9.478/1997 e, consequentemente, de sua regulamentação, mediante o Decreto nº 2.745/1998 (o qual prevê regime simplificado de contratação para a Petrobras). A questão voltou a ser discutida recentemente no âmbito do TCU, nos autos do TC 009.364/2009-9, tendo a Corte de Contas reafirmado seu entendimento “quanto à inconstitucionalidade do Decreto nº 2.745/1995, utilizado pela Petrobras como parâmetro na realização de suas licitações, em detrimento da Lei nº 8.666/1993, enquanto o STF não decidir o mérito da matéria” (excerto extraído do voto condutor ao Acórdão nº 2.811/2012, Plenário). Esclareça-se que existem, no STF, 19 mandados de segurança impetrados pela Petrobras, todos com liminares deferidas, para suspender decisões do TCU que exigiram da empresa o cumprimento da Lei nº 8.666/93. 28
Livro 1.indb 174
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
175
com seus fornecedores que, posteriormente, venham a reputar ilegais, podem abrir processos administrativos e declararem estes contratos nulos? A resposta mais uma vez deve ser negativa. Devem essas empresas buscar o Poder Judiciário competente para declarar a nulidade de atos que pratiquem ou de contratos que celebrem. Quer se trate de contrato celebrado com fundamento na Lei nº 8.666/93, quer se trate de contrato de Direito Privado, o fato de que todas as empresas estatais são pessoas privadas impede-lhes o exercício de potestades típicas das pessoas de Direito Público. O exame mais cuidadoso da decisão proferida pelo STF no julgamento do RE nº 220.906 leva à conclusão de que uma empresa estatal somente pode exercer prerrogativa de Direito Público se: 1. Se tratar de prestadora de serviço público; e 2. Houver lei que lhe tenha expressamente conferido determinada prerrogativa. Tomemos o exemplo de empresa pública estadual distribuidora de energia elétrica, que é prestadora de serviço público. Se a lei que a criou não lhe tiver conferido competência para anular seus contratos, para modificar ou rescindi-los unilateralmente, ou para exercer qualquer outra prerrogativa que extrapole o Direito comum, ela não poderá valer-se da Lei nº 8.666/93 para exercer essa potestade. Em conclusão, a Lei nº 8.666/93, que dispõe sobre licitação e contratos administrativos, deve, como regra, ser utilizada pelas empresas estatais. Caso se trate de empresa estatal exploradora de atividade empresarial, não há necessidade de serem observados os procedimentos relativos à licitação, devendo a empresa estatal se pautar pelo Direito Privado e, em especial, pelos princípios da Administração Pública. Em qualquer caso, trate-se ou não de exploração de atividade empresarial, não podem as empresas estatais se utilizar das cláusulas exorbitantes que a Lei nº 8.666/93 assegura à Administração contratante, salvo se lei especial lhe tiver conferido essa prerrogativa. O exercício de prerrogativas públicas por parte das pessoas de Direito Privado, o que compreende as empresas estatais, deve ser admitido somente em caráter excepcional, em situações que envolvam a prestação de serviços públicos. Não podem essas prerrogativas ser utilizadas em situações de regime concorrencial, haja vista a Constituição Federal vedar tratamento jurídico diferenciado que resulte em detrimento das entidades empresariais privadas.
4.3.4.5 Falência de empresas estatais A presente questão poderia ser simplificada pela simples apresentação da Lei nº 11.101/05, que dispõe sobre falência e sobre os processos de recuperação de empresas e que expressamente exclui as empresas públicas e as sociedades de economia mista de seu âmbito de incidência (art. 2º, II). O tema, todavia, torna-se um pouco mais complexo em função de envolver dispositivos de estatura constitucional, no caso o art. 173, §1º, II, que determina que as empresas estatais que explorem atividades empresariais devem-se sujeitar ao regime jurídico das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações mercantis. Celso Antônio Bandeira de Mello expressamente defende a inconstitucionalidade de qualquer dispositivo legal que impeça a decretação de falência de estatal exploradora de atividade empresarial.30
30
Livro 1.indb 175
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 191.
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
176
A questão parece-nos — máxima vênia — ainda mais complexa. Em primeiro lugar, a falência não é, como apresenta o ilustre autor, uma obrigação mercantil. Trata-se de processo de execução coletiva contra devedor insolvente. O argumento de que o regime jurídico relativo às obrigações das empresas privadas deve ser aplicado às empresas estatais não justifica a decretação da falência haja vista esta possuir natureza processual. Conforme ensinam os autores do Direito Comercial, a falência tem sido estudada no âmbito desta disciplina pelo fato de, originariamente, ser instituto privativo de comerciantes, e, atualmente, de empresários. As obrigações mercantis (ou comerciais) são de natureza privada, decorrem da aplicação dos contratos e das demais fontes de obrigações do Direito Comercial ou Civil, e nunca do Direito falimentar. A questão mais importante decorre do fato de que a criação da empresa estatal decorre de lei e somente se justifica “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo” (CF, art. 173, caput). Ora, se a criação de uma empresa estatal precisa ser justificada em função de circunstâncias de tão elevada magnitude, poderia um juiz, a fim de satisfazer direito de credor, declarar a falência e, portanto, a extinção dessa entidade? Caso o credor não obtenha a satisfação de seu crédito pelos meios convencionais de uma execução disciplinada pelo Código de Processo Civil, deve ser suscitada a responsabilidade subsidiária da entidade política a que a empresa estatal esteja vinculada. A responsabilização subsidiária das entidades políticas parece ser solução mais adequada do que a decretação da falência da estatal, tanto para o credor, quanto para a Administração Pública e para a própria população, que não se verá privada das atividades desempenhadas pela estatal. Nesse sentido, a regra contida na mencionada Lei nº 11.101/05 é perfeitamente constitucional. Se a criação da empresa estatal decorre de lei específica, que lhe autoriza a instituição, somente outra lei poderá determinar a sua extinção.
4.3.4.6 Controle de empresas estatais Um dos argumentos normalmente apresentados para justiçar a criação de qualquer entidade administrativa é o de que essa entidade irá dispor de maior autonomia e que essa maior liberdade lhe permitirá melhor realizar suas funções. Dentro da Administração Pública direta, a relação entre órgãos se estabelece a partir de critérios de hierarquia, que permitem ao que exerce esse poder dar ordens, rever decisões, sancionar o não cumprimento de ordens dadas etc. A percepção generalizada, e quase sempre verdadeira, é a de que a autonomia surgida pelo processo de descentralização, que mantém a entidade administrativa livre dos mecanismos do controle hierarquizado, permite o melhor desempenho de suas atribuições. Nesse sentido, as empresas estatais, à semelhança de todas as demais entidades da Administração indireta, dispõem de autonomia administrativa, financeira, gerencial etc. Criada uma entidade, o controle decorrente da relação de vinculação administrativa a ser exercido pela entidade política sobre a entidade administrativa se efetiva mediante a possibilidade de designação e de afastamento dos dirigentes da entidade administrativa. O primeiro controle a ser executado sobre as empresas estatais é, portanto, o controle político exercido diretamente pelas entidades políticas a que se vinculam.
Livro 1.indb 176
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
177
Caso a empresa estatal adote forma de sociedade anônima, de capital aberto, aplicar-se-ão os mecanismos determinados pelas normas pertinentes ao mercado de capital e sujeitar-se-á à fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Haja vista estarem sujeitas ao regime jurídico do Direito Privado, aplicam-se essas normas que exigirão publicação de demonstrações financeiras, contratação de auditorias independentes etc. A maior dúvida relativa ao controle das empresas estatais diz respeito à competência dos Tribunais de Contas. O texto da Constituição Federal, ao dispor sobre a competência do TCU, estabelece em seu art. 71, II, que esta compreenderá o julgamento das “contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da Administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo poder público federal, e as contas daqueles que derem causa que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público”. Não obstante o dispositivo fazer várias referências a entidades da Administração indireta ou a sociedades instituídas e mantidas pelo poder público, o STF ao julgar o Mandado de Segurança nº 23.627-DF, ao argumento de que os bens dessas entidades são privados, entendeu que o TCU não teria competência para “fiscalizar” as empresas estatais. Alguns erros podem ser identificados neste julgado. O primeiro está no fato de que a competência para julgar contas (CF, art. 71, II) não esgota a competência fiscalizatória do TCU. O mesmo texto constitucional, no art. 71, IV, confere competência ao TCU para realizar auditorias e inspeções de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial “nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II”. Assim, ainda que se entenda que não haja competência do TCU para julgar contas dos gestores das empresas estatais, é indiscutível a competência do TCU para fiscalizá-las. Em relação à própria competência do TCU para julgar contas dos gestores da empresa estatal, máxima vênia, algumas considerações rápidas podem ser apresentadas para demonstrar a necessidade de mudança na jurisprudência do STF. É certo que os bens pertencentes às empresas estatais, em especial às que exploram atividades empresariais, são bens privados — ainda que afetados a imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (CF, art. 173, caput). Todavia, a fim de constituir a empresa estatal, de lhe formar o patrimônio, houve a necessária transferência de bens públicos para compor o capital social dessas mesmas empresas estatais — apenas a título ilustrativo, basta lembrar que no ano de 1998 o capital social do Banco do Brasil foi aumentado em valores equivalentes a US$6 bilhões (seis bilhões de dólares norte-americanos) por meio da emissão de títulos do Tesouro Nacional. A pergunta a ser feita, então, é a seguinte: esse dinheiro público utilizado para compor, majoritariamente o capital social de uma sociedade de economia mista, ou exclusivamente o capital de uma empresa pública, acaso deixa de existir? Ele simplesmente desaparece? A resposta, evidentemente, é negativa. Sempre há dinheiro público no capital social das empresas estatais. É esse dinheiro, exclusiva ou majoritariamente público, que assegura às empresas estatais a sua própria natureza de entidade integrante da Administração Pública e, às entidades políticas, controle sobre as empresas estatais.
Livro 1.indb 177
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
178
Vê-se que, salvo por razões de puro voluntarismo político e sem qualquer respaldo de ordem jurídica, não existe razão para as empresas estatais não se sujeitarem à fiscalização do TCU, inclusive no que concerne ao dever de prestar contas.31 A particularidade a ser considerada no exercício desse controle é o regime jurídico dessas entidades, inclusive quanto ao fato de que algumas delas atuam em mercados extremamente competitivos. O instrumental de que se deve utilizar o TCU, ou mesmo o Poder Judiciário, quando examine os atos praticados pelos dirigentes de empresas estatais é o do Direito Privado. Deve-se dar maior consideração a aspectos de economicidade do que de pura e simples legalidade. Não que os gestores dessas empresas não tenham de observar, em especial, os princípios da Administração Pública; mas se deve ter em conta que algumas medidas a serem adotadas pelos gestores são atos mercantis e sob essa ótica deve ser a sua avaliação, de legitimidade ou de ilegitimidade. A tese da incompetência do TCU para fiscalizar empresas estatais foi — felizmente — revista pelo STF. No julgamento do MS nº 25.092-DF, o Plenário do STF definiu que “o Tribunal de Contas da União, por força do disposto no art. 71, II, da CF, tem competência para proceder à tomada de contas especial de administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos das entidades integrantes da administração indireta, não importando se prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica”, conforme artigo publicado no Informativo STF, n. 408.
4.3.4.7 Distinções entre empresa pública e sociedade de economia mista Até o presente momento, todas as observações feitas são aplicáveis indistintamente às duas espécies que compõem o gênero empresa estatal. Cumpre-nos, agora, estabelecer as devidas distinções entre a empresa pública e a sociedade de economia mista. A primeira e mais importante distinção diz respeito à formação do capital social. Nas empresas públicas, e é exatamente daí que surge seu nome, o capital é exclusivamente público. Este fato, de que o capital de uma empresa pública é totalmente público, na prática, faz com que quase todas as empresas públicas tenham um único sócio. O que caracteriza a empresa pública, todavia, não é a existência de um só sócio, mesmo porque existem empresas públicas com mais de um sócio. Apenas a título de exemplo podemos apresentar a Companhia Imobiliária do Distrito Federal (Terracap), cujo capital social se encontra dividido entre dois sócios: a União, que detém 49%, e o Distrito Federal, com participação majoritária de 51% no capital social da empresa, o que assegura ao Distrito Federal o controle e torna a citada empresa uma entidade administrativa integrante da Administração indireta do Distrito Federal. A fim de compor uma empresa pública é necessário que os sócios sejam, todos eles, pessoas de Direito Público. Caso uma pessoa de Direito Público e outra de Direito Privado se reúnam para criar nova empresa, esta não será empresa pública. Caso o controle pertença à pessoa de Direito Público, ela será uma sociedade de economia mista.
31
Em relação às contas, a Lei Orgânica do TCU, Lei nº 8.443/92, dispõe que podem ser instaurados processos de Tomada de Contas Especial (TCE) pelo próprio TCU ou pela entidade ou órgão da Administração sujeito à fiscalização do TCU.
Livro 1.indb 178
21/03/2013 17:13:47
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
179
As sociedades de economia mista pressupõem igualmente participação pública em seu capital, de modo a assegurar à entidade de Direito Público controle societário, mas se exige igualmente participação de particulares neste mesmo capital social. São, portanto, dois os requisitos para que exista uma sociedade de economia mista: 1. Controle societário pertencente a uma pessoa de Direito Público; 2. Participação de particulares no capital social da sociedade de economia mista. Curioso observar que os conceitos de controle societário e de participação majoritária no capital social não se confundem. Diante da possibilidade de existirem ações sem direito a voto, é possível que determinado sócio, que no caso seria a pessoa de Direito Público, não detenha a maioria do capital social mas seja o controlador, situação que pode ser constatada se esse sócio for capaz de eleger a maioria dos administradores da sociedade. Assim, no caso de uma sociedade de economia mista, o que se exige é que o controle societário pertença a uma pessoa de Direito Público, ainda que eventualmente essa pessoa de Direito Público não detenha a maioria das ações. Ainda em relação ao aspecto do capital social, é importante observar que a natu reza pública dos bens que formam o capital social da empresa pública, ou mesmo da sociedade de economia mista, não afeta a natureza dos bens da própria empresa pública, ou da sociedade de economia mista. Tomemos a Caixa Econômica Federal como exemplo de empresa pública federal. O seu capital é exclusivamente público e pertence à União. Os bens que pertencem à Caixa, que compõem o ativo da empresa, e que não se podem confundir com aqueles que foram utilizados pela União para realizar o capital social da própria Caixa, são bens privados e penhoráveis. Caso seja criada empresa pública com o propósito de prestar serviços públicos,32 diante da possibilidade de serem aplicáveis regras de Direito Público, pode a lei que a tenha criado determinar que seus bens sejam públicos e, portanto, impenhoráveis. O segundo critério a ser utilizado na distinção entre empresa pública e sociedade de economia mista diz respeito à forma de organização societária. Enquanto a empresa pública pode adotar qualquer forma de organização societária, inclusive a de sociedade anônima, a sociedade de economia mista deve obrigatoriamente adotar esta forma, de sociedade anônima (Decreto-Lei nº 200/67, art. 5º). Para melhor esclarecer essa distinção, podemos comparar a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil. A Caixa, que é empresa pública, é organizada conforme dispõem seus estatutos. Ela não se submete a qualquer forma específica de organização societária fixada em lei. O Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista, adota a forma obrigatória de sociedade anônima. O Banco do Brasil, no caso, submete-se às exigências da Lei nº 6.404/76 e deve ter o capital dividido em ações, manter conselho fiscal, diretoria, assembleia-geral de acionistas e todas as outras formas definidas pela citada lei. À semelhança do Banco do Brasil S/A, todas as demais sociedades de economia mista igualmente adotam a forma de companhia – Petróleo do Brasil S/A etc. O terceiro critério de distinção entre empresa pública e sociedade de economia mista somente é aplicável no plano federal. As empresas públicas federais gozam de foro privilegiado na Justiça Federal (CF, art. 109, I), ao passo que as sociedades de economia mista federais não possuem essa prerrogativa e são julgadas pela Justiça Comum dos
Vide comentários anteriormente apresentados referentes ao regime jurídico das empresas estatais e ao RE nº 220.906 do STF.
32
Livro 1.indb 179
21/03/2013 17:13:47
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
180
Estados. Assim, utilizando mais uma vez os exemplos da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil, a primeira, que é empresa pública federal, executa seus devedores na Justiça Federal; e o segundo, que é sociedade de economia mista federal, não possui qualquer foro especial e deve propor ação idêntica na Justiça Comum estadual.33 Conforme afirmado, esse critério de foro não se aplica às demais esferas de governo. Não há qualquer distinção de competência de foro em razão de se tratar de empresa pública ou de sociedade de economia mista estadual, distrital ou municipal.34
4.4 Paraestatais e terceiro setor 4.4.1 Entidades do terceiro setor e o Estado A fim de determinar o âmbito que buscamos alcançar quando utilizamos o termo paraestatal, devemos considerar que aqui nos referimos a entidades que não integram a Administração Pública direta ou indireta; colocam-se ao lado da Administração (e, como observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, do lado de fora da Administração) e desenvolvem atividades complementares àquelas afetas à Administração, e, em alguns casos, em efetiva substituição às atividades que deveriam ser desenvolvidas por entidades públicas. No âmbito do processo de reforma do Estado empreendido no Brasil durante a segunda metade da década de noventa, e diante da incapacidade do Estado de responder de modo satisfatório às novas demandas sociais, viu-se na redução do Estado e na transferência de atividades estatais para o setor privado a solução para a baixa eficiência e eficácia das atividades estatais. O Estado burocrático, como foi denominado pelos defensores dessas reformas gerenciais, mostrava-se grande, ineficiente e, portanto, incapaz de atender às expectativas e necessidades da sociedade. A solução evidente consistia em transferir para o setor privado empresarial as atividades até então desenvolvidas pelo Estado e que permitissem a sua exploração como atividades de risco — é aí onde se inclui o processo de desestatização, que compreende a simples alienação de ativos (privatização) e as concessões e permissões de serviços públicos — e para o setor privado não empresarial atividades que não pudessem ser exploradas como atividades de risco ou econômicas. Das concessões e permissões de serviço público nos ocuparemos em capítulo mais adiante. Por enquanto devemos examinar a relação surgida durante esse processo de reforma, e cuja tendência indica forte crescimento para o futuro, entre entidades de Direito Privado, sem fins lucrativos, e o Estado.
Deve o leitor atentar para as exceções à competência da Justiça Federal previstas no art. 109, I, da Constituição Federal. Assim, mantendo o mesmo exemplo de empresa pública federal de que temos nos servido, as ações em que a Caixa Econômica Federal for autora, ré, assistente ou oponente serão julgadas pela Justiça Federal, salvo as de “falência, as de acidente de trabalho, e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”. 34 No caso do Distrito Federal, verifica-se certa imperfeição legislativa que, todavia, não importa em tratamento diferenciado entre empresa pública e sociedade de economia do DF. Ocorre que a Lei de Organização Judiciária do DF confere competência às varas de Fazenda Pública para processar e julgar ações contra empresas públicas e sociedades de economia mista do DF. Trata-se, como afirmado, de imperfeição na medida em que empresas públicas e sociedades de economia mista, que são pessoas de Direito Privado, não integram o conceito de fazenda pública. Não obstante o erro, essa sistemática tem sido adotada pela Justiça do DF. Assim, ação contra o BRB, Banco de Brasília, que é sociedade de economia mista do DF, deve ser julgada pela Justiça comum do DF, em vara de Fazenda Pública. Ação contra o Banco do Brasil, que é sociedade de economia mista federal, referente a fato que em razão de critério territorial justifique a atuação da Justiça comum do DF, será julgada por vara cível da Justiça do DF. 33
Livro 1.indb 180
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
181
Nesse ponto, cumpre estabelecer distinção conceitual entre as entidades paraestatais e o denominado terceiro setor, que, desde já advertimos, não apresentam conceitos excludentes. O terceiro setor corresponde a entidades privadas, necessariamente surgidas no âmbito privado, porém sem fins lucrativos ou econômicos. O seu nome (terceiro) surge por exclusão: o primeiro setor é o estatal; o segundo setor, o privado empresarial. Em face de nosso vigente Código Civil, integram o terceiro setor as associações — que somente podem ser constituídas para fins “não econômicos” (Cód. Civil, art. 53, caput) — e as fundações — que somente podem ser constituídas para desenvolver fins “religiosos, morais, culturais ou de assistência”(Cód. Civil, art. 62, parágrafo único). Não incluímos nesse âmbito as cooperativas, ou como prefere o Código Civil (art. 1.053 et seq.), as sociedades cooperativas. Estas entidades, que têm em si escopo empresarial, existem para atender aos interesses privados de seus cooperados ou sócios. Ainda que o acesso ao trabalho seja um interesse coletivo e do Estado, não se pode confundir esse interesse geral do Estado de propiciar a todos os cidadãos o pleno acesso ao trabalho, com o interesse individual de cada cidadão de ter o seu trabalho e de ser dignamente remunerado, que é aquele buscado pelas cooperativas.35 As cooperativas se incluem nesta segunda categoria, daí por que não podem ser consideradas integrantes do terceiro setor. Mesmo que suas atividades possam ser coincidentes com a do Estado, de propiciar o acesso ao trabalho digno, o dever e interesse estatal é amplo e deve ser realizado de modo impessoal, ao passo que o objetivo das cooperativas é simplesmente atender ao interesse individual de cada cooperado. As entidades do terceiro setor não precisam manter qualquer vínculo com o poder público. Se mantiver, que seria, por exemplo, o caso de uma associação que se qualifica como organização social para receber repasse de recursos públicos, essa entidade do terceiro setor passa a ser considerada paraestatal — o que igualmente não a exclui do terceiro setor. Se uma entidade privada desenvolver atividade não econômica de interesse do Estado e, apesar disso, não mantiver qualquer vínculo com o Estado, ela seria uma entidade do terceiro setor, mas não uma paraestatal, qualificação que pressupõe a existência de algum vínculo com o poder público. São paraestatais: 1. Organizações sociais (OS); 2. Organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP); e 3. Serviços sociais autônomos (SSA).
4.4.2 Organizações sociais (OS) As organizações sociais encontram-se regidas pela Lei nº 9.637/98, que, além de dispor sobre a qualificação de entidades privadas como OS, criou o processo que se denominou de publicização. Acerca das denominadas cooperativas de mão de obra, muitas dúvidas têm sido suscitadas, e a Justiça do Trabalho, provocada pelo Ministério Público do Trabalho, tem adotado entendimento de que muitas cooperativas nada mais são do que instrumentos disfarçados de burla à legislação trabalhista. Em vez de o empregador contratar seu empregado e reconhecer-lhes todos os direitos trabalhistas, contrata-se com uma cooperativa, que nada mais faz do que intermediar mão de obra sem pagar a seus “sócios” qualquer direito trabalhista. Se o trabalho a ser exercido exigir pessoalidade, habitualidade e subordinação — requisitos de uma relação de emprego — a contratação de cooperativas para fornecer mão de obra deve ser repudiada e considerada ilegítima. No âmbito da Administração Pública, devem os editais de licitação para a contratação de serviços expressamente conter cláusulas que impeçam a participação de cooperativas caso o serviço a ser prestado exija pessoalidade, habitualidade e cria subordinação.
35
Livro 1.indb 181
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
182
O processo de publicização se insere no âmbito das reformas do Estado empreendidas ao longo da década de noventa. Nesse contexto, as atividades estatais que permitissem a sua exploração como atividade empresarial seriam transferidas aos particulares por meio da alienação de ativos e das concessões ou permissões de serviço público; as atividades estatais que não admitissem esse modus de exploração — como atividades “dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde” (Lei nº 9.637/98, art. 1º) — poderiam ser transferidas a particulares por meio do processo de publicização. Assim, ao invés de o poder público montar um hospital público ou um posto de saúde, poderia buscar no setor privado entidade privada sem fim lucrativo que atuasse nesse setor, a qualificaria como organização social e, por meio de um contrato de gestão,36 repassaria à entidade privada os recursos públicos necessários à prestação dos serviços à população. A ideia de utilizar entidades privadas na prestação de serviços de utilidade pública é boa. Todavia, a absoluta falta de critérios de impessoalidade para a escolha da entidade que irá receber os recursos públicos tem sido fonte de constante questionamento quanto à sua constitucionalidade. A rigor, há situações em que entidades privadas são criadas com o único propósito de receberem esses recursos, em evidente violação aos princípios da moralidade e da impessoalidade. A absoluta discricionariedade — que por ser absoluta se converte em arbitrariedade — na escolha da entidade privada a ser qualificada como OS, aliada à falta de transparência nas prestações de contas, que são encaminhadas à própria entidade ou órgão que repassa referidos recursos, têm comprometido todo o processo de publicização. Urge aprimorar a legislação de modo a desenvolver mecanismos impessoais de escolha da entidade que irá receber os recursos e a definir de modo mais claro e transparente o processo de prestação de contas. Quanto à prestação de contas, quando se tratar de recursos federais, o TCU deci diu que elas devem ser, após o exame do órgão repassador, repassadas ao Tribunal. A peculiaridade do exame dessas contas consiste em que o exame é feito apenas com base nos resultados alcançados pela OS. Como se trata de entidade privada não integrante da Administração Pública, a ela não se aplicam os deveres básicos de licitar ou de realizarem concurso público, por exemplo. Desse modo, são aspectos formais de legalidade a serem examinados nas prestações de contas; esse exame considera, antes, aspectos de resultados. O contrato de gestão a ser firmado com a OS deve fixar as metas a serem alcançadas pela entidade, e o julgamento das contas objetiva verificar em que medida essas metas foram realizadas. A Lei nº 9.637/98 explicita a sua intenção de extinguir determinadas entidades públicas — em especial fundações públicas —, de criar em seu lugar entidades privadas que não integrariam a Administração Pública, de transferir a atividade pública desempenhada pela entidade extinta para a nova entidade, de qualificar esta como OS e de mantê-la com recursos públicos transferidos por meio de contrato de gestão. Apesar de utilizar o mesmo nome, o contrato de gestão firmado com OS não tem qualquer relação com o acordo — igualmente denominado contrato de gestão — previsto no texto da Constituição Federal (art. 37, §8º) a ser firmado com órgão ou entidade pública com vista à ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira do órgão ou entidade. Desse modo, a Lei nº 9.637/98 em nada se aplica aos contratos de gestão firmados com órgãos ou entidades públicos cujo objetivo seja ampliar a autonomia destes. São situações totalmente distintas, reguladas por acordos com idêntico nome: o contrato de gestão, celebrado com fundamento no art. 37, §8º, da Constituição Federal, objetiva ampliar a autonomia de órgãos e entidades públicos; o contrato de gestão celebrado com fundamento na Lei nº 9.637/98, com organizações sociais, objetiva fixar metas de desempenho e repassar recursos públicos.
36
Livro 1.indb 182
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
183
Essa intenção parece-nos inconstitucional. Temos defendido (vide Capítulo 10) que o princípio da legalidade administrativa gera no âmbito a existência do princípio da reserva institucional, segundo o qual a Administração Pública somente está autorizada a criar as entidades expressamente mencionadas no texto constitucional (art. 37, XIX e XX). Duas conclusões decorrem desse preceito: 1. O Estado somente pode criar autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista (art. 37, XIX), bem como eventuais subsidiárias destas (art. 37, XX); e 2. O Estado não pode criar entidade que não seja integrante da Administração Pública indireta. Não pode o Estado, ainda que o queira fazer por meio de lei, criar associação, fundação privada (que não pode ser confundida com a fundação pública de Direito Privado) ou sociedade simples ou empresária fora do âmbito da Administração indireta. Ademais, a entidade a ser criada no âmbito da Administração indireta será uma daquelas mencionadas nos dispositivos constitucionais mencionados (CF, art. 37, XIX e XX).
4.4.3 Organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP) A segunda entidade paraestatal é a organização da sociedade civil de interesse público, regulada pela Lei nº 9.790/99. À semelhança do que se verifica com a lei das OS, além de exigir a ausência de fim lucrativo ou econômico, a Lei nº 9.790/99 requer que a entidade a ser qualificada como OSCIP tenha pelo menos uma das seguintes atividades: I - promoção da assistência social; II - promoção da cultura, defesa e conservação do patrimônio histórico e artístico; III - promoção gratuita da educação, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; IV - promoção gratuita da saúde, observando-se a forma complementar de participação das organizações de que trata esta Lei; V - promoção da segurança alimentar e nutricional; VI - defesa, preservação e conservação do meio ambiente e promoção do desenvolvimento sustentável; VII - promoção do voluntariado; VIII - promoção do desenvolvimento econômico e social e combate à pobreza; IX - experimentação, não lucrativa, de novos modelos sócio-produtivos e de sistemas alternativos de produção, comércio, emprego e crédito; X - promoção de direitos estabelecidos, construção de novos direitos e assessoria jurídica gratuita de interesse suplementar; XI - promoção da ética, da paz, da cidadania, dos direitos humanos, da democracia e de outros valores universais; XII - estudos e pesquisas, desenvolvimento de tecnologias alternativas, produção e divulgação de informações e conhecimentos técnicos e científicos que digam respeito às atividades mencionadas neste artigo. (art. 3º)
Verifica-se incrível semelhança entre a OS e a OSCIP. O simples exame das duas leis — que à exceção de pequenos detalhes formais como, por exemplo, o processo de habilitação da OSCIP, que tramita no Ministério da Justiça (art. 5º, da Lei nº 9.790/99) ou de que com a OSCIP não se celebra contrato de gestão, mas termo de parceria (art. 10
Livro 1.indb 183
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
184
da Lei nº 9.790/99) — não permite identificar a razão da existência desses dois modelos — de OS e de OSCIP. A prática tem revelado que a efetiva distinção se encontra no âmbito de alcance dos acordos firmados com essas entidades. O contrato de gestão firmado com a OS vincula a entidade em toda a sua atuação. Toda a atuação, toda a atividade, enfim, tudo o que a entidade com a qual se celebra o contrato de gestão faz ou deixa de fazer é definido neste instrumento, assim como a OS passa a depender integralmente dos recursos públicos que lhe serão repassados. No caso da OSCIP, o termo de parceria irá igualmente permitir o repasse de recursos públicos, mas apenas para a execução de determinados projetos ou programas. Em outras palavras, o contrato de gestão vincula a OS em todas as suas atuações; o termo de parceria viabiliza o repasse de recursos públicos para projetos específicos, sem, todavia, comprometer a autonomia ou independência da OSCIP. O termo de parceria mostra-se muito próximo dos convênios. Distingue-se destes apenas pelo seu objeto. Nos convênios, o objeto é definido no tempo (construção de hospital, de quadra poliesportiva etc.), ao passo que nos termos de parceria o objeto é atividade de prazo indeterminado (a manutenção de reserva ambiental, o desenvolvimento de programa de inserção de jovens no mercado de trabalho), o que não importa, em absoluto, que os termos de parceria sejam firmados por prazo indeterminado. Essa distinção parece-nos, todavia, tão sutil que não há qualquer inconveniente de ser utilizado um no lugar do outro. De se notar apenas que se o instrumento utilizado for o convênio, o regime jurídico a ser observado é o Decreto nº 6.170/2007, regulamentado pela Portaria Interministerial nº 507/2011, ao passo que o termo de parceria se rege pela mencionada Lei nº 9.790/99. A crítica feita aos contratos de gestão, quanto à falta de transparência, imoralidade administrativa e falta de impessoalidade na escolha da entidade que irá receber recursos públicos, é do mesmo modo aplicável aos termos de parceria e aos convênios.37 Nos últimos anos, bilhões de reais em recursos públicos — e a tendência é de crescimento — têm sido repassados por meio desses três instrumentos a entidades privadas. Conforme observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, essa legislação deveria ser alterada “para imprimir ao instituto um mínimo de moralidade que se espera na Administração da res publica”.38 O primeiro passo é definir de modo mais objetivo e controlável a entidade que irá receber os recursos públicos, a fim de evitar escolhas políticas e totalmente dissociadas da capacidade técnica da entidade de executar o objeto do acordo. O segundo passo é disciplinar a própria execução dos recursos repassados a essas entidades, exigindo delas o mínimo de moralidade, transparência e impessoalidade na aplicação desses recursos. Não parece ser o caso de defender a escolha da entidade por meio de licitação regida pela Lei nº 8.666/93. Muito menos que a entidade privada se submeta, no momento de firmar os contratos necessários à execução do acordo, ao Especificamente quanto aos convênios, houve, no âmbito da Administração Pública federal, importante iniciativa para reduzir a subjetividade na seleção das entidades privadas para formação de parcerias. O Decreto nº 6.170/2007, acima já referido, impõe, consoante o art. 4º, a prévia realização de “chamamento público”, ao qual deverá ser dada publicidade, nos termos do respectivo §1º, e que estabelecerá “critérios objetivos visando à aferição da qualificação técnica e capacidade operacional do convenente para a gestão do convênio”, de acordo com o que determina o art. 5º do mesmo normativo. Não obstante essa evolução seja significativa, está restrita aos órgãos e entidades da Administração Pública federal e permanece sujeita à competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo. 38 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 421. 37
Livro 1.indb 184
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
185
dever de licitar. Mas apenas que haja um mínimo de objetividade e de motivação na escolha das entidades com as quais são celebrados convênios, termos de parceria ou contratos de gestão. Que se explicite, em razões de critérios técnicos e objetivos, por que determinada entidade privada foi escolhida para receber vultosos recursos públicos. Se não afasta, ao menos reduz clientelismos, nepotismos, favoritismos e tantos outros “ismos” tão conhecidos e nefastos a nossa sociedade.
4.4.4 Serviços sociais autônomos (SSA) A terceira categoria de entidade paraestatal compreende os serviços sociais autônomos, comumente denominados Sistema “S”. São exemplos de entidades integrantes do Sistema “S” o SESI, o SENAI, o SENAC, o SESC, o SEBRAE, dentre tantos outros. São pessoas de Direito Privado, sem fins econômicos, criadas por lei para desempenhar atividades assistenciais ou de ensino a determinadas categorias profissionais, e são mantidas com recursos públicos, normalmente arrecadados por meio de contribuições parafiscais. A maior particularidade dessas entidades reside no fato de que são criadas pelo Estado, mas não integram a Administração Pública direta ou indireta. Haja vista serem públicos os recursos que as mantêm, devem prestar contas ao TCU. Mas como não integram a Administração Pública, não se submetem à obrigatoriedade de realizarem concurso público.39 Em relação ao dever de licitar, algumas considerações devem ser feitas. Como não integram a Administração Pública, não se submetem às exigências da Lei nº 8.666/93; o TCU, todavia, tem obrigado referidas entidades a aprovarem regulamentos próprios que devem ser utilizados para disciplinar suas licitações e contratações. Não obstante estarem fora da Administração Pública, são essas entidades mantidas exclusiva ou eminentemente com recursos públicos. As empresas que atuam na área industrial, por exemplo, são obrigadas a recolher contribuições parafiscais em favor do SESI. Daí a necessidade de serem observadas por essas entidades condutas compatíveis com a realização dos princípios constitucionais de moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência etc.40 Faço referência a duas decisões do Tribunal de Contas da União em que a Corte, embora não imponha a realização de concurso público às entidades do Sistema “S”, exige que, nas admissões de pessoal, devam ser observados os princípios constitucionais constantes do art. 37, caput, da Constituição Federal, principalmente os da impessoalidade, moralidade, legalidade e publicidade. “Prestação de contas simplificada. Exercício de 2005. Contratação de pessoal sem observância aos princípios constitucionais previstos no art. 37, caput, da Constituição Federal. Irregularidade das contas, com aplicação de multa. Regularidade das contas dos demais. As contratações de pessoal realizadas pelas entidades do Sistema S devem ser precedidas de processo seletivo, observando-se os princípios constitucionais da publicidade, impessoalidade, moralidade, finalidade e igualdade” (Acórdão nº 588/2010, 1ª Câmara). “Representação. Possível prática de nepotismo. Conhecimento e procedência parcial. A contratação de parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até 3º grau para ocupar cargo no Senac fere os princípios constitucionais da moralidade, bem como o Regulamento e o Regimento Interno do Senac, sendo considerada prática de nepotismo” (Acórdão nº 5.620/2012, 1ª Câmara). 40 A exemplo do entendimento firmado pelo TCU acerca do tratamento dispensado às entidades do Sistema “S”, cite-se o Acórdão nº 2.562/2008, sumariado nos seguintes termos: “Representação. Processo seletivo instaurado por conselho regional de fiscalização do exercício profissional. Inobservância do disposto no art. 37, inciso II, da Constituição Federal. Determinações. A respeito dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, a farta jurisprudência desta Corte é no sentido de que tais entidades têm natureza autárquica sui generis; arrecadam e gerenciam recursos públicos de natureza parafiscal; sujeitam-se aos princípios constitucionais aplicáveis à Administração Pública; integram, por força constitucional e legal, o rol dos jurisdicionados deste Tribunal; 39
Livro 1.indb 185
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
186
O limbo jurídico em que se encontram essas entidades — que são privadas em sua personalidade e na sua gestão, mas públicas em sua criação e nos vultosos recursos que as mantêm — decorre do fato de que elas são incompatíveis com o ordenamento constitucional pelas razões a seguir indicadas.
