Copyright © Paulo Lins, 2012
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Apoio: Apoio : DAAD Intercâmbio Brasil – Alemanha e Fundação Guggenheim. Consultoria histórica: histórica : Flávio Gomes Consultoria sócio-econômi sócio-econ ômica ca:: Marcelo Paixão Consultoria etnográfica : Elton Medeiros, João Batista Vargens, Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas, Seu Tranca-Rua da Calunga Calunga Grande, Dona Mari Mar ia Padi Pa dillha Rai Ra inha do Cabaré, Cabaré , Seu Zé Malandro Malandro da Estrada, Es trada, Rosinha Rosinha da Cachoeira, Ca choeira, Mariazin Mariazinha ha da Praia, Vovó Maria Redonha, Pai Joaquim de Aruanda, Dona Maria Padilha das Sete Rosas Vermelhas, Vovó Cambinda, Seu Zé Pelintra da Linha do Trem, Doum da Praia, Pai Joaquim do Cruzeiro das Almas. Colaboração de texto : Snir Wein Pesquisa Pesqu isa:: Elsa Campos, Silvana Jeha Consultoria de texto: texto : Renata Gérard Bondim, Ione de Oliveira Nascimento
Conversão para eBook: Freitas Bastos
DADOS I NTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP, BRASIL) L732d Lins, Paulo, 1958Desde que o samba é samba / Paulo Lins. - São Paulo : Planeta, 2012. 304p. : 23 cm ISBN 978-85-7665-898-6 1. Samba - Rio de Janeiro (RJ) - Ficção. 2. Escolas de samba - Rio de Janeiro (RJ) - Ficção. 3. Carnaval - Rio de Janeiro (RJ) - Ficção. 4. Ficção brasileira. I. Título. 12-0240 CDD: CDD : 869.93 CDU: CDU : 821.134.3(81)-3
Este livro é para Aloysio da Costa Sobrinho, Mariana Lins, João Lins, Frederico Lins, Sônia Cassab, Guilherme Campello.
“Não! Porque eu não conheço essa coisa de não gostar. Eu só conheço gostar. Não há ninguém de quem eu não goste, eu não tenho tempo de pensar nisso, de pensar em quem eu não gosto, de reparar em gente que tem algum motivo para me desagradar. E mesmo quando acontece isso, de alguém fazer qualquer coisa que me desagrade, eu levo para o outro lado, fico pensando que poderia ter sido uma leviandade qualquer, que não teria sido por mal. Eu encaro a coisa assim, não fico com raiva do outro. Ficar com raiva do meu semelhante não é possível.” depoimento de Ismael Silva ao MIS – Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro
LUZES DOS VERMELHOS, brancos e dourados, de toda a sorte, rebrilham para a gente ampliar “a vitória dos nossos ancestrais”. Vocês são coroas de esplendores quando salvam a passagem dos nossos corpos-fantasia na ginga dessa música criada na permissividade das esquinas, na embriaguez dos botequins, na fé do mais antigo dos terreiros de Candomblé da Cidade Maravilhosa. Fizemos do corpo a coisa mais bela que se tem na vida, pois ele é a sua única razão de ser. Então espalmem a mão e recebam a minha pele quente, estiquem a língua para lamber o meu suor-purpurina, abram os braços, as pernas para o nosso calor se fundir ao seu, já que o amor da criação artística não é somar, dar ou repartir. É doar. Temos a grandeza de ser humanos, donos da poesia, uma das coisas capazes de nos fazer viver absolutamente no presente, assim como agora: a bateria está ensaiada como o resto da escola, o samba na ponta da língua dos componentes e da plateia. As fantasias são leves para não atrapalhar os movimentos; porta-bandeira e mestre-sala de passos dados no sapatinho. Quero alegrar, encantar, para fazer qualquer boa emoção contida desabrochar pelo desempenho meu e de meu povo; mostrar um mundo muito mais belo do que se imaginou vida afora na infância; mundo que se quis quando havia “a possibilidade de se encontrar uma fada no caminho para pedir a ela milhões de estrelas cadentes, uma lua mágica que falasse com a gente” e o bem-querer de todo o mundo. Agora esses pedidos estão sendo atendidos pela arte, que também abençoa o desejo, “colorindo assim a sedução”. O apresentador anuncia a nossa escola, os fogos explodem na Presidente Vargas, o puxador dá o grito de guerra e manda um samba de quadra para esquentar. A plateia se levanta em palmas, requebrando. O enredo começa a ser desenvolvido na avenida Marquês de Sapucaí, nas alegorias, no ritmo das mãos, na ponta da língua e do pé. O sonho mais lindo andado, cantado e dançado nessa avenida colorida. Tomem o meu beijo, o meu abraço e o meu aperto de mão para sempre. Paulinho Naval
SODRÉ PAROU, recuou dois passos, encafuou-se atrás de um poste ao notar que Valdemar vinha em sua direção na Rua do Estácio, altura do Bar do Apolo. Deu para sair na escama, dobrar a esquina sem que o outro o percebesse. Caraminholou, iniciou a volta ao quarteirão para surpreendê-lo pelas costas. Manhã deserta na zona do baixo meretrício. Se matasse esse rival, que era preto nesta vida, não teria problema com a polícia, já que era branco e funcionário do Banco do Brasil. Muito por esse motivo acatou a ideia de Valdirene. Nunca pensou em matar ninguém, nem mesmo Brancura. Não fosse o amor, não cometeria esse crime de morte. Ia naquela hora tentar matar Valdemar à navalha. Se precisasse, pregaria chumbo nele, já que levava às costas, presa ao cós da calça, uma pistola para qualquer eventualidade. Tentaria matar com arma branca porque chama menos a atenção. Tinha de acertar logo a jugular, num ataque único, sem produzir muita dor. Nada de um monte de golpes para uma morte só. Não queria jorramento de sangue, não suportaria gente que demorasse a morrer em suas mãos. A bem da verdade, Brancura era que tinha de ir primeiro. Era ele o cafetão dela, o perigoso, o malandro velho do Largo do Estácio, cobra de duas cabeças, faca de dois gumes. Valdemar era só um bobo apaixonado, moleque novo, sem real noção das desavenças da vida. No entanto, quando mulher cisma não tem jeito, ela não estava querendo mais Valdemar na face da terra. Tirá-lo de circulação era um modo de provar a ela seu amor e sua cumplicidade. Valdemar entrou no Bar do Apolo, pegou um revólver da mão de Brancura, colocou-o na cinta, foi à esquina montar tocaia. Brancura foi para o sobrado de uma de suas putas para assistir a tudo de camarote. Poderia ter largado mão desse negócio de vingança, já que pensava em deixar aquela vida para trás a fim de seguir sua sina de fazedor de versos bonitos, de criador de melodias intocáveis; sina de fazer samba que nem Bide, Silva, Bastos, Baiaco, Edgar e tantos outros ali de sua área que tinham a arte como religião. Pra quê? Não ia casar com a virgem de seus sonhos? Então por que essa necessidade de vingança? O que nos leva a querer ser sempre o mais esperto? O maioral? Seu Tranca-Rua da Calunga Grande lhe dissera que, se ele cumprisse a sua recomendação, sua vida caminharia no rumo que ele sempre quis: arrumaria emprego, seus sambas seriam comprados e moraria no mesmo cazuá que a mulher que lhe dava prazer de verdade. Então, pra que ver o português morto nessa trama que bolou? Só para provar a si e aos amigos que era o mais malandro dos malandros? Coisa feia! Coisa de bobo. Na verdade, no fundo, no fundo, tinha certa desconfiança de que Valdirene gozava com Sodré. Também nunca apostou tudo na macumba, apesar de ter experiência suficiente para saber que sua vida espiritual também iria cair para um patamar de padrão vibratório sem nenhuma força para elevação de alma. Então, por que agia assim? Essa coisa de errar sabendo que está errando não é tolice de criança que não recebe corretivo de pai e mãe? De criança que faz esperneamento de raiva por qualquer coisa? O ser humano tem esses sentimentos de nada. Tem gente que se alegra com situações de força negativa. Um babaca de pouca fé.
VALDIRENE CHEGAVA lentamente ao Bar do Apolo. Olhos baixos. Estava sem leveza de ideias sobre os acontecimentos. Tudo se devia à sua beleza, ao seu jeito de corpo, à sua maneira de meter gostoso. Era dessas que deixava qualquer um de pica em pé mesmo depois de ter gozado várias vezes. Com ela, todo homem virava grande fodedor. Sempre a queriam de novo. Gostava de ser assim, talvez por isso ela vivia comprando roupas, cremes, batons, maquiagem, embora não precisasse: mulher que nasce pra ser gostosa não tem jeito. Não foi uma nem duas vezes que Brancura precisou dar corretivo de tapas e socos em caboclo que quis largar a família prometendo o que não podia pelo amor da negona. Ela bem que pensou em abandonar seu cafetão por causa das trapalhadas dele com a polícia, pela mania de querer passar a todos para trás e por aquele ciúme assassino. Se ainda não o havia deixado era por causa da segurança que ele oferecia ali na zona e porque lhe tinha amor. Um amor já malhado, muito chorado, de lances terríveis, mas ainda amor. Sentia pena de Valdemar, que a amava de verdade, só lhe queria bem. Não desgostava também de Sodré, e seu tesão por ele era grande: Sodré se parecia com Alves, o maior cantor de rádio da época, homem bonito, alinhado, cheiroso, que sempre transmitia sensação de limpeza. Pediu um copo de groselha, botou os olhos no movimento da rua. Viu Brancura butucolhando tudo através da janela. Antes de dobrar a esquina, a vontade de matar Brancura pegou grandeza em Sodré, com isso talvez nem precisasse matar Valdemar. Com medo, este fugiria, então não precisaria ficar com dois crimes nas costas. Outras vezes, movido pelos ciúmes, pensava em matar o garoto. Só não o fizera ainda por causa de Ernesto, a quem sempre teve consideração pelo fino trato que o homem dispensava a todo o mundo. Não sabia como ele podia ter um filho tão otário, tão metido a malandro. No fundo, estava cabreiro do porquê de Valdirene ter lhe pedido que acabasse com Valdemar. Assim, do nada. Será que era uma forma de lhe dizer que ele era o homem dela? Ou seria um jeito de fazer ciúmes em seu cafetão por qualquer motivo de mulher que fosse? Estava ele sendo usado? Se ela lhe pedira que matasse Valdemar, e ele acabasse com Brancura agora, ela ficaria com ele sem pestanejar? Era tarde para saber de tudo tim-tim por tim-tim: mataria Brancura logo depois que matasse Valdemar. Estava baratinado de bagaceira de orgulho ferido. Avistou-o chegando à esquina, tirou a navalha do bolso, iniciou uma corrida de ponta de pé.
“
POR CAUSA das
palhaçadas, da cabeça-dura, da burrice de certas pessoas, que Deus e os santos ficam donos de nossa vida na terra, no Céu e no Purgatório. Isso tudo pra gente ter loucura, força, correria, juízo, inteligência, respeito próprio e peito aberto pra ganhar a vida… Pra ser normal, ser feliz com os filhos, com os netos e os bisnetos, na hora da morte por velhice. Essa é que é a morte de gente séria! E pra isso é só levar a vida certa, ter força pra trabalhar, se instruir… Sempre em frente pra ter luz, sorte, redenção dos deuses… Senão a gente fica parado na vida, que nem Ernesto e Valdemar. Parados na vida, metidos com sinuca, bebida, jogo de chapinha, roda de capoeira. Não tomam prumo de vivência por causa desse troço de mulher com vida fácil na zona do baixo meretrício. Valdemar passa anos sem entrar numa igreja pra rezar um pai-nosso, uma ave-maria ou um credo. Na macumba, só vai no dia de Exu pra pedir a Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas proteção na rua, harmonia com as negas e segurança no lar. Besteira… Eu é que não passo um domingo sequer sem igreja e uma quinta sem macumba, porque, se Deus não me der ouvido, Oxalá escuta. É melhor ter dois pais do que um só. E somente no Inferno é que eles não podem fazer mais nada… Se o cabra foi parar lá é porque ele mesmo quis assim”, pensava Tia Amélia, sentada num toco, perto do fogão de lenha. Escutava meio quilo de peito de vaca rechinar na panela de ferro. Tinha acabado de jogar mais um pouquinho de água, colocado as rodelas de batata; ia dar mais uma horinha de nada, tirar do fogo, deixar a panela do lado do fogão para se manter quente até a hora de Valdemar almoçar. Era necessário dar a ele uma comida forte, já que desde a sexta-feira ficara só por conta de torresmo e outras besteiras de botequim. O máximo que bebera de bom fora um caldo de cana no Largo do Estácio, mas às vezes virava na Paraty direto. Um sacana. Não se passou muito tempo até Tia Amélia ter de descer o morro mentalizando Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas e Seu Tranca-Rua da Calunga Grande. É que uma vizinha chegara assustada, dizendo que Valdemar estava metido numa briga de navalha na zona. Tia Amélia agora seguia pela Maia Lacerda tentando manter a calma, com o espírito também voltado para Oxalá. Valdemar tinha saído na sexta-feira. Já era domingo, e nada de ele voltar até aquela hora da tarde. Bem que algumas vezes o seguira pelas entranhas do morro, pelo Largo do Estácio, chamando-o para casa. O infeliz dizia sempre a mesma coisa: — Pode ir, mãe, que eu já tô indo. E nada de arredar o pé da rua. Ela estava indo buscar o filho numa briga, coisa que nunca tivera de fazer por Ernesto, que morreu de tanto comer tira-gosto e beber Paraty nos seus últimos dez anos de vida. Tia Amélia não sabia que Ernesto só gostava da música tocada e cantada na zona do baixo meretrício, na Praça Onze, no Kananga do Japão, na casa de Tia Almeida, enfim, da música da Pequena África de João. As más-línguas falavam de Ernesto para perturbar Tia Amélia, que, na verdade, nunca soube ao certo por que Ernesto se enfurnava na zona. O pessoal da fofoca aproveitava para enervá-la. E não era porque ela fosse bonita, não, ou má pessoa. O povo tinha era inveja da inteligência dela, que cursara até a segunda série do curso normal na escola de professores, ali mesmo no Estácio. Era uma pessoa letrada, até dava aula para a criançada que ia mal na escola primária e ginasial, lia jornais, revistas, livros; não era de ficar de andança de fofoca à porta dos outros, ou mesmo se desgastando em prosa que não tivesse troca de conhecimento. Pra ela, brincadeira sempre teve hora. Só não terminou os estudos porque precisou trabalhar. Mas Valdemar era um caso sério. É que quando a lua apita o primeiro lance de sua luz lá no céu, às sextas-feiras, o cabra fica doido. Mistura o dia com a noite durante todo o final de semana com a alma largada na
rua, o que não faz gosto de mãe alguma. Troço de vagabundo. Agora, Tia Amélia ameaçava pequenas corridas, suplicava a Nosso Senhor Jesus Cristo que parasse com a briga. Que mandasse Exu dar rapidez de raciocínio a seu filho ou a Sodré, para um não machucar o outro. Uma palavra, um gesto, uma atitude que cortasse danação, vencesse a demanda de ódio, otarice de homem bobo. Sabia que podia confiar nos deuses. Brigava-se por qualquer coisa na zona, mas as desavenças mais frequentes tinham a ver com mulher. Era a primeira vez que Tia Amélia ia àquele lugar tirar Valdemar de confusão, porque, quando vivo, Ernesto dizia que mulher de família não podia entrar na zona, inventando as mais carecas desculpas. Mas ela bem sabia das mulheres vadias, capazes de fazer de tudo com um homem por dinheiro. E os veados? Era isso que a machucava mais: as vizinhas diziam que o marido dela já tinha andado até com travesti da Lapa. “Homem, quando não presta, não presta mesmo.” — E não é prosa de pau e cu só, não! Tem beijo na boca e o caralho! — dizia o povo ruim. Tia Amélia entrou na zona, viu o filho abaixado, olhando para o lado oposto ao que ela estava. A questão era que Valdemar punha todo o seu dinheiro na bolsa de Valdirene pra poder ficar com ela horas e horas, até por dias seguidos. Exímio jogador, ia para o bilhar da Rua Machado Coelho, ganhava bastante dinheiro, voltava para o quarto de Valdirene, que agora dera para rejeitar Sodré, que fazia a mesma coisa nos finais de semana, só que com o seu salário de funcionário público. Brancura, cafetão de Valdirene, agia como se nada estivesse acontecendo, mas se mantinha informado. Tanto é que Zilda, a segunda mais bonita da zona, eleita pelo povo, confessou-lhe que um dia ouviu Valdirene dizer a Sodré: — Tarado, me fode, mete, mete gostoso, põe a mão na minha boca senão eu vou gritar: Aiii! Eu vou gozar, não para, não para, não para! Eu tô gozando! — Foi assim mesmo como eu te falei — disse-lhe Zilda, fazendo gestos eróticos, numa dessas noites de conversas reveladoras entre amigos.
AO DOBRAR A ESQUINA, Sodré observou Tia Amélia chegar, ir direto à cintura do filho, pegar a arma e atirá-la longe. Valdemar correu para perto do revólver, abaixou-se, pegou-o e colocou-o outra vez na cintura. Tia Amélia partiu para cima dele, tirou-lhe a arma, colocou-a por dentro do sutiã. — Vamos, meu filho, esse não é seu lugar, você é gente de família, vem com sua mãe… Ao ouvir a súplica de Tia Amélia, o pessoal do Bar do Apolo foi para a calçada. Quando Valdemar notou que Valdirene fazia ajuntamento com todo o pessoal para observar a mãe lhe passar pito, o sangue subiu-lhe à cabeça e ele tentou tirar a arma de Tia Amélia. Sodré sacou a pistola. — É melhor não pegar de volta, não! Aproximou-se. — Deixa o revólver com tua mãe, senão tu morre agora. Você não sabe em que chão tu tá pisando. Eu ainda não te matei por causa do teu pai, que todo o mundo respeitava aqui dentro. Ele nunca quis mulher nenhuma aqui, nunca quis nada de cafetinagem. O negócio dele era a música, gostava de farra, nunca deu uma de valente, nunca ficou de fanfarronagem com mulher aqui de dentro, porque a vida dele era outra. A tua vida é outra, e você quer mudar, né? Então, se tu quer correr risco, vai ficar riscado. Tia Amélia entrou na frente. — Se você vai matar ele, me mata primeiro. — Vão morrer os dois! — ele falou da boca para fora. Ouviu-se um tiro. Silêncio total. Instantes depois, Brancura saiu de trás da cortina do sobradinho com a arma apontada. — Valdemar e Tia Amélia, deixem a arma no chão e não voltem mais aqui. Nunca mais! E, você, peraí que eu quero falar com você. Deixa o otário ir embora com a mãe dele. Não se ameaça uma senhora de respeito. Sua conversa agora vai ser comigo. — Eu não ia fazer nada com ela. — Mas falou que ia, palavra e vida são a mesma coisa.
TIA AMÉLIA PISAVA de leve no chão de volta para casa, o peso que carregara durante anos se destroçava nas ruas. Queria encontrar o pessoal da fofoca para rir, gargalhar na cara deles, botar para fora toda a toxicidade da injúria, da inveja. O ar mais fresco, o dia se abria para outra vida de olhos erguidos. No céu sem nuvens, imaginava o rosto de Ernesto, rindo para ela. No canto da calçada, Seu Antônio das Cabras passou parecendo adivinhar as coisas: — Tudo um dia se acerta se a gente tiver Deus no coração! Tia Amélia abanou o braço, dando crédito às palavras de Seu Antônio, se lembrou do que Sodré tinha dito sobre o seu marido. Não a incomodava a torrência do sol na calçada. Ernesto lhe era fiel. Valdemar seguia cabisbaixo, andando reto a passos rápidos. Não notava a alegria da mãe, caraminholava um jeito de matar Sodré e Brancura para ter Valdirene ao seu lado o tempo todo, como esposa. Chegaria em casa, descansaria, iria à casa de Bartolo, o espanhol da loja de tecidos da Haddock Lobo, apanharia com ele uma arma. Mataria os dois no mesmo dia. — Vou descansar um pouco, depois vou voltar lá para acabar com a vida dele — disse para si mesmo. Era assim que tratava a mãe, sem notá-la, sem perceber ou ligar para o seu sofrimento ou sua alegria. Ela era apenas alguém que cuidava dele quando ele bem quisesse. Alguém a quem ele amava, mas não tinha respeito. Tia Amélia o olhava sem perder a forma branda que seu rosto ganhara. Lembrou-se do dia mais feliz de sua vida, vinte e dois anos antes, quando, segundo as más-línguas, esse espírito que ocupava o corpo de seu filho estava em quarentena, preparando-se para a sua boa vontade ter mais dignidade ao encarnar de novo. Porém, num ímpeto de ansiedade e total desvario, saiu às escondidas do umbral do amadurecer, se mandou para a terra, onde montou guarda na boca da primeira boceta de grávida que viu, depois de botar para correr, na marra, outro espírito que era predestinado: já cumprira a sentença de aprendizado para gozar de tranquilidade numa nova passagem pela terra com a missão de ajudar o planeta a se fortalecer com ações de solidariedade, honestidade, justiça, caridade e estava ali aguardando para reencarnar. O espírito de Valdemar, sem nenhum grau de licença ou merecimento, apoderou-se da cabeça daquele corpo ainda sem alma quando ele coroou naquela vagina desavisada. Depois, conforme a matéria se libertava do ventre de Tia Amélia, foi tomando conta do resto do corpo, para ter a vida que levava no coração da zona… Quando a parteira o levantou pelos pés, ele já foi sentindo dores intensas, crescentes. A dor se amontoava ainda mais em seu corpo à medida que se esforçava para chorar e não conseguia. Foi preciso levar dez palmadas para alcançar a redenção. Chorou. A dor passou quando foi para o colo de Tia Amélia, no qual devorou o colostro que brotava dos bicos de seus seios. A parteira, depois de amolar o canivete na pedra, lavou-o com água e sabão, banhou-o no álcool, deixou-o secar no ar, cortou o cordão umbilical, e o bruto estava ali até aquela data aprontando na zona do baixo meretrício. Precisava de reparo de conduta, correção de tino, sacolejo. Tia Amélia chegou em casa, botou a comida no prato, esperou que o filho almoçasse, saiu assim que ele adormeceu. Depois de duas horas, voltou com seis homens que começaram a surrar o rapaz enquanto ele ainda dormia. Valdemar tentava se defender, perguntava à mãe o que estava acontecendo. Corria pelos cantos. Todas as vezes que tentou fugir pela porta onde ela estava, ganhava um direto que o jogava ao chão. Era tudo o que tinha de ter feito quando Valdemar começou a bandear: agir de acordo com sua experiência de vida, de saber que o filho precisava de um corretivo de pai ou de pessoa de mesma representação. Isso mesmo. Pancada de homem mais velho que figurasse no papel de genitor para
curar vagabundo. E só não procurara os parentes do finado antes por ter a sensação de que seria desprezada pelo fato de ter brigado tanto com Ernesto no final da vida dele. E também por ela sempre os ter tratado com repugnância por frequentarem a zona com o marido. Torcimento de nariz, virada de cara, num desprezo sem precisão. O pior nó da vida da gente é aquele que a gente dá à toa, só de imaginação. Um sofrer sem necessidade. Tolice. Mas, no fundo, Tia Amélia queria mostrar que criaria seu filho sem a ajuda dos outros. Nada de pedir socorro à família do falecido. Era mulher de brio, de vergonha na cara. Ainda bem que a Terra gira sempre para o mesmo lado e a gente acaba se reencontrando nessa vida logo aqui na frente ou nos cruzamentos das paralelas ali no infinito. Hoje a vida era boa, pois essa trama toda até aqui se deu a favor dela. É que tudo concorria pra mudar a trajetória de Tia Amélia para sempre, vida agora de arrependimento e um tantão de alegria. Ai, Ernesto! Quantas pragas rogadas em vão! Lágrimas à toa. Daí em diante foi ser esse sorriso assim, carregado de choro e de uma boa vontade de morrer, para quem sabe conseguir ficar perto dele e começar tudo de novo, mesmo que fosse só assim, na base das almas mesmo. Seria bem melhor tirar a danação do corpo pra serem apenas pingos de luz na imensidão. Agora era esquecer a vida que até ali não lhe dera descanso. Pois, a certa altura, pensou que, no quartel, Valdemar tomaria jeito. Quando o desgraçado trocou o colégio pela farra, se meteu na zona, ficou de andança com um amigo beberrão, maconheiro conhecido, cafetões, malandros de toda a sorte. Ela depositou toda a sua confiança no serviço militar, mas o infeliz nem pra soldado deu sentido — não foi para o quartel por ter espinhela caída. A sua última esperança ficou para trás. E por isso, agora, com a mente certa, saiu de rota batida, foi buscar ajuda dos parentes de Ernesto, aqueles que poderiam já havia muito tempo ter assumido o lugar de pai: o irmão mais velho do marido, o mais novo, que era seu compadre, além de três tios e do avô de Valdemar. Eles não ligaram para o sangue que saía de várias partes do corpo do vagabundo. O avô batia de cinto e os outros davam socos e bofetadas no imprestável, que foi amolecendo, perdendo os sentidos. Mesmo assim, continuavam a bater, com Tia Amélia incentivando, até que o rapaz desfaleceu. A mãe pegou um balde de água de chuva, o jogou no rosto do filho. O famigerado acordou e, gemendo feito gato na chuva, começou a ouvir a ladainha de seus agressores. — Se ficar de viadagem, vai entrar no sal de novo — avisou o padrinho. O desmerecido agora escutava sem dar um gemido sequer, até jurar que nunca mais iria pôr o pé na zona, parar com o jogo, a bebedeira, a malandragem, o canivete, a capoeira. Ia procurar trabalho. Os homens tinham ido embora, e Tia Amélia, arredia, agora cuidava do filho, quase não falava enquanto fazia compressas de água fria nele. Valdemar, em sua cama, com a cabeça virada para a parede, recebia os cuidados da mãe. Ficou em casa por alguns dias, até ter forças para levantar-se, ir ao Catumbi, arrumar serviço de aprendiz de mecânico na oficina que o tio mais velho lhe indicara. Depois disso tudo, que Deus colocasse a alma de Ernesto em bom lugar com seu perdão tardio, mas de toda intensidade. Agora, Tia Amélia sentia mais firmeza para encarar as ruas, ampliou seu barraco, abriu vaga para mais dez crianças na escolinha, largou aquele pano amarrado na cabeça, levou as roupas rasgadas para a costureira, voltou a ter prazer em cuidar da aparência, começou a comprar mais livros com o que economizou depois que Valdemar abandonou a vida de vagabundo e passou a ajudar nas despesas. Deu uma caprichada no jardim.
BRANCURA SAIU do sobrado, depois de dar meia parada à porta e investigar os pormenores da ocasião em cinco lances de olhos. Nunca confiou em nada nem em ninguém; era por isso que achava que ainda estava vivo até ali. Caminhou lentamente com a arma na cinta em direção a Sodré, que fez de tudo para não fraquejar diante de Valdirene, porém os batimentos cardíacos pegaram rumo de subida diante dos passos do cafetão da mulher que ele amava. Silêncio de morte. Tentou sacar a arma, as mãos tremiam, pensou em gritar qualquer coisa, a voz não veio. Tem horas em que o tempo de fato para. Brancura se abaixou, fingindo que ia pegar a arma de Valdemar, deu um salto, caindo bem perto do inimigo. Com agilidade, tomou a navalha e a pistola de um Sodré abobalhado, passou-lhe uma rasteira, recuou, pegou o revólver do chão e entregou tudo para Valdirene. — Tá pensando que berimbau é gaita? Te mato na hora que eu quiser, português. Só queria que o garoto fizesse o serviço pra eu não arrumar mais uma bronca, porque já tô cheio de inquérito, seu homem de nada! Mandou Sodré levantar, lhe passou outra rasteira, chutou seu corpo, pisou na cabeça, cuspiu na cara. — Chega! Deixa esse fanfarrão aí — disse Valdirene, caminhando para perto dos dois. — Nunca mais tu vai com ela! E se insistir, o que é que você faz, Valdirene? — Conto pra você, amor! Brancura se afastou, se arrumou, abraçou Valdirene e se foi. Sodré se levantou devagar, ficou olhando enquanto o casal descia a rua. Nem ligava por estar sendo observado por um monte de gente. Zilda, com expressão de surpresa entristecida, caminhou devagar, foi-se achegando a Sodré. — Ela estava enganando você o tempo todo. Olha lá no pulso dele o relógio que você deu pro filho dela. Ela nunca teve filho, se você quer saber. Sim, todos os presentes dados a Valdirene eram para o rival. Sodré, assim como Valdemar, além de pagar para ter Valdirene, dava-lhe os presentes que ela pedia: eram artigos masculinos que dizia que mandava para um filho que morava com o pai na Baixada Fluminense. Zilda sentiu que se aproximar de Brancura e trair a amiga não tinha valido a pena. Estava tudo combinado entre ele e Valdirene. O gozo era fingimento! Imagine se ela iria trocar o negão salgadinho e apimentado por aquele português sem tempero, sem ginga de praia, sem balanço de perna, sem jeito de corpo. Não existia homem mais gostoso do que Brancura nesta vida. Valdirene estava se aproveitando dos sentimentos de Sodré para explorá-lo ao máximo, tirando tudo o que ele pudesse lhe dar. Fazia a mesma coisa com o garoto Valdemar. Naquele momento em que as luzes iam se acendendo e a noite tomava conta da zona, tudo ia ficando claro para Zilda. Sodré descobriu que era tão otário quanto Valdemar. Valdirene os usara, fingira amor pelos dois para ganhar mais presentes, para conseguir mais dinheiro. E agora ela e seu comparsa queriam que um matasse o outro. Filha da puta. Brancura ria ao falar de Zilda, Valdirene escutava às gargalhadas. Sabia que a amiga vivia tentando seduzir seu cafetão. Todos ali tinham que saber que ele cafetinava um monte de putas, mas ela é que era a mulher dele de verdade. Também, para que não se sentisse o dono da cocada preta, era bom o malandro ter certeza de que havia muitos homens capazes de matar ou morrer por ela. Era bonita, faceira, desejada como deusa, gostosa até dizer chega. Que Deus seja louvado por ter posto uma puta desse quilate no Estácio. No entanto, mal sabia Valdirene que o marido a enganava, que estava pronto para sair dali para sempre. Meteu em Valdirene a noite toda numa despedida secreta, partiu logo cedo, deixando-a ainda na cama, subiu o morro às pressas, bebeu um gole de café com seu tio, pegou os documentos de que
precisaria para prestar depoimento na delegacia do centro da cidade. Na verdade, só não podia deixar o delegado achar que ele ameaçara Ivete com canivete, o resto ele confirmaria tudo. Queria ser condenado. Fora Ivete quem começara: sentia fremição na boceta toda vez que via Brancura. Tinha tanta falta desse fremir, que saía escondida da mãe pelas ruas do Estácio para ver o negão de prosa nas esquinas. Sofria quando as mulheres o cercavam, havia umas doidas que até tentavam agarrá-lo e beijá-lo na marra. E foi assim por meses, sem que ele percebesse. Um dia, não teve jeito: ela olhou bem dentro dos olhos dele, mordeu os lábios. O malandro ficou todo arrepiado, paixão instantânea por aquela graça de quinze anos, na chama de sua gostosura. O primeiro encontro foi à noitinha, na Praça do Rio Comprido. — Não quero nada sério com você agora, não. Só quero namorar um pouco pra te conhecer — falou Ivete depois que ele meteu a mão por dentro da saia dela, seguia galopando os dedos por dentro de sua calcinha. — Só quero dar uma passadinha de mão — choramingou ele. — E eu só quero te beijar, mais nada… — Mas assim não vai dar! Ivete se afastou. — Então tá, então tá… Saiu em passos rápidos. — Espera um pouquinho — disse, segurando-a pelo braço. Monopolizou seu corpo com beijos e afagos. Depois disso, ficou na pista de Ivete. A qualquer hora era o seu olhar vasculhando os caminhos do Estácio à procura da pretinha, que, segundo ele, era importada do Congo. A virgem dos sonhos de Brancura morava com a mãe na Rua São Cláudio, uma ladeira imensa que vai da Maia Lacerda até a Rua José Minhofe. Andou recusando até mesmo Valdirene, se masturbava pensando na pretinha, deu para ajudá-la a carregar a trouxa de roupa que a mãe lavava e ela entregava na casa das patroas. Era assim que o negão articulava pra comer aquela belezura, aquela uva, aquela jabuticaba. Ela até pensou em parar de beijá-lo nos becos para evitar o sexo fora de hora, mas com o tempo permitia até a passadinha de mão que ele suplicava, coisa que fez Brancura botar na cabeça que a comeria logo, logo. Tinha a certeza de que ela faria jogo duro, mas depois aceitaria, mexeria gostoso e tudo ficaria bem. “Ivete! Invente outra, Deus, se for capaz!” Numa dessas levadas de roupas, Brancura entrou com ela no trem na Estação Lauro Müller. Sorriso de raposa, trouxa na cabeça, terno italiano, sapato de bailarino. Vestia-se com a roupa que os marinheiros davam às putas. — Tô de roupa de marinheiro — falava para os amigos no morro. Tirou a trouxa da cabeça, passou o pente no cabelo, sempre armado de um sorriso. O trem, quase vazio em São Cristóvão, foi se esvaziando mais na Mangueira. No Maracanã, entrou mais gente do que saiu; em São Francisco, não desceu ninguém; no Rocha, subiram duas e desceram quatro pessoas; em Riachuelo, não entrou nem saiu. Em Sampaio, Brancura disparou seus olhos carregados de vontade em Ivete, não via mais nada, só conseguia olhar aquele corpo de baixo para cima, de cima para baixo. Ela sorria, meio envergonhada. Na Estação Engenho Novo, desceram três, não subiu ninguém; no Méier e em Todos os Santos, desceram sete pessoas. No Engenho de Dentro, o vagão ficou quase vazio. Encantado, Brancura atacou Ivete de um jeito que não teria mais fim, nem em Piedade. Era só desejo no sacolejo do trem. Os corpos quentes. A luz do dia passando tremida pelas anelas, por onde dois guris olhavam o casal, que quase perdeu a parada em Quintino. Cruzaram os
trilhos e foram para o mato próximo à estação. Ele tentava tirar a roupa de Ivete, ela resistia. Incansável, meteu a boca em sua vagina por cima da calcinha, enfiou a língua pelo lado. Ivete deixou um pouquinho, tentou fugir sem muito afinco. Ele atacava. Depois, foi deixando, gemeu, fez cara de prazer absoluto. Brancura não lhe dava tempo de livrar-se dele. Era bom, era muito boa aquela língua jogando basquete em sua perereca. Quando notou que o cacete do malandro estava para fora, tentou se livrar de sua fúria sexual, mas ele puxou algo do bolso e, com um sorriso de olho mole, disse: — Se você tentar fugir, eu te enfio esse canivete. Ivete riu ao ver um pente na mão do malandro, deixou que ele lhe abrisse as pernas, a penetrasse bem devagar depois de cuspir na mão e passar na cabeça do pau. A menina, muda, parecia não sentir nada no início, depois fez cara de dor. — Não é canivete, não, é um pente. — Eu vi que era, seu bobo. Mas tá doendo, tira isso de dentro de mim, ai, meu pai. Vai, vai, vai só mais um pouquinho… Ai, meu Deus. Ai, ai, ai, ai. Ficaram ali por mais um tempo, depois Brancura foi com ela entregar a roupa. Já eram sete da noite. Ivete só notou que sua roupa estava manchada de sangue quando a mãe, que a esperava no portão, gritou, olhando para o vestido da menina: — De onde é esse sangue? Afora a parte do canivete, contou toda a verdade para Dona Vera, que ouviu o relato aos prantos. A viúva vivia para sua única filha. Para não morar no morro de São Carlos, lavava roupa até de noite e punha Ivete, desde que ela fez quinze anos, para buscar e levar as trouxas na casa das patroas. Cobria a filha de conselhos: não dar confiança a gaiato, nunca andar pela Maia Lacerda, rua de vários acessos ao morro de São Carlos, rua de vagabundos, onde tocadores de violão e batuqueiros lotavam os bares. Caso se perdesse, devia pedir informação a uma pessoa idosa, e não devia aceitar oferta de ninguém. De nada adiantou. O fremir da vagina falou mais alto, fazendo sua filha, que era moça antes do meio-dia, quando saiu para entregar a roupa lavada, voltar à noite já mulher, com a roupa suja de sangue. Se a menina estivesse grávida? Com que dinheiro Dona Vera criaria o neto? Já estava cansada de trabalhar, de tanto batente, as mãos rebentadas pela química do sabão, a pele ressecada de sol, a dor na coluna à beira do tanque, o pescoço torto pela lata de água na cabeça. Não iria criar neto e filha ao mesmo tempo. A carestia, o aluguel, a conta de luz, a prestação da panela de pressão, comprada de Seu Turcão. Não! Não iria cair na miséria absoluta. Naquele mesmo dia foi com a menina até a polícia. Fez força para não chorar ao falar de sua vida ao delegado, que logo pediu um exame de corpo de delito. Ivete disse que não fora na hora em que ia à Escola Profissional Paulo de Frontin que conhecera Brancura, como intuíra sua mãe. Afirmou que foi na Rua do Estácio, quando ia entregar a trouxa de roupa. Na verdade, depois que ela seduziu o malandro, ele sempre se oferecia para ir com ela levar a roupa. Tomava-lhe a trouxa, colocava-a na cabeça. Com as mãos nos bolsos das calças, ia falando bobagens. Ivete ria das palhaçadas de Brancura, do seu bom humor, adorava seus beijos, sua boa vontade. Queria realmente fazer amor com ele. Ficar beijando-o um tempão, assim, na boa. A polícia capturou Brancura na Pinto de Azevedo. Ele ficou parado, diferentemente da maioria dos malandros, que corria quando uma voz gritava: — Lá vem o filho da vaca. Era sempre assim, uma voz se referindo ao detetive Bezerra, que comandava a diligência. Ele foi direto a Brancura, não quis saber de conversa, pegou o negão e o levou à delegacia.
O malandro confirmou tudo ao delegado, apenas insistiu que não era canivete. Acabou aceitando o que ele afirmava o tempo todo, melodiando a oração: — Era um pente, meu delegado. Ivete só aproveitou a história para não revelar à mãe que deu a xereca por vontade própria. Ele agora casaria com Ivete ou iria para a cadeia. A mãe da menina atestara seu estado de miserabilidade, o exame de corpo de delito dera positivo. Não havia escapatória. — É casamento ou cana — afirmou o delegado. — Eu caso a hora que ela quiser. E foi assim, às escondidas, que Brancura vestiu um terno branco, foi ao cartório da Joaquim Palhares se casar com Ivete. Fez tudo tão secretamente que ninguém ficou sabendo. Depois do casamento, sumiu da zona, do Largo do Estácio, das quebradas do morro. Deu dinheiro para a sogra fazer uma compra no armazém de Seu Brandão, suficiente para ficar por vinte dias em sua casa nova, comendo sua rainha, sem precisar sair à rua para comprar isso ou aquilo. A sogra ficou numa alegria canina, achou que casara bem a filha, pois Brancura era só carinho e dedicação: consertou os móveis que estavam quebrados na casa, deu jeito no encanamento, arrumou a instalação elétrica, ajeitou o telhado, reformou a casa do cachorro e tudo mais. Se não fosse festa de Exu, ele ficaria outros vinte dias em absoluta lua de mel. — Eu tenho que ir, Brancura. Quero falar com Dona Maria Padilha.
PARA ABRIR OS TRABALHOS da Gira de Exu, Mãe Pequena e os médiuns mais velhos cruzam a casa com defumador, com pemba, e jogam água de praia nos cantos para tirar do terreiro as energias negativas. Começam salvando Pai Oxalá. Oxalá é o rei do mundo inteiro Vem abençoar esse gongá Clareia, meu pai, clareia Leva correntes pras ondas do mar Cantam depois para Ogum, Omulum, Xangô. Em seguida salvam Oxum, Iemanjá e Iansã. Chega a vez dos pretos velhos, das crianças, dos caboclos e de Santo Antônio. Finalmente cantam pra Exu Caveira, Dona Maria Padilha, Seu Tranca-Rua, os malandros e as pombagiras da casa. Brancura não tinha nenhum problema em sua vida particular para resolver naquele momento, pelo contrário, seus guias estavam felizes por ter-se afastado da zona do baixo meretrício, por ter largado mão da malandragem, por ter parado de ficar a noite toda plantado em porta de botequim. Foi ao centro só para agradecer. Nada a pedir. Seu Tranca-Rua desceu saravando todo o mundo que ali se encontrava. Primeiro, falou com as pessoas que estavam com a saúde física abalada. Em seguida, deu consulta para a cachopada com problemas emocionais, falou com o pessoal desempregado, e, por fim, atendeu aos pais das crianças com dificuldade de aprendizado escolar e aqueles que estavam embaraçados no trabalho. Somente quando ia embora, chamou Brancura, cruzou peito com o malandro. Sorriu e disse: — Esse fio tá muito formosado, esse. É assim que eu faço gostador dos fios da terra. Quando os fios tão fazendo coisa errada, fazendo muito beberico, fazendo trapaça de jogo de chapinha, esse, eu fico triste porque atrapalha tudo, baixa o padrão vibratório. Tá entendendo, esse? Você largou essa vida, então eu vou ajudar suncê. Vai seguindo a sua intuição que eu vou tá dentro da intuição de suncê… Que eu sou pensamento… Tá entendendo, esse? E é você que tem que querer, a vontade tem que ser sua. Pensa em mim que eu te mando energia positiva. Tem um perna de calça que vai te ajudar te mandando pra outro perna de calça que vai te ajudar mais ainda. É só suncê não ficar plantado em porta de botequim, não usar de malandragem com ninguém que eu vou tá sempre ao seu lado. O fio tá muito formosado! — Eu quero ser igual a Silva. — Igual, não! Vai ser seu parceiro! Pra você, já vai tá muito bom. Isso se você merecer. Cruzou peito com o malandro, olhou para Ivete: — E suncê, vem cá falar comigo. Ela se aproximou. Seu Tranca-Rua segurou sua mão, depois cruzou peito, jogou fumaça de charuto em seu corpo. — Feliz não é aquele que sabe sofrer. Feliz é aquele que entende o sofrimento para desfazê-lo de sua tez até o lugar mais profundo do interior, tá me entendendo, esse? Tem que resolver a questão, por toda a nossa vida vai ter sempre questão pra ser resolvida. O amor é a maior riqueza da vida de suncês aqui na terra. Tá me entendendo, essa menina? Ter amor-próprio é o maior preparo para amar o próximo. É só isso só que eu tenho pra te dizer. E tenho que dizer mais uma coisa pra suncê — agora, voltando-se para Brancura, mas deixando Ivete escutar. — Deus te deu o dom da música. Tu não pode deixar esse dom se recolher ao poente, onde a luz se amarela para receber a escuridão. Ele tem que fluir de dentro de suncê, pra virar eterno, ser luz que não se apaga. E assim é todo dom que todos suncês têm. O dom da música é um dom divino, é um dom que fala direto com a espiritualidade. A música serve para alegrar os filhos, esse. Suncê, quando bota alegria e reflexão,
com sua arte, no coração e na cabeçada dos fios da terra, a vibração boa neutraliza a maldade… Tá me entendendo, esse? Você nunca pode sair de perto do pessoal que é igual a você. Os artistas têm que falar sempre um com o outro, porque é ajudador pra criação, esse! — finalizou Seu Tranca-Rua, olhando para todos do terreiro. Depois, olhou para Brancura novamente, pediu para que ele se abaixasse e lhe falou ao ouvido: — Suncê não vai virar santo, porque santo nasce pronto, entende o que eu falo? Pode tá com seus amigos, esse, mas não vai fazer o que eles fazem. Pode fazer suas músicas, tocar seus instrumentos, mas nada de cair na tentação das mulheres da noite, nada de tentar enganar trouxa, nada de tirar coisa dos outros, entendeu, esse? Pode ir no botequim só pra cantar música, mas sem fazer bebericador. E nesse Cara Pintada eu quero suncê em seu cazuá... Numa praia distante também pode ser ou na cachoeira. Nada de Praça Onze, de Praça de Rio Comprido, Largo do Estácio, ruas do Catumbi e da Tijuca atrás de bloco de sujo. Enquanto não organizar o bloco, não quero você brincando Cara Pintada. Ah, outra coisa que eu já ia me esquecendo. O que você fez com aquela pequena não se faz com mulher nenhuma, não. Suncê vai pagar por isso. A Padilha tá querendo falar com suncê. Ela não vai falar hoje porque você tá com seu rabo de saia. Mas quando suncê vier sozinho, se prepare. Ainda mais que Valdirene é amiga dela… Preste atenção em tudo que eu te disse. Se suncê não fizer o que eu tô mandando, suncê perde o padrão alto e pode terminar mal. Brancura e Ivete dormiram no terreiro, costume de todos os frequentadores daquela casa que moravam longe. Antes de pegar no sono, ficaram de conversa. A mãe de santo, depois de banhar-se, chegou para prosear. Trouxe bolinho de peixe, pão e refresco de caju. Acendeu o cigarro. — Faz um ponto pro Pai Joaquim do Cruzeiro das Almas, Brancura! Quando a gente vai cantar pra ele, fica cantando esses pontos velhos — pediu a mãe de santo. — Ele cuida tanto de você. — Vou fazer, sim. Eu tô devendo uma coisa que ele me deu. Tinha que acender uma velinha pra ele, mas acabei me esquecendo. Vou fazer, sim! — confirmou Brancura. — Você não tá colocando o café na segunda-feira da Vovó Maria Redonda, da Vovó Cambinda e do Pai Joaquim. Também não deu nada pras crianças neste São Cosme e Damião. E a gente… — Quer dizer que aqui no centro é um toma lá dá cá direto. Se der pro santo, o santo te dá de volta? Se não der pro santo, o santo não te dá? — interrompeu Ivete. Os filhos de santo se entreolharam. A mãe de santo começou a falar de cabeça baixa, que era como ela estava naquela hora, enquanto bebia seu refresco: — É isso mesmo, minha filha! Tudo na vida é assim: a gente tem que dar pra receber, a começar pelo respeito às pessoas, aos animais, à natureza, enfim, ao planeta, ao universo. Se você não tiver respeito pelos outros, nada nem ninguém vai te respeitar. É dando que se recebe amor, carinho, amizade, perdão. E aqui, com os nossos guias, é um toma lá dá cá de carinho, cuidado, caridade, proteção, que você não imagina. No universo, cada coisa e cada ser são dependentes, por isso tudo todos têm que doar. Isso é a Umbanda, que é essa religião nova a que a gente vem dando corpo e que você tá vendo aí. Ela mistura tudo, tem santo do Oriente, tem santo da Igreja Católica, tem orixá do Candomblé, espírito de índio, de exu, de criança, de malandro, pombagira, cigano, marinheiro, vovó e vovô. — Sei… — É que a melhor condição do ser humano é a de quando ele está ajudando. Você pode fazer qualquer outra coisa e se sentir muito feliz, mas quando está ajudando alguém, você está evoluindo, fazendo evoluir, e o prazer, mesmo que a gente não tenha grandeza para perceber, é o maior do mundo. A Umbanda nasceu assim. A gente tá na terra para ajudar. A outra opção é a de ser ajudado que é a vida sorrindo para você...
*** — Amanhã estarei curado — diz Zélio de Moraes à sua mãe e ao seu pai antes de dormir. O menino pega no sono de sonho cheio de luz azul-clara nos interstícios. O sangue se sacode em suas veias como nunca. Tudo motivado pela energia positiva dos espíritos iluminados à sua volta, presentes nesse andar e no mexer dos braços pela manhã, no rosto de enfermidade curada na noite. No hospital, todos se surpreendem ao vê-lo entrar andando no consultório. — Só pode ser coisa de Deus — diz um dos médicos pra si mesmo à boca miúda. — Este menino nunca mais… Andar, ele não… Não pode… Ele tá andando? Ele tinha paralisia, ele estava incapacitado. — Agora, aos berros. — Ele tá andando, ele tá andando. Milagre, isso é um milagre! Começa um corre-corre pelos corredores do hospital. As enfermeiras rezam, ajoelhadas. Todos ficam surpresos. Muito católicos, os pais correm para a igreja onde o irmão da mãe é pároco. — Não, isso não é milagre, não. Besteira! — diz o tio ao ver o menino curado. — Deve ser alguma coisa que a ciência ainda não descobriu. Milagre não é assim, não. Esse médico tá maluco. Os pais voltam para casa sem saber o que pensar sobre a atitude do médico e a do padre. A religião e a ciência nunca combinaram. Já bem à noitinha, Manoel, amigo da família, bate à porta trazendo os ramos de espinheira-santa nas mãos assim como Dona Leonor de Morais pedira. Entra, vê Zélio de pé, abre um sorriso. A mãe conta ao amigo tudo o que o médico e o padre falaram. — Vamos levar ele a um centro espírita. Lá eles vão ter a resposta exata. Eu sei que vocês tão felizes, tá tudo bem, mas vocês querem ter a certeza de que ele não vai ficar doente de novo. Não é isso? Eu sei o que é isso! — É… A gente só queria saber o que fazer — diz a mãe. Seu Joaquim Fernandino Costa, pai de Zélio, concorda. Quinze de novembro de mil novecentos e oito, entram na Federação Kardecista de Niterói antes das sete da noite. Zélio não sabe por que quer tanto estar ali, mesmo sentindo falta de prosear com os amigos. Quer mostrar a todos que voltara a andar. Mente em confusão, tudo baralhado, às vezes não sabe nem onde está, apesar do prazer que sente. Uma assistente lhes diz para esperar numa pequena antessala junto com outras pessoas. Os membros — homens e mulheres de idade avançada — vão chegando, entram direto para a sala. Não mais que de repente, Zélio é tomado por um imenso bemestar, agora de forma exagerada. Olha para a mãe, pensa em contar o que está sentindo, mas Seu José de Souza, presidente da Federação, pede a todos que entrem e fiquem sentados em um dos cantos da sala. Zélio não sente mais seus movimentos, parece que não está mais respirando. A energia do Caboclo das Sete Encruzilhadas toma conta de seu corpo. É o espírito do Caboclo encarnado no menino. Começa a sessão espírita. José de Souza pede a Zélio que vá para a mesa de trabalho. O culto começa. Depois de um tempo, o Caboclo diz: — Nesta mesa tá faltando uma flor. O Caboclo sai da sala, todos o olham com certa reprovação, pois não se interrompe uma sessão assim, dessa forma. Volta com uma rosa, coloca-a na mesa. A sessão é retomada. Todos começam a evocar os espíritos da casa. Nenhum espírito deles se incorpora. De repente, vários médiuns se levantam ao mesmo tempo, passam a rodopiar no centro da sala. Espíritos que nunca tinham estado naquela casa começam a descer. — Saravá! — saúdam os espíritos. — Quem são vocês? — pergunta José de Souza.
— Eu sou Caboclo Ubiratã, na força de Pai Oxalá. — Eu sou Mãe Maria Joana, meu fio, também na força de Iemanjá e Pai Oxalá. — Eu sou Vovó Maria Redonda, saravá sua banda. — Eu sou Pai Joaquim do Cruzeiro das Almas! — Eu sou Vovó Cambinda. — Sou Pai Antônio e vim para trabalhar. — Trabalhar aqui, não! Podem voltar. Xô! Xô! Xô! Todos os espíritos vão embora, menos o Caboclo das Sete Encruzilhadas. — Por que o senhor não recebe esses espíritos aqui neste templo? São todos espíritos de luz. Um dos médiuns responde: — Eu vi que são espíritos de escravos, índios e caboclos que quando estavam vivos não leram e não estudaram, portanto não são evoluídos. A gente não aceita espíritos assim nesta casa. Pelo grau de cultura que vocês têm, não podem conviver aqui. E quem é o senhor? Qual é o seu nome? — Se julgam atrasados esses espíritos dos pretos, dos caboclos, dos índios, devo dizer que amanhã estarei na casa deste aparelho para dar início a um culto em que esses pretos, esses índios poderão enviar a sua mensagem e, assim, cumprir a missão que o plano espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados. E se querem saber o meu nome, que seja este: Caboclo das Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim. — O senhor se diz caboclo, mas vejo que está usando trajes sacerdotais. — O que você vê em mim são restos de uma existência anterior. Fui padre, e meu nome era Gabriel Malagrida. Acusado de bruxaria, fui sacrificado na fogueira da Inquisição em Lisboa, no ano de mil setecentos e cinquenta e cinco. Mas, em minha última existência física, Deus concedeu-me o privilégio de nascer caboclo brasileiro. Amanhã, na casa do meu aparelho, na Rua Floriano Peixoto, número trinta, em Neves, São Gonçalo, Rio de Janeiro, será inaugurada uma tenda espírita com o nome de Nossa Senhora da Piedade, que se chamará tenda de Umbanda. Onde o negro, o índio e o caboclo poderão trabalhar. Será uma nova religião baseada no Evangelho. — E os irmãos acreditam que haverá gente lá amanhã? — pergunta em tom de deboche o chefe da Federação Kardecista. — Cada colina de Niterói atuará como porta-voz, uma trombeta de alarme anunciará a existência de uma casa espírita e do culto que iniciarei amanhã. *** — No dia seguinte — continuou a mãe de santo —, dezesseis de novembro de mil novecentos e oito, a família de Zélio estava em apavoramento. O rapazola não sabia explicar o que lhe estava acontecendo. Falou para homens experientes, em volta de uma mesa, onde se praticava o inimaginável. Tinha idade de menino para organizar um culto, não sabia nem em que chão caminhar. No entanto, ele falara o que tinha que ser dito, sem mesmo conhecer da missa o amém. Uma mágica para expressar o que não tinha elaboração prévia de pensamento. No dia seguinte, na casa da família, na Rua Floriano Peixoto, número trinta, em Neves, ao se aproximar a hora marcada, oito da noite, já estavam reunidos os membros da Federação Espírita para corujar se tudo iria se dar como ele falara. Chegaram a parentada, os amigos, os vizinhos, gente de toda a sorte. Às oito horas, baixou o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Afirmou que nascia naquela hora uma nova religião. Religião de todos os espíritos. Uma religião que seria um hospital de almas encarnadas e desencarnadas. ***
— Salve a força de Oxalá, de todos os orixás, dos caboclos, das vovós, dos vovôs, dos índios, dos exus, das pombagiras, das crianças, dos ciganos, do povo do Oriente. Salve a força de todos os espíritos que vão trabalhar em benefício dos seus irmãos da terra e do astral, qualquer que seja sua crença e origem. A caridade… O amor fraterno é o nosso lema. Tendo como base o Evangelho de Cristo e, como mestre supremo, Jesus. Sessões, assim serão chamadas nossas reuniões em nossos tempos espirituais, sempre das oito às dez da noite. Os médiuns devem vestir branco, aqui não se cobra nada pelo atendimento e o nome dessa religião é Umbanda. — Allabanda? — pergunta um médium a Sete Encruzilhadas. — Não, é Umbanda! Palavra de origem sânscrita que quer dizer “Deus ao nosso lado”, ou também “o lado de Deus”. *** — A casa de trabalhos espirituais — prosseguia a mãe de santo — ganhou o nome de Nossa Senhora da Piedade porque, assim como Maria acolhe o filho nos braços, também seriam acolhidos como filhos todos os que necessitassem de ajuda e conforto. — Ditas as premissas da nova religião e após responder em latim e em alemão às indagações dos sacerdotes ali presentes, o Caboclo das Sete Encruzilhadas curou enfermos e fez andar aleijados. Antes do término da sessão, Pai Antônio baixou para completar as curas. Nos dias seguintes, verdadeira romaria se formou na Rua Floriano Peixoto, em Neves. Enfermos, cegos, paralíticos vinham em busca da cura que ali encontravam, em nome de Jesus. Estava fundada a Umbanda no Brasil. Quinze de novembro é seu dia nacional. Bom, agora eu vou dormir que amanhã levanto cedo. A manhã ia alta quando o casal subiu a São Cláudio. Crianças brincando, jovens em conversa de esquina, gente apressada para o serviço. Caíram no sono para se recuperar da noite maldormida. Quando desceu do ônibus, Brancura pensou ainda em ir mostrar a primeira versão de um samba aos amigos. Queria mesmo era arrumar um parceiro pra desenvolver aquela letra que tava sem andança. Fez a primeira do samba pensando em Baiaco, por isso bolou melodia e letra da forma que ele compunha. Sentia vontade de ter uma música em parceria com ele, porém, concluindo que Baiaco também passara a noite no terreiro e àquela hora estaria dormindo, resolveu fazer o mesmo. A tarde chegaria rápido se ele caísse no sono, e foi o que fez.
