CANDIDO,
Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880.
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: FAPESP, 2009, 800 pág. [12ª edição] Com intuito meramente ilustrativo, poderíamos dizer que há em literatura três atitudes estéticas possíveis. Ou a palavra é considerada algo maior que a natureza, capaz de sobrepor-lhe as suas formas próprias; ou é considerada menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas fragmentárias; ou, finalmente, é considerada equivalente à natureza, capaz de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo das formas naturais. O primeiro caso é o do Barroco, o segundo, do Romantismo; o terceiro, do Classicismo. Neste, há portanto um esforço de equilíbrio, fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela inteligência se regem por leis essencialmente análogas às do mundo natural1.
O século XVIII marca o triunfo do homem natural , que se torna o herói literário por excelência: Em suma, o homem natural, como aparece nos romances com um toque acentuado de ingenuidade, e cujo contrapeso virá depois com As ligações perigosas, de Laclos, e a obra de Sade, o homem natural, em prosa e verso, é sempre aquele herói cuja bondade inata é posta à prova pelas vicissitudes da vida social, e sabe, não obstante, triunfar delas pela fidelidade com que segue a voz das disposições profundas2. Anteriormente, a urbanidade, a civilização pareciam a própria marca da humanidade, na medida em que domavam e enformavam uma natureza humana, uma alma, de si tendentes ao mal; agora, o humano parecia mais chegado ao que nesta alma havia de profundo e característico, e a civilização só parecia justa e conveniente na medida em que a ordenava, prolongando-a. Foi como se, depois de violento esforço de urbanização do homem, – manifestado pela arquitetura e o urbanismo barroco, pela monarquia centralizada e a difusão da etiqueta – surgisse surgisse uma espécie de movimento compensatório, que volatiliza no Rococó e na paixão dos jardins, na assimilação do social ao natural, na naturalidade das maneiras e dos sentimentos, a concepção rígida e majestática da existência3. Queria-se que o homem natural fosse simultaneamente espontâneo e polido, simples e requintado, rústico e erudito, razoável e sentimental: um Emílio, em suma, com energia bastante para trazer no espírito, sem dilacerar-se, o embate de culturas e contradições históricas que faziam do seu tempo, como dissemos, uma espécie de ponte entre duas épocas e duas diferentes visões da vida espiritual e social. E a literatura se desenvolve, em grande parte, como trabalho de construção deste ideal, em que se sublimam as aspirações e a própria realidade existencial do século4.
1
CANDIDO, 2009, p. 57. Idem, p. 61. 3 CANDIDO, 2009, p. 61. 4 Idem, p. 61. 2
Os gêneros pastorais representavam uma das principais manifestações de naturalidade, “pelo encontro da tradição clássica e a procura de relações humanas simples, num quadro natural interpretado segundo normas sociais” 5.
É, no sentido estrito, o Arcadismo, que deu nome ao período e deve ser considerado, mais que um conjunto de gêneros literários, verdadeira filosofia de vida, reinterpretando o mito da idade de ouro, que começava então a passar de retrospectivo a prospectivo, uma vez que a noção de homem natural dava lugar à idéia de progresso, passando-se da nostalgia à utopia6. A poesia pastoral, como tema, talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade à paisagem natural, transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os sentimentos de frustração. Os desajustamentos da convivência social se explicam pela perda da vida anterior, e o campo surge como cenário de uma perdida euforia. A sua evocação equilibra idealmente a angústia de viver, associada à vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de ouro. Em pleno prestígio da existência citadina os homens sonham com ele à maneira de uma felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana7. No caso do Brasil a poesia pastoril tem significado próprio e importante, visto como a valorização da rusticidade serviu admiravelmente à situação do intelectual de cultura européia num país semibárbaro, permitindo-lhe justificar de certo modo o seu papel. Poderíamos talvez dizer que, sob este ponto de vista, e ao contrário do que se vem dizendo desde o Romantismo, ela foi aqui mais natural e justificada, pois dava expressão a um diálogo por vezes angustiosamente travado entre civilização e primitivismo. A adoção de uma personalidade poética convencionalmente rústica, mas proposta na tradição clássica, permitia exprimir a situação de contraste cultural, valorizando ao mesmo tempo a componente local – que aspirava à expressão literária – e os cânones da Europa, matriz e forma da civilização a que o intelectual brasileiro pertencia, e a cujo patrimônio desejava incorporar a vida espiritual do país. No limite, surgiu o indianismo, sobretudo com Basílio da Gama e Durão, verdadeira reinterpretação, segundo os dados especificamente locais, do diálogo campo-cidade, contido nos gêneros bucólicos. Como a vara da lenda, o cajado dos pastores virgilianos, fincado no solo brasileiro, floresceu em cocares e plumas, misturando velha seiva 8 mediterrânea à “claridade do dia americano” .