4.4.5 Entidades do terceiro setor criadas pelo Estado Temos em reiterados trechos deste trabalho defendido a impossibilidade de o poder público criar entidade estranha à Administração Pública. Se o poder público quer desempenhar, diretamente, atividades assistenciais como as que desempenham os serviços sociais autônomos, deve criar fundações públicas. Se o poder público quer incentivar entidades privadas a desenvolver essas atividades, que firme termos de parceria, convênios, contratos de gestão ou qualquer instrumento de natureza pública e repasse os recursos públicos necessários. Todavia, o poder público criar entidade e querer que ela não integre a Administração Pública parece-nos incompatível com a própria razão de ser do Estado, além de ferir o texto constitucional. Ao longo do presente trabalho temos defendido a maior participação da sociedade civil — empresarial ou não — no desempenho das atividades do Estado. Esse maior intercâmbio, desde que se verifique a partir de parâmetros jurídicos bem definidos e sujeitos à fiscalização — apenas benefícios trará para a sociedade. O propósito aqui não é o de criticar as parcerias entre o setores público e o privado. Ao contrário, devem esses mecanismos ser ampliados e aperfeiçoados. Há atividades que, efetivamente, são mais bem desempenhadas quando a sua execução é transferida à gestão privada. Não negamos, ademais, em absoluto, a possibilidade de o poder público criar entidade de Direito Privado, desde que ela integre a Administração e se sujeite às normas constitucionais pertinentes — como é o caso das empresas públicas, sociedades de economia mista, e, eventualmente, de fundações públicas de Direito Privado. A rigor, a criação pública, por meio de lei, de entidades instrumentais estranhas à Administração do Estado está ligada a uma única verdade: busca-se fugir aos controles a que se sujeita a Administração Pública. Sob o argumento de que a gestão privada dos recursos públicos importa em solução mais efetiva, abrem-se as portas para todo tipo de malversação e abuso com os recursos públicos. Nessa mesma linha de argumentação, a ilustre professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro faz referência às entidades de apoio41 como entidades criadas por servidores públicos para a “prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da Administração direta ou indireta, em regra por meio de convênio”. A própria autora cita como exemplos de entidade de apoio as fundações de apoio que surgiram vinculadas às instituições de ensino superior. Mais uma vez, o propósito subjacente à criação dessas entidades de apoio não tem nada de digno. A verdade, mais uma vez, é uma só: foram criadas as (mal)ditas fundações de apoio — como entidades privadas, porém com fundos que lhes foram
estão obrigadas a realizar concurso público previamente à contratação de pessoal; e devem observar a licitação prévia para as obras, serviços, compras, alienações e locações” (Acórdão nº 2.562/2008, Plenário. Rel. Min. Substituto André Luis de Carvalho. Sessão de 12.11.2008). 41 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 416-418.
Livro 1.indb 186
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 4 ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
187
ilegalmente transferidos pelas próprias universidades federais — para intermediar as contratações das universidades, burlando a lei de licitação. Em vez de a universidade contratar diretamente determinado serviço, o que exigiria a devida licitação, ela contrata a sua fundação de apoio — com fundamento em dispensa de licitação (Lei nº 8.666/93, art. 24, XIII) e esta subcontrata livremente, sem que tenha de dar qualquer satisfação do que faz ou deixa de fazer. São igualmente utilizadas para burlar regras de concurso público: em vez deste, a universidade firma convênio com sua fundação de apoio para fornecimento de mão de obra. Não bastassem essas irregularidades, são ainda utilizadas essas entidades para violar regimes de dedicação exclusiva a que se submetem inúmeros professores. Vê-se que sob o pretexto de desenvolvimento de atividades de pesquisa, ensino ou de extensão universitária, muito se esconde. Enfim, as irregularidades que cercam essas entidades de apoio impedem a sua inclusão no rol das entidades paraestatais.
Livro 1.indb 187
21/03/2013 17:13:48
Livro 1.indb 188
21/03/2013 17:13:48
PARTE II
Atividade Administrativa
Livro 1.indb 189
21/03/2013 17:13:48
Livro 1.indb 190
21/03/2013 17:13:48
Capítulo 5
Ato administrativo
5.1 Atividade administrativa O Estado moderno, como atualmente o conhecemos, formou-se a partir das revoluções liberais. As suas funções básicas, conforme o modelo clássico da separação dos poderes, são as de julgar, de legislar e de administrar. Ainda que não se possa falar em um único, mas em vários modelos de separação de poderes, a existência de órgãos estatais responsáveis pelo exercício das três funções básicas é uma característica de todos os Estados modernos. Utilizamos esta expressão — Estado moderno — para designar aqueles constituídos como Estados Democráticos de Direito, sujeitos a regras jurídicas claras e previamente definidas e que adotam como elemento essencial de seu ordenamento a busca pela realização dos direitos fundamentais. A necessidade de a população obter bens e serviços se intensifica a cada dia em função do surgimento de novas tecnologias e dos novos cenários surgidos com o fenômeno da globalização. Impõe-se a discussão da importância do Estado e da sua função executiva. Nesse contexto, o que se percebe é a demanda crescente pela presença estatal, em razão do reconhecimento de que os mercados, por mais organizados ou avançados que sejam, jamais serão capazes de, sozinhos, atender a todas as demandas por bens e serviços essenciais à vida e à dignidade da pessoa humana. Independentemente do modelo político ou econômico vigente em cada país, se mais ou menos intervencionista, o Estado é sempre uma das instituições mais importantes — provavelmente a mais importante de todas. Nos Estados Unidos, país sempre mencionado como modelo de Estado mínimo ou não intervencionista, não há, nem nunca houve, entidade ou instituição privada comparável ao Estado, seja em termos de tamanho, de importância para a sociedade, de organização e, sobretudo, de volume de recursos financeiros geridos. Ainda que sua função seja dirigida a garantir o bom funcionamento das regras do livre mercado, o Estado assume cada vez maior importância para a sociedade. Nunca é demais lembrar que foram os Estados Unidos, no início do século XIX, que desenvolveram as regras básicas relacionadas ao Direito Econômico ou anti-trust. Cumpre-nos examinar a atividade administrativa, ou executiva, do Estado, o que nos levou a chamar a atenção do leitor, no início deste capítulo, para a importância do
Livro 1.indb 191
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
192
Estado, e em especial da Administração Pública, porque o ato administrativo constitui a forma básica da Administração do Estado se manifestar, de interferir na sociedade. É certo que as relações surgidas a partir da concepção de Estado cooperativo — desenvolvida nos capítulos 1 e 2 — requerem a criação de novos mecanismos estatais de atuação — convênios, termos de parceria, contratos de concessão etc. O ato administrativo continua a ser a forma básica do Estado atuar. As outras formas de manifestação estatal, que não sejam impostas unilateralmente pela Administração Pública, mas definidas consensualmente entre os particulares e o poder público, sempre dependem da prévia prática de inúmeros atos preparatórios, que têm natureza de atos administrativos. Feitas essas considerações iniciais acerca da importância do ato administrativo, passemos ao seu exame.
5.2 Considerações necessárias à conceituação dos atos administrativos 5.2.1 Ato legislativo, ato judicial e ato administrativo Nos capítulos iniciais deste trabalho, temos utilizado a expressão “ato administrativo” para nos referir a toda manifestação de vontade do Estado no exercício de sua função administrativa. No Capítulo 2, dividimos e apresentamos as três funções básicas do Estado e, em função de o ato ter sido praticado pelo Estado no exercício de uma ou de outra função típica, será ele reputado administrativo, legislativo ou judicial. Vimos também no Capítulo 2 que ato judicial é aquele praticado por órgão inserido no âmbito do Poder Judiciário e regido por normas de Direito Processual; ato legislativo é aquele praticado no âmbito do processo legislativo, ainda que quem o pratique não seja órgão legislativo. Neste sentido, desde a propositura do projeto de lei à sua sanção, promulgação e publicação, todos os atos que integram o processo legislativo são atos legislativos. Para identificar a função administrativa do Estado, temos seguido o critério residual: se os atos praticados não são legislativos ou judiciais, eles serão administrativos, ainda que praticados por órgãos inseridos no âmbito dos Poderes Legislativo e Judiciário. Assim, apresenta-se como perfeitamente lógico que o Senado Federal, ao publicar edital relativo à realização de concurso público, ou que o Supremo Tribunal Federal, ao adjudicar o objeto de determinada licitação em favor da empresa licitante vencedora do certame, praticam atos administrativos típicos.
5.2.2 Ato administrativo e fato administrativo O ato administrativo deve decorrer de uma manifestação de vontade do Estado. Fatos concretos, materiais, ainda que produzam efeitos no mundo jurídico e no âmbito da Administração Pública, não são atos administrativos. Historicamente, e sempre buscando soluções já sedimentadas no Direito Privado, o Direito Administrativo tem-se servido da clássica divisão civilista entre atos e fatos jurídicos e, a partir desses dois conceitos, tem construído os de ato administrativo e de fato administrativo. Essa distinção é relevante, dentre outros aspectos, porque a Administração Pública dispõe da faculdade de anular suas manifestações de vontade contrárias ao
Livro 1.indb 192
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
193
Direito e de revogar aquelas que se mostrem inconvenientes ou inoportunas. Ora, se a premissa para a anulação é a existência de manifestação de vontade ilegítima, e da revogação, de manifestação de vontade inconveniente ou inoportuna, e mais, se ciente de que determinados efeitos jurídicos foram produzidos no âmbito da Administração Pública independentemente de qualquer manifestação de vontade — o que se verifica em relação aos fatos jurídicos — estes se apresentam como imunes ao poder de revogação ou de anulação. Valendo-nos dos exemplos clássicos apresentados pela doutrina, a morte de um servidor público, por exemplo, não decorre de qualquer manifestação de vontade, mas pode gerar inúmeros efeitos jurídicos — direito de terceiro de receber pensão, vacância do cargo etc. Uma cirurgia realizada em um hospital público pode ser apresentada como outro exemplo de fato administrativo. Ela, a cirurgia, não é, em si, manifestação de vontade de coisa alguma. Trata-se de atos ou fatos concretos ou materiais produzidos em âmbito público, que podem gerar efeitos jurídicos para a Administração Pública, de que seria exemplo o direito do paciente de pedir indenização do Estado por eventual erro verificado durante o procedimento cirúrgico indicado.
5.2.3 Ato administrativo e ato de Direito Privado A doutrina pátria apresenta os atos da Administração como gênero do qual seriam espécies os atos administrativos e os atos de Direito Privado. A distinção acima apontada decorre do fato de que os primeiros, os atos administrativos, seriam regulados pelo Direito Administrativo e, portanto, seria a Administração Pública colocada em posição de supremacia em relação àqueles com quem se relaciona, ao passo que os atos de Direito Privado, como indica o próprio nome, seriam regulados por normas que asseguram aos agentes que se sujeitam a este regime igualdade de tratamento. São normalmente apresentados pela doutrina como exemplos de atos de Direito Privado praticados pela Administração Pública “a simples locação de uma casa para nela instalar-se uma repartição” (Celso Antônio Bandeira de Mello), “doação, permuta, compra e venda” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro). A primeira observação é no sentido de que os exemplos de atos de Direito Privado apresentados pelos ilustres mestres, e repetidos por vários outros consagrados autores nacionais, não são atos administrativos; trata-se de contratos. Vê-se, portanto, que utilizam a expressão ato de Direito Privado no sentido amplo que lhe atribui o Direito Civil, a partir do conceito de ato jurídico. A segunda observação a ser feita afeta a própria existência de referidos atos de Direito Privado praticados pela Administração Pública. Todos os exemplos mencionados de atos de Direito Privado são de contratos celebrados pela Administração Pública e que não se encontram regidos por normas de Direito Administrativo específicas ou próprias. É absolutamente lícito aos órgãos e entidades públicos praticarem atos não disciplinados especificamente pelo Direito Administrativo. Se para a realização de suas atribuições, determinado órgão público necessita locar imóvel, fazer seguro de veículos, fazer a permuta de imóvel etc. — desde que haja a necessária previsão orçamentária — é lícito a esse órgão utilizar-se do Direito Privado para disciplinar essas relações jurídicas.
Livro 1.indb 193
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
194
Ocorre, todavia, que a utilização das normas do Direito Privado nunca afasta as normas do Direito Público, nunca. Se não houver, e somente onde não houver norma de Direito Público, será lícito ao administrador público valer-se do Direito Privado. No caso dos mencionados contratos — apresentados como exemplos de atos de Direito Privado praticados pela Administração Pública —, a Lei nº 8.666/93, em seu art. 62, §3º, I, estabelece expressamente a aplicação, a estes contratos a serem regulados em seu conteúdo pelo Direito Privado, de normas de Direito Público e, dentre elas, expressamente menciona a aplicação a esses contratos das prerrogativas contidas nos artigos 58 e 59 da própria lei de licitações. O art. 58 permite que o poder público possa, dentre outras prerrogativas, modificar ou rescindir unilateralmente seus contratos e aplicar sanções ao contratado. O art. 59 autoriza que a Administração Pública anule seus contratos. Ora, se o que caracteriza o ato de Direito Privado praticado pela Administração Pública seria a não aplicação ou a não existência de prerrogativas por parte do poder público, e se os exemplos mencionados pelos renomados autores — contratos de locação, de permuta etc. — por expressa disposição legal admitem o exercício de inúmeras prerrogativas — e dentre elas as prerrogativas mais importantes — como anulação administrativa, a rescisão unilateral e a modificação contratual unilateral — ou esses contratos não podem ser apresentados como exemplos de atos de Direito Privado praticados pela Administração Pública, ou simplesmente não existem essas espécies de atos. O contrato de locação de imóvel em que o poder público é o locatário, apresentado por praticamente toda a doutrina pátria como exemplo de ato de Direito Privado praticado pela Administração Pública, pode ser anulado, rescindido ou modificado unilateralmente pelo poder público, observados os limites, procedimentos e condições fixados pela Lei nº 8.666/93. O mesmo vale para todos os demais contratos ou atos denominados de Direito Privado praticados pela Administração Pública. A verdade é que os atos praticados pelas entidades de Direito Público são sempre disciplinados, em alguma medida, por normas de Direito Público de aplicação inafastável. Nunca um particular estará em igualdade jurídica em face de pessoa de Direito Público. Ainda que esta última tenha ou possa socorrer-se do Direito Privado para regular situações especiais, o que tem ocorrido com frequência cada vez maior, a aplicação dessas normas verifica-se sempre em caráter suplementar em relação às de Direito Público, e sempre haverá normas de Direito Público a serem aplicadas com primazia sobre aquelas privadas, normas públicas que conferem ou reconhecem algum tipo de prerrogativa aos órgãos e entidades públicos. Não admitimos a existência de atos de Direito Privado praticados pelas pessoas de Direito Público ou por órgãos que integram a estrutura destas pessoas porque sempre há norma de Direito Público a ser aplicada, decorra essa norma de princípio constitucional ou diretamente de lei. Essas prerrogativas públicas, temos defendido reiteradamente ao longo deste trabalho, não são presumidas e jamais conferem poderes ilimitados aos entes públicos. Tem sido, todavia, uma constante em nosso ordenamento jurídico-administrativo a presença dessas normas públicas cuja aplicação, em muitos casos, decorre diretamente da Constituição Federal. Rejeitamos, desse modo, a possibilidade de pessoas jurídicas de Direito Público praticarem atos regidos inteiramente ou exclusivamente pelo Direito Privado.1 Essa No sentido de que mesmo quando a Administração celebra contrato sob regime jurídico predominantemente privado ela não se afasta da finalidade pública, Hely Lopes Meirelles afirma que “contrato administrativo é o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com particular ou outra entidade administrativa
1
Livro 1.indb 194
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
195
impossibilidade não decorre da condição da pessoa ser de Direito Público, mas do regime jurídico-administrativo vigente em nosso País. A forma como o Direito Administrativo disciplina o funcionamento e a atuação das pessoas de Direito Público, sejam elas pessoas políticas ou autárquicas, em todos os níveis de governo, resulta sempre na concessão de prerrogativas. Desse modo, quando repelimos a existência dos denominados atos de Direito Privado praticados pela Administração Pública não o fazemos em razão da impossibilidade dessas pessoas se servirem do Direito Privado — o que, reiteramos, tem sido um fato cada vez mais frequente em nosso País. Rejeitamos a apresentação desses atos de Direito Privado como sendo aqueles em que o poder público se equipara aos particulares. A sujeição inicial dessas entidades ao Direito Administrativo e a consequente criação de prerrogativas que lhes são conferidas impedem que elas atuem em igualdade de condições jurídicas com os particulares.
5.2.4 Empresas estatais e atos administrativos Questão distinta da que foi acima tratada consiste em saber se pessoas de Direito Privado, e aqui nos referimos especificamente às empresas estatais, podem praticar atos administrativos. A prática de ato administrativo pelas empresas estatais tem sido objeto de exame pela jurisprudência. O objetivo desse exame tem finalidade específica: verificar o cabimento de mandado de segurança contra atos dos dirigentes das empresas estatais. A conclusão a que tem chegado a jurisprudência é no sentido de que nas situações em que as empresas estatais sirvam-se do Direito Público e, nessa condição, pratiquem atos de autoridade, o ato será tido como administrativo e será admissível o mandado de segurança, caso ele viole direito líquido e certo.2 para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração. (...) A Administração pode realizar contratos sob normas predominantes do Direito Privado — e freqüentemente os realiza — em posição de igualdade com o particular contratante, como pode fazê-lo com supremacia do Poder Público. Em ambas as hipóteses haverá interesse e finalidade pública como pressupostos do contrato, mas no primeiro caso, o ajuste será de natureza semipública (contrato administrativo atípico, como já conceituou o extinto TRF), e somente no segundo haverá contrato administrativo típico. Daí a necessária distinção entre contrato semipúblico da Administração e contrato administrativo propriamente dito, como já o fez a lei (art. 62, §3º, I)” (Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 194-196). 2 STJ: “Recurso Especial – Mandado de Segurança contra ato de sociedade de economia mista – Cabimento – Licitação pública – Art. 37, XXI, da Constituição Federal – Lei n. 8.666/90 – Precedentes. As empresas de economia mista sujeitam-se a processo de licitação pública para aquisição de bens e contratação de obras e serviços de terceiros (art. 37, XXI, da Constituição Federal). Destarte, os atos administrativos que envolvem a promoção de licitação pública por empresa de economia mista são atos de autoridade, submetidos ao regime de Direito Público (Lei n. 8.666/93), passíveis de questionamento por mandado de segurança” (REsp nº 533.613-RS, 2ª Turma. Rel. Min. Franciulli Netto. Julg. 4.9.2003. DJ, 03 nov. 2003). STJ: “Processo Civil – Recurso Especial – Mandado de Segurança – Concurso público – Aprovado preterido em sua nomeação e posse e, posteriormente, anistiado – Omissão no cumprimento pelo dirigente de sociedade de economia mista – Banco de Brasília - BRB – Ato de autoridade e não de gestão – Legitimidade passiva ad causam reconhecida – Prejudicial afastada. 1 - O dirigente da Sociedade de Economia Mista submete-se, quando pratica atos típicos do Direito Público, aos princípios que vinculam toda a Administração, como a moralidade, legalidade, impessoalidade, etc. Logo, tais atos não podem ser classificados como meros atos de gestão, o que descaracterizaria a simbiose de sua personalidade jurídica. Sendo o Banco de Brasília – BRB um ente paraestatal e seu administrador nomeado, inclusive, pelo Poder Público, a impugnação do ato omissivo que não acatou a anistia homologada, a qual determinou a nomeação e posse do recorrente, aprovado em concurso público para o cargo de Economista, é passível de impugnação através do remédio constitucional do mandado de segurança. Inteligência do art. 1º, da Lei nº 1.533/51. 2 - Recurso conhecido e provido para, reformando in totum o v. acórdão de origem, rejeitar a preliminar que declarou incabível o mandado de segurança e determinar o retorno dos
Livro 1.indb 195
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
196
As empresas públicas e sociedades de economia mista se sujeitam a regime jurídico privado, sendo-lhes aplicável o Direito Administrativo somente nas hipóteses e situações expressamente previstas na Constituição Federal (Capítulo IV).3 Nestas hipóteses, de a empresa pública ou sociedade de economia mista servir-se, em face de disposição constitucional expressa, de norma de Direito Administrativo, o ato praticado reputa-se ato administrativo. Ressalvadas essas situações, em que por força da aplicação direta de disposição constitucional a empresa estatal se utilize do Direito Administrativo para regular algum aspecto de sua atividade, os atos praticados pelas empresas estatais são atos privados, regulados, portanto, pelo Direito Privado e insuscetíveis de serem enquadrados como atos administrativos. Como consequência dessa afirmação, tem-se que as empresas estatais não podem exercer qualquer poder de supremacia em relação aos particulares com que se relacionam, ressalvadas as situações definidas pela Constituição Federal. Em relação aos contratos por ela firmados, por exemplo, não podem as empresas estatais rescindi-los ou modificá-los unilateralmente. As prerrogativas dos contratos administrativos não alcançam as empresas estatais, o que não importa em que a Lei nº 8.666/93 não lhes seja aplicável. O art. 173, §1º, do texto constitucional estabelece que lei definirá o regime jurídico dessas empresas, dispondo, inclusive, sobre seu regime jurídico de licitação e contratação. Não tendo sido até o presente momento regulado este dispositivo constitucional, devem as empresas estatais observar as regras constantes do regime jurídico aplicável às demais entidades e órgãos da Administração Pública, no caso a Lei das Licitações. Não se lhes aplicam, todavia, as disposições que conferem prerrogativas ao poder público (Lei nº 8.666/93, artigos 57, 58, 79, I etc.), haja vista as empresas estatais serem pessoas de Direito Privado. Enquanto não for regulado o art. 173, §1º, da Constituição Federal, submetem-se as empresas estatais ao regime jurídico da Lei nº 8.666/93.
5.2.5 Ato administrativo e contrato administrativo Antes de prosseguirmos no enfrentamento da questão relativa aos elementos definidores do ato administrativo, temos que repisar e esclarecer que não se incluem no âmbito do conceito de ato administrativo aqueles praticados pelo Estado no exercício das funções judiciais ou legislativas, bem como aqueles fatos ou atos materiais, denominados de fatos administrativos, que não decorrem de manifestação de vontade do Estado. Nesse sentido, as manifestações ou declarações de vontade das pessoas de Direito Público, ou das pessoas de Direito Privado regidas pelo Direito Administrativo — de que seriam exemplos a licitação ou o concurso público —, podem ser consideradas atos administrativos. No que concerne especificamente à distinção entre ato administrativo e contrato administrativo, fazem-se necessárias as seguintes considerações. autos ao Tribunal de a quo, para que julgue o mérito da impetração” (REsp nº 413.818-DF, 5ª Turma. Rel. Min. Jorge Scartezzini. Julg. 27.5.2003. DJ, 23 jun. 2003). 3 A sujeição das empresas estatais ao regime jurídico privado não afasta a aplicação dos princípios gerais da Administração Pública. A necessidade de empresa pública ou de sociedade de economia mista observarem padrões de moralidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, razoabilidade, motivação ou de qualquer outro princípio não importa em reconhecer as mencionadas entidades prerrogativas públicas.
Livro 1.indb 196
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
197
No Direito Privado, o conceito de ato jurídico compreende tanto as manifestações unilaterais de vontade quanto os negócios jurídicos, nestes incluídos os contratos. Em outras palavras, no Direito Privado, o contrato é considerado ato jurídico. No Direito Administrativo, ao contrário, somente as manifestações unilaterais de vontade do poder público podem ser conceitualmente reconhecidas como atos administrativos. A restrição do conceito de ato administrativo às manifestações unilaterais da Administração Pública decorre de mera convenção histórica e doutrinária, convenção que não nos parece necessário modificar. Esclareça-se que alguns poucos efeitos concretos decorrem da exclusão dos contratos administrativos do âmbito dos atos administrativos, mas, na maior parte das vezes, essa distinção é de natureza meramente terminológica. Um contrato administrativo, por exemplo, por razões de interesse público pode ser “rescindido” unilateralmente pela Administração Pública (Lei nº 8.666/93, artigos 77, 78 e 79, I); ao passo que o ato administrativo, por razões de conveniência ou de oportunidade, e sempre em nome da realização do interesse público, poderá ser “revogado” pela Administração Pública (Lei nº 9.784, art. 52). As eventuais distinções derivadas da revogação do ato administrativo e da rescisão administrativa ou unilateral do contrato administrativo se encontram em pequenos detalhes decorrentes do fato de serem esses dois institutos (revogação do ato unilateral e rescisão do contrato) regidos por leis distintas e da terminologia adotada, tão somente.
5.2.6 Ato de governo Com a implantação do sistema de separação de poderes na França, definiu-se que os atos administrativos — entendidos estes, inicialmente, como qualquer manifestação ou atuação da Administração Pública — não estariam sujeitos à apreciação por parte do Poder Judiciário. Para exercer essa atribuição, foram criados, no âmbito da própria Administração, órgãos responsáveis pelo controle da legalidade desses atos. A competência para controlar os atos administrativos, de acordo com o modelo francês, havia sido conferida ao Conselho de Estado (arrêt Laffitte, de 1822) que, temeroso de que sua existência fosse questionada em função da queda de Napoleão, afirmou que determinados atos estariam fora do seu âmbito de competência e, portanto, isentos de controle, em função do seu elevado conteúdo político. As principais características desses atos de governo seriam: 1. O elevado nível de discricionariedade política; e 2. A competência decorrente diretamente da Constituição. Os atos ditos políticos ou de governo surgiram com propósito certo: escapar de qualquer mecanismo de controle administrativo ou judicial. Em função do princípio constitucional da inafastabilidade da apreciação judicial (CF, art. 5º, XXXV, que dispõe in verbis: “lei não excluirá da apreciação do Poder judiciá rio lesão ou ameaça a direito”), a existência desta categoria de atos se torna, em nosso regime jurídico, desprovida de sentido. Isto não impede, todavia, que a existência dos atos de governo seja um dos temas mais discutidos pela doutrina ao longo dos últimos dois séculos. Determinados atos praticados pelo Presidente da República, como o veto ou a apresentação de projeto de lei, ou a edição de medida provisória, normalmente apresentados como atos de governo em função de serem disciplinados diretamente pela
Livro 1.indb 197
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
198
Constituição Federal, sujeitos a elevado nível de interferência política em sua formação, são de difícil enquadramento. Esta dificuldade conduz à solução simplista de defini-los como categoria fora das três funções do Estado, solução que carece, máxima vênia, de fundamentação jurídica e, como visto, de sentido prático. O fato de esses atos serem regulados diretamente por normas constitucionais em nada impede a possibilidade de serem enquadrados como atos administrativos, legislativos ou mesmo judiciais. Conforme defendemos no Capítulo 1, o sistema de Direito Administrativo compreende a Teoria Geral do Direito Administrativo, cujas normas são de estatura constitucional. Desse modo, o fato de o ato ser regido por norma constitucional e não por meio de lei em nada o afasta, de per si, do Direito Administrativo ou da possibilidade de ele ser ato administrativo. A esse respeito, podemos considerar um dos exemplos apresentados por todos os autores que reconhecem o ato de governo como espécie autônoma, para atestar a inexistência desta categoria: a apresentação de projeto de lei pelo Presidente da República. Em relação a este ato, basta apenas verificar que o Supremo Tribunal Federal também dispõe de competência para a sua prática (CF, art. 93). O disciplinamento do projeto de lei encaminhado pelo STF ao Congresso Nacional em nada se distingue do regime jurídico que cuida da iniciativa do projeto de lei de competência do Presidente da República. É de se indagar: teríamos, então, que outros órgãos, além dos órgãos da cúpula do Poder Executivo, também praticariam atos de governo? Um órgão do Poder Judiciário também praticaria ato de governo? Entendo que não. O Governo — entendido como produto da vontade da população, como opção política ou critério para a fixação dos objetivos do Estado — atua por meio das diversas unidades que compõem a Administração Pública. Não existem órgãos de governo fora da Administração. Ao promover a indicação de pessoas ligadas ao programa político do Governo para chefiar essas unidades, o Governo interfere na Administração, mas atua por meio desta e dela não se afasta. De acordo com essa lógica, a Administração é o meio necessário para o Governo atuar ou praticar seus atos. Desse modo, os atos praticados pelo Estado são de natureza administrativa, legislativa ou judicial, não havendo razão para a criação de atos de natureza distinta destas três e imunes ao controle judicial. No Capítulo 2 deste trabalho, adotamos critério residual para definir a atividade administrativa do Estado: os atos que não possam ser enquadrados como legislativos ou judiciais são administrativos (ou atos da Administração Pública). É certo que não se pode confundir o conceito de governo com o de Administração. “A Administração é o instrumental de que dispõe o Estado para pôr em prática as opções políticas do governo”.4 O mesmo autor, nesta sua consagrada obra, defende que governo é atividade política e discricionária; Administração, atividade neutra. Governo, segundo o autor, é conduta independente; Administração é conduta hierarquizada. A distinção entre governo e Administração Pública não nos permite concluir que exista ato de governo como categoria própria, distinta dos atos administrativos, legislativos ou judiciais. Isto importa em reconhecer que o Governo não pode agir ou atuar por outros meios, à parte da Administração Pública. Admitir o contrário importaria em reconhecer a existência de órgãos de governo próprios, fora da estrutura da 4
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 61.
Livro 1.indb 198
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
199
Administração Pública, o que nos levaria à conclusão ilógica de que existiriam órgãos executivos, legislativos, judiciais e governamentais. A importância dessa discussão está relacionada, em grande parte, à busca pela definição do regime jurídico a ser aplicado aos diversos atos praticados pelo Estado, regime a ser utilizado pelo Poder Judiciário para verificar a legitimidade do ato. Desse modo, se algum ato tradicionalmente apresentado como governamental se insere no âmbito do processo legislativo, ele é ato legislativo e será regulado pelas normas constitucionais e pelos regimentos das respectivas Casas Legislativas concernentes ao processo legislativo; se praticado por órgão judicial com base em Direito Processual, será ato judicial. Caso contrário, o ato é administrativo, e será regido por norma ou princípio do Direito Administrativo de estatura constitucional, legal ou infralegal. Não se pode aceitar que o fato de o ato ser disciplinado por norma de estatura constitucional e de essas normas conferirem às autoridades que o praticam ampla margem discricionária de decisão possa justificar a criação de categoria de ato estranho à teoria da separação dos poderes do Estado e, mais grave ainda, de ato imune ao controle judicial. O ato por meio do qual o Presidente da República encaminha projeto de lei ao Congresso Nacional, dentro desta perspectiva, é ato legislativo e deve ser disciplinado com base nas normas pertinentes ao processo legislativo. Pergunta-se: caso o projeto de lei trate de matéria cuja iniciativa seja estranha às atribuições do Presidente da República, é necessário que o projeto seja convertido em lei para que somente então possa ser questionada a validade do ato inicialmente praticado? É evidente que este projeto será examinado pelas Comissões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que podem rejeitá-lo sob argumento de inconstitucionalidade, exames mais políticos que técnicos. O que nos resta saber é se o ato de apresentação do projeto de lei poderia ter sua validade questionada judicialmente, antes mesmo de sua aprovação, ou independentemente desta. Demonstrados o interesse de agir, a legitimidade do autor da ação e a lesão ou ameaça de lesão que o ato possa provocar, aplica-se o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial (CF, art. 5º, XXXV), de modo a que se possa examinar a legitimidade deste ato independentemente de sua estatura constitucional ou da liberdade de que se valeu a autoridade para praticá-lo. Caso seja proposta a ação, e, no seu curso, o projeto de lei seja rejeitado, a ação simplesmente perderia seu objeto.
5.2.7 Atos normativos Trata-se de mais um dos inúmeros aspectos históricos em relação aos quais a doutrina jamais se pôs de acordo: os atos normativos são atos administrativos? Algumas distinções podem ser identificadas entre os atos praticados pela Admi nistração Pública que objetivam regular uma situação concreta, específica, e aqueles em que a Administração Pública busca regular determinada situação em abstrato, definindo as soluções ou a solução a ser adotada pela própria Administração Pública em eventuais situações futuras. Evidentemente que ao nos reportamos aos atos abstratos, incluímos qualquer proposição emanada da Administração Pública que tenha por objetivo regular ou disciplinar com caráter geral ou abstrato, e não apenas os atos normativos editados pelo Presidente da República a título de regulamentação de lei.
Livro 1.indb 199
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
200
Algumas distinções podem ser observadas entre os atos de efeito concreto e os atos abstratos ou de caráter normativo praticados pelo Estado: 1. Os atos normativos editados pela Administração Pública podem ser objeto de ações direta de inconstitucionalidade e de ações declaratórias de constitucionalidade; o que não vale para os atos de efeito concreto; 2. Os atos abstratos, ainda que tenham gerado direito adquirido para seus destinatários, podem ser revogados pelo poder público, desde que sejam preservadas as situações constituídas; os atos de efeito concreto que tenham gerado direito adquirido tornam-se irrevogáveis; 3. Não cabe mandado de segurança contra o ato abstrato. Somente os atos concretos podem ser diretamente atacados pela via do mandamus e, reconhecida a sua ilegitimidade, será ele extinto do mundo jurídico; no caso de se tratar de ato abstrato, questionada a sua legitimidade ou a de seus efeitos, a consequente declaração jurisdicional de ilegitimidade somente afeta e afasta do mundo jurídico os efeitos do ato abstrato, e não o próprio ato abstrato que somente será extinto após a sua revogação pelo poder público ou eventual declaração de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes. A questão consiste em saber se a existência dessas distinções justifica a exclusão dos atos normativos ou abstratos do conceito de ato administrativo. Os dois atos — o abstrato e o de efeito concreto — têm em comum o fato de que emanam de autoridades administrativas, de que são disciplinados pelo Direito Administrativo e de que são praticados com o objetivo de dar ou de permitir a execução da competência ou atribuição conferida pela lei ou por dispositivo constitucional a essa autoridade ou a quem lhe seja hierarquicamente subordinado. Maria Sylvia Zanella Di Pietro5 exclui do âmbito do ato administrativo os atos normativos ao propor a seguinte definição para o primeiro: “declaração do Estado ou de quem o represente, que produz efeitos jurídicos imediatos, com observância da lei, sob regime jurídico de direito público e sujeita a controle pelo Poder Judiciário”. Em sentido contrário, Celso Antônio Bandeira de Mello6 ao conceituar ato administrativo como “declaração do Estado, no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” adota concepção ampla do ato administrativo e inclui o ato normativo. Diante da divergência doutrinária, preferimos a concepção ampla de ato administrativo, e incluímos como tal os atos normativos ou abstratos emanados do Estado no exercício de sua função executiva. Adotamos essa solução não por mero capricho, mas porque o regime jurídico dos atos administrativos de efeito concreto e dos atos administrativos abstratos é o mesmo. As pequenas distinções indicadas entre essas duas espécies justificam apenas a criação de classificação dos atos administrativos de modo a considerar as particularidades existentes entre uma e outra categoria, mas não a exclusão dos atos abstratos do âmbito do conceito de ato administrativo.
5 6
DI PIETRO. Direito administrativo, p. 188. BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 352.
Livro 1.indb 200
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
201
5.2.8 Controle jurisdicional Os conceitos de ato administrativo apresentados pelos ilustres autores Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Celso Antônio Bandeira de Mello fazem menção expressa à sua sujeição ao controle jurisdicional. Este aspecto, de que todos os atos administrativos se sujeitam ao controle judicial, parece-nos indiscutível. Não são, todavia, apenas os atos administrativos que se sujeitam ao controle judicial. Todo e qualquer ato, emane ou não do Estado, que ameace ou provoque lesão a direito, está sujeito ao controle judicial por disposição constitucional expressa (art. 5º, XXXV). Desse modo, ainda que concordemos com os ilustres autores no sentido de que todo ato administrativo está sujeito a controle judicial, esta observação é desnecessária para a elaboração do conceito de ato administrativo. Ademais, a sujeição ao controle judicial não é elemento necessário à formação do ato administrativo, mas consequência deste. Ou seja, o ato administrativo não existe porque está sujeito ao controle judicial, mas dado que exista, se sujeita a esse controle.