HAVIA TRINTA MINUTOS que Silva olhava o papel com apenas dois versos escritos. Nada de aparecer mais palavras que se harmonizassem, nem ritmo que ditasse uma nova frase melódica. Alisava os lábios com o lápis, imaginando coisas ainda não pronunciadas pra dizer. Quando ficava assim, parecia que todas as palavras do mundo já tinham sido pensadas nesse tempo e foram poucas. As palavras são poucas quando se quer ser sucinto no expressar de sentimentos. Agulha no palheiro. O óbvio pede sempre muito tempo para se realizar em poesia. Se ele pudesse, inventaria palavras com significados mais pesados, com mais ímpeto e vigor. Palavras que aumentassem os sentidos, outras que os tirassem e aquelas que os modificassem para sempre, a favor de uma melodia mais bonita. Queria todas as palavras do mundo dominadas, ali, ao seu dispor, para quantos versos bem quisesse. Escreveu qualquer coisa, riscou logo em seguida, cantarolou de novo o que já escrevera. Tinha também esse jeito de criar letra que já nascia com música. Levantou-se, pegou um atabaque, ficou repenicando, cantarolou outras palavras em vão, foi versando verso de nada, de pouco dizer. Acabou deixando tudo para terminar depois no seu tempo próprio de transpiração. A tarde passou sem ser vista. E apenas “se você jurar que me tem amor, eu posso me regenerar” escrito no papel de pão. Cantou um samba antigo, aprimorando a nova batida, sentia falta de um instrumento que desse mais floreado àquele ritmo em construção. Tentou outra palavra nova e nada. Largou o atabaque, recostouse à parede. Que falta faz um dedo de poesia para o poema deslanchar verso abaixo. A questão era que, se fizesse mais três ou quatro versinhos bons, já poderia mandar para um parceiro colocar a segunda do samba e quem sabe uma terceira de bom gosto. Iria depois procurar Bastos que por certo teria palavras para ajudar. O carnaval se aproximava, sabia que ia ter pancadaria não só da polícia, mas também desses brigões de blocos de sujos, dessa rapaziada que saía, conforme Brancura, pra brigar e bater carteira dos outros. Queria parar com o costume de fazer ajuntamento de batucada na frente do Café do Compadre e no Apolo no carnaval. Isso chamava corriola para atrapalhar a vida de quem só quer se divertir. É que tinha gente que pensava que ainda se estava na época do entrudo. Cultivava esses hábitos dos portugueses de jogar limões de cera cheios de água com xixi e as mais diversas sujeiras nas pessoas. Ele já viu muita pancadaria começar assim. Mas o pior mesmo era quando juntava mais de cinco ou seis blocos para trocar bofetadas, rabo de arraia, meia-lua e tudo mais. A polícia também já gostava! Ô, raça desgraçada é essa raça de polícia. Não pode ver a negrada brincar em paz que já vem querendo bater. Às vezes, o bloco de sujos era só de família, de vizinhos que não se metiam em confusão, mas a polícia chegava batendo até em mulher, criança e velho. Não queria nem saber. Quando não tinha capoeira com navalha e arma de fogo, eles faziam o que queriam. Silva tramava um carnaval mais tranquilo, baseado na música que desse para cantar e dançar. Um samba que pudesse ser cantado o ano todo. Música que contasse de coisas de que se falava no seu tempo, da vida que se vivia ali ao seu redor. Por que não fazer um carnaval em que se cantasse a música de Alves? Estava cansado daquele maxixe que parecia marcha fúnebre de banda de militar. “O chefe da polícia pelo telefone manda avisar.” Coisa mais antiga, era uma espécie de fado com tiradas de tango e quebradas de maxixe. Tinha muito pouco do lundu. Misturar argentino com português pode dar muito errado, com certeza não dá vazão à alegria. Fica aquela coisa assim que não sobe nem desce, quando se pensa que vai subir, tudo desce e fica assim sem subir pra nunca mais. Ritmo chocho. Tinha de ser coisa animada, com mais batuque, mais remelexo. Pegou de novo o atabaque, saiu procurando ritmo. Tinha hora que parecia toque de Candomblé, outras vezes de Umbanda, a mistura dos dois, mas não era isso que queria. Queria música no ritmo do vem e vai da foda, ritmo da meteção igual à
dança do lundu, com um pouco mais de ginga, mais bamboleado. Isso que ia alegrar o povo na hora de brincar no carnaval, não iria ser aquela coisa morta de um passinho atrás do outro feito trote de cavalo ensinado. Tinha de ter remelexo, bota e tira, vai pra frente, vai pra trás, vai por cima, vai por baixo, pela frente, de ladinho, sempre dizendo no pé e remexendo as cadeiras. Tinha que tomar tenência e inscrever o bloco na polícia, arrumar diretoria, passar livro de ouro, alugar sede. Com certeza, Alves iria aparecer para ajudar. Nada de desmerecer a velharia da casa de Tia Almeida. Gostava de Barbosa, de Alfredo, de João, só que a coisa estava mudando e eles não percebiam. O negócio era criar um bloco, iria trazer prestígio para os compositores do Estácio e felicidade para seu povo. Falaria com o pessoal naquele dia mesmo no Bar do Apolo.
— EU VOU CONTIGO! — Não, não vai, não. É conversa de homem. A gente vai tratar de música e só tem homem lá. — Que que tem? Não tenho medo de homem. Se eu não vou, você também não vai. Brancura se levantou bruscamente da cama. — Olha aqui! Quem manda nessa porra sou eu. Homem aqui sou eu. Eu faço o que eu quiser. Você faz o que eu mandar. — E você tá pensando que eu sou uma dessas putas com quem tu andava lá na zona que fazem tudo que homem manda? Nunca um homem vai mandar em mim. — Não, não tô pensando que você é puta, não. Senão não tinha casado contigo, mas se comporte como minha esposa, pra eu me comportar como seu marido. E outra coisa, eu só tô indo porque Baiaco mandou recado pra mim. E tu sabe quem é Baiaco. Sabe muito bem o que ele significa pra mim. — Você só pensa nesse tal de Baiaco, de Silva, de Edgar… Aposto que eles são veados. Esse tal de Silva com certeza é. Tu deve tá é comendo o cu dele. Sabe muito bem o que ele significa pra mim — remedou ela, fazendo trejeitos de homossexual. Brancura balançou a cabeça negativamente, deixou a mulher falando sozinha. O Bar do Apolo estava lotado. Uma roda de samba batido na palma da mão, ao som de um pandeiro e violão. Brancura chegou devagar, ficou a um canto, amuado, pediu café, acendeu um cigarro de palha, se pôs a escutar os sambas. Teve uma roda de pernada, mas preferiu ficar na dele. Bide se aproximou. — Por que tu não foi pra curimba ontem? Todo o mundo lá tava perguntando por você. Disse que acabou dormindo, não iria falar que não foi para não encontrar Valdirene. A separação estava muito recente, ela poderia perder a linha e partir pra cima de Ivete. Também não queria o contato da esposa com a rapaziada. Mulher é mulher. Amigo é amigo. Ex-mulher é um inferno. Nada de intimidade de atual com ex, pois intimidade gera atrito. Atrito gera puxão de cabelo, corte de lâmina e apertão de pescoço. O samba comia solto, Brancura foi se soltando, ameaçou uns passos quando Silva cantou Me faz carinhos e acompanhou batendo no balcão, mas não conseguia ficar à vontade para também cantar uma de suas composições. No entanto, versos novos inspirados nos sambas que ouvia lhe vinham à cabeça. Pegou um lápis, escreveu alguma coisa, guardou o papel no bolso, dois minutos depois escreveu mais um verso e foi assim até a roda de samba acabar. Se soubesse que Valdirene não estaria lá e que havia essa roda de samba imensa, com várias famílias participando, cheia de crianças, teria levado Ivete. Se a infeliz não tivesse levantado a voz para ele. Quase foi buscá-la, mas tinha de ser forte, pois se você dá uma asinha de nada para as mulheres, elas querem voar igual gavião. A noite foi tomando conta do pedaço. A maioria do pessoal foi embora, só ficaram os amigos de sempre em conversas costumeiras. Beberam duas garrafas de Paraty. O sambista passou do café para o refresco de groselha. Baiaco quase não falava, interrompia a conversa bruscamente, cantando fragmentos de um samba novo. Brancura esperava uma oportunidade de chamá-lo ao canto, falar sério com ele sobre a parceria que queria fazer, o amigo, porém, assim como os demais, estava um tanto alto. Silva não parava de cantar, samba atrás de samba. Desistiu, pois esse negócio de ficar sem beber perto de quem bebe dá nisso: o pessoal fica rindo à toa, falando coisa com coisa e você ali batendo fora do compasso. Tentava portar-se com naturalidade, participar das brincadeiras, mas o pensamento na briga com Ivete o estava perturbando. Era a primeira vez que se desentendia com a esposa, coisa que achava que nunca aconteceria. Imaginou-a perfeita, sem o nervosismo das mulheres
de mais de trinta anos que passaram pela vida dele. Acreditava que ela não iria ter essa coisa de querer prendê-lo ao pé da cama, de dominá-lo. Já tinha largado a bebida e as noitadas, o que mais ela poderia querer? Tentava entrar na mesma vibração dos amigos, mas vez ou outra seu olhar ficava esquecido num ponto, o rosto sério. Sua tensão era tão visível que Bide perguntou: — Comeu barbante? — O quê? — Comeu barbante? — Não, pô! — Então tá com essa cara amarrada por quê? — Nada, não — desconversou. Ficou ali mais um pouco até que o pessoal, por insistência de alguns amigos que queriam comprar maconha, resolveu seguir para a zona do baixo meretrício. Naquela noite, chegara um carregamento de Palmeira dos Índios. O caminhão aparecia uma vez por semana em torno das dez da noite. Ali, os mercadores dos morros da Tijuca, do Centro, da Lapa, da Zona Portuária compravam no atacado para vender no varejo em seus respectivos bairros e favelas. Sodré era quem encomendava a erva, pagava aos policiais para não aparecerem naquela hora na zona. Não que naquela época o consumo e a venda de maconha fossem proibidos, mas, por ser consumida só por gente pobre, a polícia dava em cima, dizia que era erva de macumbeiro, sambista, capoeirista e cafetão. Brancura só caminhou um pouco ali no Largo do Estácio, reafirmou aos amigos que tinha parado com os vícios, também que não queria colocar os pés na zona. — Suas putas tão todas lá, daqui a pouco tu vai ficar sem mulher nenhuma mesmo. Valdirene anda triste, e o português já tá se aproximando de novo — disse Bide. *** Isso mesmo, livrar-se das putas, sair dessa vida na qual a família de sua mãe fizera de tudo para que ele não entrasse. A verdade é que foi seu próprio pai quem o levou à zona pela primeira vez quando completou quinze anos. Pai que não o criou, que, quando soube que a mulher engravidara, tratou de lhe dar chá de broto de pé de café na intenção de provocar um aborto. Apolônia se negou e, por causa disso, pediu aos prantos que ele sumisse de sua vida. Homem que quer aborto é assassino. Com assassino não queria proximidade nem de amigo, quanto mais de namorado, amante, marido ou qualquer coisa que fosse. As pretas velhas da Umbanda afirmam que quando se aborta uma criança o espírito dela não dá sossego, não deixa pai nem mãe em paz pra nunca mais, é que ele vira espírito obsessor e fica ao lado dos aborteiros, afogando-os dia a dia, pois o espírito quer a vida prometida, quer tomar corpo, se desenvolver. Tem que fazer trabalho grande para o espírito tomar andança de luz e poder encarnar de novo. Seu pai fez o que a mãe pediu no seu segundo mês de gravidez: sumiu de sua vida. Ela, com a ajuda da família, haveria de criá-lo com dignidade, sem a participação dele. A poeira baixou, mas esse pai desnaturado, mesmo sendo vizinho do menino, vendo-o crescer ao seu redor, não teve a compaixão de lhe dar carinho, atenção, sustento ou palavra de pai até a adolescência. Rafael só apareceu na casa do filho quando este fez quinze anos, na hora de cantar Parabéns, para levar o menino à força para a zona. Não adiantou a intervenção do avô de Brancura, não adiantaram os gritos da mãe. O tio tentou impedir na valentia, mas acabou quase morto no chão de tanta pancada. E o aniversariante, esperneando, aos prantos, foi arrastado zona abaixo, sob os olhares dos biriteiros, dos malandros, das putas que riam de seu desespero. Foi jogado no quarto de Fátima, mãe de Valdirene. A puta velha sugou o pênis do menino, fez dele gato e sapato, só não o obrigou a meter a língua em sua vagina. Depois ele relaxou e gozou. Brancura voltou a ficar tenso
quando saiu da zona, correndo com o corpo todo chupado e babado, olhando aquelas mulheres seminuas nas ruas. O pai, na esquina, com os amigos, ria de seu desespero, apostando que ele voltaria assim que o impacto da primeira relação sexual passasse. Acreditava que se não fizesse isso antes de cantar os Parabéns dos quinze anos do filho, o menino se tornaria veado. E para ele, veado bom era veado morto. O menino chegou em casa, jogou-se no canto no qual dormia, não ouviu palavra de mãe, de avô, nem de ninguém, colocou a coberta por cima do rosto e esperou passar a noite, a madrugada. Na manhã do outro dia foi viver sua vida, fingindo, assim como seus parentes, que nada acontecera. Brancura não olhava, nem sequer falava com o tio enfermo, por vergonha e culpa. A raiva calada do pai só foi amenizada quando o tio se curou, deixou passar o tempo, depois armou-se de um pedaço de pau, fez tocaia atrás da venda onde o outro fazia parada para beber e o golpeou várias vezes, até que o desnaturado desmaiou. Sentia uma alegria triste pela vingança do tio; este sim que era seu pai de verdade, que trabalhava duro para sustentar a família, não era vagabundo como seu genitor — que era homem de porta de bar, de corriolas de jogo, bebida —, não era do tipo valentão, que dava tudo para entrar numa briga e mais ainda para não sair dela. O pai, por outro lado, passados poucos dias do ataque do tio, entrou na casa deste com uma navalha na mão e cortou-lhe o rosto numa briga que quase levou o barraco ao chão numa vingança fedida. Os raros móveis da casa foram destruídos naquela peleja. Sua mãe, na tentativa de apartar, também foi agredida, assim como seu avô. Durante um bom tempo, as brigas entre o tio e o pai se repetiram na vida de Brancura. Houve períodos de trégua de até um ano, mas as desavenças só findaram mesmo quando, numa delas, o próprio Brancura interveio. Não agrediu o pai, nem o tio, só se pôs entre os dois, bradando: — Quem quiser brigar vai ter que brigar comigo! Toda vez que um quiser brigar com o outro, vai ter que brigar comigo! Tio e pai pararam, deram-se as costas. Daí por diante, era como se um estivesse morto para o outro. A segunda relação sexual de Brancura se deu atrás da igrejinha, com Márcia. Só aí se deu conta de como Fátima sabia das coisas. É certo que com Márcia foi no chão, ao ar livre, estavam seminus, os mosquitos faziam zoeira no ouvido, pinicando a bunda. Certo também é que se fosse com Fátima, em qualquer lugar, ela lhe meteria a língua por todo o corpo, ia balançar embaixo, em cima, feito trem da Central, não teria nojo de chupar seu pau, nem problema de dor no sexo anal. Andou com outras, sem sentir no corpo o jeito gostoso da prostituta. Relutou, até que um dia bateu à porta de Fátima, depois de se certificar de que o pai não estava na zona. A prostituta abriu um sorriso, foi lhe tirando a roupa, fez sexo com ele, dando tudo de si. Ficaram ali por duas horas. Dessa vez, Brancura saiu da zona e, enquanto caminhava, observou as outras mulheres nas portas das casas da Rua Pereira Pinto, havia outras prostitutas também de corpo bonito como o de Fátima. Dinheiro… Era só arrumar dinheiro que poderia ter qualquer uma delas na hora que fosse. A zona não fechava. Ia olhando também os caminhões de bebidas que chegavam para abastecer os bares, os camelôs que ofereciam laranjas descascadas, churrasco de gato, revistas de sacanagem e, para aumentar o vigor sexual, amendoim, pomada chinesa e garrafadas do Norte. Caminhava distraído quando avistou, perto do Cabaré da Vivi, o pai sendo agredido por três homens. Um deles batia, enquanto os outros dois seguravam-lhe os braços. Parou, não sabia o que fazer, sem ter ciência do motivo da sua imobilidade. Talvez não querendo ser visto ali pelo pai, recuou, pensando em sair de fininho. O pai estava de novo metido em confusão, coisa que acontecia quase diariamente. Pensou em voltar para o quarto de Fátima, como pensou várias coisas sem sentido
naquele espaço de tempo. Foi andando para outro lado, ganhando distância. Estava determinado a sumir dali, mas não, seu genitor estava sofrendo uma covardia. Podia ser o pior pai do mundo, mas o sangue era o mesmo, não ia deixá-lo no perrengue. Saiu em disparada, pulou com os dois pés no peito do homem que batia em seu pai, os outros dois se assustaram e largaram os braços de Rafael, que caiu sem forças no chão. Brancura encarou os três agressores com valentia, usava golpes de capoeira numa briga de verdade pela primeira vez. No vigor dos quinze anos, foi fácil deixar desmaiados os adversários. Levantou o velho, ajudou-o a caminhar até o bar, pediu água e deu-lhe de beber, jogou-lhe o resto no rosto e o levou para o morro. Os olhos de Rafael eram um brilho só. Seu filho era macho, salvou-o de uma covardia, era capoeirista de pé certo, bateu nos três sem levar um só tapa. Estava tão feliz que não conseguia pronunciar palavra. Na primeira venda da subida do São Carlos, o menino pediu um café, deu ao pai, sem falar nada, se retirou. O tempo foi passando nos becos, nas vielas do São Carlos, nas ruas do Estácio. Agia diante de seu genitor como se nada tivesse acontecido: como sempre, não lhe dava palavra, mesmo passando bem à frente dele. Rafael tentou várias vezes puxar conversa, mas nada. Até que, numa manhã chuvosa, Brancura saiu de casa para tentar arrumar emprego no cais do porto. Logo na primeira esquina, viu seu pai ajudando uma velha a andar. — Vem cá, Brancura! O rapaz fingiu não ouvir e seguiu seu caminho. — Vem conhecer sua avó, meu neto — disse a velha. Brancura se voltou, esperou que os dois chegassem até ele. — Sua avó quer te conhecer. A velha olhou-o firme, sorriu. A sensação de que já a conhecia espraiou-se em seu corpo tomado de arrepios, a mão da avó descendo sobre sua cabeça. — Bênção — balbuciou. — Deus lhe dê vida e saúde. Eu sei que seu pai não foi pai para você, mas isso não me tira o direito de avó. Abraçou o neto, que ficou imóvel, vendo pela primeira vez as lágrimas do pai. Foram caminhando para a casa de Rafael. Casa de chão batido, de mesa feita de caixote de feira, um fogareiro de querosene, duas esteiras de palha enroladas a um canto, três lampiões, uma imagem de São Jerônimo num altar. Rafael colocou água no fogo para o café. A avó foi logo falando de seus familiares, dos bisavós que vieram da África, da escravidão, das coisas que sua família passou. Ao ouvir a história, Brancura abraçou a avó e olhou para o pai. — Por que o senhor nunca olhou pra mim como filho? O pai abaixou a cabeça e voltou a chorar. — Acabou esse tempo, meu filho — interrompeu a avó. — Eu vim aqui pra unir vocês dois. Eu sabia de você desde o seu nascimento, mas só pude vir agora. Todo o mundo erra, seu pai errou e fez contigo o mesmo que o pai dele fez com ele. — Eu não tenho avô, não? — Não, ele não quis saber do filho, morreu sem conhecê-lo. Vá abraçar seu pai, perdoe, você vai se sentir melhor. — Mas ele já sabia o que era viver sem pai e fez a mesma coisa. — Todo o mundo erra, meu filho — repetia a avó. — Vai, abraça teu pai! Perdoe! Houve um breve momento de hesitação, mas logo pai e filho estavam abraçados.
Brancura ficou ali mais um pouco, ouvindo outras histórias de família, vez por outra perguntava alguma coisa. A avó respondia com todos os pormenores. Rafael se manteve calado, só falou para dizer que era hora de sua mãe descansar um pouco da viagem. O neto beijou a avó, pediu a bênção aos dois e se retirou.
A MANHÃ JÁ AVANÇARA , não era mais hora de arrumar emprego. Sua casa estava vazia, deitou-se de roupa e tudo, de olhos abertos, mirando o infinito que se apresentava agora de forma diferente para ele. O tempo perdido longe do pai estava sendo recuperado; ainda de sobra, ganhara uma avó e uma bisavó. Ficou ali feliz até pegar no sono. O tio chegou do trabalho. Como sempre, em dia de pagamento dava uns trocados para Brancura. O dinheiro estava com caminho certo, iria para a bolsa de Fátima. Antes de ir à zona, contou o acontecido ao tio, que lhe disse que, cedo ou tarde, a amizade com o pai iria acontecer. — Pai, por mais que se afaste, nunca esquece o filho. O amor de pai fica sempre guardado no coração e, de uma hora para outra, ele é revelado, não tem jeito, não. Nada é maior que o amor por um filho. A mãe não botaria empecilho na amizade dos dois. No fundo, mesmo falando mal de Rafael, dizendo que ele não prestava, que nunca prestou, queria mesmo era ver os dois juntos. Brancura desceu o morro, passou pela casa de Bide. O amigo demorou a aceitar o convite. — Não é homem, não? Lá tem mulher pra gente fazer o que quiser. É verdade que o trauma da primeira relação sexual fora grande, mas tinha orgulho de ter sido o primeiro entre os amigos a fazer sexo de gente grande com uma mulher. O trauma se transformou em vitória. Com o passar do tempo foi achando que a atitude de Rafael de levá-lo à zona fora de bom tamanho. O respeito e a admiração dos amigos o tornaram orgulhoso do pai. Um orgulho calado, pois não queria dar o braço a torcer a Rafael. Até entre as meninas, o fato de já ter feito sexo o tornava respeitado. Elas o tratavam como o mais adulto e experiente dos meninos. O desejavam por isso. Bide desceu o morro, ressabiado. A zona estava cheia àquela hora da tarde, porque é depois da hora do trabalho que os botequins ficavam lotados. Bide ia de mão no bolso, admirando as mulheres por debaixo dos olhos. Ao chegarem à porta de Fátima, encontraram Rafael saindo. — Tá viciado, hein, guri? — Não, vim aqui pagar a ela e trouxe o Bide pra ela conhecer — desconversou. Fátima vinha saindo também. — Não precisa pagar, não. Ela é minha mulher e não pode te cobrar, não… Entendeu por que eu te trouxe na marra, né? Homem que faz quinze anos e não conhece mulher vira veado. Brancura olhou para Bide com cara de riso, sabia que Bide era virgem. — É isso mesmo — continuou Rafael. — Começa essa porra de troca-troca com os amiguinhos e depois não para mais. Esse negócio de cada um bota um pouquinho vicia. — É por isso que eu trouxe ele, pai, mas acho que ele não tem mais jeito, não. — Sou homem, rapaz! Ih, tá pensando o quê? — reagiu Bide. — Agora é o seguinte: aqueles inimigados que me pegaram ali naquele dia na traição podem voltar aqui de novo. Eu tô preparado, ando sempre na atenção, mas você, não, tu tem que… — Adorei naquele dia você salvando teu pai. Tu é macho mesmo, jogou os três no chão… — interferiu Fátima. — Eles me pegaram na covardia, mas eu ia derrubar os três também… — Eu sei, amor, mas que ele foi valente, foi. — Filho meu tem que ser homem mesmo! — Por que o senhor tava brigando com eles? — Um deles fodeu uma mulher minha e não quis pagar, aí dei um corretivo nele, aí ele veio com mais dois; eles são lá de Oswaldo Cruz… Qualquer hora podem voltar aí. Não fique muito tempo aqui dentro, não.
— Eu só vim trazer o meu amigo aqui, que tá perigando na veadagem. — Para de palhaçada, rapaz! — reclamou Bide. — Olha, não precisa pagar, não. Mas não quero você mais com ela, que ela é minha mulher de fé. Pode escolher outra aí, dizer que é meu filho, que tá tudo certo. Agora, seu amigo vai ter que pagar. Vai lá! Deixe eu ir, que eu tô levando ela pra fazer comida pra tua vó. Os dois rapazes foram procurar as mulheres. Bide, mesmo não querendo iniciar a sua vida sexual na zona, sentia-se obrigado a fazer sexo com uma prostituta, pois, do contrário, o amigo iria espalhar que ele não gostava de mulher, que nunca tinha visto uma boceta e correu quando teve a oportunidade. Escolheu a mulher mais nova que viu, se deu com ela. Brancura fez a mesma coisa.
FÁTIMA E RAFAEL subiam o morro, conversando a respeito de Valdirene. A menina queria porque queria seguir a profissão da mãe, Rafael achava que ela era muito moça para aquele tipo de trabalho. Fátima dizia que na idade dela já sustentava a família toda a poder de boceta. — Deixe ela namorar um pouco. — Ela já namora, é virgem, mas já namora. Por orientação da mãe, Valdirene, como a maioria das meninas do morro, fazia sexo oral e anal. Nada de dar a periquita, porque assim podia casar virgem. Era normal as mães darem essa orientação às meninas, que a seguiam à risca. Acreditavam que a boceta era sagrada, e o cu, profano. Mas, pela idade, imaginavam que ela não casaria mais, então, que seu primeiro cafetão a desvirginasse. O problema era só arrumar um de respeito para cuidar de Valdirene. Rafael não podia ser, porque não fazia sentido mãe e filha terem o mesmo cafetão, mesmo ele não tendo nada com Valdirene. Rafael argumentou que ela era muito bonita, poderia arrumar um português, um italiano ou um espanhol rico para ter um casamento decente, mas Fátima insistia para que sua filha se tornasse provedora, seu dinheiro era pouco para suprir as necessidades das duas. Além do mais, ela tinha eito, gostava da coisa, queria ser prostituta. E foi assim que Fátima teve a ideia de dar sua filha para Brancura cafetinar. Era homem de fibra, valente, novo como ela, puta nova de cafetão velho não dá certo, os homens não respeitam. Só se o cafetão velho tiver muito tempo de zona. A ideia agradou a Rafael, que chamou o filho e falou de todas as vantagens da profissão. — Tu vai querer ficar carregando peso no porto? Vai trabalhar pro português, que explora os outros até a última gota de suor, meu filho? Vai arrumar essas profissões que pagam uma miséria? Brancura relutou, argumentou sem muita ênfase, Rafael rebateu com afinco, e o filho concluiu que o pai estava certo, depois de fazer as contas de quanto poderia ganhar dando proteção a Valdirene, constatando que seria o triplo do salário que ganharia no cais do porto. Só não começou de imediato porque sua avó morreu de uma hora para outra, parecia até que ela só viera ao Rio para unir os dois. Com isso, não foram conhecer a bisavó. Tinham feito tantos planos, mas sempre deixavam para depois, agora, com a morte da avó, perderam o rastro da bisa. Um dia após o enterro, lá estava Rafael na zona, ensinando os truques da profissão a Brancura. Quando o pai achou que o filho estava apto, falou para Fátima que ela poderia entregar a filha ao rapaz, que este já estava no ponto para defender qualquer puta que fosse. Sabia de cor e salteado os segredos da zona. Parecia que tinha nascido para aquilo. A primeira noite com Valdirene foi cercada de ritual: a mãe mesmo fez um belo vestido, comproulhe roupas íntimas e de cama e banho, a nova prostituta deu um molho no cabelo. O casal foi passar a lua de mel na zona do baixo meretrício, na Rua Pereira Pinto, bem próximo à casa de trabalho de sua mãe. Dessa vez, a relação sexual foi feita com carinhos brandos no início. Seguindo a recomendação de Rafael, foi quase uma hora de afagos antes da penetração. Cafetão tem que se esforçar ao máximo com sua puta, fazer de tudo para ser o melhor de todos. Os carinhos foram se tornando frenéticos, porque ele tinha que mostrar os três lados do sexo: manso, feroz e incansável. Ficaram a noite toda reboliçando na cama. No outro dia, a moça se iniciou na profissão. Era hora de cobrar caro, trabalhar certinho, pois mulher nova chama bastante cliente. Assim, Brancura foi para a zona fazer a vida, mesmo com sua mãe pedindo, ameaçando, rezando para todos os santos que o tirassem de lá. Ele brigou muito para defender Valdirene e, mais ainda, depois que Rafael morreu, para defender as mulheres que herdou do pai. A zona era o lugar onde
mais ficava, poucas vezes subia o São Carlos, passou a dormir cada dia na casa de uma de suas mulheres; aliciou meninas para a prostituição, assaltou, traficou, fez transação de arma engatilhada, expulsou vários cafetões para ficar com as putas deles, tomou gosto por briga dentro e fora da zona, viciou-se em jogo, foi preso várias vezes pelos mais diversos motivos. Tornara-se tudo aquilo que sua família não queria. Agora lutava por uma vida decente com uma mulher como fora sua mãe: que nunca botou o pé na zona, a não ser para tentar tirá-lo de lá. Uma mulher que foi de um homem só, que trabalhava e que amais pensou em vender o corpo. Mãe que se arrependeu de deixar o filho aproximar-se do pai, só o fez pela avó do menino. É verdade, porém, que acreditou no pai de seu filho: com a presença da avó em casa, achou que ele daria novo rumo à vida. Que nada, o desgraçado não apenas continuou no nhenhenhém da zona como ainda levou Brancura, que se tornou mais vagabundo que o pai. Ainda por cima era sambista, beberrão e viciado em palmeirense. Mãe que ficou tão desgostosa com a vida do filho que foi morrendo aos poucos, de tão mãe que era, assim como as suas plantas, que deixara de regar.
OS AMIGOS INSISTIRAM , naquele início de noite, para que fosse com eles fumar palmeirense, tomar a última cerveja na zona. — Não vou, não. — Que que é isso? Conversa pra boi dormir. No dia em que tu parar de fumar palmeirense a terra para de rodar. — Parei! Essa porra dessa erva tava me deixando brocha, meu pau parecia pescoço de galinha morta, depois que eu parei tá duro que nem espora de galo velho. É uma beleza. Essa erva é coisa de português. — De índio. — Sei lá… Só sei que eu não quero mais. Não troco o meu pau duro por erva nenhuma. O amor é uma coisa linda. Brancura deu uma corrida, pendurou-se no estribo do bonde que ia para a Tijuca. Saltou no início da Haddock Lobo, entrou na mercearia, comprou cereais, frutas, cerveja. Passou no açougue: um quilo de acém e três bifes de carne de primeira; depois na floricultura, onde comprou uma rosa vermelha. Entrou na Sampaio Ferraz, pensando no dinheiro que estava acabando. Iria, no início de semana, procurar serviço e ser feliz para sempre. Seus amigos entraram no bar. Silva lembrou que tinha de falar do bloco, quase sem voz, bêbado como todos os amigos, que tagarelavam coisas sem sentido. — A gente, a gente, a gente tem que fundar um bloco. Ouviu? Ouviu… Peraí, deixa eu falar. As pessoas não o ouviam. Então ele gritou: — A gente tem que fundar um bloco. Todos fizeram um tempo de silêncio e logo bateram palmas, apoiando o que ele dizia. — Um bloco com ritmo quente pra balançar o corpo da gente. Alguns bateram palmas e outros deram uivos em apoio. E Silva continuava cantando uma samba dele e Bastos: — Vai ser ritmo forte! Vamos lá, faz aí esse ritmo, aí. Bum bum paticumbum prugurundum Nem tudo que se diz se faz Eu digo e serei capaz De não resistir Nem é bom falar Se a orgia se acabar (Tu, falas muito, meu bem E precisas deixar Tu falas muito, meu bem E precisas deixar Senão eu acabo Dando pra gritar na rua Eu quero uma mulher bem nua) Mas dessa vida Não há quem me faça deixar Por falares tanto A polícia quer saber Se eu dou meu dinheiro todo a você
Até que enfim Eu agora estou descansado Até que enfim Eu agora estou descansado Ela deu o fora Foi morar lá na favela E eu não quero saber mais dela Silva se esqueceu da fundação do bloco. Ficaram ali cantando samba atrás de samba. A lua do Estácio vai mais devagar, pedindo a todo o mundo para morrer de amor. Brancura encontrou Dona Vera recolhendo a roupa do varal, entregou-lhe as compras que fizera. A sogra largou as roupas no tanque e foi para a cozinha. Antes, ao ver a rosa, sorriu e disse: — Isso mesmo, trata ela com carinho. Não liga pra esses nervosismos não, que é coisa de menina. Vai lá. Ela tá no quarto, tava chorando até quase agora. Entrou no quarto, Ivete dormia, ele se despiu, deitou-se ao lado dela com a rosa na mão. Ela despertou, mas fez que não. Colocou a flor perto do rosto dela, passou-lhe a mão pelas pernas, sacudiu o corpo dela com leveza. A esposa fingiu que acordou, pegou a rosa, cheirou. Depois se levantou, foi à cozinha, pegou uma garrafa, encheu-a de água, colocou a rosa dentro, se deitou ao lado do marido. Ficaram mudos por um tempo até que ela perguntou por onde ele andara. Explicou tudo, disse-lhe que nele ela poderia confiar, pois um dos motivos de ter-se casado com ela era mesmo para largar a malandragem, a bebida, a maconha e as prostitutas. — Não foi por amor, não? — Só o amor me afastaria disso tudo. É o amor que me faz escrever. Apenas não queria largar a música, que era seu segundo amor — foi falando. Prometeu que na segunda-feira iria procurar Seu Antônio das Cabras, português que tinha uma fazenda no morro de São Carlos. Um homem bem relacionado, já tinha conseguido emprego para o tio de Brancura e não seria difícil conseguir um para ele também. Ficaram ali até a hora em que Dona Vera avisou que a comida estava pronta.
NA SEGUNDA-FEIRA, o regenerado se levantou cedo, subiu o São Carlos, ficou na fila do leite de cabra que Seu Antônio costumava dar para os filhos dos compositores do Estácio. Era a sua forma de agradecer pelas composições que faziam e que vez por outra iam à casa dele cantar para a família. Quando um empregado apareceu com o leite para as crianças, Brancura falou que tinha urgência em falar com Seu Antônio, que o recebeu com o bom humor de sempre. — Claro, meu filho, arranjei serviço pro seu tio e não tive reclamação dele. Já era hora do senhor também arrumar emprego. A vida de compositor é dura. Pra gravar e vender um samba é muito difícil. Alves grava um disco por ano, se ele gravasse dois, seria uma maravilha, todos vocês já seriam famosos. Como tá o Silva? Ontem eu ouvi a música dele lá na Casa Edison. Cebola tocou muito bem. Que coisa linda. — Estive com ele no sábado, numa roda de samba lá no Bar do Apolo. — Que bom, rapaz! Quer um pouco de leite? — Não, isso é muito forte. Da última vez que eu tomei, fiquei desarranjado. — É, isso é forte mesmo. Entra, entra aqui que eu vou anotar uma coisa pra você. Acompanhou Seu Antônio até a sala da casa. O homem foi até o escritório, voltou com uma agenda, papel e caneta. — Ó, vá lá nesse endereço, procure Seu Onofre, que é superintendente lá no cais do porto e entregue a ele esta cartinha de recomendação. O endereço é este aqui. Seu Onofre olhou bem para o corpo forte de Brancura. Disse-lhe que primeiro ele teria que trabalhar como carregador, não tinha vaga de fiscal de descarga, para cujo cargo fora recomendado por Seu Antônio, justamente por saber ler e escrever. Também, ninguém entra logo de fiscal sem ter experiência no serviço. Tinha posto no carregamento de carvão mineral só à noite. Brancura aceitou sem pestanejar. Seu Onofre disse ainda que ele era forte o suficiente para tirar o serviço de letra. Carvão é pesado, mas é muito volumoso, o navio se esvazia rápido que é uma beleza. Depois de uma semana, levantou cedo para tirar os documentos que faltavam e levá-los ao Departamento Pessoal do Cais do Porto, feliz da vida com a alegria que a esposa e a sogra demonstravam por ele ter arrumado emprego. Ivete queria sair daquela casa de cômodos no alto da ladeira, morar num apartamento da Rua do Matoso, lugar de rico. Pobre é que mora no morro ou então em casa de cômodos. É, iria morar na rua em que passavam as lotações, os bondes, rua de comércio de ponta a ponta. O casamento foi bom para subir na vida, pois juntando o dinheiro da lavagem de roupa da mãe, o salário de Brancura, que passaria a fiscal logo, logo, e seu dinheiro de professora primária, que começaria a receber assim que se formasse, daria para pagar o aluguel de um bom apartamento. Faltava um ano, só um ano para isso acontecer. Pegou no serviço com afinco, numa noite de chuva e mar de sudoeste às oito horas da noite. Era a primeira vez que suava grosso sem ser no batuque, na briga, na roda de capoeira, na correria da polícia ou do futebol. O navio era aquela coisa grande, bonita. Gostava de, na hora do descanso, ir até a proa para mirar a baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar de guardião do mar. Ficava no batente até as seis da manhã pensando que, se sempre tivesse feito isso, sua mãe não teria morrido tão infeliz como as flores de sua infância. E o tempo foi-se em toneladas de carvão mineral, em noites a fio para fora do cargueiro. Com o primeiro salário, fez uma compra desnecessária na mercearia do Seu Brandão: pegou aquelas comidas de criança, que sua mãe raramente comprara: doces, achocolatado, aveia, biscoitos, farinha de mingau. E também bebidas, bacalhau, só carne de primeira, presunto, queijo. A sogra fechou a cara por conta do desperdício de Brancura. — Compra de verdade é dez quilos de arroz, cinco de feijão, macarrão, carne de ensopado,
legumes, verduras… Você só comprou besteira e gastou o dinheiro todo. Só trouxe essa ninharia pra dentro de casa. Isso não dura uma semana. Parece criança! Ivete, ao contrário, também sem saber das coisas, adorou as compras do marido, ralhou com a mãe por querer sempre ser a dona da razão e só se deu conta da realidade quando tudo se acabou depois de dez dias. Reclamou com Brancura, que rebateu com picardia: — Você tá igualzinha a sua mãe. Daqui a pouco eu vou mandar essa cafetina de genro embora aqui de casa. O dinheiro é meu, e eu compro o que quiser. — Então tu não vai comer o que ela comprar, não. E outra coisa: a casa é dela, seu ingrato. Saiu batendo a porta, sem levar a marmita que a sogra tinha lhe preparado.
A NOITE ESTAVA QUENTE, sexta-feira danada no Largo do Estácio: os bares cheios e a movimentação de putas, malandros e trabalhadores era grande. Brancura notou que tinha tempo para tomar uma Paraty antes de pegar no batente. Passaria no Bar do Apolo, veria os amigos, beberia só uma, que Seu Tranca-Rua não haveria de ligar, já que estava trabalhando de carteira assinada, tinha parado de fumar palmeirense, não explorava nenhuma meretriz, tinha dado um basta nos assaltos e nunca mais havia arrumado briga. Desceu a São Cláudio, pegou a Maia Lacerda, chegou ao Bar do Apolo, onde estavam Silva, Bastos, Bide, Edgar, Baiaco e Lopes. Acompanhavam em caixa de fósforos, nas garrafas de pinga ou na mesa um novo samba de Silva e Bastos. Chegou entrando no ritmo, batendo palmas. Quando o samba terminou, Silva foi para o balcão, pediu mais uma cachaça, seus olhos eram de quem mirava outro universo, mas via em pensamento a letra do samba que Bastos tinha mexido, mas não acabado. Os amigos abraçaram Brancura, que falou do trabalho, da vida de casado e reclamou da sogra. Silva mantinha o olhar no nada, até que teve um estalo. Voltou-se para Bastos e disse: “Acho que eu arrematei a segunda. Canta aí de novo, que eu emendo direto”. O parceiro voltou a cantar, Silva engatou a segunda daquele samba, que foi cantado várias vezes até que letra e música ficassem ajustadas para os dois compositores. Se você jurar
Que me tem amor Eu posso me regenerar, Mas se é Para fingir, mulher, A orgia assim não vou deixar Muito tenho sofrido Por minha lealdade Agora estou sabido Não vou atrás de amizade A minha vida é boa Não tenho em que pensar Por uma coisa à toa Não vou me regenerar Se você jurar Que me tem amor Eu posso me regenerar, Mas se é Para fingir, mulher, A orgia assim não vou deixar A mulher é um jogo Difícil de acertar E o homem como um bobo Não se cansa de jogar O que eu posso fazer E se você jurar Arriscar e perder Ou desta vez então ganhar
As horas iam passando, o trabalhador bebeu mais do que havia prometido a si mesmo. Saiu dali com vontade de ficar. Silva ainda insistiu: — Fica aí, vamos fazer um sambinha. O malandro titubeou, mas resistiu. Poderia entrar pela Pereira Pinto, trajeto mais rápido para pegar a condução nas proximidades da Praça Onze, mas resolveu descer toda a Rua do Estácio, entrar na Santana para evitar se encontrar com Valdirene. Chegou no cais um pouco atrasado, antes que mudasse a roupa para pegar no batente, um amigo lhe disse que o superintendente queria falar com ele. Brancura pensou que seria mandado embora. Em seu pouco tempo de trabalho, viu várias dispensas por causa de atraso. Entrou na sala de Seu Onofre com uma mosca atrás da orelha. — Sim, senhor, Seu Onofre. — Então, Brancura, eu observei o seu desempenho nesse primeiro mês e fiquei muito satisfeito. O senhor não tem preguiça, é organizado, lida bem com os companheiros, então eu resolvi atender a recomendação do Antônio das Cabras, que é muito meu amigo. Eu tive com ele ontem, ele me falou muito bem de você, por isso eu vou te dar o cargo de fiscal de descarga de carvão. Você vai ganhar mais, não vai precisar fazer esforço físico nenhum, só vai usar a cabeça e o lápis. Tem um pessoal aí bom também, mas eles não sabem ler, mal assinam o nome, você entende? Você é compositor, né? — Às vezes, não é sempre, não. — Você conhece Tia Almeida? — Claro! — Me leva lá no terreiro dela? — A hora que o senhor quiser. — Tô querendo fechar o corpo… Seu Onofre pediu para o rapaz preencher a ficha da Associação Beneficente de Carvão Mineral como fiscal e guardar a de carregador de lembrança. Depois de preenchida, ele a assinou, entregou a Brancura, que agora tinha documento de chefe para enfiar na cara da polícia quando ela viesse querer lhe aplicar vadiagem por não ter o que fazer na vida. Era de fato o homem que sua mãe queria que ele fosse. Saiu da sala do chefe saravando a força de Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas. Foi só fazer o que tinha recomendado para que a vida começasse a sorrir para ele: em menos de um mês e meio de trabalho já era fiscal encarregado do serviço de descarga. Trabalharia só na caneta, mandando e desmandando. Daria até para escrever uns sambas quando o serviço estivesse tranquilo. Energia positiva gera coisas positivas, já dizia Exu. Largou do batente mais tarde porque Seu Onofre o ensinou a preencher o relatório, tarefa que teria que fazer a partir de então ao final do expediente. Na volta, resolveu passar de novo no Bar do Apolo para comer uma fritada com pão, fazia tempo que não degustava essa iguaria. Entrou dessa vez pela Pereira Pinto, onde os remanescentes da noite bebiam e se perdiam em conversas tortas. Alguns dormiam pelos cantos da rua. Olhou para o Cabaré da Vivi para ver se Valdirene estava ali. Percebeu Sodré sozinho num canto, bebendo cerveja, fez que não o viu. Chegou ao Bar do Apolo, para sua surpresa todos os amigos ainda cantavam samba e bebiam. Estavam alegres acima da conta, mas nenhum estava embriagado, pois malandro que é malandro nunca se embriaga cem por cento. Os ternos pareciam ter sido vestidos naquele momento. Os que trajavam terno branco não apresentavam nem pisco de sujeira. — Chegou o nosso trabalhador, o homem que gosta de levar peso nas costas. Foi legal lá? — ironizou Bide.
— Que negócio é esse de peso nas costas? Sou macho, se tiver que levar peso, eu levo é na cabeça, mas nem isso tô fazendo mais. — Largou o emprego! Eu sabia, se tua mãe não conseguiu fazer você deixar a zona e arrumar trabalho, não seria mulher que iria fazer você largar — concluiu Edgar. — E quem falou que eu larguei? Agora que não vou deixar mesmo, de escravo passei a feitor. Sou fiscal de carregamento. Só mando e desmando, não levanto um grama, não derramo uma gota de suor. Só digo o que é certo e o que é errado. Dá tempo até pra fazer samba. E digo mais… — Não me diga nada, não, meu fiscal. Canta um sambinha novo aí. Mas não é marchinha, não, né? É no ritmo que te ensinei? — interrompeu Baiaco. — Não tem samba novo, não. Me dá fritada e café com leite. — Que é isso! Toma uma Paraty, tu já largou do serviço — sugeriu Bastos. — Tá bom, vai, bota uma Paraty pra mim, ou melhor, bota logo cinco pra esses malandros todos aí. Brancura se esqueceu de voltar pra casa. O dia já tinha tomado prumo de sábado de sol e eles ali tentando esticar a farra da madrugada.
IVETE, LÁ PELAS seis da manhã, arriou a calcinha, deitou-se na cama em posição sexual para esperar o marido que, imaginava, não tardaria a chegar. Nada como um bom sexo para fazer as pazes. Ficou assim até pegar no sono de novo. Acordou ao meio-dia com sua mãe batendo na porta do quarto e falando: — Seu Brancura não chegou até agora. Deve tá na farra ou na zona. Levantou-se irritada, se arrumou às pressas, foi para a rua procurar o marido. Seria muito melhor se ele estivesse no bar do que com a puta da Valdirene. Entraria na zona se fosse preciso para dá uma sova nela. Resolveu passar no Café do Compadre primeiro, depois iria ao Bar do Apolo. O sambista estava cantando uma composição antiga sua a pedido de Baiaco quando Ivete interrompeu: — Sabia que você estava enchendo a bacia com esses vagabundos. O samba parou. Brancura, surpreso com a atitude de Ivete, demorou um pouco para falar alguma coisa, os amigos faziam cara de riso. — Vai pra casa, isso aqui não é lugar de mulher de família, não! — E é lugar de chefe de família? Tô em casa te esperando e você aqui na vagabundagem. Aposto que nem foi trabalhar. Eu tô cansada de você. Sem-vergonha, pilantra… Ivete gritava, chamando a atenção dos que passavam por ali, a porta do bar foi ficando cheia. O marido, já nervoso com a situação, ficou mais agitado ainda quando Ivete foi metendo a mão no bolso dele, gritando que ela estava esperando o dinheiro das compras porque em casa não tinha o que comer. Brancura lhe deu um empurrão, alguém gritou que não se bate em mulher. Brancura partiu com um rabo de arraia para cima do intruso, que revidou também com golpes de capoeira, mas a briga entre os dois não durou. Silva tratou de separar. Se fosse outra pessoa, ao apartar a briga, talvez apanhasse também. Ivete soltava um riso irônico, foi ficando muda e séria quando viu Valdirene atravessar a rua e se aproximar do bar. Achou que ele tinha passado a noite com a outra e a agrediu com tapas e puxões de cabelo. O carro da polícia se aproximava, Brancura e seus amigos saíram de fininho antes de eles chegarem. Os policiais apartaram a briga. Ivete esperneou até ser posta na viatura. Valdirene fingiu que desmaiava. Pessoas a socorreram. Jogaram-lhe água no rosto, quando notou que tinha condições de fugir ela se levantou e correu sem dar chance aos policiais. Brancura chegou em casa, permaneceu calado diante das indagações da sogra. Pegou suas coisas, colocou-as num saco, saiu rápido, enquanto Dona Vera perguntava aos gritos: — Cadê Ivete? Você tá indo pra onde? Cadê minha filha? Brancura descia a São Cláudio sem saber para onde iria. Não queria ver ou encontrar nenhum de seus amigos, nem Valdirene, nem ninguém. Foi o diabo da música que destruiu seu casamento ustamente no dia em que passara a fiscal. Devia ter ido direto para casa comemorar com a esposa o êxito no trabalho. Seu Tranca-Rua tinha lhe dito para não ficar plantado em botequim, onde surgem as energias negativas de espíritos obsessores. E agora? O projeto de ser feliz para sempre se acabara antes mesmo de tomar fôlego. Entrou na Sampaio Ferraz ainda sem saber que rumo seguir. Sentia uma leve dor de cabeça, causada pelo sono, pela bebida, pelo desalinho de espírito. Se sua mãe fosse viva, o cargo de fiscal de carregamento teria mais valor. Questionou essa certeza de que só uma mulher de família tira um homem da boemia. Por que não alugar uma casa, comprar suas coisas, viver sozinho até aparecer uma mulher que desse valor a um homem sério, trabalhador e sem vícios? Só a música era seu ponto fraco, mas música não é vício, é necessidade, prazer e trabalho. O fato de ter sido promovido amenizava a dor da separação. Entrou num botequim, pediu uma cerveja. Já estava com a vida ruim, uma cerveja a mais não iria piorar. Assim que encheu o copo, uma viatura de polícia parou, um policial que já o havia prendido várias vezes o abordou.
— Bom, hoje é sábado, não posso te aplicar uma vadiagem, mas como sei que você é vadio contumaz, incorrigível, assaltante, ladrão, macumbeiro e sambista, vou te fazer uma revista. — Meu senhor, trabalhei a noite toda. Tô tomando essa cerveja aqui porque briguei com a patroa, senão estaria dormindo em casa. — Só se foi na zona que tu trabalhou. Tu é vagabundo. — O senhor quer ver meus documentos? Eu provo o que estou falando. O policial examinou os documentos de Brancura, mesmo assim não acreditou. Disse que o documento era falsificado. — Eu vou falar, e que Deus me castigue se eu estiver mentindo. Já fui preso várias vezes aí por negócio de samba, cafetinagem, vadiagem, mas eu parei. Casei, arrumei emprego e só tô hoje aqui a esta hora porque briguei com a mulher em casa. Mas vou fazer uma pergunta ao senhor. Há quanto tempo o senhor não me vê na zona? Há quanto tempo o senhor não me vê na rua? O senhor pode até me pegar num flagrante de novo, mas só vai ser pela música ou pela religião, o resto eu parei, e este documento não é falso, não. O senhor pode ligar pra lá pra ter a certezura completa. O policial sentiu fé nas palavras de Brancura, afirmou que, se o pegasse na zona, lhe meteria uma vadiagem. Terminou a cerveja e foi para a casa de Silva.
BIDE CORTAVA uma lata de manteiga com faca e martelo. Enquanto Silva sussurrava uma letra ao mesmo tempo em que procurava notas no violão. — Sabia que vocês estavam acordados. — Quando eu morrer, recupero todo o sono atrasado de uma vez só… Tá tudo bem? — Como pode tá bem? A mulher tava com a macaca! — Eu nunca vi em toda a minha vida uma puta te desrespeitar que nem essa esposa que tu arrumou aí te desrespeitou… Mulher de família… Cruz-credo, Ave-Maria, se um dia eu botar casa pra uma mulher e ela fizer isso comigo. Coisa feia! Fiquei assustado… Parece até aqueles eguns descompassados que descem lá no terreiro. Eu nunca vou casar. Se casamento fosse bom, pobre não casava. É por isso que eu não gosto de mulher. — Começou a viadagem! — O cu é meu, eu dou pra quem eu quiser — exclamou Silva. Ficaram um tempo em silêncio. — Agora é só arrumar um couro, prender aqui e tá pronto — disse Bide depois de cortar a lata, fazer um quadrado e prendê-lo com pregos. — Tem que pegar um couro lá no terreiro quando tiver matança. Mas o instrumento é desse tamanho mesmo? — perguntou Silva. — É, meu avô falava que os cucumbis tocavam um negócio assim. Ele tinha um lá na casa dele… Eu me lembro mais ou menos. Vamos ver se dá certo, vou tentar fazer igual. O couro de cabrito é muito duro, tem que ser um couro mais fino. A batida dele é repenicada — respondeu Bide a Brancura, que tirou os sapatos, se ajeitou no sofá para dormir. Silva depois de alguns minutos fez a mesma coisa em sua própria cama. Bide saiu com o quadradinho de lata na mão. Chegou à casa de Tia Almeida. Perguntou a uma filha de santo se tinha couro de bicho da última matança. — Da última matança não tá seco, não. O que tá seco é pra encouraçar nossos atabaques que chegaram de Salvador aí, ó. — É só um pedacinho pra esse tamborzinho aqui. Metade da metade da metade. Chegou em sua casa, prendeu o couro no pequeno quadrado. Acendeu o fogareiro, passava o tamborzinho no fogo, batia para escutar a altura. Queria um timbre o mais agudo possível para diferenciar dos outros tambores dos blocos e dar floreado para qualquer tipo de samba. Esticou o couro ao máximo, batia com o dedo, repenicando, tentando acompanhar os sambas que cantava. Era mais fácil tocar as músicas de Silva, as suas e as de seus amigos do que as de Barbosa, Alfredo e de toda a rapaziada da antiga da casa de Tia Almeida. Era um instrumento bom na preparação da segunda, na hora de entrar o estribilho, precioso para esquentar o ritmo no levante da primeira. Se tocasse com um pedaço de pau, o som ficaria ainda mais agudo. Saiu à rua à procura daquilo que complementaria o novo tambor. Catou vários pedaços de madeira. O que lhe pareceu mais apropriado pelo peso, tamanho e som que produzia, tratou de lixar, boleou a ponta e ficou ali, inventando ritmo até pegar no sono, depois daquela noite sem dormida. Brancura acordou por volta das quatro horas da tarde. Saiu com cuidado, para não acordar o amigo, voltou para casa caraminholando um jeito de deixar tudo bem com a esposa, mas as cenas de Ivete irada no bar rebatiam na cabeça dele durante o trajeto. Começou a pensar em Valdirene, que era pau para qualquer obra, cana para qualquer cachaça, arma para qualquer briga, e ainda lhe dava dinheiro com o maior prazer do mundo. As putas são assim. Voltou para a casa de Silva. Entrou na ponta dos pés para não acordar os amigos, pegou lápis e papel em cima da mesa, sentou no sofá olhando para o nada por um longo tempo, depois escreveu um samba novo de uma tirada só, coisa difícil de acontecer na vida de qualquer compositor. Deitou-se. Após três horas, despertou
devagarzinho com o barulho do violão e da voz de Silva no quintal da casa. Brancura ficou um tempo ouvindo o amigo, o mestre que um dia seria seu parceiro. Assim que o outro deu uma pausa no canto, ele apanhou a letra que havia feito, quase não conseguiu se lembrar da linha melódica, se levantou cantando para Silva escutar: Deixa essa mulher chorar Deixa essa mulher chorar Pra pagar o que me fez Pra pagar o que me fez Zombou de quem soube amar, por querer Hoje toca a tua vez de sofrer Não te lamentes O mundo é mesmo assim Chora, que eu já chorei E tu zombaste de mim Amei e não venci Outro não amou, venceu Foi protegido da sorte Foi mais feliz do que eu Oi, deixa essa mulher chorar Deixa essa mulher chorar Deixa essa mulher chorar Pra pagar o que me fez Pra pagar o que me fez Zombou de quem soube amar, por querer Hoje toca a tua vez de sofrer Estou bem feliz Não me fazes mais sofrer Agora sou eu quem diz Que não quero mais te ver Amar como eu te amei Era para enlouquecer Juro que nunca pensei Que pudesse te esquecer Oi, deixa essa mulher chorar — Canta de novo, vou tirar ela agora. Brancura foi repetindo o samba várias vezes para Silva tirar no violão. Era um jeito de acabar de fato a música, que vez por outra não se adequava à melodia, mas com a repetição foi ficando arrumadinha. — Samba bonito! É pra Ivete! Só pode ser pra Ivete. Falta só terminar a melodia, a letra tá pronta. Coisa linda! É só sofrer um pouquinho que sai coisa bonita! Homem é bicho bobo mesmo. A aprovação de Silva era, para Brancura, a mais importante de todas, se aquele gostasse o mundo inteiro poderia detestar que ele não ligava. Está certo que Baiaco era o principal inventor do ritmo que encantava Brancura, no entanto o que gostava em Silva eram as letras que o danado fazia, sua métrica, sua rima, seu assunto. Cantou o samba mais duas vezes, agora letra e melodia iam se
adequando. Foram para o Bar do Apolo. Brancura mandou descer três cervejas. Silva disse que, se fosse gravado, o samba cairia no gosto do povo. Brancura era só emoção. Tinha feito o samba horas antes, sem ficar muito tempo remoendo palavra, sem ficar reconstruindo muito a melodia para encaixar na letra, e Silva tinha gostado. Um simples elogio vale mais que um quilo de ouro quando vem de um mestre, de um compositor consagrado, com música na boca do povo. Suas composições, mesmo sem serem gravadas, eram cantadas em todas as rodas, em todos os botequins com batucada. Isso mesmo, Silva já estava ganhando certa fama porque Cebola tinha tocado um samba dele no piano. *** Silva era o melhor compositor do Estácio — bairro aonde chegara aos três anos de idade, depois da morte do pai, porque sua mãe teria de arrumar emprego no Rio de Janeiro, já que moravam em Jurujuba, onde ela nasceu, lugar que não lhe oferecia alternativa de trabalho. A mãe deixou seus quatro filhos com parentes e amigos em Niterói. Veio com o caçula, de rota batida, atrás de emprego, aqui para o Estácio, onde ele se integrou sem dificuldade. Dona Emília achava que estudo não era coisa para negro e se recusava a matricular Silva no colégio. Então ele procurou escola sozinho, aos sete anos, para ser o primeiro da classe, se tornar monitor de sua turma, ensinar os estudantes mais atrasados e, no final, ser aluno modelo da escola com nota máxima em todas as matérias. Até em catecismo o malandro tirava dez, nota dez. Fez sua primeira canção aos catorze anos de idade, agora vai reinventar a música brasileira e fundar com seus amigos a primeira escola de samba da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Tudo em sua vida fora decidido a fundo pelo raciocínio de primeira, pela clareza das ideias. Chegava no meio da malandragem, no meio das mães de santo, no meio das crianças, dos jovens, dos mais velhos, das autoridades com a mesma cara, com a mesma atitude. Nunca jogou conversa fora nem falou besteira. Um mestre de vanguarda na periferia do centro carioca de mil novecentos e vinte e oito.
