Edgar Morin
O Método
6. Ética
TRADUÇÃO DE JUREMIR MACHADO DA SILVA
Título original: La Méthode 6. Éthique © Editions du Seuil, 2004 © Editora Meridional/Sulina, 2005 Tradução Juremir Juremir Machado Machado da Silva Capa Eduardo Miotto Projeto gráfico e editoração Daniel Ferreira Ferreira da Silva Revisão Gabriela Koza Editor Luis Gomes
( CIP ) RESPONSÁVEL: DENISE MARI DE ANDRADE SOUZA CRB CRB 10/1204
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO BIBLIOTECÁRIA
M585m Morin, Morin, Edgar O método método 6: 6: ética / Edgar Edgar Morin Morin ; a tradução Juremir Machado da Silva. 3 ed. — Porto Alegre : Sulina, 2007. 222 p. Título original: Le méthode 6 Éthique ISBN: 978-85-205-0393-5 1. Sociologia do conhecimento. 2. Ética. I. Título CDD: 306.4 CDU: 316. 17
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA MERIDIONAL LTDA. Av. Osvaldo Aranha, 440 cj. 101 Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS Tel: (0xx51) 3311-4082 Fax:(0xx51) 3264-4194 www.editorasulina.com.br e-mail:
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{Outubro/2007}
IMPRESSO NO BRASIL /PRINTED IN BRAZIL
“Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme d’aide à la publication, beneficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères, de l’Ambassade de France au Brésil et de la Maison de France de Rio de Janeiro.” “Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação, contou com a ajuda do Ministério francês das Relações Exteriores, da Embaixada da França no Brasil e da Maison de France no Rio de Janeiro.”
Para minha Edwige
Agradecimentos Depois de uma primeira versão, elaborada em 2001, a redação final deste livro foi feita em Hodenc-l’Évêque, de janeiro a maio de 2004. Contei sempre com a ajuda da minha assistente Catherine Loridant, que se ocupou de todas as tarefas práticas e ainda contribuiu com correções e sugestões ao longo da redação. O manuscrito ou, antes, o “macuscrito” (pois feito em meu Macintosh) recebeu críticas e sugestões de Jean-Louis Le Moigne, sempre presente e fiel na sua amizade. Enfim, assim como tinha feito com a Humanidade da humanidade, Jean Tellez me ajudou, até as últimas provas, com sua leitura e suas releituras, sua competência, sua cultura, sua atenção, tanto nas idéias quanto nos detalhes. Agradeço, por fim, a Jean-Claude Guillebaud, meu leitor na Seuil, pelo seu apoio, a sua assistente Flora pela ajuda polivalente, a Valérie Gautier por ter encontrado a imagem da capa em conformidade com o meu desejo e a Jean-Claude Baillieul pela última revisão do meu “macuscrito”. Essa ajuda toda foi ainda mais necessária na medida em que terminei este trabalho em condições difíceis. Deixo-lhes o meu mais forte reconhecimento pelo que fizeram.