A Independência (1822) favoreceu certo nacionalismo literário. Nesse momento, a literatura foi considerada parcela dum esforço construtivo mais amplo, denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nação. Manteve-se durante todo o Romantismo este senso de dever patriótico, que levava os escritores não apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras como contribuição ao progresso. Construir uma “literatura nacional” é afã,
quase divisa, proclamada nos documentos do tempo até se tornar enfadonha9. 5
CANDIDO, 2009, p. 62. Idem, p. 62. 7 Idem, p. 62. 8 Idem, p. 64. 9 CANDIDO, 2009, p. 328. 6
A Independência importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idéia romântica, para a qual contribuiu pelo menos com três elementos que se podem considerar como redefinição de posições análogas do Arcadismo: (a) desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de primeiro plano, como o orgulho patriótico, extensão do antigo nativismo; (b) desejo de criar uma literatura independente, diversa, não apenas uma literatura, de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestação do passado colonial, o nacionalismo literário e a busca de modelos novos, nem clássicos nem portugueses, davam um sentimento de libertação relativamente à mãe-pátria; finalmente (c) a noção já referida de atividade intelectual não mais apenas como prova de valor do brasileiro e esclarecimento mental do país, mas tarefa patriótica na construção nacional10.
Ao grupo de jovens liderado por Domingos José Gonçalves de Magalhães, do qual faziam parte Manuel de Araújo Porto-Alegre, Francisco de Sales Torres Homem, João Manuel Pereira da Silva e Cândido de Azeredo Coutinho, todos eles residindo em Paris entre os anos de 1833 e 1836, mais ou menos, coube o impulso inicial do nosso Romantismo, comprometido então em fazer no plano da arte o que a Independência fizera na vida política e social do Brasil 11. Em 1836, em Paris, era publicada a Niterói, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes.
Do ponto de vista da história literária e da literatura comparada, o Romantismo desperta interesse pelo encontro feliz e harmoniosa entre sugestões externas e temas locais. Do Romantismo em diante, nossos escritores e artistas se empenharam para descobrir a “fórmula ideal de fundação” de uma expressão nacional autêntica12.
A renovação literária e
artística no Brasil apresentou dois traços básicos: o Nacionalismo e o Romantismo. Certo nacionalismo literário, definido mais claramente a partir da Independência, precede o movimento romântico. O Romantismo brasileiro foi por isso tributário do Nacionalismo. Embora nem todas as suas manifestações concretas se enquadrassem nele, ele foi o espírito diretor que animava a atividade geral da literatura. Nem é de espantar que assim fosse, pois sem falar da busca das tradições nacionais e o culto da história, o que se chamou em toda a Europa “despertar das nacionalidades”, em seguida ao terremoto napoleônico, encontrou expressão
no Romantismo. Sobretudo nos países novos e nos que adquiriram ou tentaram adquirir independência, o Nacionalismo foi manifestação de vida, exaltação afetiva, tomada de consciência, afirmação do próprio contra o imposto. Daí a soberania do tema local e sua decisiva importância em tais países, entre os quais nos enquadramos. Descrever costumes, paisagens, 10
Idem, p. 329. Idem, p. 329. 12 CANDIDO, 2009, p. 332. 11
fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era libertar-se do jugo da literatura clássica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata – afirmando em contraposição o concreto espontâneo, característico, particular 13.
Citar o Macário, de Álvares de Azevedo. Dentre os temas nacionais, onde esta imaginação [romântica] se movia por dever e prazer, ocorriam alguns prediletos. A celebração da natureza, por exemplo, seja como realidade presente, seja evocada pela saudade, em peças que ficaram entre as mais queridas, como CANÇÃO DO EXÍLIO e O GIGANTE DE PEDRA, de Gonçalves Dias, SUB TEGMINE FAGI, de Castro Alves. Ou os poemas históricos, como o ciclo do 2 de Julho, o da Confederação do Equador, que inspiraram Castro Alves e Álvares de Azevedo; os poemas da América, tomada no conjunto, objeto de várias poesias de Varela; a guerra do Paraguai, que mobilizou todas as musas do tempo. O interesse pelos costumes, regiões, passado brasileiro, se manifestou largamente no romance...14.