— TU NÃO TEM CORAÇÃO, seu nego safado. O que você fez comigo não se faz com um cachorro. — Eu queria largar essa vida de… — Me levava contigo que eu também saía. Ia afinar o dedo no tanque de uma madame aí qualquer. Falasse comigo, nem que fosse pra dar adeus… — Se eu fizesse isso, eu não ia conseguir sair. — Me deixou sem proteção, tive que encarar homem aqui no tapa. Se não fosse Sodré, nem sei como seria a minha vida. — Te ajudou, é? — Ajudou mesmo e daí? Tu deu no pé… — Agora ele é teu cafetão? — É, mas também me viro sozinha. Descobri que sou mulher demais pra precisar de homem pra me dar proteção. Sou a primeira puta dessa zona que vive sem cafetão. — Como é? Sem cafe… — Ele é muito mais meu homem do que cafetão, é meu namorado e é só meu, não é de mais ninguém… E eu pago muito bem a ele por isso. Estou trabalhando mais por causa disso… Brancura virou as costas. — Mas, se precisar, ele vira só meu cafetão, meu protetor. — Tá bom, tá bom… Se o mundo resolver girar ao contrário pra você poder me chamar, tô solteiro, tô de novo na jurisdição. Posso te dar proteção, e você pode namorar quem quiser. — O meu mundo não desvira mais, não! Saiu andando pela zona, onde encontrou outras prostitutas para quem ele dava segurança. Ao contrário de Valdirene, todas o receberam com carinho, diziam-se saudosas. Zilda, puta velha que alimentava um ódio secreto de Valdirene, fez fofoca dela, dizendo que agora Sodré não saía de sua casa. Uma vez até viu os dois na Praça Sáenz Pena de mãos dadas, trocando beijos, comendo algodão-doce. Ele fez que não os viu, mesmo com o fora de Valdirene, se sentia feliz em escutar que algumas delas não precisaram de outro homem para ter proteção, era só falar que eram putas dele que os clientes não se metiam a cachorro magro. Não tinha parada de comer e se mandar, não. — Teve um que tentou foder Leonor e ir embora. Deu até um empurrão nela. Aí ele foi lá pro Cabaré da Vivi. Ela foi atrás dizendo que ia falar com você. Ele falou assim: “Quem é esse tal de Brancura?”. Tinha uns cabras lá que falaram só um pouquinho de você, aí ele pagou até um elevado a mais. — E você? Alguém te perturbou? — Nada! Tá até faltando homem pra mim. Já fui flor-do-campo, agora sou tiririca do brejo. — Que nada! Você pra mim sempre vai ser flor. — Então vamos foder, vamos? Tava morrendo de saudades. Brancura pensava em Valdirene enquanto fazia sexo. Como foi burro, pois poderia ter mantido as duas. Valdirene era a sua mulher mais rendosa, por ser a puta mais linda daquela zona. Como pôde ter se encantado por Ivete a ponto de largar sua companheira de vida, trocá-la só porque Ivete era mais linda, mais gostosa, mais nova? Era tudo isso de bom, mas não tinha juízo! Como pôde querer se regenerar se nunca teve preparo para o trabalho e para a responsabilidade de horário? Bide trabalhava, Silva também, Bastos era mecânico do Arsenal de Guerra, depois que saiu foi pegar no batente nos Correios como um homem normal, e ele não porque a vida o levou para a malandragem. Foi seu pai quem lhe ensinou a profissão passando as mandingas da zona. Fora um besta, um garoto encantado pelo amor. Mas o que é o amor? Seria essa dor que aumentava a cada instante ao relembrar as palavras de Valdirene? Esse ciúme de saber que ela comia algodão-doce com Sodré
nas tardes de domingo? Poderia largar tudo que era malandragem, sim, abandonar a cafetinagem e ser só seu namorado, deixar Sodré de cafetão, ir comer algodão-doce com ela na praça, ir com ela para os bailes do Kananga, sem ter que encarar vagabundo. Agora perdia Valdirene para aquele português de merda, aquele borra-botas sem fim. Teve ímpeto de ir lá, pegar Valdirene e fazer sexo com ela à força. A mulher iria acabar cedendo, se deleitando com os afagos dele, com seu jeito de fazer sexo. Pensava tanto em Valdirene que perdeu a ereção. — Eu devo estar muito ruim mesmo. Você me fodia com fúria, me fazia gozar várias vezes e agora desenferrou comigo, se não sirvo mais pra você, não sirvo pra mais ninguém mesmo — disse Zilda, aos prantos, depois que ele saiu de cima dela e começou a se vestir. Foi direto atrás de Valdirene, entrou na casa, sentou na sala onde somente um cliente esperava. Marie, cafetina da casa, entrou na sala. Olhou para Brancura com certo desprezo. — Você quer o serviço de quem? — Valdirene. — Hoje não tem mais horário, não. Tenho que falar com ela pra ver o dia que pode. — Vá lá, fala que sou eu. — Espere, que ela tá atendendo. Brancura surpreendeu-se diante da indiferença de Marie, que sempre o tratara com carinho. Ela tinha o costume de pular no colo dele, apertar seu pênis, coisa que não fazia com mais ninguém. O cliente saiu do quarto de Valdirene. Marie entrou, demorou menos de um minuto. — Só daqui a cinco dias. Ela tá com o horário todo lotado. O malandro sabia que era mentira, esse negócio de horário lotado era mormaço, mas preferiu entrar no ritmo da andança que ela propunha. Era um jogo. Iria jogar até o fim conforme as regras dela e perder, pois mulher no amor é assim, quer jogar, fazer as regras e ganhar. Saiu dali, foi para a casa de outra de suas mulheres antigas onde ficou encafuado, se alimentando bem, sem tomar um só gole de bebida alcoólica, dormindo a maior parte do tempo, sem sexo até o dia de encontrar Valdirene. Seria amor essa coisa de querer prender mulher no pênis? É amor largar a vida por cinco dias só se preparando para fazer a ex-mulher atingir orgasmos múltiplos e voltar a ser sua de novo? A indiferença de Marie também lhe cortava o peito. Naquele dia, deitou de barriga para cima, lembrando de quando ela apareceu com os bandidos da organização judaica Zwi Migdal, que controlava o mercado de escravas brancas, distribuindo prostitutas europeias para toda a América do Sul, na época do pós-guerra. Eles vieram comprando e alugando casa para manter alguns de seus operadores como donos de puteiros, contratando capoeira para segurança, mulheres para lavar, cozinhar e passar nas casas de prostituição. Cresceu o número de bares, restaurantes, camelôs, enfim, elevou a economia da zona do baixo meretrício para um patamar divino. Os polacos da Zwi trabalhavam com as mulheres no grande tráfico, os poucos que ficaram ali como cáftens não se adaptaram às casas de prostituição como nos outros bairros ao redor do Centro. Os negros malandros do Estácio foram dominando a cafetinagem e tomaram conta das brancas, que sentiam forte atração sexual por eles. Elas foram se chegando de lá da Senador Dantas, do Flamengo, da Lapa e da Glória. Tudo porque o governo queria acabar com a prostituição nesses bairros antes do centenário da Independência Brancura mesmo, como dono do pedaço, negociou com os cáftens, judeus polacos, que vendiam prostitutas da Polônia, Áustria, Hungria, Romênia, Rússia, França, Itália, Espanha, Portugal chegadas ao Brasil através da Argentina. Era uma maravilha! Dentre todas as mulheres de boceta rosa com que tinha transado, Simone fora a que lhe dera mais prazer. Fora a primeira das mulheres brancas que meteu gostoso. E como ele,
havia aquele monte de homem negro cafetão de puta branca, fazendo vida na zona do baixo meretrício.
No Dia D acordou cedo, se masturbou, para não gozar rápido demais com Valdirene, para aumentar a potência tomou um copo de gemada, comeu uma dúzia de ovos de codorna batidos na cerveja preta. Almoçou três horas antes do normal para não ter congestão. Esperou bater duas da tarde, caminhou lentamente para a casa de Marie, para pegar Valdirene de jeito. Começaria lambendo seu joelho, o ponto fraco dela, depois cairia com a língua sem nojo em sua vagina, coisa que nenhum homem fazia, por achar que era artifício de impotente para enlouquecer mulher — e também por nojo. Tem uns babacas que são assim, cheios de bolodochia na hora de meter. Para Brancura, era só dar uma lavadinha que ia língua na chulipa, e ela gostava que só, se enroscava toda, gemia, gritava: — Não para, não para, não para! Depois meteria a pica de trivela, de gangorra, de alavanca, para ela gritar as palavras de gozar gostoso em seu pau. Ia se garantindo em sua experiência de cafetão, de rinoceronte fodedor, de garanhão-mor da zona do Mangue, o mais imbatível chuletador de todos os tempos; homem de mais de quinhentas mulheres dentro e fora da zona, de pênis maior, mais grosso e mais cabeçudo do mundo. Quase trinta centímetros de língua; dedos longos e tilintantes que só. Ao entrar na sala, levou um susto ao ver mais de cinquenta homens espremidos no pequeno ambiente, ao lado, Marie, com uma pistola na mão. Foi se chegando, arrumou um cantinho para observar. De início, pensou que tivesse europeias novas na casa. É que corria na zona que mulheres novinhas, de olhos azuis e taradas que nem macacas tinham acabado de chegar. Não era isso. Um homem saiu do quarto de Valdirene, outro entrou, foi assim pelo resto da tarde. Teve impulso de ir embora várias vezes, pois nunca, em todo o seu tempo de zona, tinha visto uma mulher agendar tanta gente pro mesmo dia. E pior é que ela soltava gemidos que pareciam verdadeiros, coisa que nunca fez, gritava como se estivesse gozando de verdade, mas o que agravou ainda mais o ciúme de Brancura foi quando ela gritou: “Segura a minha cabeça, vai chamuscando com força a minha periquita, bate na minha bunda, bate na minha bunda”. Era o que ela sempre falava para ele quando ia gozar. Essas palavras eram navalhadas. Seu corpo era um terremoto. Seria amor passar por isso e não ir embora? Levantou-se, foi até Marie. — Eu marquei às duas. — Se não quiser esperar, vá embora. Resolveu ficar, mesmo se sentindo o mais otário dos malandros, escutando as falas que antes eram só para ele serem ditas a todos os que iam com sua ex-mulher. Por que esperar por uma fêmea, se tinha tantas outras ali ao lado querendo? Tem coisas que se faz que depois nem a gente mesmo acredita. Como é que pode um malandro velho marcar uma touca dessa por causa do amor? Ficou sozinho com Marie sem olhá-la no rosto até que o último homem saiu e ele enfim pôde entrar. Valdirene se deitou com ar saudável na cama, linda como sempre, cheirosa de essência de canela, olhos de calmaria. O malandro tremia, a ereção não dava sinais, e sem tirar a roupa para não mostrar o pênis mole sentou na cama, botou a língua para fora e foi direto ao joelho dela, depois passaria para a vagina, subiria até o peito. E foi o que fez, mas, com ela parada sem pronunciar gemido ou palavra, a ereção não vinha. De olhos abertos, olhando para o teto sem piscar. Seria amor essa perda de potência? Forçava a ereção contraindo o abdômen. Seu pênis endureceu lentamente, ele tirou a roupa sem tirar a boca de sua vagina, subiu em cima dela e a penetrou, lhe chupou as orelhas, enfiou o dedo no ânus, voltou com a língua para a vagina, lambeu a bunda, beijou o pescoço, a boca, pediu que ela virasse, que ficasse de quatro, coisa que ela também gostava… nada de vibração naquele sexo. O pênis amoleceu. Saiu de cima dela. Foi embora dali em silêncio. Valdirene se levantou, colocou o penhoar e foi até a janela ver Brancura andar vagarosamente com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa pela Pereira Pinto. Olhava o seu amor com riso de vingança.
Nunca esteve com mais de dez homens num dia, nunca disse a outro as palavras de sexo que só eram pra ele. Falou alto e em bom tom para ele se rasgar de dor de amor ali na sala esperando por ela. Queria ter gozado de verdade, e não se pode dizer que não tentou, para a vingança ficar sacramentada. Ruindade de amor! O orgulho ferido dela cicatrizava a cada passo na rua cheia de gente chamando-o enquanto ele fazia que não escutava, até sumir na multidão. Os olhos de lágrimas na rua de homens bêbados, malandros nas esquinas, mulheres seminuas nas portas das casas. A rua vadia, marginal e quase sem luminosidade. O esforço que Valdirene fez para não se entregar aos carinhos dele tinha sido por demais compensador. Deixou que ele agisse como marido e não se rendeu. Isso mesmo, pois quando ela se dá com os clientes é só pênis e vagina que sociabilizam. Nada de linguinha, dedinho, beijo na boca e ficar de quatro. Quando isso acontece, o preço de cada atendimento é quadruplicado. O amor é se vingar de uma traição com maestria! O amor é esse ódio de não conseguir gozar com mais ninguém! Depois se deitou na cama, masturbou-se em homenagem a ele, bebeu uma garrafa de champanhe, dormiu feliz por saber que ele a amava, senão, não teria vivido aquele suplício. Brancura decidiu dormir na praia, não queria ver ninguém, desejava ser um rato, se meter no esgoto e nunca mais ver a luz daquela miserável lua. Como ele pôde passar por aquilo? Onde estava o seu orgulho? Que ideia maldita essa de entrar na andança do jogo dela? Ia com o terno branco desalinhado, a gravata frouxa, tamanco arrastando nos paralelepípedos. Era um samba atravessado. A cabeça baixa se levantou quando ele passou pelo Cabaré da Vivi, seus olhos viram Sodré com um copo de cerveja na mão, falava alto com três homens. Pensou nele na Praça Sáenz Peña de mãos dadas com Valdirene. O casal feliz comendo algodão-doce, rindo por nada. Podia ser mentira de Zilda, mas ele tinha que se vingar de qualquer jeito. Tirou os tamancos, partiu em disparada, pulou com os dois pés nas costas do rival, que tentou se levantar, mas diante dos chutes que recebeu acabou desmaiando. Brancura se foi agitado e sem rumo. Ainda queria ser um rato. Foi saindo da zona pelos cantos, pegou a Rua do Estácio, seguiu até a praia do Flamengo, deitou-se na areia, respirou fundo o lestada que se manifestava. Chorou até adormecer. Sodré, depois que Vivi lhe jogou um balde de água no rosto, levantou-se, pulando para os lados, pensando que seu agressor ainda estava ali, querendo brigar. Saçaricava, foi para o lado de fora do bar, ainda desnorteado, o rosto sangrando. — Foi Brancura, te pegou por trás! Bebe isso aqui, vai. Ele foi se acalmando, mesmo sem beber o café que Vivi lhe ofereceu. Pediu que ela lhe servisse uma dose de Paraty, virou num só gole. — Eu nunca ataquei ninguém pelas costas. Esse macaco vai morrer antes de uma semana. Vou matar ele, vou matar ele. Logo hoje que eu saí sem navalha e sem pistola — esbravejava com seu sotaque de português, que se intensificava quando enervado. Os presentes davam razão a sua promessa de vingança. Um homem disse que covardia custa caro e deve ser cobrada com uma covardia maior. Foi se acalmando em goles, agora de cerveja, até que resolveu sair dali com o intuito de se vingar de Brancura. *** Sodré nasceu em Évora. Chegou ao Brasil com três anos de idade para morar em Quintino com os pais, na casa de um tio que estava havia dez anos estabelecido no Brasil. Seu pai não teve dificuldade para construir a vida na cidade do Rio de Janeiro. O irmão era proprietário de uma
carpintaria e de duas casas. Além de morada, este também lhe dera emprego. O português apresentou problemas desde o nascimento prematuro. Por pouco sua mãe não morreu no parto. Teve bronquite e espinhela caída, demorou três meses e meio para abrir os olhos, três anos para engatinhar, quatro para andar, cinco para pronunciar palavra e, mesmo assim, só se dirigia verbalmente à mãe, que o tratava como doente mental de tanto mimo que lhe dava por causa de tais complicações. Não brincava com a garotada da rua, não fez amigos na escola, repetiu a primeira série duas vezes, a segunda também duas. Só conseguiu engrenar nos estudos depois de repetir a terceira. No entanto, continuava escuso com a família, com os vizinhos, com os amigos da escola e urinando na cama até os quinze anos de idade. Não comia sólido, não ria, não cumprimentava ninguém. Nunca quis aprender as orações que a mãe tentara lhe ensinar. Tomava banho uma vez por semana. O que mudou a sua vida de uma hora para outra foi a relação que teve com Seu Lotório, índio caiçara, marinheiro velho, dono da casa nos fundos da sua. O contato se deu por causa do cheiro que ele sentia pela manhã, ao meio-dia e às oito da noite. Gostava tanto do cheiro que ficava no quintal, escondido atrás da moita para senti-lo melhor. Certa tarde, depois de pegar muita coragem, se precipitou até o vizinho e foi falando: — Seu Lotório, há muito tempo que eu sinto um cheiro muito bom que vem aí da sua casa. O senhor pode me dizer onde eu consigo a coisa que dá esse cheiro. — É dessa erva aqui, ó. Seu Lotório mostrou a mão na qual tinha um punhado de cannabis e continuou. — É pra fumar. Cigarrinho de índio… — Como assim? — É um cigarro como outro qualquer, mas transforma a gente. Ele… — Transforma em quê? — Transforma o nosso estado de espírito. A gente vê as coisas do mundo com mais atenção, tudo que se move fica mais lento. Dá vontade de cantar, de cuidar das plantas, de fazer poesia, de desenhar, pintar, escrever, lavar louça… Trabalhar, estudar… — Tudo que eu não gosto de fazer. Só o cheiro que é bom, então. — Vamos fumar um cigarrinho, depois você me diz. Sodré esperou que Lotório preparasse o cigarro, fumou junto com ele em silêncio no quintal. Assim que acabaram, Sodré falou: — Quero outro, pode ser? — Então gostou mesmo, hein? — Gostei do cheiro que eu já gostava antes, mas isso que o senhor falou aí que ia acontecer, não aconteceu, não. — É mesmo, é? — É. Seu Lotório fez outro cigarro, acendeu, fumou um, passou para Sodré. Ele puxava, depois colocava a brasa do cigarro perto do nariz, respirava fundo a fumaça, tragou a metade do cigarro, passou para seu Lotório, que recusou. — Pode fumar à vontade. Depois que o cigarro acabou, os dois ficaram sentados sem trocar palavra. Sodré, com os olhos fixos num formigueiro, observava o vaivém das formigas. Via a organização, o que elas transportavam. Tinha umas que não faziam nada. Uma turma que entrava no formigueiro carregando as mais diversas coisas, voltava sem nada, entrava debaixo de um vaso de planta, retornava para o
formigueiro num trabalho sem fim. — Tá sentindo alguma coisa? — Não, tá tudo normal. — Então, toda vez que tu quiseres sentir o cheiro, volta aí. Eu vou tratar da vida. Sodré levantou-se com dificuldade, o corpo doía de ter ficado muito tempo sentado na mesma posição. Cambaleou, sentiu a cabeça rodar, fez cara de sofrimento. — Tá sentindo alguma coisa? — Um pouco de mal-estar. — Respira fundo. Sodré respirava compulsivamente. — Chega. Respira normal agora. — Tá bom! — Tá melhor? Foi andando devagar, trêmulo, sem olhar para trás. Seu Lotório o observava esboçando um sorriso. Entrou em casa, sem falar com os pais, como de costume, foi até o quarto, sentou na beira da cama de frente para a janela, de novo ficou imóvel pensando no formigueiro. Talvez as formigas falem a língua delas. Impossível que não haja comunicação naquela organização toda, um tiquinho só de razão. Como são unidas, se movimentam com tanta rapidez num pequeno espaço, não batem de frente. Uma ajuda a outra, cada uma cumpre o seu papel. Talvez elas se cumprimentem sempre que se encontram para ter tanta harmonia assim, tanta cumplicidade. A beleza animal. Olhou para a mangueira do quintal onde pardais saracoteavam em cantos e voos rápidos. Percebeu que nunca tinha reparado direito na cor dos pardais, das folhas da árvore, no azul do céu, no sol que respingava na folhagem da mangueira, no vento que balançava a cortina e afagava o seu rosto. Jogou-se na cama, pegou no sono. Sonhou que era um gigante de mil metros de altura. Andava com cuidado para não esmagar nenhum ser vivo na face da terra. Colocava as mãos no chão, deixava que as pessoas subissem para depois levantá-las bem pertinho das nuvens. Ajeitava a cidade, recolhia o lixo, abria estradas passando o dedo no chão, salvava os navios à deriva, soprava as nuvens de chuva, parava a ressaca do mar. Despertou com um sorriso, foi até a sala, lascou o seu primeiro beijo no pai, fez a mesma coisa com a mãe e disse: — A vida é dura, mas é bela! O sorriso estava tão estabelecido que nunca mais sairia de seu rosto. Os pais ficaram espantados. Ajudou a mãe a servir o jantar, a retirar a mesa, a lavar a louça, depois entrou no quarto, pegou os cadernos, começou a rever a matéria até a hora de dormir, quando rezou em família. Sabia a oração de cor e salteado. No outro dia, parecia que tudo fora um sonho: acordou de mau humor, entrou debaixo da mesa, onde ficou por horas com a cara virada para a parede. A mãe tentou comunicação, em vão. Sodré não se lembrava do dia anterior. Um emburramento dos piores que se pode ter na vida. Suas feições eram mais feias do que antes de Seu Lotório entrar em sua vida. Ficou assim por bastante tempo, até que uma voz, vinda do nada, começou a martelar em sua cabeça: — Fuma cannabis, fuma cannabis, fuma cannabis que é bom! Os momentos que passou com Seu Lotório e os seguintes com os pais vieram de uma só vez. Queria ser amável assim para sempre, chega dessa vida de raiva de tudo, de animosidade com as coisas mais delicadas. Levantou-se, foi à casa do vizinho, bateu palmas. Seu Lotório abriu a porta. — Tem mais cannabis aí, Seu Lotório?
— Entra aí. Entrou na casa do velho caiçara. Era uma morada simples, pela arrumação das coisas dava para notar que era casa sem criança, sem mulher. O marinheiro tinha um cigarro de maconha pronto, acendeu-o, passou para Sodré, que o fumou até a metade e devolveu. — Agora estou sentindo tudo aquilo que o senhor falou que eu ia sentir. Sinto até o tempo passar mais lento. Quando chegar em casa, vou lavar a louça da minha mãe. Onde o senhor arruma essa erva? — Tem uns caboclos que trazem lá de Palmeira dos Índios e vendem lá em Pilares todo dia quinze de cada mês. Mas ninguém pode saber, não. — Esse negócio é proibido? — Proibido não sei se é, não, mas se fumar e a polícia vir, eles aplicam vadiagem. Dizem que é erva de desocupado. Outros falam que é erva do diabo. Cigarro do capeta. — O diabo não iria fazer uma coisa tão boa assim. — Eles dizem que é coisa de vadio. De malandro. — Ah, sei. O senhor tem muito aí? — Tá acabando, mas eu vou comprar mais. Tem pra mais cinco dias pra nós dois. — Se eu tivesse dinheiro, eu iria comprar com o senhor… — Não se avexe, não! Você pode fumar a hora que quiser aqui comigo… — Obrigado. — Quer dizer, tem uns pormenores que, se você aceitar, nunca mais vai faltar cannabis pra você. — Quais? — Se você enterrar o seu cacete na minha bunda, deixar eu abocanhar ele na hora que você vier fumar, você vai ter cannabis enquanto eu estiver vivo. — Poxa! Eu tava mesmo a fim de comer um cu pra saber como é que é. Por que o senhor não falou antes? — É educação. Tava querendo pegar mais intimidade. O tempo foi passando. — Tem mais cannabis aí? — Lógico! Bota o cacete pra fora. — Só um minutinho. Seu Lótorio mordia os lábios, enquanto Sodré colocava o pau em riste. — Que coisa maravilhosa! — Chupa aí à vontade! O tempo foi passando. — Bota no meu cu. — Pois não, Seu Lotório. Dá só uma levantadinha. Podia passar uma vaselina pra escorregar melhor. — Não, vai no seco mesmo! Vai, vai! Não tenha pena, não. Bota tudo! Mulher que tem essa coisa de sentir dor. Comigo é no seco. O tempo foi passando. — Quer que eu meta no seu cu também? — Claro, pode pôr. Eu sempre quis saber como é. Daí para a frente, todo dia vinha outra voz pela manhã e à noite: — Dá o cu, dá o cu que é bom. Rezava antes das refeições e todas as noites na hora de dormir. Acordava cedo. Ajudava a mãe a
servir o café da manhã, passava na casa de Seu Lotório, tratava de seu vício e da obrigação prazerosa que não não podia mais deixar de ter. Chegava à escola, onde participava de tudo, não só brincava com os amigos, mas também organizava as brincadeiras, virou monitor da turma. Depois da aula, almoçava com a mãe, fazia o que tinha de fazer e ia ajudar o pai na oficina, onde aprendeu a arte da carpintaria. À noite, após o jantar, fum fumava, fodia com Seu Lotóri Lotório. o. Se a vida é feita de sofrimento e felicidade, é bom sofrer primeiro, depois ser feliz para sempre. Ter a perspicácia de saber agarrar aquilo que ela oferece de melhor, seguir feito um pássaro num adejar constant constante. e. Era aquele gigante do sonho espalhando felicidade, ternura, ajudando o mundo a seu redor a evoluir material e espiritualmente. A maior glória foi nos estudos, em que depois de tanta dedicação consegu conseguiu pular pular vários anos, alcançando alcançando o nível escolar escola r em que que deveria deveri a estar. Se soubesse, teria fumado maconha e dado o cu há mais tempo. A mãe, de tão realizada na vida com a melhora do filho, sempre que se deparava com Seu Lotório, agradecia por ter orientado Sodré, passou até a lhe dar presentes, desde que notou a transformação do filho. A vida escorregou bem na carpintaria, até que um dia Sodré olhou firme no olho do pai e disse: — Eu quero sair sai r daqui, da qui, trabalhar em outra outra coisa. Já terminei terminei os estudos, estudos, já j á sei s ei de cor c or esse ofício, quero aprender apre nder outro. outro. — Mas logo agora, meu filho, que a nossa carpint carpi ntaria aria tá crescendo, os client clie ntes es estão se multiplicando cada vez mais. Eu e seu tio não vamos dar conta, não. — Pai, Pai , eu quero sair sai r do subúrbio, morar mais mais perto do Centro, Centro, da praia. Em toda a minha minha vida só só fui à cidade duas vezes, só me banhei no mar uma vez… — A gent gentee não precisa do Centro, Centro, meu meu filho, filho, aqui aqui tem tudo. tudo. — Eu quero trabal trabalhar har em outra outra coisa. cois a. Ter uma uma vida mais… mais… — Tá querendo querendo trabalhar de quê? — Seu Lotório disse que pode arrumar arrumar um em e mprego de funcion funcionário ário público públic o pra mim, im, ele tem conhecimen conh ecimento to em várias repartições federais. — Olha, sei qu quee Seu Se u Lotório Lotório é um grande grande homem homem.. Tenh Tenho muito muito apreço apre ço por ele, mas o serviço servi ço que ele pode te arrumar é só de militar, meu filho, é pra trabalhar com armas, é… — Não, pai. Ele quer me colocar no Banco do Brasil. Eu sou so u bom em matem matemática, ática, sei escrever escreve r bem… bem… — Banco Banco do Brasil! Brasil ! Então Então vá, meu meu filho. filho. Banco Banco do Brasil é Banco Banco do Brasil. Brasil . Maravilha! Em menos de vinte dias, trabalhava de atendente no Banco do Brasil, ganhando três vezes mais que a carpintaria lucrava num mês. Seu Lotório arrumou-lhe o emprego fazendo a exigência de ele não cometer nenhum erro grave no serviço nem nenhuma falha de moral ou desonestidade, não arrumar confusão que lhe sujasse o nome, pois tinha sido o seu ex-comandante do quartel que havia feito a gentileza de arranjar o trabalho para o rapaz. A amizade com o comandante era de longa data e ele não queria perdê-la, nem manchá-la. Sodré prometeu por tudo que iria se comportar como o outro recomendara. E assim foi: nunca chegava atrasado, sempre educado e solícito. Tinha uma dedicação banhada de elogios de seus superiores, que também o admiravam pela sua facilidade em aprender as novas tarefas que o dia a dia requisitava. A felicidade que o dinheiro pode oferecer se instaurou em sua casa. Contratou uma negra para ajudar a mãe, que não aguentava mais a fumaça do carvão do ferro de passar roupa e do fogão, trocou
a mobília toda, para quando se mudasse para uma casa no Centro ou à beira-mar chegar com tudo brilh bril hando de novo. novo. Lembrava-se da infância e se sentia orgulhoso de sua transformação. Quem poderia imaginar que aquele vermezinho iria se tornar um jovem tão iluminado, tão querido pelos amigos, vizinhos, companheiros de trabalho e pela família. E tudo por causa de Seu Lotório, que lhe deu rota certa na vida. Saiu do serviço numa segunda-feira, foi direto à casa do velho marinheiro, que o recebeu completamente completamente despido desp ido,, com co m um um gigant gigantesc escoo cigarr c igarroo de maconha na mão. mão. — Tá com calor? — Hoje eu tô mu muito calorento, ca lorento, com um um nervoso nervoso me percorr pe rcorrendo endo o corpo todo… Tenh Tenho uma coisa c oisa pra te falar, tenho tenho que que falar, que falar falar… … Tô com calor! — Pois não, diga o que que está te afligindo, afligindo, Seu Lotório. — Eu queria mudar o nosso comprom compromisso. isso. Desde que a gen gente te fez o nosso trato que eu não te peço nada além do que a gente combinou, e você também nunca ficou um dia sem cannabis. Está tudo correto, mas eu quero mudar. — Não tá bom, bom, não? não? — Não, eu quero mais. mais. Era ciúme da vida nova que Sodré estava levando. Ele andava agora arrumado, com dinheiro no bolso, barbeado, cabelo bem cortado. Deixou de usar aqueles tamancos tamancos encardidos, e ncardidos, as calças sujas de verniz de ir e vir da carpintaria. Sumiu a aparência de cansaço que vinha de serrar, carregar, pregar e lixar madeira. adeira . O menino enino tinha tinha crescido, cresci do, conh conhecido ecido gen gente te nova, andava em outros lugares, lugares, havia tomado conhecimento pleno do saber escolar. Arrependeu-se de ter lhe arranjado emprego, agora estava ali al i in i nseguro seguro que só. — Quer Quer mais mais o quê? — Quero Quero que você me me beije na boca, que fut futuuque mais mais minha minha bunda bunda com seu cacete, que que me me abrace e diga d iga que me ama. — Eu te amo! amo! Abraçou-o, beijou-o, fez carinho em seu corpo. Introduziu o pênis no ânus com mais vontade. — Futu Futuca ca sem parar! — Com todo o prazer. — Vai, Vai, vai, vai, vai , vai. Não tenha tenha dó, nem nem piedade! Era uma máquina em cima do marinheiro, que se reboleou de prazer na cama por mais de duas horas. As futucadas eram dadas com o mesmo afinco, no mesmo ritmo, com a mesma força desde o momento em que introduziu seu cacete no rabo do amado, que dava urros de prazer. De uma hora para outra, Seu Lotório parou de rebolear, depois de fazer sinais com a mão para que o parceiro parasse. O futucador não notou e ficou ali por mais meia hora indo e vindo com força total. Só parou quando notou que o outro não mais respirava. Vestiu-se e foi embora. Depois de sepultá-lo, Sodré fazia esforço para aquela tormenta de vida de antes não se apoderar por completo completo dele de novo. Aquele caiçara caiçar a fora o seu primeiro amor, amor, a pessoa que lhe abrira abrir a as portas do bom viver, do prazer e da sociedade. socied ade. Gostava muito muito de futu futucar car aquela bun bundinh dinhaa velha de guerra, sentir a boca dele em seu cacete, saborear o pau dele entrando e saindo do seu cu com o bamboleado bamboleado dos deuses. Como Como iria iri a viver sem essas essa s bem-aventu bem-aventuranças? ranças? Ia levando a vida na farsa, era triste, tri ste, mas mas fazia que não. não. Coisa de doido! doido ! Andou An dou por Pilares Pilar es nos dias quinze quinze dos quatro quatro prim pr imeiros eiros meses à procura de cannabis, mas nada de encontrar encontrar os vendedores que Seu Lotório Lotório dissera. disser a. Enfu Enfurnou-se rnou-se nos mais obscuros obs curos lugares lugares do bairro bai rro e
nada de caminhão de cannabis. A dificuldade para manter o bom humor, o trabalho, o bom relacionamento com os pais, os amigos, com os colegas de serviço só começou a passar quando, caminhando pela esquina da rua de casa, sentiu o cheiro da cannabis que dois rapazes, ex-colegas de escola, fumavam na esquina. — Posso fum fumar um pouqu pouquinh inhoo com vocês? — Por que não, meu caro car o Sodré? — respondeu Cassi Jones, um neto neto de portugu portugueses eses que morava morava no bairro desde d esde que nasceu. nasceu. — Oi, rapaz, nem nem te reconheci. reconheci. Como Como andas? — Tudo Tudo bem be m. Você Você que não deve tá mu muito bem com a morte morte de Seu Lotório. Lotório. Nunca Nunca mais deve ter fumado maconha, nunca mais deve ter dado esse cu, né? — É, saudade tam também bém daquela bunda bunda dele. Eu não sei do que mais mais eu sinto sinto saudade. — Como Como assim assi m? — De futu futucar car aquele cu dele ou o u de levar o cacete c acete dele no meu meu rabo. Ele me caralhava que era uma uma beleza. — Bunda Bunda por bun bunda, a gente gente pode fazer fazer um um neg negócio ócio aqui, ó. — O quê? quê? — A gent gentee se s e reveza. r eveza. Eu enfio enfio o cacete ca cete na bunda bunda dele, depois ele enfia enfia na minh minha, a, depois de pois eu enfio enfio na tua e assim vai. Quem gosta mais de levar fica mais um pouquinho, quem gosta de meter, também. E pode chupar pra dar mais impulso, e assim vai. Vamos lá no clubinho! — Nossa, que maravil maravilha! ha! Acho Acho que voltei a viver! Foram descendo a rua em direção ao clubinho. — Mas como como é que vocês sabiam que eu fum fumava cannabis e fazia futucamento com Seu Lotório? — Ele era muito uito amigo amigo do meu pai. A gente gente ia i a junto junto comprar lá em Pilares. Pilares . Meu pai, minha inha avó, meu irmão, todo mundo fuma lá em casa — afirmou Cassi. — É mesm mesmo, o, é? — É… Eu fum fumo desde os dez anos. — Eu andei Pilares toda e não não encontrei encontrei o pessoal que vende. vende. — Hoje eu vou lá com meu pai. Nossa maconh maconhaa tá acabando. — Tu chama chama de maconh maconha? a? — É… Maconha, Maconha, baurets, baurets, cigarro de índio, baseado, maronfa, aronfa, ligue-li ligue-ligu gue, e, charrão… Tem um monte onte de d e nome. nome. Nome e apel a peli… i… — Me deu vontade vontade de levar le var uma uma futu futucada cada — int i nterrompeu errompeu Jorge, passando a mão mão no pênis pênis de Cassi Cass i por cima da calça. — A gent gentee reveza. Tem um monte onte lá querendo revezar. — Quem Quem?? — Uns Uns judeuz judeuzinh inhos os italianos, itali anos, o japonesinho japonesinho do caldo de cana, os padres, os o s coroinh coroi nhas as também também vão lá, os velhos marinh marinheiros eiros,, os árabes ár abes da vendinha vendinha de panelas, o pessoal pes soal do grupo grupo jovem… — Que Que bacana, rapaz! — A gent gentee faz campeonat campeonatoo de punhet punheta. a. — Como Como assim assi m? — Fica Fic a um do lado l ado do outro outro e quan quando do fala “já”, todo mu mundo começa começa a tocar, aquele aquele que mandar mandar a porra mais longe longe ganh ganha, e quem goz gozar ar prim pri meiro ganh anhaa também também.. Aí Aí os dois doi s tiram par ou ímpar. ímpar. E quem quem ganhar começa a tomar no cu primeiro. É muito legal! Todo mundo come todo mundo. — O pessoal gosta mais mais de dar ou levar? — Os dois! Tem campeonat campeonatoo de quem engole engole mais a pica, de quem mete mete mais rápido. A gente ente
inventa um monte de coisa. Assim que chegou, Sodré entrou no campeonato de punheta e logo botou no cu do judeuzinho. Depois de ficar sócio do clubinho, a lembrança de Seu Lotório vinha sem tristeza. Por que não se lembrar de uma pessoa por causa dos momentos bons? Ele morreu por não saber que tudo demais mata. Mas que Deus colocasse a alma dele em bom lugar. Quanta coisa aprendeu com ele! Quanto foi bom vê-lo abocanhando seu pau com apetite. Que bom ter de volta a paz de espírito. Sentiu falta só um pouquinho da experiência sexual do velho caiçara, pois os amigos não reboleavam como ele. Abocanhavam seu cacete sem afinco, sem malícia de língua, e o chupar não era tão gostoso quanto os dois prometeram durante o caminho no seu primeiro dia de clube. Com o passar do tempo, não queria mais ser futucado. Foi descobrindo aos poucos que futucar era mais prazeroso. Queria arrumar uma mulher, experimentar a tal da vaginação. — Assim, sem compromisso, só na zona — disse-lhe Cassi Jones numa manhã depois da missa. E continuou: — A mulherada não sabe o que é bom. Só quer saber de casar, ter filhos. Boceta é o maior perigo! — Como funciona lá na zona? — Olha, as mulheres ficam em frente das casinhas delas numa rua só de futucação. É escolher, pagar e pronto. Se quiser, eu vou lá contigo. — Tu quer vaginação também? — Não, não gosto, não. Meu negócio é só ser futucado. Eu futuco porque sou obrigado. Se eu não futucar, os amigos não futucam. É dando que se recebe. — Compreendo.
SODRÉ ENTROU NA ZONA observando tudo. E era um colosso. Sentia prazer em respirar o ar dali. De todos os sítios em que estivera, aquele era o que o fazia se sentir mais próximo do cúmulo do bemestar. Os bares, os mascates, as mulheres seminuas, o entra e sai das casinhas coloridas faziam a felicidade chegar ao nível máximo. Quase não falava enquanto escolhia a mulher mais bonita para ter a sua primeira relação. Andou por todas as ruas até que viu Valdirene na janela. Seu coração entrou em tiroteio; seus olhos, fogos de artifícios; o seu cacete, pinho-de-riga. Penetrou em Valdirene sem jeito, era um adolescente em desvario, beijava compulsivamente, trabalhava também com as mãos, futucava em ritmo acelerado. — Tu não vai morrer, não, vai? — Não vou, não, meu filho. Pode meter à vontade. Valdirene percebeu pelo trato que Sodré era novato no fazer sexual com mulheres. Deu para ela sentir que ele já tinha ido com homens. Gostava de iniciar garotos, tratava-os bem para aumentar a clientela. Mas resgatar homens das mãos dos veados era a coisa que mais a aprumava como fêmea, mulher de verdade. Não suportava aqueles marmanjos cheios de vícios que pediam pra fazer isso ou aquilo. Sodré vislumbrou um mundo novo. Atingiu o orgasmo. — Gozou, acabou! — O quê? — perguntou com voz sumida. — Quando goza, acaba. — Tá certo! — Vem cá mais um pouquinho, vem! No outro dia, depois do trabalho, os dois estavam lá na zona de novo. Valdirene encaminhou Cassi Jones a um amigo que cuidava dos travestis da Lapa. Lá ele foi feliz para sempre. Ela se prontificou a ajudá-lo ao saber da sua preferência sexual. Sodré não quis nada com Vadirene naquele dia, foi procurar a segunda mulher mais bonita da zona para ter com ela. E foi assim, de mulher em mulher, até chegar à que achava a mais feia. É certo que, nesse período, Valdirene sentiu frio na espinha, mas tinha quase certeza de que ele viraria seu cliente de fé. Durante essa incursão, ele conheceu o Cabaré da Vivi, o Bar do Apolo e o Café do Compadre. Procurou saber os segredos da zona do baixo meretrício. Se tivesse nascido ali, não teria vivido uma infância triste. Lembrava de Seu Lotório, porque do primeiro amor ninguém se esquece, mas era uma lembrança branda, sem amarguras. Porém, amar outra pessoa seria difícil, já que agora só queria saber de futucar mulheres e variar de mulher a hora que bem entendesse. Nada de querer se enamorar, casar ou ter relacionamento sério. Tinha seu dinheiro para pagar, gozar, dormir tranquilo e voltar no outro dia para se deliciar com uma vagina de outra pegada, de outro bamboleio, mas é fato que às vezes furava a fila para meter com Valdirene. Ficou sabendo quem eram os cafetões mais antigos, os bandidos e os policiais que ali tiravam serviço. Tinha o extremo cuidado de passar despercebido naquele lugar de malandros, de brigas, de bebedeira, de ciúme à flor da pele. Sabia que Brancura era o rei da jurisdição, e era com ele que deveria fazer amizade, torná-lo cúmplice para qualquer evento fora de hora. Um dia, bebendo Paraty no Cabaré da Vivi, observava-o numa roda de amigos falando alto, rindo, dominando a conversa, como de costume, até que chegou um sujeito de cara fechada, com uma navalha em riste, gritando que Brancura rezasse para que morresse perdoado dos pecados que cometera. O sujeito perdera todo o seu salário para o cafetão num jogo de chapinha na própria zona. Até aí, tudo de bom tamanho, mas depois os amigos lhe disseram que o malandro o enganara no jogo, e ele resolveu se vingar. Jogava-se chapinha a qualquer hora nas calçadas da zona. Os donos do jogo atraíam passantes,
prometendo como prêmio o dobro da aposta para quem adivinhasse em qual de três chapinhas estava escondida uma bolinha de miolo de pão. Brancura era um mestre na trapaça: sorrateiramente, escondia a bolinha debaixo de uma de suas unhas e a colocava numa das chapinhas não escolhidas. Vez por outra, deixara o sujeito acertar para animá-lo, mas no final o ludibriara consecutivamente. Os amigos estavam de olho, não falaram nada na hora por medo de Brancura. Mas depois que o viram desolado por ter sido expulso de casa pela mulher, justamente pelo vício do jogo, lhe contaram as artimanhas do malandro. Ele não titubeou em se armar de uma navalha para a vingança. Brancura fingiu que não viu o sujeito bradando com a navalha. Sem se virar, levantou a mão para o alto e disse. — Manda um peixe. Vivi apanhou a sardinha numa cesta e a lançou em direção a Brancura, que, de costas para ela com o braço estirado, sem olhar para trás, pegou a sardinha. Com a outra mão fez sinal para os gatos que viviam por ali. Eram quatro gatos pulando atrás da sardinha que Brancura abaixava e suspendia como se fosse um ioiô. Elevou-a finalmente até bem além de sua cabeça. O gato que pulou mais alto caiu no chão com o seu corpo felino aberto ao meio por um golpe de navalha. — Faz um churrasco. A própria Vivi pegou o corpo coberto de pelos ensanguentados e pôs-se a tratá-lo para assar no fogareiro. O sujeito, quando viu o golpe no gato, emudeceu. Trêmulo, deixou a navalha cair da mão, saiu sob o sorriso sério de Brancura. — Isso é homem de nada! — exclamou o malandro. E o tempo foi passando com a mesma luz vagabunda de lua iluminando noites insones e os pensamentos-jararacas do sujeito de armar tocaia num lugar ermo daquela vivência da zona, naquele corre-corre de água que explodia nos esgotos e se espalhava nas ruas, onde “a esperança de vingança foi se concretizando à medida que a raiva se revigorava”. Numa noite, o sujeito e mais cinco amigos ficaram plantados numa esquina sorrateira, feito comigo-ninguém-pode, esperando Brancura passar para ter uma morte sem defesa. A sorte de uma pessoa está no caminho que ela decide percorrer, ainda mais numa cidade onde o convívio social é no meio da rua, no entrecruzar das esquinas, nos bares, nas feiras, no ir e vir das calçadas. Sodré vinha ali como quem não quer nada, imaginando uma boceta fresca de uma puta nova que chegaria à zona a qualquer momento, conforme uma cafetina havia prometido. Francesa, uma francesa com boca de quem chupa pica muito bem. Marie tinha prometido que compraria uma. Poderia ter cortado caminho, como havia pensado, mas uma ideia certeira o encaminhou para a esquina, onde viu a armação da tocaia. Parou, se escondeu, observou a atitude suspeita, logicamente atacariam Brancura, que vinha sem olho no padre e na missa, quando foi agredido pelos vingadores. O pulo do gato que tentara não deu certo. Se não fosse um Sodré preciso para defendê-lo, estaria morto. Conseguiu golpear os dois homens que o seguravam e arrastou Brancura numa correria de socos e pontapés para a Rua do Estácio, local aonde os vingadores não iriam por saberem que os inimigos tinham vários comparsas que entrariam na briga. As portas da zona, do Estácio e do morro de São Carlos se abriram completamente para Sodré. Brancura ficou tão agradecido que até deu uma puta de presente para o homem que o livrou da morte. Por esse feito, se tornou um cafetão de respeito na zona do baixo meretrício. Era unha e carne com o rei da zona. Tratou de comprar uma navalha, ternos, tamancos, mais tarde alugou uma casa no morro, de tão maravilhado que ficou ao conhecer a fazenda de Seu Antônio das Cabras. Foi num sábado de manhã que o novo amigo o convidou para uma roda de samba na fazenda. — É longe?
— Não, rapaz, é aqui no morro mesmo. No caminho, Sodré já se encantara com uma espécie de cortejo de sambistas, que iam com suas famílias batucando e cantando sambas. As crianças, todas vestidas de branco. As meninas de vestidos longos, com enfeites na cabeça; os meninos de paletó, calças curtas, meias três quartos e sapatos pretos, numa alegria só. Os homens, de terno branco, gravata vermelha, tamanco novo e chapéu também branco, as mulheres com vestidos das mais variadas cores. Seu Antônio, português de Coimbra, achava o ritmo que aquele povo fazia o mais belo do mundo. Adorava o jogo da capoeira, gostava de se consultar com as vovós dos terreiros. Era branco de alma preta. — Eu nasci em Portugal nessa vida, mas sei que na outra eu era de algum país da África. Casou-se com Dona Dina, mãe de santo de um dos terreiros do bairro da Saúde. Tinha dois filhos que ensinavam capoeira para a garotada de uma parte do morro. Uma vez por mês, organizava esse encontro. Contratava cozinheiras para fazerem os mais diversos doces de leite, feijoada, bolos, refrescos. E o dia passava com samba, comida, bebida e capoeira, que Sodré achou bonito de ver e de participar. Pensou até em buscar seus pais para aquela confraternização que consolidou a sua vida social na região — aprendeu capoeira e todos os seus segredos rapidamente, passou a frequentar os terreiros de Umbanda, estava em todas as rodas de samba, conheceu a casa de Tia Almeida, ia aos bailes do Kananga do Japão. Passou a achar que, como Seu Antônio das Cabras, era também um branco de alma preta. O que Sodré não esperava era o amor que foi tomando corpo por Valdirene. Manteve relação sexual com mais de cem mulheres de todas as partes do mundo naquele universo tão pequeno, fora da zona também, nenhuma era como ela. De certa forma, ela demonstrava um carinho que ele imaginava ser amor também. Era desses portugueses que são loucos por crioulas. O amor que ele pensava haver por parte dela não era amor, era só candura por tê-lo desvirginado, coisa que ela tinha por todos que iniciara sexualmente, sobretudo aqueles que havia tirado das garras dos veados. O novo malandro-cafetão guardava em silêncio aquele sentimento, pois sabia que ela era a mulher de seu companheiro e que ele nutria amor por ela também. Gostava de ver o amigo compor, cantar, batucar, jogar chapinha, vê-lo na roda de pernada. E, na zona, passou a ser seu homem de confiança, pois não só salvou o parceiro de emboscada, mas também o livrava de ser enquadrado em vadiagem com sua carteira de funcionário do Banco do Brasil. Para retribuir, o malandro lhe passava mais mulheres, dizia que ele era o seu melhor amigo. Quem arrumasse confusão com o português, naturalmente seria inimigo de Brancura também, e foi assim, esse toma lá dá cá de gentilezas, por quase dez anos de convívio, de amizade forte e amor secreto pela mulher do companheiro. Sodré era como o príncipe branco ao lado do rei negro. Na zona, o português mandava e desmandava nos prostíbulos, trouxe o pessoal que vendia maconha em Pilares para vender ali. Por ser funcionário público, fez amizade até com o delegado da jurisdição e com isso tinha moral para aliviar eventuais flagrantes de porte de arma, brigas e outros pequenos delitos que os frequentadores mais assíduos daquele lugar cometiam, instituiu uma quantia que ele mesmo recolhia dos comerciantes, dos ambulantes, dos outros cafetões, dos traficantes de cannabis e a repassava aos policiais do plantão de cada dia para que estes não perturbassem o bom andamento dos trabalhos e da diversão que aquele lugar proporcionava. Era autoridade paralela. Contudo, o amor, por mais que se queira segredá-lo, torna-se visível, faz-nos falar coisas que o denunciam. Os olhos, que não sabem mentir, o trazem à luz: a falta de jeito na hora em que Brancura abraçava e beijava Valdirene na frente dele; o pau duro quando dançava com ela no Kananga, no
próprio Bar do Apolo e no Café do Compadre. Era um delírio que Brancura sempre percebia, mas fazia que não via, embora aquilo o incomodasse a tal ponto que pensou em proibir futucação dele com Valdirene. No entanto, era melhor ter Sodré como amigo, pois ele era a sua única garantia com a polícia. Foi nessa hora que a vida deles mudou de rumo. Sodré continuava se dando com as mulheres da mesma forma que começou — cada dia com uma diferente que ali trabalhava. Isso para não levantar suspeita de seu amor clandestino. Quando chegava o dia de Valdirene, ele se preparava como se fosse realmente um príncipe: tomava banho de água de flor de laranjeira, ia ao barbeiro, escovava os dentes além da conta, colocava cueca nova, acordava tarde na manhã da noite em que não bebera, não fumava cannabis para ir mais disposto e proporcionar o prazer que ela merecia. Um dia, na hora do orgasmo, Sodré falou sem querer: — Eu te amo! — O quê? — Nada, não. — Você falou alguma coisa. — Nada, não. — Falou, sim, e eu entendi muito bem. Repete que eu quero ouvir de novo. Repete, vamos, repete! — Eu te amo. — Eu também te amo. Ele acreditou em Valdirene, aquele sorriso amarelo que vinha sustentando desde longe sumiu. Passou a ter um sorriso vermelho de beijo quente no pescoço. O tempo seguiu, até que Brancura, sem mais nem menos, numa conversa no Café do Compadre, relatou a Silva coisas de sua vida e deixou escapar para Sodré, que fez que não ouviu, mas sentiu o que é a emoção sobrepor a razão na marra e o amor falar por si só, sem freios ali dentro de si. — Tô cansado da Valdirene, tô cansado disso aqui, tô cansado da malandragem, dessa vida de noite, de bar, de brigas. Tô querendo casar com uma mulher decente, de família, arrumar serviço honesto, trabalhar mais na música… — Não me diga, rapaz. Isso é bom. Compositor tem que ser casado, pra ficar concentrado. Se não se concentra, não cria. Todo mundo sabe disso. Tem que parar de plantar o terror. Era verdade o que Brancura relatava? Percebeu de sobreolho que Sodré escutou. Ficou cabreiro, não queria que ele soubesse, mas já tinha vacilado. Então resolveu continuar falando e disse, de escama, para ver se Sodré se abria, que deixaria Valdirene para ele se o delegado lhe desse a alegria de um casamento. E foi o que rolou. E Sodré se revelou um otário: — Eu amo ela. É a mulher mais linda, mais gostosa, mais tudo nesta vida. Uma vez, eu não aguentei e disse isso pra ela, mesmo sabendo que ela era tua mulher. Foi aí que fodeu tudo. Se esse personagem soubesse como é bom o segredo, não feriria de morte seu antagonista, que não deixou transparecer a dor da traição tanto por parte de Sodré, como da parte de Valdirene, que lhe guardou essa revelação de amor. Era trato do casal que ela não poderia ficar de meteção com homem apaixonado. É certo que ele desconfiava do amor de Sodré por ela, uma coisa velada, mas ao saber que o outro havia se declarado para sua mulher de fé e ela tinha se calado sobre isso, Brancura resolveu se vingar dos dois e, mesmo que a Justiça lhe desse prisão em vez de casamento, iria abandonar Valdirene para ter alívio da dor de traição que lhe pesava na cabeça. Brancura disse a Sodré que este poderia ficar com ela na hora que bem entendesse, pois ele não se incomodaria, já que não gostava mais dela. Só não a deixaria como puta dele porque era a mulher que lhe dava mais lucro.