5.2.9 Conceito de ato administrativo O leitor deve ter percebido que não nos apraz apresentar conceitos jurídicos. Ao invés, preferimos descrever os fenômenos objeto de nossos estudos, cientes de que a correta descrição do fenômeno ou do instituto estudado é mais proveitosa ou útil do que qualquer conceito a ser formulado. A importância do tema tratado força-nos a apresentar um conceito de ato administrativo — o que fazemos a muito contragosto. Ato administrativo é toda declaração unilateral de vontade do Estado, ou de quem tenha recebido delegação deste, excetuadas aquelas provenientes do exercício das funções judicial ou legislativa, regida por norma de Direito Administrativo. A exigência de que o ato tenha que ser regido por norma de Direito Administrativo para ser reputado administrativo somente se justifica em face da possibilidade de pessoas de Direito Privado praticarem atos administrativos. Em relação às pessoas de Direito Público, a referência à sujeição do ato ao Direito Administrativo é totalmente desnecessária. Quando definimos o âmbito de aplicação do Direito Administrativo (Capítulo 2), verificamos que ele se aplica a todas as atividades estatais, ressalvadas aquelas relacionadas ao exercício das funções legislativa ou judicial. Assim, em relação às pessoas de Direito Público, definir ato administrativo como sendo aquele sujeito ao Direito Administrativo seria mero pleonasmo haja vista um estar diretamente ligado ao outro: ato administrativo é aquele sujeito ao Direito Administrativo; e Direito Administrativo é aquele que regula os atos relacionados à atividade administrativa do Estado — que a rigor compreende toda e qualquer atividade estatal, ressalvadas as atividades legislativa ou judicial.
5.3 Perfeição, validade e eficácia do ato administrativo Etapa importante do estudo do ato administrativo corresponde ao exame de três aspectos do ato administrativo: a perfeição, a validade e a eficácia. A perfeição, distintamente do que pode indicar, no Direito Administrativo é apresentada como sinônimo de existência. Ato perfeito não é aquele que se conforme com
Livro 1.indb 201
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
202
o ordenamento jurídico, mas aquele que existe, aquele que se formou ou que passou por todas as etapas necessárias à sua existência. Assim, dentro da classificação dos atos administrativos quanto à sua formação, os atos complexos, por exemplo, são aqueles que somente se tornam perfeitos — ou seja, que se formam — quando houver a conjugação da manifestação de vontade de órgãos distintos de modo a formar um só ato. Ato administrativo que não tenha sido publicado, por exemplo, quando a lei houver expressamente exigido essa forma de divulgação, é ato perfeito? Se ele passou por todas as etapas necessárias à sua formação, o que não inclui a publicidade do ato, ele é perfeito. A publicidade a ser dada ao ato não é etapa necessária à formação do ato, mas para sua eficácia. É importante identificar a perfeição do ato porque somente então ele existe no mundo jurídico. Antes disso, não se pode sequer ser questionada a sua validade, dado que o ato sequer existe. Tomemos o exemplo do decreto, cuja formação requer a manifestação de vontade do Presidente da República e do ministro de Estado competente. Quando este último se manifesta e assina o decreto, sem que este tenha sido assinado pelo Presidente da República, não existe ato administrativo. O decreto não se formou, de modo que alguém que pretenda questionar sua validade somente poderá fazê-lo quando o ato se formar, vale dizer, somente após a assinatura do Presidente da República, salvo se as circunstâncias do caso concreto já estiverem a ameaçar direito, hipótese em que poderá ser proposta ação judicial preventiva contra a ameaça existente. A eficácia do ato está ligada à sua aptidão para produzir ou gerar efeitos. Como manifestação ou declaração de vontade da Administração Pública, todo ato administrativo tem objetivo determinado. Não existe ato administrativo sem motivo ou sem objetivo. A eficácia examina os efeitos do ato. A este aspecto, Hely Lopes Meireles acrescentou a exequibilidade como a eficácia imediata. Nesse sentido, ato eficaz é aquele que possui aptidão para produzir efeitos; ato exequível, o que produz efeitos ou que está a produzir efeitos. Apresentado o ato eficaz, devemos igualmente mencionar o ato consumado, ou exaurido, como aquele que já produziu todos os efeitos. Aquele do qual não se pode esperar qualquer novo efeito. Essas distinções têm importância prática. A revogação do ato administrativo, por exemplo, pressupõe que ele seja eficaz. Conforme será examinado ainda neste capítulo, a revogação, a rigor, somente impede a produção de novos efeitos do ato, daí por que ela é apresentada com eficácia ex nunc. Dado que a revogação somente impede a produção de novos efeitos, e que o ato exaurido é aquele que já produziu todos os efeitos que dele se poderia esperar, a conclusão lógica, que independe de qualquer norma jurídica expressa, é de que o ato exaurido não pode ser revogado. O último dos três importantes aspectos que ora examinamos é a validade, ou legitimidade. Este aspecto se relaciona à necessidade de adequação do ato ao ordenamento jurídico, entendido como o conjunto formado por todas as normas que compõem o sistema jurídico vigente em determinado Estado, decorram essas normas de regras ou de princípios. Os termos validade e legitimidade, em Direito Administrativo, são apresentados como sinônimos e, portanto, um pode ser utilizado em substituição ao outro sem qualquer dificuldade. Distinto se apresenta o termo legalidade. Este normalmente é tido como o mero cumprimento da lei. Desse modo, o que é legal não necessariamente é legítimo ou válido. Solução que observe as estritas exigências da lei, mas que viole outro princípio da Administração Pública pode ser legal, mas não será válida ou legítima.
Livro 1.indb 202
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
203
A discussão acerca do que é válido ou legítimo é da mais alta importância para o Direito. Isto se deve ao fato de que ao Judiciário somente é dado controlar a atividade administrativa do Estado quanto à sua validade ou legitimidade. A consequência desta discussão está no fato de que se determinado aspecto do exame da atividade administrativa não for considerado sob a ótica da validade, este aspecto não pode ser objeto de exame judicial. A questão da eficiência, por exemplo, se for considerada estranha à validade do ato não pode ser objeto de controle judicial. Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a eficiência é elemento ligado ao juízo de oportunidade ou de conveniência do administrador e somente poderia ser objeto de controle por parte dos Tribunais de Contas (CF, art. 70). Discordamos, com a devida vênia, dessa conclusão. A eficiência, assim como todos os demais princípios que compõem o ordenamento jurídico, deve ser observada e cumprida sob pena de o ato que a viole ser inválido. Do ponto de vista do controle da legitimidade, a eficiência não existe para indicar a melhor solução, a mais eficiente dentre todas as soluções possíveis. Certo é que a escolha de uma solução dentre as inúmeras soluções de eficiência possíveis se insere no âmbito da discricionariedade administrativa. No entanto, sob a ótica do controle (Judicial ou Externo), a eficiência é violada e, portanto, a solução administrativa adotada é inválida quando ela for absurdamente ineficaz. O objetivo do controle judicial da eficiência não é a punição do gestor, papel a ser exercido pelos Tribunais de Contas. Seu propósito é afastar do mundo jurídico a solução absurdamente ineficiente por meio da declaração de nulidade do ato ou dos atos que a tenham gerado.
5.4 Requisitos de validade do ato administrativo A indicação dos requisitos de validade dos atos administrativos, no Brasil, é feita de modo expresso pela Lei nº 4.717/65, que disciplina a ação popular. O art. 2º da lei indica os atos nulos e menciona os elementos ou requisitos de validade do ato administrativo: competência, finalidade, forma, motivo e objeto.
5.4.1 Competência O primeiro dos requisitos de validade dos atos administrativos — igualmente denominado por parte de nossa doutrina de sujeito — tem relação direta com o princípio da legalidade administrativa. Falar em competência como requisito de validade do ato administrativo importa em exigir que a autoridade, órgão ou entidade administrativa que pratique o ato tenha recebido da lei a atribuição necessária à sua prática. Diversamente do Direito Privado, em que o elemento de validade do ato jurídico está relacionado à sua capacidade jurídica plena, esta, no Direito Administrativo é pressuposta. A fim de verificar a validade de determinado ato administrativo, não se vai perquirir sobre a capacidade jurídica do agente que o praticou, mas sobre a sua competência para praticá-lo. Aspecto curioso da competência diz respeito ao exame do denominado servidor ou funcionário de fato e de saber se a Administração Pública responde pelos atos que este pratique.
Livro 1.indb 203
21/03/2013 17:13:48
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
204
As normas administrativas estabelecem mecanismos necessários à investidura dos agentes públicos em seus cargos, empregos ou funções públicas. Evidente que se particular se dirige a uma repartição pública e é atendido por pessoa que atua como agente público, a Administração Pública será chamada a responder por seus atos. Se, todavia, pessoa não investida em função pública, sem que exista qualquer situação criada, permitida ou consentida pela Administração Pública, pratica ato em nome desta, não existe qualquer ato administrativo. Teríamos aqui a figura do ato administrativo inexistente — expressão contraditória, porém amplamente utilizada no Direito Administrativo. A fim de saber se a atuação do funcionário de fato enseja responsabilidade para a Administração Pública é necessário proceder ao exame das circunstâncias em que o ato foi praticado, verificar se havia a aparência de se tratar de ato administrativo, e se essa aparência foi ensejada por ação ou omissão imputável à Administração Pública. Se, todavia, o fraudador cria situação da qual a Administração não tinha conhecimento ou em relação à qual não poderia tomar qualquer providência para impedir, ou seja, se o fraudador cria toda uma ilusão para levar o particular a crer que se trata de agente público e lhe causa prejuízo, a Administração Pública não pode ser responsabilizada por estes atos que não são atos administrativos ou, se preferir, são atos administrativos inexistentes. De se observar que se para a prática do ato pelo funcionário de fato tiver havido conivência da Administração o ato deve ser em regra anulado, não obstante devam ser observados os direitos do destinatário — seja no sentido de serem eventualmente preservadas as situações constituídas, seja no sentido de se indenizar este destinatário, caso ele não tenha contribuído para a ilegalidade. Outro importante aspecto do estudo da competência como requisito de validade do ato administrativo diz respeito à possibilidade de delegação. Na delegação de competência, é transferida apenas a incumbência para a prestação do serviço. A titularidade da atribuição é mantida com o delegante, de modo que, a qualquer tempo, poderá a atribuição ser avocada. A delegação, ao menos enquanto não revogada ou avocada, impede o delegante de exercer a atribuição delegada.7 Delegada determinada competência, salvo disposição expressa em sentido contrário no termo de delegação, permanece o delegante impedido de exercer a sua atribuição, de modo que ato praticado pelo delegante, sem que tenha ocorrido a prévia revogação da delegação, pode ser anulado em razão da falta de competência. A delegação de competência pode ser formalizada por meio de ato unilateral quando houver hierarquia entre o delegante e o delegado, e se torna efetiva independentemente do consentimento ou concordância do órgão ou autoridade delegada. Caso não haja hierarquia, a delegação somente será efetiva se houver concordância por parte do delegado. Exemplo: é por meio de convênio que os DETRANs estaduais, que são autarquias, podem delegar competência às Polícias Militares estaduais — órgãos da Administração direta dos Estados — para o exercício das funções de polícia de trânsito de veículos, inclusive para a aplicação de multas. 7
Em sentido contrário, considerando que o “ato de delegação não retira a competência da autoridade delegante, que continua competente cumulativamente com a autoridade delegada”, vide CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 96.
Livro 1.indb 204
21/03/2013 17:13:48
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
205
A Lei nº 9.784/99 que regula o processo administrativo no âmbito da União estabelece regras a serem observadas nas delegações de competência, como, por exemplo, a necessidade de publicação em meio oficial do ato de delegação, assim como da sua respectiva revogação (art. 14). Alguma dificuldade de interpretação tem surgido em função da redação do art. 11 da citada lei, que afirma ser a competência irrenunciável. A renúncia de competência não se confunde com a delegação, assim como a delegação não importa em renúncia. Esta ocorre quando o órgão ou a autoridade se recusa a exercer atribuição que lhe tenha sido conferida por lei. A delegação pressupõe, ao contrário, que a autoridade ou órgão delegante se reconheça competente e transfira o exercício da atribuição a outro órgão ou autoridade. Aspecto ainda mais controvertido diz respeito à necessidade de expressa auto rização legal para a delegação. Conforme mencionado no art. 11 (“a competência é irrenunciável e se exerce pelos órgãos administrativos a que foi atribuída como própria, salvo os casos de delegação e avocação legalmente admitidos” – grifos nossos), a delegação somente é legítima se houver lei que expressamente a autorize. O art. 12, caput (“Um órgão administrativo e seu titular poderão, se não houver impedimento legal, delegar (...)”), ao contrário, admite a delegação se não houver impedimento legal. Afinal, a delegação é legítima se lei expressamente a autorizar ou se não houver impedimento em lei? A interpretação dos dois dispositivos leva à conclusão de que deve ser dada prevalência à regra contida no art. 12, no sentido de que, se não houver impedimento legal, a delegação é lícita.8 Isto se deve, em primeiro lugar, ao fato de que o art. 11 da Lei nº 9.784/99 trata de renúncia de competência, e não de delegação, ao passo que o art. 12 é específico para a delegação. Em segundo lugar, o art. 13 indica situações genéricas em que a delegação é defesa. Ora, se a delegação de competência somente fosse possível nas hipóteses expressamente previstas em lei, qual seria o sentido do art. 13 que indica situações de proibição de delegação (“Art. 13. Não podem ser objeto de delegação: I - a edição de atos de caráter normativo; II - a decisão de recursos administrativos; III - as matérias de competência exclusiva do órgão ou autoridade”)? Em face do exposto, parece-nos que ressalvadas as hipóteses expressamente previstas em lei específica ou indicadas no art. 13 acima citado, a competência pode ser delegada: 1. Quando for conveniente, em razão de circunstâncias de índole técnica, social, econômica, jurídica ou territorial (art. 12); 2. Ainda que não haja relação de hierarquia; e 3. Desde que não haja impedimento legal. O art. 15 da Lei do Processo Administrativo admite “em caráter excepcional e por motivos relevantes devidamente justificados a avocação temporária de competência atribuída a órgão hierarquicamente inferior”. Conforme visto, a delegação pode ocorrer 8
Livro 1.indb 205
No mesmo sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina que embora o art. 11 “(...) dê a impressão de que a delegação somente é possível quando a lei a permita, na realidade, o poder de delegar é inerente à organização hierárquica que caracteriza a Administração Pública (...). A regra é a possibilidade de delegação; a exceção é a impossibilidade, que só ocorre quando se trate de competência outorgada com exclusividade a determinado órgão” (Direito administrativo, p. 197). Em sentido contrário, entendendo que a competência só pode ser delegada se as normas regulamentares da Administração permitirem, “porque ela é elemento vinculado de todo ato administrativo, e, pois, insuscetível de ser fixada ou alterada ao nuto do administrador e ao arrepio da lei” (MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 134).
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
206
em relações hierarquizadas ou não. Na hipótese de haver hierarquia, em que a delegação se formaliza por meio de ato unilateral, é possível a avocação temporária. Esta não é admitida quando não houver hierarquia em função de que somente se for modificado o instrumento utilizado para delegar poderá ser permitido ao delegante praticar o ato delegado — salvo se o termo da delegação houver adotado solução diversa. Nesta última hipótese, o fato de alguns DETRANs delegarem atribuições às Polícias Militares para o exercício de atividades de polícia de trânsito não impede que os agentes dessas autarquias apliquem multas de trânsito. Deve-se, em qualquer caso, examinar o termo de delegação e verificar as atribuições delegadas bem como aquelas que podem ser exercidas pelo delegante independentemente de avocação ou revogação. Importante aspecto da delegação consiste na definição da competência para julgar mandado de segurança contra ato praticado no exercício de competência delegada. Caso o ato praticado pela autoridade delegante esteja sujeito a foro especial, esse foro se mantém ainda que o ato seja praticado pela autoridade delegada? Caso o Presidente da República delegue competência a ministro de Estado, por exemplo, e este pratique ato no exercício desta competência, eventual mandado de segurança deve ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (competente para julgar mandado de segurança contra ato do Presidente – CF, art. 102, I, “d”) ou pelo Superior Tribunal de Justiça (competente para julgar mandado de segurança contra ato de ministro de Estado – CF, art. 105, I, “b”)? Essa matéria é tratada pela Súmula STF nº 510, que dispõe no sentido de que, “praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou mandado judicial”. Na mesma linha da citada súmula, o STF ao julgar o MS nº 24.732-MC/DF voltou a enfrentar a questão e a reafirmar a tese de que o foro da autoridade delegante, ou para julgamento de ato contra esta autoridade, não se transmite à autoridade delegada.9 A resposta para a situação acima apresentada — em que se examina se o mandado de segurança contra ato praticado por ministro de Estado, no exercício de competência delegada pelo Presidente da República, deve ser julgado pelo STF ou pelo STJ — é no sentido de se afirmar a competência deste último, ou seja, do STJ.
5.4.2 Finalidade No âmbito da Administração Pública, não existe atuação ou atividade vãs, praticadas ao acaso. Todos os atos administrativos têm fim específico, imediato, direto. Este fim imediato buscado pelo poder público deve-se conformar com o fim mediato de todas as atividades estatais: o interesse público. Temos, portanto, duas finalidades nos atos administrativos: uma mediata e outra imediata. A finalidade mediata corresponde à necessidade de que o interesse público seja realizado; a finalidade imediata, ao resultado material ou jurídico que o administrador busca alcançar com a prática do ato. Quando se examina a legitimidade dos atos administrativos sob a ótica deste requisito de validade deve-se verificar a conformação dos fins imediatos buscados pelos
Em igual sentido, STF: “I. Mandado de segurança: praticado o ato questionado mediante delegação de competência, é o delegado, não o delegante, a autoridade coatora. II. Ato administrativo: delegação de competência: sua revogação não infirma a validade da delegação, nem transfere ao delegante a responsabilidade pelo ato praticado na vigência dela” (MS nº 23.411-AgR/DF, Pleno. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julg. 22.11.2000. DJ, 09 fev. 2001, grifos nossos).
9
Livro 1.indb 206
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
207
administradores com os fins mediatos do Estado. Nesse sentido, a finalidade, como requisito de validade do ato administrativo, exige que eles se conformem ao interesse público, ou seja, que os fins buscados pelo administrador estejam em conformidade com aqueles indicados na Constituição Federal e nas leis. A exigência de conformação dos atos administrativos ao interesse público não importa em que interesses privados não possam ser realizados no âmbito da Administração Pública, mas que a realização dos interesses privados pressupõe a sua adequação ao interesse público. O processo para a realização do interesse público deve ser examinado em três planos sequenciais, conforme examinamos no Capítulo 3: 1. Plano constitucional – ou dos direitos humanos; 2. Plano legal; e 3. Plano econômico – ou da economicidade. O primeiro plano de realização do interesse público reside na busca pela efetividade dos direitos humanos, sobretudo em relação ao princípio da valorização da dignidade da pessoa humana. Esse é o ponto de partida para o exame do interesse público. O segundo plano em que o interesse público deve-se realizar é no nível legal. A lei, nos regimes democráticos, é a expressão de vontade da maioria representada nos parlamentos. Ainda que se verifique certa perda na importância da lei na formação do regime administrativo, perda que se pode atribuir em grande parte à maior importância que se tem atribuído aos textos constitucionais, ela continua a desempenhar função da mais alta relevância no sistema jurídico administrativo. A função da lei, em várias situações, é a de fixar limites ou de definir a forma ou o procedimento a ser observado pelo administrador na utilização de prerrogativas definidas diretamente pela Constituição Federal. Tomemos, aqui, a Súmula nº 473 do STF, que reconheceu à Administração Pública o poder de anular ou revogar seus atos, independentemente de intervenção judicial. O poder da Administração de anular seus próprios atos deve estar sujeito a limites. Antes mesmo da edição da Lei nº 9.784/99 já era reclamada a fixação de limite temporal para a Administração poder exercer o poder de anular atos administrativos, haja vista ser incompatível com o princípio da segurança jurídica a possibilidade de o poder público exercer essa prerrogativa a qualquer tempo. Coube à lei a fixação do limite de cinco anos para o exercício da prerrogativa pública – art. 54 da citada Lei nº 9.784/99. Em matéria de desapropriação, a prerrogativa da Administração de invocar necessidade ou utilidade pública ou interesse social e privar alguém de sua propriedade decorre do texto constitucional (art. 5º, XXIV). Os procedimentos a serem observados pela Administração se encontram definidos em lei. Lei pode criar prerrogativa para o poder público, independentemente de previsão constitucional expressa. Isso se verifica, por exemplo, no poder da Administração de unilateralmente rescindir seus contratos (Lei nº 8.666/93, artigos 58, II, 77, 78 e 79, I). A grande maioria das prerrogativas necessárias à realização dos interesses públi cos decorre, todavia, de maneira explícita (poder de desapropriar, por exemplo) ou implícita (presunção de legitimidade dos atos administrativos), da própria Constituição Federal, cabendo à lei papel secundário no processo de criação das prerrogativas públi cas, de regulação do exercício das prerrogativas decorrentes do texto constitucional. Não se pode admitir a criação de prerrogativas públicas por meio de instrumentos infralegais. Aceitamos que decretos, resoluções ou instruções normativas sejam fonte
Livro 1.indb 207
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
208
do Direito Administrativo. Falta-lhes, todavia, a legitimidade constitucional para criar qualquer prerrogativa pública (CF, art. 5º, II). Deve-se, aqui, ter muito cuidado para que o legislador, a pretexto de conferir discricionariedade, ou por meio de legislação em branco, não transfira ao Executivo o poder de criar prerrogativas públicas. Qualquer prerrogativa pública que importe em exercício de supremacia sobre particulares somente é legítima se tiver sido criada e definida na Constituição Federal ou em lei. A esta cumpre, inclusive, a fixação dos limites para o exercício da prerrogativa. O terceiro plano para a realização do interesse público corresponde à obtenção de vantagens para a Administração Pública. A finalidade de qualquer órgão ou entidade da Administração não é, jamais, a simples obtenção de lucros ou de vantagens econômicas, regra igualmente aplicável às empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, que, nos termos da Constituição Federal (art. 173, caput), podem ser criadas como instrumento necessário aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo. Não se deve enxergar no dispositivo constitucional vedação à obtenção de lucro. Não é o fim lucrativo, no entanto, que justifica ou legitima a criação de entidades pelo poder público para explorar atividades empresariais. O Banco do Brasil, por exemplo, pode agir de modo a obter lucro. Ele não existe, todavia, para lucrar, mas para realizar outras finalidades relevantes definidas pela Constituição Federal. Impõe-se aos gestores públicos a obrigação de considerar a atuação das unidades administrativas sob a ótica da economicidade, que compreende três diferentes aspectos: 1. A eficiência; 2. A eficácia; e 3. A efetividade. O exame da eficiência obriga-nos a considerar a relação custo benefício da atuação administrativa. Deve o agente público considerar o volume de insumo necessário à produção do resultado que se busca. O controle de eficácia dá relevo aos resultados. Busca-se verificar apenas se a atividade administrativa produz os resultados esperados. O exame da eficácia restringe-se tão somente aos resultados da atuação administrativa. Em relação à efetividade, busca-se verificar se os resultados programados ou planejados para determinada atividade administrativa foram alcançados. Tomemos o exemplo de certo programa de governo que tenha por objetivo criar emprego para jovens. O exame da eficiência requer a ponderação de quantos recursos serão necessários para produzir determinados resultados (Quantos recursos são necessários para alcançar os objetivos pretendidos?). A eficácia do programa pode ser medida examinando os resultados do programa (Quantos empregos foram efetivamente criados?). E o controle de efetividade examina se os resultados projetados ou planejados foram alcançados (Os empregos que o programa buscava criar foram efetivamente criados?). Atuação vantajosa para a Administração é aquela que considera os diversos aspectos da economicidade na Administração Pública. Planejamento, definição de estra tégias, fixação de metas, avaliação de metas, controle de custos, controle de resultados são os aspectos a serem considerados para que seja realizado o terceiro plano do interesse público. É evidente que os agentes devem buscar contratações mais vantajosas — o que não significa, necessariamente, contratações mais baratas —, por exemplo. A redução dos
Livro 1.indb 208
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
209
custos é apenas uma das tarefas a ser cumprida pelos administradores para a realização do terceiro plano do interesse público. Para a anulação em razão do desvio de finalidade não se faz necessária a presença de qualquer outro elemento invalidante, como a violação dos princípios da moralidade ou da impessoalidade; basta que a finalidade do ato seja incompatível com o interesse público. Desse modo, a falta de conformidade do fim imediato do ato com qualquer dos níveis de realização do interesse público deve importar em sua anulação.
5.4.3 Forma O terceiro requisito de validade dos atos administrativos está relacionado à forma como o ato se manifesta, ao modo como ele se exterioriza. É conveniente, antes de avançarmos no estudo da forma, apresentar a distinção entre alguns conceitos que lhe são próximos, como o de procedimento e o de processo administrativo. Processo é o conjunto de atos ordenados e tendentes a determinado resultado. Fala-se assim em processo legislativo como o conjunto de atos ordenados e tendentes à deliberação e eventual aprovação de leis, emendas constitucionais, decretos legislativos; em processo judicial, como o conjunto de atos tendentes a uma manifestação a ser produzida por órgão integrante do Poder Judiciário e disciplinada por norma de Direito Processual; e, finalmente, em processo administrativo, como o conjunto de atos ordenados entre si — no sentido de que um ato justifica e permite a prática do ato seguinte — tendentes à prática do ato administrativo ou à celebração de um contrato. Nesse sentido, a licitação — não obstante a lei a ela se refira como ato formal — é um processo administrativo. A Administração Pública publica o edital, habilita os licitantes, julga as propostas, adjudica o objeto em favor do vencedor do certame, homologa a licitação, convoca o adjudicatário para assinar o contrato. Trata-se de atos distintos, todos, todavia, interligados e vinculados a um fim específico: a escolha da empresa a ser contratada pelo poder público. O mesmo se pode dizer, por exemplo, do concurso público para provimento de cargos ou do processo disciplinar. Procedimento é o rito a ser observado na tramitação do processo. Em que ordem os atos devem ser praticados, quem possui competência para praticar cada ato, quais atos do processo podem ser objeto de recurso, dentro de que prazo o ato deve ser praticado, por exemplo, são perguntas a serem respondidas pelo procedimento. A possibilidade de o Poder Judiciário rever os atos administrativos justificou o florescimento de teorias que negavam a existência do processo administrativo, de sorte que este se restringiria a mero “procedimento”. É certo que os atos administrativos podem ser revistos pelo Poder Judiciário. A chamada coisa julgada administrativa (examinada no Capítulo 19, referente ao processo administrativo) opera efeitos perante a Administração Pública, impedindo, em alguns casos, que a própria Administração revise o seu ato. A coisa julgada administrativa não produz efeito perante o Poder Judiciário. A possibilidade de revisão ou de controle judicial dos atos administrativos em nada justifica, todavia, a negação da existência do processo administrativo ou a sua redução à categoria de “mero” procedimento. No âmbito do Direito Administrativo, existem o processo e o procedimento administrativos como conceitos distintos e complementares, no sentido de que o procedimento define o rito a ser observado pelo processo.
Livro 1.indb 209
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
210
A licitação é um processo administrativo. As modalidades de licitação (concorrência, tomada de preços, pregão etc.) definem o procedimento a ser observado pela licitação. A forma diz respeito a cada ato e à materialização destes atos. Saber como o ato deve-se exteriorizar ou manifestar é questão que decorre do exame da forma do ato administrativo. No Direito Privado, a forma, salvo exceções previstas em lei, é definida conforme a exclusiva conveniência das partes interessadas no ato. Se determinado contrato de compra e venda vai ser formalizado por escrito por meio de escritura pública, por escri tura particular, ou se ele será um contrato verbal é problema afeto aos contratantes. No âmbito privado, cabe às partes adotar qualquer uma das formas possíveis conforme sua conveniência. No âmbito da Administração Pública, o Direito Administrativo adota solução inversa. A regra é a imposição de forma previamente determinada. No setor privado, a prática de atos independe de qualquer previsão legal e, ainda que haja norma legal para regular determinadas situações, o que se verifica com os contratos típicos, a lei apresenta regras dispositivas aplicáveis somente na eventualidade de as partes não terem definido solução diversa. A técnica do Direito Privado vale igualmente para questões relacionadas à forma dos atos jurídicos, o que implica dizer que cabe ao arbítrio das partes envolvidas nos negócios privados a adoção da forma que melhor lhes convenha. É o princípio da forma livre (art. 107 do Código Civil). No Direito Administrativo, ao contrário, a prática de atos administrativos pressupõe que lei tenha conferido ao agente, órgão ou entidade a necessária competência. Ademais, essas normas normalmente indicam a forma a ser obrigatoriamente adotada para cada ato. A Lei de Licitações pode ser utilizada mais uma vez como exemplo. Em seu art. 60, caput, é exigida a forma escrita para os contratos administrativos,10 e no parágrafo único do mesmo artigo é dito que é nulo o contrato verbal salvo as pequenas compras. Vê-se que a regra é a lei estabelecer a forma; e a exceção é a liberdade de forma. Assim, se a Administração celebra contrato de pequeno valor, o que nos termos da lei é aquele de até R$4.000,00 (quatro mil reais), e desde que dele não resultem obrigações futuras, pode ser utilizada a forma escrita ou verbal. Neste caso, a lei confere liberdade ao admi nistrador para adotar forma escrita ou, preferindo, para mantê-lo sob forma verbal.11 A Lei nº 9.784/99, art. 22, caput, e §1º, trata do tema nos seguintes termos: Art. 22. Os atos do processo administrativo não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir. §1º Os atos do processo devem ser produzidos por escrito, em vernáculo, com a data e o local de sua realização e a assinatura do responsável.
A Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), em seu art. 62, §3º, I, determina que os contratos regidos pelo Direito Privado celebrados pela Administração Pública devem observar algumas regras, dentre elas a contida no art. 60. Desse modo, qualquer contrato celebrado pela Administração Pública, disciplinado ou não pela Lei nº 8.666/93, deve ser formalizado nos termos do art. 60 desta mesma lei. 11 Por razões meramente terminológicas, entendemos que essa liberdade de escolha de forma não se insere no âmbito do conceito de discricionariedade. Esta, a discricionariedade, corresponde à liberdade conferida ao admi nistrador para definir o conteúdo ou objeto do ato em razão dos motivos ou das circunstâncias de fatos ocorridas. A liberdade para a adoção de forma, que depende igualmente de lei, não se circunscreve, portanto, no âmbito do conceito da discricionariedade administrativa. 10
Livro 1.indb 210
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
211
A redação do caput do artigo 22 acima transcrito pode levar a crer que o Direito Administrativo adota solução idêntica à do Direito Privado, vale dizer, a liberdade de formas. Essa liberdade é desmentida pelo §1º do mesmo art. 22, que impõe a forma escrita aos atos do processo administrativo. O caput do art. 22 mencionado deve ser interpretado como vedação ao formalismo exagerado, aquele que confere maior importância às formas ou formalismos do processo do que aos resultados visados. Pequenas falhas formais que não tenham causado prejuízo à Administração, ao interessado ou a terceiros devem ser superadas, desde que os objetivos visados pelo ato sejam alcançados. Devemos evitar que ocorra com o Direito Administrativo e com o processo administrativo o que se verificou com os processos judiciais, em que, salvo exceções, os responsáveis por sua aplicação dão às formas processuais importância maior que ao Direito material. No processo judicial, esquecem seus aplicadores do objetivo do processo e passam a discutir tão somente os incidentes processuais. A importância desmedida que os órgãos judiciais conferem aos formalismos processuais em detrimento do Direito material é certamente uma das causas da eternização dos processos e, portanto, da baixa efetividade da atuação judicial em nosso País. Devemos valorizar as formas na medida em que elas viabilizam a realização de Direitos mais elevados, relacionados ao devido processo legal, ao contraditório, à ampla defesa, à publicidade etc., em que funcionam como meio para a obtenção dos fins objetivados pela Administração Pública e pelo interesse público, e não como um fim em si. A forma, como requisito do ato administrativo, objetiva, portanto, verificar se o ato se exterioriza ou se materializa nos termos exigidos pelo ordenamento jurídico. Aspecto curioso dessa discussão consiste em saber se a falta de motivação constitui vício de forma. Parece-nos que sim. Na medida em que o ato deve-se exteriorizar (ou formalizar) de modo a permitir que nele seja identificada a circunstância de fato que autorizou a sua prática — como consequência do princípio da motivação — e essa informação não esteja contida nessa manifestação exterior do ato, estaremos diante de vício de forma. A falta de motivação do ato deve importar em sua anulação em razão de constituir vício de forma.12
5.4.4 Motivo Da mesma forma como os atos administrativos são praticados visando à realização de fim específico, determinado, eles requerem a existência de um motivo. Não existe ato administrativo sem motivo ou sem finalidade determinados, reais, efetivos. O exame do motivo como requisito de validade do ato administrativo se traduz como adequação dos fatos ao objeto do ato. Por motivo do ato administrativo temos de entender as circunstâncias de fato e de direito que levam o administrador a praticar determinado ato. O motivo para a concessão de aposentadoria compulsória é o implemento da idade; para a concessão de aposentadoria voluntária, a existência de requerimento por
Sobre o tema, José dos Santos Carvalho Filho adverte que, “quando a motivação do ato for obrigatória, porque assim o impõe a lei, o vício nele existente pode situar-se no elemento forma, desde que haja descompasso entre o que a lei exige e o que consta do ato” (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 104).
12
Livro 1.indb 211
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
212
parte de servidor que preenche os requisitos legais; de licença para servidor tratar de interesse pessoal, a existência de requerimento de servidor que preencha as exigências legais; de licença maternidade, o nascimento ou adoção da filha ou filho da servidora; de autorização para porte de armas, requerimento por parte de quem preenche os requisitos legais. A apresentação dos exemplos acima permite demonstrar a importância do estudo do motivo não apenas como requisito necessário à validade do ato, mas igualmente para a compreensão e distinção entre ato discricionário e ato vinculado. A lei confere aos diversos órgãos, entidades ou agentes públicos competência para a prática dos atos administrativos necessários ao cumprimento das atribuições ou objetivos que justificaram a criação do órgão ou entidade pública. Esses atos serão praticados pelo administrador em função da ocorrência de determinados motivos. Assim, se servidora tiver um filho — ou se o adotar — terá direito à licença maternidade. O nascimento ou a adoção são motivos para a prática do ato. Diante desses motivos, e dos termos dispostos em lei, poder-se-ia argumentar que o administrador concede a licença se quiser, vale dizer, se julgar oportuno ou conveniente concedê-la? Conclui-se que a concessão de licença maternidade à servidora é ato vinculado porque o seu objeto, isto é, o conteúdo da manifestação de vontade a ser produzida pela Administração Pública, é definido pela lei e sua prática independente de qualquer juízo de conveniência ou de oportunidade por parte do administrador público. Verificado o nascimento ou a adoção, não pode a Administração decidir não conceder a licença, ou concedê-la em oportunidade que lhe pareça mais adequada. Diante do motivo indicado, o conteúdo do ato decorre da lei sem que o administrador disponha de qualquer liberdade para interferir nesse conteúdo. Tomemos outro exemplo: concessão de licença a servidor para tratar de interesse pessoal.13 Nos termos da Lei nº 8.112/90, somente será concedida a licença se o servidor não estiver em estágio probatório e se ele requerer a licença. A rigor, o motivo para a concessão dessa licença é o requerimento do servidor que atenda ao requisito legal. Assim sendo, se determinado servidor que preenche o requisito legal requerer a concessão da licença, a lei confere à Administração a liberdade para definir o conteúdo do ato em função de razões de conveniência e de oportunidade, o que importa em dizer que a licença será concedida se a Administração Pública julgar conveniente, e que ela será concedida no momento em que a Administração julgar mais oportuno. A primeira conclusão acerca do que acima se expôs é a de que a prática de atos discricionários decorre da lei. É a lei que confere à Administração Pública a competência para conceder licença para servidor tratar de interesse pessoal. É equivocada a conclusão de que a discricionariedade decorre da ausência de lei. É a lei que confere ao administrador a prerrogativa para, diante de determinados motivos, praticar certos atos e para definir o conteúdo destes, em razão do juízo de conveniência ou de oportunidade. A distinção entre ato vinculado e discricionário reside na relação entre motivo e objeto. Essa distinção deve ser examinada em função do que dispõe a lei que regula a prática do ato. Se diante de certo motivo a lei indica o objeto a ser realizado e não
13
A Lei nº 8.112/90 dispõe nos seguintes termos: “Art. 91. A critério da Administração, poderão ser concedidas ao servidor ocupante de cargo efetivo, desde que não esteja em estágio probatório, licenças para o trato de assuntos particulares pelo prazo de até três anos consecutivos, sem remuneração. Parágrafo único. A licença poderá ser interrompida, a qualquer tempo, a pedido do servidor ou no interesse do serviço”.