O Indianismo de Gonçalves Dias e José de Alencar foi a forma considerada mais legítima pelos românticos – que encaravam o índio como elemento básico da sensibilidade patriótica, discorrendo sobre a sua capacidade poética e o interesse que apresentava como tema. Assim, “o Indianismo serviu não apenas como passado mítico e lendário, (à maneira da
tradição folclórica dos germanos, celtas ou escandinavos), mas como passado histórico, à maneira da Idade Média”15.
Mito e história servindo de ingredientes básicos dos poemas de
Gonçalves Dias e dos romances de José de Alencar. Romantismo como momento de negação: O Romantismo [...] concebe de maneira nova o papel do artista e o sentido da obra de arte, pretendendo liquidar a convenção universalista dos herdeiros de Grécia e Roma em benefício de um sentimento novo, embebido de inspirações locais, procurando o único em lugar do perene. E como a literatura dificilmente se acomoda sem um paraíso perdido para os seus ideais, assim como os clássicos viveram do mito da Idade de Ouro e da Antigüidade perfeita, os românticos foram buscar nos países estranhos, nas regiões esquecidas e na Idade Média pretextos para desferir o vôo da imaginação16.
A sensibilidade romântica pode ser definida em termos de dois ingredientes básicos: individualismo e senso histórico. O individualismo romântico importa numa alteração do conceito de arte – esta deixa de ser vista como extensão da natureza, torna-se algo menor do
13
Idem, p. 332-333. Idem, p. 334. 15 CANDIDO, 2009, p. 338. 16 Idem, p. 341. 14
que ela, “algo insuficiente par a
exprimir a nova escala em que o eu se coloca”17. A arte se
apresenta sob o signo da limitação da expressão, da pobreza de recursos em face de “toda a inexprimível grandeza que o artista pressente no mundo e nele próprio” 18.
Ao passo que a estética neoclássica concebia o artista como mero intermediário entre a Natureza e a Arte, a estética romântica se volta sobretudo para a Natureza e o Artista, ficando a arte, “sempre aquém da ordem de grandeza que lhe competia exprimir e, por isso
mesmo, relegada a plano secundário”19. O próprio conceito de natureza passa por uma alteração: Em vez de ser, como para os neoclássicos, um princípio, uma expressão do encadeamento das coisas, apreendido pela razão humana, que era um de seus aspectos, torna-se cada vez mais, para os românticos, o mundo, o cosmos, a natureza física cheia de graça e imprecisão, frente à qual se antepõe um homem desligado, cujo destino vai de encontro ao seu mistério. O individualismo, destacando o homem da sociedade ao forçá-lo sobre o próprio destino, rompe de certo modo a idéia de integração, de entrosamento – quer dele próprio com a sociedade em que vive, quer desta com a ordem natural entrevista pelo século XVIII20.
A literatura posterior ao Romantismo levaria ao extremo as tendências inauguradas neste: De Cláudio Manuel a Gonçalves Dias, e sobretudo a Álvares de Azevedo e Casimiro, a poesia vai-se despojando de muito do que é comemoração, doutrina, debate, diálogo, para concentrar-se em torno da pesquisa lírica. Lírica no sentido mais restrito de manifestação puramente pessoal, de estado d’alma, sob a égide do sentimento, mais que da inteligência ou do engenho.
Esta longa aventura da criação, que virá terminar no balbucio quase impalpável de alguns modernos – os Poemas da negra, de Mário de Andrade, A estrela da manhã, de Manuel Bandeira – corresponde ao próprio trabalho interno da evolução poética, especializando-se cada vez mais e largando um rico lastro novelístico, retórico e didático, que foi enriquecer outros gêneros, sobretudo o gênero novo e triunfante do romance, que na literatura brasileira é produto do Romantismo e desta divisão do trabalho literário21. Do Romantismo sairia praticamente “tudo o que literariamente temos realizado até agora”22.