Foi tudo combinado com Valdirene, pois Valdemar também havia lhe declarado amor sem fim e dele ela tinha falado. Obrigou-a a tirar dinheiro e agrados ao máximo dos dois para em seguida colocar um contra o outro. Ela fazia aquilo contra a vontade. Sodré entrou na artimanha do malandro, que achava que Valdemar mataria o português por destempero de jovem em coisa de amor. Já Valdemar queria tomar conta de tudo. Mataria Brancura para em seguida ocupar seu lugar. O rei da zona, juntando motivos para eliminar o príncipe sem muita culpa e disfarçar o orgulho ferido, achou por bem pensar que dera muito poder a Sodré. Queria ter motivos para fazer o que bem quisesse em nome do orgulho ferido e de repente ficou farto dessa coisa de dar dinheiro à polícia, desse ajuntamento de Sodré com os canas duras. Era hora de tirá-lo de circulação, arrumar um sujeito próximo para fazer aquilo tudo, pois, se um dia quisesse voltar à atividade, não teria problema com o rival que, se ficasse de frente na parada, ele poderia ter mais dificuldade justamente pelo outro ser branco, federal e já ter forte nhenhenhém com a polícia. O plano de Brancura teria dado certo não fosse a interferência de Tia Amélia. Valdemar poderia ter matado aquele português de merda, o cafetão se vingaria de Sodré sem sujar as mãos e sumiria em seguida. Sabia que a mãe de Ivete iria denunciá-lo e que ele seria obrigado a casar com aquela bala de chocolate. Seu Tranca-Rua já havia dito para largar a malandragem, fazer andança para fora da zona e, depois de ter se casado, não pôr mais os pés nas ruas da perdição. Sodré, ao se dar conta da trama, entrou em depressão. Abandonou a zona, voltou à casa dos pais para entrar no prumo de novo. Jurou que nunca mais voltaria àquele lugar e assim o fez. Era do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Abandonou o barraco que alugara no morro e largou suas putas para lá. Só voltou à zona quando soube por um conhecido que Brancura tinha se casado, arrumado emprego e se esfumaçado de lá. Antes de voltar, comprou uma pistola da mão de um policial para o caso de o inimigo entrar em seu caminho e ser preciso matá-lo antes de ser morto. Seu desafeto não entrou, até o evitou nas raras vezes que o viu, muito após sua volta. Valdirene lhe disse na primeira oportunidade que Brancura a tinha obrigado a fazer aquela tramoia por desconfiar do amor que ela também sentia por Sodré. — Me ameaçou de morte por ciúme de você e foi por isso que eu fiz aquilo. Tanto é que no dia seguinte me abandonou. Sodré concluiu que Valdirene falava a verdade com suas palavras de choro. Prontificou-se a namorá-la depois de conversarem até o fim. Um sonho. Parecia história de conto de fada aquela noite para os dois. Não há coisa melhor no mundo do que voltar com seu grande amor. — E quem tá mandando aí na zona agora? — Seu Felintra. — Quem é esse cara? — Olha, o pessoal pedia bênção ao Brancura aqui na zona porque Seu Felintra não estava aqui. — Como assim? Pedir bênção? — Era ele quem dava as cartas aí desde o tempo do pai do Brancura. Quando ele sumiu, o Brancura começou a cartear. Agora ele voltou. — Estava preso? — Não, ele tem negócio em Minas. Andou um tempo por lá. Antes de qualquer coisa aqui dentro, você tem que falar com ele. Outro dia andava cabreiro pela rua, sentia um pouco de medo de voltar àquele lugar, mas o prazer
de estar ali de novo era significativo. Deveria ter dado o braço a torcer e voltado logo, quanto tempo tinha perdido numa depressão na qual não precisava ter caído. Ficara triste, não por ter sido ludibriado por Brancura, mas por uma traição de Valdirene, que, na verdade, não ocorrera. Sofreu em vão. Chegou ao Cabaré da Vivi como quem não quer nada, cumprimentou os velhos amigos com a educação de sempre. Percebeu um mulato de terno branco, sapato bicolor, gravata vermelha, cartola branca parado no balcão, dando a impressão de que via tudo ao redor e ao mesmo tempo não estava olhando para nada. — Quem é? — perguntou à boca miúda a Vivi, que respondeu também em voz baixa: — Seu Felintra. Naquele momento, lembrou-se de que já tinha ouvido falar dele em várias rodas. Comentavam seu eito de resolver as coisas, sua fama de valente, seu moral com todo mundo. — Tudo bem, meu amigo? — Tudo bem! Seu Felintra respondeu num golpe que o fez subir numa cambalhota e cair em seus braços. Em seguida, Sodré foi colocado deitado no chão. Nervoso, quando tentou sacar a arma, percebeu que estava sem ela. Olhou atordoado para Seu Felintra, que estava com seu canivete e sua pistola nas mãos. Sodré foi se levantando devagar. — Pra falar comigo tem que vir desarmado. Pode falar agora. O que você quer? Sodré tentou articular palavra, mas entrou numa gagueira sem fim. A figura daquele homem o fazia tremer. Nunca tinha visto expressão tão forte, olhar tão perfurante. — Tá com medo de quê? Machuquei você? Fez que não com a cabeça. — Toma tua arma, mas nunca mais se dirija a mim armado, entendeu? Fez que sim com a cabeça. Pegou a arma, colocou-a na cintura sob o olhar silencioso dos presentes. Vivi serviu uma Paraty, colocou no balcão, fez sinal para Sodré, que entornou a dose num trago só. Acalmou-se, aproximou-se de Seu Felintra, disse que queria pedir permissão para voltar para a zona, pois soube que ele era o cafetão mais antigo, mais respeitado. — Não sou cafetão, não. Sou malandro! — Então… Por isso mesmo. Contou tudo que lhe aconteceu desde que conheceu a zona, não aumentou nada, nem se esqueceu de dizer um só detalhe. — Tu pode ficar aí, se acertar com suas mulheres e se quiser cavar mais outra pra botar aí, na qualidade de sua mulher, pode botar. Quanto a Brancura, você se resolve com ele, mas fora da zona. Enquanto eu estiver aqui, não quero fanfarronagem de briga, não. Muito menos tiro. É bom nem andar armado aqui no Estácio, tá me entendendo? Respondeu que não queria mesmo arrumar briga. Seu negócio era com Valdirene e com suas outras quatro mulheres. Só estava de pistola porque não confiava no inimigo. — E tem outra coisa: nada de dar dinheiro pra polícia aqui. Polícia é polícia, bandido é bandido, malandro é malandro, otário é otário, trabalhador é trabalhador. Cada um em seu lugar. — Mas esses canas não podem ver a gente que querem… — É só não deixar a polícia te ver. Meio-dia e meia-noite não tem sombra, não tem rastro. Sodré concordou com um sinal de cabeça. Olhou para Vivi, pediu que ela lhe servisse outra Paraty. Quando se voltou para Seu Felintra, ele não estava mais ali. Ainda foi até a esquina, voltou para o bar. As pessoas se comportaram como se nada tivesse acontecido.
— Cadê ele? — Também não sei — respondeu Vivi. Bebeu mais um trago. Voltou ao prostíbulo. Conversou com Valdirene, acertaram a vida. Seria agora seu homem, seu amor. Iria dar proteção também às mulheres antigas, mas ela seria sua mulher de fé. Sua vida mudou na zona, até capoeira parou de jogar, não ia mais às rodas de samba, nem ao Bar do Apolo ou ao Café do Compadre. Se avistasse Brancura, desviava o caminho para não encontrá-lo, até ser golpeado pelas costas no Cabaré da Vivi.
SODRÉ
NÃO SABIA
para onde ir, seu corpo doía, andava com dificuldade. Entrou na casa de Valdirene, contou o ocorrido. Mesmo sem ele querer, ela o levou ao pronto-socorro. À noite, entrou na zona armado, andando pelos cantos. Não viu o inimigo, foi para as proximidades do Bar do Apolo, o avistou na porta. Aproximou-se, sem ser visto pelo rival, que se virou para pagar a conta, dando chance a ele de pular com os dois pés em suas costas, chutá-lo, pagando na mesma moeda a agressão que sofrera. Revistou os bolsos, engatilhou a arma, quando ia apertar o gatilho escutou a voz de Seu Felintra. — Não faz isso, não! Abaixou a arma, o outro se retorcia no chão. — Ele podia ter te matado e não te matou. — Mas eu salvei a vida dele. Ele só não está morto por minha causa. A vida dele é minha. — Ele te deu acocho, colocou você na pista de um monte de mulher, te deu salvaguarda na urisdição e foi você quem traiu ele. Tu que botou butuca na mulher dele. Enquanto os dois conversavam, Brancura mediu terreno, preparou o corpo, esperou a distração de Sodré e tentou aplicar uma tesoura em vão, pois Seu Felintra o pegou no ar e o colocou deitado no chão, mas sem machucá-lo. — Levanta devagar, não tente mais nada, senão eu vou te dar um sal de verdade. Me respeita. O malandro seguiu a ordem, ficou ali de cabeça baixa, com expressão de dor. — Então, vamos dar a César o que é de César pros dois conviverem aqui no Estácio. Nunca mais você vai se aproximar de Valdirene. Ela é mulher dele, sempre foi e sempre será! Nem pagando você vai mais com ela! Tá integibilizando? O português fez que sim com a cabeça. E se virando para Brancura: — E você deixa ele em paz! Acabou a vingança. Ele tem as mulheres dele, tem a vida dele e tem que ter a paz dele também. Tá certo assim? Ele já te salvou do cárcere, já te salvou da morte, já foram amigos de aperto de mão de calor quente. Então vamos parar com essa guerra. Tá integibilizado? Os dois balançaram a cabeça. Sodré esticou a mão para cumprimentar o rival. Brancura ia apertála, mas seu Felintra não deixou. — Ninguém aqui vai ser mais amigo, não! Amizade quando enguiça não tem mais voo. Agora pode seguir rumo sem esquecer o nosso trato. O trato foi feito comigo e será comigo que vai ter parlamento, se for quebrado. Tá integibilizado? Deixou o pessoal se afastar, se aproximou de Sodré, colocou a mão em seu ombro. — Isso é melhor pra você. Brancura saiu dali direto para a casa de Valdirene de amor tanto em proa que não sentia mais as dores dos golpes de Sodré. Nem precisou dizer palavra. Entrou na casa com a certeza de que ela nunca deixara de ser sua. Estava tudo cheio de flores, limpo, arrumado. Encontrou-a com a roupa da primeira noite de casados. Era um chamego só. Não falaram muita coisa, tudo se resolveu em olhares, expressões faciais, em sexo. Coisa estranha, mas foi assim que se deu.
NO OUTRO DIA, a zona estava cheia de sol. O mundo, que se tornara feio por causa da tristeza que a puta mais linda sentia pelo golpe de desamor, tinha tons de alegria no Cabaré da Vivi, nos mais ínfimos cortiços do Estácio de Sá, no Bar do Apolo, no Café do Compadre, na Praça Onze e na subida do São Carlos, pois Brancura se levantou tarde, pediu à esposa que fosse comprar pão, leite e café na padaria do Sereia, e ela foi com vestido solto, sandália de salto alto, sem calcinha e sem sutiã, iluminando tudo. Era a metáfora da sedução nas ruas do baixo meretrício. Sodré saiu do bar sentindo frio no corpo suado, doído, pensou novamente se recolher na casa dos pais, andou por caminhos sem lugar que se queira chegar, no entanto, o pensamento foi entrando no eixo. Pois o que é o amor? É sofrer brutais traições e ainda ter lampejos de dar um jeito de ser feliz com ela para sempre? É saber que na primeira aproximação tudo tinha sido fingimento, a segunda tinha sido por carência, acomodação, vingança, e ainda sentir essa dor de saber que nunca mais a teria em seus braços? Amar demais é ruim! Foi melhor assim, não devia ter caído na conversa dela pela segunda vez, não se deve amar sem nenhuma razão para tal, muito pelo contrário: tinha razão plena para odiá-la. O amor são os olhos lhe sorrindo sem quê nem pra quê o tempo todo, é convidar para almoçar e ficar calada com um riso estatelado no rosto sem pronunciar palavras, esperando que ele desse o bote. Iria corresponder ao amor que Fátima Maria, também funcionária do Banco do Brasil, demonstrava por ele desde muito tempo. Foi em passos certeiros para a zona com a meta de manter suas mulheres no silêncio e corresponder ao amor da amiga de trabalho. Só voltou ali porque sentiu firmeza nas palavras de Felintra. E também não era mais homem de ficar chorando mágoa por muito, aprendera com o tempo. Caiu, levanta atacando! É assim na capoeira da negrada e tem que ser na vida toda. Na noite seguinte, Brancura chegou ao Bar do Apolo com riso de lagartixa. O samba comia solto. Foi logo batendo palmas, entrou no jogo de pernada e não caiu uma só vez. Tinha sambista de Vila Isabel, Tijuca, Mangueira, Pilares. Arranjaste um novo amor, meu bem Eu fui um infeliz bem sei Mas ainda tenho fé Que hei de te ver chorar Quando souberes amar Como eu te amei (Tu não deves De ter tanta pretensão Olha que o tempo muda E a vida é uma ilusão Tu fazes pouco de mim Mas isto que bem me importa Fica sabendo meu bem Que o mundo dá muita volta.) Arranjei outra Que não troco por ninguém Já que tu me abandonaste Há males que vêm pra bem Hoje em dia sou feliz Sem a tua ingratidão
Encontrei outro benzinho A quem dei meu coração Silva puxava o samba, Bide recortava com o tamborzinho que havia reinventado, os outros faziam coro. Aconteceu à tarde, na pequena cozinha do bar, a feitura de um robalo na brasa, uma moqueca de ostra, uma salada de tomate com cebola regada com vinagre e azeite português. O pessoal bebia, comia, cantava e sambava com sofreguidão. Brancura não sabia se ia ou não ia trabalhar. A fala de Seu Tranca-Rua do Cruzeiro das Almas ressoava em seus ouvidos, no entanto refazer a vida com Valdirene era troço de comemoração absoluta. Que se ferre o compromisso. No outro dia pegaria no batente feito cão sem dono, mula de repetição, escravo querendo comprar a alforria. Sabia agora que o amor é uma coisa grande, com barreiras que sempre se ultrapassam, lugar onde não há pecados que não sejam perdoados, sítio onde não existem fodas que não sejam recuperadas. O amor é tudo que o faça cantar e sambar e pular e ogar jogo de pernas e pegar o tamborzinho do Bide e dizer que se chama tamborim, e recortar pra levantar o samba na hora precisa, ir no miudinho na hora em que a letra tem que sobressair mais que as frases dos instrumentos. Sodré convidou Fátima para ir ao teatro; depois da peça, no jantar, falou coisas que mulher gosta de ouvir. Era um cavalheiro irretocável em todos os seus atos, inteligente, sensível, falava com leveza e seriedade. Quando começou a namorar em casa, Sodré ia à zona todo dia às seis da tarde, recolhia o dinheiro, tratava de anotar as coisas que estavam faltando para os prostíbulos e pras suas mulheres, dava uma volta pra se fazer notar, justamente pro pessoal saber que ele estava na atividade. De vez em quando ia lá apertar a mão de Seu Felintra. Não abandonou o terreiro nem a casa de Tia Almeida. Ia conversar com os cabras da Zwi Migdal. Foi comprando casas na Lauro de Araújo, na Pereira Franco, e alugando pra se fazerem puteiros. Só não passava em frente ao prostíbulo de Valdirene, desviava o caminho ao avistá-la. Porém, quando a via, o corpo tremia, ele não sabia se era ódio ou resto de amor. Passou a ser um homem sério como havia sido na infância, nem o palmeirense o fazia sorrir mais. Somente com Fátima Maria dava pequenos risos de nada. Brancura, por sua vez, era só felicidade, havia reconquistado Valdirene, tinha voltado a andar com os amigos sem aporrinhação de mulher. Em menos de um mês compôs dez sambas de sustância. Largou o trabalho, só não deu baixa na carteira porque queria ter documento para não entrar na vadiagem. Era de novo o rei da zona, jogador de chapinha. Roubava os bêbados da noite. E mesmo com medo de Seu Tranca-Rua, foi ao terreiro da Rua do Valongo falar com Exu de novo. Valdirene foi junto para conversar com Dona Maria Padilha, pois era ela quem cuidava da caminhada da moça, era quem a protegia dos percalços que a vida que levava poderia lhe proporcionar. — Não dá para eu fazer música sem entrar no bar, não dá pra eu ficar no bar sem beber. O senhor viu que eu tentei, viu que eu quis casar com moça de família, e olha o que a danada fez comigo. — Eu disse pra suncê não ficar plantado em porta de botequim, eu disse pra suncê não fumar mais palmeirense, eu disse pra suncê não andar mais com mariposa, que eu ia te dar lugar na música. Agora suncê me aparece aqui dizendo que voltou a fazer tudo por que a mulher bagunçou. TrancaRua só pode ajudar a quem se faz merecedor. Oxalá quer os fios formosos e se você não andar na linha, Seu Tranca-Rua não pode te ajudar. — Eu sei, meu Tranca-Rua, mas eu não aguento… — Então, tua cabeça é teu guia… Depois não diga que eu não te avisei Se quer casa eu te dou
casa, se quer rua eu te dou rua. — O senhor vai me abandonar? — Não, mas eu só vou fazer o que eu puder e vou ter de fazer sozinho, tá entendendo, esse? Não vou ter a sua ajuda, e se você não quiser mudar de vidador, ninguém pode te ajudar. Você tem que fazer por onde, “tem que fazer por merecer, axé”. — Eu não consigo, não! Eu vejo um otário e me dá uma coceira tremenda na mão. — Eu preciso da ajuda dos fios, que têm que tá em sintonia com a espiritualidade, têm que tá com a paz de espírito trabalhada, nós temos que trabalhar juntos, tá entendo, suncê? — Sei. Brancura abaixou a cabeça, os olhos lacrimejaram, ia saindo… — Se suncê parar de enganar trouxa no jogo, parar com o palmeirense, parar de tirar coisa dos outros, eu te livro das garras do policiador, esse, te livro de bala de revólver e de corte de navalha. — Tá resolvido! Vou parar. Vou deixar os otários viver em paz. — Suncê não pode fazer nada que for desonestidade, tá entendendo, esse? — Mas as mariposas? — Não tá certo, mas eu dou meu jeito. Não larga o trabalho, não! Sua mariposa está aí com a Padilha. Vou te dá mais um tempo pra suncê tirar essa mulher da zona e viver só da música e de seu trabalho, esse! Mas se você passar do tempo eu te largo dentro dele. Nunca pare de compor. Mas lembre: você é quem vai medir o tempo. Não vou te avisar mais porra nenhuma. Se tu não se equilibrar nesse prumo que tô te guardando, não conte com minha ajuda, não. Peça só a Oxalá, porque aí só ele. A minha ajuda é só passar energia positiva. Não existe milagre, não. Saiu do terreiro tremido, mas seguro de si. Ia dar conta da medição do tempo. Seu Tranca-Rua, quando promete, cumpre, não deixa a palavra dele se quebrar em antônimos, em mas, mas, mas e quas, quas, quas. Conforme haviam combinado, foram ao centro da cidade passear naquele sábado de temperatura gostosa. Iriam andar pelas portas dos cinemas, dos teatros, dos cafés-concertos, dos chopes berrantes, quem sabe entrariam num circo ou num café-dançante que aceitasse a presença de negros, foi o que fizeram entre juras de amor eterno. Valdirene, certa hora, sugeriu que passassem na casa de Tia Almeida, lembrou que era aniversário dela. — Como eu pude esquecer… Vamos, vamos, já tá ficando tarde. — Mas a festa lá dura de três a quatro dias… Eu queria ficar sozinho com você. — A gente vai ter o resto da vida pra ficar sozinhos. É aniversário da minha Tia Almeida. Brancura ainda resistiu, dizendo que estava enjoado daquela música de velho que se ouvia lá. O schottisch, a valsa, a polca e o choro tocados na sala não caíam bem em seus ouvidos. O maxixe, executado na cozinha e nos quartos dos fundos da casa, chamado por eles de samba, era coisa para fazer criança dormir. Queria acordar o mundo com um ritmo pra frente. Entusiasmava-se com a polca-lundu tocada no terreiro, que proporcionava jogo de pernada, acabava virando capoeira, e às vezes, pela força dos tambores, acontecia no meio de tudo uma sessão de Candomblé, ainda perseguido, e por isso mesmo tudo se dava no fundo do quintal, para despistar a polícia que nunca ia à casa de Tia Almeida por causa de seu marido que era funcionário público, mas mesmo assim se precaviam. Às vezes, da Umbanda vinham os exus, as vovós e os vovôs, os ciganos, os eres, os caboclos e os eguns, que falavam de igual para igual com os filhos da terra. Parada de responsa, porque, se o santo prometer isso ou aquilo, pode esperar sentado ou em pé
que o inesperado chega de repente. Tentou levar a esposa para o Bar do Apolo ou para o Café do Compadre, onde havia o samba que ele e sua turma tinham inventado, mas ela nada de ir na dele. Firmaram pé rumo à casa da mãe de santo mais respeitada e festejada da jurisdição, vinda da Bahia. *** Tia Almeida nasceu na Bahia no ano de mil oitocentos e cinquenta e quatro; como vários outros negros livres, chegou ao Rio de Janeiro aos vinte e dois anos, em busca de uma sociedade mais maneira, com mais possibilidades de ganho e alguma mobilidade social. Os primeiros migrantes que conseguiram casa para viver, trataram dos seus orixás, arranjaram um ganha-pão, enfim, alcançaram certa estabilidade e deram morada aos recém-chegados, aumentando assim a presença da baianada na Cidade Maravilhosa daquele tempo. Baianada que fez o maxixe, trouxe o Candomblé, reinventou a culinária carioca, criou os ranchos para brincar o carnaval. Baianada que colocou a cultura como principal respiro de vida depois de tanta escravidão. Já iniciada no Candomblé pelo africano Rodolfo Martins de Andrade, que chegou a Salvador num negreiro na metade do século dezenove, Tia Almeida veio para o Rio de Janeiro trazendo no colo a filha Andreia, com quem morou sozinha na Rua General Câmara. O pai da menina, após o término do namoro, lá mesmo na Bahia, nunca mais teve parlamento com as duas; mesmo tendo vindo também morar no Rio. Mulher forte, de altivez maior do mundo na arte da cozinha, no domínio do Candomblé, ganhava a vida vendendo manjar, cocada, pé de moleque, mingau, doce de banana cheios de axé, pois para ela a culinária tinha grande fundamento religioso. Trabalhou na Rua Sete de Setembro, depois na Rua da Carioca. Antes de sair para o batente colocava no altar de casa doces para o orixá do dia, seguia para o ponto de venda, de saia rodada, contas, turbante, pulseiras de santo, olhos de sabedoria. Mudou de vida quando casou com Batista, também baiano, negro de valor social elevado, que chegou a frequentar, apesar de todo o preconceito, a escola de medicina da Bahia, mas largou os estudos na metade. No Rio de Janeiro, trabalhou como linotipista no Jornal do Commercio , depois entrou para o funcionalismo público e trabalhou no gabinete do chefe de polícia, num posto para o qual fora indicado pela mulher do presidente da República, Venceslau Brás. Era um favor que ela retribuía, já que Tia Almeida havia curado a perna do presidente. E não foi fácil, não: os médicos tinham dito a Venceslau Brás que aquela doença era incurável e que o levaria desta para uma melhor. Bispo, velho policial amigo do presidente, lhe recomendou Tia Almeida, que primeiro recebeu seu orixá para saber se Venceslau tinha cura. O Orixá respondeu que a cura seria fácil e rápida. Tia Almeida fez seu composto de ervas e foi ao encontro do presidente. Mandou que ele lavasse a pereba com água e sabão, torrasse as ervas e aplicasse aquele pó, que em três dias estaria curado. Dito e feito: quando ele tirou as faixas não havia nem marca da enfermidade que o atormentava havia anos. Esse foi um dos primeiros passos para a libertação da cultura dos negros no Brasil. — O que você quer? — perguntou-lhe o presidente da República. — Pra mim nada, desejaria para o meu marido, que o senhor melhorasse a situação dele. Minha família é muito numerosa. — Que que eu posso fazer? Qual o estudo dele? — Lá na Bahia ele foi segundanista de medicina… — Ah, então eu tenho lugar para ele, vou botar ele no gabinete do chefe de polícia como secretário. Vou falar com minha mulher para encaminhar isso.
E assim, com emprego certo, ganhando bem, foram enchendo a casa de filhos, alegria por toda a parte. Aí eram festas e mais festas de aniversário, batizado, primeira comunhão ou apenas com o objetivo de juntar os baianos migrados para celebrar os orixás, cantar, dançar, comer. Ser feliz. Ali reuniam os grandes músicos para compor algumas das mais belas canções de que se tem notícia na vida brasileira. Eram várias as baianas mães de santo do Candomblé a tomarem conta da Pequena África, que, segundo Heitor, se estendia da zona do cais até a Cidade Nova e tinha como capital a Praça Onze. Dali saíram esses músicos que fizeram apresentações no exterior, com músicas gravadas pelos maiores cantores da época.
BRANCURA
FEZ CARA FEIA
numa parte da andança, queria que Valdirene se comovesse com o descontentamento dele. Ela nada de lhe dar trela. Seguia determinada, puxando o marido pela mão. De longe, avistaram uma aglomeração na porta da casa de Tia Almeida. Várias pessoas tentavam entrar e não conseguiam, pois os convidados eram selecionados. Apesar de a casa ser grande, se tornara pequena pra tanta gente que queria demonstrar amor por Tia Almeida. Vinham pessoas de outros lugares, brancos abastados que tinham se afeiçoado ao Candomblé, à música e à comida feita por aquela gente da Bahia. Até amigos do presidente da República frequentavam a casa da doceira. Valdirene foi pedindo licença. Um dos capoeiras que controlavam a entrada das pessoas pediu ao pessoal para se afastar e deixar o casal passar. Ao escutar a música, o malandro foi desfazendo a cara feia. E mal chegaram à sala, recebeu o convite: — É com prazer que a gente chama pra tocar com a gente um grande músico da nova geração. Brancura, faz favor! Dê-me o prazer de tocar com você! Quem disse isso foi João, músico já famoso e respeitado, foi logo aplaudido. Brancura pegou o pandeiro e ficou ali fazendo o que mais gostava junto com aqueles por quem, mesmo tendo contraponto no fazer musical, tinha admiração, respeito e carinho. “Um grande músico da nova geração.” As palavras de João o envaideceram. O amor pela música, fosse ela qual fosse, era estampado no toque do instrumento. Mesmo tocando outro ritmo, pensava no samba sincopado, tirava melodias em pensamento na levada que achava que era samba de verdade, mas não perdia o andamento da música que tocava, pois fora criado em seu balanceio. Sabia tudo de cor e salteado. Olhava João como quem vê um ídolo. Valdirene dançava na frente dele, depois de tentar em vão falar com Tia Almeida. Ela estava cercada de tanta gente que a moça achou melhor deixar pra mais tarde. Uma marchinha era tocada. A felicidade de Brancura cresceu quando viu Silva, Bastos, Edgar, Baiaco entrarem na sala a passos de dança. Bide chegou dando recortes com seu tamborim, colocando mais tempero naquele som de alegria. Ficaram ali na sala por alguns minutos até a música acabar, depois foram para a cozinha, onde se tocava outro ritmo acompanhando as vozes de Barbosa, Hilário, Germano. O chefe da folia pelo telefone manda me avisar que com alegria não se questione para se brincar O chefe da folia pelo telefone manda me avisar que com alegria não se questione para se brincar Ai, ai, ai, deixa as mágoas para trás, ô rapaz Ai, ai, ai, fica triste se és capaz e verás Ai, ai, ai, deixa as mágoas para trás, ô rapaz… Abriu-se uma roda em volta de Tia Almeida. A música cresceu, os convidados se amontoavam para ver a mãe de santo rodar a baiana com seus modos de deusa. E os azuis, os violetas, os brancos, os vermelhos, os dourados e os amarelos se intensificaram. Magia de arte. Coisa de doido. Seus dezesseis filhos e vários outros convidados entraram na roda, foi-se de música em música por um bom tempo. Música de bater palmas, música de sapatear, música de miudinho, música de mãos nas cadeiras, melodia de umbigada, ritmo de abraçadinhos. — Vou beliscar uma coisinha — disse Tia Almeida assim que acabou de dançar. Foi para a mesa onde tinha xinxim, acarajé, abará, sarapatel, caldo de cabeça de peixe, creme de arroz, caruru, doces de toda a sorte; garrafas de aluá e de xequetê e outras bebidas. Tudo em grande quantidade e preparado por ela mesma e suas filhas de santo.
Na sala, a música continuava conforme a batucada lundu no terreiro. Após comer, Tia Almeida olhou para Brancura. — Canta um samba desses modernos aí de vocês. Seus amigos pegaram os instrumentos, e o malandro, agora cheio de amor pra dar, pois fora Tia Almeida que tinha pedido, soltou a voz: Deixa essa mulher chorar Deixa essa mulher chorar Pra pagar o que me fez Pra pagar o que me fez O ritmo era mesmo diferente, mais rápido, sincopado, com o tamborim de Bide envenenando o samba na volta para a primeira. Ficaram ali cantando por mais de uma hora. Cada compositor cantava um de sua autoria, que ninguém conhecia. Coisa que desanimou alguns, que foram saindo de fininho. Depois que Tia Almeida foi receber uma amiga dos tempos de infância, ficaram só alguns gatos pingados. Sentindo-se desconfortáveis pelo desprezo da plateia, os músicos foram para o quintal, onde ao som do lundu havia disputa de pernada. Brancura entrou na disputa, que não estava sendo jogada com muito afinco, pois ninguém ali queria derrubar os outros no chão. Tia Almeida não gostava. Deram um tempinho de nada, saíram da festa juntos, andaram por um tempo sob a chuva fina, calados com o fardo do desprezo pelos seus sambas. Valdirene não queria sair da festa, mas não teve coragem de se manifestar diante da tristeza daqueles artistas que viram o público sair no meio da apresentação. Será que estavam certos em querer mudar o rumo da música? Será que suas letras tinham a ver com o gosto das pessoas? A arte não tem que girar conforme a vida? Então pra que inventar o novo? Não seria melhor fazer o velho maxixe, que era um ritmo a que todos já estavam acostumados? O negócio era fazer entrar dinheiro. Depois pensar em mudar o rumo da música. — Eles queriam ouvir música conhecida — disse Silva, quebrando o silêncio. Uma conversa morna se iniciou. Falaram que se fosse no Bar do Apolo ou no Café do Compadre, o povo estaria com eles até o dia raiar, como era de costume. Argumentaram que os frequentadores da casa da Tia Almeida eram todos velhos e não tinham pernas para dançar o samba que eles faziam, chamar o ritmo para a cintura, requebrar as cadeiras, sapatear para trás. Baiano gosta mesmo é de miudinho. Se o novo ritmo fosse tão ruim assim, Cebola não iria gravar a música de Silva, não iria fazer partitura. Foram se animando no caminho para o Café do Compadre, onde estavam dois rapazes sentados numa mesa com papel e caneta compondo um samba, dois companheiros de trabalho de Brancura, cáftens. Do lado esquerdo, uma rapaziadinha do morro jogava baralho valendo dinheiro, duas putas francesas jantavam num cantinho do bar. Brancura foi logo pedindo uma Paraty. — A gente tem que fazer a nossa sede, fundar um bloco de corda, entendeu? Ter um lugar pra gente cantar nosso samba pro povo. As músicas deles só foram gravadas porque todo o mundo já sabia de tanto eles cantarem nas festas. A casa de Tia Almeida é como se fosse um ponto de divulgação. Ali vai gente de gravadora, de jornal, de rádio. Então o pessoal vê o povo cantando e dançando, tem a certeza de que fica bom na voz desse ou daquele cantor. Se a gente fundar nosso bloco, fizer o nosso povo aprender nossas músicas, vai ser a mesma coisa — insistiu Silva. — Tamos falando em fundar esse bloco desde que o samba é samba, mas até hoje ninguém tomou uma atitude de fato, ninguém se propôs a dar o pontapé inicial — argumentou Brancura.
— Tínhamos que ter uma mãe de santo que nem ela — concluiu Edgar. — Bom, eu vou embora, que eu tô cansada — interrompeu Valdirene. — Pode ir que eu já tô indo. — É, eu sei — respondeu com um sorriso de deboche. Ela sabia que o marido ficaria ali de prosa até sabe-se lá quando. — O que que tem que fazer pra fundar essa porra desse bloco logo? — perguntou Brancura? — Tem que ter uma porra de um presidente e um tesoureiro, em primeiro lugar. Fazer logo um livro de ouro… Brancura, pede logo cachaça pra todo o mundo… E quem quiser participar tem que pagar uma mensalidade para a gente alugar uma sede, comprar os instrumentos. É uma associação, um clube, morou, meu capoeira? Isso pra gente não ficar levando bolachada dos besouros, porque senão eu vou acabar desistindo ou fazendo uma merda. Nesse momento, Sodré entrou no Café do Compadre, por um curto espaço de tempo nem um pisco de voz. Esperavam a reação de Brancura, que fez que não via ninguém e assim os dois se fizeram. Logo atrás, Seu Felintra entrou, foi para um canto onde comeu um salgado como quem não quer nada. — Eu pago em dólar, não lido com dinheiro da Europa, não — disse Sodré a Yossele. — Quantas moças quer? — Eu quero dez putas. Só pago com todas na minha frente. — Calma, calma, calma, iii… Uma paz ruim é melhor do que uma boa guerra, não queremos confusão! E o presente da polícia? — Pode ficar tranquilo que a polícia vai falar com vocês fora da jurisdição, aquele ali, ó — apontou para Seu Felintra — não quer transação com polícia aqui nessa área do Estácio, não, nem dentro da zona. Também não quero falar com eles, não. Toma esse dinheiro aqui e entrega aos meganhas, mas não diz quem deu, não, nem fala meu nome. Se perguntar diz que é um tal de Sombra, capoeira novo que veio do São Carlos. — Com uma mentira você vai longe, mas não volta... Todos riem um riso forçado. — Agora voltando aqui nos finalmentes: não quero mais judia da Polônia, nem da Hungria, Romênia, nem da Áustria, não. Tem muita aí. Tá sobrando mulher do centro europeu. Quero cinco francesas e cinco italianas, não, não, vamos fazer o seguinte: dez francesas e cinco italianas. Esses porras de negão que chegam aí só querem saber de francesa. — Eu vou levar duas shikses para o chefe de polícia, ele gosta. — disse Yossele. — Eu também gosto, eu gosto muito. Adoro uma polaquinha da bocetinha vermelha. Essas judias mexem que é uma beleza. Só esses brasileiros aí que gostam de francesas e elas gostam deles também. O negócio é sério! Essa criolada cai dentro aí. Tem um monte casando aí. Um monte de francesa casada aí na zona com negão capoeira. Tem umas até que largaram o crime. É verdade. Francesa dona de casa e capoeira trabalhando de polícia, fazendo segurança. O amor é lindo! — O amor é doce, mas fica melhor com pão. Tá com quantas casas? — Eu aluguei vinte casas aí. A menor tem quatro quartos. Entendeu? O problema é que agora tá faltando crioula. Não é que tá faltando, mas chegou muita europeia e ficou desproporcional. Veio todas num navio só? — Porra, português. A maioria era aqui de Lapa, Glória, Botafogo, Flamengo. Tiraram por causa desse centenário da Independência, já te falei. — Essa porra dessa marijuana fode com meu cérebro. — Que tal umas índias? — Índia aqui é difícil! Dizem que na Bahia as índias fodem que é uma beleza.
— Tem muita baiana aí, né? — Toda baiana fode que nem gente grande. Elas pedem pra não ter pena e meter com vontade. São rebolosas toda vida. Silva prestava atenção na conversa de Sodré, ao mesmo tempo que falava coisas do bloco com seus amigos. Era de seu feitio ficar de orelha em pé em qualquer situação. Às vezes sua fala tava aqui e seu ouvido lá em outra sintonia. Levantou e foi até Sodré. — Sodré, meu nobre! Gostaria de ter uma conversa contigo no particulino. — Pois não, meu querido Silva. Eu não falei com vocês na chegada, mas ia falar na saída. — Vamos ali fora. Ficaram na calçada. — Eu quero comprar uma pistola dessas americanas que esses judeus trazem aí. — Os judeus não trazem armas, não. Quem traz são os marinheiros e o pessoal da polícia. Eles até trazem, mas muito raramente. Tá querendo arma pra quê? — A gente vive no meio de valentão, esses capoeiras brabos aí. Tem um cara que vive pegando no pé da minha irmã. Você sabe que eu sou veado, e esse pessoal vem querer se aproveitar, querer bater, fazer chacota. Não vou ser passado pra trás, não. — Sei… Eu tenho duas pistolas e posso deixar uma com você. Você já teve arma? — Não, não, mas já peguei uma emprestada, sei atirar. Eu não quero ficar com a sua, não. Quero comprar. — Arma clandestina só quem vende aqui é a polícia. Você trabalha, é documentado, compra uma legal. — Eu sou clandestino, amigo! Sou honesto, mas para arma eu quero ser clandestino. Vai me vender a arma ou não vai? — Eu posso comprar uma pra você. Não é isso que você quer? Então, vai passando o dinheiro que a arma vai tá na sua mão amanhã. São três mil Baroncheles. Silva, para surpresa de Sodré, foi até a mesa. Pegou um saco, chamou Sodré para o lugar mais recolhido do bar e lhe passou a quantia exata. — Obrigado por tudo. — É um prazer fazer esse favor pra você. Sou muito seu fã. Acho você o melhor compositor aqui do Estácio. Conheço todas as suas músicas. Sodré olhou para dentro do bar e acenou para os poloneses, fez um balanço de cabeça para Seu Felintra, que respondeu com um olhar de trivela, foi embora depois de apertar a mão de Silva. — Quem com ferro fere com ferro será ferido, com ferro será ferido, com ferro será ferido. Dá até para começar um samba — Seu Felintra falou, olhando duro nos olhos de Silva. — Eu nunca fui de luta, não sei manejar navalha, só ando no meio de capoeira. Acabou esse negócio de forte, de valentão. Com a aparição da arma de fogo, não tem mais essa coisa de “mamãe sou forte, vou bater no amiguinho”, não. Sou magrinho assim, mas todo o mundo vai me respeitar. Moro sozinho com duas mulheres, entendeu? Minha irmã e minha mãe. Tem muito valentão nessa porra desse Estácio. — Ninguém nunca te desrespeitou, e por maior que seja o desrespeito, ninguém merece ser assassinado, nem você merece virar um assassino. — Só vou atirar em legítima defesa, não vou virar valente só porque vou ter uma arma de fogo. Eu só não quero levar na cara, virar saco de pancada, tomar sugestão de capoeira e ter que ficar quieto. Até a polícia, se vier querer bater, vai levar chumbo grosso na bola. — Eu te garanto que ninguém vai mexer com você aqui nem em lugar nenhum. Muito pelo
contrário, você vai ganhar até proteção de todos os lados até o final da vida. Eu olho assim pra você, te vejo passando numa estrada limpa, cheia de energia positiva, teu espírito é velho, você veio aqui pra ser feliz. — Olha aqui, Seu Felintra, eu sei que energia positiva gera coisa boa, as pretas velhas da Umbanda sempre falam isso, mas o mundo sempre tem dois lados, o pra lá e o pra cá. Agora veja o meu caso, que atravesso dezenas de encruzilhadas onde os dois lados se multiplicam. E tem outra coisa: nada pode abolir o acaso. — O acaso é obra do incompetente. A vida planejada, o olho vivo, o deitado sem dormir, o de pé sem cair. Otário é aquele que não sabe manejar a vida. Você tem duas opções, escolha uma. — O acaso também me apetece… Eu vou ficar com as duas. — Tem vários tipos de acaso. — Eu sei que todo acaso custa algum sentimento. Talvez eu possa me arrepender… — Sua cabeça é seu mestre. Quando Silva voltou para a mesa, a turma já discutia o trajeto que o bloco ia fazer. Brancura dizia que não ia nem dançar, nem cantar. Ia segurar a corda lá na frente, chamar Fumaça, Valmir, Cid e Tiãozinho, capoeiras de pé certo, para tomar conta com ele. — Meu irmão, se chegarem esses capoeirazinhos de meia-tigela querendo passar as mãos nas minas, se a polícia vier desfazer da gente, agora que nós vamos estar documentados, eu vou bater à vontade em nome da lei. — Que em nome da lei, nada, rapaz! Você não é autoridade, você não é polícia. Você tá dentro da lei, só isso, e se você bater, vai responder por isso! — exclamou Bide. Brancura fingiu que não era com ele. Silva dizia que tinha que mudar tudo, criar um bloco para não levar bordoadas da polícia era realmente necessário, mas não era só isso, precisava aumentar o andamento para quem quiser cantar e dançar ao mesmo tempo. Tinha que ter ritmo quente, com mais notas, com mais entrosadez de repinicado, mais rebusco de ritmo. — Como assim? Como é esse ritmo que tu fala tanto, mas não diz qual é — perguntou Alexandrino, vulgo Compadre. — Bum bum paticumbum prugurundum. É isso aí, o nosso samba minha gente é isso aí: bum bum paticumbum prugurundum. O dono do Café, português gente boa, mão aberta na hora de pagar as contas quando saía com a rapaziada, ficou sem entender, mas continuou na dele.
A VIDA IA PASSANDO ao lado de Valdirene num amor de cabeça erguida. Brancura nunca mais quis saber de Ivete. Ela bem que tentou fazer junção de novo, organizando encontros certeiros, fingindo que eram casuais, chorando, esperneando, fazendo juras de nunca mais ir atrás dele no bar se os dois voltassem, dizendo até que o dividiria com as putas, de maneira que ele podia continuar cafetão. Quando fazia essas propostas se mostrava serena, dona de si, amorosa. Outras vezes perdia a linha, dizia que ia botar o nome dele na boca do sapo, faria simpatia para ele nunca mais arrumar mulher, pro seu pinto cair de gonorreia. O malandro foi duro em seu desprezo. Até que ela integibilizou que o amor-próprio é o nosso maior tesouro. E sumiu da vida de Brancura da mesma forma que entrou, para ser feliz com o jovem libanês Gilberto Assemany, de quem se enamorou logo que se libertou do amor pelo ex-marido. Formou-se, começou a lecionar na escola normal ali mesmo do Estácio, comprou um apartamento na Rua do Matoso, onde criou os quatro filhos que teve. Brancura alugou um quarto numa casa de cômodos na Rua dos Cajueiros, trinta e dois, por intermédio de Josepha, amiga de longa data que largara a prostituição havia uns dois anos, não porque tivesse enjoado da profissão ou por querer seguir uma vida decente, mas por ter contraído a doença da obesidade. Ela era muito magra, por isso não atraía muitos clientes, depois engordou um pouquinho, o que fez aumentar a sua clientela. No entanto, não parou mais de ganhar peso, engordou tanto que nenhum homem quis pagar para tê-la nos braços. Deprimida que só, passou a fazer faxina nos quartos das amigas da zona, ganhando menos da metade do que quando atraía os homens. Tinha que ouvir piadas de gordas; recebia olhares de desprezo, destrato sem fim, até que, mesmo sem ter onde morar, num dia de muita chacota, resolveu fugir dali. Foi procurar trabalho de empregada doméstica. Como não tinha conhecimento, caiu na indigência nas imediações da Praça Mauá. Dormiria na rua para sempre, mas não voltaria a ser pisoteada na zona pelas amigas e pelos fregueses, e assim foi, até que, num dia de muita chuva, foi acordada carinhosamente por Brancura, debaixo de uma marquise. — Comi muito esse teu cu, tu chupou muito o meu pau, futuquei muito nessa tua vagina velha de estrada. Agora não vou te deixar no sereno, não. Vem cá, vem comigo, vou te dar um dinheiro, vem cá, minha puta. Deu-lhe um trocado para ela alugar um quarto, comprar roupas, ir ao médico, para, aí sim, poder arrumar trabalho decente. Ela foi morar numa modesta casa de cômodos. Nem precisou sair de lá para arranjar emprego, ali mesmo arrumou serviço de passadeira, arrumadeira, faxineira, de vez em quando fazia refeições. Deu até uma emagrecida com o passar do tempo, ia voltar à zona, mas tudo não passou de intenção. A vida de mulher à toa não é tão fácil assim como se pensa, fez essa descoberta quando conseguiu a nova ocupação. Brancura a encontrou por acaso na casa de Tia Almeida, numa sessão de Umbanda. Falou pra ela que estava procurando um lugar para morar fora do contexto da zona. Não queria ficar dormindo na casa de Valdirene todas as noites. Eles tinham que ter um cafofo onde ninguém os conhecesse, nem os achasse, onde os deixassem se amar pra sempre numa boa. A zona era lugar de perdição, onde inimigo faz tocaia de navalha na mão nas quinas das encruzas, atrás dos muros. Estava cheio de contratempo naquele lugar, pois boa parte de suas mulheres teve que ser reconquistada com briga, na marra, porque várias tinham arrumado outro cafetão no tempo em que ele andou sumido. Nada que fosse novo em sua vida, mas teve que voltar a andar de tamanco, como os portugueses, para se defender de briga de navalha. Achava muito estranha essa parada de terno e tamanco, mas a vida era assim. Colocava um lenço de seda no pescoço, que também protegia de fio da arma branca. Brancura, desde rapazola, usava calça larga feito o pessoal da velha guarda, como os malandros
da época. Começou a usar terno depois que se juntou a Silva, Bastos, Bide, Baiaco, e os demais compositores da região. Já eram pretos, pobres, moravam em área vigiada pela polícia, se andassem mal-arrumados só iriam piorar sua condição na sociedade. E mais: eram compositores, seriam famosos um dia como Alfredo, Barbosa e João, que usavam terno de manhã, de tarde, de noite, com os sapatos tão bem engraxados que reluziam à luz do sol ou da lua. E lá ia Brancura dentro de seu terno, em cima de seus sapatos pretos a qualquer hora que fosse, fazendo inveja àqueles malandros sem estirpe, sem o dom da arte, sem indumentária de classe. Atraía olhares desejosos das mulheres dentro e fora da zona. Mas, um dia, um tal de Lontra, estivador valentão, natural de Sergipe, não se contentou em devolver uma puta para Brancura. Puxou a navalha para ele, que teve que correr por uns cinco minutos pelas ruas da zona até avistar um português, ir ao encontro dele, jogá-lo no chão, tirar-lhe os tamancos, colocá-los nas mãos para se defender de Lontra. Ele dava navalhadas, Brancura as espalmava com o tamanco calçado nas mãos, quando podia desferia uma tamancada no pé do ouvido. Assim, ele passou a andar de tamancos, mas, como não queria perder a elegância, usava com os ternos que comprava prontos ou mandava Seu Carlito Gomes, o velho alfaiate, fazer sob medida. — Essa coisa de dormir na zona é muito arriscada. Esses caboclos podem querer se vingar de mim quando eu estiver no baiano — disse Brancura a Josepha, após a sessão de macumba. — O sono é o maior inimigo dos malandros. — Isso mesmo! Quero ficar no baiano tranquilo. — Na Rua dos Cajueiros tem uma casa de cômodos em que o português tá alugando um quarto baratinho. Vamos lá. Valdirene comprou roupa de cama nova, vaso de flor, cortina, jogo de toalha. Amar é um luxo só.
A
ZONA CRESCEU com
a chegada das louras europeias para junto das indiazinhas sapecas, das cariocas e das baianas de peito pequeno, cintura fina e bunda roliça. Ficavam todas seminuas nas portas, dando vida de requinte feliz aos cafés e às casas de cômodos das ruas do Estácio. Tinha hora em que tudo era belo aos olhos delas. Era que ali tinha as notas das flautas, dos cavaquinhos, o prugurundum da nova melodia do país, as letras com mais gingado, a malandragem em verso e música espalhada pelas calçadas. A arte amenizava a dor das mulheres que eram obrigadas à prostituição, fêmeas desterradas, controladas por criminosos torturadores, frios e traidores, pois elas vinham com o sonho de reconstruir a vida depois da dor da guerra; mas só tiveram maus-tratos desde que entraram nos navios nessa viagem para o Hemisfério Sul, a separação completa do passado, a vida sem laços. As negras livres, as índias para quem a vida nunca sorriu de fato, as doenças das senzalas ainda ressoando naquele presente, a dor da separação da família, tantos assassinados na História e agora a tristeza da vida na prostituição. Algumas até pensavam gostar daquilo, que dali não sairiam nem por todo o dinheiro do mundo. O gosto também depende muito do saber, do que se conhece nesse mundão. Se não fossem as mães de santo, os pretos velhos da Umbanda, as pombagiras dos terreiros escondidos por toda a zona norte, tudo na vida seria mais cruel sem o desenvolvimento espiritual para aquele povo que as outras religiões não aceitavam bem. Sodré abria campo nessa coisa de comprar para alugar, foi tomando corpo no Banco do Brasil com salário que dava para investir na prostituição. Comprando polacas, russas, romenas, italianas, francesas, distribuindo nas ruas entre a Marquês de Pombal e a Machado Coelho. Comprava e vendia mulheres, adquiria e alugava casas, revendia armas, tudo com maestria, com calma.
SILVA NÃO APARECEU certa noite nem no Bar do Apolo nem no Café do Compadre. Na manhã seguinte também não deu as caras nas quebradas do Estácio. Foi assim por toda a semana. Os amigos só descobriram que ele estava internado porque, indagada por Bide num ponto de ônibus, a irmã de Silva disse que ele estava muito mal no hospital, com uma tal de sífilis. A notícia correu já com vírgulas e pontos a mais, dentro e fora do Bar do Apolo, do Café do Compadre, no centro da cidade, na Praça Onze. Falavam que o compositor estava à beira da morte. Sua irmã dizia que ele não podia receber visitas. Não que não pudesse. Ela não queria aquele monte de vagabundo no hospital agitando seu irmão. Sabia que iriam cantar sambas, contar piadas, fazer qualquer tipo de troça e brincadeira que poderia abalar a saúde dele. Quando um dos amigos perguntava, ela dizia: — Tá a mesma coisa. A bruxa estava solta no Estácio, pois Rubem, irmão do Bide que já vinha com aquela tosse seca há muito tempo, quase não saía de casa, entrou em febre profunda, nem banho de água gelada lhe resfriava o corpo, ia e voltava do hospital tomando aquela montoeira de remédio que não dava em nada naquela tuberculose sem fim. Morreu devagarzinho no dia quinze de junho de mil novencentos e vinte e sete. Desde então, o tempo corria triste nos bares que os sambistas frequentavam, nas rodas de samba, no vaivém do Estácio, na zona do baixo meretrício. A falta de Silva e de Rubem fez os dias de sol parecerem nublados de tão esmorecido que estava Brancura. Não compunha, não ia a uma roda de samba desde que soube da doença de seu ídolo e da morte de um amigo que também considerava como grande sambista. Até a cachaça passou a ter gosto de chumbo derretido. Esse sofrimento todo não era porque eles fossem os seus melhores amigos. O melhor amigo e parceiro de Silva era Bastos, a quem ele também admirava. Brancura queria muito ter a luz da arte como eles tinham, fazer samba com a facilidade com que eles faziam. Não tinha um tico de inveja. Tinha era falta de ver os dois versando juntos nas esquinas, nos bares ou na casa de cada um deles. Tinha mesmo era carência das aulas que os mestres davam só no modo de viver, falar e cantar.
TRÊS MESES DEPOIS do sumiço de Silva, Bide, numa sexta, saiu por volta de meio-dia da sapataria onde trabalhava. Havia entregado todos os trabalhos da semana. Estava com dinheiro para gastar à vontade. Passou em casa, tomou um banho, vestiu um terno preto e foi passear no centro da cidade. Gostava de olhar o movimento do início da noite, a agitação da cidade no último dia da semana, de tomar uma bebida naqueles bares iluminados no cair da noite, de andar à toa olhando as vitrines, de entrar nas lojas de músicas. Porém, o que mais o encantava era ficar num bar próximo à Casa Edison, no número cento e sete da Rua do Ouvidor, que era a primeira firma de gravação de discos do Brasil. Ficava ali, olhando o entra e sai de músicos e cantores. Quem sabe daria a sorte de ver Ary Barroso, Mário Reis, Lamartine Babo, Vicente Celestino, Alves, Alfredo... No entanto, naquela belíssima tarde, só Cebola saiu da gravadora, foi direto para o bar onde Bide estava, ao vê-lo foi logo dizendo: — Cadê Silva? Estou no rastro dele há um tempo e não acho. Onde esse homem se meteu? — Tá internado com sífilis. A irmã dele falou que o homem tá com um pé no outro mundo, tá ruim mesmo. — Vai lá no hospital e diz para ele não morrer que Alves quer comprar um samba dele. Eu cantei pra ele e ele adorou a música e a letra. — Qual? — Me faz carinhos! — Vou tentar avisá-lo antes que cisme de morrer. Bide foi saindo, entusiasmado com a notícia… — Peraí, só tem uma coisa. O homem quer comprar. Comprou é dele. Não tem essa coisa de parceria, não. Igual foi contigo. Entendeu? Comprou é dele. Nem parceria nem nada. Comprou é dele! Igual fez contigo. — É mesmo, é? Poxa vida! Pensei que isso tinha mudado! — Tu quer o quê? É Alves, rapaz! O cara já vai gravar a música, tu quer ainda que ele dê parceria? Bide foi à casa da irmã de Silva com os olhos grandes de felicidade. Sua alegria era tão expressiva que ela nem pestanejou em dar o endereço do Hospital da Gamboa, a hora de visita e tudo mais pra se chegar até lá. Na madrugada de sexta-feira, toda a zona já sabia que Alves iria comprar um samba de Silva, até o preço da venda já tinha sido estipulado por um dos atravessadores de informação. O Bar do Apolo, que andava sem vida, teve batucada quente, com os amigos do compositor acreditando que uma porta se abria também para eles. Silva entraria e depois, lá dentro da fama e do sucesso, chamaria um por um para provar das iguarias do bem viver da arte. Isso mesmo, pois Bide já tinha entrado, pensavam, mesmo não tendo feito uma boa transação, tendo rolado um desentendimento, viu sua música tocar no rádio na voz de Alves, e agora era ele quem recebia o recado de Cebola. Se Cebola não o conhecesse, poderia ter deixado essa ideia pra depois e acabar sendo deixada pra trás, largada de mão. No sábado, a roda de samba foi no Café do Compadre, com o mesmo levante do Apolo. Me faz carinhos foi cantada inúmeras vezes em acompanhamentos honestos, desafinados, atravessados, mas de sentimento inumerável. Bide ficou de sexta-feira até domingo acordado a poder de tira-gostos e bebida. Ritmo e alegria. A possibilidade de a música do amigo ser cantada pelo maior intérprete do momento era coisa pra deixar qualquer um de vida sem dormida, porque nada é melhor do que sonhar acordado junto com os amigos, vendo o sonho se incorporar à vida real. Gostava de Silva de verdade. Será? Poderia ser tudo fingimento, isso a gente nunca vai saber. Mas que tem uns babacas que ficam disputando o tempo todo, dando abraço falso, morrendo de inveja, isso tem.
Bide foi o primeiro de todos os visitantes daquele domingo a entrar no hospital, com seu terno preto, rosto amassado, bafo de onça, chapéu torto na cara de felicidade pernoitada. Silva estava só esperando a irmã para lhe passar um carão. Se os amigos ainda não o tinham visitado era porque ela não havia passado os vários recados que ele dera. Sabia que, se eles viessem, a alegria chegaria junto para ajudá-lo a expulsar a doença do corpo. Tinha rabiscado tantos versos, construído melodias. Queria passá-las aos amigos para pôr a segunda do samba, ajustar a música, arrumar essa ou aquela frase. Estava ali matutando, esperando sua irmã chegar, quando Bide entrou na sala tão afobado que Silva levou um susto. — Que que foi, rapaz? — Tenho uma notícia pra você. — Se for boa vai falando, se for ruim, pode ir embora, que eu tô doente… — Tu não sabe o que Oxalá reservou pra você! — Fala logo! — Silva! Alves escutou Me faz carinhos na voz do Cebola e quer comprar teu samba. Silva, que mal conseguia se levantar do leito para ir ao banheiro, deu um pulo que até assustou o amigo. — Ei! Calma, rapaz! Internação em hospital é um passo pra cova. Tu parou aqui, a próxima parada é o cemitério. Se você der outra saçaricada dessa aí, tu vai vender teu samba lá em Aruanda, meu amigo. — Você tá falando que o Alves quer me comprar Me faz carinhos? Será que eu já morri? — Se você morreu, eu morri também… — Acho que a gente já morreu e está pertinho do Paraíso. — Eu não, tô mais vivo do que você. Aqui o doente é você! Se isso aqui é a morte, eu tô indo embora, porque eu tô só de visita. — Será que eu tô sonhando? — Isso pode ser… — Alves quer comprar meu samba! — Por vinte mil-réis teu samba cai na boca do povo do Brasil todo, ou melhor, do mundo todo. — Eu vou pedir é cem! Como é que vai ser esse negócio de gravação? — É tudo com ele. Se tu acordar com ele, daqui a pouco teu samba tá nas rádios. Silva andava pra lá e pra cá dentro da enfermaria. Bide não sabia como dar a notícia ruim. Esperou que a empolgação abrandasse e foi dizendo: — Mas tem uma coisa… — Que coisa? — O samba sai só com o nome dele. Ele comprou, ele é o dono! Não tem macacada de parceria, não. — Amigo, vou te dizer uma coisa, o nome pode ser só o dele, mas eu que fiz o samba. Eu quero e faz carinhos nos restaurantes, nos cinemas, nas rádios, quero o meu samba conhecido, cantado nas rodas de samba do Rio todo. Bide, que ficara sério por alguns minutos, voltou a sorrir. — E é isso mesmo. Só o Alves pra fazer esse meu sonho virar realidade. A coisa mais difícil do mundo é fazer um sonho virar realidade — continuou Silva. — Não, é fácil: é só tocar uma punheta de manhã pensando na mulher que tu marcou pra comer à noite. O sonho virou realidade… — Para de palhaçada, rapaz! Poxa!
— Tô brincando, rapaz. — Parece que eu tô sonhando mesmo. Só o Alves pra me fazer realmente feliz. Meu samba vai sair do Bar do Apolo e do Café do Compadre! Quando o meu samba sairia do Estácio? Quem iria se interessar em gravar um samba de um cara preto, pobre e sifilítico como eu? — Alves. Os dois se abraçaram… — Tenho que ir ao terreiro agradecer. — Tu tem que ficar bom pra resolver isso logo. Não passou muito tempo até Silva ter alta do Hospital da Gamboa completamente restabelecido, porque, se o amor cuida de qualquer doença, a esperança de felicidade profissional também. Tem artista que não tem força para viver de arte, tem medo, prefere trabalhar bonitinho para o patrão, se preocupa muito com o respeitável público, com o que o pessoal vai falar. Artista tem que se preocupar com a arte, com a vontade de fazê-la. É só manter as luzes sempre acesas para escrever o dia todo, saber que vida e arte são a mesma coisa, até no dormir. Só achava que merecia mais dinheiro. Bide já tinha vendido barato, muito barato, só depois que foi ao Teatro Carlos Gomes e prensou o cantor foi que ele deu mais um tanto para Bide se acalmar, ficar na dele. *** Foi lá no Estrela Dalva, no Largo do Rio Comprido, num sábado de gafieira. Bide estava lá na dele, tirando onda com uma das melhores damas daquele salão. Gostava de dizer no pé. Dançar para ele era alívio de alma. Quando o porteiro lhe falou em voz alta, por causa do volume da música: — Alves tá te chamando lá embaixo. Bide saiu tão ligeiro que a rapaziada foi toda atrás, pensando que era briga. Quando chegaram, viram Alves descendo do carro e apertando a mão de Bide. — O senhor é o Bide do Estácio? — Sim, senhor, às suas ordens. Tranquilidade? — Você que é o dono desse samba que tava cantando aí? — Sim, de minha autoria. — Você quer que eu grave esse samba? — Depende. — Eu vou gravar esse samba. — Mas como você vai gravar? — Eu vou marcar com você. Você vai à minha casa se encontrar comigo pra me dar a música e a letra. — Mas quando vai ser isso? — Segunda. — Segunda eu não posso. — Então vá na quarta de manhã, por volta das nove. Na segunda-feira foi ao escritório de um conhecido pedir-lhe que batesse a primeira e a segunda do samba à máquina. Na quarta procurou Alves, que foi logo perguntando quando Bide lhe passou o samba datilografado. — Este é o samba que eu escutei na Lapa? — Este mesmo! Oxente! — Cante, cante ele. Este aqui é quem vai escrever a música.