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Sumário Agradecimentos, 7 Introdução, 15 PRIMEIRA PARTE
O pensamento da ética e a ética do pensamento I. O pensamento da ética, 19 A exigência subjetiva, 19
A religação ética, 21 A autonomia moral, 23 A modernidade ética: os grandes deslocamentos, 24 O individualismo ético, 26 A crise dos fundamentos, 27 Nutrir a ética nas suas fontes, 29
II. Retorno às fontes cósmicas, 31 As fontes de religação, 31 A humana religação, 35 No coração do mistério, 37 Ética da religação, 38
III. A incerteza ética, 40 Princípio de incerteza na relação intenção-ação, 40
Ecologia da ação, 41 Limite da previsibilidade, 42 Dupla e antagônica necessidade do risco e da precaução, 43 Inconsciência ou negligência dos efeitos colaterais perversos de uma ação considerada salutar, 43 Incerteza na relação entre o fim e os meios, 44 Permutação de finalidades conforme as circunstâncias, 44 Derivações e inversões, 44 As contradições éticas, 47
Os imperativos éticos contrários, 47
A dialógica ético-política, 51 Incerteza e contradição éticas nas ciências, 51 A ilusão ética, 54
A ilusão interior, 55 Réplicas à incerteza e à contradição, 56 Conclusão: a complexidade ética, 57
IV. A ética do pensamento, 60 A ética do conhecimento e o conhecimento da ética, 60
O vínculo, 60 ”Pensar mal”, 61 “Trabalhar pelo pensar bem”, 62 Do pensamento complexo à ética, 64 A ética esclarecida/esclarecedora, 65 SEGUNDA PARTE
Ética, ciência, política I. Ciência, ética, sociedade, 69 Ciência/técnica/sociedade/política, 69 A mancha cega, 71 Os compromissos éticos, 74 Rumo à reforma, 74 Rumo à transformação da natureza humana?, 75 Conclusões, 78
II. Ética e política, 80 As grandes incertezas, 81 Realismo e ética, 82 Crise, 85 Há esperança?, 86
TERCEIRA PARTE
Auto-ética I. O individualismo ético, 91 II. A cultura psíquica, 93 Quadro da auto-ética, 93
A auto-análise (pensar-se bem), 94 Autocrítica, 95 A cultura psíquica, 96 A recursão ética, 97 Resistência à moralina (purificação ética), 98 Ética da honra, 99 Ética de responsabilidade, 100 Das virtudes, 101 Conclusão: a resistência à barbárie interior, 101
III. Ética de religação, 103 O imperativo da religação, 104 A exclusão da exclusão: o “reconhecimento”, 104 O respeito ao outro: a cortesia, 105 Ética de tolerância, 106 Ética de liberdade, 107 Ética de fidelidade à amizade, 107 Ética do amor, 107
IV. Ética da compreensão, 109 Reconhecer a incompreensão, 109 Reconhecer a compreensão, 112
A compreensão da complexidade humana, 114 A compreensão dos contextos, 115 Compreender a incompreensão, 116
O metaponto de vista, 117 O erro, 117 A indiferença, 118 A incompreensão de cultura a cultura, 118 A possessão pelos deuses, mitos, idéias, 119 O egocentrismo e o autocentrismo, 119
A abstração, 120 A cegueira, 120 O medo de compreender, 120 O trabalho terrível de compreensão. Paradoxos e contradições, 121 Os mandamentos da compreensão, 123
V. Magnanimidade e perdão, 125 Da lei de talião ao perdão, 125 O perdão, 126 A aposta do perdão, 127 O perdão político, 129 Memória e perdão, 130 Impossibilidade do perdão e da punição, 131 A auto-análise, 132
VI. A arte de viver: poesia ou/e sabedoria?, 134 Dialógica razão-paixão, 135 A arte de viver, 136 O saber amar, 139 A incorporação do saber: o saber viver, 139
A sabedoria do espírito, 140 Conclusão, 141
VII. Conclusão auto-ética Re- e Com-, 142 QUARTA PARTE
Sócio-ética I. A ética da comunidade, 147 O circuito democrático, 149 As duas universalidades, 150 Anexo, 151
O problema de uma democracia cognitiva, 151
QUINTA PARTE
Antropoética I. Assumir a condição humana, 159 Rumo ao humanismo planetário, 160
II. Ética planetária, 162 O humanismo planetário, 162
Os nove mandamentos, 163 A ética planetária, 166
Sociedade-mundo?, 166
III. As vias regeneradoras, 168 Reforma/transformação de sociedade, 169 Reforma do espírito/reforma da educação, 170 Reforma de vida, 171 A regeneração moral, 174 O aporte de uma ciência reformada, 175 Complementaridade em circuito das reformas, 176