Livro 1.indb 212
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
213
permite que razões de conveniência ou de oportunidade administrativas interfiram na prática do ato, o ato é vinculado. Ao contrário, se diante de determinadas circunstâncias, lei permite que o administrador defina o conteúdo ou objeto do ato em razão do seu juízo de conveniência ou de oportunidade, estaremos diante do ato discricionário. A fim de que se possa afirmar que determinado ato é vinculado ou discricionário, o ponto de partida é a identificação do motivo desse ato. Assim, qual o motivo para a concessão de aposentadoria compulsória a servidor público? Resposta: ele completar 70 anos. Diante deste motivo, indaga-se: dispõe a Administração Pública de liberdade para, considerando inconveniente ou inoportuna a prática do ato, deixar de conceder referida aposentadoria compulsória, ou concedê-la em momento mais oportuno? É evidente que a resposta será negativa, o que nos leva à conclusão de que se trata de ato vinculado. No caso de aposentadoria voluntária, qual seria o motivo para a concessão? Resposta: o requerimento do servidor que atenda às exigências legais e constitucionais. Caso o servidor preencha todos os requisitos — de idade, de tempo de serviço, de tempo no cargo, de tempo na carreira etc. — e requeira sua aposentadoria, diante do que dispõe a lei, poderia a Administração Pública deixar de concedê-la por razão de conveniência? Poderia a Administração argumentar que a falta de pessoal tornaria inconveniente a concessão da aposentadoria e, portanto, negar o requerimento? Diante de nova resposta negativa, a conclusão é de que a concessão de aposentadoria voluntária se trata igualmente de ato vinculado. A autorização para porte de arma pode ser utilizada como exemplo de ato discricionário. Ela está prevista em lei que estabelece que somente será concedida a quem a requerer e preencher os requisitos legais. Trata-se de ato discricionário porque indivíduo que preencha todos os requisitos legais pode requerer a autorização e ter o pedido negado por razões de conveniência. Outra indagação: a concessão de férias a servidores públicos é ato discricionário ou vinculado? O motivo para a concessão de férias é o exercício do cargo pelo período de um ano. Dado esse motivo, a Administração está obrigada a conceder férias ao servidor. A lei confere à Administração, todavia, a competência para indicar o momento mais oportuno para o gozo das férias pelo servidor. Trata-se, portanto, de ato discricionário. É evidente que a Administração está obrigada a conceder férias ao servidor, o que não ocorre com a licença para tratar de interesse pessoal. A liberdade conferida pela lei para que a Administração defina o momento mais oportuno para o gozo das férias leva-nos a concluir que se trata de ato discricionário. A liberdade, isto é, a discricionariedade atribuída pela lei à Administração, neste caso, é mais restrita ou reduzida do que a verificada em outras situações, como é o caso da licença para servidor tratar de interesse pessoal. Nesta, a Administração Pública concede se julgar conveniente e no momento que considere mais oportuno. No caso de férias, a Administração deve concedê-las, mas somente no momento que julgue mais oportuno. A concessão de férias a servidores públicos é exemplo interessante, porque nos permite concluir que a liberdade que a lei confere à Administração Pública para a prática dos diversos atos administrativos varia de caso a caso. Há hipóteses em que essa liberdade é ampla; em que a lei sequer indica o motivo necessário para a prática do ato, de que seria exemplo a exoneração de cargo em comissão. Em outras hipóteses, a lei confere liberdade para o administrador utilizar razões de conveniência ou de
Livro 1.indb 213
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
214
oportunidade para definir apenas alguns aspectos do conteúdo do ato, restando outros aspectos vinculados ao que define a lei. A distinção entre atos administrativos discricionários e vinculados é de grande importância no estudo do Direito Administrativo. Essa distinção define, dentre outros aspectos, a postura a ser adotada pelo Poder Judiciário por ocasião do exercício do controle de legalidade do ato. Assim, diante da omissão do administrador na prática do ato vinculado, o juiz deve expedir determinação em que indica o conteúdo do ato a ser praticado. Na eventualidade de omissão na prática de ato administrativo discricionário, confirmada a mora administrativa, a determinação judicial a ser expedida deve restringir-se a fixar prazo para que o ato seja praticado, sem que, todavia, possa o Judiciário definir o objeto do ato administrativo. Idêntico raciocínio deve ser adotado na hipótese de anulação do ato. A anulação do ato discricionário não permite que o juiz indique o conteúdo do novo ato a ser praticado. Por exemplo: se for anulado ato por meio do qual se aplicou ao servidor público a pena disciplinar de demissão, em razão da falta de razoabilidade na aplicação dessa sanção, o juiz não pode indicar que a pena correta a ser aplicada seja a de suspensão ou de advertência. Verificada a ilegalidade na aplicação da pena de demissão, deve o juiz restringir sua atuação ao exercício do controle de legalidade, anulando o ato por meio do qual foi aplicada a pena de demissão, devendo ainda informar sua decisão à Administração a fim de que esta decida acerca da nova pena a ser aplicada. Sempre que a lei conferir ao administrador a liberdade para definir o conteúdo do ato com base em seu juízo de conveniência ou de oportunidade, estaremos diante de ato discricionário. Nesta hipótese, o conteúdo somente pode ser preenchido pelo admi nistrador público, nunca pelo juiz. Isso explica por que nas situações em que o Poder Judiciário anula ato discricionário, a providência judicial não pode permitir que o juiz defina o conteúdo do novo ato, papel a ser exercido exclusivamente pelo administrador. Importante aspecto sobre o tema em exame diz respeito à distinção entre motivo e motivação. Verificamos que não obstante esses conceitos estejam intrinsecamente ligados, um não pode ser confundido com o outro (vide Capítulo 3). A invalidação do ato em razão de vício de motivo ocorre quando o ato tiver sido praticado sem a efetiva ocorrência dos fatos ou das circunstâncias exigidas pela lei (exemplo: se tiver sido concedida aposentadoria voluntária sem que o servidor tenha requerido a sua aposentação). Na falta de motivação, ou seja, quando o administrador pratica o ato sem indicar essas circunstâncias ou situações de fato que justificam a prática do ato, estaremos diante de vício de forma.
5.4.5 Objeto O objeto, ou conteúdo, do ato administrativo corresponde à própria manifestação unilateral de vontade a ser produzida pela Administração Pública. O objeto do ato corresponde ao próprio ato administrativo, ao conteúdo da manifestação de vontade produzida pela Administração Pública. Assim, por exemplo, o objeto do ato administrativo que nomeia candidato aprovado em concurso público para provimento de cargo é a própria nomeação, do ato que concede aposentadoria é a própria concessão de aposentadoria.
Livro 1.indb 214
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
215
5.5 Atributos do ato administrativo 5.5.1 Atividade administrativa e prerrogativas públicas Toda e qualquer atividade do Estado deve necessariamente estar voltada à consecução do interesse público. Ainda que o poder público não seja o único legitimado à realização desses interesses, ele é indiscutivelmente o que está mais bem aparelhado para o seu exercício. Aliás, a própria existência do Estado moderno é reconhecida não como um fim em si, mas como instrumento necessário à realização desses interesses gerais, dentre os quais se pode dar destaque especial à concreção dos direitos fundamentais. A fim de permitir a realização dos fins que justificam a própria existência do Estado, o Direito Administrativo irá conferir à Administração Pública uma série de prerrogativas. A atuação do Estado tem-se diversificado cada vez mais. Convênios, contratos de gestão, concessões e permissões de serviço público, termos de parceria são apenas alguns dos instrumentos de que o Estado moderno tem-se utilizado para permitir o exercício das suas funções e para a realização dos seus objetivos. A forma mais comum de o Estado exercer sua função administrativa continua a ser, todavia, a prática de atos unilaterais de vontade traduzidos por meio dos atos administrativos. Dado que os atos administrativos são o meio mais comum de que dispõe a Administração Pública para exercer suas atividades e de cumprir suas atribuições constitucionais e legais, é necessário que o ordenamento jurídico confira a esses atos determinados atributos que facilitem o exercício dessas atividades estatais. Se alguém invade e ocupa propriedade privada, ressalvada a hipótese do desforço imediato, prevista no §1º do art. 1210 do Código Civil, o proprietário terá que obter ordem judicial para poder promover a desocupação da área. Agora, se alguém invade e monta acampamento em praça pública, a Administração, para promover a desocupação da área, não necessitará de ordem judicial; poderá fazê-lo por seus próprios meios. Com o objetivo de tornar mais ágil a atuação estatal, que deve estar voltada para a realização dos interesses mais relevantes da sociedade, o ordenamento confere aos atos administrativos atributos. Os atributos dos atos administrativos normalmente apresentados são: a presunção de legitimidade, a auto-executoriedade e a imperatividade. Além desses, outros atributos têm sido apontados, como a exigibilidade e a tipicidade. Em relação à tipicidade, algumas restrições devem ser apresentadas ao seu enquadramento como atributo do ato administrativo. É certo que a Administração Pública não pode praticar atos não previstos em lei, não disciplinados pela lei. A partir da aplicação do princípio da legalidade à Admi nistração e, portanto, a seus atos, é de se concluir que somente os atos previstos em lei podem ser praticados pela Administração Pública (concessão de alvará, autorização para uso de bem público, nomeação de servidor, designação de servidor para exercer função de confiança, demissão de servidor, homologação de licitação, adjudicação de licitação, aplicação de sanções administrativas, concessão de aposentadoria, concessão de licenças etc.). Aplica-se aos atos administrativos, é certo, o conceito de tipicidade, que pode ser traduzido como limitação imposta pelo princípio da legalidade à prática dos atos administrativos. Discordamos, todavia, que essa característica seja considerada atributo do ato administrativo.
Livro 1.indb 215
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
216
Por atributo devemos entender uma prerrogativa que o ordenamento jurídico- administrativo confere à Administração Pública. A tipicidade, ainda que seja característica dos atos administrativos, não importa na criação de prerrogativa, mas, ao contrário, em uma limitação à atuação da Administração Pública na medida em ela somente poderá praticar os atos previstos em lei. Trata-se de verdadeira garantia para os particulares que não serão surpreendidos com a prática de ato não disciplinado ou não regulado por lei. Isto não se traduz, todavia, em qualquer prerrogativa para a Administração, diferentemente do que se verifica com os atributos da presunção de legitimidade, da auto-executoriedade e da imperatividade. Desse modo, não inserimos a tipicidade dentre os atributos do ato administrativo.
5.5.2 Presunção de legitimidade A importância da presunção de legitimidade está ligada à consequência que dela decorre. Quando se afirma que o ato administrativo se presume legítimo, conclui-se que tanto os administradores públicos quanto os particulares afetados pelo ato devem dar-lhe cumprimento. Todos estão obrigados a cumprir os atos administrativos, porque eles se presumem legítimos, legitimidade que se mantém até que seja afastada por decisão judicial ou pela própria Administração Pública. Caso determinado ato que afete um particular tenha sido praticado com excesso de poder ou com desvio de finalidade, o particular — ou qualquer administrador público — não pode simplesmente se recusar a dar-lhe cumprimento sob o fundamento de que o ato é abusivo e, portanto, nulo e insusceptível de gerar efeitos jurídicos válidos. O reconhecimento da falta de validade do ato pressupõe manifestação formal da Administração Pública, daquela de onde o ato foi emanado, ou do Poder Judiciário. Verifica-se que a presunção que favorece os atos administrativos conferindo-lhes o atributo da legitimidade é uma presunção relativa, iures tantum. Todos os atos administrativos gozam desse atributo. Há uma única situação no Direito Administrativo em que a consequência desse atributo é afastada, isto é, em que o destinatário do ato administrativo não necessita obter declaração de ilegitimidade do ato para estar autorizado a negar-lhe cumprimento: trata-se de ordem manifestamente ilegal dada a servidor público. Uma das obrigações dos servidores públicos decorrente do poder hierárquico é a de cumprir as ordens de seus superiores, “salvo quando manifestamente ilegais” (Lei nº 8.112/90, art. 116, IV). Na hipótese de se tratar de ordem manifestamente ilegal — não que ela se presuma ilegítima — o servidor tem não apenas o direito, mas a obrigação de se recusar a dar-lhe cumprimento independentemente de precisar obter declaração da Administração Pública ou do Poder Judiciário quanto à ilegalidade do ato administrativo. Se ao servidor público é dada ordem para ser descortês com os particulares que busquem informações junto à sua unidade administrativa, este servidor não precisa propor ação judicial ou protocolar petição perante sua unidade administrativa solicitando a declaração de ilegalidade do ato. Em face da evidente ilegalidade do ato, o servidor deve simplesmente recusar-se a cumprir a ordem e, se a cumprir, isto é, se for descortês, deverá ser chamado a responder, juntamente com aquele que lhe deu a ordem, a processo administrativo disciplinar por violação do seu dever funcional de tratar as pessoas com urbanidade (Lei nº 8.112/90, art. 116, XI).
Livro 1.indb 216
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
217
Desse modo, a fim de não sofrer as consequências decorrentes da prática de atos abusivos emanados da Administração Pública, devem os destinatários desses atos buscarem, em primeiro lugar, a própria Administração Pública, solicitando-lhe a declaração de ilegitimidade do ato, e diante de qualquer lesão ou de ameaça de lesão a direito socorrer-se dos mecanismos de controle judicial possíveis. A presunção de legitimidade é atributo do próprio ato. Vimos, porém, que os atos administrativos somente podem ser praticados se tiver ocorrido o motivo previsto em lei e necessário à sua prática. Se a Administração concede aposentadoria compulsória a determinado servidor é porque ele completou 70 anos. Esse é o motivo necessário à prática do ato. Nesse sentido, foi desenvolvida teoria que, além de presumir a legitimidade do ato, presume igualmente verídicos os motivos alegados pela Administração e que justificaram a sua prática. Se a Administração Pública concede aposentadoria compulsória, presume-se como verdade que o servidor completou a idade exigida. A esse aspecto do atributo da presunção de legitimidade do ato se denomina presunção de veracidade dos motivos invocados pela Administração Pública. Trata-se de presunção igualmente relativa. Se alguém questiona a validade de certo ato sob o argumento da inexistência ou da ilegitimidade dos motivos de que se serviu a Administração para praticá-lo, esse indivíduo terá o ônus de demonstrar, na via administrativa ou na via judicial, que o motivo não existe ou que não é válido. A aplicação de multa de trânsito pode ser utilizada como exemplo. Se indivíduo questiona multa de trânsito aplicada pelo DETRAN por excesso de velocidade, o ônus de que o veículo não estava em velocidade irregular cabe ao particular, e não ao DETRAN. Se este último observou os procedimentos necessários à aplicação da multa, ocorrerá inversão do ônus da prova de modo que cabe ao particular demonstrar que o motivo alegado pelo poder público não é verdadeiro ou que não é válido.
5.5.3 Auto-executoriedade O segundo atributo do ato administrativo, a auto-executoriedade, ainda que não se confunda com a presunção de legitimidade, dela decorre diretamente. A auto-executoriedade pode ser traduzida como a prerrogativa de que dispõe a Administração Pública de executar seus atos sem que para tanto necessite de ordem ou de autorização judicial.14 Dado que os atos administrativos são legítimos por presunção, legitimidade que somente pode ser afastada se houver declaração da Administração Pública ou do Poder Judiciário, qual o sentido ou a necessidade de se obter declaração judicial para permitir a execução desses atos? De nada serviria afirmar que os atos administrativos são legítimos se a cada momento ou para dar executoriedade a cada ato a Administração Pública necessitasse obter autorização judicial.
Sobre o tema, STJ: “Administrativo – Recurso Especial – Fechamento de prédio irregular – Auto-executoriedade do ato administrativo – Desnecessidade de invocar a tutela judicial. 1. A Administração Pública, pela qualidade do ato administrativo que a permite compelir materialmente o administrado ao seu cumprimento, carece de interesse de procurar as vias judiciais para fazer valer sua vontade, pois pode por seus próprios meios providenciar o fechamento de estabelecimento irregular. 2. Recurso especial improvido” (REsp nº 696.993-SP, 2ª Turma. Rel. Min. Eliana Calmon. Julg. 6.12.2005. DJ, 19 dez 2005, grifos nossos).
14
Livro 1.indb 217
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
218
O exemplo apresentado anteriormente relativo à prerrogativa de que dispõe a Administração Pública para desocupar praça pública que tenha sido invadida ilustra bem a auto-executoriedade. Evidentemente esse poder da Administração de agir sem que tenha que obter ordem judicial encontra limites. Tomemos outro exemplo: se órgãos responsáveis pela vigilância sanitária interditam estabelecimento empresarial, não há necessidade de ordem judicial para a interdição. Se, ao invés de interditar, que seria sanção mais drástica, é simplesmente aplicada multa aos particulares, não poderão os responsáveis por este órgão executar a multa pela via administrativa. Caso os devedores não paguem voluntariamente a sanção aplicada, haverá necessidade de inscrição dos devedores em dívida ativa (Lei nº 6.830/80), e a execução da multa deverá ser feita pela via judicial. Somente servidor do Poder Judiciário, em cumprimento de decisão judicial, poderá penhorar os bens necessários ao pagamento da dívida. Um dos limites à auto-executoriedade da atividade administrativa é o patrimônio do particular. Para satisfazer seus créditos, decorram de multas ou de prejuízos causados ao erário, não pode a Administração Pública invadir o patrimônio dos particulares e, contra a vontade destes, privar-lhes da propriedade dos seus bens ou dos salários, o que costuma ocorrer com servidores públicos. A jurisprudência do STF reconhece a existência de limites ao poder da Administração Pública de dar executoriedade a seus próprios atos. Ao julgar o Mandado de Segurança nº 24.182/DF,15 proposto por servidor da Câmara dos Deputados contra este órgão legislativo, decidiu o STF que, não obstante demonstrada a responsabilidade do servidor que deu causa a prejuízo à Câmara dos Deputados, não poderia este órgão, sem o consentimento do servidor, promover a inde nização do prejuízo por meio de processo administrativo que resultaria em desconto em contracheque, sendo necessária a propositura de ação judicial. De forma aparentemente contraditória, em outra oportunidade, o mesmo STF, ao julgar o MS nº 24.544/DF,16 indeferiu pedido de impetrante contra ato emanado do Tribunal de Contas da União que determinara à Câmara dos Deputados o desconto da dívida na remuneração do responsável, sendo dispensável a sua manifestação de vontade, haja vista a autorização emanada do TCU ter decorrido de processo de tomada de
STF: “Mandado de Segurança. 2. Desaparecimento de talonários de tíquetes-alimentação. Condenação do impe trante, em processo administrativo disciplinar, de ressarcimento ao erário do valor do prejuízo apurado. 3. Decisão da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados de desconto mensais, em folha de pagamento, sem a autorização do servidor. 4. Responsabilidade civil de servidor. Hipótese em que não se aplica a auto-executoriedade do procedimento administrativo. 5. A Administração acha-se restrita às sanções de natureza administrativa, não podendo alcançar, compulsoriamente, as conseqüências civis e penais. 6. À falta de prévia aquiescência do servidor, cabe à Administração propor ação de indenização para a confirmação, ou não, do ressarcimento apurado na esfera administrativa. 7. O art. 46 da Lei nº 8.112, de 1990, dispõe que o desconto em folha de pagamento é a forma como poderá ocorrer o pagamento pelo servidor, após sua concordância com a conclusão administrativa ou a condenação judicial transitada em julgado. 8. Mandado de Segurança deferido” (MS nº 24.182-DF, Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julg. 12.2.2004. DJ, 03 set. 2004). 16 STF: “Legitimidade – Mandado de Segurança – Ato do Tribunal de Contas da União. Imposição de valor a ser ressarcido aos cofres públicos e previsão de desconto, considerado o que percebido pelo servidor, geram a legitimidade do Tribunal de Contas da União para figurar no mandado de segurança como órgão coator. Proventos – Desconto – Leis nº 8.112/90 e 8.443/92. Decorrendo o desconto de norma legal, despicienda é a vontade do servidor, não se aplicando, ante o disposto no artigo 45 da Lei nº 8.112/90 e no inciso I do artigo 28 da Lei nº 8.443/92, a faculdade de que cuida o artigo 46 do primeiro diploma legal — desconto a pedido do interessado” (MS nº 24.544-DF, Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. 4.8.2004. DJ, 04 mar. 2005). 15
Livro 1.indb 218
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
219
contas especial no qual foi observado o direito de ampla defesa, bem como cumprida a exigência de notificação prévia ao impetrante do desconto, de acordo com o art. 46, da Lei nº 8.112/90. Ao considerar legítimo o desconto em folha promovido pela Câmara dos Depu tados decorrente de processo conduzido pelo TCU, e ilegítimo o mesmo desconto quando oriundo de processo administrativo conduzido no âmbito da própria Câmara dos Deputados, o STF deixa inequívoco o seu entendimento acerca da existência de limites para a atuação judicial, todavia, não define precisamente quais são esses limites, questão ainda em aberto em nosso ordenamento jurídico. Em relação a esse tema, muito se discute acerca da legitimidade de medidas criadas pela Administração Pública com o intuito de forçar os particulares a quitarem suas dívidas. Exemplo desse tipo de medida seria a impossibilidade de se promover junto aos DETRANs a transferência da propriedade de veículos caso haja débitos pendentes. A realidade consiste em que a execução judicial desses débitos é absolutamente impraticável. O valor da grande maioria dos débitos para com o erário, ao menos no caso de débitos junto aos órgãos de controle de trânsito de veículos, é muito inferior ao custo da execução judicial requerida. Ou seja, ainda que a execução seja bem-sucedida, o que é improvável, o valor obtido não cobre as despesas necessárias à execução judicial. A dúvida consiste em saber se são legítimas as medidas administrativas — de que seriam também exemplos a inclusão do nome do devedor em listas de mal pagadores, a impossibilidade de abertura ou de movimentação de conta corrente bancária, bloqueio de CPF — que objetivem criar embaraço aos particulares a fim de forçar-lhes a pagar seus débitos. Desde que essas medidas estejam previstas em lei, observem os princípios do contraditório e da ampla defesa, quer em relação à constituição do débito, quer em relação à própria imposição das medidas administrativas tendentes a forçar o particular a quitar seu débito, e desde que observem parâmetros de razoabilidade, é de se reconhecer que se trata de medidas legítimas. Observados esses parâmetros, não há fundamento jurídico para negar legitimidade à adoção, em lei, de medidas administrativas tendentes a forçar os devedores a pagar suas dívidas.
5.5.4 Imperatividade A imperatividade, como atributo do ato administrativo, pode ser examinada sob dois aspectos distintos. Em primeiro lugar, ela pode ser considerada fundamento para a criação de obrigações para os particulares. No Direito Privado, os atos unilaterais de vontade são considerados fonte de obrigação somente para quem produz a manifestação de vontade. É inconcebível, no âmbito das relações privadas, que particular pratique ato ou produza manifestação unilateral de vontade e que esse ato crie obrigação para terceiro. No âmbito do Direito Administrativo, ao contrário, a imperatividade, que constitui mais um atributo dos atos administrativos, permite que a Administração Pública pratique o ato e que a obrigação surgida seja imputada a terceiro. Exemplo dessa forma de conceber a imperatividade se verifica com a emissão de certidão de dívida ativa. A emissão de dívida ativa independe do consentimento ou pode ser praticada contra a vontade do particular. Praticado o ato unilateral pela Administração, a obrigação criada é do particular, e não da Administração.
Livro 1.indb 219
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
220
Não se quer com este exemplo afirmar que o ato administrativo somente crie obrigação para os particulares. É evidente que haverá inúmeras situações em que o ato irá criar obrigação para a própria Administração que o pratica. Há circunstâncias que legitimam a Administração Pública a ir além da simples aplicação de multa ou da imposição de obrigação de efetuar determinado pagamento aos particulares. Há hipóteses em que a Administração dispõe da prerrogativa de exigir do particular uma conduta, uma obrigação de fazer. A essa prerrogativa da Administração de exigir do particular uma atuação positiva, alguns autores denominam exigibilidade.17 Uma vistoria realizada pelo Corpo de Bombeiros, por exemplo, pode resultar em determinação dirigida ao proprietário de um cinema ou de uma casa de espetáculos para a construção de saída de emergência, para a colocação de novos extintores de incêndio ou para a demolição de algumas paredes. A essa prerrogativa da Administração, que vai além da simples imposição de obrigação de natureza pecuniária e que se manifesta por meio de atos administrativos, denomina-se exigibilidade. Esse novo atributo, a rigor, nada mais é do que uma manifestação do atributo da imperatividade. A exigibilidade não é estranha à imperatividade. É tão somente uma manifestação especial deste último atributo. Por meio da imperatividade a Administração Pública dispõe da prerrogativa de impor unilateralmente obrigações aos particulares; se esta obrigação possui natureza de fazer e exige dos particulares uma atuação positiva, teríamos uma manifestação especial do atributo da imperatividade que pode ser denominada de exigibilidade. Outro enfoque possível da imperatividade diz respeito ao uso da força, inclusive policial, para dar executoriedade aos atos administrativos. No item anterior vimos que a auto-executoriedade está ligada à capacidade da Administração de agir e de executar seus atos independentemente de autorização judi cial. Um dos exemplos que apresentamos da auto-executoriedade foi a interdição de estabelecimento empresarial pela vigilância sanitária. Ora, de que adiantaria admitir a auto-executoriedade se diante de qualquer ameaça de reação por parte do particular a atividade administrativa tivesse que ser suspensa? A fim de permitir que a Administração possa executar seus próprios atos sem que necessite obter ordem judicial, é necessário que os atos administrativos possuam outro atributo, a imperatividade. O uso da força, inclusive física, em inúmeras situações mostra-se como o meio necessário à execução de diversas atividades administrativas. Servindo-nos uma vez mais do exemplo da interdição do estabelecimento, vemos que os atributos do ato administrativo são complementares: dado que o ato de interdição presume-se legítimo (presunção de legitimidade), a Administração não necessita obter ordem judicial para agir (auto-executoriedade); se para dar executoriedade ao ato for necessária a utilização de força policial (imperatividade), é legítimo esse uso, desde que observados parâmetros de proporcionalidade (ou razoabilidade). Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a diferença entre exigibilidade e executoriedade “está apenas no meio coercitivo; no caso da exigibilidade, a Administração se utiliza de meios indiretos de coerção, como a multa ou outras penalidades administrativas impostas em caso de descumprimento do ato. Na executoriedade, a Administração emprega meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa, utilizando-se inclusiva da força” (Direito administrativo, p. 192). Em sentido contrário, José dos Santos Carvalho Filho coloca a exigibilidade como consectário natural da imperatividade (Manual de direito administrativo, 14. ed., p. 108).
17
Livro 1.indb 220
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
221
Em inúmeras situações, o exercício das atividades administrativas vê-se contraposto por interesses dos particulares que se manifestam por meio de atos contrários ao direito e à ordem jurídica. Uma violenta manifestação pública pode ser apresentada como exemplo de situação em que o uso da força pela Administração se faz necessário. É evidente que o uso da força pela Administração deve ser limitado e condicionado à necessidade de realização do interesse público. O uso da força que extrapole os limites que a situação concreta requer deve ser punido judicial e administrativamente. Se para reprimir a manifestação de rua a polícia faz uso de armas de fogo e atira nos manifestantes, ainda que a situação justifique o uso da força, a falta de proporcionalidade entre a ação dos manifestantes e a reação da polícia pode resultar no enquadramento da conduta como crime de homicídio ou de lesões corporais, conforme o caso. Se, todavia, for demonstrado que a manifestação era conduzida por pessoas armadas, que punham em risco a vida ou a integridade física de outros particulares ou dos agentes públicos, a reação da polícia deve ser proporcional e o uso de armas pode ser legítimo. Vê-se que o reconhecimento da proporcionalidade e, portanto, da legitimidade do uso da imperatividade que pode traduzir-se pelo uso da força na atuação da Administração Pública, depende do exame das circunstâncias do caso concreto.
5.6 Classificação dos atos administrativos Os atos administrativos admitem inúmeras classificações. Apresentaremos aqui algumas das diferentes categorias de atos administrativos, cientes de que a apresentação dessas categorias presta-se não apenas para fins acadêmicos ou didáticos, mas que o conhecimento das particularidades relativas a cada espécie é de fundamental importância para o bom andamento da atividade administrativa e para a abordagem a ser dada pelo Poder Judiciário na eventualidade do ato administrativo ser objeto de impugnação.
5.6.1 Classificação do ato administrativo quanto ao destinatário Sob a ótica da identificação das pessoas a serem alcançadas pelos efeitos do ato administrativo, estes podem ser divididos em: - Ato individual; e - Ato geral. O ato individual não é aquele que alcança apenas uma pessoa; é aquele cujos efeitos afetam pessoa ou pessoas previamente identificadas. Se pelo exame do ato for possível identificar o rol de pessoas afetadas pelo ato, estaremos diante do ato individual. Ao contrário, se o exame do ato não permite identificar quem são os afetados, tratar-se-á de ato administrativo geral. O edital de concurso para provimento de cargos públicos, por exemplo, é ato geral. O exame do ato não permite identificar os que são por ele alcançados. A nomeação de candidato aprovado em concurso público, ao contrário, permite pelo exame do próprio ato identificar o interessado, aquele afetado pela prática do ato. O primeiro aspecto relevante da distinção entre ato individual e ato geral diz respeito à anulação: em ambos os casos devem ser assegurados o contraditório e a ampla defesa? O contraditório e a ampla defesa, conforme previstos na Constituição Federal (art. 5º, LV), são de observância obrigatória em processos administrativos e judiciais. Trata-se de garantia básica decorrente do conceito de Estado Democrático e de Direito.
Livro 1.indb 221
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
222
A jurisprudência do STF é farta em relação à necessidade de observância desses princípios não apenas em processos disciplinares ou tendentes à aplicação de sanções, mas igualmente em relação a processos administrativos cujo objetivo seja a anulação de ato administrativo.18 A Lei nº 9.784/99, em seu art. 26, dispõe sobre a necessidade de que os interessados em decisões a serem proferidas em processos administrativos sejam intimados “para ciência de decisão ou a efetivação de diligências” e em seu art. 28 é definido que “devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse”. Vê-se que a jurisprudência do STF e a legislação pertinente ao processo administrativo são uníssonas em relação à necessidade de ser assegurado contraditório e ampla defesa aos interessados em processos administrativos, e que se deve entender por interessado aquele cujos interesses individuais sejam afetados.19 Feitas essas considerações, resta inquestionável que a anulação pela Administração Pública do ato individual, daquele que afete interesse individual, necessita de prévia observância do contraditório e de ampla defesa. Nesta hipótese, quer a ilegalidade seja imputável ao particular, quer seja ela imputável à Administração, devem ser observados mencionados princípios. Cf. STF. MS nº 23.550-DF, Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Rel. p/ acórdão Min. Sepúlveda Pertence. Julg. 4.4.2001. DJ, 31 out. 2001. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação à necessidade de observância do contraditório e da ampla defesa em processos encontra-se em constante evolução. Até recentemente — RE nº 213.513-SP, 1ª Turma. Rel. Min. Ilmar Galvão. Julg. 8.6.1999. DJ, 24 set. 1999; e RE nº 224.283-SP, 1ª Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julg. 11.9.2001. DJ, 11 out. 2001 —, o entendimento adotado acerca da interpretação do art. 5º, LV, da Constituição Federal era no sentido de que a aplicação desse dispositivo “pressupõe litígio ou acusação, não se aplicando, assim, à espécie, já que se trata de ato de nomeação nulo, passível de revogação pela própria Administração” (RE nº 224.283-SP). Precedente citado: Informativo STF, n. 241. Recente jurisprudência do STF tem adotado nova interpretação do dispositivo constitucional no sentido de que o contraditório e a ampla defesa devem ser observados em quaisquer processos administrativos tendentes a afetar interesses individuais, conforme se depreende do julgamento do RE nº 158.543, onde ficou assentado que, “tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseja a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada. Presunção de legitimidade do ato administrativo praticado que não pode ser afastada unilateralmente, porque é comum à Administração e ao particular” (RE nº 158.543-RS, 2ª Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. 30.8.1994. DJ, 06 out. 1995). No mesmo sentido, vide MS nº 24.268-ED/MG, Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julg. 3.5.2006. DJ, 09 jun. 2006. 19 Nesse sentido, vide: STF: “Administrativo. Mandado de segurança. Transporte coletivo interestadual. Ajuste de itinerário. Decreto nº 952/93. Permissão. Nova linha. Art. 175 da Constituição Federal. Anulação de ato administrativo. Súmula 473/STF. Devido processo legal. Não cabe ao Judiciário, em mandado de segurança, reapreciar prova técnica, complexa, produzida na esfera administrativa, para decidir se, na espécie, houve simples ajuste de itinerário, ou concessão de nova linha sem o processo licitatório exigido pelo art. 175 da Constituição Federal. No exercício do poder de autotutela, pode o administrador, de ofício, anular ato considerado ilegal, desde que tenha competência para tanto e conceda oportunidade de defesa à parte interessada. Hipótese em que as contra-razões da recorrente foram apresentadas a destempo no processo administrativo, inocorrendo descumprimento ao princípio do devido processo legal. Recurso ordinário a que se nega provimento” (RMS nº 23.518-DF, 1ª Turma. Rel. Min. Ilmar Galvão. Julg. 12.9.2000. DJ, 10 nov. 2000, grifos nossos). STF: “Recurso Extraordinário. Constitucional. Administrativo. Cumulação de cargos. Bloqueio de vencimentos. Defesa prévia. Obrigatoriedade. 1. Ato do Secretário de Saúde do Estado do Ceará que determinou o bloqueio dos vencimentos da recorrida, por entender que ela acumulava ilegalmente dois cargos públicos. 2. A jurisprudência desta Corte sempre reconheceu o poder da Administração rever seus atos para, observada alguma irregularidade, anulá-los (Súmulas STF nº 346 e 473). Essa capacidade, todavia, não pode ser exercida de forma arbitrária, devendo respeitar os ditames constitucionais e garantir aos atingidos a devida defesa. 3. Recurso extraordinário conhecido e improvido” (RE nº 292.586-CE, 2ª Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julg. 15.2.2005. DJ, 04 mar. 2005, grifos nossos). 18
Livro 1.indb 222
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
223
Em nenhum precedente enfrentado pelo STF se tratou, todavia, da questão relativa à anulação de ato geral. A lei que regula o processo administrativo (Lei nº 9.784/99) igualmente não apresenta qualquer distinção entre ato geral ou ato individual para fins de anulação. De tudo o que foi exposto, no entanto, não se pode inferir que a anulação do ato geral necessite do contraditório para a sua validade. Se as razões que levam a Admi nistração a anular ato que afete interesses gerais, de pessoas não identificadas, são imputáveis à Administração Pública, não há razões de direito que justifiquem a abertura de contraditório ou de ampla defesa. Se se trata de ato geral, não há, ademais, como viabilizar a notificação pessoal exigida pela Lei nº 9.784/99 em face da evidente impossibilidade de identificação daqueles a serem afetados pelo ato. Pode-se concluir, portanto, que se a Administração identificar ilegalidade em edital publicado para provimento de cargos públicos ou em nomeação de determinado candidato para cargo público, deverá ela assegurar aos possíveis afetados direito ao contraditório e à ampla defesa apenas na segunda hipótese. Na primeira hipótese, dado que não se atribui aos particulares a ilegalidade que afeta o ato, não se faz necessário o contraditório ou a ampla defesa. A divisão dos atos administrativos em individuais e gerais interessa igualmente ao exame da possibilidade de revogação do ato. Nos termos da Súmula STF nº 473, a revogação dos atos administrativos deve ocorrer em observância aos direitos adquiridos. Qual a consequência ou o alcance dessa afirmação? Tanto o ato geral quanto o individual que tenham gerado direito adquirido se tornam irrevogáveis? A resposta, parece-nos, é negativa. Em relação ao ato individual, aquele que afeta pessoa ou pessoas determinadas, a aplicação da regra de que a sua revogação não pode ocorrer se houver violação de direitos adquiridos importa em tornar o ato irrevogável. Não há como respeitar ou observar o direito adquirido decorrente de ato individual com a supressão do ato. A revogação do ato individual importaria em violação do direito que dele decorreu. Exemplo: a investidura em cargo público. A nomeação de candidato aprovado em concurso público se trata de ato discricionário. Todavia, uma vez empossado em seu cargo, dá-se a investidura e o servidor passa a ter direito adquirido ao exercício. Desse modo, investido o servidor no cargo, perde a Administração a prerrogativa de revogar o ato de nomeação, haja vista esta revogação importar em violação do direito adquirido do servidor de exercer as atividades do cargo. No caso do ato geral, de uma instrução normativa editada por órgão público, por exemplo, não obstante possa ser fonte de direitos adquiridos, a Administração pode revogar ou modificar o ato. Evidente que a revogação do ato geral não poderia retroagir e afetar direitos adquiridos, mas impediria que outras pessoas viessem a adquirir direitos. Em resumo, o ato individual que tenha gerado direito adquirido se torna irrevogável; o ato geral, não obstante tenha gerado direito adquirido, pode ser revogado, desde que sejam observados esses direitos.