— Prazer, Rogério Guimarães. Bide cantou o samba várias vezes para o músico escrever e fazer a partitura. Tirava a música no violão. Rogério às vezes o mandava parar e ficava caçando nota. — Ô Bide, canta ele todo pra vê se eu aprendi. Ele cantava tudo de novo, com Rogério acompanhando. Alves aprendeu tudo com cada coisa no seu devido lugar. Parecia que era Bide cantando. O povo ali do estúdio dizia que ele imitava até os trejeitos do compositor. — Eu vou gravar esse samba amanhã de qualquer jeito. Quero que entre no disco novo. Que música boa, rapaz! Que melodia maravilhosa. — Vai gravar amanhã? — É, mas você não pode ir à gravação, não. Mas eu mando te avisar quando ficar tudo pronto. — Tá bom, então. — Ah, tem outra coisa. Quando for cinco e trinta da tarde, você vai na casa de música Vieira Machado pra assinar contrato de edição. — Onde é isso? — Fica ali, rapaz… É… Ouvidor com São Francisco. Bide foi pra casa sem saber o que realmente estava se dando naquela transação. O cantor não falava tudo às claras, ia dando a entender aos poucos que de alguma forma iria fazer um acordo, mas não dizia qual. O compositor passou a noite praticamente acordado. Não sabia se comemorava, não sabia se era falta de educação falar em dinheiro. Era o maior cantor do Brasil. Poderia ser um favor gravar uma música dele. Não, isso não: o samba era de sua autoria, tinha de receber um dinheiro. Saiu de casa bem antes da hora para chegar às cinco e meia. Fora uma pilha andando ao léu por dentro da oficina de sapatos o tempo todo. Não conseguia se concentrar em nada que pegava para fazer. Quando deu o horário, foi entrando estabanadamente. O próprio Alves veio com o papel para ele assinar. Era só um contrato de edição da partitura. Não assinou contrato de gravação, nem nada. Não falou em dinheiro. Não cogitou parceria. Na cabeça dele, era um favor que estava fazendo àquele negão ali do Estácio. Ele, o maior cantor talvez do mundo, gravar uma música de Bide. Tinha era que dar graças a Deus. Foi embora dali sem saber o que pensar. Não sabia direito o que tinha feito. Foi aquela conversa mal lavada, sem clareza de trato. Tudo muito assim, mal conversado. E aquele medo de falar com homem branco, rico, famoso, enfim, homem de poder. Encontrou Caninha e Barbosa num boteco, contou a história para indignação dos amigos. — Esse cara é safado, muito safado, muito sinistro, sinistraço. Volta lá e desce a lenha nele — botou fogo Barbosa. — Vem cá. Você leu o contrato? Vamos voltar lá e pedir para ler o contrato de novo — disse o velho amigo Caninha, companheiro de bebida, de roda de samba. — Eu li. Era um contrato de partitura. — Falava em dinheiro? — Não. Não falava nada. — Meu irmão, comé que tu assina uma parada sem dinheiro? Você deu a música pra ele. Você acabou de dar a sua música pro malandro. Eu não acredito que você fez uma besteira dessas. — Eu achei que ele falaria alguma coisa. — Não tem atitude, não, cumpádi? Qualé a de vosmicê? — disse Caninha.
— Deixa isso pra lá! Daqui a pouco eu faço um monte muito melhor do que essa que fiz pra ele. — Vai dá uma de otário? Essa que vai dá dinheiro. Se eu fosse você ia lá e quebrava ele — afirmou Barbosa. Bide ficou sem paz de espírito depois desse acontecido. Fazia que estava tudo bem para Caninha e Barbosa não ficarem lhe enchendo os ouvidos. Tinha essa dor amarrada no peito. Não gostava de ninguém remoendo a ferida. A coisa apertou quando saiu o disco. Foram lá na Casa Edison. Não veio o nome de Bide como parceiro. Falaram tanto ali mesmo. Queriam bater no funcionário. Caninha e Senhor pediram várias vezes o endereço de Alves e nada. Iam quebrar tudo lá dentro. — Deixa isso pra lá, que ele vai me pagar de outra maneira. O disco saiu, a música era tocada nos teatros, nas casas de música, nas festas. Sucesso geral. A raiva era rejuvenescida a toda hora. Quando tocava a música, em qualquer lugar que estivesse era aquele sangue fervendo, uma raiva sempre tomando corpo. Não podia ficar assim com aquela dor. Bide ficou sabendo que Alves iria se apresentar no Teatro Carlos Gomes no final de semana. Era a primeira oportunidade de encontrar o cantor depois daquela transação. — Vamo lá, meu cumpádi, porque eu não tô querendo nem mais dinheiro, eu quero é dar umas bolachas nele e vai sobrar pra todo mundo que tiver junto. Caninha e Bide andaram a Rua do Estácio, subiram a Frei Caneca toda em direção à Praça Tiradentes. Entraram no teatro com o diabo no corpo. Não ia ter essa de ser branco, rico, famoso, não. Ia entrar na porrada se ficasse de marra, se não quisesse pagar. Alves ensaiava em cima do palco. — Meu amigo, eu quero meu dinheiro agora, pelo meu samba. Você não deixou claro que aquela porra daquele contrato que eu assinei era para te dar a música. Quero meu dinheiro. — Calma, Seu Bide! — Calma nada! Desce daí que eu quero conversar com você de homem pra homem. — Vamos conversar, peraí… — Agora não tem conversa contigo, não. Já era pra você ter me pagado há mais tempo. Esse papel que você fez comigo aí, ó. O maestro Freire Júnior se aproximou quando notou que o negócio ia esquentar. — Vou pagar o senhor, seu Bide. — Eu vou te falar uma verdade, porque eu sou sujeito-homem: se tivesse meu nome na música, eu não ia querer nem dinheiro, não! Você tá me entendendo? Agora é o seguinte: não pagar nada nem dar parceria num trabalho que eu fiz letra e música sozinho. Dei tudo de mão beijada, meu irmão. — Eu vou pagar o senhor, Seu Bide. Só um minuto, que eu vou pagar o senhor. Freire Júnior rapidamente ligou para casa. Combinou que mandaria um portador levar uma quantia para ele a mando de Alves. Eram duzentos mil-réis. Bide aquietou-se enquanto o maestro escrevia o endereço. Receberam o dinheiro da filha do Freire Júnior numa casa na Rua Almirante Alexandrino. Com isso, ele se contentou, mas só até saber que o disco estava vendendo até nos Estados Unidos. — Vou embargar o disco. Vou entrar na Justiça. Se ele não me pagar uma porcentagem da venda, eu meto no juiz. Não quero nem saber. Fez parada na porta da Casa Edison por vários dias. Alves só apareceu após três semanas. — Eu tô sabendo que o disco é sucesso lá nos Estados Unidos. — Isso é mais propaganda do que verdade, rapaz. Sossega seu coração. Eu vou gravar mais coisa tua. Vamos ser grandes parceiros, com tudo assinado, bonitinho. Vou gravar um monte de música sua,
se Deus assim permitir. Mas o fato de Alves comprar uma música de Silva já era mais um avanço. Sentia-se orgulhoso de ter sido o primeiro ali da turma da nova geração a gravar com um grande cantor. Parece que ele tinha aberto a porteira pra toda aquela rapaziada.
SILVA SABIA o valor do dinheiro, porém o mais importante era ouvir o povo recantar sua música nas ruas, ligar a vitrola e escutar o maior cantor do Brasil executar sua melodia, exprimir seus versos. Isso iria se multiplicar quando começasse a tocar no rádio, essa caixinha mágica que entrará no dia a dia do povo, que vai fazer sua poesia cair nos mais diferentes pensares carregada de sentimentos que adorava colocar em rima, em tons maiores e menores. Vivia para ser artista, iria agora versar para milhares de pessoas através do disco. O Estácio começou a tomar conta do mundo. O compositor chegou em casa com dois litros de álcool que comprou na drogaria da esquina, tirou a roupa e o jogou pelo corpo todo, colocou um terno S-120 branco e foi para o Bar do Apolo, feliz como coelho de Páscoa. Os amigos se surpreenderam com a sua presença altiva, com um sorriso que apagava tudo que lembrasse a enfermidade. Quando ele pisou no bar, Bide puxou o samba que Alves queria comprar e todos fizeram coro. Silva deu uns passos, rodopiou, fingiu que ia cair em cima de Bide para lhe tomar o tamborim, também fez coro tocando o instrumento. Repetiram a música inúmeras vezes entre rodadas de cerveja. — Bota um remédio pra mim aí. Um dos empregados do bar despejou cachaça num copinho, quando Silva ia pegá-lo Brancura pulou e bebeu antes dele. — Só depois de quarenta dias… Bota uma água mineral pra ele aí. Quarentena, tá de quarentena… Com o sucesso de Me faz carinhos , Silva ria à toa, seguro de que um novo ritmo estava sendo lançado para sempre na história do Estácio. Até passaria na casa de Tia Almeida e falaria o que quisesse para aquela rapaziada da antiga metida a fazer samba, com músicas que não passavam de ongo, maxixada, polcada, tangada de argentino, schottish ou qualquer outra coisa que lembrasse procissão de católico pecador metido a santo. Samba de verdade tinha que ter o sal do batuque dos terreiros de Umbanda e Candomblé, uma batida grave pra marcar, umas agudas pra recortar. Era só fazer a segunda e a primeira bem definidas, botar o ritmo pra frente, que nem se toca na macumba pra fazer santo baixar e subir quebrando demanda, levando o mal para sumir no infinito de Aruanda e espalhar a paz no coração dos filhos da terra. Essa coisa de ficar imitando os portugueses, os franceses, os argentinos estava na hora de parar. A boa era dar continuidade à batida que vinha dos países da África, das senzalas, dos quilombos, dos terreiros, do lundu. Samba pra desentortar esquina, tirar paralelepípedo do chão, engrossar a batata da perna, espantar os males de quem anda, canta e dança. Samba para se desfilar na rua.
TIA AMÉLIA OFERECEU a escolinha lá em cima do morro para ser o lugar do cozido que ela mesma prepararia para a audição da primeira execução da música no toca-discos. Silva aceitou por causa da felicidade que Ernesto sentiria lá no céu. Também tinha estima pela velha Tia Amélia, que passou a vida dando aulinhas de reforço para os amigos dele que iam mal no colégio! Quantas crianças seguiram o primário e o secundário todo por causa dela. Isso mesmo: aqueles alunos que requisitavam mais tempo para aprender ou não conseguiam resultados iam direto para a escolinha de Tia Amélia. Voltavam aprumadinhos para seguir a matéria. Era uma luz de transmitir conhecimento. Valdemar tinha tomado jeito de homem para sempre depois da surra que recebeu. Aprendeu a profissão de mecânico por completo, abriu uma oficina na Sampaio Ferraz, seguiu fazendo vida de bacana: só andava alinhado, alugou casa na Haddock Lobo, comprou jogo de sofá para Tia Amélia na loja do Seu Bartolo, espanhol gente boa da Tijuca. Arrumou namorada prendada também nos estudos e logo, logo iria pedir a mão de Célia em casamento para tentar ser feliz para sempre. Não deu bola nem para Valdirene, nem para Brancura. Ivete, também a pedido de Tia Amélia, foi escutar Me faz carinhos na interpretação do Rei da Voz. Certo foi que Valdirene ainda a olhou com desdém, teve circulação de sangue mais rápida, um imbróglio de estômago, mas nada mais. Ficou na dela naquele ambiente de respeito. Seu Antônio das Cabras levou a família toda. Seus filhos convidaram a turma de capoeira. A tarde toda foi de samba. Era um trabalho do nêgo preto daqui, amigo nosso, poeta nato, bamba, mestre, inovador. Era assim que o povo todo se sentia, a turma que parava tanto no Café do Compadre como no Bar do Apolo. Seus amigos compositores escondiam bem a inveja por maior que ela fosse. Nada ali desataria coisa ruim. O orgulho era mesmo maior que tudo. Era um deles que falava pra todos ouvirem. A vitrola foi posta numa cadeira perto da janela. Fizeram silêncio. Só a música tomou conta da tarde. A voz de Alves cantando Me faz carinhos entra no ar. O timbre, o arranjo, a interpretação, o toque dos instrumentos numa coisa de doido. Silva, ao lado da mãe e da irmã, com terno branco, meias brancas, sapatos brancos, lenço vermelho, deixou caírem lágrimas no final da execução, quando todos bateram palmas. Era dali a música que se gravava agora, o poeta estava entre eles. Durante a tarde cantaram outros sambas, falando muita coisa boa da gravação enquanto degustavam o cozido de Tia Amélia. O disco não parava de rodar. Essa sensação de que se podia crescer através do aprendizado era que dava mais cor à vontade de viver, pois a força da escola também crescia, porque todos sabiam que Silva fora bom em tudo no período escolar, que aprimorara os seus dizeres nas aulas de redação de Dona Marília, sua professora de português, que fora lá que se encontrara com a filosofia, a poesia escrita, a matemática, a história. Era por isso tudo que partia agora para a palavra cantada, gravada em disco, nos ouvidos de todos. Sodré se aproximou com duas francesas. Brancura fingiu que não viu, Valdirene também disfarçou. Sodré apertou a mão de Silva, deu dois tapinhas em suas costas, seguiu a subida do morro para ir à fazenda do seu Antônio das Cabras. Valdirene viu Brancura olhar para as francesas com rabo de olho, fechou a cara, foi para o canto, onde ficou a maior parte do tempo. Tinha a certeza de que ele estava com inveja da vida que Sodré levava com aquelas brancas da Europa. Sabia que o marido saía futucando as louras sempre que possível. Teve até uma italiana que com a maior cara de pau do mundo foi até a casa dela fora do expediente procurar por seu marido, dizendo na língua dela misturada com o português que precisava de proteção. Teve vontade de sair de cima das sandálias, cortar a cara da prepotente, mas não era de
fazer vexame por nada neste mundo. Era a puta mais linda da zona entre as negras, brancas, índias e loiras. Sempre houve pretendentes querendo levá-la dali pra fazendas de São Paulo ou de Minas, pra viver em outros países; homens que largariam a família por ela. Mas que sentia raiva, sentia, quando ficava sabendo das andanças de Brancura com as polonesas, italianas, russas, e outras dessas de boceta rosa em que eles gostavam tanto de meter. Brancura sentia atração pelas mulheres da Zwi Migdal. Gostava do contraste das peles. Era diferente o modo como elas chupavam. Tinha umas que gostavam de ficar olhando nos olhos enquanto os malandros metiam, havia aquelas que tinham um gozo atrás do outro na trepada toda, as que demoravam mais e falavam “não para, não para, não para”. Tinha capoeira que se dizia cansado dessa coisa de ficar só fodendo portuguesa, africana e índia. O negócio era reservar três de cada continente para meter gostoso, dar proteção afastando os papudinhos de plantão, os apaixonados, os babacas que não queriam pagar. Tinha várias espécies de negras, várias de brancas e as indiazinhas dos peitinhos marrons. Para elas, era tudo dor. Nada nessa vida poderia ser mais dolorido do que ser escrava sexual. O passado completamente decepado, as lembranças da paz deixadas de lado. Era melhor nem lembrar. Tinham que viver aquela vida que a guerra impusera. Engolir a traição dos homens da Zwi Migdal, o poder da força bruta, a crueldade humana em sua maior exuberância. A maioria vivia o tempo todo armando para sumir dali no primeiro momento oportuno, e foram muitas as que saíram para nunca mais voltar, sem saber sequer para onde ir, mesmo passando fome e frio nas andanças cidade adentro, pedindo proteção e oferecendo serviços. Algumas, porém, voltavam por não achar solução para a vida, tinham de se acostumar com a tristeza. Mas só que onde há vida há desejo, e o amor tem poder maior que tudo. Com o passar do tempo, algumas começaram mesmo a gozar juntinho com a crioulada capoeirista da zona do mangue. Para esse mundo masculino de negros livres não poderia acontecer coisa melhor. Eram centenas de mulheres ao seu dispor, lindas, de todas as cores, para fazer amor. As últimas pessoas a saírem da casa de Tia Amélia foram as da família de Silva. — Pode contar comigo, que eu vou ajudar no bloco. — Tem que preparar a documentação, o livro de ouro, fazer a coisa bonitinha. A noite ia alta. Silva era só riso na volta para casa ao lado da irmã e da mãe.
SENTADO NO MEIO-FIO da Lauro Araújo, Brancura olhava a lua cheia em cima do São Carlos. Ficou encucado quando viu no caminho de volta pra casa Sodré passar dirigindo um carro com uma francesa com boca mole na maior alegria da face da Terra. Tinha então que arrumar mais putas para cafetinar, alugar e comprar casas como Sodré. Se não tivesse brigado com ele, estariam juntos nessa vida de escrava branca. Sodré fora malandro de verdade: preservou o emprego, fez acordo com a polícia, foi alugando casas, oferecendo proteção àquelas mulheres que ali eram jogadas sem entender bem o que estava acontecendo. Sua aproximação com a turma da Migdal também foi crucial para seu enriquecimento rápido, fácil, prazeroso. Aquela onda de andar armado dava certo poder ao sujeito. Silva já tinha revólver, Sodré também, a rapaziada toda tinha um cospe-fogo. — Quero uma dessas automáticas americanas. Comprou uma arma da mão de um marinheiro inglês que andou lá comendo as mulheres e pronto: saiu expulsando cafetão de meia-tigela na marra, foi tomando mulheres dos capoeiras de araque, alugando casa a preço mais baixo, a poder de sua valentia. Num movimento rápido, voltou a ser o rei da zona. Sodré nada fez, porque em nada dele Brancura mexeu. E não mexeria porque sabia que Sodré estava concubinado com a polícia, com os mandachuvas da Zwi Migdal; não era mais aquele portuguesinho de merda que vivia na sua sombra, não era mais aquele ex-veadinho da zona norte que chegou na zona com marra de chuletador. Era agora o bancário, homem de boa relação no funcionalismo público, cabra que tinha ampliado a distribuição de maconha na zona. Brancura estava sempre de butuca para matar Sodré sem que ninguém soubesse. Não que ele ficasse atrás do inimigo, só o mataria se o encontrasse sozinho numa escuridão qualquer daquelas.
DEPOIS DE Me faz carinhos, Silva passou a tocar em festas e bares, ficou metido que só, parecia dono do Estácio e da zona. Fazia questão de a cada dia vestir um terno diferente, chegar pagando a conta do bar sem mesmo ter bebido ou comido alguma coisa; dar esmola a todo mendigo que lhe aparecesse na frente; pagar bala pra criançada. Mas, mesmo assim, parte do pessoal não acreditava que a música de sucesso do momento de Alves era daquele negritinho metido a besta, de nariz para o céu, sorriso de bem-sucedido. Com a fama, ele e os amigos só falavam em criar um rancho, um bloco de corda decente. — A polícia não vai saracotear o cassetete na gente, a gente bota uns cabras de mão pesada pra fazer a segurança! — disse Silva por volta de meio-dia de uma segunda-feira no Bar do Apolo. — Quanto a isso, não tem problema, que aqui no Estácio o pessoal tem medo de se meter com a gente… Mas é bom a gente já tá preparado pra descer a lenha se for preciso — sugeriu Brancura. — Bloco de corda não é nem necessário, porque o povo respeita, é só pra nos livrar dos papudinhos. — Depende de onde for o papudinho. Se for daqui, a gente resguarda, mas se for de outra urisdição, não tem perdão, não. E também porque tem papudinho que bebe a cachaça dele, deita no chão e dorme. Mas tem esses caboclos que ficam papudinhos na intenção de arrumar briga, aí tem que levar saracoteada mesmo — insistiu Brancura. — E se a polícia vier, dessa vez, leva também — completou, passando a mão na cabeça da pistola. — Se o caboclo ficar papudinho, é só arrastar ele pro canto e deixar. O cara tá cheio de álcool, não precisa espancar. Carnaval é festa, não é pra brigar, não — amenizou Silva. — Isso mesmo, chega desse negócio de pancadaria no carnaval. A gente quer é brincar com a família, sem briga, sem morte, sem nada disso! — enfatizou Bastos, olhando para Brancura. Este, por sua vez, tentou fazer que não era com ele, que já saía de casa no carnaval pronto para arrumar confusão com o pessoal dos outros blocos quando estes desfilavam melhor ou igual ao do Estácio. Até mesmo quando o bloco não vinha com mais empolgação, ele arrumava encrenca por puro bairrismo ou pelo prazer de brigar. Cansou de se embolar no saracoteamento com o pessoal da Vila Isabel, do Catete, do Rio Comprido, do Grajaú sem quê nem pra quê. *** No último carnaval, um bloco de sujos entrou desavisadamente na Rua Senador Eusébio numa alegria intensa. Brancura não queria que bloco de sujos nenhum passasse em frente à Sociedade Carnavalesca Kananga do Japão, que se preparava para uma batalha de confete. Essa era a agremiação de carnaval mais respeitada da cidade. — Isso é abuso, tão a fim de arrumar pirilampo com a gente! O Kananga era frequentado por Hilário, Tia Almeida, João e Barbosa, além de José Espinguela, pai de santo que ele idolatrava como quem venera um orixá. Aliás, todos os sambistas da primeira e da segunda geração de baianos cariocas tinham adoração por Pai Espinguela, pois nenhum deles dava sua música como pronta até que o pai de santo dissesse que ela estava bem começada e bem acabada. Brancura tinha medo de o bloco de sujos arrumar confusão no rancho dos mestres. Tudo ia bem. Ele estava ali só para ver a saída da sociedade, com seus ilustres compositores. Lá iam cantores famosos, atores e atrizes do teatro de revista, até políticos visitavam aquela sociedade em bailes, festas, feijoadas, naquele momento saíam para desfilar na Praça Onze de Junho. Quando o bloco de sujos do Rio Comprido apontou na esquina, Brancura perdeu a tranquilidade. Foi à casa de um conhecido, no número sessenta e um, chamou Dentinho e Fumaça, amigos de outros carnavais, pediu a eles pedaços de madeira e falou da intenção de botar o bloco que se aproximava
para correr embaixo de pauladas. Josepha, que estava com ele, deu a ideia de quebrar uma mesa velha. Cada um pegou um pé da mesa de peroba e foi para a rua quando o bloco já se aproximava da sede do Kananga. Antes de sair, Josepha ainda foi até a cozinha e catou uma faca, foi na espreita unto com os três, disfarçando, com os pés de mesa escondidos, que a vida era só alegria: davam passos de dança, sorriam, cantavam, se misturaram aos foliões. No assobio de Brancura, saracotearam quem estava mais próximo. O bloco de sujos se destronou, a rua toda entrou em pânico numa aroeira das grossas, a saracoteada tomava fôlego no embaraçamento de sangue, suor, confete, serpentina e lança-perfume. Brancura batia sem bonzadez até que levou uma rasteira, três homens começaram a chutá-lo. Cruzou as pernas para proteger os testículos, com os braços protegeu o rosto e a cabeça, esperando a oportunidade de passar uma rasteira em um e, com as mãos, puxar as pernas dos outros dois, até que Josepha deu uma facada nas costas de um, que caiu estrebuchando. Ainda deitado, Brancura aproveitou para dar um tombo nos outros. Levantou-se, olhou espantado para a quantidade de sangue que jorrava do esfaqueado, resolveu sair dali, acreditando que o homem iria morrer. Ao dar meiavolta, ganhou um tapa no rosto. O agressor correu para dentro da barbearia de um italiano, que estava fechando as portas de seu estabelecimento. Brancura deu pauladas no homem, que tentou impedi-lo de entrar, enquanto Josepha o esfaqueava. A polícia chegou. Josepha foi surpreendida com a arma do crime na mão. Brancura, Dentinho e Fumaça saíram correndo. Foram perseguidos, mas conseguiram se livrar do flagrante. Josepha e mais um brigão pegaram três meses de prisão por terem ferido o italiano, um ator, um soldado do Corpo de Fuzileiros Navais e um praça do Exército. Dentinho e Fumaça foram procurados pela polícia, que os reconheceu na fuga, porém jamais foram presos por esse delito. Apenas Brancura, depois de dois dias, foi detido no Café do Compadre, conduzido à delegacia, onde negou envolvimento no episódio. Disse que não conhecia nem Dentinho nem Fumaça, foi liberado por falta de provas, mesmo já tendo passagem pela polícia. Essa briga deu o que falar no Estácio, porque o italiano era o barbeiro preferido de Bastos e de Baiaco. Foi ele quem mais sofreu na confusão, ficando por muito tempo em estado melindroso no hospital.
DEPOIS
DAS PALAVRAS
de Bastos, Brancura entrou numa mudez que permaneceu até o fim da
conversa. Silva ainda desenvolvia no Bar do Apolo, com Bide, Bastos e Edgar, a construção do bloco de corda, com um samba mais quente, que desse para o pessoal cantar e dançar numa boa. Repetia que estava cansado daquele ritmo molenga dos ranchos. Também não gostava desse tal bloco de sujos, cujos componentes desfilavam com roupas velhas ou fantasiados de mascarados, pierrôs ou colombinas na mais pura desordem, com ritmo desajeitado de latas e caixas. Blocos nos quais a polícia chegava descendo a ripa só porque a maioria dos componentes era negra, dizendo que era macumba de rua, também porque quando esses blocos de sujos de bairros diferentes se encontravam era um quebra-quebra sem fim, uma brigalhada de haver até morte. Queria um bloco de corda que na verdade fosse como os ranchos registrados na polícia, para evitar abusos da violência policial. O comércio promovia batalhas de confete antes mesmo do carnaval e, ao premiar blocos desse ou daquele bairro, acabava acirrando a competição, que terminava em luta de capoeiras e tudo o mais; até quem não tinha nada com aquilo mas passasse no meio na hora de bobeira era saracoteado da cabeça aos pés. Ninguém mais queria isso. Violência devia ser coisa do passado. E com a morte de Rubem, tudo levava a crer que o bloco União Faz a Força, que ele comandava, não iria sair. Esse bloco, também ali da área, era aquele no qual grande parte dos moradores do Estácio podia brincar o carnaval sem ser importunada (grande parte) pela polícia, já que atendia à burocracia do estado. Tia Amélia, que ia passando na rua, entrou num bar para comprar cocada, escutou só um bocadinho da conversa e foi logo falando: — Olha só, a gente tem que parar de falar sobre isso no bar, porque fala, fala, bebe, bebe e depois cada um vai pra sua casa embriagado e deixa tudo pra lá. Aí, só vai falar de novo quando estiver aqui bebendo outra vez, e fica nesse chove não molha de bebida e conversa fiada. A gente tem que arrumar uma sede pra desenvolver. Tem muita gente de família, muita criança que gosta da nossa música, mas não entra em bar. A gente tem que ter um lugar arrumadinho, com as tias organizando tudo, com tudo direitinho. Um lugar onde possa levar as crianças, tem muita gente de família que não para em bar de esquina, não. Vocês tão pensando o quê? Tem marido aí que não quer ver a mulher dele misturada em bar de prostituição e capoeira, não. Não quer saber se tem música de vocês gravada, se o bloco de corda vai ser familiar; não tem isso, não. Tem que fazer reunião num lugar decente. — Tia Amélia, se você não existisse eu te escreveria — falou Silva. — É desse modo que a coisa deve ser feita. O negócio agora é arrumar uma sede. — Pode ser na residência de qualquer um de nós. Se Tia Amélia estiver presente, não há quem proíba a família de ir — completou Edgar. — Na casa de qualquer um, não. Tem que ser num terreiro de Candomblé que tenha licença pra funcionar — finalizou Tia Amélia. Ficou certo que a primeira coisa a fazer era arrumar um terreiro em que pudessem se reunir toda quarta-feira após a sessão de Candomblé e de Umbanda. O povo já estaria presente, não custava nada ficar no lugar para criar o bloco. Tinha logo de avisar o pessoal do União Faz a Força que ia sair bloco novo na jurisdição, para acertar mensalidade. E que cada um que estava ali naquela reunião ficasse de olho num lugar ajeitado para fazer de sede.
NA PEREIRA PINTO, Valdirene sentiu piripaque na vagina e começou a aguar logo depois que cruzou com Sodré naquele sol de primavera fria. Fazia tempo que não sentia nenhum remelexo na boceta por outro homem que não fosse Brancura. Sodré fez que não a viu, mas a pica foi endurecendo pelo caminho, conforme se lembrava das fodas que tivera com ela. Havia meses que não a encontrava de bobeira na rua andando ao léu. Desde que voltara com Brancura o mundo dela era mais dentro de casa. Quase não atendia, não aparecia na zona. Só se dava a algum homem quando era gente de muito dinheiro, estrangeiro dos navios, português da parte nobre da cidade, militar de alta patente, músico consagrado, poeta. Tanta gente boa para trabalhar em paz. A zona do Mangue estava cheia de luz, com música por todos os lados. Muitos dos homens que iam ali, quando escutavam um samba novo de Bide, Bastos ou Silva, choravam de felicidade. Vinham esses tocadores de violão, que se ajustavam ao toque do tamborim, preparavam as entradas, as deixas, a altura. Era um ritmo a ser encontrado nas mãos da percussão, que era ampliada, reinventada, experimentada também nas flautas e nos cavaquinhos. Uma fala musical em construção. É certo que a música de Barbosa, Santos, João e Alfredo tinha frente ali também. Na verdade, era mais cantada e recantada nos bares, cafés e esquinas da zona do baixo meretrício. Fora ela, a música da casa de Tia Almeida, que inaugurara a cantoria naquelas ruas, trouxera gente de toda a parte da cidade para a Praça Onze de Junho, para os terreiros da região. Para fazer a Umbanda crescer dentro dos terreiros de Candomblé, os baianos traziam e retraziam os códigos de seus deuses da Bahia de Todos os Santos. Silva tinha orgulho dos compositores e músicos que já tinham ido tocar no exterior com músicas gravadas na boca do povo de todo o Brasil e em boa parte da França. Alfredo era a flor em melodia sentida de modo vertical, fosse na felicidade, fosse na dor. O sentimento das notas tiradas, as paradas de respiração, o tempo, a altura, a intensidade dos mestres. As letras de tudo o que se vive na vida em tons ali no calor das ruas de mulheres seminuas, de malandros em prosa afiada, de gente de todo o mundo misturada. A novidade era renovada a toda hora. Tudo isso o motivava a querer estar o tempo todo fazendo versos e notas musicais. Brancura olhava aquilo tudo sem entender muito o gingado de sua época. Gostava de compor, mas não tinha isso como principal atividade. A composição é companheira da gente o tempo todo quando se gosta de criar de verdade. Ele não era assim, tinha talento, mas vontade não tinha muita, não. Era motivação que só surgia quando estava na roda de música, com alguma dor de alma, ou quando bebia ou fumava maconha para variar o cérebro em metáforas que esqueceria depois, se não as anotasse rapidinho. É certo que quando escutava um samba de Bide ou de Silva sentia seu talento pequeno, achava que não tinha palavras assim para rimar. Não era conhecedor de nós da vida para escrever versos que todo o mundo sente. Até gostava de ficar matutando letra, musicando os sons, mas não era coisa que fosse seu jeito de ser. Não fazia isso por necessidade. Não era aquela coisa dos amigos de fazer arte sem saber lá o porquê. Não possuía a virtude de não tirar a atenção o tempo todo da possibilidade de tudo nesta vida virar poesia. Saía de roda de samba em roda de samba em Piedade, Catumbi, Mangueira, Tijuca, Pilares, Quintino, comprando sambas de outros artistas. De vez em quando, mandava o sujeito repetir uma composição várias vezes para ele decorar, tomando-a para si à força, na sugestão. Essa coisa de querer ser artista sem ter o dom verdadeiro, sem ter a dor, a paciência da construção poética. Querer ser artista sem dar a vida em troca é besteira, não vai longe, não. Porém, não abria mão da fama. Queria ser famoso, respeitado como artista, feito Silva. Ser considerado por toda a gente; as mulheres bonitas amam os artistas. Elas sentem vontade de transar
com os poetas. Silva não gostava, mas fazer o quê. Cada um com seu cada um. Se ele fosse Silva, comeria aquelas mulheres do morro que viviam a abraçá-lo e lhe roubavam beijos. Mas o músico famoso seguia de nariz em pé, sorriso moderado, sempre bem-vestido, modo de vida contemplativo, asseado, de bom humor. Brancura gostava mais dessa coisa de poder, de mandar e desmandar, de ser o maioral. Cada dia que passava queria mais dinheiro. Queria mais putas, queria alugar mais casas. Compraria um carro para tirar onda. Viciou-se em europeias. Não foi uma nem duas vezes que passou várias noites sem voltar para casa. Às vezes mandava recado para Valdirene dizendo que tinha muito malandro de butuca nas mulheres e que elas pediam a presença dele para poderem trabalhar seguras. Valdirene de início acreditou, pois é verdade que Brancura apresentava mais coisas novas nessa vida, levava-a aos cafés do Centro, às gafieiras, aos bares do centro e da Lapa, dava-lhe dinheiro para comprar roupas e tudo o mais. Eram casados de fato lá na casinha que tinham alugado. A questão é que tudo nesta vida cansa. E, quando cansa, aturar um modo de ser do parceiro, qualquer que seja, é muito ruim. A primeira coisa é parar de foder, quando acaba a paradinha de fazer gostoso e gozar assim sem fim a noite toda. O malandro metia por demais com as europeias e deu para rejeitar Valdirene de novo, agora por causa de uma francesa de pernas grossas, olhos azuis e cara de anjo; faltava-lhe a bunda redonda, mas uma coisa compensa a outra. A diaba parecia uma neguinha dali mesmo do Estácio. E fazia de tudo com ele com um apetite de leoa. Tinha-lhe amor, tinha-lhe o tesão maior que já se viu nesta vida. Ele, no começo, retribuiu, passou a ir à casa dela à noitinha. Sentia a necessidade de fazer a amada gozar várias vezes para ela não querer gozar com mais ninguém. Estava pensando em alugar uma casa pra moça, assim como tinha feito com Valdirene. Era tão gostosa que às vezes se formava fila para meter com ela. Isso lhe doía. Aqueles capoeiras tarados por brancas iam pra cima dela com vontade, e ela não resistiria e acabaria gozando. Nunca teve puta que gozasse com cliente, mas aquela francesa era tão tarada que puta que o pariu... Ficava intrigado, enciumado, por isso, no final do expediente, fosse a hora que fosse, fazia plantão na casa dela com “cara de marido”. Valdirene então voltou pra zona, já que Brancura estava se fazendo de rogado. Fazia força para ter prazer com este ou aquele, mas era tão puta que não tinha tesão com ninguém. Dominava a profissão. A ilusão de um dia viver só com Brancura, de ter filhos, a esperança de ele enveredar de verdade pela música ou de voltar ao trabalho na estiva tomava rumo do fim. Gostava mesmo era da putaria, do jogo de chapinha; às vezes pegava dinheiro daqueles que tinham pinta de otário. Tinha que tentar enfeitiçar um bacana daqueles, dar uma chave de boceta bem dada pra nunca mais o macho querer saber de coisa com outra mulher. Já havia feito isso várias vezes. Em todo o seu tempo de zona, sentia-se bem em amarrar homens. Quantos, quantos deles lhe tinham prometido outro mundo, quantos gringos quiseram colocá-la num navio para ter com ela uma vida de casado. Não perderia mais tempo com Brancura, mas também não entraria em confronto, não cobraria mais nada, deixaria a vida ir conforme ele remava, quando Brancura se desse conta ela já estaria no seio de uma família de verdade. O que não sabia era que sentiria piripaque na vagina quando visse Sodré todo perfumado, cabelo bem aparado, terno cortado, sapatos engraxados. Com Sodré, não tinha mais essa coisa de ficar comendo todas as mulheres do mundo, não. Experimentou todas e parou. Chegava lá sempre ao meio-dia e quinze, falava com cada uma das mulheres a que dava proteção, resolvia as pendências, almoçava e partia. Voltava às cinco, observava tudo, ia de casa em casa, falava o que tinha de falar com suas putas, saía pra resolver coisas com a turma da Zwi Migdal, com os polícias, com os atravessadores de maconha e seguia para os braços de Fátima Maria.
A esposa não sabia dessa ligação dele com a zona. Nem imaginava que aquele trabalhador austero do Banco do Brasil era tão envolvido com a criminalidade que tomava prumo naquele lugar. Fátima Maria acreditava que ele ia jogar com os amigos todos os dias naquelas três horas em que sumia após o serviço. Acreditava que o jogo não era um vício, já que não apostava dinheiro. Era só passatempo de homem. Sodré não bebia, não fumava cigarros, fumava maconha escondido sempre na mesma hora e no mesmo lugar. Ela não sabia nem desconfiava. A mulher aproveitava para passar na casa da mãe, brincava de amarelinha com as irmãs mais novas, de boneca, ensinava o beabá à irmã caçula e fazia chacota com o pai e com a mãe até Sodré tocar a buzina do carro. Às vezes ele entrava, jantava, escutava o noticiário com o sogro, bebia o vinho que ele mesmo levava, depois ia para casa meter em Fátima Maria com amor e afinco.
NAQUELE DIA, uma tremedeira, o pau duro feito pedra, medo de olhar para trás e de dar de cara com os olhos de Valdirene. Parecia que ela o estava seguindo. O pior é que ela ia com a boceta remolhando por vontade própria mesmo, fazendo força para isso não acontecer. Ele andava com o corpo todo numa tremedeira que o fez entrar por rua errada, dar a volta pelo quarteirão duas vezes. E ela ali, seguindo-o. Valdirene também não tinha clareza do que estava fazendo, coçava a vagina sem o menor pudor ali atrás dele abertamente. Sodré saiu da Lauro de Araújo, atravessou a Salvador de Sá, continuou pela Senhor de Matozinhos, desceu até a Pirassinunga, foi por ela até a Frei Caneca, chegou à Rua do Estácio. Ali a tremedeira passou, pois àquela hora não encontraria Brancura, que não veria Valdirene de rota batida na pista dele. Foi andando agora mais devagar, com o espírito mais controlado. Caiu na Frei Caneca. Valdirene continuou a seguir-lhe os passos. O que é o amor? Entrou pelo mato da beirada do morro de São Carlos, foi se embrenhando, já tirando a roupa. Ela veio que veio beijando-lhe o corpo todo, roçando nele como uma louca, chupando-lhe o corpo. Deitaram no mato, meteram sem falar nada um com o outro. Gozaram quantas vezes quiseram, até que ela se vestiu, saiu correndo com os olhos rasos d’água. Só agora tinha retomado o controle de seus atos. Até então havia sido levada por uma força alheia. Coisa de mulher. Sodré se vestiu, sentou no chão, acendeu um baseado, o coração em disparada. Nunca pensara que aquilo iria acontecer. Estava acostumado àquela foda com afinco, mas sem quentura como essa que teve com a vagina de Valdirene. Tinha a cabeça do pau e a abertura de pernas doídas. O cheiro dela em todo o corpo. Um homem não chora, um homem não pode deixar esses sentimentos juvenis voltarem de novo. Era amor aquilo de fazer coisa que não planejou? Agia como um teleguiado por uma força maior. A certeza de não ser nada, de não ter controle dos seus atos, que tinha coisa que quando queria fazia assim esse desespero de saber que o amor é pra nunca mais mudar de dono. Ela voltou também por força superior. Os dois não tiveram controle! O caralho ficou duro de novo.
LÁ NA HADDOCK LOBO, Tia Amélia comentava com Seu Cabelo Saad, dono da loja de armarinhos, que estava procurando casa para alugar. Ele dizia que uma de suas casas iria vagar, demoraria um tempo, mas estava garantida para ela. — Não é pra mim, não, é pro bloco de corda que a gente tá fazendo. Depois que a gente fizer o registro pode ter sede, fazer bailes, pode fazer tudo. Seu Saad disse que, se ela estivesse junto com a turma do bloco, ele alugaria de olhos fechados. O libanês tinha paixão por Tia Amélia, pois fora ela que dera jeito no filho do comerciante para que seguisse os estudos e que ensinara a tia-avó de Saad a falar o português. Não tinha problema em deixar as crianças sumirem lá pra casa de Tia Amélia, mesmo que não fosse por causa da aula. Gostavam de comer a comida da explicadora, de dar comida às cabras de Seu Antônio, de comer o doce de banana que ela fazia, o acarajé, o feijão doce, a cocada. Tudo que aquela baiana cozinhava era gostoso. Da varanda de Tia Amélia via-se toda a Marquês de Sapucaí, o Catumbi, o morro de Santa Teresa, a Praça Onze inteira, o Estácio e a zona do baixo meretrício, que de longe era normal. A felicidade de saber que a casa estaria reservada para o bloco deixou Tia Amélia de fala aberta: — Silva faz versos com poesia de verdade. Se o senhor ler Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, João do Rio, vai saber do que eu estou falando. Ele é um poeta de hoje. — É mesmo, é? — Se não fosse assim, Alves não ia comprar um samba dele. Sabe esse samba que tá fazendo sucesso aí na voz de Alves? — Ahã. — É dele. Ele fez sozinho e tem outras composições. Era assim, lutando pelo bloco, que Tia Amélia vivia depois daquela pequena reunião que teve com o pessoal. Era atinada para a vida desde lá de Alagoinhas, quando ainda criança: gostava das anedotas e histórias de assombração que os mais velhos contavam nas cadeiras de balanço de frente para o quintal. Gostava de tudo que fosse arte. Quando aprendeu a ler, saía de casa com livros de Machado de Assis e Lima Barreto, que lia em voz alta para o pessoal, que, sentado numa roda, adorava escutar. Foi a primeira negrinha daquela cidade a procurar escola no peito, junto com sua família. O colégio católico Santa Siciliana não queria aceitá-la. Fez birra, montou prontidão na porta da sala do padre-chefe do colégio até ele deixar Amelinha se alfabetizar no meio daqueles meninos que não gostavam de meninas, ainda mais negras. Não lhe dirigiam a palavra. Aprendeu tudo sem fazer pergunta às madres-professoras, sem dizer que não tinha entendido essa ou aquela questão. Entrava muda, ficava quieta, saía calada de tanta discriminação. As professoras também não dirigiam a palavra a ela. Veio com o pai, que foi trabalhar no petróleo, e com a mãe, que virou quituteira do Largo do Estácio, até seus cento e quinze anos de vida. Há tempo seguia a Umbanda, que conheceu no terreiro de Mãe Mariana. Gostava de tudo que fosse novo na arte, na religião, nos estudos, nos costumes. Tia Amélia saiu da casa de seu Saad querendo encontrar Silva, Bide, Lopes, Baiaco, Bastos, Brancura, Edgar. Avisaria que já tinha um lugar em vista para fazer as reuniões, agora era só se ajustar à lei, e brincar um carnaval sem a dor das agressões policiais. Andar, dançando e cantando livremente é a melhor coisa que um povo pode fazer para ter momentos de felicidade. Lá na Rua do Estácio, Silva falava com seu Cristalino Pereira, ex-sargento-músico da polícia militar, agora motorneiro de bonde, morador e encarregado do conjunto de casas de cômodos vinte e sete, vinte e oito e trinta e um da Rua do Estácio, sobre a possibilidade de fazer as reuniões do bloco numa sala grande de um porão que estava vago.
— Claro, meu querido, mas só não quero bagunça, palavrão, briga, neguinho fumando palmeirense, pode até beber um negocinho, mas não quero malandro dando alteração. — Não, meu nobre, a reunião é de família, nosso bloco vai ser familiar. — Então tá liberado, se eu não tiver em casa, pode falar com meu filho Biju que eu vou dá uma ligada nele. Tia Amélia ainda pegou o fio da conversa e foi logo dizendo: — Não precisa da casa do senhor, não. Eu falei com mãe Mariana. Pode fazer a sede lá no terreiro dela. Ela conseguiu a licença com o deputado Nicanor Nascimento para o terreiro funcionar. Depois das obrigações dos santos, dá pra fazer a reunião a qualquer dia, podemos até cantar e tocar. — Onde mora a mãe Mariana? — No cento e quinze aqui da Rua do Estácio mesmo. — Ah, sei! Tá tendo macumba lá todo dia. Por que a senhora não me avisou? — Eu ia te falar, menino, oxente! Só que não te encontrei! Tem vez que você some… Tava onde? — Tava por aí, não se preocupe, não. Mas vamos fazer aqui em casa mesmo. Seu Cristalino já foi da polícia, é mais seguro. — Tua saúde tá boa, né? — Tô bom já. — Ah, eu também falei com Seu Saad sobre a sede. Ele disse que pode alugar pra gente ali na Haddock Lobo, cento e quarenta e dois. É só ter paciência para o outro inquilino sair. — Ali é um bom lugar, mas por enquanto a gente se reúne no vinte e nove mesmo e na casa de mãe Mariana a gente faz quando não der pra fazer aqui em casa. E agora, com a licença dela, a gente pode fazer reunião em qualquer dia. Não é isso? Esse deputado Nicanor Nascimento é mesmo bom pra gente, né? Se não fosse ele, isso tudo não iria vingar. Eu já fui lá tomar um passe, é ali bem perto da padaria. — Respondeu Silva. — Vou deixá-la avisada pra qualquer emergência. — Então a gente já tem duas sedes! Nos números vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove e trinta e um da Rua do Estácio, era um cortiço onde, além de várias famílias, moravam também, no mesmo quarto, Silva e Manuel, malandro ogador de chapinha com quem Silva tinha relações sexuais sem muito compromisso, transavam bem, tinha calor, mas não se amavam. Outro morador do cortiço era Lacerda, talentoso flautista, frequentador da casa de Tia Almeida, grande motivador da feitura do bloco. Adorava as canções da turma. Estava sempre na zona tocando com os compositores.
BRANCURA VIU VALDIRENE no Bar do Apolo de bebida em punho em conversas de risos com suas amigas. Fazia tempo que ela não ficava em corriola de botequim. Ele parou, teve impedimento também por vontade imprópria de se aproximar da esposa. Deu três passos para trás, quebrou para dentro da esquina, fez meia-volta, partiu dali com o coração estourando de bateção de agonia. Que porra era aquela que o fazia agir assim? Passava as mãos no rosto, as sacudia em gotas de suor à luz do sol de cinco de setembro de mil novecentos e vinte oito. Sentou no meio-fio, olhando bem dentro da tarde, estava tão ali na dele que ninguém ousou interromper aquela cara séria, de olhos em ponto fixo, com um vazio para percorrer. O malandro queria comprar um carro, ter dinheiro suficiente para morar no lado rico da cidade, assim como Sodré. Era só mandar bala na zona, tomar mais puta de cafetão na marra, expulsar aqueles caras-pálidas da Migdal pra ficar com suas mulheres, alugar mais casas e seguir em frente. O suor foi se acalmando, o frio na espinha foi indo embora. Levantou-se e seguiu para a casa de Marie. Valdirene, ainda no bar com as amigas, se sentia muito à vontade com tudo. Tinha essa coisa de viver o momento e pronto. Depois que meteu com Sodré no mato, sua serenidade voltou. Tinha gostado do que aconteceu, falava amenidades com as amigas, ria das besteiras que elas diziam entre goles de champanhe com pedrinhas de gelo e tragos de cigarrilha francesa que o pessoal do porto vendia, dava ou deixava por lá para elas fumarem. Sodré foi pro trabalho sem almoçar, sem se lavar. Entrou na repartição com o boa-tarde costumeiro, sentou à sua mesa, fingiu que trabalhava. Não queria que tal coisa tivesse acontecido. Por isso não daria mais confiança a ela. Não passaria mais pelos cantos em que Valdirene costumava ficar e, mesmo que a visse, não olharia para ela. Seguiria seu rumo. Seria burro demais se desse trela de novo. Tinha aprendido, tinha sofrido bastante para saber dizer não aos sentimentos que lhe trouxeram tanta dor. O português ficara amigo do detetive Bezerra, porta-voz da polícia junto a ele, ao pessoal da Migdal e à turma da maconha que vinha de Palmeira dos Índios. Os dois andavam juntos no centro da cidade nos almoços, cafés. Homens de respeito. Sodré ganhara posto dentro do banco, era uma espécie de autoridade para o povo, para a família de Fátima Maria. Diga-me com quem andas, que eu te direi quem és. No tempo em que andava com a negrada do Estácio em rodas de samba, metido com bebida, plantado em porta de bar de esquina, era amigo dos capoeiras, sua vida era um desalinho de brigas, saúde fragilizada pela bebedeira. Homem casado vive mais, usa a mulher como freio pra não cair em desatino, para não perder a honra. Na verdade, mulher não é freio, é equilíbrio. Fátima Maria sabia tudo de cor e salteado quando o assunto eram números, só não crescia dentro do banco porque era fêmea, mas mesmo assim ganhava bem. Foi uma das primeiras mulheres a trabalhar ali, concursada em mil novecentos e vinte e quatro, com vinte anos de idade. Queria agora sair de férias junto com o marido, ir a Portugal buscar os avós, ter uma filha e dois filhos, comprar uma casa em Petrópolis, ser feliz para sempre contando os Natais. Um primor de filha que nunca dera trabalho à família. Aprendeu a ler no sofá de casa tomando aulas do pai. Era pessoa de leitura, entendia de política, tinha cultura, gostava de Mário Reis e Alves. Tinha paixão pela música da Praça Onze, amava os cafés-cantantes, os chopes-berrantes da Tiradentes, da Rio Branco, da Cinelândia, das ruas da reforma de Pereira Passos. Era mulher inteligente, ligada na arte que se produzia em seu tempo, fosse música, pintura, teatro ou literatura.