IV. A esperança ética: a metamorfose, 179
Conclusões éticas Conclusão 1 - Do mal, 185 O mal de vida, 187 A humanidade do mal, 188
Conclusão 2 - Do bem, 194 Pensamento complexo e ética: religação, 194 A complexidade ética, 195 A fragilidade ética, 196
A modéstia ética, 196 Regenerar, 197 Esperança/desesperança, 198 “Muss es sein? Es muss sein!”, 199 Ética de resistência, 200 A finalidade ética, 202 A fé ética, 202
Vocabulário, 203 Notas, 215
Introdução Os volumes anteriores de O Método desenvolvem os princípios de um conhecimento complexo e tentam mostrar que este se tornou vital para todos. Este trabalho implica uma cadeia que nos leva a repensar e a revisitar o bem, o possível e o necessário, ou seja, a própria ética. A ética não pode escapar dos problemas da complexidade. Isso nos obriga a pensar a relação entre conhecimento e ética, ciência e ética, política e ética, economia e ética. A nossa cultura não está preparada para tratar nem enfrentar esses problemas na dimensão, radicalidade e complexidade que os caracterizam. A sua crise, contudo, suscita uma gestação e esta gestação produz os fermentos e os esboços de um pensamento regenerador. Busca-se, com freqüência, distinguir ética e moral. Usemos “ética” para designar um ponto de vista supra ou meta-individual; “moral” para situar-nos no nível da decisão e da ação dos indivíduos. Mas a moral individual depende implícita ou explicitamente de uma ética. Esta se resseca e esvazia sem as morais individuais. Os dois termos são inseparáveis e, às vezes, recobrem-se; em tais casos, usaremos indiferentemente um ou outro. Nesse espírito, conceberemos a ética complexa como um metaponto de vista comportando uma reflexão sobre os fundamentos e os princípios da moral.
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PRIMEIRA PARTE
O pensamento da ética e a ética do pensamento
I. O pensamento da ética É impossível falar de ética. Wittgenstein A ética (...) continua problemática, ou seja, cria problema, o que nos obriga a pensar. Kostas Axelos
A exigência subjetiva
A ética manifesta-se para nós, de maneira imperativa, como exigência moral. O seu imperativo origina-se numa fonte interior ao indivíduo, que o sente no espírito como a injunção de um dever. Mas ele provém também de uma fonte externa: a cultura, as crenças, as normas de uma comunidade. Há, certamente, também uma fonte anterior, originária da organização viva, transmitida geneticamente. Essas três fontes são interligadas como se tivessem um lençol subterrâneo em comum. Como vimos (O Método 5), as três instâncias indivíduosociedade-espécie formam uma tríade inseparável. O indivíduo humano, mesmo na sua autonomia, é 100% biológico e 100% cultural. Apresenta-se como o ponto de um holograma que contém o todo (da espécie, da sociedade) mesmo sendo irredutivelmente singular. Carrega a herança genética e, ao mesmo tempo, o imprinting1 e a norma de uma cultura2. Podemos distinguir, mas não isolar umas das outras as fontes biológica, individual e social. Essas três fontes estão no coração do indivíduo, na sua própria qualidade de sujeito3. Aqui, eu me refiro à concepção de su jeito, elaborada por mim, que vale para todo ser vivo. Ser sujeito é se auto-afirmar situando-se no centro do seu mundo, o que é literalmente expresso pela noção de egocentrismo. Essa auto-afirmação comporta um princípio de exclusão e