O poeta romântico não apenas retoma em grande estilo as explicações transcendentes do mecanismo da criação, como lhes acrescenta a idéia de que a sua atividade corresponde a uma missão de beleza, ou de justiça, 17
Idem, p. 341. Ibidem. 19 Idem, p. 342. 20 Idem, p. 342. 21 CANDIDO, 2009, p. 343. 22 Ibidem. 18
graças à qual participa duma certa categoria de divindade. Missão puramente espiritual, para uns, missão social, para outros – para todos, a nítida representação de um destino superior, regido por uma vocação superior. É o bardo, o profeta, o guia23. O verbo literário, simples medianeiro entre a natureza e o intérprete, vai perder a categoria quase sagrada que lhe conferia a tradição clássica. Uma nova era de experimentalismo modificará a fisionomia estabelecida do discurso, quebrando a separação entre os gêneros, derrubando a hierarquia das palavras e – mais importante que tudo – procurando forjar a expressão para cada caso, cada nova necessidade24.
Em lugar das imagens consagradas e veneráveis, das categorias já estabelecidas da poética neoclássica – o sol figurando como o “carro de Faetonte”, ou o “louro Febo” – , os românticos, porém, “desejam imprimir à sua visão um selo próprio e de certo modo único,
desde que a literatura consiste, para eles, na manifestação de um ponto de vista, um ângulo pessoal”25.
A poética romântica está profundamente impregnada de senso histórico, de
consciência do irreversível – “daí a noção de que a palavra é um molde renovável a cada experiência, permanecendo sempre aquém da sua plenitude fugaz e irrepr oduzível”26.
Não há dúvida que uma das causas de semelhante estado de espírito se encontra na vitória da cultura urbana contemporânea, sobre o passado em grande parte rural do Ocidente. A mudança mais ou menos brusca no ritmo da vida econômica e social, com o advento da mecanização, tornou obsoletos um sem-número de valores centenários, alterando de repente a posição do homem em face da natureza27. A natureza superficial e polida dos neoclássicos parece percorrida de repente por um terremoto: o que se preza agora são os seus aspectos agrestes e inacessíveis – montanha, cascata, abismo, floresta, que irrompem de sob colinas, prados e jardins... É que o poeta romântico procura [...] refazer a expressão a cada experiência. Para isto, rejeita o império da tradição e reconhece autoridade apenas na própria vocação, no gênio. A idéia de que a criação é um processo mágico, pelo qual ganham forma as misteriosas sugestões da natureza e da alma, a idéia, em suma, do poeta mediúnico, é freqüente no Romantismo28. Enquanto a natureza refinada do Neoclassicismo espelha na sua clara ordenação a própria verdade (real = natural), acolhendo e abrigando o espírito, para o romântico ela é sobretudo uma fonte de mistério, uma realidade inacessível, contra a qual vem bater inutilmente a limitação do homem. Ele a procura, então, nos aspectos mais desordenados, que, negando a ordem aparente, permitem uma visão profunda. Procura mostrá-la como 23
Idem, p. 344. Idem, p. 346. 25 Ibidem. 26 Idem, p. 347. 27 CANDIDO, 2009, p. 347. 28 Idem, p. 348-349. 24
algo convulso, quer no mundo físico, quer no psíquico: tempestade, furacão, raio, treva, crime, desnaturalidade, desarmonia, contraste29. De qualquer modo, a natureza é algo supremo que o poeta procura exprimir e não consegue: a palavra, o molde estreito de que ela transborda, criando uma consciência de desajuste. Boa parte do “mal do século” provém desta
condição estética: desconfiança da palavra em face do objeto que lhe toca exprimir. Daí o desejo de fuga, tão encontradiço na literatura romântica sob a forma de invocação da morte, ou “lembrança de morrer”; há nela uma
corrente pessimista, para a qual a própria vida parece o mal30.