MÃE MARIANA, a convite de Tia Amélia, para trazer energia positiva para a reunião, passou o defumador em todos os cantos daquele espaço enquanto os outros cantavam. Defumavam com as ervas da jurema, defuma com arruda e guiné bijuí, alecrim alecr im e alfazema alfazema Vamos amos defumar, defumar, filhos de fé. Cantaram a ponto de bater cabeça, louvaram Oxalá, Ogum, os pretos velhos e todos os exus da casa que foram chegando. Mãe Mariana saravou, no terreiro improvisado, um por um, e eles deram consulta, passe, organizaram uma corrente, fizeram crescer a energia positiva de todos que ali foram criar a primeira escola de samba do Brasil. Por fim, cantaram para subir para Aruanda e para fechar. Depois que acabou a gira começou a reunião. Estavam Silva, Lopes, Bide, Edgarzinho, Brancura, Bastos, Baiaco, Edgar, João Nina, Valdirene, Valdemar, Ivete e seu marido, o alfaiate Gilberto Assemany, Lacerda, mais uma turma que frequentava os bares do Apolo e o Café do Compadre e que o próprio Silva tinha convidado. Também se fazia presente um monte de pessoas que só foram porque Tia Amélia estava no pedaço e isso era sinal de coisa séria, bloco de respeito, coisa familiar. Se as putas e os malandros fossem não haveria problema, pois há momentos em que se deve misturar tudo sem nenhum preconceito ao sabor da arte. Foram também os componentes do bloco União Faz a Força, que o falecido Rubem comandava. — Boa-noite Boa-noite a todos aqui reunidos reunidos — disse Silva. — Em primeiro lugar, lugar, quero agradecer ao senhor Cristalino Pereira dos Santos por ceder o espaço para a nossa primeira reunião. Bom! O intuit intuitoo de criar c riar esse bloco é pra gente gente poder brincar com nossas nossas famíli famílias, as, sem ter ter que ficar recebendo r ecebendo pancada da polícia; políc ia; sem ter que ficar nessa coisa de rixa com esses blocos de sujos, gen gente te do entrudo, esse pessoal que não quer brincar, gosta de arrumar confusão pra cima da gente, de todo o mundo aí, como todos tão carecas de saber. O bloco vai ser de corda. Nos quatros cantos vai o pessoal da força… Só podem entrar entrar na conta conta os sócios que estiverem em dia. Assim a gen gente te vai poder brincar com a máxima áxima segurança, segurança, com a document documentação ação certinha. certinha. Tia Amélia Amélia poderia complementar aí com umas palavrinhas… — Então, Então, gen gente! te! Os ranchos ranchos já desfilam com cordas, tem muitos uitos blocos, muitos grupament rupamentos os carnavalescos que brincam com corda para evitar briga, que alguma criança se perca. A gente tem que criar uma diretoria, pegar o nome de todo mundo que vai participar e pronto. — Todo mun undo do sabe que o samba samba que a gen gente te faz aqui é outro outro — emendou emendou Bide —, a gen gente te vai poder andar, cantar cantar e dançar num num ritmo ritmo gostoso, gostoso, né, Silva? — É, se seu Cristalino permitir, permitir, a gent gentee vai cant c antar ar uns uns sambas para ir aprendendo, aprendendo, escolh escol hendo e se acostumando com o ritmo. — Mas vamos vamos ao que interess interessa, a, Seu Oswaldo Boi de Papoula. A gente gente precisa precis a de uma uma pessoa assim que nem o senhor, que já possui experiência. Eu tava conversando hoje de tarde com Silva, e depois a gente gente falou com Bide, que a pessoa mais certa para ser o president presi dentee do bloco bl oco seria ser ia o senhor. senhor. — Que Que é isso, i sso, minha minha filha! filha! — ponderou ponderou o estivador. — Eu posso ajudar no que for for preciso, pre ciso, mas o president presi dentee tem que ser o Silva, que teve a ideia idei a de criar cri ar o bloco blo co de corda, é ele que vem falando com todo mundo, que vem bolando música nova. Eu tô aqui pro que der e vier, mas não posso aceitar. Fico muito honrado, mas não posso aceitar. E também a gente… — Já que fui citado, eu queria dar uma uma palavrinh palavr inha. a. Olha só, s ó, a gen gente te vem bolando esse bloco há muito tempo, mas a contribuição a ser dada é a música, o ritmo, entende? Eu e os demais aqui
presentes também também não não temos temos talento talento para administração. administração. O senhor senhor já tem intim intimidade idade com esse setor. Foi por isso que Tia Amélia sugeriu seu nome. — O senhor senhor foi diretor do Rancho Rancho da Papoula, tem experiência com administração, administração, e eu vou ajudar também — falou Tia Amélia. Seu Oswaldo acabou aceitando. As pessoas tinham muito respeito por esse estivador, morador antigo do bairro. Estava sempre de bom humor, respeitava todo mundo, tratava bem as crianças, os velhos. Homem de bom coração. — Para a fun função de técnico técnico responsável pelas alegorias e figu figurino fica seu Armando Armando Fonseca Leite. Ele aceitou sem pestanejar pestanejar.. Valdem ald emar ar agia com c omoo se s e nunca nunca tivesse tives se visto vis to Vald Valdir irene, ene, Brancu Bra ncura, ra, nem ninguém ninguém.. Tornara-se Tornara- se um belo bel o rapaz de respeito. Tia Amélia foi botando tino em seu querer, ordem nos seus afazeres dentro de casa, na rua, no trabalho. Garoto de boa-fé, de respeito r espeito aos mais velhos, às crianças e às mulheres. mulheres. Ia casar. Fazia carinho na namorada. Só não a beijava na boca ali no meio de todo mundo porque era feio. Ivete foi falando para Tia Amélia que estava grávida, que o médico tinha dito que o bebê estava bem. bem. Tinh Tinhaa se formado, formado, dava aulas ali a li mesmo mesmo no Estácio, Estácio, na escolinh escol inhaa primária, e num numa escolinh escol inhaa da Penha. Não tinha ficado rica, mas tinha mudado de vida. Ao casar com Gilberto Assemany, alfaiate libanês conhecido na Tijuca, alugou um apartamento de dois quartos e dependências completas na Rua do Matoso. Portava-se como Valdemar diante de Valdirene e Brancura. Era como se eles nunca tivessem existido. Nunca mais existirão, aconteça o que acontecer. Era mulher de muita inteligência, de caminhar firme na direção daquilo que queria. Sua mãe fora morar com ela. Largara o batente para viver na igreja fazendo passeios com o grupo jovem, fazendo visitas a hospitais para rezar com os doentes. Já Valdirene não conseguia olhar nos olhos de Brancura, nem sentir o cheiro do perfume francês dele. A trepada com Sodré de alguma forma também agia no seu jeito de ser. Mas ela disfarçava, puxando puxando assunt assuntoo com as amigas, amigas, falando falando coisas à toa com qualquer qualquer um. um. Brancura Brancura agora a gora olhava para Valdirene aldir ene como como se não a tivesse evitado ao longo longo do dia. Como se não tivesse tido suador por causa da energia dela. Olhou para o céu, se perguntou se ainda tinha tesão por ela. Sentiu Sentiu vontade vontade de voltar para pa ra perto pe rto de Sim Si mon one. e. — Ag Agora ora a gen gente te quer arrumar arrumar uma uma pessoa que cuide das finanças, finanças, que faça um livro livr o de ouro. Então é assim, tem que ser uma pessoa de respeito, em quem todo mundo confie — disse Tia Amélia. — Deve ser uma uma pessoa que tenh tenha a nossa confian confiança ça e a confiança confiança de todo mun mundo do da jurisdição. jurisdiçã o. — Padre Valentin Valentin,, porra! Todo mundo riu com a fala de Brancura, Silva continuou a sua prosa: — Porque, se botar um cara desprepar d espreparado, ado, que nun nunca ca trabalhou com dinheiro, dinheiro, sem noção noção do preço pr eço das coisas, sem noção de caixa, você tá me entendendo? — Um Um nego burro burro assim ass im que nem nem eu… — Cala a boca aí, aí , Jacaré, fica calado, cal ado, espera a bola quicar na tua tua frent frentee pra tu poder chutar. chutar. Tia Améli Améliaa continuou: continuou: — O tesoureiro tem que que ser uma pessoa pess oa que os com c omercia erciant ntes es con co nheçam, heçam, que todos conheçam conheçam,, pois é ele que vai ficar com o dinheiro das mensalidades que a gente vai pagar. É ele que vai sair junto com o presidente para recolher assinaturas para o livro de ouro. Cada assinatura vale um bom dinheiro… — Então, Então, Seu Se u Guilherm Guilhermee — emendou emendou Bide —, o senhor senhor é a pessoa mais indicada. O senh s enhor or tem
seu botequim aí no bairro há muitos anos… Sua família mora toda aí no bairro... — Veio todo mundo mundo de Portugal, Portugal, não ficou um lá para contar contar a história da famíli família. a. Meus Meus quatros quatros bisavós estão aqui no no Estácio. — Melhor Melhor que isso pra ter respeito, res peito, só dois disso! di sso! — exclamou exclamou alguém alguém.. — Eu fico muito muito feliz com o convite, meu meu botequim botequim é um lugar lugar em que que entra moça, moça, senh s enhora ora idosa, criança, todo tipo de gente. O pessoal sabe que eu não preciso de nada de ninguém, sabe que eu gosto da música, música, da brincadeira. bri ncadeira. Pode deixar comigo. comigo. Todos bateram palmas para Seu Guilherme, que, emocionado com o convite, começou a chorar copiosamente. Português de nascença, chegou menino para morar na Rua São Cláudio com toda a família do pai e da mãe. Ocupavam a mesma casa havia mais de sessenta anos. Toda a família foi trabalhar na carvoaria carvoari a de Seu Se u Victor. Victor. Bem menino, achava que ainda estava em Portugal quando chegou aqui, no início de um inverno tenebroso. Eram tantos portugueses que moravam em sua rua, fazendo as mesmas comidas, indo à mesma igreja e mais o linguajar, as vestimentas. Só quando entrou um calor de quarenta graus foi que sentiu que estava no Brasil. Assim que se alfabetizou, começou a trabalhar na carvoaria, depois passou a ajudar na na casa do Seu Victor, Victor, mais mais tarde em um um dos botequins botequins da famíli família. a. Foi trabalhando direitinho na armação, aprendeu a servir com os anos, passou para o caixa, comprava mercadoria, pagava as contas. No final da vida, por gratidão, Seu Victor passou o botequim botequim para pa ra o nome ome de Gu Guilherm ilherme. e. Fora sempre sempre leal, leal , honesto, onesto, competen competente, te, disposto. dispos to. Nu Nunnca teve medo do trabalho. Tanto tempo de bar lhe proporcionou amizade com gente que morava e frequentava o Estácio de Sá. Gente boa, jogador de bilhar. Jamais foi visto de mau humor ou destratando alguém. Até as pessoas que ficavam lhe devendo dinheiro do fiado, ele perdoava, acabava deixando levar de novo se a mercadoria era comida. Bebida, não! Nunca vendeu bebida pra pagarem depois. Era isso que dava prejuízo. Sim, Sim, era querido de toda a gen gente. te. Tinha inha capoeira capoeir a que dizia que, se alguém mexesse com ele, iria arrumar confusão para o resto da vida. Mas isso nunca aconteceu. Todos lhe tinham muito respeito. Tinha gente que até demorava a pagar, mas sempre que aparecia um dinheirinho ia lá acertar as contas com ele. Pai de Fátima e Maria Rosa, duas moças lindas, namoradeiras, de muitos amigos, tão gente boa quanto o pai. Sem contar Dona Elza, que ali também estava presente. Portuguesa que fazia um angu à baiana de todos os deuses. Enfim Enfim,, o pontapé pontapé inicial i nicial tinha tinha sido si do bem dado. A escola escol a de samba samba Deixa Falar nascia naqu naquele ele dia. A conversação se deu, e, depois de tudo organizado, Seu Guilherme iria com Tia Amélia passar o livro de ouro no comércio da localidade toda; o pessoal ia pagar mensalidade: mulher, cinco milréis, e homem, oito; iriam fazer bailes às quintas, aos sábados e aos domingos. Bide puxou um samba com seu vozeirão. Alguém se armou de um violão e mandou nota, que foi pegando pegando embalo embalo na voz de todos: A malandragem eu vou deixar Eu não não quero saber da orgia Mulher do meu bem-querer Esta vida não tem mais valia Mulher igual Para gente é uma beleza Não se olha a cara dela Porque isso é uma defesa Arranjei uma mulher Quee me dá toda vantag Qu v antagem em
Vou virar almofadinha Vou deixar a malandragem Esses otário Que só sabe é dar palpite Quando chega o carnaval A mulher lhe dá o suíte Você diz que é malandro Malandro você não é Malandro é Seu Abóbora Que manobra com as mulhé A música de Bide já era conhecida na voz de Alves. As de Silva, Bastos e Edgarzinho também já eram do conhecimento do povo que ia ao Café do Compadre e ao Bar do Apolo. Foram cantando uma atrás da outra, logo chegou mais gente trazendo mais violão, cavaquinho, flauta, pandeiro. Bide já tinha levado o tamborim e o seu surdo, instrumento que ele havia inventado. Era uma lata de manteiga em forma de cilindro com aros de madeira por dentro, encouraçada com couro de cabrito que seu Antônio das Cabras guardava para os terreiros de Umbanda e Candomblé da área. Mandaram buscar Paraty, dona Zilda fritou acarajé e ao mesmo tempo preparou um mungunzá para as crianças. Noite de muita música, de letra, de várias invenções que se faz e se perde na mesma hora. Seja na melodia, seja na poesia, seja na dança, tem coisas que vêm e vão num momentozinho de nada e nunca mais se repetem. Quem viveu viu, quem não viu não vive mais. Criações entre doses de uma bebida quente para soltar a voz, um vento sul soprando lá detrás da lua crescente. O tamborim de Bide, no início daquela madrugada, recortava, repenicava, repetia a nota para a preparação, levantava a música quando voltava na cabeça, às vezes ia por ela toda segurando o ritmo num acompanhamento de prima; largando, como ator, a deixa para os cantores, para a entrada de outro instrumento. O tamborim é outro que pode tudo nesta vida. Silva ficou por vários sambas tocando o surdo. Tinha fascínio pela marcação que segurava pelas pontas para não se atravessar a melodia. Era uma batida dentro e uma fora pra harmonia, o ritmo se encaixarem ali na empolgação do estribilho, da mesma forma que se encaixavam na primeira e na segunda da obra. Enfim, o novo instrumento segurava a música da cabeça aos pés. Foram felizes porque a melodia tem o dom de combinar direitinho com a gente, de pegar nosso corpo e fazer dele uma dança. Vovó Cambinda, ainda na terra, rezava um filho no cantinho. As crianças brincavam de escondeesconde no terreiro. Tudo naquela hora se transformava, fazendo o futuro acabar sendo uma avenida colorida. Tudo naquela hora se tornava novo, uma nova coisa na arte para sempre. Era a reinvenção do carnaval, naquele doze de agosto de mil novecentos e vinte e oito. O que veio da experimentação entra na normalidade de uma turma, qualquer coisa pode ser criada, transformada, reiventada. Não, não fica só a onda de inventar novo ritmo, nova frase musical, novos instrumentos, novo modo de versar. Tem que se mudar a atitude também, certos modos de pensar não eram mais da época. “As mães de santo, por exemplo”, pensava Silva, “tinham que ser reapresentadas de uma forma bem viva dentro do novo agrupamento carnavalesco. Eram elas que faziam a festa, faziam nossos pratos, nos ensinavam os segredos do Candomblé, abriam os terreiros para a Umbanda e o samba se desenvolverem. As mães de santo que vieram da Bahia e as nascidas aqui teriam que sair vestidas de baiana no bloco, com as mesmas roupas com que vendiam seus
doces, seus mingaus, seus quitutes nas ruas do Centro da cidade. Queria as mães de santo no bloco da mesma forma que se vestiam nos terreiros”.
VALDIRENE NÃO DISSE uma palavra no caminho de volta. Brancura lhe perguntou há quanto tempo ela não ia em casa, se estava trabalhando muito, se estava atendendo alguém em especial. E ela nada. Quando ele perguntou se ela não tinha precisado em momento algum da proteção dele, Valdirene parou, colocou a mão na cintura, ia falar alguma coisa, porém apenas olhou bem dentro dos olhos dele por bastante tempo, depois seguiu caminho a passos rápidos. Queria que ele falasse a verdade, que tinha se enfeitiçado por outra, como sempre, havia se esquecido dela. Não é que fosse perdoá-lo ou aceitar a situação, mas tentaria alguma coisa diferente, sabe lá o que, mas ele, com aquela cara de garoto bobo tentando disfarçar, lhe causava nojo. Já tinha vivido isso antes, esse mesmo sentimento, as mesmas atitudes, como uma boba nas mãos de um malandro-capoeira. Sabia que ele só resolvera acompanhá-la porque ela tinha passado a noite ali no meio de todo o mundo com ele. Notou sua surpresa quando a viu chegar àquela reunião. Reparou que ele a tinha visto no bar e dera meia-volta para não dar de cara com ela naquela hora. Intuía que Brancura tinha sentido de longe o cheiro da sua foda com Sodré. E ele imaginou que ela iria beber a tarde toda, adentrar a noite e dormir bêbada, acabada, em casa. Que nada. Ela ficou por pouco tempo em prosa com as amigas, depois foi para casa intuindo que Sodré voltaria. Era vaga essa premonição, mas ele a tinha pegado do mesmo jeito que no primeiro dia. Aquele beijo, aquelas mãos maiores do mundo, aquela pele seca de homem, a pica entrando e saindo com a mesma dureza do começo ao fim. Ele era um homem que se recuperava mais rápido a cada gozo para meter novamente. Era um tesão tal que o mau jeito do início não fazia mal. Logo ele foi aprendendo as manhas, esquecendo aquela mania de cu que aprendera com Seu Lotório. Se estivesse com ele, estaria mesmo de bacana vivendo no bairro dos brancos e nem poria os pés na zona. Esqueceria que um dia fora pobre. Brancura não sabia por que a estava seguindo, se tinha certeza de que estava tudo realmente acabado. Tinha que ter força para sair dali zimpado depois daquelas mãos nas cadeiras. Quando ela fazia aquilo, o bagulho não tinha mais jeito. Enquanto ele andava vieram à sua mente vários momentos de felicidade ao lado dela. Sim, nas vezes em que ficara doente, os chás, as papinhas na boca que ela lhe dava. Mulher de lhe dar banhos, passar pedra-pomes nos pés, além de lavar e passar sua roupa. Mas por que pensava essas coisas se não tinha mais aquela vontade de antes? A questão era que isso já tinha acontecido uma vez. Será que sentiria falta dela? Poderia ter ido até Seu Tranca-Rua pedir conselhos, mas nada, ele não queria mais nada com Brancura depois que este voltara a fumar palmeirense, a ficar plantado em porta de botequim e tudo o mais. Estava sem proteção. Os espíritos só podem ajudar quem procura a luz. Tudo é uma combinação de energias. Aquela fala dela chamando-o de falso, quando ele deixou Ivete e voltou pra ela, dizendo que ele tinha de ter falado a verdade estava agora ressoando em seus pensamentos. Agora falaria tudo. Seria honesto. Fora ela mesma que lhe pedira para olhar na cara e dizer. Também queria deixar a coisa amarrada, não iria se separar direito dela, poderia ser que mais dia menos dia desgostasse de Simone, e por isso desejava que ela estivesse ali esperando por ele. Era safadeza? Era. Era pilantragem? Era. Mas era a verdade, isso era. E a verdade era para ser dita, porque ele tinha prometido pela alma de sua mãe. Ela o fizera jurar pela falecida que sempre lhe contaria a verdade. Se ela sentisse que ele estava falando a verdade, então o perdoaria e teria peito pra isso. Sempre tinha sido aberta para o perdão. Foi atrás dela, segurou-a pelo braço, ela se soltou e seguiu caminho. — Eu vou te dizer toda a verdade; vou falar do sim e de todo não que você quiser saber. Eu jurei pela minha mãe e vou cumprir. Valdirene parou. Tinha brio, coragem para encarar a verdade que ela tinha pedido e ele prometido. Assim foi:
— A mais gostosa é você, isso eu falo o resto da minha vida: não teve, não tem e acho que nunca vai ter mulher mais gostosa que você. E amor é uma coisa que deu em mim por você que não deu por mais ninguém. Olhou firme nos olhos de Brancura. As retinas paradas, sem piscar. — Eu larguei a Ivete e voltei. Fui e voltei… Eu sinto coisa boa de verdade quando penso em você, na sua presença eu sinto mais ainda, até agora eu tô sentindo. A questão é que a primeira coisa que eu penso quando vejo uma mulher é em meter. Você sabe que eu fico um tempão contigo sem gozar com ninguém, às vezes eu fico é tempo sem meter com nenhuma outra e fico só fazendo amor contigo, largadinho na sua, sem o meu pau piscar pra ninguém. Nunca tive vontade assim que nem tenho contigo. Só que tem hora que eu quero conhecer mulher diferente. Tem mulher de várias belezas, que fala coisa inteligente, que gosta dos versos que nem a gente. Mulher assim que nem você. Agora eu não acho que amor e sexo são coisas que só se movimentam juntas. Não, a vontade de meter é também maior que tudo. Quando bate, não tem jeito. Deus tinha que fazer todo o mundo igual pra gente não ter esse tipo de problema. Mas cada beleza dá uma vontade na gente e assim vai. E também tem outra coisa: eu não gosto de trabalhar mesmo, não. Eu gosto mesmo é da vagabundagem, de ficar na noite, no botequim, gosto de jogar sinuca, baralho… Você sabe, né? Isso que você acha de eu trabalhar e virar compositor é muito bonitinho, mas pra mim não dá. Deu a volta ao redor de Valdirene, olhando para o nada. A rua toda deserta. Ela, na posição em que estava, ficou. Ele ainda esperou que ela lhe perguntasse alguma coisa. Calada continuou. Brancura sentia alívio no peito por ter falado aquilo sem medir palavras, sem tentar convencê-la a todo o custo como um sofista irresponsável. Ela, que sentia aquela sinceridade como um tiro, sentiu mais ainda quando ele voltou a se expressar: — Agora, você não pode falar que eu não tentei, que eu não aluguei casa contigo, que eu não quis fazer vida com você. Eu fui lá, tentei tudo, sumi da zona. Nunca pensei em ter filho, mas, se tivesse, eu teria só contigo. Rolou um silêncio interminável. Até que Valdirene argumentou: — O amor que eu sinto por você é igualzinho ao que você sente por mim. Só que quem some é você. Mas isso não quer dizer que eu deixo de sentir vontade com outros homens. De vez em quando eu gozo fingindo que não. Brancura sentiu calafrios e cortou: — Eu não te pedi para ser sincera. — Mas tá na hora de você também lidar com a verdade. Eu também não sou flor que se cheire… — Eu não quero ouvir a verdade! Eu tenho ódio da verdade! Não convivo bem com a verdade. A verdade não é coisa pra mim, não. — Então vá embora. Vá, suma! Suma, comigo sabendo tudo de você. E você sem saber nada de mim, como sempre. Tu só pensa em ti. Acha que eu sou aquilo, mas eu sou isso aqui, completamente diferente, e você não quer saber. Brancura ainda ameaçou uma passada. — Essa fonte aqui secou! — Fala! Fala tu, que eu tô cansado. — Eu sou neta de puta, filha de puta, nasci puta. Você veio pra zona menino. Foi o primeiro que me fodeu. Pulei aí um monte de fogueira contigo… Não tem outro homem para ser pai do meu filho, não… Apesar de que muito homem me jurou amor eterno e tranquilo… O único outro homem com que eu teria filho, se não fosse com você, seria o So… — Não fala, senão eu mato ele.
— Então me faz um filho, porra! Tem certas horas em que no tempo cabe um século num segundo. Brancura andou, para ficar retina com retina: — Pode ter filho com Sodré! Eu não confio em mim pra ter filho com você ou com qualquer uma que seja. Puta e vagabunda não pode ter filho, não. Se fosse pra tu ser mãe, não sairia para a vida tão nova igual você saiu. Eu não pedi pra ser o que sou, não. Fui educado aqui, meu pai que me colocou nessa vida, e dessa vida o melhor foi você. Imagina a gente com filho? Comé que a gente ia criar ele? — Eu largaria tudo se você me sustentasse. Quem cria mesmo é a mulher, quem iria colocar ele no prumo seria eu. — Mas, mesmo assim, eu poderia estragar tudo. Eu sei o que é viver sem pai e viver com um pai doido assim como o meu. O que eu iria ensinar ao meu filho? Aquilo que eu sei? E o que sei você sabe muito bem. Não dá, Valdirene, eu não sou uma pessoa de bem, eu não sou homem pra mulher como você: mulher de crescimento, de mudança. Eu não sei mudar, não! Não nasci para evoluir… Valdirene balançou a cabeça como quem diz: você tem razão. Tinha que ter saído fora há mais tempo, um pouco mais jovem talvez, mas ela ainda tinha beleza para atrair os homens. Iria juntar um pouco mais de dinheiro, comprar um barraco no São Carlos, abrir um comercinho qualquer, uma barraca na feira… Não tinha conhecimento de muita coisa nesta vida, mas tinha a coragem de largar tudo, mudar de vida. — Eu vou evoluir, não me atrapalha mais, não. Seguiu caminhada sob o olhar de um Brancura em lágrimas. A dúvida que até agora não tomara corpo se fazia ali presente enquanto ela sumia pela Maia Lacerda. Ele deu meia-volta, subiu a São Cláudio, desceu pela Sampaio Ferraz, foi até a Haddock Lobo pensando se ia atrás dela e lhe dizia que Simone já era coisa do passado, que ele teria quantos filhos ela quisesse. Teria peito para isso ou estava perdendo naquela hora o amor de sua vida para sempre? Ela já tinha engolido Ivete. Será que engoliria Simone? Desceu a Machado Coelho, deu a volta lá por trás e chegou à Praça Onze de Junho. Sentou num banco, acendeu um cigarro, passou a rever se era mesmo homem sem evolução, sem tino pra crescer, com limites de aprendizado e comportamento. O que são os homens de crescimento limitado? Serão esses malandros que resolvem as coisas na valentia, na esperteza de botequim, na trapaça de rua? Seu tio foi chefe de família. Tinha uma vidinha tão mixuruca: empregado da construção civil, passou mais tempo no serviço e dormindo do que vivendo. Não pode uma pessoa ser feliz pegando no pesado o dia todo, levando ordem do chefe, fodendo uma mulher só a vida toda. Era sabido que seu tio só tinha metido com a sua tia e mais neca de mulher nenhuma. Ele nunca tinha comido uma mulher bonita mesmo de verdade do Brasil e do exterior. Do trabalho para casa, de casa para o trabalho. Terça-feira, ia espiar o jogo no campo do América. Quarta-feira, ia para o terreiro saravar a banda. Domingo, não perdia a missa. E só. Sua vida se resumia a isso. Nem pra um arrasta-pé ele saía. Nada! A vida tem que ser vivida da melhor forma possível. Tinha de viver sempre no prazer, já que ela é uma só e ponto. Ser malandro, ter várias mulheres, botar frente para cima dos otários. Fazer o que bem quiser na hora que bem entender. Passaria no bar, beberia um quente, dormiria sozinho ou abraçadinho a Simone. Não teria pica para foder com os pensamentos cheios de Valdirene.
MESMO COM TODO o mundo dizendo que Me faz carinhos era de sua autoria, uma grande parcela do povo do São Carlos e do Estácio não acreditava que a música era dele. Numa tarde dessas de domingo, Silva saiu de casa admirando a beleza de tudo. Tinha a mania de olhar o detalhe mais lindo de cada coisa, fosse pessoa, planta, casa recém-feita nas ruas do bairro, a molecada em brincadeiras; as donas de casa colocando bancos ou cadeiras na calçada para contar as histórias dos avós, histórias de homens, de assombração, príncipes, reis, dizer anedotas, buscar cantigas velhas, cantar músicas novas para levar a noite na ficção. Era assim mesmo. O Estácio sempre fora desse jeito. Chegou ao largo já com a movimentação de pessoas voltando do trabalho. Ali era o lugar onde mais gostava de estar, mais do que as ruas da zona, mais que a Praça Onze, aquele sítio era perfeito para olhar para o nada, olhar as pessoas passarem, inventar um verso, repensar as coisas. Foi até o Café do Compadre procurar prosa, só havia um dos garçons lendo jornal. Partiu passo atrás de passo para o Bar do Apolo. Estava todo o mundo lá ainda sem tocar nada. Falavam do futebol do América, time da Tijuca, que ia bem no campeonato. Silva foi logo dizendo que a cor do bloco tinha de ser o vermelho, tanto por causa do América, como por causa do extinto rancho União Faz a Força. Ninguém se opôs a isso. A conversa corria solta quando, do lado de fora, um carro desses de rico fez manobra para estacionar em frente ao bar. O povo olhou calado o automóvel parar e dele sair, armado de um violão, Alves, que deixou o veículo aberto, se precipitou para dentro do bar. — Fala, Bide! Tudo bem? — Sim, seu Alves! Tudo formoso. E o senhor? — Não me chame de senhor! Tá tudo muito bem! Eu vim aqui conhecer o seu Silva. — Então, o senhor não perdeu a viagem — disse Silva, estendendo a mão —, pois Silva é este que vos fala. — Queria te conhecer mais e fazer um trato, caso você se interesse. — Pois não, amigo. Alves fez sinal para que Silva o acompanhasse até a frente do bar. — Eu sei de várias músicas suas que o povo canta aí pra mim. — É mesmo? — Foi Cebola quem me mostrou Me faz carinhos… — Eu sei, eu sei, sei, sim, senhor. — Pare de me chamar de senhor. Alves se encostou no carro; Silva, no poste. O cantor, em vez de iniciar uma prosa, tocou um acorde no violão e foi cantando Me faz carinhos. Ainda havia uns rabiscos de sol atrás do morro. As pessoas se aproximaram ao som do Rei da Voz e seu violão. O bar todo quieto. Silva, sorrindo, escutava. Depois, o Rei da Voz cantou Malandragem, de Bide, e várias canções de Silva. Não se consegue outro adjetivo, além de mágico, para definir aquele momento em que Alves cantava para Silva ali no Bar do Apolo; talvez esplendoroso também sirva. Justamente porque depois Silva cantou todo o seu repertório e Alves o acompanhou. — O caso é o seguinte, meu nobre Silva, a gente pode fazer negócio da mesma forma que eu fiz com Bide. Eu sinceramente acho que é um negócio justo tanto pra mim quanto pra você. Mas vamos lá, agora que eu já ouvi você. Já ouvi muita música que o povo diz que é sua. Eu vim aqui só pra confirmar. — Que coisa boa, Seu Alves. Olha que eu… — Pare de me chamar de seu! — Desculpe, desculpe! É, eu ia, eu tava, eu, eu, eu… Que que eu tava falando mesmo, hein? Ah,
sim. Hoje eu vinha pensando nessa coisa de profissionalismo, sabe? a utopia de todo malandro. — Que é isso? — A nossa utopia é viver das músicas que a gente faz. O pessoal da casa de Tia Almeida já foi até para a Europa… — Foi em vinte e dois, não foi? — Eles vivem de música! Alfredo, Barbosa, João já tiveram samba gravado. Agora eu tô vendo que chegou a nossa vez, de verdade. — A gente faz um trato de exclusividade, eu e tu, tu e eu. Parecia mentira tanta bênção dos orixás numa mesma hora. Como Deus era bom lhe dando a música como ganha-pão. Seria outra pessoa a partir daquele momento. Seria tratado com respeito em qualquer lugar a que chegasse, pois seria homem de trato feito com o maior cantor do Brasil, que ficou buscando nota no violão enquanto Silva cantava seus versos. Não parava de chegar gente em silêncio para assistir àquele show improvisado de porta de botequim. Logo no início, alguém da turma meteu um pandeiro, e assim foi com o tamborim e o surdo de Bide. Aquele instrumento novo se acertava aos poucos com o violão do cantor. No começo, o compositor ainda derrapou na levada, perdeu o andamento. O pessoal foi ajudando, cantando as músicas, bem baixinho, para não abafar os acordes. Gente que nunca colocaria os pés num bar, donas de casa, beatas da Igreja do Espírito Santo, crianças, todos vendo Silva cantar para Alves. Depois do último samba, tentaram falar mais sobre o trato que fariam. Mas ficaram incomodados com o povo em cima, escutando. — Vamos ali para o carro, a gente conversa melhor. Dentro do carro, Alves argumentou: — Suas músicas são divinas, esse acompanhamento é fabuloso, esse ritmo é novo. É diferente. Que instrumento é aquele? — Depende. Tem o surdo e o tamborim. Tamborim é o pequeno, que faz essa espécie de contrassolo, e o surdo é o que faz a marcação da música e dá o andamento. Marcar para voltar pra cabeça. — Sei! É muito bonito! Você compõe desde quando? — Meu primeiro samba foi Já desisti. Fiz quando tinha catorze anos. De lá pra cá, eu não parei mais. — Contigo a letra já nasce com a música? — Tem vez que sim, tem vez que não. Às vezes vem primeiro a melodia, às vezes o verso chega à frente. Eu não tenho norma, não. E você? — Às vezes eu faço só a melodia, gosto de fazer primeiro a música, depois colocar a letra. Tem música que eu não me preocupo nem em colocar letra, guardo para trabalhar mais tarde, dou para um parceiro esticar a letra… — Eu já não consigo deixar pra depois, se eu não faço na hora, se me falta palavra ou melodia, eu chamo logo um parceiro. — Então: a gente faz assim do jeito que eu estava te falando; tu só pode vender samba para mim, sabe? Pra essa linha ficar sempre comigo. Sabe? Eu tenho que ter uma marca. Sabe? Tenho que manter uma linha melódica que seja só minha. Então tu fica escrevendo pra mim… — Até quando? — É, vamos seguindo, vamos fazendo, vamos criando… — Então tá. — Vocês que inventaram esse ritmo?
— Eu inventei, meus companheiros desenvolveram comigo… — É um ritmo muito bom, não é lundu, não é maxixe, não é salsa… — Esse é o verdadeiro samba. Olha o risco. Silva, balançando a mão pra esquerda e pra direita, fazia com a boca o som do surdo. — Bum-bum-bum-bum-bum-bum. É um dentro e um fora. — Entendi. Sempre tem o estribilho, né? — Não, pode ir direto da primeira pra segunda, se quiser pode colocar uma terceira. A questão é a cadência. — Eu acho com estribilho melhor, para o pessoal decorar logo pelo menos uma parte da música. — É uma música que pode tudo, entendeu? É macumba? É macumba. É lundu? É lundu. É maxixe? É maxixe. É salsa? É salsa. O samba é o que ele quiser, tá me entendendo? — Tem Candomblé? — Claro que tem, e se eu falar que tem foxtrote, quem vai dizer que não tem? Nosso samba tem tudo que a gente já escutou. O samba é o resumo da ópera. — Tem razão. — Você nunca estudou música? — Nada, é tudo aqui. Aponta o dedo indicador para a cabeça. — Eu fico impressionado com vocês. Eu conheço gente que estuda, que faz isso, que faz aquilo, não consegue fazer a metade do que vocês fazem. — Tá achando que a gente não trabalha, não? — Desculpe, desculpe, não quis desmerecer, eu tô falando que tem gente que também tenta, trabalha muito e não consegue… — Que nada! Tu não quis dizer isso, não, tu quis dizer isso, sim. — Desculpe. — Eu venho pensando nesse ritmo há anos, por causa do bloco. — Como assim? — É que estamos fazendo um bloco, mas não dá pra entusiasmar cantando maxixe. Já imaginou um agrupamento carnavalesco na rua andando e cantando Pelo telefone, o samba: “O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar…”. Tem que andar assim, ó — falou, fazendo trejeitos de maxixe. — Não dá pra cantar, dançar e andar assim, entendeu? É muito mole, parece procissão. Olha a diferença: “Mulher, tu não me faz carinhos…”. Alves começou a cantar junto: Teu prazer é de me ver abandonado Ora, vai mulher, és obrigada a viver comigo Se eu fosse homem branco Ou por outra mulatinho Talvez eu tivesse sorte De gozar os teus carinhos A maré que enche vaza Deixa a praia descoberta Vai-se um amor e vem outro Nunca vi coisa tão certa Mulher, tu não me faz carinhos… Oh! Meu bem, o teu orgulho
Algum dia há de acabar Tudo com o tempo passa A sorte é Deus quem dá Vou-me embora, vou-me embora Como já disse que vou Eu aqui não sou querido Mas em minha terra eu sou… — É muito diferente, mesmo. Olha, eu acho que é o melhor estilo musical que eu já escutei, melhor que a salsa, melhor que o maxixe, melhor que o lundu. É melhor que tudo. Eu quero que as suas músicas que eu não queira gravar você só as venda para quem eu quiser. — Tudo bem, tudo bem. Contanto que venda! — Como você faz? Você escreve ou fica tudo na cabeça? — Também é outra coisa que não faz norma em mim, não. Tem música que só vai para o papel quando já tá pronta na cabeça, tem umas que eu escrevo, tem outras que já nascem junto com a parte do parceiro. Vou falar a verdade: tem vez que eu escrevo umas linhas, e ela fica lá guardada uma eternidade, aí, de uma hora pra outra, eu vou lá e finalizo. Já teve obra que ficou na gaveta uma leva de tempo, aí eu mostro pra um parceiro, ele vai lá e termina em um dia. Impressionante! Eu falei que fazia todas de uma tacada, mas é brincadeira. Agora, o que eu gosto mais é quando vem tudo de uma vez só, numa hora de Deus. Eu acho que é Deus. Parece que baixa um santo assim na gente “e o verso vem vindo, vem vindo uma melodia” e pronto: a criação tá lá. Não precisa mexer, tirar, retocar, não precisa de nada. — Sei. Mas fala pros teus parceiros que, se vender pra mim, eu não dou parceria, não. Eu pago bem, divulgo o samba. Mas não vai nome nem na partitura nem nas gravações. Tá certo? Eu tenho que dizer que é tudo meu. — Tá certo! Tá tudo bem. — Tem um menino lá em Vila Isabel que é bom também. É um tal de Noel Rosa. Já ouviu falar? — Já, já me disseram. — Também tá nesse ritmo novo aí, samba mais batucado, letra também mais ousada. — Nosso ritmo tá se espalhando por aí. Nosso pessoal aqui do Bar do Apolo, do Café do Compadre, a gente roda essas rodas de samba todinhas por si. A gente vai à Mangueira, vai ao Catumbi, Pilares, Tijuca, o pessoal vai aprendendo. Onde você escutou minhas músicas? — Na casa de um amigo. O próprio Cebola cantou. Ele tinha ouvido numa roda de samba dessas por aí… o ritmo tá se espalhando. Bom, eu vou indo. Amanhã, passa lá no Orlando. Vou tá lá umas duas horas. Vamos selecionar os sambas. — Orlando tá onde? — Lá na Casa Edison. Vamos dá uma volta. Vou te levar ao lugar onde a gente vai se encontrar. — Eu sei onde é. — Mas vamos dá uma volta comigo. Vamos lá pra confirmar. Vamos dá um passeio pra comemorar nosso encontro. — Tá certo! Ligou o carro e partiu devagar pelas ruas do Estácio em direção ao Centro da cidade, ia falando de seu sentimento pela arte, e Silva concordando, contando do seu fazer musical, enfatizando quanto era saudável trabalhar naquilo de que se gosta, crescer dentro da vocação que Deus tinha lhe dado. Pararam em frente à Casa Edison. — É ali, ó. A gente se encontra ali! Tá falado?
— Tá falado. Deram um giro pela cidade, pararam no Café Nice, beberam alguma coisa enquanto acertavam os detalhes da nova parceria e rumaram de volta pro Estácio. Alves saiu do carro, entrou no bar, apertou a mão de todos, numa gentileza só. Por fim, abraçou Silva, bateu em suas costas. — Vamos trabalhar muito. Tem muita coisa pra você fazer, com seu jeito de cantar. Daqui a pouco você vai tá gravando suas próprias canções. Deu outro abraço, acenou de novo, entrou no carro, foi acelerando diante daqueles olhares que nunca se esquece. Silva tinha um sorriso esculpido pela própria felicidade. Seu trabalho sairia da sua cabeça para todo o Brasil, quem sabe para o mundo todo. A utopia de malandro de viver de sua própria arte se realizava para sempre na porta do botequim. Com certeza não há lugar melhor para conseguir emprego, seja lá pra que profissão for. Foi ali que muita gente se aprumou na vida, através das amizades que a vida de bairro proporcionava. Além do mais, não era ele quem tinha ido atrás do outro, babar o ovo, não. O maior cantor do Brasil é que tinha vindo até o Estácio dizer que a partir daquele dia ele iria viver da música para sempre, no sufoco, mas com muita alegria. Não é a crítica que consagra o artista. Isso mesmo: se um artista não tiver parlamento com outros artistas, a arte vai por água abaixo. O sujeito para de fazer. É um artista que consagra o outro. Era respeitado pelos outros compositores da jurisdição, eram duques da mesma linha porque também escreviam bem, tinham talento. Mas essa de Alves procurar parceria lhe trazia a certeza de que seu talento era grande. A felicidade existe. — Pode ser que a felicidade não seja plena e infinita. É que existem certas coisas que já dão felicidade, outras que dão tristeza, nada pode mudar, porque as coisas ficam presas no passado pra sempre, fazendo o nosso dia a dia. É ou não é? — comenta Silva. — Essa felicidade de hoje vai me fazer deixar muita tristezazinha de lado ou pra chorar depois. — Esse acontecimento é mesmo uma glória — disse Bide, sem o entusiasmo que a situação pedia. Já Bastos era por demais alegre. Parecia até que Alves tinha acertado alguma coisa com ele também. Sentiu vontade de estar dentro do carro junto com os dois, mas era só para ver a cara de Silva na hora de falar, se ele ia mandar a conversa certa, mas, pelo abraço final, deve ter mandado com certeza. — Eu não sabia que ele vinha, não. Ele veio na pista certa. Quer gravar todos os meus sambas e não quer que mais ninguém grave. Silva foi contando tudo para os amigos. Quem diria que comporia direto para Alves. A sua autoestima estava ali no maior grau já alcançado. Era um sentir-se bem tão demasiado que nem parecia realidade. — Pode descer, que eu pago tudo. Não tem miséria, não. Saiu andando madrugada adentro pela zona, junto com Bide, Brancura, Bastos e Lopes. Iam ao Cabaré da Vivi. A zona estava movimentada pelos marinheiros argentinos, cubanos, portugueses e espanhóis. Um carro da polícia passou por eles, os policias só os olharam. De longe, avistaram uma aglomeração no Cabaré. Vários músicos tinham acabado de se instalar para tocar, gente da zona sul da cidade ia ali para escutar chorinho. Chegaram junto com aquele ritmo de que também gostavam, mesmo sem ter tino para fazer. Silva ficava encantado com a agilidade dos dedos dos músicos que tocavam aquele tipo de música, a conversa dos violões que eles faziam, o sentimento do ritmo. Diferentemente de quando eles tocavam, o povo ficava sentado caladinho no meio-fio, em bancos ou cadeiras, para assistir aos instrumentistas desenvolverem as melodias. Silva ficou por alguns minutos, depois se despediu de todos, caçou o caminho de casa. Queria
dormir para acordar num novo dia. Dia em que iria à Casa Edison como convidado, veria todos os ídolos, conversaria com os músicos profissionais. No dia seguinte, chegou às imediações da Casa Edison com as pernas bambas de ansiedade, já ia entrando no bar da esquina quando avistou Alves estacionando o carro. Ia apressadamente abordar o parceiro, mas se conteve. Seria melhor deixar que ele chegasse, falasse com seus parceiros, anunciasse a ida dele. Marcou um tempo, bebeu água, um café para dar um revive, mastigou cravo para ter bom hálito. Botara roupa branca para dar leveza ao jeito de ser. Agora partia a passos sincopados em direção à Casa Edison. Assim que chegou à porta, o cantor o saudou. — Gostei da pontualidade, vamos entrando, vamos entrando. Sem demonstrar um pisco de nervoso, levava um sorriso sempre aberto. A elegância do terno, o gingado do andar e a fala mansa agradaram às pessoas que pararam para ouvir seus sambas, dar-lhe parabéns pela parceria. — Você pode viajar pra qualquer lugar do Brasil, que vai ter gente que vai cantar sua música do princípio ao fim, sem engolir mosca. — Eu sei, eu sei… — Vamos então escrever as músicas, escreva aqui. Ou melhor: você canta, que eu vou escrevendo e Cebola vai fazendo a partitura. Vamos lá! Cantou várias vezes Antes não te conhecesse , repetiu Ao romper da aurora e depois cantou Anda, vem cá, feita com Bastos. — Essa foi feita com seu parceiro, né? Tá certo? Cebola, esse compasso é dois por quatro, né? O compasso do maxixe é quanto? — Dois por quatro também. Vamos nesse compasso mesmo — Silva foi repetindo as músicas que Alves e Cebola pediam. Gostava de ver Cebola procurar acordes para a sua melodia. Encantava-se com o som do piano seguindo os tons de sua voz. Tudo nesta vida era a arte de combinar os sons. Música e vida são a mesma coisa. A poesia é a arte de procurar o verso que todo o mundo busca um dia, verso que cai em qualquer ser humano como a verdade da vida.
A CABEÇA DE SODRÉ era um redemoinho com aquele acontecido. Só de pensar, seu pau ficava duro. Relembrava todas as expressões de foda dela, aquela bunda, a boquinha fazendo biquinho, os olhos virados quando ele metia mais forte, mais rápido. A língua dele no ouvido dela. Ficar olho no olho quando ela chupava seu pau. Não tinha ainda entendido o que acontecera, mas trepar com ela à luz do sol no meio do mato tinha sido tão bom como sempre fora. Poderiam ir para uma praia ali do litoral norte para foder ao ar livre. Seu amigo do banco falava que sempre ia para a Região dos Lagos pra meter com a esposa na areia branca da praia deserta, a água mais azul do mundo. Tem mulher com a qual vale a pena gastar dinheiro. — Eu mando vir do bom e do melhor, a gente vai sexta e volta domingo à noite. — É claro que eu vou. — Não se pode falar do passado, nem querer saber da minha vida, nem da minha mulher, eu só quero meter e meter e meter… — Eu também, eu também, eu também… Depois daquela conversa com Brancura, Valdirene resolveu juntar o máximo de dinheiro para sair dali. Procurou emprego na Confeitaria Colombo, onde passava a maior parte do dia fazendo faxina, recolhendo o lixo, limpando os banheiros. Deu um bom dinheiro numa casinha de vila em Pilares, onde foi morar, mas manteve seu quarto alugado na Pereira Pinto. Não deixara a zona do Mangue por completo. Passava alguns finais de semana na Rua do Estácio com as amigas, não trabalhava nem quando o dinheiro encurtava, tinha mês que não colocava os pés na zona. Sodré foi várias vezes com ela meter gostoso nas areias do mar da Região dos Lagos, são muitos quilômetros de praia deserta, que dá para foder à vontade. Saíam correndo pela areia, pegavam acaré pelados, a areia toda branca, a água toda azul. Organizou sua vida para encontrar-se com Valdirene pelo menos duas vezes por semana. Ajudou-a a comprar os móveis, sempre lhe deixava certa quantia quando ia à casa dela. A única questão é que sempre gozava fora. Só gozava mesmo juntinho na menstruação. — Se você me der um filho, eu não vou querer nada de você. Não precisa nem registrar. Ele nunca vai saber que eu te conheci na zona. Nunca mais eu piso lá, se você me engravidar. Sodré desconversava, Fátima Maria estava grávida de três meses. Mas nem era pela gravidez da esposa que não dava um bebê a Valdirene. Tinha-lhe amor. Tinha-lhe desejo. Só não lhe tinha confiança. Isso, quando se perde, o mundo pode rodar quantas vezes quiser que a coisa não volta. Gostava de criança, tinha pavor de morrer sozinho, sem filho para cuidar dele como ele cuidava dos pais. Ia com Fátima visitar os velhos de quinze em quinze dias. Daria dez filhos a ela se não fossem aquelas duas traições quase seguidas. Ela era seu grande amor, sua maior trepada, seu maior chamego. Já Fátima era uma foda profissa, sem grandes arabescos, mas foforusa por demais. Mulher sem a menor maldade da vida, coração aberto para a felicidade. A alegria de estar grávida exalava por toda a casa, saía pelo quintal, conquistava os vizinhos. Ia pela rua tão formosa que as velhas a paravam, lhe receitavam chás, falavam de simpatias para cuidar do nenê. Foi dispensada do trabalho assim que a barriguinha cresceu. Já Valdirene amargava a dor de pensar na possibilidade de fazer, com sua malícia de cama, Sodré gozar dentro. Poderia fazer isso com qualquer outro daqueles que frequentam a zona, pois tinha disposição para criar um filho sozinha. Filho não precisa de pai, é a mãe que amamenta, dá banho, dá comida, dá muito mais amor, é a mãe que educa. Tinha força para trabalhar, pagar uma pessoa de confiança para cuidar do nenê de dia, e tudo daria certo. Não, não poderia enganar um homem tendo um filho dele sem a sua permissão, sem o amor que se deve ter. Besteira. Com o tempo convenceria
Sodré a lhe dar um filho. Dessa vez não perderia a sua pista de forma alguma. Arrependia-se de tudo de mal que lhe tinha feito, parecia que descontava nele as traições de Brancura. Fora burra, poderia estar no lugar de Fátima Maria, vivendo uma gravidez, andando a passos de amor, de mãos dadas com Sodré, frequentando os lugares dos brancos, teria vida, se não de princesa, ao menos de mulher decente. Jogara toda a felicidade fora por não saber decidir direito. Brancura não valia nada! Mas é verdade que Deus perdoa e devolve tudo a quem se arrepende de fato. Não tinha Sodré todo dia, mas ainda o tinha, e ele era seu homem de alguma forma. Vivia sua vida pacata, tinha semana em que ele ia quase todos os dias em busca de seus carinhos. Ela, por sua vez, só voltava ao Estácio quando havia ensaio do bloco.
— FALA, FIA, fala pra essa vó o que tá te trazendo tristeza. Fala, que eu digo o que vai ter que fazer para a vida melhorar. Tô vendo que tu tem uma ferida aberta no coração. Quer também ter um beberico, não é isso? — disse Vovó Cambinda, num terreiro que Valdirene passou a frequentar ali em Vaz Lobo. — É isso, vó. É isso mesmo. — A fia vai colher nove rosas amarelas, vai tirar os espinhos, entrar num rio de água bem cristalina, oferecer à Mãe Oxum e pedir a ela que lhe dê um filho, que ela te dá. É só pedir com fé. — Vovó! Por que eu tenho que pedir a Mãe Oxum? Ela é a minha mãe? — Não, ela não é sua mãe, não, minha fia. É porque Oxumaré protege as fias que estão de candonguinho na barriga, ela é a rainha dos poços, das fontes, das matas. Ela é quem dá a vida, dá a fertilidade, só ela que pode te dar um candonguinho, se você fizer o que eu mandar. — Fala, vó! A senhora sabe que eu faço. — Nunca mais colocar os pés naquele lugar, nem fazer juntamento com outro homem por dinheiro, nem por nada, tem de parar de fazer bebericador que Oxum vai te dar a coisa mais linda do mundo. — Ele vai ser o pai? — Isso eu não vou dizer. Só posso dizer que o candonguinho vai chegar. A fia tem que procurar o cartola branca também. — Tô com doença grave? — Não, mas se deixar passar o tempo, vai ficar muito grave. Se for agora, o cartola branca dá eito. — Me passa um chazinho, vó. Ir ao médico é muito difícil… — Tem que ir, ainda mais a fia, que quer ter candonguinho. As coisas que a Vovó havia pedido, Valdirene já estava fazendo naturalmente. Não tinha mais prazer em conversa de bar, em noites de farra. Parece que, com a idade chegando, a gente vai perdendo o sabor para certas coisas, deixando de lado aquilo que nunca tinha de ter pegado ou feito uso, abandonando desejos, prazeres que só trouxeram pechas de infelicidade. Pilares era um bairro tão querido, de muitas crianças nas ruas em correria por todo o dia, bairro de casas com grandes quintais, ruas largas, compridas. Ali era mais distante do Centro, mas a noite era mais noite e vinha mais cedo, acalmando não só as vibrações do dia, mas também os pensamentos de arrependimento que ela tinha por ter feito a vida toda uma coisa errada. O bairro era mais amplo, mais aberto. Pouco se via malandro pelas ruas, lugar de família. Não eram aquelas ruas estreitas da zona, aquele vaivém dia e noite. Havia vezes em que tinha a sensação de nunca ter tido uma noite de sono tranquilo naquela praga do Estácio. Agora dormia de o corpo ficar leve, de levantar disposta pra vida, de ter vontade de comer direito, de caminhar, trabalhar, ir às compras. Gostava mais da vida. Tinha anos que não deixava o sol bater-lhe na cara, nem a chuva tomar-lhe o corpo todo. Tinha um bocado de juventude nesse novo viver. Valdirene gostava do balanço do trem no ir e vir do trabalho, das rodas de sambas. Pilares era lugar de vários terreiros de Candomblé, que, assim como a Umbanda, abrigava o samba depois que a polícia parou um pouco de perturbar as religiões de matriz afriacana. Eles não sabiam direito o que era samba e o que era de fato Umbanda, Candomblé, jongo, maxixe, não sabiam de nada. Não gostavam mesmo era de ver a crioulada reunida cantando, sambando ou fazendo oração. Tinham raiva da cor da pele, do jeito de ser e estar daqueles herdeiros da escravidão. *** Lopes já fora detido porque portava um pandeiro ali na Marquês de Sapucaí. Até a turma do maxixe
á tinha levado pitomba dos homens da lei por causa de pandeiro e violão. Bastava ser negro e portar um instrumento, que eles vinham com intolerância. Um tempo antes, João botou um terno branco para rebater aquele sol do primeiro sábado de um outubro quente. Ia, como de costume, com a turma toda para a festa da Penha. Tratou de embrulhar o pandeiro em papel grosso para despistar os vermes até a chegada nas escadarias da Igreja da Penha, onde acontecia a maior festa do mundo. Era tanto devoto enchendo os trens, indo por todos os meios para o bairro da Penha, que era bonito ver, sentir a vibração das ruas. Era a festa da baianada na Cidade Maravilhosa das antigas, festa dos cariocas do Centro, de toda a Zona Norte, de toda a Leopoldina. Tia Almeida era uma dessas baianas que armavam tabuleiro de quitutes, montavam barraca de roupas para vender para homem, mulher e criança. Eram jogos de capoeira, gente de toda a sorte fazendo roda de música por toda a subida daquela igreja no alto da montanha, cuja imponência se vê de longe. A negrada aproveitava até para incorporar as vovós e os pretos velhos, que davam passe ali escondidinho, falavam uma palavrinha rápida, alguns ficavam horas. Doum da Praia ficava o tempo todo fazendo arte. As mães de santo faziam de tudo para o erê ir embora, e nada de ele subir. Entrava em correria com as crianças pelas escadas, comendo vários doces de uma vez só, brincando de carrinho, de jogar água nas pessoas, falando alto, mexendo com todo o mundo. Doum subia até o topo da montanha, ficava ali olhando tudo lá embaixo, de Teresópolis ao Corcovado, numa alegria de dá choro de emoção. Quem não conhecesse o cavalo nem imaginava que aquela pessoa estava incorporada. O guia passava o dia todo na terra, assim como alguns pretos velhos, caboclos, exus e pombagiras, que falavam normalmente como se fossem encarnados. Ao lado, no Candomblé, os orixás dançavam, louvavam, evoluíam a humanidade daquela gente. Algumas mães de santo jogavam búzios. Tudo era magia nas escadarias da Penha. Ali era o encontro de familiares que moravam longe, de gente que não se via fazia muito tempo para rezar, cantar, dançar, brincar, comer e fortalecer o espírito. A celebração começava cedo, com os crentes subindo os trezentos e sessenta e cinco degraus de joelhos em agradecimento à graça alcançada, ao milagre da santa. Alfredo, Santos, Barbosa, João, Caninha e vários outros músicos chegaram junto com Tia Almeida, a família dela, filhas de santo, amigos e admiradores que ficavam à sua porta esperando a turma toda sair para acompanhar a ida para a festa da Penha. Com tanta gente para ajudar, a barraca e o tabuleiro foram armados em minutos. Logo já estavam cantando, dançando na alegria que as festas religiosas sempre proporcionam, quando chegou a polícia dizendo que não podiam tocar música de macumba na festa de Nossa Senhora da Penha. Macumbeiro é macumbeiro. Católico é católico. Sambista é sambista. Cada um em seu lugar. — Mas isso não é macumba. — Então é de Candomblé? — Também não é Candomblé. Isso é maxixe! — Maxixe, o que é o maxixe? — É isso aqui, ó. Tocaram maxixe. — Não, não pode, não! Isso deve ser a música do samba. Esse tipo de música o delegado também proibiu. Samba é música do demônio, e também não pode. Música de fazer magia negra. — Magia negra é a bunda da minha mulher! — O que que foi? — Nada, não. Esquece. — Então lundu, vamos tocar um lundu pra vê se passa — disse Alfredo, rindo, com o instrumento
na mão. — Não, aí já é abusar da sorte. A mulherada vai querer dá umbigada aqui, o otoridade aí vai ficar invocado — rebateu João. — Vamos tocar uma salsa, que passa despercebido. Valsa é coisa de argentino, francês, inglês, cubano metido a besta também gosta. Os ricos brasileiros são meio argentinos — argumentou Santos e continuou: — salsa que é de cubano, não pode confundir. Valsa é valsa, salsa é salsa. — Tô de brincadeira, rapaz. Iniciaram a salsa, foram até o meio quando um grupo de jovens parou, balançando o corpo. Começaram a dançar, foi juntando gente para assistir, o meganha ficou nervoso com o ajuntamento de pessoas naquele ritmo embalado. — Parou, parou, parou… Isso também é muito rebolativo, é música de africano. Aqui não pode ter misturância de instrumento com tambor, não. Eu já não tô mais com paciência: vou proibir todos os ritmos. — A gente só quer salvar a santa… Quer pagar promessa. Esse coitado aí — disse João, apontando para Santos — até hoje de manhã não enxergava um palmo à frente do nariz, hoje acordou enxergando tudo. Ele tinha prometido que iria trazer nós aqui para louvar a santa. Deixa o homem pagar a promessa dele em paz. Nunca vi um cristão com tanta fé, com tanta vontade de pagar sua promessa. — Promessa de verdade é subir os degraus de joelhos. Essa coisa de pagar promessa dançando, cantando, não é pagamento de promessa real, não. — Oxente! O padre não salva a santa com música? Por que a gente não pode salvar? Toda igreja canta na hora da missa. Não tem um santo da face da terra que não goste de música. Ajoelhou, tem que cantar. Prometeu, tem que cantar. Tem que louvar a santa. O homem tem que pagar a promessa dele. — Então vou tocar uma polca aqui, esse aqui é um ritmo que a santa adora e o padre aceita — disse Alfredo. Atacaram de polca só com instrumento de sopro. O policial foi apurando o ouvido com os olhos comprimidos para saber se aquela música também era reprovada pelo delegado. — Essa pode — disse depois de um tempo. — Então essa aqui também pode, não é, não? Alfredo emendou um schottisch, e os outros músicos seguiram com ele. — Então! É isso que Deus gosta e Nossa Senhora da Penha também e o delegado aprova. Tem outro tipo de música também que eu já vi tocando, uma assim com mais desses instrumentos aí — disse o policial, apontando para os instrumentos de sopro. — Então é isso aqui, ó. Alfredo atacou de foxtrote, o policial riu. — Então a gente toca isso. — Se tocarem só isso que eu falei, vocês podem tocar à vontade. — Eu só tenho medo da santa não entender e castigar o senhor… — Que castigar a mim o que, rapaz? — Lógico. O senhor é um empata-promessa. O mundo nunca é como a gente pensa. O senhor, por exemplo, é um final de comédia e nem sabe que é! — Comé que é? — O senhor gosta de teatro? Já assistiu a uma comédia? — Já.