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um princípio de inclusão. O princípio de exclusão significa que ninguém pode ocupar o espaço egocêntrico onde nos exprimimos pelo nosso Eu. Dois gêmeos univitelinos podem ter tudo em comum, mas não o mesmo Eu. O princípio de exclusão é a fonte do egoísmo, capaz de exigir o sacrifício de tudo, da honra, da pátria e da família. Mas o sujeito comporta também, de maneira antagônica e complementar, um princípio de inclusão que lhe permite incluir o seu Eu num Nós (casal, família, pátria, partido) e, conseqüentemente, incluir em si esse Nós, incluindo o Nós no centro do seu mundo. O princípio de inclusão manifesta-se quase desde o nascimento pela pulsão de apego à pessoa próxima. Ele pode conduzir ao sacrifício de si pelos seus, pela sua comunidade, pelo ser amado. O princípio da exclusão garante a identidade singular do indivíduo; o princípio de inclusão inscreve o Eu na relação com o outro, na sua linhagem biológica (pais, filhos, família), na sua comunidade sociológica. O princípio de inclusão é instintivo, como no passarinho que sai do ovo e segue a mãe. O outro é uma necessidade vital interna. Assim, tudo acontece como se cada indivíduo-sujeito comportasse um duplo software, um comandando o “para si” e o outro comandando o “para nós” ou “para outro”; um comandando o egoísmo, o outro comandando o altruísmo. O fechamento egocêntrico faz com que o outro nos seja estranho; a abertura altruísta o torna fraterno. O princípio egocêntrico potencialmente inclui a concorrência e o antagonismo em relação ao semelhante, até mesmo ao irmão, o que levou Caim ao assassinato. Nesse sentido, o sujeito carrega em si a morte do outro, mas, num sentido inverso, carrega o amor pelo outro. Alguns indivíduos são mais egoístas, outros mais altruístas e, geralmente, cada um oscila, em graus diferentes, entre o egoísmo e o altruísmo. O programa altruísta pode nos reduzir ao Nós, seja no sentido biológico do termo (filhos – pais) quanto no sentido sociológico do termo (pátria, partido, religião); enfim, pode nos consagrar a um Tu amado. Conforme o momento, segundo as circunstâncias, o indivíduosujeito muda de programa de referência, o egoísmo podendo recalcar o altruísmo e o altruísmo superar o egocentrismo. Podemos nos devotar estritamente a nós mesmos, aos outros, aos nossos. Cada um vive para si e para outro de maneira dialógica, ou
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seja, ao mesmo tempo, complementar e antagônica. Ser sujeito é associar egoísmo e altruísmo. Todo olhar sobre a ética deve reconhecer o aspecto vital do egocentrismo assim como a potencialidade fundamental do desenvolvimento do altruísmo . Todo olhar sobre a ética deve levar em consideração que a sua exigência é vivida subjetivamente . Embora não haja ritual, culto, religião no sentimento do dever experimentado pelo indivíduo leigo, a especificidade subjetiva do dever dá-lhe um aspecto semelhante ao do místico; o dever emana de uma ordem de realidade superior à realidade objetiva e parece derivar de uma injunção sagrada. Impõe-se com a força desse tipo de possessão que nos leva a ser possuídos por um deus ou por uma idéia. Esses dois aspectos, místico e possessivo, parecem emanar de uma fé invisível. Talvez o aspecto místico, sagrado, fideísta, intrínseco ao dever seja uma herança da ascendência religiosa da ética. Talvez o aspecto de quase possessão venha do mais antigo, mais profundo, a tripla fonte bio-antropo-sociológica. A fé inerente ao dever experimentado interiormente, no caso em que a ética não tem mais fundamento exterior, é a fé na própria ética. Uma fé que, se utilizamos a palavra “valores”, é uma fé nos valores aos quais ela nos entrega. Uma fé que, como toda fé moderna, pode comportar a dúvida. Steven Ozment sustenta que o humanismo de LiberdadeIgualdade-Fraternidade tinha uma fonte mística e não racional4 ; acredito que se deve complexificar essa tese considerando que esse humanismo comporta uma simbiose de racionalidade (universalidade) e de fé quase mística. Não se pode eliminar nem o componente racional nem o componente místico do universalismo ético; e só se pode destacar o componente fé que aí está contido. Assim, efetivamente, eu tenho fé na minha liberdade, fé na fraternidade. A religação ética
Todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é um ato individual de religação; religação com um outro, religação com uma comunidade, religação 5 com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie humana.