5.6.2 Classificação do ato administrativo quanto ao alcance De acordo com esta classificação, os atos podem se dividir em: - Atos internos; e - Atos externos.
Livro 1.indb 223
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
224
A classificação dos atos administrativos quanto ao alcance objetiva definir se os efeitos produzidos pelo ato afetam apenas os que se encontram no âmbito da Administração Pública ou se exploram os limites desta e afetam pessoas estranhas a ela. A nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo, é ato externo porque afeta pessoa estranha à Administração. Uma vez empossado, se esse mesmo servidor solicita à Administração o reconhecimento de determinada vantagem pessoal, o ato pelo qual a Administração defere ou nega a solicitação é ato interno. O interesse prático dessa classificação está ligado à forma como se deve dar publicidade ao ato. Em observância ao princípio da publicidade, a Administração tem o dever de divulgar os atos que pratica. A pergunta seguinte consiste em saber como a divulgação deve ser feita. A publicidade dos atos deve necessariamente ser realizada por meio de publicação em órgão oficial de divulgação (diário oficial)? Se nem todos os atos devem ser publicados, quais devem observar essa forma de divulgação? Em relação à divulgação dos atos, o primeiro passo consiste em verificar se a lei que regula indica a forma pela qual o ato deve ser divulgado. Se a lei indica a forma de divulgação, que seja observada a lei, independentemente de se tratar de ato interno ou externo. As modalidades de licitação podem ser utilizadas como exemplo. Não obstante se tratem de atos externos, haja vista afetarem pessoas estranhas à Administração Pública, a lei define precisamente como deve ser feita a publicidade dos atos convocatórios de cada uma das modalidades. Em relação à concorrência, tomada de preços, leilão e concurso, a Lei nº 8.666/93 (art. 21) determina a publicação de edital em diário oficial e em jornal de grande circulação. No caso do convite, a lei apenas requer a divulgação de seu instrumento, que no caso é a carta-convite, mediante “afixação em local apropriado” (art. 20, III), o que pode ser traduzido pela simples afixação da carta-convite em quadro de avisos mantido pela Administração para esse fim. Em relação ao pregão, a Lei nº 10.520/02 e o Decreto nº 3.555/00 determinam a sua divulgação obrigatória em diário oficial e pela internet e, em função do valor do pregão, pode ainda ser obrigatória a sua publicação em jornal de grande circulação de âmbito local ou de âmbito territorial ou nacional. Vê-se que se a lei indica a forma de publicidade a ser observada pelo ato, basta seguir o que ela dispõe. Todavia, na maioria dos casos, a lei é omissa em relação a como os atos devem se divulgados. Nesta hipótese, é importante verificar se se trata de ato interno ou externo. Na primeira hipótese, de se tratar de ato interno, não obstante a publicidade seja obrigatória, não se faz necessária a publicação do ato em órgão oficial. É necessário que seja dada divulgação suficiente ao ato a fim de que seus destinatários possam dele tomar conhecimento e adotar as providências cabíveis. A fim de dar publicidade aos atos internos, boa parte dos órgãos públicos cria seus boletins internos, cuja função é dispensar o envio de todos os seus atos para diários oficiais. Na hipótese de se tratar de ato externo, todavia, salvo se a lei dispuser em sentido contrário — que ocorreria em situações em que se exija notificação pessoal do interessado (Lei nº 9.784/99, art. 28), por exemplo — a publicidade do ato deve ser feita mediante publicação em órgão oficial de divulgação.
5.6.3 Classificação do ato administrativo quanto ao conteúdo De acordo com este histórico critério de classificação, os atos administrativos podem ser divididos em:
Livro 1.indb 224
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
225
- Atos de império; - Atos de gestão; e - Atos de expediente. Esta classificação desempenhou importante papel na evolução da teoria da responsabilidade civil do Estado. Em razão da regra da irresponsabilidade civil do Estado adotada pelas monarquias absolutistas, a primeira tentativa de responsabilizar o poder público teve por fundamento a divisão dos atos administrativos em atos de império e atos de gestão. Os primeiros seriam aqueles praticados pela Administração Pública em posição de supremacia em relação aos particulares; os atos de gestão, os praticados pela Administração em igualdade de condições com os particulares. Essa divisão dos atos permitiu, em determinado momento, responsabilizar o Estado pelos prejuízos causados a particulares em razão da prática de atos de gestão, restando isento o Estado do dever de ressarcir qualquer prejuízo produzido pela prática de ato de império. Não obstante sua importância histórica, atualmente essa classificação se mostra inútil. A rigor, discordamos da própria existência de atos administrativos de gestão. Conforme já examinamos neste capítulo, ainda que haja situações não reguladas pelo Direito Administrativo, este nunca se afasta totalmente da atividade administrativa do Estado. Desse modo, ainda que certos atos praticados pela Administração Pública possam sofrer regulação pelo Direito Privado, em alguma medida, sempre haverá prerrogativas públicas interferindo na atividade administrativa do Estado e impedindo que a Administração Pública atue em igualdade de condições com os particulares. Ato administrativo é aquele regulado pelo Direito Administrativo, e este se caracteriza por conferir prerrogativas ao poder público. Desse modo, a expressão ato administrativo de império nos parece pleonástica na medida em que todo ato administrativo, por definição, é ato de supremacia. Ato administrativo de gestão, ao contrário, é uma contradição. Se o ato administrativo se caracteriza pela existência de prerrogativas conferidas à Administração Pública, como se pode admitir ato administrativo de gestão? O ato de gestão, portanto, não é uma espécie de ato administrativo. As empresas estatais, por exemplo, que são pessoas de Direito Privado, praticam atos de gestão, entendidos estes como atos de Direito Privado e não como atos administrativos. Dentro dessa classificação resta, finalmente, examinar os atos de expediente, entendidos como aqueles de mera tramitação processual. Deles não resulta qualquer direito ou obrigação, mas simplesmente o encaminhamento do processo administrativo para instrução. Quando, por exemplo, servidor protocola requerimento dirigido ao diretor-geral do órgão ou entidade onde se encontra lotado e os agentes responsáveis pelo protocolo fazem o encaminhamento do processo a esta autoridade, o ato de encaminhamento é ato administrativo de expediente. É de se observar, todavia, que a crítica que apresentamos à classificação no que concerne ao seu elemento essencial — a divisão dos atos administrativos em atos de gestão e atos administrativos de império — torna desnecessário qualquer outro comentário sobre o tema.
5.6.4 Classificação do ato administrativo quanto ao regramento Este critério de classificação apresenta duas importantes categorias de atos administrativos:
Livro 1.indb 225
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
226
- Atos vinculados; e - Atos discricionários. Por ocasião do exame relativo aos requisitos de validade do ato administrativo, especialmente ao estudo dos requisitos do motivo e do objeto, verificamos que da rela ção desses dois requisitos será possível identificar se se trata de ato vinculado ou de ato discricionário. O ato vinculado deve ser entendido como aquele para o qual, dada determinada situação ou circunstância fática ou jurídica, a própria lei indica o objeto ou conteúdo do ato. Diante de ato vinculado, a lei não permite que razões de conveniência ou de oportunidade do administrador interfiram no objeto do ato a ser praticado. Uma aposentadoria compulsória, a expedição de alvará para construir, licença maternidade são alguns exemplos de atos vinculados, porque razões de mérito, vale dizer, de conveniên cia ou de oportunidade não podem interferir na prática do ato. A aposentadoria, por exemplo, não pode deixar de ser concedida pelo fato de a Administração a considerar inconveniente ou inoportuna. Os atos mencionados são vinculados porque a lei impõe à Administração a sua prática sem que o administrador possa deixar de praticá-los ou possa praticá-los com conteúdo diverso ou em oportunidade diversa daquela definida em lei. Ato discricionário, ao contrário, é aquele cujo conteúdo foi definido, em alguma medida, em razão de a Administração Pública ter reputado a sua prática conveniente ou oportuna. Se a lei confere liberdade para a Administração definir o conteúdo ou o momento em que o ato deve ser praticado, trata-se de ato discricionário. Os termos vinculados ou discricionários dizem respeito à existência de possível vinculação definida em lei entre o motivo e o objeto do ato. A fim de que se possa afirmar se determinado ato é vinculado ou discricionário, o ponto de partida é o exame da legislação pertinente ao tema. A nomeação de candidato aprovado em concurso público se trata de ato vinculado ou discricionário? O primeiro passo para responder a essa pergunta consiste em identificar o motivo do ato de nomeação que, no caso, é a aprovação do candidato no concurso público. Diante desse motivo, a Administração dispõe de liberdade para definir se nomeia o candidato, ou quando nomeia? Se a resposta para qualquer dessas duas perguntas for afirmativa, estaremos diante de ato discricionário. No caso de nomeação de candidato aprovado em concurso, o Supremo Tribunal Federal20 entendia se tratar de matéria discricionária e que, portanto, caberia exclusivamente à Administração decidir se nomearia e quando nomearia o candidato. Diante dessa realidade, a nomeação de candidato aprovado em concurso público seria ato discricionário. Nesse sentido, cita-se o julgamento da ADI nº 2.931: “O Plenário, por maioria, julgou procedente pedido de ação direta proposta pelo Procurador-Geral da República para declarar a inconstitucionalidade do inciso VII do art. 77 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que assegura aos aprovados em concurso público, dentro do número de vagas fixado no respectivo edital, o direito ao provimento no cargo no prazo máximo de cento e oitenta dias, contado da homologação do resultado. Com base no entendimento fixado no RE 229.450/RJ (DJU, 31 ago. 2001) no sentido de que a CF apenas assegura ao candidato aprovado o direito subjetivo à nomeação de acordo com a respectiva ordem de classificação e no prazo da validade do concurso, ficando o ato de provimento adstrito ao poder discricionário da Administração Pública, entendeu-se que a norma impugnada viola os arts. 2º e 37, IV, da CF. Reconheceu-se, ademais, a afronta à reserva de iniciativa do Chefe do Poder Executivo prevista no art. 61, §1º, II, c, da CF. Vencidos os Ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence, que julgavam improcedente o pedido” (STF. ADI nº 2.931-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Britto. Julg. 24.2.2005. DJ, 29 set. 2006).
20
Livro 1.indb 226
21/03/2013 17:13:49
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
227
Não obstante a antiga orientação, o STF, no recente julgado relativo ao RE nº 598.099, em 10.08.2011, com repercussão geral reconhecida, evoluiu seu entendimento no sentido de que a aprovação em concurso público assegura, durante seu prazo de validade, direito subjetivo à nomeação, quando o edital fixa número determinado de vagas. Esta obrigação só pode ser afastada diante de excepcional justificativa, motivada de acordo com o interesse público.21 22 Deixa de ser discricionário e passa a ser vinculado o ato de nomeação de candidato aprovado em concurso público, o que gera para a Administração Pública a obrigação de nomear e para o candidato direito subjetivo de ser nomeado, se houver preterição da ordem de classificação do concurso.23
5.6.5 Classificação do ato administrativo quanto à formação Este critério de classificação busca verificar o número de manifestações de vontade necessário para formar o ato administrativo. De acordo com este critério, são apresentadas três espécies de atos, a saber: - Ato simples; - Ato complexo; e - Ato composto.
STF: “Por vislumbrar direito subjetivo à nomeação dentro do número de vagas, a Turma, em votação majoritária, desproveu recurso extraordinário em que se discutia a existência ou não de direito adquirido à nomeação de candidatos habilitados em concurso público – v. Informativo 510. Entendeu-se que, se o Estado anuncia em edital de concurso público a existência de vagas, ele se obriga ao seu provimento, se houver candidato aprovado. Em voto de desempate, o Min. Carlos Britto observou que, no caso, o Presidente do TRF da 2ª Região deixara escoar o prazo de validade do certame, embora patente a necessidade de nomeação de aprovados, haja vista que, passados 15 dias de tal prazo, fora aberto concurso interno destinado à ocupação dessas vagas, por ascensão funcional. Vencidos os Ministros Menezes Direito, relator, e Ricardo Lewandowski que, ressaltando que a Suprema Corte possui orientação no sentido de não haver direito adquirido à nomeação, mas mera expectativa de direito, davam provimento ao recurso” (RE nº 227.480-RJ, 1ª Turma. Rel. Min. Menezes Direito. Rel. p/ acórdão Min. Cármen Lúcia. Julg. 16.9.2008. DJe, 20 ago. 2009). 22 STF. RE nº 598.099, com repercussão geral reconhecida, Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julg. 10.08.2011: “Dentro do prazo de validade do concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a nomeação, mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo com o edital, passa a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa forma, um dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas (...)”. 23 Por ofensa ao art. 37, IV, da CF (“durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira”), a Turma deu provimento a recurso extraordinário para assegurar a nomeação de candidatos aprovados em concurso público para o cargo de professor assistente da Universidade de São Paulo (USP). Considerou-se que, no caso concreto, ficara comprovada a necessidade da Administração no preenchimento das vagas, haja vista que a Universidade de São Paulo contratara, no prazo de validade do concurso, dois professores para exercerem o mesmo cargo, sob o regime trabalhista — sendo um deles candidato aprovado do mesmo concurso. Afastou-se, ainda, a fundamentação constante do acórdão recorrido no sentido de que seria necessária a abertura de novo concurso pela Administração para a comprovação da existência das vagas. Cf. STF. RE nº 273.605-SP, 2ª Turma. Rel. Min. Néri da Silveira. Julg. 23.4.2002. DJ, 28 jun. 2002. Em idêntico sentido, STF: “Concluído o julgamento de recurso extraordinário em que se discutia sobre se candidatos aprovados em concurso público teriam, ou não, direito subjetivo à nomeação. Por maioria de votos, a Turma entendeu que, não tendo sido preenchidas todas as vagas previstas no edital, os candidatos aprovados teriam direito de ser nomeados no prazo de validade do concurso. Com base nesse entendimento, o RE interposto pelos candidatos foi conhecido e provido ‘para assegurar aos recorrentes a imediata nomeação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, para os cargos de Juiz de Direito Adjunto’” (RE nº 192.568-PI, 2ª Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. 23.4.1996. DJ, 13 set. 1996). 21
Livro 1.indb 227
21/03/2013 17:13:49
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
228
Feitas, desde já, algumas reservas quanto à existência do ato composto, cumpre-nos examinar cada uma das categorias acima. Ato simples é aquele que se forma a partir da manifestação de vontade de um único órgão, seja ele órgão singular ou colegiado. A fim de identificar o ato simples é importante verificar o número de órgãos cujas manifestações são necessárias para que o ato se aperfeiçoe. Na eventualidade de se tratar de órgão colegiado, por exemplo, em que a manifestação do órgão depende da manifestação de vontade dos agentes que o integram, podemos verificar a prática de ato simples quando, por exemplo, o conselho de contribuintes da Receita Federal decide recurso administrativo. Trata-se de ato simples porque a existência ou a eficácia do ato não depende da manifestação de vontade de qualquer outro órgão. Ato complexo é aquele para cuja formação é necessária a conjugação das manifestações de vontade de mais de um órgão. O exemplo apresentado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro é preciso: o decreto presidencial.24 Nos termos da Constituição Federal, o decreto deve ser assinado pelo ou pelos ministros de Estado afetados pelo decreto e pelo Presidente da República. Tomemos o exemplo de ato afeto à competência do Ministério da Justiça: quando o Ministro da Justiça assina a minuta de decreto, a sua manifestação de vontade não basta para que exista o ato administrativo. Este somente se forma quando houver a conjugação da manifestação de vontade dos dois órgãos envolvidos — o Ministério da Justiça e a Presidência da República. Sem a assinatura do Presidente da República, a manifestação de vontade do Ministro da Justiça não forma qualquer ato. Hely Lopes Meirelles apresenta como exemplo de ato complexo a investidura de servidor em cargo público “consubstanciada na nomeação feita pelo chefe do Executivo e complementada pela posse e exercício dados pelo chefe da repartição em que vai servir o nomeado”.25
STF: “1. Intervenção de terceiro. Assistência. Mandado de segurança. Inadmissibilidade. Preliminar acolhida. Inteligência do art. 19 da Lei nº 1.533/51. Não se admite assistência em processo de mandado de segurança. 2. Legitimidade para a causa. Passiva. Caracterização. Mandado de segurança. Impetração preventiva contra nomeação de juiz de Tribunal Regional do Trabalho. Ato administrativo complexo. Presidente da República. Litisconsorte passivo necessário. Competência do STF. Preliminar rejeitada. Aplicação dos arts. 46, I, e 47, caput, do CPC, e do art. 102, I, ‘d’, da CF. O Presidente da República é litisconsorte passivo necessário em mandado de segurança contra nomeação de juiz de Tribunal Regional do Trabalho, sendo a causa de competência do Supremo Tribunal Federal. 3. Mandado de Segurança. Caráter preventivo. Impetração contra iminente nomeação de juiz para Tribunal Regional do Trabalho. Ato administrativo complexo. Decreto ainda não assinado pelo Presidente da República. Decadência não consumada. Preliminar repelida. Em se tratando de mandado de segurança preventivo contra iminente nomeação de juiz para Tribunal Regional do Trabalho, que é ato administrativo complexo, cuja perfeição se dá apenas com o decreto do Presidente da República, só com a edição desse principia a correr o prazo de decadência para impetração. 4. Magistrado. Promoção por merecimento. Vaga única em Tribunal Regional Federal. Lista tríplice. Composição. Escolha entre três únicos juízes que cumprem todos os requisitos constitucionais. Indicação de dois outros que não pertencem à primeira quinta parte da lista de antiguidade. Recomposição dessa quinta parte na votação do segundo e terceiro nomes. Inadmissibilidade. Não ocorrência de recusa, nem de impossibilidade do exercício do poder de escolha. Ofensa a direito líquido e certo de juiz remanescente da primeira votação. Nulidade parcial da lista encaminhada ao Presidente da República. Mandado de segurança concedido, em parte, para decretá-la. Inteligência do art. 93, II, ‘b’ e ‘d’, da CF, e da interpretação fixada na ADI nº 581-DF. Ofende direito líquido e certo de magistrado que, sendo um dos três únicos juízes com plenas condições constitucionais de promoção por merecimento, é preterido, sem recusa em procedimento próprio e específico, por outros dois que não pertencem à primeira quinta parte da lista de antiguidade, na composição de lista tríplice para o preenchimento de uma única vaga” (MS nº 24.414-DF, Pleno. Rel. Min. Cezar Peluso. Julg. 3.9.2003. DJ, 21 nov. 2003, grifos nossos). 25 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 154-155. 24
Livro 1.indb 228
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
229
O exemplo do ilustre mestre talvez tenha sido uma das razões da existência de tantas controvérsias acerca do ato complexo. A investidura, ou seja, o preenchimento do cargo, nos termos da Lei nº 8.112/90, art. 5º, dá-se com a posse. Isto não importa, com a devida vênia, em concluir que nomeação e posse formem um só ato, a investidura. Ao afirmar que a investidura ocorre com a posse, a lei define o momento em que o cargo é considerado ocupado, provido. É com a posse, por exemplo, que se deve verificar eventual acumulação ilegal de cargos, e não com a nomeação ou o exercício. Nomea ção e posse são atos distintos. Pode-se questionar a validade de um ato ou do outro de forma absolutamente autônoma e distinta, haja vista se tratarem de atos distintos e não de um só ato, requisito necessário para a caracterização do ato como complexo. Questão talvez mais intrincada consista em classificar o ato administrativo, que concede aposentadoria, reforma ou pensão e o ato do Tribunal de Contas, que aprecia a legalidade do ato concessório. Nos termos da Constituição Federal (art. 71, III), compete ao TCU “apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, (...), bem como a das concessões de aposentadoria, reformas e pensões”. Indaga-se: as duas manifestações — a da Administração, que concede a aposentadoria, e a do TCU, que registra o ato — concorreriam para a formação de um só ato complexo? Embora essa polêmica seja conhecida da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde, pelo menos, a Constituição de 1934, ela não foi elucidada de forma satisfatória. Ao longo da história e em face dos diversos textos constitucionais (federais e esta duais), vários foram os julgados em que o Supremo Tribunal Federal considerou atos complexos, as concessões de aposentadorias, reformas e pensões, assim como outros atos que a Administração deveria submeter aos Tribunais de Contas.26 O Supremo Tribunal Federal, mesmo não tendo aprofundado a análise quanto à natureza jurídica dos atos de concessão, firmou o entendimento de que os atos administrativos já aprovados e registrados pelo TCU podem ser revogados ou anulados pela Administração; a revogação ou a anulação pela Administração, todavia, somente produzem efeitos depois de referendadas pelo TCU, conforme expresso pela Súmula nº 6 do STF: “a revogação ou anulação, pelo Poder Executivo, de aposentadoria, ou qualquer outro ato aprovado pelo Tribunal de Contas, não produz efeitos antes de aprovada por aquele Tribunal, ressalvada a competência revisora do Judiciário”.27 Ao fundamentar a tese que resultou na elaboração da mencionada Súmula nº 6, o STF não fez qualquer alusão a ato complexo. Fundamentou-se no fato de que a Administração se subordina ao Tribunal de Contas, não podendo descumprir suas decisões. Tal subordinação decorre da posição constitucional do Tribunal, que não integra a própria Administração, mas é o seu fiscal. Se a Administração não concorda com o que decidiu o Tribunal de Contas, pode recorrer ao Poder Judiciário, mas não pode pura e simplesmente desconhecer o que lhe foi determinado. “Essa subordinação decorre da hierarquia No sentido de que a concessão de aposentadoria e o seu registro no TCU constituem ato complexo, STF: “Aposentadoria – Ato administrativo do Conselho da Magistratura – Natureza – Coisa julgada administrativa – Inexistência. O ato de aposentadoria exsurge complexo, somente se aperfeiçoando com o registro perante a Corte de Contas. Insubsistência da decisão judicial na qual assentada, como óbice ao exame da legalidade, a coisa julgada administrativa” (RE nº 195.861-ES, 2ª Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Julg. 26.8.1997. DJ, 17 out. 1997, grifos nossos). 27 A Súmula do Supremo Tribunal Federal registra como precedentes do Enunciado nº 6 os seguintes recursos de mandado de segurança: RMS nº 8.657-ES (DJ, 09 nov. 1961); RMS nº 9.076-PR (DJ, 09 nov. 1961); RMS nº 9.225-PR (DJ, 30 nov. 1961); RMS nº 8.610-ES (DJ, 17 abr. 1962); e RMS nº 10.454-PR (DJ, 18 abr. 1963). 26
Livro 1.indb 229
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
230
mesma do Tribunal de Contas, no mecanismo, porque ele não é órgão administrativo; é órgão estabelecido pela Constituição, de permeio entre os poderes executivo e legislativo — e é essa a teoria do instituto — e destinado a controlar a execução do orçamento. As autoridades administrativas estão subordinadas às decisões do Tribunal de Contas. Se ele defere a um dado parente a pensão, esta decisão poderá não ser conclusiva para o Judiciário mas terá de sê-lo, necessariamente, para a Administração”.28 Ou seja: o Tribunal de Contas tem a palavra final sobre a Administração Pública, com a ressalva de que esta pode levar a questão ao Poder Judiciário. Assim, se o ato de concessão já foi apreciado pelo órgão constitucional fiscalizador, a revisão pela Administração, sem que o mesmo órgão aprecie o ato revisor, significaria descumprimento da palavra final dada pelo Tribunal. A nosso ver, o ato pelo qual o Tribunal de Contas aprecia o ato de concessão é ato de controle (externo), que não integra nem completa o ato de concessão, mas que converte a executoriedade precária (porque condicionada) da concessão em executoriedade definitiva.29 Feitas essas considerações acerca do ato complexo, cumpre-nos enfrentar o ato composto. Ele tem sido apresentado tradicionalmente pela doutrina como aquele “que resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro, para se tornar exeqüível. Exemplo: uma autorização que dependa do visto de uma auto ridade superior. Em tal caso a autorização é o ato principal e o visto é o complementar que lhe dá exeqüibilidade”.30 A grande dificuldade conceitual relativa ao ato composto consiste no fato de que ele não é um ato; o ato composto compõe-se de dois atos: um principal e outro acessório. Maria Sylvia Zanella Di Pietro o distingue do processo administrativo sob o argumento de que o processo administrativo compõe-se de vários atos, ao passo que o ato composto é formado por somente dois atos. Diante da fragilidade — máxima vênia — dos argumentos apresentados em defesa da existência do ato composto, e da falta de interesse prático no reconhecimento desta categoria autônoma de ato administrativo, preferimos adotar a tese de que o ato composto não existe como realidade autônoma. Trata-se de dois atos, que podem ou não compor um processo administrativo. São dois atos, um principal e outro acessório, que por serem dois, jamais poderão ser um só.
Min. Castro Nunes. Apelação Cível nº 8.442, em julgamento encerrado na sessão de 3.7.1944. Em decisão mais recente, de 10.9.1997, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar o MS nº 22.658-7, seguiu voto do Relator, Min. Sepúlveda Pertence, e reafirmou a tese consubstanciada no Enunciado nº 6 da Súmula do Supremo Tribunal Federal e foi além: afirmou que a ordem judicial que obriga a Administração a praticar ato concessório com determinada amplitude não se impõe ao Tribunal de Contas: “O ponto está em saber se a força da res judicata, que cobriu a concessão da segurança, é oponível ao Tribunal de Contas de modo a compeli-lo, de sua vez, a desconstituir a decisão que julgara legal e registrara o segundo ato de aposentadoria, a fim de registrar o terceiro; entendo que não”. A ementa do julgado foi a seguinte: “Tribunal de Contas; registro de aposentadoria: mandado de segurança posterior para compelir a autoridade administrativa a alterar ato concessivo já registrado não impõe ao Tribunal de Contas deferir o registro da alteração: aplicação da Súm. 6/STF, não elidida pela circunstância de o ato admi nistrativo subseqüente ao registro ter derivado do deferimento de mandado de segurança para ordenar sua prática à autoridade competente retificar a aposentadoria que concedera, mas não para desconstituir a decisão anterior do Tribunal de Contas”. 30 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 155. 28 29
Livro 1.indb 230
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
231
A crítica acima não se aplica ao ato complexo. Este, em seu conceito, se diferencia do ato composto pelo fato de que as duas ou mais manifestações de vontade formam um só ato. No ato composto, ao contrário, cada manifestação de vontade formaria ato distinto, sendo sua particularidade o fato de um dos atos, o principal, somente produzir efeitos após a prática do ato acessório.
5.6.6 Outras categorias de atos administrativos As categorias a seguir apresentadas não constituem espécies de um único critério de classificação de ato administrativo. Há grande interesse prático e didático em sua apresentação de modo que listamos algumas categorias de atos, a saber:
5.6.6.1 Ato perfeito e ato inexistente A perfeição do ato administrativo está relacionada à sua existência. Ato perfeito é aquele que se formou e que, portanto, pode vir a produzir efeitos. Ato inexistente, ao contrário, é aquele que não se formou, que não se completou. É importante distinguir o ato inexistente do ato nulo. Este último, não obstante contenha vício, é perfeito, vale dizer, existe e, gozando de presunção de legitimidade, enquanto não for declarado nulo pode produzir todos os seus efeitos. O ato inexistente — expressão a rigor contraditória — indica aquele que pode apresentar a mera aparência de ato administrativo, mas que não preenche os requisitos necessários à formação do ato. Seria exemplo de ato inexistente aquele praticado por pessoa totalmente estranha à Administração Pública. Não é correto equiparar o ato inexistente ao ato nulo. Este se formou, é um ato administrativo e goza de todos os atributos que o Direito Administrativo confere aos atos administrativos; o ato inexistente, ao contrário, não pode ser convalidado, revogado ou mesmo anulado, posto que não se anula o que não existe. No máximo, a Administração Pública pode, diante de questionamento acerca do ato inexistente, negar-lhe autenticidade.
5.6.6.2 Ato válido e ato nulo Ato válido, ou legítimo, é aquele praticado em conformidade com o ordenamento. A validade não se resume ao cumprimento das exigências legais. Vai além. Somente é válido o ato que além da lei se conforma com todos os princípios do ordenamento jurídico. Ato nulo, ao contrário, é aquele que viola princípio ou preceito legal. No Direito Privado, apresenta-se de forma cristalina a existência do ato anulável. Quando se discute, todavia, no Direito Administrativo, a existência do ato administrativo anulável, tem-se em vista a possibilidade de convalidação do ato, pois que, na esfera privada, tal providência saneadora somente é admitida para esta categoria de ato (anulável), e nunca para o ato nulo. Atualmente, não mais se discute a possibilidade de determinados atos administrativos serem convalidados, prerrogativa prevista na Lei nº 9.784/99 (art. 55). O Direito Administrativo não apresenta como requisito à convalidação o ato ser anulável. A Lei nº 9.784/99 requer tão somente que a decisão pela convalidação não acarrete lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiro e que o ato apresente defeitos sanáveis.
Livro 1.indb 231
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
232
Nesse sentido, poder-se-ia até concluir que o ato administrativo que apresente defeito sanável seria o ato anulável e que o ato com defeito insanável seria nulo. No Direito Administrativo, todavia, a discussão acerca da existência do ato anulável em oposição ao ato nulo é de muito pouca ou mesmo de nenhuma importância o que permite utilizar indistintamente uma ou outra expressão. Acerca da distinção entre atos nulos e anuláveis teceremos maiores considerações adiante.
5.6.6.3 Ato eficaz, ato exequível e ato consumado ou exaurido Ato eficaz é aquele que possui aptidão para a produção de efeitos jurídicos. A eficácia do ato não se confunde com a sua perfeição. Esta tem como elemento principal a existência do ato, não obstante também faça referência à perspectiva ou possibilidade de o ato produzir efeitos. A eficácia diz respeito diretamente à produção, ou ao menos à possibilidade de produção de efeitos jurídicos. A exequibilidade seria categoria especial dentro da eficácia. Por exequibilidade pode ser entendida a produção imediata de efeitos. Se o ato está produzindo efeitos, além de eficaz ele é exequível. Se o ato tem a aptidão para produzir efeitos, mas ainda não os está produzindo, o ato é eficaz, mas ainda não exequível. Exemplo: a decisão de comissão de licitação que inabilita licitante. É ato eficaz, porque tem a aptidão para excluir do processo referido licitante, mas enquanto não expirado o prazo para recurso ou, caso este tenha sido interposto, enquanto não for julgado, o ato não é exequível. Consumando ou exaurido é o ato que já produziu todos os efeitos que dele se pode esperar. Se uma licença concedida a servidor para tratar de interesse pessoal já foi integralmente gozada, trata-se de ato consumando. O efeito prático ou consequência de se constatar a consumação do ato é a impossibilidade de revogação. Somente pode ser revogado o ato eficaz posto que a revogação não opera efeitos retroativos. No caso do ato consumado, em que todos os efeitos se encontram no passado, a consequência lógica é a impossibilidade de revogação.
5.6.6.4 Ato constitutivo, ato declaratório, ato modificativo e ato extintivo Ato administrativo constitutivo é aquele que cria nova realidade jurídica antes não existente, realidade que faz com que surjam direitos ou obrigações para a Administração Pública ou para os particulares. O ato declaratório simplesmente atesta situação jurídica já existente sem que importe na criação de qualquer nova relação jurídica. Pode ser apresentado como exemplo de ato declaratório a expedição de certidão de débitos tributários.31 O ato modificativo não cria, mas, como o nome indica, modifica situações jurídicas já existentes. Ato extintivo, desconstitutivo ou constitutivo negativo é aquele por meio do qual se põe fim a relação jurídica existente.
31
A recusa de órgão público de expedir certidões com informações de interesse de particulares deve ser atacada por meio de mandado de segurança, e não de habeas data. Este, nos termos da Constituição Federal (art. 5º, LXII), serve para “assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público” e “para a retificação de dados”.
Livro 1.indb 232
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
233
5.6.6.5 Atos restritivos de direito e atos ampliativos de direito Esta distinção se faz necessária na medida em que os atos restritivos de direito têm sua validade pendente da observância do contraditório e da ampla defesa. A anulação de ato que havia outorgado alguma vantagem para particular ou a aplicação de sanções (os atos sancionatórios podem ser inseridos no âmbito dos atos restritivos de direito) são exemplos de atos restritivos e que, portanto, devem observar contraditório e ampla defesa. Os que ampliam direitos não necessitam da observância desses procedimentos. Exemplo: se um particular solicita alvará de construção e a Administração entende que este deva ser concedido, não há qualquer necessidade de ser aberto prazo para qualquer manifestação do particular.
5.7 Revogação, anulação e convalidação 5.7.1 Desfazimento do ato e interesse público Nos regimes democráticos, a elevação de determinados interesses à categoria de interesse público se submete, como regra, ao processo legislativo, sendo a lei o instrumento adequado para definir: 1) as prerrogativas necessárias à realização desses interesses e 2) as pessoas legitimadas ao seu exercício. Na prática, afirmar que o interesse público se sobrepõe ao interesse privado importa em reconhecer ao Estado uma série de prerrogativas. Este fenômeno se traduz em uma das características mais proeminentes do Direito Administrativo: a supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Se é certo que o Estado não é o único legitimado ao exercício dos interesses públicos — basta mencionar a capacidade de qualquer cidadão de propor ação popular para a defesa dos interesses públicos (CF, art. 5º, LXIII) —, ele é certamente o destinatário mais frequente das potestades conferidas pelo ordenamento positivo para o exercício dos referidos interesses. Daí por que se costuma confundir interesse público com interesse da Administração Pública, confusão que em muitas oportunidades se mostra equivocada. Sendo o Estado o principal titular do interesse público, uma das potestades que lhe é conferida é a de rever seus próprios atos administrativos independentemente de ação judicial. A prerrogativa da Administração Pública de desfazer determinados atos, seja em razão de ilegalidade, seja em razão de motivos de oportunidade ou conveniência, se denomina poder, ou princípio, de autotutela. O poder da Administração Pública de anular e de revogar seus atos se trata de potestade tipicamente pública, disciplinada pelo Direito Administrativo, da qual não podem fazer uso as pessoas de Direito Privado. A anulação e a revogação dos atos administrativos são apresentadas como meca nismos de que dispõe a Administração Pública para desfazer seus atos, ao passo que a convalidação, como se verá a seguir, apresenta-se como opção à anulação e constitui a prerrogativa reconhecida à Administração para corrigir eventuais ilegalidades de pequena importância verificadas em certos atos. Examinaremos, a seguir, cada um desses institutos.
Livro 1.indb 233
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
234
5.7.2 Anulação 5.7.2.1 Direito Administrativo e Direito Civil O vigente Código Civil, de 2002, em seu art. 104, apresenta como requisitos necessários à validade dos negócios jurídicos: 1. Agente capaz; 2. Objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e 3. Forma prescrita ou não defesa em lei. Merecem ainda referência especial os requisitos de validade constantes dos arts. 421 e 422 do Código Civil, que exigem para a validade dos contratos a observância da sua função social e dos princípios da probidade e da boa-fé. Trata-se de inovações que se devem à forte influência exercida pelo Direito Administrativo sobre o Direito Privado. O Código Civil mantém a divisão clássica dos negócios jurídicos inválidos em: - Negócio jurídico nulo (artigos 166 e 167); e - Negócio jurídico anulável (art. 171). Ademais, são indicados os fatores que importam na nulidade e na anulabilidade dos negócios jurídicos32 e são apresentadas as distinções entre o ato nulo e o anulável, como a possibilidade de convalidação (que o Código denomina de confirmação) do ato anulável (art. 172), confirmação não admitida para o ato nulo (art. 169) e a legitimidade para impugnar a validade do ato, que no caso dos atos anuláveis está restrita aos interessados (art. 177). À semelhança do que se verifica em diversos outros institutos, o Direito Administrativo foi buscar no Direito Privado os fundamentos para a anulação dos atos administrativos. Nota-se, contudo, que na matéria de invalidação dos atos se verificam incompatibilidades entre os regimes público e privado. A primeira grande distinção entre os dois regimes decorre do fato de que no Direito Privado somente ao juiz é dado anular o negócio jurídico, não sendo facultado aos particulares declararem a nulidade ou a anulabilidade dos seus negócios. A posição privilegiada conferida pelo Direito Administrativo à Administração Pública permite que ela possa, de ofício ou mediante provocação, anular seus atos unilaterais e contratos, sendo exigido dela apenas a observância do devido processo legal, o que importa em ter que assegurar aos interessados direito ao contraditório e à ampla defesa. A prerrogativa da Administração Pública de anular seus próprios atos em razão de ilegalidades verificadas foi inicialmente reconhecida em nosso ordenamento pela Súmula STF nº 346: “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”. Essa potestade pública voltou a ser objeto de nova súmula do STF (de nº 473), que acrescentou aspectos acerca da anulação e admitiu a possibilidade de revogação dos atos administrativos nos seguintes termos:
Os dispositivos do Código Civil dispõem nos termos seguintes: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - cele brado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. (...) Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico: I - por incapacidade relativa do agente; II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores”.