Esta atitude nova, denotando individualismo acentuado, desejo de desacordo com as normas e a rotina, é em parte devida à nova posição social do escritor, entregue cada vez mais à carreira literária, isto é, a si próprio e ao vasto público, em lugar do escritor pensionado, protegido, quase confundido na criadagem dos mecenas do período anterior. Deve ter havido na consciência literária um arrepio de desamparo, uma brusca falta de segurança, com a passagem do mecenato ao profissionalismo. A ruptura dos quadros sociais que sustinham o escritor – modificando igualmente o tipo de público a que se dirigia – alterou a sua posição, deixando-o muito mais entregue a si mesmo e inclinado às aventuras do individualismo e do inconformismo31. Há pois, no romance, amplitude e ambição equivalentes às da epopéia; só que em vez de arrancar os homens da contingência para levá-los ao plano do milagre, procura encontrar o miraculoso nos refolhos do cotidiano. Mesmo o romance fantástico e tenebroso não escapa às limitações de tempo e espaço, embora as distenda até a fantasia; reciprocamente, a descrição minuciosa e fiel do “pedaço de vida” recebe nele um toque de fantasia inevitável, como a que empresta movimento quase épico às lavadeiras do Assommoir 32.
O eixo do romance oitocentista é pois o respeito inicial pela realidade, manifesto principalmente na verossimilhança que procura imprimir à narrativa. Há nele uma espécie de proporção áurea, um “número de ouro”,
obtido pelo ajustamento ideal entre a forma literária e o problema humano que ela exprime. No Romantismo, o afastamento dessa posição ideal se fez na direção e em favor da poesia; mais tarde, no Naturalismo, far-se-ia na direção da ciência e do jornalismo. Mas tanto num quanto noutro, permanece o esteio da verossimilhança e, mais fundo, a disposição comum de sugerir certa causalidade nos atos e pensamentos do personagem. A insistência dos naturalistas no determinismo inspirado pelas ciências naturais não nos deve fazer esquecer o dos românticos, de inspiração histórica. Com matizes mais ou menos acentuados de fatalismo, uns e outros se aplicavam em mostrar os diferentes modos por que a ação e o sentimento dos homens eram causados pelo meio, pelos antecedentes, a paixão ou o organismo. Daí um realismo dos românticos, que seria desnorteante se não lhe correspondesse um patente romantismo dos naturalistas, para fazer da ficção literária no século XIX, e 29
Idem, p. 349. Idem, p. 350. 31 Idem, p. 351. 32 CANDIDO, 2009, p. 430. 30
da brasileira em particular, um conjunto mais coeso do que se poderia supor à primeira vista33.
O nacionalismo literário, encarado enquanto estrutura ideológico-afetiva, norteou o romance romântico: Nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu basicamente [...] em escrever sobre coisas locais; no romance, a conseqüência imediata e salutar foi a descrição de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil. É o vínculo que une as Memórias de um sargento de milícias ao Guarani e a Inocência, e significa, por vezes, menos o impulso espontâneo de descrever a nossa realidade, do que a intenção programática, a resolução patriótica de fazê-lo34. Esta tendência naturalizou a literatura portuguesa no Brasil, dando-lhe um lastro ponderável de coisas brasileiras. E como, além de recurso estético, foi um projeto nacionalista, fez do romance verdadeira forma de pesquisa e descoberta do país. A nossa cultura intelectual encontrou nisto um elemento dinamizador de primeira ordem, que contribuiu para fixar uma consciência mais viva da literatura como estilização de determinadas condições locais. O ideal romântico-nacionalista de criar a expressão nova de um país novo encontra no romance a linguagem mais eficiente35. No período romântico, a imaginação e a observação de alguns ficcionistas ampliaram largamente a visão da terra e do homem brasileiro. Numa sociedade pouco urbanizada (o período regencial, com as suas agitações, deu por assim dizer carta de maioridade ao Rio), e portanto ainda caracterizada por uma rede pouco vária de relações sociais, o romance não poderia realmente jogar-se desde logo ao estudo das complicações psicológicas36. Quanto à matéria, o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes; ou melhor, tendeu desde cedo para a descrição dos tipos humanos e formas de vida social nas cidades e nos campos... Assim, pois, três graus na matéria romanesca, determinados pelo espaço em que se desenvolve a narrativa: cidade, campo, selva; ou, por outra, vida urbana, vida rural, vida primitiva. A figura dominante do período, José de Alencar, passou pelos três e nos três deixou boas obras: Lucíola, O sertanejo, Iracema. E é esse caráter de exploração e levantamento – não apenas em sua obra, mas nas dos outros – que dá à ficção romântica importância capital como tomada de consciência da realidade brasileira no plano da arte: verdadeira consecução do ideal de Nacionalismo literário, proclamado pela Niterói37. Por isso mesmo, o nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país. Talvez o seu legado consista menos em tipos, personagens e enredo do que em certas regiões tornadas literárias, a seqüência narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele. Assim, o que se vai formando e permanecendo na imaginação do leitor é um 33