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Assim, existe uma fonte individual da ética, no princípio de inclusão, que inscreve o indivíduo na comunidade (Nós), impulsionando-o à amizade e ao amor, levando-o ao altruísmo e tendo valor de religação ( Anschlusswert ). Há, ao mesmo tempo, uma fonte social nas normas e regras que impõe aos indivíduos um comportamento solidário. É como se existisse uma harmonia preestabelecida que estimula os indivíduos a aderir a uma ética de solidariedade dentro de uma comunidade e leva a sociedade a impor aos indivíduos uma ética de solidariedade. Também se poderia dizer que a moral é “natural” ao homem, pois corresponde à natureza do indivíduo e à da sociedade. Mas é preciso corrigir essa afirmação, visto que indivíduo e sociedade possuem uma dupla natureza. O indivíduo tem o princípio poderoso do egocentrismo, que o estimula ao egoísmo, enquanto a sociedade comporta rivalidade, competição, lutas entre egoísmos, podendo até mesmo o seu governo ser ocupado por interesses egoístas. As sociedades não conseguem impor as suas normas éticas a todos os indivíduos. Estes não podem ter comportamento ético que sempre superem o egoísmo. Esse problema se torna mais grave nas sociedades muito complexas nas quais a integração dos vínculos tradicionais de solidariedade é inseparável do desenvolvimento do individualismo. As fontes da ética também são naturais no fato de serem anteriores à humanidade; o princípio de inclusão está inscrito na autosócio-organização biológica do indivíduo e se transmite por via genética6 . As sociedades mamíferas são, ao mesmo tempo, comunitárias e rivais; contêm, ao mesmo tempo, o enfrentamento conflitual dos egocentrismos e a solidariedade em relação aos inimigos exteriores. Comunitárias na luta contra a presa ou o predador; rivais, sobretudo entre os machos, nos conflitos pela primazia, pela dominação, pela posse das fêmeas. Os indivíduos dedicam-se à prole, mas também podem, às vezes, comer os próprios filhos. As sociedades humanas desenvolveram e complexificaram esse duplo caráter sociológico: o de Gesellschaft (relações de interesse e de rivalidade) e de Gemeinschaft (comunidade). O sentimento de comunidade é e será fonte de responsabilidade e de solidariedade, sendo estas, por seu turno, fontes de ética. Graças à linguagem, a ética de comunidade torna-se explí-
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cita nas sociedades arcaicas, com suas prescrições, seus tabus e seu mito de ancestral comum. Como veremos na quarta parte deste livro, a ética da comunidade, nas sociedades históricas, foi, ao mesmo tempo, inoculada nas mentes pela força física e introjetada pela submissão psíquica. A primeira (polícia, exército) faz valer o medo à coerção; a segunda entra nos espíritos pela interiorização dos mandamentos conjuntos de uma religião dotada de potência sagrada e de um poder de Estado divinizado. As prescrições desse Superego bicéfalo inculcam nas mentes as normas do bem, do mal, do justo, do injusto, produzindo o imperativo do dever. Tentar resistir ao dever suscita culpa e angústia. Assim, nas sociedades fechadas da Antigüidade, a relação desequilibra-se em detrimento do indivíduo, que não dispõe de autonomia moral. A autonomia moral
O surgimento de uma consciência moral individual relativamente autônoma exigiu o progresso da individualidade, algo que se manifestou claramente na Atenas do século V, antes da nossa era. Posso aqui usar a metáfora de Jaynes sobre o espírito bicameral 7 . Jaynes supõe que nos impérios teocráticos da Antigüidade uma câmara da mente era dominada pelo poder e obedecia cegamente às suas ordens; a outra câmara estava voltada para a vida privada. As duas câmaras não se comunicavam. A consciência individual (consciência intelectual e, ao mesmo tempo, moral) aparece quando uma brecha se opera entre as duas câmaras; daí vem a democracia ateniense, na qual a deusa Atena não governa, mas protege; o governo da cidade depende dos cidadãos, cujo espírito pode então atuar criticamente em relação ao mundo social. A consciência moral individual emerge também historicamente do desenvolvimento complexificador da relação trinitária indivíduo/espécie/sociedade. Contribui para unir indivíduo/sociedade/espécie a despeito das oposições e antagonismos desses três termos, superando-os até certo ponto. Repõe o espírito individual, num nível superior, no circuito trinitário.