32
Livro 1.indb 234
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
235
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.
A redação da Súmula nº 473 foi repetida de forma praticamente literal pela Lei nº 9.784/99, que em seu art. 53 dispõe nos seguintes termos: Art. 53. A Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.
Em outros aspectos a teoria da invalidação dos atos administrativos se distingue da teoria desenvolvida no Direito Privado: 1. Os prazos prescricionais adotados pelo Código Civil relativos à invalidação dos negócios jurídicos não se aplicam à anulação pela Administração Pública de seus próprios atos, haja vista a Lei nº 9.784/99 conter disposição específica sobre o tema; 2. A regra contida no art. 182 do CC (“Anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente”) deve ser igualmente aplicada ao Direito Administrativo com alguma reserva. A Lei nº 8.666/93, que trata dos contratos administrativos, dispõe em seu art. 56, parágrafo único, que anulado o contrato, o contratado somente terá direito à indenização na eventualidade de o vício não lhe ser imputável.33 A existência de distinções entre os dois regimes não impede, todavia, a utilização das regras constantes do Código Civil acerca da invalidação do negócio jurídico em caráter suplementar às normas públicas, desde que não sejam incompatíveis com as regras e os princípios do Direito Administrativo. A aplicação subsidiária do Direito Privado ao Direito Administrativo se mostra possível em situações como a contida no art. 184 do CC, que trata da invalidação parcial do negócio jurídico. Exemplo: a Administração por meio de um único ato embarga a construção de determinada obra realizada por particular e lhe aplica multa. Caso não haja fundamento legal para a aplicação da multa, o ato administrativo será anulado parcialmente, ou seja, invalidado tão somente em relação a este aspecto (a multa), mas permanecerá válido quanto ao embargo da obra.
33
Livro 1.indb 235
A regra contida no art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93 (“a nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa” – grifos nossos) deve ser interpretada com alguma cautela. Não se deve entender que Administração não tenha o dever de pagar pelo que foi efetivamente executado, ainda que o vício que resultou na anulação da avença seja imputável ao contratado. Deve-se entender apenas que o contrato não deve mais ser o parâmetro para o pagamento e que, quaisquer vantagens que beneficiariam o contratado, como a sua margem de lucro (ou BDI – benefícios e despesas indiretas), contidas no contrato não devem ser pagas. Nesta hipótese, deve a Administração verificar o valor do custo efetivamente realizado e pagar à contratada, não a título de execução do contrato, que já foi anulado, mas como indenização por despesas realizadas.
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
236
5.7.2.2 Ato administrativo nulo e ato administrativo anulável O Direito Privado apresenta de forma nítida a distinção entre atos nulos e anuláveis; no âmbito público, essa distinção não é, todavia, objeto de qualquer consideração pela Súmula nº 473, pela Lei nº 9.784/99 ou por qualquer outra norma pública.34 Quando muito, o Direito Administrativo menciona a existência de atos anuláveis — o que se verifica no art. 3º da Lei nº 4.717, de 1965, que regula a ação popular —, sem, no entanto, indicar as razões que justifiquem a distinção entre uma categoria e outra. Essa omissão do Direito Administrativo no tratamento do tema sempre gerou muita discussão acerca da existência de distinção entre atos administrativos nulos e anuláveis. Haja vista o Direito Civil somente admitir a convalidação, ou confirmação, dos atos anuláveis, seria de se concluir que o Direito Administrativo somente poderia conferir à Administração Pública essa potestade de corrigir, com efeitos retroativos, os vícios presentes em seus atos, se fosse admitida a existência do ato administrativo anulável como categoria distinta do ato administrativo nulo. Percebe-se aqui, no entanto, evidente inversão na ordem dos fatores relacionados à definição do ato anulável e ao estabelecimento dos requisitos necessários à convalidação desse ato. No Direito Privado, o ato somente pode ser convalidado se for ato anulável. Não se define o ato anulável pela possibilidade de ele ser convalidado, mas em razão da natureza do vício que ele contenha (incapacidade relativa do agente ou ocorrência de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores – CC, art. 171). No Direito Privado, portanto, a convalidação não é requisito à definição do ato anulável, mas consequência de se reconhecer determinado ato como anulável. No Direito Administrativo, em sentido contrário, buscou-se construir a teoria que reconhece a existência do ato anulável em razão da possibilidade de determinados atos administrativos serem convalidados.
A Lei da Ação Popular, Lei nº 4.717/65, restringe-se a indicar, de forma genérica, os atos nulos. Não faz a lei, todavia, qualquer referência à existência dos atos administrativos anuláveis. Dispõe a mencionada lei nos seguintes termos: “Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de: a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade. Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas: a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido; e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Art. 3º Os atos lesivos ao patrimônio das pessoas de direito público ou privado, ou das entidades mencionadas no art. 1º, cujos vícios não se compreendam nas especificações do artigo anterior, serão anuláveis, segundo as prescrições legais, enquanto compatíveis com a natureza deles. Art. 4º São também nulos os seguintes atos ou contratos, praticados ou celebrados por quaisquer das pessoas ou entidades referidas no art. 1º.” (grifos nossos) 34
Livro 1.indb 236
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
237
Verifica-se, assim, evidente equívoco ou inversão entre o que é requisito e o que é efeito da convalidação: no Direito Privado, dado que o ato é anulável, ele pode ser convalidado; no Direito Administrativo, dado que certos atos podem ser convalidados, eles seriam anuláveis. A possibilidade de convalidação dos atos administrativos é disciplinada pelo Direito Administrativo por meio da Lei nº 9.784/99, que, em seu art. 55, dispõe nos termos seguintes: Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.
A lei apresenta como requisito para a convalidação dos atos administrativos, além de ele não acarretar prejuízo a terceiro, a existência de defeito sanável. Desse modo, sem que a lei tenha sequer mencionado a existência do ato anulável, sem que a lei tenha indicado quais são os vícios sanáveis, ou o que é um vício sanável, não nos parece possível concluir pela existência do ato administrativo anulável como categoria distinta do ato administrativo nulo. Importa consignar que a discussão acerca da existência do ato administrativo anulável como categoria específica não é meramente terminológica. Em razão da aplicação subsidiária do Direito Privado ao Direito Administrativo, e da existência de regras específicas sobre o ato anulável no âmbito do Direito Privado, como por exemplo, a impossibilidade de ser a anulabilidade do ato declarada de ofício por órgão judicial, ou de que os seus efeitos somente aproveitam a quem a alegou (CC, art. 177), a matéria assume grande importância para o Direito Administrativo. A forma como o Direito Administrativo trata do tema da invalidação dos atos administrativos nos permite concluir pela inexistência do ato anulável como categoria distinta do ato nulo pelas seguintes razões: 1. Não há, no Direito Administrativo, qualquer indicação das circunstâncias que tornariam o ato administrativo anulável ou nulo, mas a simples indicação genérica de que “a Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade” (Lei nº 9.784/99, art. 53); 2. Não são estabelecidas quaisquer consequências que importariam em tratamento jurídico diferenciado entre o ato nulo e o ato anulável, como faz o Código Civil (Exemplo: no Direito Privado, o ato nulo (CC, art. 169) “não se convalesce pelo decurso do tempo”, ao passo que para o ato anulável são fixados prazos decadenciais diferenciados; no Direito Administrativo, é fixado o prazo genérico de cinco anos para a Administração Pública anular seus atos, independentemente da gravidade da ilegalidade que o contamina, ressalvados os casos de comprovada má-fé do destinatário do ato). A simples referência feita pela Lei nº 9.784/99 à existência de defeitos sanáveis, entendidos estes como aqueles que permitem à Administração corrigir os vícios e convalidar o ato, não nos permite concluir, sem que a lei indique quais são esses defeitos ou em que outros aspectos a existência desses defeitos implicaria a adoção de tratamento diferenciado entre o ato anulável e o ato nulo, pela existência de duas categorias distintas de atos inválidos.35 35
Livro 1.indb 237
Em sentido contrário, entendendo que atos nulos e anuláveis apresentam regime jurídico diferente quanto à possibilidade de convalidação e à arguição do vício que possuem, vide BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 439.
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
238
Nesse sentido, a distinção entre ato nulo e anulável existente no Direito Privado não se transfere ao Direito Administrativo, salvo se se considerar que o só fato de haver atos administrativos passíveis de convalidação seja elemento suficiente para admitir a categoria do ato administrativo anulável. Admitida a afirmação acima como verdadeira, teríamos que no Direito Privado o ato anulável se diferencia do ato nulo em razão da natureza do vício e dos diferentes efeitos que a lei confere a um e ao outro. No Direito Administrativo, ao contrário, sem que lei dê tratamento distinto ao ato administrativo nulo e ao ato administrativo anulável, e sem que ela indique a natureza do vício que torna o ato administrativo nulo ou anulável, teríamos que admitir essas duas categorias tão somente em razão de alguns atos, em razão de conterem defeitos sanáveis constituiriam categoria distinta daqueles outros atos cujos defeitos não seriam passíveis de sanatória. Parece-nos que o só fato de a lei admitir a convalidação do ato administrativo não seja suficiente para admitir a distinção entre o ato anulável e o ato nulo no âmbito do Direito Administrativo. Ao contrário, parece-nos, indiferente utilizar o termo nulo ou anulável para indicar que o ato administrativo contém vício sanável ou insanável. Aqui, o ato administrativo é válido ou inválido, sendo, repetimos, indiferente se nos referirmos ao ato inválido como ato nulo ou como ato anulável. A presença de defeitos sanáveis em atos administrativos, que poderíamos denominar de irregularidades, permite que a Administração Pública, tendo o objetivo de realizar o interesse público, possa: 1. Corrigir o ato por meio da convalidação; 2. Anulá-lo; ou 3. Se se tratar de irregularidade meramente formal, irrelevante pela sua natureza, simplesmente desconsiderar existência36 dessa irregularidade. Exemplo: a Lei nº 8.666/93 (art. 60, parágrafo único) dispõe que é nulo o contrato verbal firmado com a Administração Pública, ressalvadas as pequenas compras, que admitem a forma verbal. No Direito Privado, diante da afirmação de que o vício de forma importa em nulidade do ato, tratar-se-ia de vício não passível de convalidação. No Direito Administrativo, em razão da falta de qualquer parâmetro para distinguir o ato nulo do anulável, não se pode concluir que o vício de forma do contrato importe necessariamente em sua anulação. O exame do caso concreto pode indicar que, não obstante a existência do vício de forma, pela ausência de qualquer outra ilegalidade (fraude à licitação, superfaturamento, favorecimento, direcionamento, prejuízo para terceiros etc.), o contrato não tenha que ser anulado. Em resumo, é possível concluir que, não obstante seja admitida a convalidação do ato administrativo que contenha defeitos sanáveis, esse fato, de per si, não é suficiente para justificar duas categorias distintas de atos administrativos inválidos.
5.7.2.3 Dever ou poder de anular? Em razão das considerações até o momento apresentadas, a pergunta a ser feita consiste em saber se a presença de irregularidades, ou de defeitos sanáveis em ato administrativo é invalidante. Deve a Administração anular ato que contenha irregularidade
36
Cf. STF. RDP, v. 10, p. 159.
Livro 1.indb 238
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
239
de menor importância ou, ao contrário, possui ela a faculdade de anular o ato somente se assim entender conveniente? A resposta às perguntas acima não é fácil. Desde já antecipamos o nosso ponto de vista de que a presença de irregularidade ou ilegalidade em ato administrativo é invalidante. Essa é a regra que, como veremos em seguida, comporta duas exceções. A Súmula nº 473 do STF utiliza o verbo poder para fazer referência a essa potes tade da Administração Pública — “a Administração pode anular” —, ao passo que a Lei nº 9.784 dispõe que “a Administração deve anular”. A potestade da Administração de anular seus atos eivados de vício de legalidade deve ser traduzida como dever, como obrigação. Quando o STF editou as súmulas nº 346 e nº 473, discutia-se a existência ou não dessa potestade. Foi utilizado o verbo poder não como indicativo de opção ou de faculdade a ser utilizada caso a Administração julgue conveniente ou oportuno. Foi utilizado o verbo poder no sentido de que a Administração tem o poder de anular, e não de que dispõe da opção de anular. Por meio das referidas súmulas foi superada a discussão até então existente em nosso direito de que a Administração Pública não podia anular seus próprios atos e que, à semelhança de qualquer particular, teria de se submeter ao Poder Judiciário, único legitimado ao exercício desse mister. A prerrogativa de que dispõe a Administração de anular atos viciados não pode ser entendida como juízo discricionário. Esta é a regra que se impõe à Administração: verificada a ilegalidade ou irregularidade, o ato deve ser anulado. Se, todavia, as circunstâncias do caso concreto justificarem a manutenção do ato e a simples correção dos vícios, tem a Administração Pública o dever de convalidar o ato. Verificada a presença de defeito sanável, se for demonstrado que a solução que melhor realiza o interesse público é a manutenção do ato, tem o administrador o dever de convalidá-lo. Ao contrário, se o ato contiver vício sanável, e for demonstrado que a simples correção do vício e a consequente convalidação do ato violam o interesse público ou causam prejuízo a terceiro, a Administração tem o dever de anulá-lo.37 A regra de que verificada ilegalidade deve a Administração anular o ato vai encontrar duas exceções: 1. Se em razão das particularidades do caso concreto for demonstrado que a correção dos vícios e a convalidação do ato é a solução que melhor realiza interesse público; e 2. O decurso de lapso temporal superior a cinco anos que, conforme será examinado adiante, impede a Administração de anular atos viciados. Somente nessas duas situações a regra segundo a qual a Administração Pública tem o dever de anular o ato pode ser afastada. Na primeira hipótese, a Administração Pública deve, por meio de decisão motivada, indicar porque é mais conveniente convalidar do que anular o ato; na segunda hipótese, em que já teria decorrido prazo
Na lição de Weida Zancaner a “Administração deve invalidar quando o ato não comportar convalidação”. Afirma a autora que “(...) quando possível a convalidação dos atos viciados, a Administração não poderá negar-se a fazê-lo. Não haveria, nessa situação, discricionariedade quanto ao dever de convalidar ou invalidar. Não lhe parece plausível, segundo adverte, (...) que possa fica a critério do administrador invalidar atos, relações jurídicas ou ambos, se existe a possibilidade de convalidá-los, pois a convalidação atende não só o princípio da legalidade mas, sobretudo, ao da segurança jurídica, ressalvada a hipótese de ato discricionário maculado por vício de competência” (Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos, p. 57-59).
37
Livro 1.indb 239
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
240
superior a cinco anos da prática do ato, nenhuma medida se impõe à Administração Pública, tendo ocorrido a convalidação em razão do decurso do prazo.
5.7.2.4 Fundamentos para anulação O fundamento básico para a anulação do ato administrativo é a falta de conformação com a ordem jurídica, ou seja, não apenas a ilegalidade, mas a ilegitimidade do ato.38 A violação de dispositivo legal ou de princípio da Administração Pública deve importar em anulação do ato. São circunstâncias que podem resultar em anulação do ato: - Falta de competência do agente – O primeiro requisito de validade dos atos administrativos está relacionado ao princípio da legalidade no sentido de que somente pode praticar ato administrativo a autoridade, órgão ou entidade pública que tenha recebido da lei a necessária competência. Assim, se o ato é praticado por autoridade material ou territorialmente incompetente, o ato deve ser anulado; - Vício de forma – A lei impõe forma aos atos administrativos tendo em vista, dentre outros aspectos, a necessidade de controle. Se os atos não observam as formas legais impostas, o ato deve ser anulado; - Desvio de finalidade – Qualquer ato administrativo vinculado ou discricionário deve sempre se conformar com o interesse público em seus três níveis de rea lização (constitucional, legal e econômico). Independentemente de qualquer outro vício, se o ato foi praticado contrariando a finalidade legal que justificou a outorga de competência para a prática do ato, ele é nulo; - Falta de pressuposto de fato para a prática do ato (motivo) – Salvo exceções, como a verificada na exoneração de ocupante de cargo em comissão, a lei indica as circunstâncias que justificam a prática do ato. Quer se trate de ato discricionário, quer se trate de ato vinculado, a lei indica o motivo que deve justificar prática. Inexistente ou nulo o motivo indicado pela Administração, o ato é nulo. Motivo nulo deve ser entendido, nos termos da Lei nº 4.717/65, como aquele juridicamente inadequado ao resultado obtido. De se observar, todavia, que a presunção de veracidade dos atos administrativos requer daqueles que preiteiam a invalidação o ônus de provar a inexistência ou a nulidade dos motivos; - Vício de conteúdo (objeto) – Se diante de determinadas circunstâncias a lei requer da Administração a prática de determinado ato com conteúdo previamente estabelecido na própria lei. Se isto não se verifica, o ato da Administração é nulo e passível de correção pela via administrativa ou judicial. Se o objeto, ou seus efeitos, for impossível ou indeterminável, o ato também será nulo; - Violação de preceito legal ou de princípio da Administração Pública – É possível que o ato seja praticado com a observância de todos os pressupostos à sua validade (autoridade competente, sem qualquer desvio de finalidade, revestido das formalidades legais, e sem qualquer vício em relação ao motivo ou ao objeto)
38
Utilizamos o termo legitimidade em sentido mais amplo que legalidade. Esta se restringe à observância das exigências contidas em lei. Por ilegitimidade temos que entender a violação não apenas de dispositivo legal, mas de qualquer outro preceito contido em princípio ou mesmo em norma infralegal.
Livro 1.indb 240
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
241
e, no entanto, seja nulo. Esta situação pode ocorrer se for verificada violação de princípio da Administração Pública. O ato que observe todas as exigências legais, mas que atente contra a moralidade administrativa ou contra a economicidade não é ato inconveniente, mas sim ato nulo; - Vício verificado no processo – A procedimentalização que se tem verificado no Direito Administrativo faz com que no exame da validade de determinados atos (a nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo) deva-se considerar a validade dos atos do processo administrativo que antecederam a este ato de nomeação (no caso, os atos do próprio concurso). Certo é que a nomeação para o cargo público, individualmente considerada, pode-se revestir de todas as exigências legais. Porém, se se confirma que o edital do concurso não observou os parâmetros de publicidade necessários, a nomeação, como resultado da anulação do concurso público, será igualmente nula. Regra como esta se verifica na Lei nº 8.666/93 (art. 49, §2º): “A nulidade do procedimento licitatório induz à do contrato”.
5.7.2.5 Prazo para anulação do ato pela Administração (legalidade x segurança jurídica) Ainda em 1987, em artigo publicado na Revista de Direito Público com o sugestivo título “Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo”, o Professor Almiro do Couto e Silva analisou com profundidade a questão relativa ao conflito entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica, e criticou a excessiva valorização do primeiro em detrimento do segundo, especialmente no âmbito do Direito Administrativo.39 No Direito Positivo brasileiro, o dever de anulação — como consectário do princípio da legalidade — tem encontrado alguns obstáculos no próprio sistema jurídico. Questões atinentes aos princípios da segurança jurídica e da estabilidade das relações jurídicas foram objeto de especial preocupação do legislador por ocasião da edição da Lei nº 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública federal, e da Lei nº 9.868/99. A Lei nº 9.868/99, ao disciplinar o processo e julgamento das ações de controle de constitucionalidade (ADI e ADC), abre para o Supremo Tribunal Federal, “tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social”, a possibilidade de declarar a inconstitucionalidade de ato normativo “com eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha ser fixado” (art. 27). Dessa forma, com vistas a garantir a intangibilidade dos atos concretos praticados com fundamento na norma viciada antes da declaração pelo Supremo procura-se romper com o dogma do Direito Constitucional brasileiro que associa a declaração de inconstitucionalidade à nulidade ex tunc do ato viciado. Percebe-se claramente a mitigação do princípio da legalidade pela possibilidade de o Supremo decidir sobre a conveniência de se preservarem as relações jurídicas constituídas à luz de lei posteriormente declarada inconstitucional. COUTO E SILVA. Princípios da legalidade da Administração Pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público, p. 46-63.
39
Livro 1.indb 241
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
242
A Lei nº 9.784/99 elenca a segurança jurídica como princípio a ser observado pela Administração ao lado de outros como a legalidade, a moralidade, a motivação e, nos termos do art. 54, fixa em cinco anos o prazo para que a Administração anule os atos administrativos “de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, salvo nos casos de comprovada má-fé” (grifos nossos). A primeira conclusão que se pode tirar da redação da lei é no sentido de que a fixação do prazo para anulação somente se aplica aos atos ampliativos de direito. Se o ato, ao contrário, houver promovido restrição de direitos, de que seria exemplo ato que aplicou sanção, a Administração pode a qualquer tempo anulá-lo. O prazo legal de cinco somente é aplicável aos atos que tenham gerado efeitos favoráveis aos seus destinatários e, nos termos do art. 54, §1º, se se tratar de ato que tenha gerado “efeitos patrimoniais contínuos”, o prazo “contar-se-á da percepção do primeiro pagamento”. A Lei nº 9.784/99, conforme já observamos, em seu art. 53 utiliza o verbo “dever” com o objetivo de deixar evidente que a anulação do ato ilegal não é mera faculdade da Administração, mas obrigação. Isso não significa, todavia, prevalência absoluta do princípio da legalidade. Nos artigos seguintes, o princípio é mitigado: o art. 54 estabelece o prazo de decadência dentro do qual a Administração poderá anular; e o art. 55 prevê as circunstâncias em que o ato poderá — ou “deverá”, segundo alguns autores, como Weida Zancaner40 — ser convalidado. A fixação de prazo para a Administração exercer o seu poder-dever de anular os seus próprios atos eivados de ilegalidade e dos quais decorram efeitos favoráveis para os administrados era exigência antiga de considerável parte da doutrina e da jurisprudência, que não admitiam que o destinatário do ato vivesse em eterno sobressalto, à espera de possível mudança de posicionamento da Administração. Importante observar que a Lei nº 9.784/99, ao fixar o prazo de cinco anos, objetiva estabelecer o ponto de equilíbrio entre os princípios da legalidade e da segurança jurídica. Segundo a jurisprudência do STJ, o prazo de cinco anos do art. 54 da Lei nº 9.784/99 não pode ser aplicado de forma retroativa, entendendo-se como termo inicial para a contagem do prazo prescricional o início da vigência da lei.41 Em face dessa constatação, o prazo fixado em lei — que não possui natureza decadencial, mas prescricional42 haja vista o disposto no art. 54, §2º, da Lei nº 9.784/99 (“Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”) — deve ser considerado como o ponto de partida para a aplicação dos princípios da legalidade, que impõe a anulação do ato, e da segurança jurídica e da boa-fé, que requerem a preservação do ato. Decorridos ZANCANER. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. STJ: “Agravo regimental. Recurso especial. Administrativo. Anulação de ato da administração. Art. 54 da Lei nº 9.784/99. Prazo decadencial. Termo a quo. Aplicação irretroativa. Consoante o entendimento da Corte Especial deste Tribunal, prolatado no julgamento dos Mandados de Segurança nº 9.112/DF, 9.115/DF e 9.157/DF, da sessão de 16.2.2005, a aplicação da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, deverá ser irretroativa. Logo, o termo a quo do qüinqüênio decadencial, estabelecido no art. 54 da mencionada Lei, contar-se-á da data de sua vigência, e não da data em que foram praticados os atos que se pretende anular. Agravo regimental desprovido” (AgRg no REsp nº 679.405-RS, 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer. Julg. 19.4.2005. DJ, 13 jun. 2005). 42 Se se tratasse de prazo decadencial, a anulação deveria ocorrer dentro dos cinco anos. Ao contrário, a lei estabelece que este é o prazo para que o ato seja impugnado, o que nos leva a caracterizá-lo como prescricional. Fixada sua natureza como prescricional, as interrupções devem ser admitidas e os critérios de interrupção devem ser adotados, nos termos do Código Civil. 40
41
Livro 1.indb 242
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
243
cinco anos da prática do ato, é necessário que a Administração demonstre a má-fé do destinatário a fim de que seja promovida a sua anulação. A consequência, em relação aos atos praticados de má-fé, é a da imprescritibilidade, ou seja, a qualquer tempo a Administração poderá rever atos nulos, desde que seja provada a má-fé daquele que se beneficiou com a prática do ato.43 Importa verificar que os princípios da segurança jurídica e da boa-fé interferem no exame da invalidação do ato em dois diferentes aspectos: 1. Impedindo a própria anulação do ato na eventualidade de ele ter sido praticado há mais de cinco anos e; 2. Permitindo que, não obstante o ato seja anulado, posto que praticado dentro do prazo de cinco anos, determinados efeitos dele decorrentes possam ser preservados. Na primeira situação, que se verifica quando o ato tiver sido praticado há mais de cinco anos, se o destinatário de ato ampliativo de direito tiver agido de boa-fé, que se presume e somente desaparece se o poder público demonstrar a existência de má-fé, desaparece o poder da Administração de anular o ato. Não se trata de situação que requeira a convalidação do ato. A rigor, o decurso do lapso temporal é, em si, o elemento de convalidação. A segunda situação ocorre quando o ato viciado tiver sido praticado dentro do período prescricional de cinco anos. Nesta hipótese, não obstante a boa-fé do destinatário, impõe-se o dever de anulação. Deve-se, aqui, verificar tão somente a possibilidade de que alguns efeitos decorrentes do ato nulo possam ser preservados a fim de realizar os princípios da segurança jurídica e da boa-fé do destinatário. Tomemos o seguinte exemplo: servidor público requer licença sem vencimento de cargo público A para tomar posse em outro cargo B, possibilidade que, durante muito tempo, foi admitida e, atualmente, é tida como ilícita. Decorridos alguns meses e sem que Administração Pública tenha tomado qualquer providência para impedir referida acumulação ilegal, o servidor pede exoneração do novo cargo B e retorna ao antigo cargo A. A rigor, caracterizada a acumulação dos cargos, a investidura no cargo B é nula. A anulação do ato impõe, como regra, que todos os efeitos dela decorrentes sejam igualmente anulados. Diante dessa situação, o tempo de serviço relativo ao exercício do cargo B não poderia ser considerado para nenhum fim? Ou, ao contrário, em nome da boa-fé do servidor, esse tempo pode ser considerado para fim de aposentadoria, de férias, de licenças etc.? No exemplo, a boa-fé do servidor permite que a anulação do ato não importe em desconstituição dos efeitos que possam ser preservados. Desse modo, o tempo de serviço do servidor pode ser contado para todos os fins legais. Último aspecto relativo ao prazo de cinco anos diz respeito à sua inaplicabilidade aos processos judiciais. Tanto a Administração quanto o Poder Judiciário possuem competência para anular o ato administrativo. A Lei nº 9.784/99, que fixa o prazo prescricional para a Administração anular seus atos, regula o processo administrativo. Este argumento basta 43
Livro 1.indb 243
Em sentido contrário, Sérgio Ferraz, citado por Raquel Melo Urbano de Carvalho, esclarece que a interpretação de que a má-fé possibilitaria à Administração anular o ato a qualquer tempo importaria em reconhecer que “a cláusula final ‘salvo comprovada má-fé’ é inconstitucional, por isso que afrontosa ao princípio da razoabilidade. E não vale, aqui, pretender o primado absoluto do princípio da legalidade. Dúvida não temos em dizer que, pelo correr do tempo, a segurança jurídica coloca entre parênteses o princípio da legalidade” (Curso de direito administrativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração, p. 544).
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
244
para que se conclua pela não aplicação do citado prazo às impugnações judiciais dos atos administrativos. Ademais, ao dispor sobre anulação, revogação e convalidação, a lei trata do poder de autotutela da Administração Pública. Define a lei os parâmetros legais a serem utilizados pela Administração quando ela própria exerça o controle em relação aos seus atos. Este argumento se estende ao controle a ser exercido pelo Tribunal de Contas da União sobre os atos da Administração Pública. Ora, se a Lei nº 9.784/99 cuida do poder de autotutela da Administração, e se o TCU exerce controle externo da atividade administrativa (CF, arts. 70 e 71), a conclusão deve ser no sentido de que o referido prazo de cinco anos é aplicável às circunstâncias em que a própria unidade administrativa de onde o ato emanou cogite de anulá-lo, no exercício do seu poder de autotutela. Esse prazo não se aplica aos órgãos responsáveis pelo controle externo da atividade administrativa, seja esse controle externo exercido pelo Poder Judiciário, seja ele exercido pelo TCU.44 Em relação ao Poder Judiciário, os prazos aplicáveis são os previstos nas legislações processuais respectivas. Desse modo, se for atacado ato administrativo por meio de mandado de segurança, o prazo decadencial para sua interposição é de “cento e vinte contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado” (Lei nº 1.533/51); se for questionada a validade do ato por meio de ação popular, o prescricional é de cinco anos (Lei nº 4.717/65); na eventualidade de ser utilizada a ação de improbidade, o prazo prescricional é igualmente de cinco anos (Lei nº 8.429/92). Proposta dentro do prazo prescricional ou decadencial aplicável à espécie, não existe prazo para o juiz julgar a ação. Todas as considerações acima expostas não impedem, todavia, a aplicação do princípio constitucional de segurança jurídica ao processo judicial. Tomemos o seguinte exemplo: no ano de 1989, portanto na vigência da Constituição Federal de 1988, são providos cargos efetivos sem o necessário concurso público. O Ministério Público propõe ação civil pública para anular o ato dentro do correspondente prazo prescricional. Caso o juiz somente venha a proferir sentença no ano de 2006, isto é, decorridos 18 anos da prática do ato, sem que jamais tivesse sido concedida qualquer cautelar para afastar os servidores nomeados ilegalmente, poderia ser determinada a anulação do ato de provimento de mencionados cargos? A resposta parece-nos negativa. Não se aplica ao caso a Lei nº 9.784/99, que trata de processo administrativo. A impossibilidade de revisão do ato decorre da aplicação direta do princípio da segurança jurídica.
5.7.2.6 Anulação e colisão de princípios Algumas questões tormentosas relativas aos fundamentos para a anulação dos atos administrativos devem ser enfrentadas. Como proceder na eventualidade de ato praticado diante da colisão de princípios administrativos, por exemplo? Deve ser anulado o ato que para realizar dispositivo legal (princípio da legalidade) viola o princípio da moralidade, ou que visando à realização da eficiência viola a lei?
Nesse sentido, STF: “Afastou-se, em seguida, a alegação de decadência administrativa, em razão de o ato de aposentadoria ser ato administrativo complexo que só se aperfeiçoa com registro perante o TCU, sem o qual não se operam os efeitos da decadência. No mérito, na linha do que decidido pelo Pleno no MS 24.742/DF” (MS nº 25.090-DF, Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julg. 2.2.2005. DJ, 1º abr. 2005).
44
Livro 1.indb 244
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
245
Em nada se deve diferenciar a abordagem a ser dada ao exame da validade do ato administrativo praticado diante da aparente colisão de princípios da Administração Pública em relação às soluções apresentadas pelo Direito constitucional para exame da constitucionalidade de leis. Nessas hipóteses, o Direito Administrativo deve utilizar as soluções apresentadas pelo Direito Constitucional para a solução de conflitos em que se verifique colisão de princípios. O exame deve ser casuístico. Para cada ato em que se verifique a possibilidade de violação de um princípio como meio necessário à realização de outro, deve-se proceder à ponderação dos valores jurídicos envolvidos e verificar, em cada caso, a solução que melhor se coaduna ao interesse público. Procedido a esse exame, a conclusão acerca da colisão de princípios pode ser no sentido de confirmar a validade do ato ou a da sua anulação. Importante observar que na primeira hipótese, de ser confirmada a validade do ato, não obstante a aparente violação de princípio constitucional, não se trata de situação que requeira a convalidação. A convalidação deve ser utilizada caso seja confirmada a existência de vício sanável em ato administrativo, e não de colisão de princípio. Tomemos o exemplo de contratação sem licitação realizada com o objetivo de obter proposta mais vantajosa pela Administração. Poderíamos observar, no exemplo, a realização do interesse público em seu plano econômico com a obtenção de vantagens para a Administração. A não realização da licitação fora das hipóteses de dispensa e de inexigibilidade previstas em lei, todavia, além de ferir o interesse público em seu plano legal, viola dispositivos constitucionais e os princípios básicos da impessoalidade e da moralidade. O resultado, no caso, deve ser a anulação do ato.
5.7.2.7 Efeitos da anulação Antes de se proceder ao exame das consequências da anulação do ato administrativo, devem ser verificados os fundamentos para a anulação e o momento em que surgiram os vícios que justificam a anulação. Ato administrativo nulo é aquele praticado sem a observância das exigências legais ou constitucionais. O exame da nulidade é, portanto, retroativo. Volta-se à origem do ato para verificar se no momento em que foi praticado foram observados os requisitos para sua validade. Se neste momento for constatada a presença de vício invalidante, o ato deve ser anulado e todos os efeitos dele decorrentes devem, como regra, ser igualmente desconstituídos. Discordamos frontalmente de qualquer afirmação — comum no âmbito do Direito Privado — no sentido de que o ato nulo não gera efeitos. O ato nulo efetivamente produz efeitos. Todavia, uma vez reconhecida e declarada formalmente sua nulidade, os efeitos que dele tenham decorrido são igualmente nulos e devem ser desfeitos. Eis a razão pela qual a anulação administrativa ou judicial do ato administrativo opera efeitos ex tunc. Anulado o ato, seus efeitos serão desconstituídos pelo ato anulatório. Ou seja, a anulação do ato é apenas a primeira etapa do processo que objetiva eliminar do mundo jurídico todos os efeitos decorrentes do ato nulo. Esta eficácia retroativa encontra, no entanto, algumas exceções. A primeira exceção decorre da aplicação direta dos princípios da boa-fé e da segu rança jurídica. Verificada a boa-fé do destinatário do ato ou de terceiro, não obstante o
Livro 1.indb 245
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
246
ato seja anulado, caso ele tenha sido praticado dentro do período de cinco anos, alguns efeitos dele decorrentes podem ser preservados.45 Outra situação normalmente apresentada como exceção à eficácia ex tunc da anulação está ligada à teoria do fato consumado. Efetivamente, se o ato gerou situação de fato que, por maiores que sejam os esforços da Administração, não possa ser revertida, resta pouco a fazer a não ser manter esses efeitos. Todos os operadores do Direito, aí incluída a Administração Pública, devem lutar contra a teoria dos fatos consumados que, quase sempre, constituem absurdos jurídicos consumados.46 Em nome do interesse público, devemos procurar nos contrapor, com todas nossas forças, à teoria do fato consumado, adotada com infeliz frequência pelo Poder Judiciário. No âmbito judicial, não são incomuns odiosas situações criadas pela concessão de medidas cautelares e, decorridos anos, por ocasião do julgamento do mérito, argumenta-se com base nesta teoria a impossibilidade de se reverter o quadro verificado.