— Então, essa coisa do senhor ficar tentando lembrar aí o que o delegado disse, escutando música que pode e que não pode, é final de comédia. — Como assim? Eu não estou entendendo. — É um pouco difícil mesmo. Mas se um dia o senhor pensar direito, assistir a mais comédias, o senhor vai ver que o final é tudo igual, assim que nem o senhor e as suas proposições. — Agora que eu não entendi nada mesmo. — O senhor é um preconceituoso, um estulto, e nem sabe. — Estulto? O que é estulto? — Então a sua voz só tem força, mas não tem alcance, pode fazer calar agora, pode interromper, mas não pode destruir pra sempre. — Chega de conversa! Já sabe o que pode tocar e o que não pode. Tá tudo certo então! — Mas, lá na Bahia, eles louvam o santo assim desse jeito também. Escuta só! Mandou um maxixe, a rapaziada atacou junto, inclusive João com um pandeiro. — Parou, parou, parou. Ninguém parava de tocar. O pessoal começou a dançar. O policial não queria cometer nenhuma violência. Correu, pegou um banco e subiu em cima dele. — Para, senão a gente vai ter de confiscar os instrumentos. Falei que não podia samba, nem Umbanda, nem Candomblé. — Isso é maxixe. Isso já foi gravado, a gente já foi cantar em São Paulo, vamos para a Europa. Deixa a gente tocar em paz. — O delegado proibiu Candomblé, Umbanda, samba, e só não proibiu o maxixe porque esqueceu de falar. — Mas se ele não falou… É porque não tá proibido. — O maxixe tá proibido também, meu rapaz! — A gente vai cantar pra santa. A gente só quer cantar pra santa. — A gente vai tocar valsa, então. Ou ele proibiu valsa também? — É, valsa ele não falou nada, não. — Eu tava calado até agora, mas o delegado falou que vocês não podem cantar nada — disse outro policial. — O senhor tem que saber que a gente vai tocar a Ave-Maria na hora que o padre descer. Aí pode? — Eu acho que sim. Pode, né? — perguntou o primeiro policial ao outro. — Pode, mas esse instrumento aqui não serve para cantar a Ave-Maria, não. — A Ave-Maria que a gente mostrou ao padre leva pandeiro, sim, senhor. — Não tem conversa, não pode e pronto. — Mas a gente tá cantando em homenagem à santa padroeira. A gente tá aqui pagando promessa. Pelo amor de Deus. Se o padre gosta, a polícia não tem que proibir. O meganha se surpreendeu, ia dar meia-volta quando escutou o riso de Alfredo diante da resposta de João. — Sem mais conversa, não pode ter esse tipo de instrumento de couro aqui. Violão também não pode, mas a gente vai considerar porque hoje é festa da santa, mas instrumento de crioulo a gente não tá tolerando, não. Me dá isso aí, que tá confiscado em nome da moral e dos bons costumes. E levaram o pandeiro de João. — Deixe meu pandeiro, que deixo ele sossegado aqui e não toco. — Sua mão vai se coçar e vai tocar esse troço, o pessoal não segura, começa a rebolar, colocar
umbigo com umbigo, essas mulatas ficam remexendo a bunda, dando cruzada de perna. Aí chega esse pessoal com berimbau e dana a jogar capoeira. Ninguém aqui tá a fim de requebro de cadeiras, gingado de corpo, sapateado, não. O pessoal tem que vir aqui salvar a santa. Depois, isso tudo vira macumba. O delegado não quer isso aqui. Seu pandeiro tá confiscado. Cinco policiais cercaram João, que entregou o pandeiro sem resistência. — Isso não serve pra nada mesmo, pode quebrar o pandeiro. Os policiais quebraram o pandeiro e foram embora. *** Silva dera a ideia de fazer uma roda de samba na casa de Mãe Mariana. Era que queria comer uma comida caseira, chamar os amigos para falar do bloco. Na verdade, mostraria como imaginava o desfile, a colocação das alas, passaria as músicas que desejava para cantar. — Tem que esperar acabar a sessão. — A gente vai na sessão, como sempre, toma um passe, depois vamos fazer nossa rodinha de samba com as crianças, para alegrar um pouco, não dá pra dormir cedo com esse calorão, não. Tome aqui esse dinheiro para comprar as coisas. — Tá bom, seu Silva. O pessoal foi chegando cedo, os médiuns ainda trocavam de roupa, os músicos conversavam nos fundos da casa, Tia Amélia organizava um lanche para as crianças. E logo os ogãs começaram a tocar para chamar o povo que estava espalhado pela casa para o centro do terreiro e a gira começou. Enquanto os pretos e as pretas velhas davam consulta no terreiro, a rapaziada toda foi para trás da casa encourar os instrumentos do samba, esquentar tudo no fogo para a afinação. Já tinham esquentado os atabaques do Candomblé e da Umbanda que eram tocados no terreiro naquele momento. Esperaram a gira acabar em nome de Oxalá. Lacerda tinha feito três garrafas de batida de limão. Ficaram ali bebericando, levando uma conversa, enquanto alguns componentes do novo bloco traziam os instrumentos para a frente do quintal, inclusive uma cuíca, que era o novo instrumento que João Mina tinha inventado, começaram a tocar sem muito afinco. Era só para esquentar, o samba ia pegando força, as cabrochas requebravam, começaram a cantar Me faz carinhos . Lacerda chegou com o copo de capilé, pegou a flauta, foi floreando a música, e esta foi tomando forma mais quente até que uns dez policiais chegaram de cassetete na mão, foram batendo em quem viam na frente. Não tinha tratamento diferenciado para homens, mulheres, velhos ou crianças. Todos apanhavam da mesma forma. Enquanto batiam, eles gritavam: — Tá proibido dançar a dança do samba! Tá proibida a dança do samba. A pobre da Tia Amélia, ao ver uma de suas alunas de sete anos sendo agredida, correu para ajudar. Um policial aproveitou para desferir-lhe um golpe certeiro na cabeça. Ela caiu no chão, ele ainda lhe chutou o rosto. — Eu já falei que não quero essa crioulada reunida, dançando a dança do samba, que é do diabo — gritava o otário do policial católico. Eles não sabiam que lá atrás estavam Silva, Bide, Lopes, Brancura, Fumaça, Paulinho Naval, Dentinho e mais três capoeiras, que chegaram para a frente do quintal com a ideia de tentar parar a agressão, mas quando viram a criança e Tia Amélia ensanguentadas, jogadas no terreiro, partiram pra ignorância. A briga era agora de igual para igual em golpes de capoeira. Silva deu um rabo de arraia numa das autoridades que não gostavam do samba, do Candomblé, da Umbanda, mesmo sem saber de um e dos outros. Sempre vinham batendo numa gente que quase nunca reagia diante dessa violência
física absurda, tortura e tudo mais. Os golpes foram tão rápidos por causa de Tia Amélia que os homens da lei não conseguiram sacar as armas e pimba, tomaram um sal de verdade dos pés da malandragem. Silva resgatou Tia Amélia, depois a criança. Teve dúvidas sobre quem salvar primeiro, pois velho e criança têm a mesma prioridade. Primeiro a criança, que era mais leve, voltou rápido, levou Tia Amélia também para o fundo do quintal. Malandros como Fumaça, Dentinho, Paulinho Naval e Brancura já gostavam quando a polícia vinha com essa marra de sair enfiando porrada, para poder devolver em dobro. Era a hora de dar o desconto da onda de ver qualquer um dos nossos tocando violão, pandeiro, tamborim, surdo e vir tirar chinfra de prender só por isso, chegar assim três a quatro meganhas, danar a bater num só. Um monte de dores amontoadas nas costas do povo da África por estar louvando os orixás no Candomblé, falando com as crianças, exus, pretos velhos, caboclos de Umbanda ou simplesmente por estar construindo o samba e as suas escolas. Olha que Mãe Mariana ainda pegou a licença para realizar os cultos e mostrou aos policiais. — Isso que vocês estavam fazendo não era culto religioso nem aqui nem na China. Era samba. A gente veio acabar com o samba. Silva deixou os dois em segurança, foi ajudar os amigos na maior briga que aquela turma tivera desde então. Foi tanta violência que, se os médiuns da Umbanda não estivessem lá para apaziguar, teria saído morte. Não somente porque havia rixa de alguns meganhas com os sambistas, mas por causa da agressão à Tia Amélia, àquela criança. Tem briga que é por pura demonstração de valentia, exibicionismo, questão de mulher, coisa de bêbado, parada sem muita questão implícita. Agora, arrancar sangue de Tia Amélia era a coisa mais grave do mundo, era para matar gente a pontapé. E corriam pelos cantos, entravam pelo meio, davam a volta no quintal, sem condições de pegar as armas caídas no terreiro, que Mãe Mariana tratou de recolher, jogou pela cerca dos fundos no matagal. Não era que os malandros batiam fácil na polícia, que tinha gente forte também e com disposição para fazer na mão, mas, em briga de rua, quem ganha na maioria das vezes é quem tem razão. Não tem essa de quem dá o primeiro golpe leva vantagem, não. O que ganha é a raiva de sofrer agressão do nada, de o Estado mandar a polícia para acabar com as festas de aniversário, casamento, nascimento de criança, quinze anos, sessões de Umbanda, Candomblé. Que bom que criaram a capoeira e a trouxeram da Bahia para o Rio, para encarar os açoites que a sociedade desferia: arriaram quatro meganhas no chão. Os outros sete se renderam, os capoeiras começaram a esfacelar o nariz deles com o calcanhar. Os médiuns, porém, não deixaram que houvesse algum tipo de danação com esse pessoal que queria matar a raiz do samba em plena germinação. Valdemar quebrou o pescoço do meganha que agrediu sua mãe. Começou a ser perseguido pela polícia. Tia Amélia ia sendo levada para o hospital, porém Vovó Maria Redonda baixou, foi logo dizendo que não carecia de cartola branca nem precisaria de ponto na ferida. — Pega saião, macera e coloca todo dia em cima, que daqui a pouco tá curado. Primeiro lava com chá de espinheira-santa e bebe um pouco de arnica. A criança também tá bem, faz a mesma coisa com ela. Se for pro médico, vai ficar lá até amanhã para ter atendimento e o cartola branca vai dizer que não quebrou nada e pronto.
APÓS AQUELE DIA, todo o mundo sumiu das esquinas do Estácio, abandonou a zona. Ninguém saía da toca. Era de casa para o trabalho, do trabalho para casa. A polícia rodava atrás do bandido que quebrou o pescoço do meganha. Eles sabiam que fora Valdemar quem atacara. Ficaram na pista dele o tempo todo, deixaram os outros envolvidos na briga de lado. Uma que já não era mais crime dançar a dança do samba. Entraram ali por pura falta do que fazer. Valdemar tinha saído da casa de Tia Amélia, abandonado o trabalho, ido morar de casa em casa por não ter mais condições de ser pessoa decente. Pura maldade. Silva não mudou o ritmo de vida. Acordava cedo, ia lá para as beiradas do final da Sampaio Ferraz, com aquele monte de letras escritas num bloco de folhas esperar Alves passar de carro, leválo para a Casa Edison, onde começavam o dia. Nesses primeiros meses de contato, os parceiros reviram tudo que era música pronta, pela metade, letra pedindo música, música querendo letra. Primeiro trabalhavam nas composições de autoria de Silva. Faziam arranjo, colocavam em partitura, ajeitavam a melodia. Logo em seguida começaram a trabalhar as parcerias de Silva e Bastos, que eram minoria. Esse tempo na vida de Silva foi de felicidade daquelas que se quer para sempre. Quem diria que aquele sifilítico, homossexual, negro, pobre iria trabalhar com o maior cantor da época. Chegava com Alves nos restaurantes mais elegantes da cidade, ia à casa daqueles ricos inteligentes da zona sul. — Boa-noite, Silva, muito prazer. — O prazer é todo meu — respondeu Manuel. — Tenho escutado todos os seus versos, mas o que eu gosto mais é Amor de malandro, dá uma palinha, aí, dá uma palinha — foi pedindo com os olhos brilhando, mão no ombro. Silva cantou com Alves acompanhando, que de vez em quando saía do ritmo. — Tem que ter uma coisa pra marcar, um baticum para segurar o ritmo. — Que que você quer? — perguntou aquele jovem branco de sorriso estatelado, olhos de investigação não só nas rimas, mas também no jeito de pronunciar as palavras, de fazer versos raros com tanta simplicidade, de só saber falar de música, de poesia. — Um prato e um garfo; dá pra fazer contracanto. E dali foram cantando música atrás de música, trago atrás de trago numa mesa de bar sem fim na Esplanada do Castelo. Alves pediu a Manuel que recitasse seus poemas. Assim, foram alternando os versos. Por vezes, ficavam de prosa. Manuel fez com que Silva falasse como era viver no Estácio, fez questão de saber os truques da zona, mas o que o encantava mesmo era o som que Silva tirava do prato e do garfo. Manuel rapidamente aprendeu a tocar na mesa o bum bum paticumbum prugurundum que Silva fazia para acompanhar os sambas mais rápidos. O poeta não tinha voz para falar sobre os sambas daquele crioulinho de fala mansa, educado, simples, com tanta riqueza de arte e tanta sabedoria com as palavras. — Você que inventou esse ritmo? — Sim, eu venho pensando nisso há muito tempo. — É dois por quatro também. Mesmo compasso. Ficou mais bonito mesmo, o ritmo mais elaborado na percussão, tudo redondamente tocado, boa a harmonia, as letras são maravilhosas. — Puxa, Seu Manuel. — Que Seu Manuel, rapaz! Senhor aqui é você, meu rei! O senhor é que merece pronome de tratamento à altura de sua vocação artística, inovadora, de vanguarda. — E voltando-se para o garçom: — Por gentileza, meu querido, pode servir mais um uísque aqui pro meu amigo.
— Vanguarda é o pessoal de São Paulo, são os senhores da literatura, do Modernismo, eu tô sabendo. — Pare, por gentileza, de me chamar de senhor. Cante mais um samba, cante, cante, por favor. Silva largava só a primeira frase, Alves emendava com sua voz de ouro, seu ritmo apurado, fazendo dupla com o melhor compositor do momento. A representação maior da música feita na rua, nos botequins, nos terreiros de Candomblé das mães baianas, nos terreiros de Umbanda das mães cariocas, na festa da Penha, nas casas de shows, nas ruas do baixo meretrício. — Vamos lá na zona agora. Vamos telefonar pro Drummond, Schmidt — insistia Manuel, animado para apresentar Silva aos amigos. — Eu não ligo pra nenhum dos dois uma hora dessas, nem que a vaca tussa. Drummond e Schmidt são casados, rapaz — disse Alves. — E dizer que é pra zona que eles vêm. Mário tá na cidade. Esse aí já deve tá na Lapa, se não tiver, é só ligar que ele vem. Esse paulista é danado. — Então liga você lá, pois eu não tenho amizade assim com eles pra ligar uma hora dessas, não. — Liga, você conhece todo mundo aí. Liga lá e me chama, que eu vou falar com ele. — Tá bom então. Alves foi ao escritório do bar. Tentou ligar para os poetas, e nada. Nenhum dos dois atendeu ao chamado. Já estariam dormindo ou tinham saído de casa. Deixou recado no hotel para Mário. — Claro que saíram. Eles vão dormir uma hora dessas? Liga para Miranda, que ela vem. Alves, Manuel e Silva pegaram Miranda em frente ao Palácio da República, foram direto para o Café do Compadre, onde estavam Brancura, Bide, Juvenal, a rapaziada toda mandando samba no pandeiro, no tamborim, no surdo e no violão. Não era a primeira vez que a cantora parava na urisdição. Tinha conhecidos, já havia ido à casa de Tia Almeida, fez amizade com três putas que eram suas fãs. — Quero conhecer um terreiro de Umbanda. Candomblé eu já conheço aqui e na Bahia — disse ela a Silva depois de sentar e pedir uma Paraty. — A Umbanda, minha senhora… — Me chame de você. — Tá bom, tá bom. Tem terreiro só de Umbanda aí pra cima no morro, sabe. O povo da Umbanda também trabalha na casa de Candomblé. — Não, eu quero ir na casa de Umbanda. Quero falar com Dona Maria Padilha, rainha do cabaré. — Eu te levo, te levo. Quer ir agora? — perguntou Brancura. Manuel, Miranda depois de escutarem um samba de Bide, foram para a casa de Mãe Mariana, pois ainda era cedo. A sessão ainda não tinha começado. Mãe Mariana sentia vergonha de pessoas brancas, com pinta de ricas, dentro de sua casa. Esses meninos não têm nada na cabeça. Quando for assim, tem de avisar que vai levar visita. Ela já tinha dito isso, pois assim arranjaria uma coisinha para comer, faria um refresco, um bolo de fubá para um café. Não gostava de ser surpreendida. Foi correndo preparar a massa, sem que ninguém percebesse bateu um bolo e colocou no forno de lenha, fez um café. — Comé que vocês sabiam que ia ter gira de Exu? — A gente não sabia, não. Miranda quer conhecer Dona Maria Padilha. — Ela vem, sim. Mãe Mariana olhou para Brancura e continuou. — Seu Tranca-Rua também vem. Brancura nunca mais tinha falado com Seu Tranca-Rua. Mas estava querendo realmente dar uma
palavrinha com ele. Queria mesmo era uma guia pra se largar nas noites mais tranquilamente, se sentir mais seguro. Sabia que ele iria falar, dar conselho, dizer que não podia mais ajudar por ele não fazer por merecer axé, mas depois aliviaria, cruzaria peito e diria que vai fazer o que pode para livrar do botina preta, de arma branca e de fogo, olho grande e golpe de traição. Tomaram café com bolo. Manuel, sentindo a timidez da mãe de santo, começou a agir como se fosse de casa, olhou bem o jeito de todos e foi fazendo como eles. O poeta cumprimentava, beijava a mão das mulheres com todo o respeito, fossem jovens ou velhas, dava petelecozinho na criançada. — O senhor é uma graça de pessoa, viu! O senhor é tão iluminado como esses meninos aí. Cada um com sua luz, mas todos assim de muito axé! — A senhora é que é, Mãe Mariana. A senhora é filha somente da luz. — Ah, que nada! Vocês fazem a poesia do dia a dia, meu filho! Luz é ter força e talento para lidar com as palavras e transformar em arte. A espiritualidade é a coisa mais humana que a gente tem na vida, né? E a poesia alimenta o espírito. — O que a senhora tá falando também é poesia… — Sim! Mas é por causa de vocês. Tudo o que a gente fala é sentimento, na verdade, é artifício de desenvolver os sentimentos naturalmente através da arte, a gente só repete aqui o que a razão já falou. A poesia é a verdade. É só seguir a poesia que tá tudo dominado. Eu falo pra eles aí… Se não tiver verdade, não tem poesia… Você sabe a verdade que eu estou falando, da verdade de todos os tempos… A verdade que domina todos os corações, a verdade dos sentimentos… Ficou um tempo em silêncio. Olhou para o alto e disse a todos: — Vamos começar. Os médiuns, vestidos de branco, começaram a cantar para os orixás, para os caboclos, os pretos velhos e as crianças. Depois trocaram de roupa e se vestiram de vermelho para receber os exus e as pombagiras. Manuel ficou de olho no toque do atabaque, reparou que a cada falange o toque mudava, a energia se renovava. A dança era diferente, expressões e letras dos pontos de Umbanda. Começam a cantar para Dona Maria Padilha: Arreda homem que aí mulher Arreda homem que aí mulher Ela é Maria Padilha rainha Do Candomblé. Tranca-Rua vem na frente Pra dizer que ela é Ela é uma feiticeira Rainha do cabaré. Ela desceu quebrando demanda. Era a dona daquela casa, a rainha do cabaré, Dona Maria Padilha das Sete Rosas Vermelhas salvou o altar, salvou os orixás, salvou o cruzeiro, salvou seu cambono, os ogãs, a mãe pequena. Salvou os filhos da casa e, finalmente, a assistência. Agora sim, os outros exus e pombagiras foram descendo para fazer a gira. Falou com o pessoal que tinha chegado na frente, em seguida, saudou Manuel. — Oi, meu amigo! — Eu estava muito querendo conhecer a senhora. Muita gente falou muito bem… — Suncê fala direto com a espiritualidade, tá tudo aqui — aponta a cabeça do poeta —, já tá tudo aí, pronto pra ser escrito.
— E comé que tá a minha vida aí? — Tá tudo formosado pra suncê, seus caminhos estão todos abertos… — Eu não sei ainda o que eu devo fazer de profissão, a senhora tá me entendendo? — Eu já falei que o que suncê absorve, suncê devolve em dobro. Os versos estão prontos… Só falta escrever. Sua vida não vai tá longe dos livros, mas disso suncê já sabe! Seu caminhador é esse mesmo. Suncê não tem mais doença grave, não. Vai viver muito ainda. Vai brilhar com brilho eterno pra sempre da arte. — Engraçado, eu joguei búzios na Bahia, e a mãe de santo falou a mesma coisa. — Tá na tua cara, meu filho. A arte é a maior alegria do humano, é a coisa que vocês fazem que une todo o mundo. Vocês falam direto com o que é de mais humano. A arte reinventa este mundo, mostra outros, adivinha o futuro, descobre o passado… — O problema é que o dinheiro é curto, né? Às vezes dá, às vezes não dá. — Tu nunca ligou pra dinheiro! Só quer saber de putaria… — Eu gosto de uma orgia mesmo... É que o Estácio, o Mangue, tá passando por um momento muito precioso. A prostituição é festa todo dia. Aqui é outra cidade com muita luminosidade, muita gente alegre. A música brasileira de fato está nos cafés da Lauro de Araújo, a grande veia da zona. São grupos de flautas, cavaquinhos, pandeiros para tocar choro! As mulheres nuas em toda liberdade nas portas escancaradas... — Sei, é tudo putaria mesmo. — Que é isso?! Assim a senhora não tá me dando nem um pouco de credibilidade… — Que é isso, moço! Putaria no bom sentido! Farra! Música, samba, bebida, mulher, viagens… Você nasceu pra ser feliz. Você não gosta da zona? Lá tem tudo isso. — É mesmo, é? Puxa vida, alguma coisa, o dia todo hoje, me dizia que eu tinha que vir aqui falar com a senhora. Eu acordei sentindo uma voz, o tempo todo, no ouvido. — A voz dizia o quê? — Ficava cantando música, falando versos que eu queria anotar e esquecia. Tem alguma coisa a ver? — Era a voz da felicidade. Tudo em você vai gerar felicidade. — Eu nem sei o que falar pra senhora. — Não precisa falar nada, não. É só não ficar a poder de bebida e tira-gosto. — E as mulheres? — Mulher também não vai faltar. É a Dama da Noite que põe mulher em seu caminho. Coloca uma rosa para ela na encruzilhada, que ela só vai colocar mulher boa em seu caminho. Mas também não é pra sair querendo todas as mulheres do mundo, porque você é um só. Não fica com essa coisa de taradinho, não, que só vai te prejudicar. Tenta ficar só com uma. Não tem essa de beber café depois ficar fumando e pensando na vida e nas mulheres que tu amou não. Para de fumar senão tu morre. Café e cigarro fazem mal ao estômago. — Eu sei, eu sei, eu vou parar. Ficaram ali de prosa por mais cinco minutos, em seguida Dona Maria foi falar com Miranda. A coisa ficou feia foi para Brancura. Seu Tranca-Rua quase nem falava com ele. Estava tão zangado com aquele malandro que, se este não se dirigisse ao Seu Tranca-Rua, não teria parlamento. Só tem axé quem se faz merecedor, quem faz o que os orixás mandam, tem que cuidar do santo. Fazer os trabalhos, fazer as obrigações e, acima de tudo, fazer caridade. — Boa-noite, meu Tranca-Rua. — A noite não tá boa e, do jeito que tá indo, vai ficar pior. Eu não tenho mais nada pra falar com
suncê. Ainda mais suncê estando armado aqui dentro. Vai lá, pega essa porra que tá aí na tua cintura e deixa lá fora — falou Seu Tranca-Rua sem ninguém escutar. Brancura deu dois passos para trás, fez meia-volta, saiu no sapatinho, sem ninguém ver. Uma sensação de fragilidade bateu assim que colocou o passo fora do terreiro. Tudo fora ele quem procurara. Poderia agora tá formosado, junto com o pessoal da arte. Seu Tranca-Rua tinha falado que se ele ficasse no trabalho teria muito verso para virar música. Quando você anda com quem faz, se gostar mesmo, acaba aprendendo. O samba era a música que estava tomando conta de tudo. O bloco de corda também ia sair. Alves, Mário Reis, poetas, artistas de toda sorte agora não saíam do Estácio, viviam de copo na mão no Café do Compadre e no Bar do Apolo. Não tiveram que ir até o mundo deles, pelo contrário, foram os cantores que vieram ciscar no terreiro deles. Fora burro, estaria mais afiado no fazer musical, teria mais palavreado para parlamento com os artistas consagrados. Por que não jogava aquela arma fora, voltava para o terreiro e prometia a Seu Tranca-Rua que dessa vez seria para valer? Que andaria no rumo certo para merecer o axé de Umbanda, receber a proteção do povo de rua, captar as energias dos orixás para poder criar, se instruir, saber o que estava acontecendo no mundo. Ter argumento para desenvolver as letras. Mas, não. A noite de malandragem o esperava lá embaixo na zona. Será que era artista de verdade? Não era a primeira vez que questionava seu poder de criação. Lembrou-se daquela vez em que ele, Baiaco e Lacerda armaram pra cima de dois compositores. Era quase meia-noite no Bar do Apolo. Os três avistaram os compositores cantarolando um samba indo em direção ao bar. Brancura fez sinal para Lacerda pular para dentro do balcão. O dono do bar tomou um susto. Brancura lhe fez sinal de que não era nada. Brancura pegou uma folha, um lápis, discretamente deu a Lacerda. Os rapazes entraram, deram boa-noite, continuaram a cantarolar o samba por um tempo. Pediram bebida, tira-gosto. — Bonita melodia! — A gente fez agora! — Repete aí — disse Baiaco. Cantaram. — Muito bom. Bela melodia. Repete aí — pediu Brancura. Cantaram mais uma vez. Brancura pediu que repetissem a canção várias vezes para que Lacerda escrevesse a letra e guardasse a música. Depois de um tempo, o flautista deu a volta por trás, entrou numa porta, pulou a janela, ganhou a rua. Marcou um tempo na esquina, adentrou como se não visse Brancura havia muito tempo. — Diga, meu irmão! Quanto tempo! Faz mais de três meses que a gente não se vê. — Eu viajei a trabalho, sou estivador. A gente não tem dia nem hora. O navio apitou, a gente dá sentido. — Olha só: esse aqui é meu amigo. Compositor bom! — Tem música nova, não? — perguntou Brancura. — Não! Quando eu tô viajando não consigo compor. É só colocar o pé no navio que não vem nenhuma composição. — Então manda uma coisa velha mesmo. — Vou mandar uma que todo o mundo aí já conhece. Lacerda, bom de memória como o diabo, cantou de cabo a rabo a música dos compositores. Brancura fez cara de meu Deus do céu. Com os olhos arregalados encarou os rapazes, que não sabiam o que dizer. Baiaco começou a rodear os dois de mãos fechadas, fazendo expressão de
enganado. Lacerda cantava de olhos fechados. — Mas, mas, mas… — Que, mas o que, seu cabra safado? — disse Baiaco e continuou falando para Brancura: os caras tavam dizendo que esta música era deles. — É mesmo, é? Como então que eu sei a música de cor e salteado? Olha só: vou cantar do começo, depois vou voltar na segunda. O estribilho é tão antigo, é tão meu — disse e cantou o estribilho de novo. Os dois compositores não sabiam o que fazer. Como seria possível aquele malandro saber a música todinha? Eles a fizeram nota por nota, letra por letra. Tinham todos os primeiros rabiscos dos versos transformados, revistos, aumentados, diminuídos. Agora aparecia esse diabo cantando a música assim, do nada. Aquilo era coisa do demônio. — Vem cá! Você sabe quem eu sou? Conhece a minha fama aqui no Estácio? Os dois rapazes sabiam quem eram Baiaco, Brancura e Lacerda. Foram saindo de fininho para longe daqueles velhos malandros capoeiras. — Se aparecerem aqui de novo, a gente vai matar vocês, ladrões de samba. Eram dois nortistas que se motivaram com a gravação da música de Bide e Silva. Muita gente passou a escrever, motivada pela possibilidade de ser gravado por um grande cantor. Isso se dá mesmo na real: quando um grupo de inventores se reúne num cantinho qualquer do tempo e da vida, a motivação não só vem para a presente geração, mas também atravessa os tempos, influenciando novos poetas, inventando outros. Porém, na graça de seu nascimento, qualquer movimento artístico toma conta do povo todo: até mesmo gente que não nasceu pra coisa, vinda de outra terra, gente de outra vivência musical, pessoas que nunca tiveram tino para o assunto estava compondo letra, tirando música, querendo batucar de qualquer maneira. Era a energia de vanguarda que se espalhava pela zona do baixo meretrício, pelas ruas do Estácio. Esses dois compositores ficaram tão abalados com a situação que nunca mais passaram por ali, de tanto medo daqueles malandros. Tinham feito uma música boa. Poderiam até continuar, pegar gosto de verdade, fazer coisas belas, ir aprendendo devagarinho, mas diante de tamanha violência, da não necessidade de criar, do pouco gosto, acabaram com tudo. A motivação de acontecer na arte tem que ser grande para que resista a esses atropelos de brutalidade. Tem que ser levada muito a sério, senão o cara pira e para. Brancura e Baiaco até tinham talento pra fazer. Talento é uma coisa que se conquista, que se procura, que dá trabalho. Não iria voltar de forma alguma para pedir mayleme ao seu Tranca. Não iria fazer mais promessas em vão, não tinha peito para ser do bem. Entrou na Rua do Estácio chorando por ter amor pelo crime, por gostar de viver dando perdido no jogo de chapinha, esperar chegar o fim da noite e recolher dinheiro de suas putas. Tinha raiva naquele momento da mania de ser valentão, de querer brigar por qualquer coisa. Era homem de querer ter prestígio sem conquistá-lo, sem a mínima luta. Se soubesse de fato quanto é bom tornar as palavras letras de música, pegar os sons e harmonizá-los, faria um trato de novo com Seu Tranca-Rua da Calunga Grande. Foi pela noite, convicto de que era uma pessoa que não prestava pra nada. Dona Maria Padilha disse a Miranda que ela era um espírito muito velho, que essa era a sua última passagem pela terra. Que tinha tempo suficiente dessa última vida para dar a alegria da arte ao povo, que iria amá-la para sempre. — Tu é um espírito maduro. Não tem maldade nenhuma na mente. Você só veio na terra para brilhar. — Que coisa boa que a senhora tá me dizendo! — disse Carmem, rindo. — Como vai ser a vida
da gente daqui pra frente? — Esse povo vai passar por tempos muito ruins, de muita morte, de gente sumida, de tortura. Ainda vai ter muita fome, vai nascer um monte de sangue ruim e um monte de sangue bom. O mundo vai mudar muito. O bom é que acabou a escravidão, o povo vai ser mais feliz. “O século trinta vencerá.” — Mas eu não quero sair daqui, não! Eu gosto dessa porra toda, adoro uma sacanagem. Por que eu não posso voltar? Eu quero ter mais umas três centenas de vida. Dona Maria Padilha gargalhou e continuou: — Você gosta de alegria. Gosta do prazer. Gosta de arte. É artista. Só há vazio dentro do ser humano quando ele não tem arte… Você vai ver tudo, vai ter tudo à sua vista, à sua mão, quando quiser. Mas pra onde você vai, vai ter tudo isso, de forma diferente, mas vai. — Me diga o que é a Umbanda mesmo na essência? Do Candomblé eu tô por dentro. A Umbanda é que todo o mundo quer saber agora. Legal é que ela é abrigada nas casas de Candomblé. — A Umbanda só fala coisa boa, mesmo quando é ruim, porque nada é por acaso na eternidade. É a reunião de toda espiritualidade que andou por essa terra nas religiões. A junção de tudo, tá tudo mudando, a espiritualidade vai mudando também. Umbanda é uma religião de vanguarda, modernista, que nem o samba. Tá me entendendo? A fila anda. Umbanda é evolução. — Agora me conta onde é? Como é essa tal de Aruanda? — Onde tudo é pensamento. Onde não tem nem tempo, nem espaço, nem luz, nem força de nada. Só consciência de infinito, lugar de aprendizado para os espíritos desencarnados. É de Aruanda que vêm os espíritos já em alto desenvolvimento para ajudar os espíritos de pouca evolução. O pensamento é a única energia que não morre em todo o universo, também não muda, só evolui. Mudança não é evolução, não. A gente pode mudar pra pior. Evolução só tem como fim o crescimento. Você é um espírito encarnado, eu sou um espírito desencarnado. Encarno agora nos médiuns só para poder trazer ensinamento do mundo espiritual, que é eterno em sua evolução. Então, em qualquer lugar em que o humano esteja, ele vai estar sempre evoluindo. Aruanda é lugar de pensamento superior, superior em bondade e caridade, que são a base de tudo. Aruanda é o céu. Lá estão os espíritos com nível alto de desenvolvimento espiritual, tanto é que não há nada material. Aqui na terra vocês tão ligados nas coisas materiais e crescer é fazer desapego das coisas mundanas, se pautar só naquilo que é realmente valioso, como a bondade e a caridade. — Interessante. — Tudo acontece ao mesmo tempo no mesmo lugar. Tá tudo escrito, mas o livre-arbítrio tá aí. — Sensacional. Sou fã do livre-arbítrio. Padilha disse tudo que a energia dela demandava. Ficaram ali mais um pouco, até que os exus e as pombagiras se despediram. Cantaram para subir. Cantaram para os marinheiros, que desceram, salvaram, subiram rapidinho que era só desenvolvimento. E também a mãe de santo estava com certa pressa que a malandragem descesse logo. Seu Zé Pelintra da Linha do Trem, que estava lá no cantinho na dele falando com os cambonos da casa, foi conversar com Alves, que aguardava quietinho sentado num banco, pois assim que Seu Zé chegou, Alves foi afoito para perto da entidade afim de parlamento. — Eu quero falar com o senhor. — Marca uma horinha, que tô levando uma conversa com meus parceiros aqui. Alves se sentiu sem noção, ficou ali como um garoto travesso que leva um carão, enquanto Miranda e Manuel batiam palmas acompanhando a cantoria que se canta pra malandro descer. Depois que findou a prosa com seus amigos, Seu Zé se aproximou dele:
— Fala tu, que eu tô cansado. — Eu primeiro queria lhe pedir desculpas, porque fui chegando sem pedir licença… — Você tá nervoso à toa, amigo. Tá tudo tranquilo. Eu só tô aqui pra falar contigo mermo. Tá me entendendo? Não é nada demais, não. Eu só quero abrir seu olho. Eu estava falando com os caras ali porque eu tenho que passar trabalho e obrigação pra eles, tá me entendendo? Não, né? É com eles que eu tenho que falar primeiro sempre, quando eu venho na terra, porque é com cambono que a gente fala primeiro, eles que cuidam da gente. Eu tô sabendo que você tá vindo aqui para falar comigo, desde que você me mentalizou lá na subidinha da escada que eu me preparei para encarnar. Você não pensou em mim lá? — Pensei... — Eu sou pensamento, cumpade! Eu nem vinha aqui porque é dia de Exu. Eu sou da malandragem, minha gira é diferente. Diga lá você. — Primeiro, eu queria pedir proteção, porque o senhor sabe que eu ando em tudo que é quebrada desta cidade. — Isso você pode ficar tranquilo que ninguém vai mexer contigo, não. O povo de rua te dá proteção. Quando você descer do carro, antes de botar o pé no solo, você me mentaliza, fala assim: salve a minha força, salve a força da malandragem, salve a força de Seu Zé Pelintra da Linha do Trem. Aí, pode ficar despreocupado que vagabundo vai até ficar com medo de você. Seu Zé Pelintra da Linha do Trem dá uma risada, apaga o cigarro, dá a bituca a Alves. — Fica com isso! Bota na carteira! Só mais uma garantia. É um patuá. Mais alguma coisa? — Eu queria saber assim como vai o meu trabalho, porque eu tô vendo que eu tô bandeando, tô trocando o rumo de tudo. Esse processo político sem lógica, essa crise aí no exterior, que ano que vem vai chegar aqui. Tô com medo da gente entrar em depressão. Os jornais de fora que chegam aí só falam nisso, os correspondentes afirmam que o negócio tá feio. Essa crise do pós-guerra aí vai pegar a gente. — Meu irmão! Isso não vai atrapalhar nem um pouco. Esquece isso tudo, que é tempo de transformação. Os artistas só têm tempo de pensar no novo! Vem coisa muito grande por aí. A mudança da arte em que você tá inserido diretamente no contexto é o que interessa no momento. Você tem que se ligar, senão tu vai ficar de vacilão na história. — Eu tô sentindo que a coisa não tá funcionando do jeito que tem que ser. Tô sentindo muita confusão nisso tudo. Eu queria me organizar, fazer meu futuro… — Para de ficar só pensando em carro, dinheiro, fama. Esquece isso, meu irmão. Se eu fosse você, não andava nem de carro. Tens que abrir os olhos para a sua posição dentro desse mecanismo todo, desse novo movimento artístico. Tá me entendendo? — Mais ou menos. — Deixa eu te localizar: você tem função especial dentro desse novo processo, sem você, sem Silva, sem Bide, sem Bastos, os outros parceiros aí, esse tempo agora não seria do jeito que tá sendo, não. Nada é por acaso. Tem que se ligar, senão tu vai ficar como otário, entendeu? Vai se dá bem agora, mas depois vão te censurar com razão. Tá me entendendo? Vão falar mal de você. Vão sujar teu nome pra sempre. — Eu sei, eu tô sentindo isso na pele. Eu vivo num mundo de mudança. Crise é mudança… Eu só não sei se eu tô bem encaixado dentro do mundo de agora — Que nada, rapaz. Esqueça a Europa, esqueça os Estados Unidos. A parada tá rolando aqui no Estácio. Tu tem que pensar mais como pensa os teus parceiros aqui da área. Seja mais artista, pense a arte como necessidade, não pense só como dom, só como trabalho. Falta em você compromisso
com a invenção em primeiro lugar. Pense mais na turma, pense mais na parceria. Tu já tá ligado para sempre nessa nova onda. Tu sabe que a música tá mudada, que tá acontecendo uma coisa muito forte aqui no bairro. O pessoal da casa de Tia Almeida já tá pendurando a chuteira. Já deram o que tinha de dá, marcaram o giro do processo. — Eu tô vendo que eles estão acabando. — Não é que eles vão acabar, não. Nada acaba. Eles já tão prontos, já fizeram a parte deles, estão inscritos na arte, tão maduros, dando frutos, que são vocês. Vocês é que estão em processo de crescimento, de transformação. Agora tá tendo uma revolução, você é o grande divulgador desse evento, dessa mudança cultural. Essa moçada tá dando novo rumo àquilo que eles começaram. Já ouviu falar em vanguarda, né? — Já, claro que já. — Então, porra, bola pra frente. — Sim, claro. Manuel cansa de falar isso. Aliás: só fala nisso. — Nesse momento, a cultura dos escravos tá sobressaindo. Pegando força, se consolidando… A mandioca tá assando. — Os negros tão caminhando através da arte, né? — O trabalho escravo fortaleceu o negro. A escravidão é o amor. — Poxa, Seu Zé, aí embola tudo. Tô embolado. Não consigo entender um nada do que o senhor falou. Escravidão e amor não têm nada a ver. — Deixa eu explicar. — Explica aí, por favor, que nessas coisas assim de política eu sou meio burro. — O fato de escravizar é mais um crime grande contra a humanidade. Talvez o maior deles todos. O resultado que faz o negro viver em harmonia consigo mesmo, com o branco que escravizou, com os próximos negros que nascerão. O resultado é o trabalho. Trabalho é amor. Entendeu agora? Qualquer trabalho demanda criação. Se não tivesse escravidão, teria uma guerra imensa, uma mortandade ainda maior, a crueldade seria o dobro para todos os lados. Na escravidão, o negro criou coisas que vão ficar pra sempre, aqui vai ser o mundo novo. Você já tá vendo isso? — Agora sim. — Tudo que foi construído, gado, lavoura, cada casa, ponte, igreja, rua, cidade, tudo é trabalho, o trabalho é a forma física do amor. Entendeu, meu cumpade? De onde tá vindo a música nova do Brasil? — Dos netos dos escravos. — De onde vinha a música antes dessa que tá se fazendo aí agora? — Dos filhos de escravos. — Então, meu cumpade. Trabalho, cultura. Tudo é amor. Não tem escapatória. — Mas, Seu Zé. Essa crise que o senhor tá dizendo aí que não existe já tá batendo na porta, meu rei. — Ela já chegou e já tá indo. Ela é de transformação! Ano que vem é outra e virão outras. Será também benéfica. Tudo vai ser sempre evolução. — Será? — Eu não tô falando, rapaz? Segue o seu caminho de artista, considere os compositores como devem ser considerados. — Eu entendo, mas tem que comer, comprar as coisas, pagar as contas… — Criar, inovar, inventar, ser humanamente impossível. É isso que você tem que ser. A primeira coisa é parar com essa onda de querer roubar samba dos outros. Tá me entendendo? Não fica de
vacilação, não. — Eu queria fazer mais uma pergunta… — Eu não posso mais ficar aqui, não. Vou sair fora. — Por quê? — Porque tudo nessa vida tem hora! Assim que a sessão se encerrou, Mãe Mariana tratou de fazer um mingau de mungunzá para os velhos, para a criançada. Quem queria café com bolo também tinha. O pessoal que incorporou, agora descansava, enquanto a turma do samba ia se acomodando pelos cantos. Sereia trouxe cinco cabeças de robalo direto da peixaria. Os temperos já estavam esperando para caldinho de peixe, pirão com Paraty e batida de limão. A rapaziada faz fogueira para esticar o couro dos instrumentos. O pessoal das cordas afina os violões, cavaquinhos. Muita gente de prato, colher. O couro dos atabaques estava quase no ponto. — Tem um lugar pra telefonar aqui? — perguntou Manuel. — A farmácia aqui perto, que tem telefone, já fechou. Agora só lá na zona mesmo. — Mário tá aí de bobeira. Eu sei porque Schmidt me ligou avisando, eles estão juntos. Ligou pro Drummond? — Liguei pra todo o mundo, mas ninguém atendeu. — Ligou pro Schmidt? — Não. — Esses caras tinham que ver isso, rapaz. Eles não iam querer sair mais daqui. — Você acha que o Mário iria gostar? Sei lá, pelo que eu sei dele… — Mário não sai da zona, rapaz! Ele adora chorinho. Ele conhece mais isso aqui do que você. Vem, fica por aí, depois vai lá pra Lapa atrás de capoeira para trepar. — Não duvido, não. — A gente vai andando, cantando, sambando aqui no quintal mesmo. Vamos deixar as crianças na frente. Depois vão as pastoras e as mães de santo do Candomblé e da Umbanda, que vão se chamar ala das baianas. — Que ala das baianas? Isso não existe, não? — Vai passar a existir. Eu não sei se o surdo do Bide vem na frente ou atrás — argumentou Silva. — Eu acho que a bateria deve ir na frente, o meu surdo junto com tudo. O tamborim também, não é não? — O negócio é o solista escutar o povo. O povo escutar o solista. O tamborim pode entrar na hora do povo, entendeu? E o surdo dá duas batidas bem forte para cair junto com a volta do solista. Ali, naquele espaço com cinquenta pessoas, em qualquer lugar que se colocasse o surdo ele seria escutado pelos diretores de canto, pelo solista, pelo povo todo. Porém, num desfile com várias pessoas a céu aberto tinha de se pensar, para não atravessar o samba. Pois é o surdo que segura o ritmo do princípio ao fim, o tamborim só ajeita para entradas, saídas e para levantar o ritmo. O próprio Silva ficou de solista naquele primeiro ensaio do bloco. Bastos ficou ali como primeiro diretor de canto. Manuel ia pela terceira Paraty. Ainda pensava em ir correndo achar Mário, Schmidt e Drummond. Queria muito ter vivido aqueles momentos com eles… Quando encasquetava com uma coisa era assim. Miranda, sentada num canto, espremia limão em sua Paraty, colocava açúcar e ia bebericando. Alves pegava em todos os instrumentos de percussão, tirava som, inventava jeito de tocar. Quando o samba começou, correu para o seu violão, foi ali caçando nota. Rapidamente, conseguiu
acompanhar, criar acordes. Silva chegou para perto dele a fim de se harmonizar com o violão do parceiro, também de lhe ensinar as músicas.
HÁ VÁRIAS COISAS que parecem ser o que segura tudo mesmo de fato. Uma delas é se juntar para cantar e dançar, justo que na arte não existe nada que possa menosprezar um tico de grão que seja do humano. Todos se entendiam nesses versos que a melodia levava para os ouvidos da História que seguia, trabalhando a alma, ocultando o vazio, rejuvenescendo desejos, fazendo a alegria de se entender, indo profundeza dos sentimentos abaixo, dando vazão ao dom mais nobre da alma que é o de se fortalecer na música para seguir em frente depois da escravidão. Os sentimentos falando em tom de maestria. Sintonia fina com a filosofia. A História feita em linguagem poética. O humano como ser escrito. Os signos da arte resolvendo tudo. O poder da palavra que não passa de sopro, som e razão vestida com o samba de avenida. Quando Silva começou a cantar ali ao lado de Alves, Manuel foi imaginando coisas, outros tons, pegou lápis e papel, foi anotando anotando palavras. pal avras. Era cascudo o suficie suficiennte para pa ra saber que essa ess a parada de deixar verso pra escrever depois nunca vem igual. Quando vem. Porque, na maioria das vezes, esses versos feitos no estalo desaparecem da mesma forma que vieram. Ningu Ninguém ém reparava reparav a que naquela hora os malandros, os marinheiros arinheiros encarnavam encarnavam,, chegavam chegavam no sapatinho, sambavam com todos. Seu Zé Pelintra da Linha do Trem voltou, Joaquina das Sete Navalhas chegou chegou juntin juntinhho com Seu Zé Malandro Malandro da Estrada que estava na dele e resolveu resol veu baixar, Dona Maria Molambo foi a única que disse que estava ali e queria falar com um filho de santo que estava andando em companhia ruim. Ficaram ali sambando no meio dos encarnados como se fossem um deles. Até deram beijo na boca, comeram, beberam, se divertiram a madrugada toda. Um pouquinho antes de o sol nascer, Brancura, Bide e o resto da turma foram levar Alves e Miranda até o carro. Manuel, jogado num cantinho fofo da casa, pois rolava um noroestezinho frio àquela hora, disse que iria depois. Silva e ele haviam dito a Mãe Mariana que ficariam até mais tarde, conforme os filhos de santo que moram mais longe. Quando acordassem, iriam andar pelas ruas, entrar nas casas, parar de bate-papo nas esquinas, apresentar os amigos todos, a família, a criançada toda. Era que Manuel queria conhecer todo o mundo dali, queria ouvir histórias de vidas, falar também de si. Nascera para interagir, ter o mundo todo ao máximo, para refazê-lo, inventar outros. Era como Silva, Miranda, Alves. Para eles, não havia nada mais interessante na Cidade Maravilhosa do que o Estácio. Já conhecia Alfredo, João, Barbosa. Já tinha beijado a mão de Tia Almeida. Agora queria conhecer as outras mães de santo, entrar em todos os terreiros, ficar de prosa com os ogãs, saber de fato o que é um cambono, uma mãe de santo, uma mãe pequena. Escutar, aprender os cantos da Umbanda. Tinha Tinha vontade de prosear com os capoeiristas, capoeir istas, repensar r epensar o que eles pensam. pensam. Ouvir histórias dos mais velhos. Sabia que, ao lado de Silva, teria acesso a isso tudo de mão beijada, de sorriso aberto, abraços, consideração. — Então, Então, a gent gentee pode recostar recos tar o esqueleto só pra pegar pegar prumo? prumo? — Com certeza, seu Silva. Quer comer comer mais mais uma uma coisinh coisi nha? a? — Não, minh minhaa querida, não precisa se preocupar. pr eocupar. Silva se aconchegou noutro lugar confortável. Dormiu logo, só despertou quando Manuel acordou e chamou por ele. — Tudo Tudo bem, bem, meu meu querido? querido? Acorde Acord e aí, por favor? — Claro! Eu falei para me cham chamar. ar. Tá tudo tudo bem? bem? — O pessoal já foi, né? né? Você Você também também dormiu? dormiu? — Dormi, Dormi, sim, eu pra dormir sou um uma beleza. Durm Durmoo em qualquer qualquer lugar. lugar. Mas pode dormir dormir mais… — Não, rapaz. Não se incomode incomode comigo, comigo, não. Tirei meu cochilo em paz. paz. Você Você também também,, se quiser
dorm dor mir mais um pouco. — Eu moro ali do lado. Só fiquei para te esperar. — Então, Então, vamos vamos embora. embora. Saíram depois de beijarem e abraçarem Mãe Mariana. Foram descendo a Rua do Estácio sem muita conversa, sem força na andança. — Vam Vamos os dá uma uma passadinh passadi nhaa no Bar Bar do Apolo. Foram caminhando sem muito afinco. Manuel admirava o sol batendo nas casinhas bonitinhas do Estácio. — Não vamos vamos na zona, zona, não? Tem disposição disposi ção de subir o morro morro agora? — Primeiro vou tomar tomar um quen quente, te, senão senão vai dá sono. — Onde? Onde? — Na zona, zona, pô. Foram até o Café do Compadre. Alves tocava violão, Miranda cantava com Bide, Brancura acompanhava revezando entre o surdo e o pandeiro. Miranda se encantava com a marcação do surdo falando em voz alta. Marcava sempre com o pé. Também se apoiava no contrabaixo, mas o surdo ali, seguindo a batida do coração, era de um sentimento sonoro tão profundo. Brancura recortava com o tamborim o acompanhamento do violão de Alves. Manuel abriu um sorriso, apressou o passo, entrou no bar falando. — Coloca, por gentileza, gentileza, um uma Malzbier. Malzbier. Corta um salame tam também bém,, por favor. — Ali atrás tem um um caldo de cana bom para rebater. A gent gentee estava pensando pensando em subir o morro. Dá umas olhadas lá de cima. — Eu topo. Vam Vamos os embora? embora? O poeta fez questão de pagar a conta. Iam saindo quando Silva mandou descer mais uma rodada de bebida pra cada um. um. Os remanescen remanescentes tes da noite noite se aproximavam aproximavam,, as a s prostitutas prostitutas se aconchegavam aconchegavam.. A manhã se formando. As pessoas tomando o caminho do dia. Foram mais de cinco últimas rodadas. Aquela imensa batucada chamando a atenção dos transeuntes. Um carro da polícia que seguia pela Machado Coelho entrou na Rua do Estácio, desceu até a Rua Lauro de Araújo. Quando escutaram a batucada àquela hora da manhã, partiram na correria para acabar com a bagunça. Ao notar Manuel, Miranda e Alves, o policial responsável abriu um sorriso subserviente daqueles de dar nojo mesmo de verdade. Mas, enfim, o samba continuou. Brancura sambava com fervor diante da patrulha, batia tamborim, pegava o surdo, desenrolava no pandeiro. Alves continu continuava ava a pux puxar ar as melodias elodia s sem ao a o menos olhar para o rosto dos infelizes. infelizes. O resto da negrada foi também no incentivo de Brancura sambar diante da patrulha, que dissimulou, deu meia-volta, eia-vol ta, se foi. Não voltaram mais mais ali aquele dia. Saíram pelas ruas da zona em compasso dois por quatro. O solzinho da manhã lhes dava um revive para continu continuar a cantar. Pegaram a Rua do Estácio, com clientes, prostitutas, cafetões, malandros de toda a sorte, judeus da Zwi Migdal, entrando naquele samba de sambar que o ritmo ditava ainda em processo de parto. Silva conduzia o povo para a Ladeira São Carlos, foram subindo o morro devagar. O samba não parava. O destino, àquela hora da manhã de um sábado, como sempre, era a fazenda de Seu Antônio das Cabras. Era que quando quando não não chegava chegava o pessoal p essoal do samba, era o da capoeira, capoeir a, do jong j ongo, o, a turma turma da Tia Almeida. Serviram um café de fogão de lenha que havia tempos Manuel não bebia. Um bolo de milho desses bem crocantes. crocantes. Tinh Ti nhaa chá de erva-cidrei erva-c idreira ra também também.. Miranda e Manuel olhavam a cidade lá de cima: o chapadão da Tijuca, a Zona Norte toda, a baía
de Guanabara, Guanabara, o Pão de Açúcar, a zona zona da Leopoldin eopoldi na. — O Rio é bonito bonito pra caralho! caral ho! Alves falava sobre Portugal com Seu Antônio. Dizia ele que um dia voltaria a Penafiel. Deixara a mãe, o pai e duas tias logo no início da Grande Guerra. Alves cortou a conversa para cantar. Sentia que Silva tocava o violão pra ele. Ficaram ali por todo o dia. Logo recomeçaram a beber, depois comeram feijoada, se largaram pelos cantos cantos num numa dormida mereci merecida, da, acordaram acor daram à noitinh noitinha, a, tomaram tomaram banh banho, se refizeram com café e bolo de aipim ai pim,, foram para o terreiro terrei ro de Mãe Mariana começar começar tudo de novo. novo.
A AMIZADE DE Silva e Alves se fortalecia a cada momento. A felicidade da parceria era alta, mesmo sendo controversa por essa coisa da música só sair com o nome do intérprete Alves, sem ele ter colocado uma só palavra na letra nem uma frase melódica na música do samba. O que interessa é que Silva tinha arrumado um cantor consagrado para interpretar suas canções. Era uma felicidade escutar seus versos nos teatros, a beleza de ouvir o povo decorar suas letras, a honra de estar participando da invenção da música popular brasileira ali na subida do morro de São Carlos, de estar participando da música de desfile de uma avenida colorida do Brasil. Nem se incomodava com o pouco dinheiro que ganhava por causa do roubo das impressoras das partituras, da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, das gravadoras e de Alves que colocava mesmo assim o seu nome e de seus amigos na História. Da parte financeira, só o cantor cuidava. Os dois tratavam de gravações, edições gráficas, ajustes das canções que ouviam e que faziam. Porém, onde havia festa, pagode, partido-alto de casa de família, roda de samba, macumba, terreiro de Umbanda, Candomblé, bar de canto de esquina dos subúrbios, birosca de quina de subida dos morros, botequim da Zona do Mangue, enfim, qualquer lugar em que houvesse produção musical, Alves estava lá com seu violão, cantando com a negrada, fortalecendo cada vez mais essa turma de vanguarda. É que a turma do Estácio começou a fazer parada em várias partes do subúrbio carioca para ensinar a música e a dança do samba. A turma ia para os terreiros de Candomblé e Umbanda, do Engenho de Dentro, do Salgueiro, de Oswaldo Cruz, Encantado, Boca do Mato, Méier. Tanto é que tinham sido convidados para ir no dia nove de janeiro a uma festa lá no Buraco Quente da Mangueira que o Esporte Club Carioca iria promover por vários ranchos da cidade. A rapaziada gostava do maxixe que tomara conta da cidade, animara as festas de aniversário, casamento; as noitadas de porta de botequim. O povo, contudo, logo aprendeu a nova música do Largo do Estácio nas festas da Penha, no bar do Apolo e no Café do Compadre, nas ruas da zona do baixo meretrício, nos terreiros, na voz de Alves. Os novos ritmistas, compositores, passistas que surgiam nas periferias chamavam a rapaziada do Estácio de professores de samba, mestres dos mestres. Eram duas, três vezes por semana que o pessoal ia para um bairro qualquer desses fazer e ensinar a música que eles inventaram. Brancura adorava quando tinha jogo de pernada para derrubar aqueles negões no chão. Quase não caía nessa brincadeira. Num dia de chuva, lá em Engenho de Dentro, depois de uma sessão de Umbanda, insistiu num jogo de pernada mesmo sob chuva fina. O pessoal não gostava de jogar com o terreiro molhado, mas cedeu aos apelos do negão. O jogo começou com Brancura derrubando todo o mundo, dando pernada para tudo que era lado. Quase ao final do jogo, perdeu um pouco a concentração e caiu numa poça de lama bem perto da cerca. Seu terno branco ficou todo sujo. Levantou devagar, rindo de sua própria desatenção. Os amigos também riram. Limpou o máximo que pôde, chamou um táxi, foi pra casa, trocou de terno, voltou para o terreiro pra jogar pernada sem cair até o dia clarear. No outro dia, Mãe Fernanda acordou cedo, deu café da manhã para o povo que ainda sambava, depois pediu para eles se retirarem. Isso porque, toda manhã de sábado, ela incorporava Pai Joaquim do Cruzeiro das Almas para dar consulta particular. À tarde, era Dona Maria Padilha das Sete Rosas Vermelhas que atendia o povo que podia pagar para ajudar na manutenção do centro. Naquele dia, a rapaziada do samba saía de um dos primeiros centros só de Umbanda da cidade do Rio de Janeiro. O Candomblé deu casa, comida e a orientação dos orixás para a Umbanda, que também ia se firmando entre o povo pela sua própria natureza de pós-religião. Religião que tinha um pouquinho de cada uma que passou pelo Brasil, religião sem nenhum preconceito, que bota acima de tudo a caridade como
palma de elevação espiritual. Dez é a nota para Nicanor do Nascimento, que conseguiu a licença para as casas de Candomblé funcionarem, coisa que também deu lugar ao “samba de sambar do Estácio de Sá”. Numa manhã de sábado, partiram para a Boca do Mato. Tudo fora acertado no meio da semana, quando Tutuca, compositor da Mangueira, foi ao Café do Compadre convidar os amigos para uma feijoada numa casa somente de Umbanda frequentada por gente de toda a sorte. Tia Celestina, filha de baianos nascida e criada na Pedra do Sal, estava fundando seu primeiro terreiro de Umbanda. Dona Leandra, sua mãe, era dona de um dos primeiros terreiros de Candomblé da zona portuária. Gente muito conhecida e respeitada na religião. Era de Iemanjá, Ogum, tinha também Xangô olhando a sua caminhada. O pessoal levantou cedo, cada um calçou seu chinelo Charlotte, vestiu sua calça curta de linho e sua camisa de algodão e foi com seu instrumento no carro muvucado de Alves, de Cebola e de Mário Reis, que só tinha passado ali para dar um papo e sair, mas foi intimado por Alves a chegar naquela festividade de que ele iria gostar. Quando entraram na rua, avistaram Tutuca andando a passos nervosos. Este, ao notar que eram eles, pulou em cima do carro de Alves. — Meu amigo, eu cometi um erro grave! — Que foi, Tutuca? Calma, rapaz! Morreu alguém? A polícia chegou? É para sair fora? Fala, homem! — Eu me esqueci de avisar que o traje era de gala, não vai poder entrar de calça curta, não. Social completíssimo! — Deus seja louvado! Eu pensei que o mundo tinha caído, pensei que fosse grave! — agradeceu Silva. — Desculpe, eu não podia ter me esquecido de avisar. — Não tem importância não, meu garoto. Dá tempo da gente voltar, se arrumar e pegar a parte boa da festa, porque a parte boa quem faz é a gente. Antes é só culto religioso, a festa é no final. Deixa com a gente! — Se tiver motorista, a gente empresta o carro! — disse Alves, que estava de terno, assim como Cebola e Mário Reis, e os três ficaram na festa. Voltaram para o Estácio. Cada um vestiu seu terno branco, sua gravata vermelha, sapatos brancos e sua cartola, e já chegaram atacando com um samba de Bide naquela festa de convidados de toda a cidade, inclusive de representantes do governo interessados no poder das mães de santo. A presença de Alves, Mário Reis e Cebola também era um ganho, uma força para poder celebrar os orixás em paz, sem a pancadaria da polícia. A coisa estava mudando. A cultura se renovando naquele momento de forma mais rápida. Cantaram, tocaram o tempo todo depois da gira de exus que rolara enquanto a rapaziada se trocava para poder adentrar aquele recinto de festa. Os outros sambistas examinavam o tamborim, o surdo, a cuíca, o reco-reco, que a turma do Estácio inventou ou recriou. O ritmo mais quente, as notas mais longas, a cadência acertada pela primeira e a segunda do surdão, o tamborim brincando. O reco-reco também é outro que pode tudo nesta vida. De terreiro em terreiro, o samba foi se espalhando por toda a Zona Norte, nas mãos dos negros livres. A pós-abolição fazendo a sua graça. Parecia que o tempo tinha dado vitória à arte, à liberdade de poder ter fé, à necessidade de celebrar qualquer coisa que se toma como divino e maravilhoso. A voz no rádio daria as caras mais cedo ou mais tarde. Os poetas, músicos, atores, todos os artistas e os políticos sabiam que aquela música tomaria conta do rádio, que já prometia ser um grande veículo de comunicação.