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Há complexidade, ou seja, concorrência e antagonismo, na relação indivíduo/sociedade/espécie. Essa complexidade se desenvolve nas sociedades comportando muita diversidade e autonomia individuais. As sociedades históricas experimentam deslocamentos, falhas, fading, entre essas três instâncias da ética. Antagonismos manifestam-se entre as éticas dos grupos englobados e a ética do conjunto social englobante. Manifestam-se também entre o imperativo do amor pelo irmão e o da obediência à cidade (Antígona e Creonte). Manifestam-se entre a ética da comunidade fechada e a ética universalista da comunidade humana. A autonomização do espírito permite ao filósofo, embora a respeitando, superar a ética comunitária; essa superação é potencial nas sabedorias antigas orientais e ocidentais. A universalização da ética para todo ser humano, seja qual for a sua identidade, só começará com as grandes religiões transculturais como budismo, cristianismo, islamismo e, enfim, com o humanismo europeu; mas esse universalismo permanecerá limitado, com lacunas, frágil e será incessantemente acuado pelos fanatismos religiosos e pelos etnocentrismos nacionais. Os progressos da consciência moral individual e do universalismo ético estão ligados. A modernidade ética: os grandes deslocamentos
Os tempos modernos produziram deslocamentos e rupturas éticas na relação trinitária indivíduo/sociedade/espécie. A laicização retira da ética de sociedade a força do imperativo religioso. Certo, a nação moderna impõe o seu próprio culto e os seus imperativos sagrados nas guerras em que a pátria corre perigo; mas em períodos de paz as competições, a concorrência e as tendências egoístas ganham terreno. Certo, e era planetária aberta com os tempos modernos suscita, a partir do humanismo laico, uma ética metacomunitária em favor de todo ser humano, seja qual for a sua identidade étnica, nacional, religiosa, política. A ética de Kant realiza a promoção de uma ética universalizada que se pretende superior às éticas sociocêntricas particulares. Liberdade, equidade, solidariedade, verdade e bondade tornam-se valores que merecem por si mesmos a intervenção, até mesmo a
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O MÉTODO 6
ingerência, na vida social e, por extensão, na vida internacional. Mas esses desenvolvimentos continuam minoritários e marginais. Os tempos modernos estimularam o desenvolvimento de uma política autônoma, de uma economia autônoma, de uma ciência autônoma, de uma arte autônoma, levando a um deslocamento da ética global imposta pela teologia medieval. Certo, a política nem sempre obedecia à ética. Mas, desde Maquiavel, a ética e a política acham-se oficialmente separadas, visto que o príncipe (o governante) deve obedecer à lógica da utilidade e da eficácia, não à moral. A economia comporta, claro, uma ética dos negócios, exigência de respeito aos contratos, mas obedece aos imperativos do lucro, o que leva à instrumentalização e à exploração de outros seres humanos. A ciência moderna alicerçou-se sobre a separação entre juízo de fato e juízo de valor, ou seja, entre, de um lado, o conhecimento e, de outro, a ética. A ética do conhecimento pelo conhecimento à qual a ciência obedece não enxerga as graves conseqüências geradas pelas extraordinárias potências de morte e de manipulação suscitadas pelo progresso científico. O desenvolvimento técnico, inseparável do desenvolvimento científico e econômico, permitiu o hiperdesenvolvimento da racionalidade instrumental, que pode ser posta a serviço dos fins mais imorais. Também as artes se emanciparam progressivamente de toda finalidade edificante e rejeitam qualquer controle ético. Certo, todas essas atividades necessitam de um mínimo de ética profissional, mas elas só excepcionalmente carregam uma perspectiva moral. Em todos os campos, o desenvolvimento das especializações e dos compartimentos burocráticos tendem a encerrar os indivíduos num domínio de competência parcial e fechado, de onde deriva a fragmentação e a diluição da responsabilidade e da solidariedade, o que vimos, por exemplo, na França, nos casos dos bancos de sangue contaminado, de 1982, e das mortes por causa do calor excessivo durante o verão de 2003. Como bem viu A.M. Battista8, “toda conexão profunda entre o indivíduo e a coletividade, com objetivo de aperfeiçoamento moral, individual ou coletivo, está definitivamente rompida”. Tugendhat diz o mesmo de outra maneira: “A consciência moral fracassa diante da realidade fragmentada do capitalismo, da burocracia e dos Estados” 9.