5.7.2.8 Consequências da anulação do ato anulatório É por meio de ato administrativo ou judicial que se anula o ato administrativo ilegal. A questão que se apresenta é a de saber o que ocorrerá caso o ato anulatório contenha vício e venha a ser anulado. Podemos considerar a seguinte situação: caso o ato A seja anulado pelo ato B — denominado ato anulatório —, e o ato B venha a ser anulado por novo ato C, o ato A volta a vigorar? Em matéria de processo legislativo, a revogação de lei que havia revogado outra não importa em que a primeira, aquela que fora inicialmente revogada, volte a vigorar, salvo se houver disposição legal expressa. No Direito Administrativo, a solução parece ser diferente. A razão da distinção reside no fato de que a revogação de leis, salvo situações excepcionais, não retroage. A anulação de atos administrativos, ao contrário, importa como regra eficácia retroativa. Nesse sentido, anulado o ato B pelo ato C, desconstitui-se o ato B desde sua origem. Daí se concluir que o ato A volta a vigorar.47 Seria igualmente correto argumentar, ademais, STJ: “Administrativo – Ato Administrativo: revogação – Decadência – Lei 9.784/99 – Vantagem funcional – Direito adquirido – Devolução de valores. Até o advento da Lei 9.784/99, a Administração podia revogar a qualquer tempo os seus próprios atos, quando eivados de vícios, na dicção das Súmulas 346 e 473/STF. A Lei 9.784/99, ao disciplinar o processo administrativo, estabeleceu o prazo de cinco anos para que pudesse a Administração revogar os seus atos (art. 54). A vigência do dispositivo, dentro da lógica interpretativa, tem início a partir da publicação da lei, não sendo possível retroagir a norma para limitar a Administração em relação ao passado. Ilegalidade do ato administrativo que contemplou a impetrante com vantagem funcional derivada de transformação do cargo efetivo em comissão, após a aposentadoria da servidora. Dispensada a restituição dos valores em razão da boa-fé da servidora no recebimento das parcelas. Segurança concedida em parte” (MS nº 9.112-DF, Corte Especial. Rel. Min. Eliana Calmon. Julg. 16.2.2005. DJ, 14 nov. 2005, grifos nossos). 46 No sentido de preservar o fato consumado, STF: “Concurso público – Delegado de polícia – Exame psicotécnico. Se a lei exige, para a investidura no cargo, o exame psicotécnico, não pode este ser dispensado, sob pena de ofensa ao art. 37, I, da Constituição. Não pode, a circunstância de ter sido a liminar deferida, sanar a inconstitucionalidade da sua concessão. Recurso extraordinário provido” (RE nº 275.159-SC, 1ª Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julg. 11.10.2001. DJ, 11 out. 2001, grifos nossos). Em sentido contrário, STF: “Agravo Regimental em Recurso Extraordinário. 2. Recurso que não demonstra o desacerto da decisão agravada. 3. Matéria prequestionada. 4. Concurso público. Auditor Fiscal do Tesouro Nacional. Aplicação da teoria do fato consumado. Impossibilidade. Precedentes. 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (RE nº 462.909-AgR/GO, 2ª Turma. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julg. 4.4.2006. DJ, 12 maio 2006, grifos nossos). 47 De se observar que o raciocínio adotado para a anulação de atos é o mesmo da declaração de inconstitucionalidade. Nesse sentido, STJ: “Contribuição previdenciária patronal. Empresa agroindustrial. Inconstitucionalidade. Efeito 45
Livro 1.indb 246
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
247
que em razão dos vícios verificados no ato B, o ato A não foi validamente retirado do mundo jurídico. Desse modo, não haveria que se falar em repristinação, mas em efeito repristinatório, pois a anulação do ato B não fez com que o ato A voltasse a existir, mas a produzir efeitos. Ao que parece é a mesma situação quando se declara a inconstitucionalidade de uma lei revogadora. A lei revogada volta a produzir efeitos, uma vez que a revogação não se operou validamente.48 O raciocínio a ser adotado para o exame dos efeitos da anulação do ato anulatório é exatamente oposto ao que se utiliza para o processo legislativo. A anulação do ato anulatório resulta na vigência plena do ato inicialmente anulado, salvo declaração expressa em sentido contrário. Exemplo: tendo sido constatado que o ato A foi anulado pelo ato B em razão de desvio de finalidade e, posteriormente, tendo sido verificado que o ato B contém vício de forma, ou de competência, este será anulado pelo ato C. A regra é que isto importa em que o ato A volte a vigorar. A fim de evitar o retorno do ato A, cujo vício não foi sanado ou deixou de existir, deve ser expressamente mencionado que a anulação do ato A é mantida. Conforme mencionado, o mesmo raciocínio adotado para a anulação do ato anulatório pela via administrativa deve ser utilizado quando esta se dê por meio judicial. Caso decisão judicial anule ato anulatório, a sentença deve expressamente indicar a solução acerca da vigência do ato inicialmente anulado. Do contrário, este primeiro ato volta a ter vigência plena.
5.7.2.9 Anulação e dever de indenizar A fim de se verificar a responsabilidade civil do Estado diante da anulação do ato administrativo deve ser considerada a existência de boa-fé ou de má-fé do particular que sofra eventuais prejuízos em razão do desfazimento do ato. Demonstrada a boa-fé do particular, impõe-se à Administração o dever de inde nizar os prejuízos sofridos pelo particular, ainda que os dispêndios realizados pelo particular não aproveitem à Administração. Se, por exemplo, for contratada a execução de obra pública sem a obtenção das necessárias licenças ambientais, a contratação deverá ser anulada. Caso a empresa contratada tenha realizado despesas de mobilização e de desmobilização, despesas essas que não aproveitam à Administração Pública, deverão elas, ainda assim, serem indenizadas.
repristinatório. Lei de Introdução ao Código Civil. 1. A declaração de inconstitucionalidade em tese, ao excluir do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida, produz efeito repristinatório, conduzindo à restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional. 2. O chamado efeito repristinatório da declaração de inconstitucionalidade não se confunde com a repristinação prevista no art. 2º, §3º, da LICC, sobretudo porque, no primeiro caso, não há sequer revogação no plano jurídico. 3. Recurso especial não-provido” (REsp nº 491.009-PR, 2ª Turma. Rel. Min. João Otávio de Noronha. Julg. 18.5.2006. DJ, 03 ago. 2006, grifos nossos). 48 Nesse sentido, STJ: “Constitucional. Tributário. Revogação e declaração de inconstitucionalidade. Efeitos. 1. A revogação, por ter como objeto norma válida, produz seus efeitos para o futuro. Dessa maneira, as situações advindas da incidência da norma no período compreendido entre a edição e a revogação permanecem inalteradas. Por sua vez, a declaração de inconstitucionalidade resulta na nulidade, desde a origem, da norma, que nem chegou a ter incidência. Retorna-se à situação anterior, validando-se a legislação pretérita, porque eficaz. 2. ‘A declaração de inconstitucionalidade da lei revogadora produz efeitos repristinatórios, restabelecendo-se a eficácia da lei revogada, o que não se confunde com a repristinação prevista no art. 2º, §3º, da LICC, sobretudo porque, no primeiro caso, não há sequer revogação no plano jurídico’ (AGA nº 545.156. Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJU de 14.06.2004). 3. Recurso especial improvido” (REsp nº 652264-SC, 2ª Turma. Rel. Min. Castro Meira. Julg. 14.9.2004. DJ, 03 nov. 2004, grifos nossos).
Livro 1.indb 247
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
248
Se, ao contrário, for demonstrado que o particular concorreu para a prática do vício, ainda que haja culpa concorrente de algum agente público, deve ser considerada a existência de duas diferentes circunstâncias: 1. As despesas realizadas pelo particular aproveitam à Administração Pública; ou 2. As despesas realizadas pelo particular não aproveitam à Administração Pública. Comprovada a má-fé do particular, somente é possível falar em direito de obter indenização da Administração se for comprovado que os dispêndios realizados aproveitaram à Administração. Se a atividade resultante do ato nulo tiver gerado algum benefício direto e material para a Administração Pública, que poderia consistir na prestação de serviços, execução de obras, recebimento de bens, não se pode utilizar a nulidade do contrato como fundamento para não indenizar. Comprovada a má-fé do particular, ele deve ser punido penal, administrativa e civilmente. Se, todavia, for demonstrado benefício para a Administração, no sentido de que as despesas realizadas pelo particular foram apropriadas pelo Estado, deve haver indenização ao particular a fim de não caracterizar enriquecimento sem causa do poder público. Exemplo: considere que determinada empresa é contratada sem licitação apresentando atestado falso de exclusividade (Lei nº 8.666/93, art. 25, I). Se os bens objeto do contrato foram entregues à Administração, a anulação do contrato não legitima o não pagamento pela entrega dos bens — pagamento que deve ser expurgado de quaisquer benefícios e despesas indiretas. Deve ser quantificado o valor que efetivamente aproveita à Administração e este valor deve ser pago ao particular. A situação acima já se encontra pacificada pela jurisprudência em relação à anulação de nomeação de cargos públicos. Efetivamente, este dever de indenização que se impõe constitui exceção à eficácia retroativa da anulação do ato administrativo. Aplicada com frieza a regra de que de ato nulo não se pode esperar efeito válido, dever-se-ia cogitar de se restituírem aos cofres públicos os valores pagos ao servidor, caso sua nomeação ou posse sejam anuladas. É de se observar, todavia, que o pagamento da indenização, nestas circunstâncias, não é consequência direta da investidura no cargo ou da celebração do contrato. O pagamento está ligado à contraprestação pelos serviços desempenhados pelo servidor e, no caso de empresa contratada, pelo fornecimento dos bens, pela execução da obra, pela prestação do serviço ou fornecimento do bem. No caso de servidor público, anulado o ato de nomeação, os valores pagos não devem ser restituídos, não por conta de remuneração ou de pagamento de salário, mas como indenização em razão dos serviços efetivamente prestados. O mesmo raciocínio aplicável aos servidores públicos que tenham suas nomeações anuladas pode ser utilizado em favor de empresas contratadas pela Administração Pública cujos contratos venham a ser anulados.
5.7.2.10 Órgãos competentes para a anulação Conforme indicado pela Súmula nº 473 do STF, tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário dispõem de competência para anular atos administrativos. Em alguns aspectos o exercício dessa potestade se diferencia quando ela é exercida pela Administração ou pela via judicial. A primeira diz respeito ao fato de que a Administração pode agir de ofício ou por provocação, ao passo que a anulação do ato administrativo pela via judicial necessita de provocação.
Livro 1.indb 248
21/03/2013 17:13:50
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
249
As ações mais frequentemente utilizadas para a obtenção da anulação pela via judicial são, além a própria ação anulatória, o mandado de segurança, a ação civil pública, a ação popular, a ação de improbidade administrativa, e, caso se trate de ato normativo, a ação direta de inconstitucionalidade. Outro aspecto em que a anulação judicial e administrativa se diferenciam é em relação aos prazos a serem observados: a anulação administrativa observa o prazo prescricional de cinco anos da data em que o ato foi praticado, ao passo que a anulação judicial deve ser proposta nos prazos prescricionais ou decadenciais pertinentes à ação utilizada. Importa observar que além da Administração e do Poder Judiciário, o Tribunal de Contas da União possui competência constitucional (art. 70) expressa para examinar a legalidade dos atos praticados pela Administração Pública direta e indireta. Nesse sentido, “verificada ilegalidade em ato ou contrato, o TCU deve, inicialmente, assinar prazo para que o órgão ou entidade adote providências necessárias ao exato cumprimento da lei” (CF, art. 71, IX). Caso o órgão não cumpra a determinação fixada pelo Tribunal, deve-se verificar se se trata de ato ou de contrato. No primeiro caso, de ser verificada ilegalidade em ato administrativo, caso o órgão ou entidade não adote a providência determinada, o próprio TCU deve promover a sua anulação (CF, art. 71, X). Se, ao contrário, se tratar de contrato, esgotado o prazo indicado pelo Tribunal sem que tenha sido adotada qualquer providência, deve ser informado o Congresso Nacional, competente para a sustação.49 O TCU, não obstante sua estatura constitucional, é Tribunal administrativo e a sua atuação não pode ser considerada como decorrente do poder de autotutela de que dispõe a Administração Pública. No exercício do seu poder de autotutela, a autoridade administrativa dispõe da potestade de anular ou de revogar atos administrativos. O exame a ser realizado pelo TCU, que pode agir de ofício ou mediante provocação, está ligado tão somente a razões de legalidade, legitimidade e economicidade da atividade administrativa.50 Não pode o TCU determinar a revisão do ato em razão de eventual juízo desenvolvido pelo Tribunal quanto à falta de oportunidade ou de conveniência de ser mantido o ato ou de seu desfazimento. O TCU deve restringir sua fiscalização — em auditorias, inspeções, denúncias, representações, processos de tomadas ou de prestações de contas — ao exame da conformidade do ato com o ordenamento jurídico. Não exerce o TCU, portanto, qualquer controle de mérito, mas tão somente de legitimidade (aqui incluído o exame da economicidade da atividade administrativa). A natureza administrativa dos processos conduzidos no TCU — regidos pela Lei nº 8.443/92 e pelo seu Regimento Interno — permite a aplicação, em caráter supletivo, da Lei nº 9.784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da Administração Pública federal, conforme jurisprudência do STF que tem como precedente o MS nº 23.550 (Min. Rel. Sepúlveda Pertence). Como requisito à anulação de atos administrativos, o TCU deve assegurar o pleno exercício do contraditório, da ampla defesa etc.
Parece-nos que o termo “sustação” utilizado pela Constituição Federal no art. 71, X e §1º, deve ser interpretado como gênero do qual são espécies a suspensão da execução do contrato ou a sua anulação, podendo ser utilizada uma ou outra medida conforme o TCU ou o Congresso Nacional entendam mais conveniente para a espécie. 50 Não obstante o texto constitucional (art. 70) ter utilizado os três termos — legalidade, legitimidade e economicidade — para se referir ao exame a ser realizado pelo TCU, entendemos que eles podem-se reduzir a um só: legitimidade. O ato ilegal e o ato antieconômico não são inconvenientes ou inoportunos; eles são atos ilegítimos. 49
Livro 1.indb 249
21/03/2013 17:13:50
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
250
No que toca ao prazo para a anulação, conforme definido no art. 54 da Lei nº 9.784/99, a prescrição de cinco anos consta como limitação à autotutela administrativa. Como o TCU não se utiliza do poder de autotutela para rever os atos e contratos celebrados pela Administração Pública federal, mas de competência constitucional própria decorrente da função de controle externo, ele pode exercer suas atribuições e, se for o caso, proceder à anulação independentemente de o ato ter sido praticado há mais de cinco anos. Verificada a existência de vício de legalidade e confirmada a boa-fé do beneficiário do ato, o TCU deve proceder a exame casuístico. O Tribunal deve examinar as particularidades inerentes a cada ato ou contrato objeto da fiscalização e, procedendo à ponderação entre o princípio da legalidade, de um lado, e da segurança jurídica e boa-fé, do outro, definir se é caso de determinar a anulação ou se é possível a manutenção dos atos ou contratos em que tenham sido verificadas as irregularidades.51 Caso a conclusão seja no sentido de ser procedida à anulação do ato, as particularidades de cada caso devem ser igualmente consideradas a fim de verificar a possibilidade de serem mantidos alguns efeitos decorrentes do ato. Ou seja, a boa-fé do particular — ou servidor público — pode interferir em dois aspectos no exame da validade do ato: 1. No momento em que se cogite da anulação ou não do ato; e 2. Caso a conclusão seja no sentido de se proceder à anulação, no exame da desconstituição ou preservação dos efeitos decorrentes do ato anulado.
5.7.2.11 Anulação do ato de aposentadoria e restituição dos proventos pagos Os atos concessão de aposentadoria ou de pensão, bem como os de admissão de pessoal, nos termos da Constituição Federal (art. 71, III), sujeitam-se ao registro pelo TCU. Em face desta particularidade, a anulação desses atos obriga o administrador a 51
Acerca do tema, transcrevemos trecho do voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes, relator do MS nº 24.268: “Impressiona-me, ademais, o fato de a cassação da pensão ter ocorrido passados 18 anos de sua concessão — e agora já são 20 anos. Não estou seguro de que se possa invocar o disposto no art. 54 da Lei nº 9.784, de 1999 (Lei nº 9.784, de 29.1.1999): ‘Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. §1º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento. §2º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.’ — embora tenha sido um dos incentivadores do projeto que resultou na aludida lei —, uma vez que, talvez de forma ortodoxa, esse prazo não deva ser computado com efeitos retroativos. Mas, afigura-se-me inegável que há um ‘quid’ relacionado com a segurança jurídica que recomenda, no mínimo, maior cautela em casos como o dos autos. Se estivéssemos a falar de direito real, certamente já seria invocável a usucapião. A propósito do direito comparado, vale a pena ainda trazer à colação clássico estudo de Almiro do Couto e Silva sobre a aplicação do princípio da segurança jurídica: ‘É interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o principio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados’. (...) Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência, para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre o da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção à confiança do favorecido (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, v. 1, p. 257 et seq.; v. 2, 1967, p. 339 et seq.)” (MS nº 24.268-ED/MG, Pleno. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julg. 3.5.2006. DJ, 09 jun. 2006).
Livro 1.indb 250
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
251
observar alguns procedimentos especiais, não aplicáveis à anulação dos demais atos administrativos. A matéria não é simples, o que pode ser constatado pela existência de inúmeras súmulas editadas pelo STF e pelo TCU. Passemos ao exame das questões relativas à possibilidade e aos limites para que a Administração possa rever os seus atos de concessão de aposentadoria ou de pensão. Constatada ilegalidade na concessão de aposentadoria, pensão ou reforma o primeiro aspecto a ser considerado pela Administração com vistas à anulação do ato é a verificação da ocorrência de registro no TCU, ou no respectivo Tribunal de Contas Estadual,52 no caso de se tratar de ato praticado pelas Administrações estaduais ou municipais. A primeira condição para a Administração rever o seu ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão é que o TCU ainda não tenha apreciado o ato, conforme preconizam a Súmula nº 6 da Jurisprudência do STF e a Súmula nº 199 do TCU. Não tendo o ato de concessão sido apreciado pelo Tribunal, é preciso distinguir os casos em que fique comprovada má-fé — que, conforme já observado, não se sujeitam ao prazo de cinco anos fixado no art. 54 da Lei nº 9.874/99 — e os casos em que haja boa-fé, que se sujeitam ao prazo prescricional Comprovando-se a má-fé (em processo administrativo que tenha assegurado a ampla defesa e o contraditório nos termos da Lei nº 9.784/99) e não tendo sido o ato apreciado pelo TCU, a Administração poderá anulá-lo ainda que praticado há mais de cinco anos. Não se comprovando a má-fé e não tendo o ato sido apreciado pelo Tribunal, a Administração poderá revê-lo desde que tenha sido praticado há menos de cinco anos. A má ou boa-fé do administrado irá interferir apenas na possibilidade de o ato ser anulado após a expiração do prazo de cinco anos. Ainda que tenha havido boa-fé por parte do administrado, se o ato foi praticado dentro do citado prazo, deverá a Administração proceder à sua invalidação. Na segunda hipótese, que se verifica caso o ato já tenha sido registrado pelo Tribunal, a Administração deverá submeter o processo administrativo de revisão ao TCU, a fim de que o Tribunal delibere sobre a matéria, conforme determina a Súmula nº 6 do STF. Sendo possível a revisão pela própria Administração (com efeitos desfavoráveis ao beneficiário independente de reapreciação pelo TCU), a regra é que deverá ser providenciado o ressarcimento, salvo se presentes as circunstâncias referidas no Enunciado nº 249 da Jurisprudência do TCU.53 A necessidade de restituição dos valores pagos se deve ao fato de que o ato não apreciado pelo Tribunal não gera para o beneficiário segurança jurídica oponível contra o Estado. Esse o aspecto fundamental a ser considerado: somente após a apreciação pelo Tribunal de Contas de ato sujeito a registro,
Incluídos também, conforme o caso, os Tribunais de Contas dos Municípios e os Tribunais de Contas dos Municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro. 53 Súmula nº 106: “o julgamento, pela ilegalidade, das concessões de reforma, aposentadoria e pensão, não implica por si só a obrigatoriedade da reposição das importâncias já recebidas de boa-fé, até a data do conhecimento da decisão pelo órgão competente”; e Súmula nº 249: “É dispensada a reposição de importâncias indevidamente percebidas, de boa-fé, por servidores ativos e inativos, e pensionistas, em virtude de erro escusável de interpretação de lei por parte do órgão/entidade, ou por parte de autoridade legalmente investida em função de orientação e supervisão, à vista da presunção de legalidade do ato administrativo e do caráter alimentar das parcelas salariais”. 52
Livro 1.indb 251
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
252
será conferida ao seu beneficiário a segurança jurídica que impedirá a eficácia ex tunc do ato de invalidação. O ressarcimento, nessas hipóteses, deverá ser feito conforme fixado pelo art. 46 da Lei nº 8.112/90. Examinadas as situações em que a Administração Pública deverá rever seus atos de concessão de aposentadoria, passamos às questões referentes às possibilidades e aos limites de revisões aplicáveis ao próprio TCU. Inicialmente, deve ser observado, conforme orientação pacífica do STF (MS nº 25.090), o decurso do prazo de cinco anos entre a concessão da aposentadoria ou da pensão pelo órgão de origem e o seu exame pelo TCU. É de se notar que o decurso desse prazo não impede que o Tribunal negue registro ao ato de aposentadoria. Situação distinta consiste em saber se, uma vez registrado o ato pelo TCU, poderá este Tribunal a qualquer tempo rever o seu ato, ou terá de respeitar o prazo de cinco anos da Lei nº 9.784/99? Em outras palavras: o TCU está sujeito à Lei nº 9.784/99 quando rever o seu próprio ato de registro de aposentadoria ou de pensão? O ato por meio do qual o TCU registra concessão de aposentadoria se trata de ato de controle da Administração Pública. Evidenciado o erro inicial, o Tribunal tem o dever de revisar a sua decisão, ainda que da revisão decorra prejuízo para o beneficiário. Trata-se de poder-dever decorrente do princípio da legalidade, que é prerrogativa e dever geral da Administração Pública aplicável também ao TCU. Assim, não comprovada a má-fé do beneficiário da aposentadoria ou pensão, o TCU se sujeita ao prazo fixado no art. 54 da Lei nº 9.784/99, podendo rever os seus atos de apreciação de concessões praticados há menos de cinco anos. Desse modo, em respeito ao princípio da segurança jurídica que opera em favor do beneficiário, a prerrogativa de rever o seu ato prescreve também para o Tribunal de Contas em cinco anos, nos termos do art. 54 da Lei nº 9.784/99. Comprovada a má-fé, não pode o beneficiário invocar a segurança jurídica em seu proveito, podendo a deliberação que apreciou a legalidade do ato de concessão ser revista mesmo se ocorrida há mais de cinco anos. Assim, no caso de má-fé do aposentado ou pensionista, a deliberação do Tribunal poderá ser revista a qualquer tempo. A revisão de ofício das deliberações do TCU em matéria de registro de aposentadoria se submete aos parâmetros gerais utilizados pela Administração para a anulação dos atos administrativos em razão da aplicação subsidiária da Lei nº 9.784/99 à Lei Orgânica do TCU (Lei nº 8.443/92). Nesses termos, nos casos em que não se comprove má-fé, a revisão da deliberação que inicialmente apreciou a concessão deverá ter efeitos apenas ex nunc, com a suspensão total ou parcial do pagamento do benefício sem exigência de devolução dos pagamentos anteriores. Trata-se de aplicação do princípio da segurança jurídica. Já apreciado o ato pelo Tribunal, que visa a transformar em definitiva situação que até então era instável, deve o beneficiário ter proteção maior do que aquele cujo ato não foi ainda apreciado. Essa proteção não chega, ainda, a inviabilizar a própria revisão — o que só ocorre após o prazo de cinco anos da apreciação pelo Tribunal —, mas assegura ao beneficiário a intangibilidade do que tenha recebido indevidamente, respaldado pela Administração e pelo TCU. Nos casos de comprovada má-fé (observado, claro, o devido processo legal, com todas as suas garantias) o TCU poderá a qualquer tempo rever o ato e determinar a restituição dos valores pagos, haja vista a inaplicabilidade do princípio da segurança jurídica.
Livro 1.indb 252
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
253
Podemos, então apresentar as seguintes conclusões acerca da anulação de atos que tenham concedido aposentadoria, pensões ou reformas: a) A primeira condição para que a Administração possa rever o seu ato de concessão de aposentadoria, reforma ou pensão, com efeitos desfavoráveis ao beneficiário, independentemente de nova apreciação pelo Tribunal de Contas, é que o TCU ainda não tenha apreciado o ato, conforme preconizam a Súmula nº 6 da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a Súmula nº 199 do Tribunal de Contas da União; b) Nesta hipótese, não tendo o ato de concessão sido apreciado pelo Tribunal, é preciso distinguir os casos em que fique comprovada má-fé (que não se sujeitam ao prazo decadencial fixado no art. 54 da Lei nº 9.784/99) e os casos em que não se comprove a má-fé (que se sujeitam ao prazo de decadência); c) Não se comprovando a má-fé e não tendo o ato sido apreciado pelo Tribunal, a Administração poderá revê-lo desde que o ato tenha sido praticado há menos de cinco anos; d) Comprovando-se a má-fé (em processo administrativo em que tenha sido assegurada a ampla defesa e o contraditório nos termos da Lei nº 9.784/99) e não tendo sido o ato apreciado pelo Tribunal, a Administração poderá revê-lo mesmo se praticado há mais de cinco anos; e) Caso o ato já tenha sido apreciado pelo Tribunal, a Administração deverá submeter o processo administrativo de revisão ao TCU, a fim de que o Tribunal delibere sobre a matéria; f) Sendo possível a revisão pela própria Administração (com efeitos desfavoráveis ao beneficiário independente de reapreciação pelo TCU), a regra é que deverá ser providenciado o ressarcimento ao erário, salvo se presentes as circunstâncias referidas no Enunciado nº 249 da jurisprudência do Tribunal de Contas da União, porque o ato não apreciado pelo TCU não gera para o beneficiário segurança jurídica oponível contra o Estado; g) O ressarcimento deverá ser feito, sempre que possível, conforme fixado pelo art. 46 da Lei nº 8.112/90; h) Não sendo possível a adoção do procedimento de ressarcimento previsto no art. 46 da Lei nº 8.112/90, deverá ser observado o §1º do art. 122 da Lei nº 8.112/90.
5.7.2.12 Anulação, cassação e caducidade A anulação e a cassação têm alguns aspectos em comuns e ocorrem em razão de ilegalidade. Distinguem-se, em primeiro lugar, em razão do momento em que a ilegalidade se verifica. No caso da anulação, a ilegalidade ocorre no momento em que o ato é praticado; a cassação se deve a fatos supervenientes à prática do ato, mas que justificam a sua suspensão. Em razão desta distinção, a anulação é forma de desconstituição do ato; a cassação não desconstitui o ato, posto que não ataca sua origem, mas apenas impede que continue a produzir efeitos. Nesse sentido, em relação à eficácia, a cassação mais se aproxima — como será examinado em seguida — da revogação, desta se distinguindo porque a revogação ocorre por motivo de conveniência e oportunidade ao passo que a cassação ocorre por motivo de ilegalidade.
Livro 1.indb 253
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
254
Para melhor demonstrar as diferenças entre a cassação e a anulação, podemos examinar situações relativas à concessão de aposentadoria: caso tenha sido concedida aposentadoria com violação das exigências legais — utilização de certidão falsa de tempo de serviço, por exemplo — deve ser anulada a concessão. Ao contrário, caso seja constatado que após a concessão de aposentadoria o servidor, ainda na atividade, havia cometido infração administrativa punível com pena de demissão, deve ser instaurado processo disciplinar com vistas à cassação da aposentadoria deste servidor (Lei nº 8.112/90, art. 134). Deve ser observado que a aposentadoria, nesta segunda hipótese, é válida. O servidor que a obteve preenchia todos os requisitos legais à sua obtenção. Caso seja instaurado processo disciplinar e seja aplicada a pena de cassação de aposentadoria, os efeitos não retroagem à concessão. Tendo sido cassada a aposentadoria, os efeitos de sua concessão deixam de existir. O que motiva a cassação da aposentadoria é a condenação decorrente de processo disciplinar (fato superveniente) e não a existência de ilegalidade na concessão, daí por que seus efeitos são distintos da anulação: a cassação opera com eficácia ex nunc; a anulação, com eficácia ex tunc. A caducidade constitui hipótese de extinção de ato administrativo decorrente da superveniência de norma jurídica que passa a impedir a permanência de uma situação jurídica anteriormente reconhecida pela Administração. A doutrina cita como exemplo a caducidade de uma permissão para uso de um bem público, em decorrência de uma lei posterior que proíbe tal uso privativo por particulares.
5.7.3 Revogação 5.7.3.1 Fundamentos A possibilidade de revisão dos atos administrativos não se restringe a razões de natureza legal. Fatores relacionados à conveniência ou à oportunidade permitem igualmente, em algumas situações, a revisão pela Administração Pública dos seus atos. Essa potestade foi reconhecida em nosso sistema jurídico, inicialmente, pelo Supremo Tribunal Federal por meio da Súmula nº 473 — “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (grifos nossos) —, e posteriormente confirmada pela Lei nº 9.784/99. São razões de mérito que permitem a revogação do ato. Esta regra gera uma série de condicionantes para a revisão do ato. De se observar, em primeiro lugar, que a revogação de qualquer ato deve ser necessariamente motivada (Lei nº 9.784/99, art. 50) e justificada como meio necessário à realização do interesse público. A potestade de revogar seus atos não confere à Admi nistração carta branca para a prática de atos de perseguição ou de favorecimento. Não pode a revogação, sob pena de invalidação do ato revocatório, ser instrumento para a violação da impessoalidade, da moralidade, da finalidade ou de qualquer outro princípio ou preceito legal. Outro aspecto relacionado ao poder de revogar atos como mecanismo de controle de mérito diz respeito à competência para revogação: somente a Administração Pública pode revogar seus atos. A rigor, apenas a autoridade que praticou o ato, ou aquela que lhe seja
Livro 1.indb 254
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
255
hierarquicamente superior, dispõe de competência para revogar atos administrativos. O Poder Judiciário ou o TCU não podem, sob qualquer argumento, determinar a revisão de atos administrativos sob o pretexto de conveniência ou de oportunidade. Importa uma vez mais destacar que a economicidade, a razoabilidade e a fina lidade não são elementos inerentes ao mérito, mas à legitimidade do ato. Os atos antieconômicos, desarrazoados ou com vício de finalidade não são inconvenientes ou inoportunos; eles são ilegítimos e suscetíveis ao controle judicial e àquele efetuado pelos Tribunais de Contas.
5.7.3.2 Efeitos A revogação do ato administrativo produz eficácia ex nunc. A explicação para a não retroatividade da revogação decorre da validade do ato a ser revogado. Se o ato, ao ser praticado, contrariou a ordem jurídica, ele não pode ser revogado. Se em sua origem é identificado vício invalidante, ele deve ser anulado. A impossibilidade de serem desconstituídos os efeitos já produzidos pelo ato a ser revogado está diretamente ligada ao princípio da segurança jurídica. A anulação dos atos administrativos opera efeitos retroativos porque do ato nulo não se podem esperar efeitos jurídicos válidos, daí a necessidade de que a anulação produza eficácia ex tunc. Em relação à revogação, que, ao contrário, pressupõe a validade do ato, não se admite a sua retroatividade. A revogação, a bem da verdade, não desconstitui o ato revogado, ela não o suprime do mundo jurídico; ela simplesmente impede que ele produza novos efeitos. Isto explica por que o termo revogação é tão pouco utilizado na prática administrativa, sendo bem mais frequente a expressão “sustação dos efeitos”. Quando o administrador susta os efeitos de determinado ato, ele o revogou. Do ponto de vista técnico, a revogação não é a revisão do ato em si, mas tão somente a suspensão dos efeitos do ato com eficácia ex nunc.
5.7.3.3 Atos irrevogáveis Outro importante aspecto relacionado à revogação dos atos administrativos diz respeito à existência de um rol de atos que, por distintas razões, não se sujeitam ao controle de mérito. Não são passíveis de revogação - Ato vinculado – A vinculação administrativa está ligada ao fato de que, diante de determinada circunstância, a Administração vê-se obrigada a praticar o ato com o conteúdo definido em lei. Assim sendo, razões de conveniência ou de oportunidade, que não interferiram por ocasião da prática do ato, não podem ser consideradas para desfazê-lo. Exemplo: em determinada unidade administrativa, existe uma servidora que obteve licença maternidade (ou gestante) e outra que solicitou e lhe foi concedida licença para tratar de interesse pessoal. Caso a servidora tenha ou adote um filho, a Administração está obrigada a conceder a licença, porque se trata de ato vinculado. Em relação à licença concedida à segunda servidora para tratar de interesse pessoal, a concessão decorreu do juízo de conveniência da Administração Pública. Se for constatado problema de carência de pessoal em referida unidade, a Administração poderia revogar
Livro 1.indb 255
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
256
a concessão das duas licenças? Em relação à primeira licença, haja vista se tratar de ato vinculado, a Administração não pode revogá-la, por mais inconveniente que considere o afastamento da servidora. O mesmo não se verifica em relação à licença para a segunda servidora tratar de interesse pessoal. Esta foi concedida porque a Administração a considerou conveniente. Se circunstâncias posteriores afetam esse juízo, a Administração pode, desde que o faça de forma fundamentada, revogar o ato. Em resumo: dado que razões de mérito somente interferem na formação do ato discricionário, os atos vinculados não se sujeitam ao juízo de revogação da Administração Pública; - Ato exaurido (ou consumado) – Ato exaurido é aquele cujos efeitos se encontram no passado. Ora, se a revogação não pode retroagir, se ela não pode alcançar efeitos já produzidos pelo ato, a consequência lógica e necessária dessa afirmação é a de que esta categoria de atos não pode ser revogada; - Ato individual que gere direito adquirido – Ato individual é aquele que afeta pessoa ou pessoas determinadas. É aquele em que o simples exame do ato, independentemente de quaisquer outros fatores, permite indicar os seus destinatários. Por direito adquirido devemos entender o que legitima alguém a exigir de outrem o adimplemento de obrigação positiva ou negativa. Se o ato individual gerou direito adquirido, desaparece a prerrogativa da Administração de revogá-lo. Essa impossibilidade consta de modo expresso tanto na Súmula STF nº 473 quanto no art. 53 da Lei nº 9.784/99. A nomeação de candidato aprovado em concurso público, por exemplo, se trata de ato discricionário, o que, em princípio, não lhe impede a revogação. Se o candidato toma posse, ele adquire direito ao exercício das atribuições e, estando legitimado a exigir da Administração o cumprimento de determinadas providências, já não mais poderá o provimento do cargo ser revogado. Em relação ao ato geral, aquele cujos destinatários são indefinidos, não obstante ele possa gerar direitos adquiridos, a Administração pode revogá-los a qualquer tempo. A revogação do ato geral não objetiva afetar ou desconstituir as situações já constituídas ou aperfeiçoadas, mas apenas impedir o surgimento de novas relações jurídicas. Nesse sentido, o ato administrativo geral, não obstante tenha gerado direitos, sujeita-se à revogação, desde que os direitos já constituídos sejam respeitados, conforme observam a Súmula STF nº 473 e a Lei nº 9.784/99 mencionadas. Em relação à revogação, e aos limites ao exercício dessa potestade, algumas interessantes questões são apresentadas.
5.7.3.4 Revogação e interesse público Questão interessante reside em saber como deve proceder a Administração Pública caso determinado ato válido (o que impede a sua anulação) tenha gerado direito adquirido (fato que impede a sua revogação) e se mostre inconveniente ou inoportuno para o poder público. O exemplo mais freqüentemente apresentado deste tipo de situação pela doutrina diz respeito à obra licenciada, mas não executada, que venha a violar os padrões urbanísticos fixados em lei aprovada após a expedição da licença.54 Não 54
Esse exemplo é apresentado por MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186. O ilustre autor, em nota de rodapé, menciona Caio Tácito que, em conferência proferida no I Congresso Brasileiro de Direito
Livro 1.indb 256
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
257
se pode, no caso, falar em invalidação superveniente do ato. Ao contrário, expedida a licença em conformidade com os normativos vigentes naquela oportunidade, não poderia a lei posterior retroagir para fulminar o ato jurídico perfeito, em razão de expressa vedação constitucional (CF, art. 5º, XXXVI). Não se pode falar igualmente em cassação da licença. Esta somente pode ser utilizada quando expressamente prevista em lei, e se circunstâncias posteriores — e jamais mudança legislativa — vierem a afetar a validade do ato. Os requisitos para a revogação também não se mostram presentes. Dado que a concessão da licença gerou para o titular direito adquirido à construção do imóvel, é abusivo o ato de revogação em nome de interesse público. Este somente se realiza se o ordenamento jurídico for observado. Dado que a expedição da licença observou as exigências legais, como se poderia alegar interesse público como fundamento para a sua revogação? Ademais, permitir a revogação de atos em situações como a que examinamos importaria em dar retroatividade à lei em evidente violação ao princípio da segurança jurídica, ao direito adquirido e em detrimento do ato jurídico perfeito, protegidos, como visto, pela Constituição Federal como direitos e garantias individuais. Segundo Hely Lopes Meirelles, para situações em que o “ato operante e irrevogável tornar-se inconveniente ao interesse público”, a solução seria a “supressão do ato mediante indenização completa dos prejuízos suportados pelo seu beneficiário”.55 Ousamos discordar do ilustre autor. Alegar que a revogação deve, nessas hipóteses, ser precedida de indenização ao particular que sofra prejuízos não é solução. Não é a possibilidade de indenizar o particular que legitima a revogação do ato. E mais, não é a substituição do termo “revogação” pelo de “supressão” que modifica as circunstâncias e a forma de proceder da Administração. Com a expedição da licença, o beneficiário obteve o direito de construir em sua propriedade, e não o de ser indenizado caso sua licença venha a ser revogada. A única opção de que dispõe a Administração Pública para impedir a construção diante das circunstâncias apontadas — em que foi licitamente concedido alvará que, de acordo com legislação superveniente, não poderia ser expedido — seria, conforme apontado por Caio Tácito, a Administração Pública seguir todos os procedimentos com vista a promover a desapropriação do imóvel a ser edificado.56 Trata-se de opção a ser utilizada discricionariamente pelo poder público nesta ou em qualquer outra circunstância em que haja necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, pela desapropriação, conforme definido no texto constitucional (art. 5º, XXIV).