Idem, p. 431. Idem, p. 431. 35 Idem, p. 432. 36 CANDIDO, 2009, p. 432. 37 Idem, p. 433. 34
Brasil colorido e multiforme, que a criação artística sobrepõe à realidade geográfica e social38. O desenvolvimento do romance brasileiro, de Macedo a Jorge Amado, mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicação social e responsabilidade na construção de uma cultura. Os românticos, em especial, se achavam possuídos, quase todos, de um senso de missão, um intuito de exprimir a realidade específica da sociedade brasileira... A consciência social dos românticos imprime aos seus romances esse cunho realista que estou referindo, e provém da disposição de fixar literariamente a paisagem, os costumes, os tipos humanos39. Isso nos leva a um interessante problema literário. Dentre os temas brasileiros impostos pelo Nacionalismo, tenderiam a ser mais reputados os aspectos de sabor exótico para o homem da cidade, a cujo ângulo de visão se ajustava o romancista: primitivos habitantes, em estado de isolamento ou na fase dos contactos com o branco; habitantes rústicos, mais ou menos isolados da influência européia direta. Daí as duas direções: indianismo, regionalismo. O problema referido é o da expressão literária adequada a cada uma delas. No caso do Indianismo, tratando-se de descrever populações de língua e costumes totalmente diversos dos portugueses, podia a convenção poética agir com grande liberdade, criando com certo requinte de fantasia a linguagem e atitudes dos personagens... No caso do regionalismo, porém, a língua e os costumes descritos eram próximos dos da cidade, apresentando difícil problema de estilização; de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar tão livremente quanto a do índio e que, não tendo nenhum Chateaubriand para modelo, dependia do esforço criador dos escritores daqui. A obtenção da verossimilhança era, neste caso, mais difícil, pois o original estava ao alcance do leitor. Daí a ambigüidade que desde o início marcou o nosso regionalismo, e que, levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado, acabou paradoxalmente por tornar artificial o gênero baseado na realidade mais geral e de certo modo mais própria do país40. Mas justamente por implicar o esforço pessoal de estilização, (já que não podia canalizar tão facilmente quanto o Indianismo e o romance urbano a influência de modelos europeus), o regionalismo foi um fator decisivo de autonomia literária e, pela quota de observação que implicava, importante contrapeso realista41. Alinhemos, portanto, os seguintes fatores para compreender a introdução do romance no Brasil [...]: novas necessidades de expressão, correspondendo a uma visão diferente do indivíduo e da sociedade; influência estrangeira, dando o exemplo de livros atraentes assinados por nomes ilustres; receptividade do público ante um gênero que se podia apreciar sem iniciação teórica e atendia à perene necessidade de fantasia; racionalização por parte da opinião culta oficial, atribuindo-lhe significado compatível com as suas ideologias42. 38
Idem, p. 433. Idem, p. 434. 40 CANDIDO, 2009, p. 435. 41 Idem, p. 436. 42 Idem, p. 438. 39
Há escritores cuja obra é uma pesquisa deles próprios, e que parecem escrever em função de certas características pessoais, tomando o leitor como acessório e procurando convertê-lo à sua visão do homem... Outros, todavia, parecem preocupar-se, não tanto com a sua mensagem, quanto com a possibilidade receptiva do leitor, a cujos hábitos mentais procuram ajustar a obra, sem grande exigência... Isto não quer dizer, como pareceria à primeira vista, que os da primeira espécie sejam grandes, e medíocres os da segunda. Mas apenas que há duas maneiras principais de comunicação literária pelo romance: uma, caracterizada pela circunstância do escritor impor os seus padrões; outra, pela sua adequação aos padrões correntes. Nos dois grupos há fortes e fracos, e nos grandes romancistas não é rara a coexistência das duas orientações43. O seu [de Bernardo Guimarães] sentimento dominante foi o da natureza, que nele era apego real à paisagem, ao detalhe do mundo exterior, apaixonadamente percebido e amado. Caçador, nadador, viajante, sertanista, a terra exercia sobre ele atração poderosa, que é o estímulo principal da sua musa, enquadramento da inspiração, arsenal de imagens, “divina fonte” do
canto...44.