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EDGAR MORIN O individualismo ético
Ao mesmo tempo, o desenvolvimento da autonomia individual acarretou a autonomia e a privatização da ética. A ética tornou-se, portanto, laica e individualizada; com o enfraquecimento da responsabilidade e da solidariedade, impõese uma distância entre a ética individual e a ética da cidade. A vulgata de moralidade dos “bons costumes” quase que se dissipou, o que pode ser atestado pela evolução do direito10. Os bons costumes constrangiam o indivíduo a obedecer às normas conformistas (condenação moral do adultério, do comportamento dissoluto, da homossexualidade, etc.) e a sua decadência está ligada ao reconhecimento de comportamentos individuais antes condenados como desviantes ou perversos. Como veremos, o progresso do individualismo produziu a emancipação dos indivíduos em relação às limitações biológicas da reprodução (coito interrompido, aborto, barriga de aluguel); no fim do século XX, na França, uma ética do direito da mulher superou, por um lado, o direito da sociedade de proteger a sua demografia e, por outro lado, a ética do respeito incondicional à vida. O desenvolvimento do individualismo apresenta dois aspectos antagônicos: o enfraquecimento da tutela comunitária conduz, ao mesmo tempo, ao universalismo ético e ao desenvolvimento do egocentrismo. O individualismo, fonte de responsabilidade pessoal pela sua conduta de vida, é também fonte de fortalecimento do egocentrismo. Este se desenvolve em todos os campos e tende a inibir as potencialidades altruístas e solidárias, o que contribui para a desintegração das comunidades tradicionais. Essa situação favorece não apenas o primado do prazer ou do interesse em relação ao dever, mas também o crescimento de uma necessidade individual de amor em que a busca da felicidade pessoal a qualquer preço transgride a ética familiar ou conjugal11. Enfim, há erosão do sentido sagrado da palavra dada, do sentido sagrado da hospitalidade, ou seja, de uma das raízes mais antigas da ética. A profanação do que foi sagrado acarreta a sua profanação.
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O MÉTODO 6 A crise dos fundamentos
Os fundamentos da ética estão em crise no mundo ocidental. Deus está ausente. A Lei foi dessacralizada. O Superego social já não se impõe incondicionalmente e, em alguns casos, também está ausente. O sentido da responsabilidade encolheu; o sentido da solidariedade, enfraqueceu-se. A crise dos fundamentos da ética situa-se numa crise geral dos fundamentos da certeza: crise dos fundamentos do conhecimento filosófico, crise dos fundamentos do conhecimento científico12. A razão não pode ser considerada como o fundamento do imperativo categórico. Segundo Tugendhat, “a tentativa de Kant com vistas a definir o imperativo categórico como um imperativo da razão e a dar-lhe um fundamento absoluto racional deve ser considerada como um fracasso”13. A referência aos “valores” revela e mascara, ao mesmo tempo, a crise dos fundamentos. Como pensa Claude Lefort, ela revela que a palavra “valor é o indicativo de uma impossibilidade de designar uma garantia válida para todos: a natureza, a razão, Deus, a História. É o indicativo de uma situação na qual todas as figuras de transcendência apagaram-se”14. Estamos, doravante, fadados ao que Pierre Legendre chama de “ self-service normativo”, em que podemos escolher os nossos valores. Os “valores” ocupam o lugar deixado vazio pelos fundamentos para fornecer uma referência transcendente intrínseca que tornaria a ética auto-suficiente. Os valores dão à ética a fé na ética sem justificação exterior ou superior a ela mesma. Na realidade, os valores tentam fundar uma ética sem fundamento. A crise dos fundamentos éticos é produzida por e produtora de: – aumento da deterioração do tecido social em inúmeros campos; – enfraquecimento, no espírito de cada um, do imperativo comunitário e da Lei coletiva; – fragmentação é, às vezes, dissolução da responsabilidade na compartimentação e na burocratização das organizações e empresas; – um aspecto cada vez mais exterior e anônimo da realidade social em relação ao indivíduo;
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EDGAR MORIN