5.7.3.5 Revogação de atos processuais Discussão igualmente interessante diz respeito à revogação dos atos não definitivos do processo, daqueles atos intermediários que não põem fim ao processo administrativo. Os atos não definitivos do processo se tornam preclusos à medida que sejam
Administrativo, realizado em Curitiba, em 1975, sugeriu que para essas situações deveria a Administração Pública promover a desapropriação do imóvel. 55 MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186. 56 Apud MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, 18. ed., p. 186.
Livro 1.indb 257
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
258
praticados os atos que lhes são subsequentes, conforme observa Maria Sylvia Zanella Di Pietro.57 Se não ocorreu a preclusão do ato, e ele não se insere em alguma das categorias de ato não revogável acima indicadas, é possível a sua revogação. Afigura-se-nos igualmente possível a revogação do próprio processo administrativo, e não apenas de atos administrativos em duas hipóteses: 1) quando a lei tiver expressamente conferido ao administrador a competência para essa revogação (exemplo: a revogação de licitação – Lei 8.666/93, art. 49);58 2) quando do processo administrativo resultar ato discricionário. Se é legítimo à Administração Pública revogar o ato discricionário, ela poderá ir além e revogar todo o processo do qual resultou referido ato discricionário.
5.7.3.6 Prazo para revogação Alguns questionamentos surgem acerca da inexistência de prazo legal para a Administração revogar seus atos. Poder-se-ia, inicialmente, cogitar da necessidade de ser fixado prazo ou de ser, por analogia, utilizado o prazo de cinco anos para anulação do ato constante do art. 54 da Lei nº 9.784/99. Não há, todavia, prazo legal aplicável à revogação e não pode ser utilizada a referida analogia. A impossibilidade de utilização do prazo de cinco anos decorre do simples fato de que a grande maioria dos atos se torna irrevogável pelo simples fato de que eles se consumam e, tendo sido produzidos todos os efeitos que deles se esperavam, não mais podem ser revogados. Os atos administrativos são praticados com o objetivo de produzir efeitos certos e determinados. É raro se encontrar ato administrativo cuja eficácia permaneça em suspenso por prazo indefinido. Assim sendo, em relação ao ato ilegal, a Administração perde o poder de anulá-lo em razão do decurso do prazo de cinco anos, salvo comprovada má-fé; em relação aos atos que venham a se mostrar inconvenientes ou inoportunos, a Administração não mais pode revogá-los em razão do esgotamento dos seus efeitos. A revogação pressupõe a eficácia do ato, pressupõe que ele mantenha a aptidão para produzir novos efeitos. Se essa situação não mais se mostra possível, perde a Administração a potestade de revogar o ato.
5.7.3.7 Revogação e dever de indenizar É comum encontrarmos afirmações genéricas no sentido de que a revogação gera, como regra, o dever para a Administração Pública de indenizar prejuízos sofridos pelos beneficiários do ato.
DI PIETRO. Direito administrativo, p. 239. A Lei nº 8.666/93, em seu art. 49, dispõe nos seguintes termos: “Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.” A revogação da licitação, nos termos da lei, pressupõe a presença dos seguintes requisitos: interesse público, “fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta” e motivação.
57 58
Livro 1.indb 258
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
259
A regra em relação ao dever de indenizar deve ser inversa. Se a Administração está legitimada a revogar atos tão somente em situações que não importem em violação de direitos adquiridos, e sem que possam ser desconstituídos efeitos até então produzidos, não há que se falar, em regra, em dever de indenizar. O beneficiário de ato revogável se encontra em situação precária. Desse modo, eventuais prejuízos que venha a sofrer não serão, em regra, indenizáveis. A possibilidade de indenização pode surgir somente em situações particulares e excepcionais. Exemplo: se determinado indivíduo obtém autorização de uso de área pública por prazo determinado e, antes de expirado o prazo fixado, a Administração decide revogar a autorização. Se na legislação aplicável ou se no próprio ato não tiver sido expressamente afastado o dever da Administração de indenizar, ela deverá ressarcir os prejuízos sofridos pelo beneficiário do ato. Situações como esta, em que a revogação gera para a Administração o dever de ressarcir prejuízos, são exceção. A regra a ser observada é a de que a possibilidade de revogação de atos administrativos está condicionada à não violação de qualquer direito dos beneficiários, daí por que não é cabível estabelecer que o dever da Administração de indenização seja a ser regra utilizada para a revogação. Outro exemplo de indenização seria a revogação de permissão de serviço público, conforme previsto no art. 40 da Lei nº 8.987/95. Não obstante a permissão se formalize mediante “contrato de adesão”, suas principais características são a precariedade e a revogabilidade unilateral. Ela pode, assim, não conter prazo definido, hipótese em que caberá ao poder público revogá-la a qualquer tempo, independentemente de indenização. Caso ela tenha sido formalizada com prazo certo — o que é de todo recomendável — o poder público mantém a prerrogativa de revogá-la a qualquer tempo. Nesta última hipótese, porém, caso o poder público decida revogar a permissão antes de findo o prazo fixado, poderá fazê-lo desde que pague prévia indenização ao permissionário. E mais, se o interesse público o justificar, poderá ser revogada a permissão, e o pagamento da indenização ser feito a posteriori, assegurado direito de contraditório e de ampla defesa no que toca à fixação do valor a ser pago como indenização.
5.7.4 Distinções entre anulação e revogação A título de resumo, apresentamos o quadro a seguir com as principais distinções entre anulação e revogação.
Livro 1.indb 259
Natureza do controle
Anulação
Revogação
De legitimidade
De mérito
Fundamento
Desconformidade com a ordem jurídica
Raçoes de conveniência e de oportunidade
Eficácia
Ex tunc
Ex nunc
Competência
Poder Judiciário / Administração Pública
Administração Pública
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
260
5.7.5 Convalidação Durante muito tempo, a doutrina nacional discutiu a necessidade de ser reconhecida à Administração Pública a potestade de convalidar atos que apresentassem defeitos sanáveis. Ante a ausência de norma específica de Direito Administrativo (ramo do Direito Público), buscava-se no Direito Privado a distinção entre atos nulos e atos anuláveis e procurava-se adotar essa gradação de invalidação dos atos jurídicos como meio para permitir que a própria Administração Pública pudesse corrigir determinadas falhas ou vícios de menor gravidade em atos administrativos. Admitir que atos administrativos possam ser convalidados importa em permitir que as falhas presentes no ato possam ser corrigidas com eficácia retroativa.59 Convalidado o ato, ele passa a ser considerado válido desde sua origem. Isto é, a convalidação opera eficácia ex tunc. Esta é a grande importância da convalidação e a razão que a distingue da simples anulação do primeiro ato e a prática de novo ato. Praticado novo ato, ele somente produziria efeitos deste momento em diante. Convalidado o ato, a convalidação retroage e lhe confere validade desde sua origem. A possibilidade de convalidação dos atos administrativos somente foi reconhecida em caráter definitivo com a vigência da Lei nº 9.784/99. Em seu art. 55,60 foi admitida a possibilidade de a Administração Pública sanar vícios verificados em seus atos desde que presentes os seguintes requisitos: - A decisão não lese o interesse público; - Não haja prejuízo a terceiro; e - O ato contenha defeitos sanáveis. Em razão da redação excessivamente lacônica utilizada pela lei, muitas dúvidas têm sido suscitadas quanto às situações em que a convalidação pode ser adotada. A primeira dessas dúvidas diz respeito a saber quais são os “defeitos sanáveis”. Celso Antônio Bandeira de Mello61 afirma que a falta de competência do agente constitui vício sanável. Maria Sylvia Zanella Di Pietro62 admite a possibilidade de convalidação do ato que apresente vício de competência desde que não se trate de violação de competência exclusiva ou quando “haja incompetência em razão da matéria; por exemplo, quando um Ministério pratica ato de competência de outro Ministério, porque, nesse caso, também existe exclusividade de atribuições”.
STJ: “Mandado de Segurança. Constitucional. Administrativo. Ascensão funcional. Inconstitucionalidade. Posterior realização de concurso público. Convalidação. Alcance retroativo. Cômputo do tempo de serviço anterior. 1. Com o advento da nova Constituição Federal, passou-se a exigir, mui acertadamente, a aprovação em concurso público, como ato-condição, para toda e qualquer investidura em cargo ou emprego público. 2. A convalidação, ou seja, o suprimento da invalidade do ato administrativo com a correção do defeito invalidante, pode se dar por iniciativa do interessado, mediante a reprodução do ato sem o vício que o eivava, alcançando retroativamente o ato inválido, de modo a legitimar os seus efeitos pretéritos. 3. É de se reconhecer a convalidação em hipóteses tais como a dos autos, excepcional, em que o servidor, que alcançou o cargo público mediante ascensão funcional por aprovação em concurso interno, busca o suprimento da alegada invalidade do ato de sua nomeação, submetendo-se a concurso público em harmonia com a vigente Constituição da República, requerendo a vacância e tomando posse no mesmo cargo que ocupava, sem solução de continuidade, de modo a realizar o ato-condição constitucionalmente exigido” (MS nº 7.411-DF, 3ª Seção. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. Julg. 10.8.2005. DJ, 06 fev. 2006, grifos nossos). 60 O art. 55 da Lei nº 9.784/99 dispõe nos seguintes termos: “Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração”. 61 BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, 8. ed., p. 434. 62 DI PIETRO. Direito administrativo, p. 237. 59
Livro 1.indb 260
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 5 ATO ADMINISTRATIVO
261
Todas essas dúvidas identificadas em nossa doutrina se justificam em razão da falta de precisão com que o tema foi tratado pela legislação.63 À distinção dos ilustres autores mencionados, não tendo a lei apresentado qualquer lista ou relação de atos com a indicação dos defeitos sanáveis e dos defeitos insanáveis, acreditamos somente ser possível apresentar situações de convalidação a título meramente exemplificativo, sem qualquer possibilidade ou pretensão de esgotar o tema. Não tendo a lei apresentado a distinção de forma absoluta entre defeitos sanáveis, e, portanto, passíveis de convalidação, e defeitos insanáveis, entendidos estes como os que devem importar necessariamente em anulação do ato, mas tendo sido simplesmente apresentados alguns requisitos genéricos (interesse público, ausência de prejuízo para terceiros etc.) para a convalidação, não pode a doutrina por meio de listas taxativas atribuir a determinados vícios o caráter inexpugnável de insanável ou de sanável. Fora do contexto em que tenha sido praticado, a riqueza de situações práticas que podem ser apresentadas aos administradores impede qualquer tentativa doutrinária de atribuir a determinado vício natureza sanável ou insanável. O papel da doutrina consiste, sim, em apresentar situações em que seja possível a convalidação do ato, mas sem que isto passe a constituir norma cogente ou de caráter absoluto para o administrador público. As particularidades do caso concreto devem indicar a solução a ser adotada pelo administrador. Por meio de decisão sempre motivada, o administrador deve explicitar as razões e os fundamentos para a convalidação ou para a anulação do ato. Se é possível afirmar que a violação da competência exclusiva do agente deve ser considerada, em regra, defeito insanável, haverá situações em que o interesse público aponte para a necessidade de convalidação. Exemplo: suponhamos que determinado Estado realize licitação para transferir, por meio de permissão, a exploração de porto fluvial a particular, matéria que, nos termos da Constituição Federal (art. 21, XII, “f”), é da competência exclusiva da União. Evidentemente seria caso de anulação de todo o procedimento licitatório. Imagine, por hipótese, que a União por meio de lei posteriormente editada delegue a competência para a exploração de portos aos Estados — situação que, aliás, tem-se verificado com alguma frequência para a exploração de algumas rodovias federais. É de se perguntar, então, se a violação da competência da União, no exemplo, importaria em dever de anulação da licitação e do contrato dela decorrente, ou, ao contrário, se diante da delegação posteriormente verificada, não se poderia admitir a convalidação dos atos praticados, considerando-os válidos, haja vista ser esta a solução que, além de não violar direito de terceiro, melhor realiza o interesse público (em seu aspecto econômico). O desvio de finalidade é igualmente apresentado como vício insanável — e assim deve ser tratado. Vimos que o interesse público deve ser realizado em três níveis: constitucional, legal e econômico. Vamos supor que certo ato tenha sido praticado com 63
Livro 1.indb 261
Acerca da falta de motivação ser falha sanável e, portanto passível de convalidação, STJ: “Agravo Regimental em Recurso Ordinário – Mandado de Segurança – Exoneração de servidor público efetivo em estágio probatório – Motivo de contenção de despesa de pessoal – Motivação extemporânea – Ato vinculado – Vício sanável – Direito à ampla defesa violado – Segurança concedida em sede de recurso ordinário – Agravo regimental desprovido. 1. Quando se trata de ato administrativo vinculado, a ausência de motivação é vício que pode ser convalidado, com a moti vação posterior à prática do ato. 2. A exoneração de servidor público efetivo, em estágio probatório, independe de processo administrativo, sendo imprescindível, destarte, o exercício do direito à ampla defesa, como espécie de procedimento sumário. Precedentes” (AgRg no RMS nº 16.546-SP, 6ª Turma. Rel. Min. Paulo Medina. Julg. 27.10.2005. DJ, 20 fev. 2006, grifos nossos).
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
262
flagrante violação da finalidade prevista em lei. Exemplo: servidor que é demitido por perseguição. Antes de ter sido sequer impugnada a demissão, descobre-se que referido servidor cometera ato de improbidade, ou crime contra a Administração Pública. Diante desta constatação, seria caso de reintegrar o servidor no serviço público, indenizá-lo pelos salários não pagos e, em seguida, voltar a demiti-lo? Advogados de defesa provavelmente diriam que sim. O interesse público talvez aponte no sentido contrário. Vícios de procedimento também constituem motivo para a anulação. A aplicação a servidor de pena de demissão, ou de qualquer outra sanção disciplinar, sem o necessário contraditório constitui motivo para a anulação do processo, bem como da consequente sanção. Não obstante a falta de contraditório no processo disciplinar, caso o fato imputado ao servidor, fato que justificou a sua demissão, tenha resultado em posterior denúncia criminal, e que, ao longo do processo judicial, não obstante ter sido assegurada ampla defesa e contraditório, reste comprovado o ilícito de modo a justificar a condenação criminal do servidor, seria ainda assim caso de anular o processo administrativo disciplinar? Ou, ao contrário, a confirmação dos fatos no processo criminal não poderia sanar a falta de contraditório e de ampla defesa no processo administrativo? Os exemplos apresentados buscam demonstrar que sempre haverá a possibilidade de que, diante de determinadas circunstâncias, a convalidação de determinados atos possa ser justificada, não obstante os vícios neles verificados sejam, como regra, apresentados pela doutrina como insanáveis. Aspecto relevante acerca do tema consiste em saber se a Administração Pública, em face de vício sanável, tem o dever de convalidar ou pode, a seu critério, anular o ato. A falta de precisão da lei não permite concluir que a decisão de anular ou de convalidar o ato seja discricionária. Constado que determinado ato contém vício sanável, o administrador deve buscar sempre a solução que melhor realize o interesse público, respeitados eventuais direitos de terceiros. Se a solução pela anulação for a que mais se adapte ao interesse público, o administrador estará obrigado a anular o ato; caso a convalidação se mostre mais consentânea com o interesse público, o ato deve ser convalidado, devendo a decisão, em um ou no outro caso, ser sempre motivada. Há requisito não previsto em lei que deve estar presente a fim de tornar possível a convalidação dos atos administrativos: o destinatário não ter questionado a validade do ato. Caso seja aplicada a servidor sanção disciplinar por autoridade incompetente — situação descrita como sanável, uma vez impugnado o ato, perde a Administração Pública a prerrogativa de corrigir o vício. Impugnado o ato, quer pela via administrativa, quer pela via judicial, não é razoável permitir que o vício possa ser sanado. Os princípios da boa-fé e da segurança jurídica impedem que a Administração, advertida do vício pelo destinatário do ato, corrija o ato. Alguns termos são apresentados como sinônimos ou assemelhados à convalidação, tais como ratificação, confirmação e conversão. A ratificação e a confirmação podem ser consideradas espécies de convalidação. Se a autoridade que convalida o ato é a mesma que o praticou, teremos a ratificação; se, ao contrário, a convalidação for feita por autoridade superior, ocorrerá a confirmação. A conversão, ao contrário, não busca sanar vício algum. Trata-se de simples modi ficação do ato originariamente praticado. Exemplo: uma desapropriação parcial de imóvel pode ser convertida em desapropriação total, hipótese em que o decreto que havia declarado que interesse social apenas parte de determinado imóvel é modificado de modo a incluir toda a extensão do bem.
Livro 1.indb 262
21/03/2013 17:13:51
Capítulo 6
Contrato administrativo
6.1 Contratos celebrados pela Administração Pública – fundamento constitucional A atividade material da Administração Pública não se desenvolve apenas por meio de atos unilaterais de vontade. Historicamente, os atos administrativos constituem o principal instrumento de atuação da Administração Pública. Esta se tem utilizado, todavia, com cada vez mais frequência de novos instrumentos para formalizar o seu relacionamento com os particulares. Desde há muito, a Administração sente a necessidade de firmar acordos com entidades privadas com vista ao desempenho das suas necessidades relacionadas à realização de obras, à aquisição de bens ou à prestação de serviços. O objetivo desses acordos de vontade era e continua a ser em grande medida o de atender às demandas internas da Administração Pública, que sempre necessitou da colaboração dos particulares para o fornecimento de bens e de serviços. Nos dias atuais, o fortalecimento do conceito de Estado Democrático e Social de Direito a partir da perspectiva de Estado cooperativo leva a Administração Pública a assumir com cada vez mais intensidade novas atribuições externas. Diante dessa nova realidade, especialmente no que concerne à prestação de novos serviços públicos ou de utilidade pública e ao desempenho das atividades de fomento, os acordos de vontade têm sido considerados os instrumentos mais adequados para permitir que os particulares colaborem com o desempenho das novas atividades estatais. Os contratos de concessão e de permissão de serviços públicos, as parcerias público-privadas, os convênios, os contratos de gestão, os termos de parceria, dentre outros acordos de vontade, assumem papel cada vez mais importante no desempenho das novas e variadas atividades estatais. Por meio desses instrumentos são transferidas a entidades privadas empresariais e não empresariais incumbências públicas de importância fundamental para a população. O fundamento constitucional para celebração dos contratos pela Administração Pública é o mesmo aplicável às licitações. A Constituição Federal, em seu art. 37, XXI, dispõe que “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes”. Em relação às concessões
Livro 1.indb 263
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
264
e às permissões de serviço público, a matéria é tratada de forma genérica pelo art. 175 nos termos seguintes: “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou de permissão de serviço público, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. As parcerias público-privadas e os convênios não são objeto de disposição constitucional expressa, sendo disciplinados por meio de lei e de normativos regulamentares. No presente capítulo trataremos tão somente dos contratos regulados pela Lei nº 8.666/93, dos convênios, dos termos de parceria e dos contratos de gestão. No próximo capítulo serão examinadas as licitações e nos dois capítulos seguintes trataremos das concessões e permissões de serviço público e das parcerias público-privadas, respectivamente.
6.2 Normas gerais sobre licitações e contratos administrativos A Constituição Federal, em seu art. 22, inciso XXVII, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, confere à União competência privativa para legislar sobre normas gerais sobre licitações e contratos administrativos. Dispõe o texto constitucional nos seguintes termos: Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III;
A fim de dar cumprimento à determinação constitucional, deveriam vigorar dois diplomas legais, ambos dispondo sobre normas gerais e aprovados pela União. O primeiro seria aplicável às “administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados e Municípios;” o segundo, “relativo às empresas públicas e sociedades de economia mista”.1 O objetivo dessa separação no tratamento a ser dado às licitações e aos contratos firmados pelas entidades referidas pelo art. 37, XXI (Administração direta, autarquias e fundações públicas) e àqueles realizados pelas entidades referidas pelo art. 173, §1º (empresas públicas e sociedades de economia mista), todos da Constituição Federal, é indiscutivelmente o de buscar para as empresas estatais que exploram atividade econômica regras menos rígidas que aquelas previstas na Lei nº 8.666/93. Até o presente momento, a lei referida pelo art. 173, §1º, não foi aprovada. Nesse sentido, enquanto não for elaborada essa nova legislação, todas entidades da Administração Pública direta, autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista de todas as esferas de governo (federal, estadual ou municipal) deverão continuar a seguir as regras contidas na Lei nº 8.666/93. A inexistência de lei específica
1
No sentido de ser cabível mandado de segurança para questionar ilegalidade verificada em licitações realizadas por empresas públicas ou sociedades de economia mista, vide STJ. REsp nº 202.157-PR, 1ª Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. Julg. 18.11.1999. DJ, 21 fev. 2000.
Livro 1.indb 264
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 6 CONTRATO ADMINISTRATIVO
265
relativa às empresas públicas e sociedades de economia mista referida pelo art. 173, §1º, da Constituição Federal, obriga a que todas as entidades e órgãos da Administração Pública submetam-se ao que preceitua a Lei nº 8.666/93.2 A grande dificuldade a ser enfrentada nesse momento é a de saber o que realmente seriam as mencionadas normas gerais sobre licitações. Essa observação é importante porque a Lei nº 8.666/93, em seu art. 1º, determina que todas as normas nela contidas terão esse caráter geral. Essa discussão é importante porque a União somente possui competência para interferir nas licitações e nos contratos a serem celebrados por Estados e Municípios por meio de normas gerais. A esses últimos incumbe a elaboração de suas normas especiais. Essa discussão tem gerado inúmeras controvérsias, inclusive judiciais. Em não poucas ocasiões verificamos alguns Estados acusando a União de, a pretexto de elaborar normas gerais, ter invadido a competência dos Estados e elaborado normas especiais.3 Feitos esses esclarecimentos, devemos entender que as regras contidas na Lei nº 8.666/93 são aplicáveis à Administração Pública direta e indireta de todos os poderes da União, Estados, Municípios e Distrito Federal.4 Devem igualmente observar os parâmetros da Lei nº 8.666/93 os conselhos responsáveis pela fiscalização das profissões regulamentadas em função de sua natureza autárquica.5 Deve-se atentar para o caso específico da Petrobras. A estatal possui regime próprio de licitações e contratos, segundo as regras estatuídas no Decreto nº 2.745/98 (e no art. 67 da Lei nº 9.478/97). A jurisprudência do TCU, contudo, é pacífica no sentido de considerar inconstitucionais o art. 67 da Lei nº 9.478/1997 e o Decreto nº 2.745/1998 e de determinar à Petrobras que observe os ditames da Lei nº 8.666/1993, ao argumento de que o referido decreto não seria instrumento normativo idôneo para dispor sobre o estatuto jurídico diferenciado para as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias, em matéria de licitação, a que alude o art. 173, §1º, inciso III, da Carta Magna (Acórdão nº 920/2007, Plenário; Acórdão nº 1.257/2005, Plenário; e Acórdão nº 1.678/2007, Plenário, entre outros). O Supremo Tribunal Federal, todavia, tem deferido medidas liminares a favor a Petrobras em diversos mandados de segurança, como, por exemplo, os de números 24.610, 26.783 e 25.888, suspendendo, cautelarmente, os acórdãos do Tribunal de Contas da União que obrigam a estatal observar a Lei de Licitações, permitindo, pois, a utilização do procedimento simplificado do Decreto nº 2.745/98. 3 O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 927/RS, concedeu liminar a fim de que a expressão “permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração Pública, de qualquer esfera de governo”, contida no art. 17, I, “b” e II, “b”, não seja aplicável a Estados e Municípios. Entendeu o E. STF que a União, neste caso, não legislou sobre normas gerais, invadindo, em consequência, a competência daquelas unidades para legislar para si próprias em matéria de licitações, no que concerne a normas especiais. De qualquer forma, o mesmo dispositivo foi considerado constitucional na análise procedida pelo STF apenas em relação à própria Administração Pública federal. Trata-se de hipótese de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto, haja vista o referido texto legal somente ser considerado inconstitucional em relação a Estados e Municípios, não o sendo em relação à União. Essa circunstância decorre do fato de esta última, a União, possuir competência para estabelecer normas gerais sobre licitações e contratos administrativos para todas as esferas de governo, podendo ela legislar sobre normas especiais apenas para si própria. 4 No sentido de que as entidades que fiscalizam as profissões regulamentadas não estão obrigadas a seguir os parâmetros de licitação previstos na Lei nº 8.666/93, vide STJ. CC nº 21.923-MG, 2ª Seção. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha. Julg. 22.3.2000. DJ, 02 maio 2000. Cumpre observar, porém, que o fundamento para a decisão proferida pela Eg. STJ foi a circunstância de que referidas entidades possuiriam natureza de direito privado, não integrando a Administração Pública. Essa questão, no entanto, é controvertida, inclusive junto aos tribunais superiores. No sentido de que referidas entidades fiscalizadoras de profissões regulamentadas são de Direito Público, vide STF. ADI nº 1.717-DF, Pleno. Rel. Min. Sidney Sanches. Julg. 7.11.2002. DJ, 28 mar. 2003, através da qual foi declarada a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 9.649/98, por entender que a atividade de referidas entidades envolve poder de polícia e punição insusceptíveis de serem delegados a entidades de Direito Privado. 5 Todos os conselhos, à exceção da Ordem dos Advogados do Brasil, estão obrigados a observar as normas de Direito Administrativo relativas às licitações e aos concursos públicos. Esse dever decorre de inúmeras decisões emanadas do TCU e confirmadas por jurisprudência do STF (MS nº 21.797-RJ, Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julg. 9.3.2000. DJ, 18 maio 2001). No Caso da OAB, a existência de decisão proferida pelo antigo Tribunal Federal de Recursos nos idos de 1951 foi utilizada como fundamento jurídico para se afastar o controle do Tribunal de Contas da União sobre os atos de gestão administrativa daquela entidade. Sobre essa questão, o TCU deliberou: 2
Livro 1.indb 265
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
266
Não estão obrigados a seguir a Lei nº 8.666/93 os Serviços Sociais Autônomos,6 que se submetem aos seus próprios regulamentos.
“9.1. nos termos dos incisos VI e VII, do artigo 69, da Resolução/TCU nº 136/2000, conhecer das representações formuladas pelos interessados indicados no item 3 supra, para, no mérito, considerá-las improcedentes; 9.2. firmar o entendimento de que o Conselho Federal e os Conselhos Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil não estão obrigados a prestar contas a este Tribunal, em respeito à coisa julgada, decorrente da decisão proferida pelo Tribunal Federal de Recursos nos autos do Recurso de Mandado de Segurança nº 797; 9.3. arquivar o presente processo.” (Acórdão nº 1.765/2003, Plenário. Sessão: 19.11.2003. DOU, 28 nov. 2003) Recentemente, por meio dos julgados cujas ementas são a seguir transcritas, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal manifestaram-se acerca da posição da OAB perante a Administração Pública: “Processual civil. Tributário. Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Lei nº 8.906/94. Anuidades. Natureza jurídica. Lei de Execução Fiscal. Inaplicabilidade. 1. Embora definida como autarquia profissional de regime especial ou sui generis, a OAB não se confunde com as demais corporações incumbidas do exercício profissional. 2. As contribuições pagas pelos filiados à OAB não têm natureza tributária. 3. O título executivo extrajudicial, referido no art. 46, parágrafo único, da Lei nº 8.906/94, deve ser exigido em execução disciplinada pelo Código de Processo Civil, não sendo possível a execução fiscal regida pela Lei nº 6.830/80. 4. Não está a instituição submetida às normas da Lei nº 4.320/64, com as alterações posteriores, que estatui normas de direito financeiro dos orçamentos e balanços das entidades estatais. 5. Não se encontra a entidade subordinada à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, realizada pelo Tribunal de Contas da União. 6. Embargos de Divergência providos” (STJ. EREsp nº 503.252-SC, 1ª Seção. Rel. Min. Castro Meira. Julg. 25.8.2004. DJ, 18 out. 2004). “Ação direta de inconstitucionalidade. §1º do artigo 79 da Lei nº 8.906, 2ª parte. ‘Servidores’ da Ordem dos Advogados do Brasil. Preceito que possibilita a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha do regime jurídico no momento da aposentadoria. Indenização. Imposição dos ditames inerentes à administração pública direta e indireta. Concurso público (art. 37, II da Constituição do Brasil). Inexigência de concurso público para a admissão dos contratados pela OAB. Autarquias especiais e agências. Caráter jurídico da OAB. Entidade prestadora de serviço público independente. Categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. Autonomia e independência da entidade. Princípio da moralidade. Violação do artigo 37, caput, da Constituição do Brasil. Não ocorrência. 1. A Lei nº 8.906, artigo 79, §1º, possibilitou aos ‘servidores’ da OAB, cujo regime outrora era estatutário, a opção pelo regime celetista. Compensação pela escolha: indenização a ser paga à época da aposentadoria. 2. Não procede a alegação de que a OAB sujeita-se aos ditames impostos à Administração Pública Direta e Indireta. 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como ‘autarquias especiais’ para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas ‘agências’. 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária. 6. A OAB ocupa-se de atividades atinentes aos advogados, que exercem função constitucionalmente privilegiada, na medida em que são indispensáveis à administração da Justiça [art. 133 da CB/88]. É entidade cuja finalidade é afeita a atribuições, interesses e seleção de advogados. Não há ordem de relação ou dependência entre a OAB e qualquer órgão público. 7. A Ordem dos Advogados do Brasil, cujas características são autonomia e independência, não pode ser tida como congênere dos demais órgãos de fiscalização profissional. A OAB não está voltada exclusivamente a finalidades corporativas. Possui finalidade institucional. 8. Embora decorra de determinação legal, o regime estatutário imposto aos empregados da OAB não é compatível com a entidade, que é autônoma e independente. 9. Improcede o pedido do requerente no sentido de que se dê interpretação conforme o artigo 37, inciso II, da Constituição do Brasil ao caput do artigo 79 da Lei nº 8.906, que determina a aplicação do regime trabalhista aos servidores da OAB. 10. Incabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. 11. Princípio da moralidade. Ética da legalidade e moralidade. Confinamento do princípio da moralidade ao âmbito da ética da legalidade, que não pode ser ultrapassada, sob pena de dissolução do próprio sistema. Desvio de poder ou de finalidade. 12. Julgo improcedente o pedido” (STF. ADI nº 3.026-DF, Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julg. 8.6.2006. DJ, 29 set. 2006). 6 Por meio da Decisão nº 907/97, Plenário, o TCU firmou o entendimento de que as entidades integrantes do Sistema “S” — SESC, SENAI, SENAC etc. — não se encontram submetidas ao dever de licitar: “O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1. conhecer da presente denúncia, uma vez satisfeitos os requisitos de admissibilidade previstos no art. 213 do RI/TCU, para, no mérito, considerá-la: 1.1 - improcedente, tanto no que se refere à questão da “adoção”, pelo SENAC/RS, da praça pública Daltro Filho, em Porto Alegre-RS, quanto no que tange aos processos licitatórios, visto que, por não estarem incluídos na lista de entidades enumeradas no parágrafo único do art. 1º da Lei nº 8.666/93, os serviços sociais autônomos não estão sujeitos à observância dos estritos procedimentos na referida lei, e sim aos seus regulamentos próprios devidamente publicados.”
Livro 1.indb 266
21/03/2013 17:13:51
CAPÍTULO 6 CONTRATO ADMINISTRATIVO
267
6.3 Terceirização de atividades fins: impossibilidade A Administração Pública pode satisfazer suas necessidades por meio de seus próprios instrumentos, hipótese em que se verifica a execução direta de serviços, de obras etc. (Lei nº 8.666/93, art. 6º, VII). Outra opção que se abre à Administração Pública é a de realizar o mesmo objetivo por meio da celebração de contratos administrativos com empresas privadas que fornecerão a mão de obra, os bens, os serviços e as obras necessárias à realização do fim que se busca — o que caracteriza a execução indireta (Lei nº 8.666/93, art. 6º, VIII). Quando a execução indireta envolve o fornecimento de pessoal (mão de obra) para desempenhar tarefas nas próprias unidades administrativas (serventes, telefonistas, motoristas, vigilantes etc.), denomina-se esse processo de terceirização haja vista ele importar na transferência de atividades administrativas a terceiros. O Tribunal de Contas da União possui entendimento no sentido de que somente é possível a contratação de empresas para a prestação de serviços a entidades e órgãos da Administração Pública se esses serviços não estiverem incluídos dentre aqueles especificados como sendo atribuição de cargos de carreira e que não venham a caraterizar terceirização de atividade fim do órgão ou entidade administrativa contratante.7 8 Essa regra, no entanto, tem sido mitigada pelo próprio TCU em face de situações especiais devidamente justificadas. O objetivo principal é o de evitar que seja burlada a regra da obrigatoriedade da realização de concurso público para a investidura em cargos e empregos públicos (CF, art. 37, II). Constatando-se que os serviços a serem terceirizados correspondem a tarefas permanentes, contínuas, inerentes e indispensáveis à atividade fim da Administração, ainda que seja realizada licitação, a contratação é tida por ilegal, importando em violação do dever de realizar concurso público. O professor Marçal Justen Filho oferece a seguinte interpretação a respeito desse tema: Não cabe, ao contrário do que o texto literal induz, a aplicação do regime da Lei nº 8.666/93 à contratação de todos os “serviços” de terceiros. Somente quando se tratar de serviços esporádicos ou temporários, desenvolvidos por exceção, incidirá tal regime. Quando o serviço corresponder a cargo ou emprego público, aplicam-se os dispositivos constitucionais acerca dos servidores públicos (CF, art. 37, incs. II e IV).9
O primeiro inciso citado (CF, art. 37, II) pelo ilustre autor consagrou a obrigatoriedade da realização de prévio concurso público para o preenchimento de cargos e Nesse sentido, vide Decisão TCU nº 680/95, Plenário. DOU, 28 dez. 1995. Dispõe nesse mesmo sentido o Decreto nº 2.271, de 7.7.1997, sobre a contratação de serviços pela Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, a saber: “Art. 1º No âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderão ser objeto de execução indireta as atividades materiais acessórias, instrumentais ou complementares aos assuntos que constituem área de competência legal do órgão ou entidade. §1º As atividades de conservação, limpeza, segurança, vigilância, transportes, informática, copeiragem, recepção, reprografia, telecomunicações e manutenção de prédios, equipamentos e instalações serão, de preferência, objeto de execução indireta. §2º Não poderão ser objeto de execução indireta as atividades inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou entidade, salvo expressa disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.” 9 JUSTEN FILHO. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos, p. 21. 7 8
Livro 1.indb 267
21/03/2013 17:13:51
Lucas Rocha Furtado Curso de Direito Administrativo
268
empregos públicos; o outro (CF, art. 37, IV) trata do prazo para convocação dos candidatos habilitados nesse tipo de certame. Nesse sentido, na medida em que a contratação de mão de obra, como regra, gera vínculo diretamente com o contratante, conforme jurisprudência da Justiça do Trabalho sobre a terceirização,10 esta conduziria à burla ao dever de realizar concurso público na medida em que as atividades que deveriam ser realizadas por agentes investidos em cargos ou empregos públicos passam a ser exercidas por empregados da empresa contratada. A respeito da terceirização, outro ponto que frequentemente é fonte de dor de cabeça para a Administração refere-se ao recolhimento das verbas trabalhistas em relação aos empregados da empresa contratada alocados para a prestação dos serviços ao poder público. A responsabilidade do contratado pelos encargos decorrentes da execução do contrato, que inclui os encargos trabalhistas, é disciplinada pelo art. 71 da Lei nº 8.666/93, cujo caput apresenta a seguinte redação: Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. §1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Quando a Administração contrata e paga a empresa ou o profissional para o fornecimento de bens, para a prestação de serviços ou para a execução de obras, ela transfere ao contratado toda e qualquer responsabilidade pelos encargos derivados da execução do contrato. A despeito do disposto no §1º do art. 71 da Lei nº 8.666/93, no que se refere aos créditos trabalhistas, o Tribunal Superior do Trabalho havia firmado entendimento de que, nos contratos de terceirização, o inadimplemento das obrigações concernentes ao vínculo de emprego, por parte do empregador (entidade contratada), acarretaria a responsabilização subsidiária do tomador dos serviços, ainda que este último seja órgão ou entidade da Administração Pública. Essa orientação constava do enunciado da Súmula TST nº 331. Certo é que o debate sobre o art. 71, §1º, da Lei nº 8.666/93 e a Súmula TST nº 331 ganhou novos contornos com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 16. Na sessão de 24.11.2010, o Plenário do STF julgou procedente pedido formulado em ação declaratória de constitucionalidade movida pelo Governador do Distrito Federal para declarar a constitucionalidade do art. 71, §1º, da Lei 8.666/93. No referido julgado, embora tenha havido o reconhecimento de que a mera inadimplência do contratado não é capaz de transferir à Administração Pública a responsabilidade pelos encargos trabalhistas, ressalvou-se que o poder público não está 10
O Enunciado nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho dispõe que “a contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal”, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 3.1.1974), admitindo, como exceção, essa modalidade de contratação apenas para os serviços de vigilância (Lei