Silva era o único dos novos sambistas do Estácio que circulava no mundo de Alves. Era requisitado pela turma que frequentava a casa de Aníbal Machado: o pintor Scliar, Murilo Mendes, Drummond, Cândido Portinari, Manuel, Heitor, Miranda, Mário, Prudente de Morais Neto. Ali, ele era tratado de igual para igual, artista inovador, um dos maiores compositores da época, todos gostavam de suas músicas, do seu jeito calmo de falar da vida, com tanta supremacia. Tão rara era a sua filosofia de se portar no mundo. De fato, teve certo encabulamento assim que se entrosou com essa turma. Também não sabia direito da sua fama, de quanto era benquisto pelos outros inventores e intelectuais. O mundo o foi surpreendendo com tantas coisas boas, tantas novas amizades, que ficava nervoso com tanta novidade. E não era só através de Alves que lhe surgia o povo, não. O jovem Prudente de Morais Neto fazia parada numa dessas casas modernas que vendiam sabonete, geladeira, mortadela, livros, discos. Fora ali que conhecera a obra de Silva. Fora Seu Oscar, dono da loja, quem botara as canções do sambista para ele ouvir. Prudente de Morais ficou tão admirado que tratou de marcar um encontro com Silva, que sempre passava por lá para saber da vendagem do disco. Silva não pensou duas vezes em lhe pedir trabalho, já que era promotor. Queria ser meirinho, trabalhar no fórum, ter vida mansa de funcionário público para poder compor por compor. Antes mesmo de falar da música, de sua poesia, de deixar Prudente de Morais pronunciar palavra, foi logo suplicando, num daqueles dias em que tinha pouco dinheiro: — Eu sei que o senhor é promotor, jurista de primeira linha, chegado da alta sociedade, eu ganho pouco com a música, queria um emprego de oficial de justiça pra poder compor com mais serenidade. Surpreso com a atitude de Silva, Prudente de Morais gaguejou, porém, no ímpeto, disse que sim, ficou sem mais palavras, com cara de tacho. Esperava falar só de música com o mestre. Não sabia que ele vivia na corda bamba com esse negócio de ser artista e que ia chegar assim, tratando-o como autoridade, para lhe pedir trabalho. *** Era que aos dezenove anos resolvera sair do serviço, para ficar de braços cruzados eternamente com a música. Já era considerado nas rodas de samba, o povo todo conhecia as suas composições, era respeitado, era necessário no batuque de esquina, tinha a certeza de que logo um grande cantor iria comprar suas obras. Largou aquele trabalho de faxina, de ter que chegar às oito da manhã, sair só às cinco, seis da tarde. Ter que estar lá cedo no outro dia de manhã era duro pra ele, que virava a noite escrevendo. Ficava no bar para cantar, tocar madrugada a dentro. Não havia hora de parar. Tinha horror de aturar chefe, pavor de receber ordem. A Central do Brasil, onde trabalhara, era muito grande, havia muita coisa a fazer pra manter a limpeza, era muito magrinho, muito fraquinho para o serviço pesado. Foram várias as vezes em que chegara lá depois de duas, três noites sem dormir, quase não dava conta das tarefas. Seu primeiro emprego foi à noite de boy num escritório de advocacia no Centro da cidade. Tinha onze anos, era muito dedicado, sentia prazer em arrumar aquela papelada, passar os olhos nos autos, nos processos, ler os livros de direito e de bater perna no Centro da cidade levando correspondência, indo ao correio, ao banco e tudo mais. A ideia do doutor Souza Leão de dar um eito para ele entrar na Central foi boa porque lhe renderia mais dinheiro, mas foi ruim porque não tinha o mesmo prazer em trabalhar; perdeu a liberdade de sair mais cedo quando tinha pouco serviço e até de chegar mais tarde se fosse necessário, pois antes nunca deixara o trabalho acumular, tinha prazer em ficar ali. Não era aquela confusão da Central, aquele monte de gente pra lá e pra cá numa
correria sem fim. Não tinha o menor talento para aquilo. Ia só para pôr o pão em casa. Queria o viver da arte, a utopia do verdadeiro malandro, pois todo o mundo estava ouvindo a sua música, gostando dela! Isso significava que ele tinha talento, que sabia tocar o coração do povo todo, que falava as verdades da vida e todo o mundo cantava. Que prazer sentia em poder estar nos ouvidos de tanta gente. Eram tantos homens que pegavam seus versos e falavam para as mulheres numa hora de carinho. Todos os risos, os choros da vida estavam ali em sua escrita. Queria saber de Deus, dos orixás, de onde vinha esse dom. Nunca iria parar de compor, às vezes de repente criava uma frase melódica assim do nada. Quando não estava compondo, dava um jeito de ficar ouvindo música, fosse qual fosse, ou lendo alguma coisa de arte, de história, de tudo. Estava gostando muito de viver aquele momento. Deixou o trabalho, ficou de biscate para se sustentar. Porém, naquele momento, o sucesso era tão bom que passar apertos não era tão ruim. Ninguém percebia que a coisa era dura, mas tinha época em que apertava tanto que Silva se juntava a Brancura para ludibriar os otários no jogo de chapinha. Por isso era que tinha unhas grandes, tratadas na manicure Célia, do número trinta e quatro da Rua São Cláudio, ali atrás do Estácio. Nesse dia mesmo, antes de encontrar com o jurista, foi à casa de Brancura. — Vamos colocar uma banca de chapinha hoje. A mesma tática para enganar os otários. Tá com a unha grande? — Tô de unha grande, perna flexível para rasteira e navalha afiada para corte. Se o otário chiar, a gente bota pra correr. Cadê sua pistola? — Deixei minha pistola em casa. — Eu nunca vi você com essa pistola. — É que eu nunca precisei. — Tomara que nunca precise. — Sei lá! Esses malandros capoeiras tão muito folgados. O jogo de capoeira tá muito mais violento, com esses golpes novos que eles inventaram aí, não é mais como na África, como lá em Angola, não. Ainda por cima, botaram navalha na parada, tão dando esse mortal aí. Espero que nunca mexam comigo nem com ninguém de minha família, senão boto a pistola para funcionar. — Tem que ter cuidado, a idade também tá chegando, as pernas não sobem mais como antigamente. A capoeira tá mudando mesmo. Não tem mais aquele jogo rasteiro, não. Mas eu continuo angola, se um capoeirista novo desse aí levantar as perninhas pra mim, toma uma armada na cara. Mato um cabra desse de porrada. — Eu sei, tô de olho. Foram os dois para a Marquês de Sapucaí, rua um pouco mais afastada do Largo do Estácio, onde o pessoal jogava quando a polícia se plantava ali nas ruas principais da zona, não só a chapinha, mas também o jogo do baralho. Silva gostava que fosse ali, não queria ser mais visto no jogo de chapinha no coração da zona. Poderia chegar de repente algum jornalista, algum artista. Armaram a banquinha numa mesa de bar de esquina de encruzilhada. Nenhum lugar de uma cidade é mais livre que a encruzilhada, é por onde passam os ventos de sol e de chuva, onde tudo é visto, a lua sempre aparece, sempre vai haver uma rota de fuga, ou pelo menos mais fácil. É a miniatura dos quatros cantos da terra. Logo a barraca ficou cheia de apostadores, a maioria parava só para olhar. Silva era um exímio ogador, pois, além das unhas grandes, o jogo dependia de trapaça, de inteligência, atenção e habilidade. Às vezes, o bruto sabia que tinha sido roubado, mas não tinha como provar de tão rápidos que eles eram. Silva só olhava para a mesa, mesmo quando não estava jogando, sempre mirava as mãos do parceiro, não falava, se comunicava através de sinais, via tudo por debaixo dos
olhos. Já Brancura olhava na face de cada um. Tinha o dom de gravar fisionomia, podia ficar anos sem ver alguém que não esquecia nem o nome nem as feições. Nunca perdeu ninguém de vista. Silva só levantava a cabeça e ria quando um dos jogadores perdia para ele e cantava Me faz carinhos. Naquele dia, a polícia estava a fim de pegar dinheiro dos cafetões, dos jogadores da zona, da rapaziada que vendia maconha naquela rua periférica do Largo do Estácio. Chegaram devagarzinho na encruzilhada da Sapucaí com a Avenida Salvador de Sá. Silva foi saindo de mansinho pela Sapucaí depois de mandar a rapaziada se dividir pelas outras três pernas da encruzilhada. A polícia, porém, foi no encalço da turma que seguia Silva. Saíram os dois em disparada, pulando muros de casas até sair da visão dos canas duras. *** Não tinha mais nem astúcia nem idade para ficar correndo da polícia, até porque era pessoa conhecida, compositor de samba gravado, por isso foi logo pedindo emprego a Prudente de Morais na primeira vez em que estiveram juntos. O promotor ficou quieto, buscava alguma coisa para falar depois daquele constrangimento. Silva se tocou da gafe que tinha cometido, pois de manhã estava correndo da polícia e agora estava falando com um dos maiores juristas do país. Deu a volta por cima: — Desculpe o lampejo de trabalho, mas a gente não está todo dia diante de personalidades assim como o senhor. — Nem eu! Eu é que estou diante de uma verdadeira celebridade, o senhor é célebre, a música que o senhor inventou é uma das melhores coisas que eu já escutei. — Eu e meus amigos. — Eu sei, eu sei, eu gosto muito de seus versos, tem um pessoal que gosta muito do senhor… Um dia, a gente vai lá pro senhor conhecer… Mas o senhor tá precisando de emprego mesmo? Tá passando alguma necessidade? — Não, eu fiquei sem dinheiro este mês, mas mês que vem já vô tá recebendo de mais duas músicas que fizeram partitura aí pra gravar. Eu sempre quis ser meirinho, pois parte de minha uventude vivi dentro de um escritório de advocacia, sabe, doutor? — É mesmo? Qualquer dia vou te levar. Marcaram para dali a duas semanas no fórum. Silva, visando ainda à possibilidade de emprego, foi todo arrumado. Vestia terno preto, sapatos pretos, gravata vermelha, relógio de pulso. Ficou por alguns minutos conversando sobre o seu processo de criação com Prudente de Morais, bebericando um vinho. Então chegaram Mário e Schmidt. Mário achava Silva o maior compositor daquela época, só tinha medo de ele perder as raízes de sua obra na hora de negociar com a indústria do disco por causa das exigências que as rádios fariam. Ficou feliz de encontrá-lo ali, tanto é que ficou o tempo todo conversando com ele, indagando sobre as coisas boas desta vida, seus versos, suas melodias. — A indústria fonográfica vai chegar com força. Isso já é certo, e não tem como fugir. Vai ser criada a indústria da cultura através do rádio, e é aí que você vai se estabelecer dentro da profissão. O teatro é muito pequeno para o tamanho de vocês. Ele é só mais uma linguagem para narrar essa arte, surgiram novas formas de divulgação, teatro de rádio, tudo vai passar pelo rádio — afirmou Mário. — Eu tô sabendo, meu querido. Tá vindo aí a industrialização como você bem falou. Por isso eu quis mudar tudo, a minha música é toda aqui de dentro, entendeu? Tem um pouquinho só do português, porque não tem mais jeito. Mas noventa por cento da parada veio da África. Esse maxixe
não vai levar ninguém a lugar nenhum, não. Não dá pra dançar na rua! A gente inventou uma música que é pra cantar, dançar e andar. — Tem que olhar também essa coisa de direito autoral. — Eu tenho falado muito disso com Cebola. Ele me disse que daqui a pouco isso vai se resolver. A política está mudando. Silva era uma inteligência aos olhos de Mário. Sabia de tudo, tinha lido os maiores escritores, sabia da política, do que ocorria no exterior, era ligado nos acontecimentos. — Tem uma coisa que é bom falar também — disse Schmidt—, que são as letras de vocês. Talvez seja isso que chamou mais a minha atenção, a do Manuel e do nosso Mário, não é não? — perguntou olhando para Mário. — Isso mesmo — respondeu Mário. — Tem um naturalismo romântico nunca visto em nossas canções, muita coisa que a gente via na poesia, na própria filosofia, estamos vendo nas composições do seu pessoal. Até mesmo as questões de cunho mais social surgiram com vocês na música aqui do Brasil. — Foi tudo pensado, meu querido. Eu vi que tinha que mudar. Nada foi por acaso, não. Depois seguiram andando para a Cinelândia, entraram no Amarelinho. Mário ligou para Manuel, Lúcio Rangel, Drummond, Aníbal Machado. Sempre solícito, ouvia seus novos amigos falando de poesia, política, teatro, música. Aprimorava seus conhecimentos. Lia os jornais todos os dias, tinha ciência das coisas de seu tempo, sabia falar e ouvir na hora certa: sempre bom aluno, sempre bom professor. Vez por outra, cantava um samba, falava da Umbanda, do jongo e do maxixe com o pessoal. Todos o respeitavam como um grande criador, inventor, e é isso que faz a gente seguir em frente, armar caminhada com toda a dificuldade no pelejo com as artes, encarar a polícia em hora de criação só por querer mesmo reinventar o carnaval, os seus tons, produzir novas cores. Novamente ficou de prosa com Mário num cantinho. — Silva, eu quero ir na Praça Mauá dar um passeio, olhar aquele mundo de perto, participar... — Você gosta de homem também, né, querido? Alves me falou que você é homossexual. — Não, sou veado mesmo! Eu queria que você me levasse lá na Praça Mauá. Não aguento mais tanto tempo sem sexo. — É, mas foi bom você ter falado, ali não é bom ir sozinho, não.Tem que conhecer alguém de lá. — Por isso mesmo que eu nunca fui, sempre fiquei com medo de me apresentar assim sem saber das coisas, dos códigos dali. Mas eu sou louco por um fuzileiro naval, eu queria ser caralhado por um fardado, com dente de ouro, cordão de prata, tatuagem, e tem que ser um negro bem grande. — Fica tranquilo, que eu te arrumo. Vamos primeiro na Lapa falar com um amigo meu, que ele tem os contatos. — Quando? — Hoje mesmo, se você quiser. — Então daqui a pouco a gente vai pra lá. Não foram. Foram sim para a zona do baixo meretrício em três carros com o resto da turma. No Cabaré da Vivi o pessoal do choro já fazia parada. Tocavam, aumentaram a intensidade quando eles chegaram. Manuel tinha paixão por aquele lugar, rodava atrás das polonesas, das italianas, das portuguesas, das francesas. De todos da turma era o que mais amava aquela jurisdição. — Silva, o sentimento tá todo aí espalhado nesse chão. Naquele pedacinho de rua, ali, ó — apontava para um paralelepípedo —, tem lágrimas de todos os sentimentos pra várias canções. Você gosta de ler romances ?
— Hoje eu prefiro contos, que são menores, romance eu demoro muito por causa da correria da música, das gravações, shows e tudo mais. — Vou dá uma volta aí, tá tudo tranquilo. — Fica à vontade, Manuel. Aqui você é rei. Pode ir onde você quiser. Desceu a Lauro de Araújo atrás de Tanja, uma austríaca morena com quem já se acostumara. A turma se animava com a bebida, cada vez mais solicitava Silva para mandar um samba. Sempre alguém trazia um violão, e ele, junto com Alves, encantava as moças, os rapazes, os garçons, os casais, os passantes da zona numa dessas noites de quarenta graus na capital carioca. Daí em diante, Silva não deixou mais de encontrar essa rapaziada. Era a turma do teatro, compositores, cantores, escritores, poetas e artistas plásticos que estavam na parada. Num desses domingos, saiu mais cedo com Mário para a Lapa. Já tinha combinado com Sodré e Cassi Jones, um fuzileiro naval capoeira negão, que já era costumaz da Lapa, da Praça Mauá, do cais do porto. O próprio fuzileiro ficou de arrumar outro do mesmo tipo dele para Silva. Falaram para Mário levar um relógio, um cordão, qualquer presente para os garotos, que eles iam querer repetir sempre. Cassi Jones se tornara um agenciador de fuzileiros navais para veados de tudo que era lugar do mundo que baixasse em sua área. Com o apoio de Sodré, o travesti comprou uma casa na Lapa só para fodedores de homens, que ia de vento em popa. Também comprou casa ali pertinho do cais, na Praça Mauá, para o mesmo fim. Deu a sorte de contar com o apoio de um suboficial, que deixava os fuzileiros transarem no navio quando estivesse ancorado. Ia levar Mário e Silva para um dos cruzadores maiores do mundo, e assim foi. Chegaram ao cais deserto por volta de seis da noite, os dois fuzileiros já esperavam ali na proa, um deles foi logo dando tapa na bundinha de Mário, o outro sapecou logo um beijo no pescoço de Silva. Começaram a meter naquela hora e só pararam depois de meia-noite. Mário era só alegria: — Não para, não para, não para — falava toda vez que ia gozar. O Rio de Janeiro era seu lugar de alegria.Trepava olhando e sentindo o remelexo das águas da baía, o ir e vir do naval dentro de seu corpo, a melodia do mar em seus ouvidos. As mordidinhas no pescoço o faziam gemer, o naval tocando punheta em seu caralho. A vida vivida como deve ser.
SENTIU
SUA BOCETA aguar
de novo de forma abundante, arrepio no cangote, calor subindo pelo pescoço, uma tremedeira quando Brancura se pôs no encalço dela e foi seguindo-a bem na hora em que saiu da Confeitaria Colombo, ali na Gonçalves Dias; dobrou a Rua da Constituição sem olhar para trás, mas escutando aquele andar que a acompanhara a vida toda. Andava passo atrás de passo como cavalo ensinado. Negro da canela fina, caminhar ligeiro. Valdirene foi pela Uruguaiana, virou a Rua da Carioca e seguia até o Largo do Estácio pela Frei Caneca, onde, depois do Campo de Santana, Brancura pulou de beijos e abraços sobre ela para ser correspondido plenamente. Entraram na General Caldwell, foram pela Mem de Sá até a esquina da Rua do Senado, onde o safado tinha casa. Era como se fosse o primeiro dia. Brancura dizia rindo que havia treinado bastante só para ser o melhor mesmo em toda a sua vida. — Eu treino até sozinho, fico pensando em você. Se eu nunca tive foda igual a essa, você não pode ter tido igual também. — É verdade, é verdade. Passaram a noite ali, trepando sem parar. Era coisa de louco que incomodava os vizinhos, excitava as pessoas que escutavam os gemidos da fêmea em sexo profundo. Contudo, lá pelas sete, Valdirene se levantou da cama e, sem sequer se lavar, vestiu a roupa e partiu. Brancura ainda tentou segurá-la, ela saiu de cara feia sem dizer nada. — O que houve? — perguntava, assustado. Nada de resposta. Viu a mulher ganhar a rua sem olhar para trás. Um vazio de perda tomou conta do peito dele. Novamente aquela sensação de ser abandonado pela única mulher que jamais esquecera. Por que não ficava só com ela, se tinha tanta vontade? Tinha medo de ser feliz? Sentiria falta da variação de mulher novamente e a deixaria para trás como sempre? Sim, seria isso mesmo. Valdirene chorava choro de arrependimento. Tinha que segurar as ordens da boceta, botar na cabeça que não ia mais com ele e pronto. Que fraqueza de espírito, que falta de honra com a alma, que perdia para o corpo toda vez. O útero, o clitóris querendo balanço de língua, o frio na barriga, a força do ventre sempre falando mais alto. Voltou para o trabalho, onde tomou um banho caprichado, começou a trabalhar antes mesmo da hora, senão pegaria no sono de noite virada. Foi para casa dormindo no trem. Tomou outro banho bem quente, deitou sem jantar de tão cansada que estava, pegava no sono quando Sodré bateu em sua porta, cheio de amor para dar. Por que o destino apronta isso com a gente, fazia mais de dois anos que não metia com aquele filho da puta, e o safado foi lá na porta do serviço dela aguar sua boceta para agora ter que se esforçar, fingir que é bom esse sexo profissa com o português. Não é que o sexo com ele fosse ruim, na verdade, era o segundo melhor pela sua taradice, pela vontade que ele tinha diante dela, o jogo de pica dele, seu jeito de comer seu cu não era de se jogar fora. Passaram-se dois meses e nada de a menstruação chegar. Tonteira, ânsia de vômito. Era o filho que a Vovó tinha dito que ela teria. Pior que a Vovó tinha lhe mandado ir ao cartola branca, e ela só se lembrou de pedir a Mamãe Oxum para lhe dar filhos. Que burra tinha sido! Iria procurar Marie para ir com ela ao médico. A amiga iria pular de alegria e lhe dar tratamento, proteção e amor. Sabia quanto Valdirene queria ser mãe. — Você tem que morar por aqui. Tenta alugar um quarto no morro. — Que seja longe da zona, por mim, tudo bem. — Aluga no morro, no Catumbi, na Tijuca. Não pode é ficar sozinha nesse fim de mundo que você arrumou. Tem uma casa de cômodo lá na Barão de Iguatemi, eu vou falar com uma menina que tá aqui agora com a gente, depois eu te digo. Por enquanto, fica lá em casa. Agora vem cá: a senhora não me
disse quem é o pai da criança. Quem é ele? Me conta logo! — Pior é que eu não sei. — Comé que é? — Não sei! No mesmo dia eu fodi com Sodré e Brancura. Não sei de quem é não. — Você tá maluca! — Seja de quem for, eu vou ter que criar sozinha mesmo. Então, deixa para lá. — Se nascer mulato, é de Sodré, se nascer preto, é de Brancura. Fez todos os exames que o médico pediu, deu tudo certo. Só tinha um corrimento que deveria ter sido tratado antes de engravidar, mas nada que fosse abalar a saúde da criança. Em uma semana já estava morando na Barão de Iguatemi. Tentou esconder ao máximo a gravidez no trabalho, com medo de ser mandada embora. Passou a economizar ao máximo, pois sabia que estaria sozinha, pois não queria se aproximar nem de Sodré, nem de Brancura, por não poder dizer a nenhum dos dois que o filho era dele. O diabo do Brancura sempre atrapalhando a sua vida. Queria que o filho fosse de Sodré. Teria sustento, conselho de pai e carinho. De Brancura, nem carinho teria. Sodré achou muito estranho quando encontrou a casa de Valdirene vazia. Rodou a vizinhança, só soube que ela chegou lá com uma loira e mais dois cabras num carro de carroceria. Matutou, concluiu que só poderia ser Marie. Mas por quê? Qual era o segredo? Novamente traído? Ela tinha voltado para a zona? Não se pode confiar em certa gente, tem coração que nasce para errar o tempo todo. Ideia que não toma juízo. Instinto de traição. Foi até a Confeitaria Colombo. O pessoal disse, a mando dela, que Valdirene nunca mais tinha pisado ali. Ficava trabalhando lá em cima para não ser encontrada. As amigas falavam que ele estava na porta, ela tratava de se esconder. Várias vezes, dormiu no trabalho para não encontrar ninguém no caminho. Sodré desistiu, nunca mais falaria com ela. Brancura deu algumas incertas nas imediações da confeitaria, na tentativa de foder com ela novamente. Tinha época em que a necessidade de outras mulheres era maior que tudo, porém, em outras ocasiões, nem o ar tinha mais importância que Valdirene. Guardou a esperança de ela piar na reunião do bloco.
NO VA sede do bloco foi alugada na Rua Haddock Lobo, cento e quarenta e dois. Silva FINALMENTE, A NOVA
resolveu tudo com Seu Cabelo Saad, e ali, sim, tudo foi entrando no eixo. O primeiro baile para arrecadar dinheiro foi de total primazia, Tia Amélia, Mãe Mariana, várias outras mães de santo fizeram bolinhos de peixe, de carne-seca, de espinafre e de bertalha. Fritaram pastel, torresmo e vários quitut quitutes. es. Silva Si lva estava viciado vic iado em capilé de d e maracujá, maracujá, fez logo logo dez garrafas para par a vender. Tinh Tinhaa licor de jenipapo, gengibre, erva-doce, tudo era pleno. Uma noite linda para acontecer. Lacerda organizou o baile. O flautista chamou Barbosa mais dois violistas que frequentavam a casa de Tia Almeida, armaram a cozinha com o pessoal ali do Estácio mesmo, o baile foi até as duas da manhã. Depois, o pessoal sentou para distribuir tarefas. Tinham que definir quem ia passar o livro de ouro, quem ia à polícia registrar o bloco, que cada sócio contribuinte iria pagar cinco mil-réis. Sentaram pra conversar, comendo os quitutes que não tinham sido vendidos. Bastos falou que o pessoal do Salgueiro Salgueiro estava sentido sentido por ter ficado de fora enqu enquant antoo a turm turmaa do bloco União Faz a Força tinha sido convidado, que o pessoal de outros bairros estava falando também que eles não iam sair mais daqui, e sim da Mangueira, que o novo samba não ia funcionar, que eles não tinham consegu conseguido a licença. l icença. — Ah, Ah, deixa dei xa falar, deixa falar… falar … Eles El es têm qu quee respeitar… respei tar… Aqui Aqui é qu q ue é! Escola de samba samba é aqui. Porque daqui é que saem os professores da escola normal! Se aqui é a escola normal, então a escola de samba é aqui. Deixa pra lá, pronto! E agora? — disse Silva. — E agora agora o quê? — retrucou retrucou Bastos. Bastos. — E agora, o nome nome do agrupam agrupament entoo carnavalesco de samba samba vai ser Deixa Falar. Fal ar. A gent gentee foi que inventou tudo, tudo, a gen gente te que mudou mudou a música músic a toda, toda , então vam va mos em frente frente e Deixa Falar! Fal ar! — Um Um brinde à Deixa Deixa Falar! Falar ! — gritou gritou Bide. Bide. — E outra outra coisa: vai v ai ser escola e scola de sam s amba. ba. — continu continuou ou Silva. — Escola de sam s amba? ba? — Aqui Aqui no Estácio não tem a escola normal? normal? Então Então nós não somos somos professores pr ofessores de sam sa mba? Se eles formam professores, a gente forma sambista. A gente não inventou a música nova e ensinamos ao pessoal da Mangu Mangueira eira,, Vila Isabel, Oswaldo Cruz Cruz e todo mun undo? do? Então Então aqui no Estácio estão os professores de samba. samba. Todos encheram os copos cop os com as mais variadas vari adas bebidas. bebidas . Brindaram o nom nomee da primeira escola es cola de samba do Brasil. Era uma dessas páginas definitivas da História que se virava naquele momento. O samba acabava de nascer e já tinha uma escola para sempre. Samba e escola para os quais Bide inventou o surdo e recriou o tamborim para mudar tudo no batuque brasileiro. Samba e escola que fizeram um velho ritmista ali da área, João Mina, criar a cuíca, de tão inovador que era o ritmo que mudou noss nossoo dançar. d ançar. — Qual Qual vai ser s er a cor do bloco? bl oco? — pergunt perguntou ou Baiaco. — Só pode ser verm ve rmelho elho e branco, e vou explic explicar ar o porquê. po rquê. Nosso time time aqui da área ár ea é o América América,, que é vermelho e branco, certo? Então a gente já fica formado na cor dele. Outro motivo também é o pessoal do União Faz a Força, que já j á tem um um mont montee de fantasia fantasia vermelha vermelha e branca. Também ambém é uma uma forma de homenagear o falecido Rubem, que tinha organizado e escolhido a cor do antigo bloco — completou Silva. Rubem era daqueles compositores alegres que ficam cantarolando, que fazem rimas engraçadas o tempo todo. Era o idealizador do bloco União Faz a Força, que, na verdade, era a base do Deixa Falar, que agora estava se formando. Era uma devida homenagem. O povo todo aderiu, e dali em diante pegou a tocar samba num domingo de muito sol. Foram todos para o Largo Largo do Estácio.
a foto do desalmado que chutara seu rosto morto no jornal, se benzeu, rezou um TIA AMÉLIA, AO VER a pai-nosso e cantou cantou um um ponto ponto de Ox Oxalá. alá. Não era pela morte dele que ela agradecia, agradeci a, nem por ving vi ngança ança nenhuma, mas sim por ele nunca ter feito nenhuma maldade contra Valdemar, e Valdemar não ter feito nada contra ele. Já tinha perdoado o homem. Não queria mais danação. Os outros policiais que participaram daquela briga no terreiro de Mãe Mariana já não estavam mais naquela jurisdição. Era hora de entrar na zona outra vez e trazer seu filho para a ordem, para o bom viver. O malandro malandro se aproveitara apr oveitara do episódi e pisódioo para cair c air na vida largada l argada na zona, zona, na na cafetinagem cafetinagem,, no jogo de chapinha. Era disso que ele gostava, entrava por qualquer dinheiro em jogo de sinuca. Sempre que via a polícia, largava bala e corria. Porém, chega uma hora em que tudo cansa, ele pensava vez por outra outra em ter ter a vida tranquila tranquila que vinha vinha tendo, tendo, não não tinha tinha era peito para largar tudo tudo de mão assim, de repente, sem ajuda. Era vício, doença, aquele viver sem dormida certa, sem hora para nada, sem ritmo de vida. A sorte era que mais uma vez Tia Amélia entrava na zona para tirar o filho pelo braço, br aço, que fez resistên resi stência, cia, depois dep ois segu se guiu iu no no sapatinho. sapatinho. Ele estava jogan j ogando do chapinha chapinha em frente frente ao Cabaré da Vivi, viu a mãe se aproximar, sentiu três coisas ao mesmo tempo: alegria, vergonha, dor. Porém, Porém, deixava de uma uma vez aquela coisa toda para trás. Sen Se ntia alegria por sair sa ir dali, da li, vergonha vergonha por sua mãe, aos olhos de todos, carregá-lo de modo absoluto, dor por ela ter que passar por aquilo de novo. Sorte que era filha de Ogum, o vencedor de demandas. Era isso mesmo: Ogum é o cavaleiro de Oxalá para aplicar apli car as leis, leis , por isso caminh caminhaa na linh li nhaa entre entre razão e emoção, emoção, pois é da realeza reale za das milícias ilí cias celestes, que guardam os procedimentos dos seres em todas as esferas, lugares e sentidos. Ogum é a lei, a ordem de todos os processos, de todos os procedimentos, sejam ou não em pensamento. Debaixo de seu manto, os seres evoluem, agem sempre no patamar da razão e da luta. Ogum é o lado positivo do equilíbrio. equilíbri o. Com ele, vale o que está es tá escrito. escri to. Filho de Og Ogum um sempre sempre se levanta e busca caminh caminhada ada nova para alcançar êxito através da razão. ra zão.
VALDIRENE FOI MANDADA embora assim que descobriram que ela estava grávida, porém Marie não a deixou no sereno. Em vez disso, dava do bom e do melhor para aquela gestante cuja barriga crescia tanto que chamou a atenção de todos. Valdirene se escondeu como pôde, mas Zilda, caminhando assim do nada, andando por andar até a Praça da Bandeira, acabou dando de cara com Valdirene na Barão de Iguatemi numa manhã de sol. Chegou a dar um grito quando viu a rival, sua eterna rival. — Você Você tá grávida grávida!! — Deus Deus me me livre livr e e guarde! guarde! O diabo, quando quando não não vem, vem, manda manda a secretária. — Quem Quem é o pai? — E pra que você quer quer saber? saber ? — Me diz, diz, por favor, quem quem é o pai? Valdirene, vendo a aflição de Zilda, deu dois passos para trás, entrou em seu quintal e fechou o portão, com medo de ela pular em cima cima de sua barriga. — É do Brancura, Brancura, né, né, sua vaca! Sua vaca! Tu teve filho filho com ele, né? Traidora. Valdirene entrou em casa, Zilda firmou passo para a zona. Ia cortar a cara de Brancura por ele ter feito um filho em Valdirene. Nunca tinha pensado nisso e nunca pensou que agiria assim se isso acontecesse, mas aconteceu. Não era dona de si quando deu de cara com Brancura no Cabaré da Vivi. Meteu a mão na lâmina e cortou o queixo dele. — Eu não sei de nada, sua sua louca. Sai daqui. Olha Olha o que você fez. fez. Eu nu nunca nca vou ser pai de ning ninguém. uém. Quem Qu em não não teve pai não pode ser pai. As amigas tiveram que segurar Zilda, que ficou fora da trama por muito tempo, mas nunca deixou de amar Brancura nesse silêncio todo. Poderia perder seu amor para ela, poderia nunca mais deitar com ele, mas dar um filho a Valdirene era por demais destruidor. Que praga de vida! Deram água com açúcar para acalmá-la, até que ela saiu dali em direção ao centro da cidade: estava mais calma, mais conformada de que nunca iria ser mãe de um filho de Brancura. Ia de cabeça baixa pela Carioca quan quando do deu de cara com Sodré. — Sabia que ela vai ter um filho dele? — Não acredito! Você Você está sonhando! sonhando! Cadê ela? — Tá lá na Barão de Iguat Iguatem emi,i, trinta trinta e sete. — Você Você viu a barriga dela? — Tá desse tamanh tamanhoo assim, ó.
SEU FELINTRA IA EMBORA para Minas somente porque era de sua natureza correr mundo. Não estava mais naquela energia. Era hora de buscar uma luta diferente para seguir o seu destino de jogar energia positiva nas vivências. Sendo assim, marcou ajuntamento com todo o mundo lá na Praça Onze para a sua despedida. Tinha colocado muita coisa no eixo, senão a vida não andaria para a frente. Precisava manter o padrão vibratório sempre o mais alto possível para as ideias novas fluírem numa boa. Se o ambiente estiver pesado, vagabundo cheio de violência na cabeça, neguinho metido a malandro demais, muita falsidade, traição, assassinato, roubalheira. Não há arte nesse mundo que nasça tranquila. Ia ser aquele ritmo pesado, cheio de mágoas, rancores, pesares. Lógico que tinha toda uma violência, muito racismo, mas a música que estava sendo criada era para cantar, dançar, andar juntos, era coisa de grupo, a alegria de ser, de pertencer, na força da cultura que carregava, sim, uma grande dor, mas não poderia nunca ser refém dela. Foram todos os malandros da região e da Zona Norte para a festa do verdadeiro bom malandro desta história. Seu José Felintra chegara ali pregando o amor, a união, o respeito próprio, a ajuda, a autoestima, a palavra certa para cada tempo, a camaradagem e, acima de tudo, a caridade para se viver melhor a vida que a gente precisa ter para aprender a amar muito mais que todo o amor que já se pode ter nesta vida. — A função do ser humano é multiplicar a paz até o infinito. Jogou capoeira na Balança com todos, depois entrou em jogo de perna para derrubar todo o mundo sem machucar, só para fazer graça e troça de bom viver. Os pais de santo, as mães de santo vestidas com as roupas das religiões e todos os filhos e filhas também. Aquela montoeira de comida nas barracas que armaram. — É a última vez que vocês vão me ver encarnado. Eu vou voltar na Umbanda. Mãe Iemanjá falou nos búzios pra mim. Foi ou não foi, Pai Espinguela? — Foi, meu filho, foi sim. Seus amigos, vestidos de terno branco, camisa branca, cartola, sapato branco e vermelho, gravata também vermelha. As amigas da zona, do samba, da Umbanda e do Candomblé, vestidas com belos vestidos vermelhos e brancos. Fumando cigarrilhas por toda a Praça Onze de Junho. Tudo foi ficando melhor quando os compositores da Velha Guarda da casa de Tia Almeida e a turma da nova geração cantaram e tocaram juntos. Era música atrás de música a tarde toda, a madrugada foi chegando. A festa só acabou por volta das seis da manhã, quando alguém procurou Seu José Felintra e não o achou. Ele já não estava mais ali. Saiu sem ninguém ver. Todos foram embora com a certeza da melhor festa que a Praça Onze de Junho já teve. Zilda arrumou um jeito de dizer a Brancura o endereço de Valdirene, e, na coincidência das histórias, dos contos, das fábulas, da vida, ele e Sodré, armados como sempre, caminharam para a casa dela ao mesmo momento. Um ia pela Joaquim Palhares, o outro pela Pereira de Almeida. Caminhavam passo atrás de passo, com o desgraçado do coração batendo forte imaginando ficar cara a cara com Valdirene grávida. Ela estava saindo de casa pela manhã. Sodré já virou na Barão de Iguatemi com passos apressados. Brancura estava quase entrando na rua, Sodré se aproximando, Valdirene saindo, e pimba: os três ali juntos. Brancura, parado, Sodré, parado. Valdirene olhou bem nos olhos de cada um. — Eu não sei de quem é o filho… — Mas… — disseram os dois. — Calados. Só quem pode falar sou eu. Se alguém falar alguma coisa, eu vou embora. Silêncio por alguns segundos.
— Eu, da última vez, transei com vocês dois no mesmo dia. Coisa que eu fiz quase a minha vida toda. Não me arrependo nem um pouco, porque eu gosto dos dois e nunca escondi isso. Portanto, o filho sendo de um ou de outro não me importa. Eu sempre quis ter um filho, não preciso de ajuda de nenhum de vocês dois. Portanto, eu não preciso nem saber quem é o pai. Eu mesma que vou cuidar dele. — Mas… — falaram os dois. — Calados. Mas se algum de vocês se interessar, eu não posso negar a qualidade de pai. Nunca afastaria filho de pai. Isso é fácil: se nascer preto é seu, se nascer branco é seu. Até logo, que eu estou indo fazer as unhas. Saiu em direção ao salão de beleza da Rua do Matoso. Os dois ficaram se olhando por um minuto. — Então tá certo? — perguntou Brancura. — Tá — respondeu Sodré.
O
TEMPO IA AGORA
já em ritmo de verão. O bloco já estava ensaiando todos os dias. Os compositores ficavam juntos, vendo isso ou aquilo da primeira escola de samba, as fantasias que as mães de santo produziam, os ensaios, os bailes para angariar fundos. Até Sodré levara Fátima Maria aos bailes do Deixa Falar. A existência do bloco fez o pessoal todo se juntar, novos amores, novas amizades, novas parcerias. Era o sentido da agremiação, a socialização através da cultura e da fé. A reunião do dia vinte de janeiro de mil novecentos e vinte e nove, dia de Oxóssi, de São Sebastião e de São Jorge em Salvador, na casa do pai de santo Espinguela, lá em Engenho de Dentro, estava marcada desde a metade do ano. Muito respeitado no Candomblé, sambista que frequentava quase todas as rodas de samba da cidade, ligado ao pessoal da Mangueira, da casa de Tia Almeida. Era daqueles pais de santo que viviam na Bahia descobrindo coisas, trazendo evoluções do Candomblé para trabalhar a espiritualidade, elevando o padrão vibratório. — Essa porra desses instrumentos de branco: flauta, trombone, pistão, sax, é muito bom pra baile, pra salsa, foxtrote, maxixe, tango, entendeu? Até o cavaquinho pode ficar de fora. — Não, não… O cavaquinho, não — disse Heitor. — Pra que cavaquinho? Com os nossos instrumentos, a gente pode fazer qualquer coisa que o samba precisar — sustentou Bide. — De acordo! — apoiou Espinguela. — A gente pode contrassolar e solar a melodia para ninguém se perder, pode dar o tom, a deixa para o cantor e para o improviso, fazer a base, o acompanhamento. Não sei por que esse radicalismo todo com… — defendia Lacerda. — Meu garoto, aqui quem manda é o cantor, é ele que segura o ritmo e o tom. Lógico que é um tom mediano, pra todo o mundo chegar, o povo mesmo vai achando a tonalidade. A bateria vai vencer — colocou Silva. — Essa porra de sopro é pra argentino, cubano, português, que vivem cantando essa música de corno que eles cantam aí. Parece que estão chorando — falou Bide. O menino Cartola, Angenor de Oliveira, compositor da Mangueira, não falava nada por causa de sua timidez diante dos maiores compositores daquele tempo. Olhava para Silva com aquele sorriso simples. Uma felicidade imensa de estar perto dele. — Que é isso?! Quer dizer que vocês não gostam de Alfredo? — perguntou Heitor. — Alfredo é um cara mais malandreado, já colocou no instrumento uma coisa que é só dele,
entendeu? Ele toca os instrumentos dos brancos mas com o coração da gente. Sente que a melodia já tem umas notas mais longas. — Mas bateria é bateria. Corta também o cavaquinho? Vamos cortar — insistiu Espinguela. — Corta o violão, que tem menos suingue, deixa o cavaquinho — insistia Heitor. — Tá bom. Mas sopro nunca mais. Parada de sopro coisa nenhuma. Deixa sopro lá para a velharia da casa de Tia Almeida. O verdadeiro interesse ali de Espinguela era a promoção, junto com a vontade de organização, a necessidade de fazer do desfile uma coisa séria. Estava com esse negócio de tirar os instrumentos de sopro da jogada havia tempo. Queria a força dos tambores para embalar a música de desfile. A ideia de promover um concurso de samba daria nota na impressa, justamente porque José Espinguela era ornalista. Sabia como a coisa funcionava. Trouxe outros jornalistas para fazer o julgamento, mas ele mesmo era quem dava as notas em alto e bom som. Arturzinho e Cartola, cada um com seu samba, vieram pelo bloco Estação Primeira. Oswaldo Cruz trouxe um samba de Heitor e outro de Antônio Caetano, e, pelo Estácio, Ando cismado, de Silva. Edgar iria apresentar um samba, mas nem esquentou, porque tinha na cabeça que seu parceiro iria ganhar. Quem eram eles para fazer um samba melhor do que Silva! Lacerda, porém, estava a fim de aporrinhar. — Esses caras têm cada uma. Como é que vão cortar o instrumento de sopro do samba, como é que têm a ousadia de mandar a flauta às favas, abrirem mão do clarinete, do trombone, do sax. Esse pessoal é muito soberbo. Parece que não sabe que uma música assim vai se perder, não se pode guardar nada se não tem como escrever. Quando Silva atacou de Ando cismado, ele meteu a flauta, foi recortando por fora sem medir as consequências, colocava nota até demais. Silva nem ligou, seguiu cantando sua música. Já Espinguela achou um desacato. Ele tinha acabado de falar que não queria sopro de metal no samba, e o desgraçado foi ali afrontar as ideias dele. Desclassificou o samba de Silva, dando a vitória a Heitor, que foi levado para Oswaldo Cruz por Paulo da Portela, para ensinar o samba do Estácio ao pessoal de Madureira. Edgar foi quem não se conformou com a nota. Quase que arrumou confusão na casa de Espinguela. Foi preciso Silva pedir para ele ficar na dele, pois não gostava dessas coisas. Realmente, Lacerda não tinha nada que atacar de flauta. Tentou abafar, mas não foi só Edgar quem berrou com o resultado. Tinha uns dez caboclos do Estácio que resmungaram. O pessoal da Mangueira também achou que merecia ganhar, o clima ficou meio ruim, mas, depois que comeram e beberam, começaram a cantar, foram esquecendo, e o samba comeu solto. Lacerda escondeu a flautinha, pegou um pandeiro para tocar. Espinguela não guardava rancor. Fez aquilo só por atitude. Daria troféu igual para as três agremiações, com suas respectivas cores. — Seu Silva. — Fala, Cartola. — Um dia antes do desfile, vai ter uma saída de santo da primeira filha de Mãe Paulina. Ela é a primeira filha da Umbanda naquele terreiro de Candomblé. — Filha de Leandra, mãe de Tia Amélia? — Isso. Vamos lá. Tia Amélia não avisou nada. Sabe como ela é. A gente pediu para ela avisar, mas já sabia que ela não ia fazer isso. Queria que a gente mesmo fizesse o convite. — Tia Amélia é muito comedida. — Ah, isso é. — A gente vai.
VALDIRENE CHEGOU ao Largo do Estácio pela primeira vez com seus gêmeos bivitelinos. Estava linda com Marquinhos e Marcelo. Vestida de rosa, chapéu, a sombrinha de Marie protegendo as crianças do sol. Era uma correria daquelas para ver as crianças. Marcelo, o filho branco, vestido de vermelho. Marquinhos, o filho preto, vestido de branco. Na outra ponta do Estácio, Sodré esticava o pescoço para observar enquanto caminhava devagar. Do outro lado, Brancura andava a passos lentos também na coincidência das histórias. Sol de verão, vento lestada, trinta e sete graus às onze horas da manhã, os cinco, cara a cara, diante da mudez do povo. — Eu não posso dizer de quem é o filho, porque nasceram dois, e um é preto e o outro é branco. Mas seja de quem for, sou eu que vou criar mesmo. Qualquer pai que for de vocês tá bom. — Você tinha que saber quem era o pai — disse Brancura. — Só você pode saber — completou Sodré. — Eu só sei que amei vocês dois. Que em toda a minha vida eu só gozei com vocês dois. Sei que amo meus filhos e estamos conversados. — Então, eu assumo o pretinho — disse Brancura. — O branquinho é meu — disse Sodré. — Mas quem manda sou eu — rebateu Valdirene. — Por mim tá tudo bem. — Por mim também. O vento lestada virou norte logo passou a noroeste. Trouxe nuvens de água doce do alto da serra carregadas de cheiro da mata de Oxum. Veio a chuva das nascentes das águas doces dessa terra. O futuro ali presente, perdoando tudo, acalmando aqueles espíritos. O amor movia tudo, lutava a seu modo, a força de Oxum na vida daquelas crianças, o Largo do Estácio repleto de ternura. Cada um pegou seu filho no colo, andavam ao léu beijando as crianças. Nunca o sentimento de paz foi tão grande diante desse ódio e amor que diferenciam por demais os nossos atos, fazem o absurdo, criam momentos de luz e escuro, até que chega a hora de se entender, e surge essa terceira esfera que se chama perdão. O novo mundo achando o seu lugar. Na calma de Valdirene se concentrava o desenho dessa passagem da História. O mundo era de transformação em tudo. Teve a intuição de seu tempo em suas atitudes, colheu bons frutos da sociabilidade de mulher de rua, de esquina, de bar, de terreiros, de experimentação. Havia os gringos, as músicas, poesia, as reuniões do bloco, a força de Tia Amélia, a virada de Ivete na vida, o crescimento de Valdemar, os conselhos dos espíritos, o trem da Central, as festas, o trabalho na confeitaria e tudo mais como forma de seu ser, que agora na maturidade tomou real consciência do peso das coisas com um filho de cada amor que teve na vida. Não foi por acaso, pois, se Oxalá não quiser, nada acontece. Ela só soube trilhar o caminho que lhe foi oferecido. Chegou lá aonde se tem que chegar. Os pais, ali embaixo de uma marquise, amavam seus gêmeos. *** Ivete, grávida do segundo filho, teve que pedir muito ao marido para ir àquela sessão de Umbanda no Buraco Quente da Mangueira onde, Pai Espinguela tinha uma casa de Candomblé bastante conhecida. Havia convidado o pessoal do Estácio. — Você está em estado interessante. É perigoso. — Eu quero falar com a Vovó, quero as bênçãos dos orixás. O perigo foi só até três meses. Com certeza, vão me dá um lugar bem fofinho para sentar. Foi todo o mundo do Estácio para o Buraco Quente um dia antes do desfile de estreia do Deixa
Falar. Era a primeira filha de santo da Umbanda ali da Mangueira. Filha de Ogum e Iemanjá. Depois da sessão, o pessoal fez roda de samba, virou a noite, só não emendou o dia porque tinha de desfilar. Foram a pé para o Estácio em passos de samba, alguns haviam levado a fantasia para não perder tempo. Era o primeiro dia do carnaval de mil novecentos e vinte e nove.
TODO MUNDO ALI ERA vermelho e branco quando ia da Mangueira para o Estácio se organizar para desfilar certinho, como mandava a lei, dentro das cordas. A arte era uma alegria que se conquistava a cada dia. Um trabalho feito pelos netos de escravos — que tiveram abortos obrigatórios, que se suicidaram para não sentir mais dor — para colorir tudo que é alma que goza de racismo, intolerância... A raiva sem razão de ser é mais covarde. A vida naquele dia em que Silva ficou de fora olhando tudo: a ala das baianas composta mais por homens do que por mães de santo, de saia de renda, colares de corais, de ouro, miçangas, que cobriam a cabeça com turbantes, colocavam pulseiras, braceletes, calçavam sandálias que logo se partiam no atrito com o asfalto; notava Heitor vestido de baiana, cantando alto, para não atravessar o samba, cercado por um monte de mulher de verdade que segurava um pano branco, pano que ele trazia pendurado nas costas desenhando um coração que nos outros tempos virou estandarte, depois bandeiras de todas as escolas que pegaram aquele ritmo e caminham com ele durante os carnavais; via malandros capoeiras, as meninas do Mangue, Tia Amélia, Valdemar e sua namorada, Ivete, seu filho, Dona Vera, Gilberto Assemany, Sodré, Fátima Maria, Seu Felintra que pintou de repente assim do nada, Cassi Jones era uma baiana tão mulher que ninguém notava que era homem; observava Seu Antônio das Cabras, seu Apolo, o português Alexandrino do Bar do Compadre, Zilda, Mãe Mariana, Larceda, Cabelo Saad, Cristiano, Pai Espinguela, Buci, João, Fumaça, Dentinho, Paulinho Naval, Josefha entre outros malandros da região. Alves chegou, ficou ao lado de Silva vendo Lopes se desenvolver como mestre-sala ao lado da porta-bandeira Ceci, via Brancura comandando os capoeiras que seguravam as cordas impedindo a entrada de desconhecidos, Osvaldo Boi da Papoula falando com todo mundo, dando ordens para proteger as crianças, conferia a bateria, conversava com Bide sobre a ordens dos sambas que iriam cantar; miravam a beleza de Valdirene com seus gêmeos, Guilherme falando de passar em frente às lojas dos comerciantes que assinaram o livro de ouro, seu Armando preocupado com os poucos adereços que alguns componentes levavam com fantasias soltas, livres como devem ser as coisas. Enfim a primeira escola de samba se armou com cinquenta foliões. Hora de dizer no pé pelas ruas do Estácio, só com música da percussão, até a Praça Onze de Junho. Aurélio Gomes, homem de vozeirão, era o solista que cantou depois que Bide deu um dó maior em seu cavaquinho e foi para a bateria tocar seu surdo. A escola de samba deu uma volta no Estácio, seguiu pela Rua Machado Coelho, entrou na Julio do Carmo, passaram pela Lauro de Araújo, pegaram a Visconde de Itaúna, chegaram a Praça Onze de Junho com quatrocentos e poucos sambistas criando outro carnaval de rua. Baiaco ia atrás dando a mesma segurança que Brancura lá na frente, Bide ora tocava tamborim, ora tocava pandeiro, Bastos ajudava na harmonia. Silva e Alves estavam no mundo fonético, dançante, plástico com as suas abstrações marcando a História que é uma árvore velha preparada para receber os novos frutos e as suas sementes. A força do ventre gestava as ideias, a produção das emoções, o parto normal de que tudo que é poesia que por ali se gerava enquanto aquele povo dava mais meiguice à dança, transmudava a forma das palavras serem ditas, entorpecidas de uma música que fora nascida ali no Estácio para que o molejo do nosso corpo ficasse mais quente. Os instrumentos de vanguarda para combater os de tortura como a chibata, a gargalheira, o libambo, o tronco, os anjinhos, a máscara de flandres, o bacalhau, o cacetete, o revólver, a pistola, a metralhadora, os ferros para marcar a fogo... Até o vento fazia a curva em causa própria, assim como as pessoas que sentiam aquela energia vinda da criação artística para superar a vida em que o povo negro da pós-escravidão colocou a
cultura como arma para conquistar dignidade com duas batidas fortes no surdo feito deixa para o solista sair improvisando, enquanto o povo respirava para entrar no primeiro dos sambas de Bide com o ritmo lá em cima. Tiveram a ideia de fazer parte da sociedade em forma de canto, mas mesmo assim foram espancados pela polícia, sofreram desdém, foram presos, tiveram a dor do preconceito, mas saíram sambando em busca de uma avenida para fazer dela uma passarela com o reforço do tamborim, do reco-reco, da cuíca e do surdo. Quem quiser tocar surdo é só seguir o coração, inclusive nas viradas quando se toca assim nas ondas da alegria sem freios. O pandeiro, o agogô, a caixa, o cavaquinho, mesmo com os toques diferentes, também, quando a gente entra em estado de feitiço de tons. — Eu sou o samba... e as suas escolas... Fim
AGRADECIMENTOS Leonardo Rodrigues, Vera Maria de Mattos da Costa, Fernanda Mattos da Costa, Mãe Baomy, Mãe Fernanda, Ana Paula Cardoso Gutierrez, Patrícia Dorneles, Paula Salnot, Teresa Gutierrez, Fernando Ferreira, René Sampaio, Luiz Antonio de Almeida (MIS), Walter da Silva Pereira Júnior (MIS), Mãe Geneci, Cabelo Saad, Arnaldo Antunes, Ferréz, Mãe Maria Joana, Caboclo Ubiratan, Roberto Jeha, Silvana Jeha, Sônia Maria Lins, João Camilo Penna, Marcelo Yuka, Vadim Nikitim, Marçal Aquino, Paulo Arantes, Snir Wein, René Sampaio, Maria Eduarda.
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS Luiz Eduardo Soares, Eduardo Assis Duarte, Nicole Witt, Jordi Roca, Eva Schrecklinger, Bianca Ramoneda, Marcelo Paixão, João Batista Vargens, Maria Elisa Cevasco.
PRINCIPAIS REFER NCIAS DO TEXTO p. 9: “a vitória dos nossos ancestrais” (Marcelo Yuka) / “a possibilidade de se encontrar uma fada no caminho para pedir a ela milhões de estrelas cadentes, uma lua mágica que falasse com a gente” (João Jeha Lins). p. 10: “colorindo assim a sedução”, samba enredo E eles verão Deus (Mazinho Ambrósio e Renatinho). p. 75: Nem é bom falar. Ismael Silva e Bastos, gravado em 1931. p. 82: Se você jurar . Ismael Silva e Bastos, gravado em 1931. p. 92: Deixa essa mulher chorar . Sílvio Fernandes (Brancura), gravado em 1931. p. 122: “a esperança de vingança foi se concretizando à medida que a raiva se revigorava.” (Paulo Futeco). p. 136: Novo amor . Ismael Silva, gravado em 1929. p. 139: “tem que fazer por merecer, axé.” (Serginho Meriti, Claudinho Guimarães). p. 145: Pelo telefone. Donga e Mauro de Almeida, 1916. p. 159: “A zona cresceu com a chegada das louras europeias para junto das indiazinhas sapecas, das cariocas e das baianas de peito pequeno, cintura fina e bunda redonda.” (João Ubaldo Ribeiro em Viva o Povo Brasileiro ). p. 192: “cara de marido” (Chico Buarque de Holanda). p. 211: A malandragem. Alcebíades Barcelos, “Bide”, 1928. p. 53: Me faz carinhos. Francisco Alves, 1928. p. 229: “e o verso vem vindo, vem vindo uma melodia.” João Nogueira. p. 241: “Deu molho bom no cabelo, pôs um pisante invocado.” (Nei Lopes). p. 269: “O século trinta vencerá.” Vladimir Maiakovski. p. 286: “samba de sambar do Estácio de Sá” (Humberto M. Francheschi).
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Paulo Lins, depois do sucesso de Cidade de Deus, volta ao tempo e empresta sua voz para dar a vez à cidade marginal da década de 1920. E faz isso através de um mergulho profundo pelos pontos cardeais do samba, como o Largo do Estácio, a Praça Onze, os terreiros de Candomblé, da Umbanda, ou as festas na tia Ciata e no Buraco Quente da Mangueira. Desde que o samba é samba é uma incrível cartografia do mundo da malandragem (e mesmo da violência) nos morros e bairros onde a cultura carioca foi gestada. Personagens como Brancura, Sodré, Valdiren, Bide e Pixinguinha mesclam-se com Manuel Bandeira, Ismael Silva, Frederico Schmidt, Heitor dos Prazeres, Mario de Andrade, Cartola, Seu Tranca-Rua, Dona Maria Padilha, Seu Zé Pelintra, tecendo uma trama imbricada de amores, falsidades, traições e muito samba. Uma trama na qual Paulo Lins, de forma inesperada, desvenda o DNA do universo contundente que havia revelado em Cidade de Deus, seu primeiro livro. Heloísa Buarque de Hollanda.