Já se vê que os seus versos [de Bernardo Guimarães] são, na maioria, ao mesmo tempo descritivos e evocativos: traçam o quadro natural e contam as emoções nele vividas, procurando associar a experiência afetiva à experiência dos lugares. Por isso mesmo revela acentuado pendor pela solidão e a saudade, freqüentemente unidas na evocação – solidão com que desfruta melhor a poesia dos lugares, saudade com que suscita as emoções experimentadas neles45. A partir de 1860 a produção novelística se intensifica e amplia no Brasil graças, principalmente, ao trabalho e exemplo de José de Alencar, logo reforçado em plano modesto por Bernardo Guimarães. À margem, e precedendo-os cronologicamente, fica o único livro de Manuel Antônio de Almeida. São os principais romancistas dessa etapa, devendo juntar-se a eles o veterano Joaquim Manuel de Macedo, que continua a produzir até 1876, data em que saem o seu último livro e o último livro de Alencar ( A baronesa 46 de amor e Sertanejo) . Além desse processo de depuração, há elementos novos que permitem caracterizar mais amplamente uma segunda etapa do romance romântico: o Indianismo, o regionalismo, a análise psicológica47. O regionalismo foi a manifestação por excelência daquela pesquisa do país, assinalada em capítulo anterior. É necessário, todavia, distinguir o regionalismo dos românticos daquele que veio mais tarde a ser designado por este nome – a “literatura sertaneja” de Afonso Arinos, Simões Lopes Neto, Valdomiro Silveira, Coelho Neto, Monteiro Lobato – e que, embora
43
Idem, p. 453. Idem, p. 485. 45 CANDIDO, 2009, p. 488. 46 Idem, p. 527. 47 Idem, p. 527. 44
dele provenha, é desenvolvimento bastante diverso pelo espírito e as conseqüências. Os românticos – Bernardo, Alencar, Taunay, Távora – tomaram a região como quadro natural e social em que se passavam atos e sentimentos sobre os quais incidia a atenção do ficcionista. É notório que livros como O sertanejo, O garimpeiro, Inocência, Lourenço são construídos em torno de um problema humano, individual ou social, e que, a despeito de todo o pitoresco, os personagens existem independentemente das peculiaridades regionais. Mesmo a inabilidade técnica ou a visão elementar de um batedor de estradas, como Bernardo Guimarães, não abafam esta humanidade da narrativa. Já o regionalismo pós-romântico dos citados escritores tende a anular o aspecto humano, em benefício de um pitoresco que se estende também à fala e ao gesto, tratando o homem como peça da paisagem, envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. É uma verdadeira alienação do homem dentro da literatura, uma reificação da sua substância espiritual, até pô-la no mesmo pé que as árvores e os cavalos, para deleite estético do homem da cidade. Não é à toa que a “literatura sertaneja” (bem vers ada apesar de tudo por aqueles mestres), deu lugar à pior subliteratura de que há notícia em nossa história, invadindo a sensibilidade do leitor mediano como praga nefasta, hoje revigorada pelo rádio. O regionalismo dos românticos, ao contrário, distinguindo a qualidade respectiva do homem e da paisagem, constitui, na sua linha-tronco, uma das melhores direções de nossa evolução literária, vindo, através de Domingos Olímpio, ramificar-se no moderno romance, sobretudo no galho nordestino, onde vemos a região condicionar a vida sem sobrepor-se aos seus problemas específicos48. [...] os romances deste juiz, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, parecem boa prosa da roça, cadenciada pelo fumo de rolo que vai caindo no côncavo da mão ou pela marcha das bestas de viagem, sem outro ritmo além do que lhes imprime a disposição de narrar sadiamente, com simplicidade, o fruto de uma pitoresca experiência humana e artística [...] Conversa de bacharel bastante letrado para florear as descrições e suspender a curiosidade do ouvinte, mas bastante matuto para exprimir fielmente a inspiração do gênio dos lugares49. Dos livros de Bernardo pouca coisa permanece incorporada à nossa sensibilidade, além da vaga lembrança dos enredos. Esse pouco é constituído principalmente por uma impressão de ordem plástica: – relevo da paisagem, certos verdes e azuis, contornos de morros e vales, presença indefinível de uma atmosfera campestre que nos faz respirar bem. É que Bernardo capricha em situar as narrativas, com o agudo senso topográfico e social característico da nossa ficção romântica. Antes de encetá-las, localiza-as; no seu decorrer, descreve as fórmulas de tratamento, a hierarquia e formas de prestígio, as relações de família, os costumes regionais – como a cavalhada (O garimpeiro), o mutirão e a quatragem (O seminarista), o batuque (O ermitão do Muquém) [...] Mas nos romances, é a natureza trabalhada pelo homem que vem ao primeiro plano; natureza em que se ajustam a casa, o caminho, a roça50.