– hiperdesenvolvimento do princípio egocêntrico em detrimento do princípio altruísta; – desarticulação do vínculo entre indivíduo, espécie e sociedade; – des-moralização que “culmina no anonimato da sociedade de massa, na avalancha midiática e na supervalorização do dinheiro” 15 ; As fontes da ética quase não irrigam mais; a fonte individual é asfixiada pelo egocentrismo; a fonte comunitária é desidratada pela degradação da solidariedade; a fonte social é alterada pela compartimentação, burocratização, atomização da realidade social e, além disso, é atingida por diversos tipos de corrupção; a fonte bioantropológica é enfraquecida pelo primado do indivíduo sobre a espécie. O desenvolvimento do individualismo conduz ao niilismo, que produz sofrimento. A nostalgia da comunidade desaparecida, a perda dos fundamentos, o desaparecimento do sentido da vida e a angústia que disso resultam podem acarretar a volta aos antigos fundamentos comunitários nacionais, étnicos e/ou religiosos que trazem segurança psíquica e religação ética. O comunismo foi, para muitos intelectuais naufragando na angústia niilista, uma religião da salvação (terrestre), comportando uma integração da ética na finalidade suprema: “Tudo o que serve à revolução é moral” 16. O século XX, século do individualismo, viu muitas adesões dos indivíduos mais críticos à fé nacional e à fé totalitária, que integram totalmente a pessoa e fornecem-lhe uma certeza ética. Num outro sentido, uma parte da adolescência contemporânea, na deterioração do tecido social, na perda da consciência de uma solidariedade global, no desaparecimento de um Superego cívico, recria uma microcomunidade de tipo arcaico num bando ou numa gangue comportando uma ética envolvente (a defesa do território, a honra, a lei de talião). Assim, uma ética comunitária reconstitui-se na ausência de uma ética cívica. O abismo niilista resultante da individualização extrema e a decomposição do tecido social surgida às margens da civilização determinam, portanto, pela reintegração no seio de uma comunidade, restaurações éticas de caráter regressivo. As gangues juvenis e os retornos à religião revelam, cada um à sua maneira, a crise ética geral em nossa civilização. Essa crise tornou-se visível, há alguns anos, com o surgimento de uma
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necessidade de ética. A desintegração social, o crescimento de todos os tipos de corrupção, a onipresença dos atentados à civilidade e o desencadeamento da violência suscitam a demanda ingênua de uma “nova ética” para ocupar o vazio que já não pode ser preenchido pelo costume, pela cultura, pela cidade. Não menos ingênuo é o desejo de adaptar a ética ao século em lugar de pensar uma dupla adaptação em círculo: adaptar o século à ética, adaptar a ética ao século. A ética, isolada, não tem mais um fundamento anterior ou exterior que a justifique, embora possa continuar presente no indivíduo como aspiração ao bem ou repugnância ao mal. Só tem a si mesma como fundamento, ou seja, seu rigor, seu sentido do dever. É uma emergência17 que não sabe do que emerge. Certo, a ética, como toda emergência, depende das condições sociais e históricas que a fazem emergir. Mas é no indivíduo que se situa a decisão ética; cabe a ele escolher os seus valores 18 e as suas finalidades. Nutrir a ética nas suas fontes
A ética tem fontes, raízes, está presente como sentimento do dever, obrigação moral; permanece virtual dentro do princípio de inclusão, fonte subjetiva individual da ética. Doravante a ética só tem a si mesma como fundamento, mas depende da vitalidade do circuito indivíduo/espécie/sociedade, cuja vitalidade depende da vitalidade da ética. Vale repetir: o ato moral é um ato de religação: com o outro, com uma comunidade, com uma sociedade e, no limite, religação com a espécie humana . A crise ética da nossa época é, ao mesmo tempo, crise da religação indivíduo/sociedade/espécie. Importa refundar a ética; regenerar as suas fontes de responsabilidade-solidariedade significa, ao mesmo tempo, regenerar o circuito de religação indivíduo-espécie-sociedade na e pela regeneração de cada uma dessas instâncias. Essa regeneração pode partir do despertar interior da consciência moral19 , do surgimento de uma fé ou de uma esperança, de uma crise, de um sofrimento, de um amor e, hoje, do chamado vindo do vazio ético, da necessidade que vem da deterioração ética.
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