48
Idem, p. 528. CANDIDO, 2009, p. 549. 50 Idem, p. 551. 49
Certos livros, como Inocência [de Taunay], fundem harmoniosamente a intensidade emocional, o pitoresco regionalista, a fidelidade da observação e a felicidade do estilo, obtendo um equilíbrio até então desconhecido51. A unidade política, preservada às vezes por circunstâncias quase miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade que presidiu à formação e desenvolvimento da nossa cultura. A colonização se processou em núcleos separados, praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econômico e a evolução social foram, assim, bastante heterogêneos, consideradas as diferentes regiões [...] Trazendo a idéia para o terreno literário, Viana Moog procurou interpretar a nossa literatura em função das que chamou “ilhas de cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas”, caracterizada cada uma pelo seu genius loci particular.
Comprovante desta idéia engenhosa, e em parte verdadeira, é sem dúvida o caso do Nordeste, que se destaca na geografia, na história e na cultura brasileira com impressionante autonomia e nitidez. Desta autonomia derivou bem cedo um sentimento regionalista que encontrou expressão típica na confederação do Equador, tentativa, à maneira da República de Piratini, de dar expressão política à referida diversidade e que, se falhou no terreno político, persistiu teimosamente no plano da inteligência. A literatura e a oratória tornaram-se, com efeito, a forma preferencial daquela região velha e ilustre exprimir a sua consciência e dar estilo à sua cultura intelectual, que antecedeu e por muito tempo a do resto do país52. [...] Conscientes de formarem uma equipe vigorosa, fruto de maturidade da sua região, os escritores nordestinos não se conformaram em ser pássaros do crepúsculo e desenvolveram, com relação às instituições intelectuais e políticas, uma virulência crítica permeada de intensa susceptibilidade [...] É a famosa Escola do Recife [geração de 1870], que levou ao máximo esta tendência, prolongando-se por todo o Pós-romantismo e, em nossos dias, 53 pelo “romance nordestino” e a obra de Gilberto Freyre . O seu [Franklin Távora] regionalismo parece fundar-se em três elementos, que ainda hoje constituem, em proporções variáveis, a principal argamassa do regionalismo literário do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da paisagem que condiciona tão estreitamente a vida de toda a região, marcando o ritmo da sua história pela famosa “intercadência” de Euclides da Cunha. Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das guerras holandesas, do velho patriarcado açucareiro, das rebeliões nativistas. Finalmente, a disposição polêmica de reivindicar a preeminência do Norte, reputado mais brasileiro, “onde abundam os elementos para a formação de
uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia a dia pelo estrangeiro”54. A virtude maior de Távora foi sentir a importância literária de um levantamento regional; sentir como a ficção é beneficiada pelo contacto de uma realidade concretamente demarcada no espaço e no tempo, que serviria de limite e em certos casos, no Romantismo, de corretivo à fantasia. Ora,
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Idem, p. 612. Idem, p. 614. 53 CANDIDO, 2009, p. 614-615. 54 Idem, p. 615, citação do PREFÁCIO de O cabeleira, de Franklin Távora. 52
para ele este contacto se funda na experiência direta da paisagem, que o romancista deve conhecer e descrever precisamente55. Dentre os burocratas, jornalistas e políticos, homens de cidade que pouco sabiam do resto do país, Bernardo Guimarães e [Alfredo d’Escragnolle] Taunay se diferenciam como viajantes do sertão. Este,
nem bacharel nem médico, mas militar, enfronhado em problemas práticos, é particularmente um caso raro na literatura do tempo, para a qual trouxe uma rica experiência de guerra e sertão, depurada por sensibilidade e cultura nutridas de música e artes plásticas. Esta combinação de senso prático e refinamento estético fundamenta as suas boas obras e compõe o traçado geral da sua personalidade56.
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Idem, p. 616. Idem, p. 622.
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