Georges Bataille
O ÂNUS SOLAR
HIENA EDITORA Apartado 2481 1112 LISBOA CODEX Titulo original L'ANUS SOLAIRE E L'OEIL PINÉAL Autor GEORGES BATAILLE Título em português O ÂNUS SOLAR Tradução de ANIBAL FERNANDES Capa de AUGUSTO T. DIAS Orientação gráfica LUIS GATO Tiragem 1000 exemplares Lisboa, Marco de 1985
Quando Georges Bataille publicou O Erotismo, no fim da vida, o fato revestiu‐se quase logo de um significado duplo: por um lado viu‐se que este livro rico e austero continha uma das mais belas meditações filosóficas sobre o tema; por outro, descobriu‐se nele o coroamento da sua obra que revelava ali a sua coesão profunda e o seu sentido definitivo. Georges Bataille foi o grande lançador de idéias da literatura contemporânea; escreveu como quem atira dados ou sortes. E disto resultou um ensinamento disperso, feito de cintilações de pensamento e rupturas de linguagem, de iluminações opacas e radiosas obscuridades. Nestas ofegantes confissões, nestes discursos fragmentados e explosivos, tudo aquilo que respeita ao erótico parecia vir de uma excepcional experiência e só valer em função da personalidade do autor. Teve fórmulas fascinantes, obcecantes: «o ato sexual está para o tempo como o tigre para o espaço (1)», ou: «A nudez feminina aspira à nudez masculina tão avidamente como o prazer à angústia (2)»; mas dizendo isto acreditava‐se que falava dele para ele. Em especial, a associação constante da volúpia e da morte podia passar por pessoal exagero de uma atração fatal: «A minha raiva de amar abre‐se à morte como a janela ao pátio (3)». Ora, n´O Erotismo, todas estas singulares reflexões se confundem dentro de considerações gerais, aplicáveis à humanidade no seu conjunto: «A sexualidade e a morte não passam de agudos momentos de uma festa que a natureza celebra com a multiplicidade inesgotável dos seres, qualquer deles com um sentido de gasto perdulário ilimitado que a natureza faz ao encontro do desejo de perdurar, que também é próprio de todos os seres (4)». Nos dois casos, trata ‐se de uma «dissolução» que Bataille explicita numa notável análise fenomenológica do contínuo e do descontínuo: «Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura inteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos prende à individualidade do acaso, à individualidade perecível que somos... Esta nostalgia 1
La Parte Maudite, Paris, Ed de Minuit 1949. Le Coupable, Paris, Gallimard 1944. 3 Sur Nietzsche, Paris, Gallimard 1946. 4 L'Erotisme, Paris, Ed de Minuit 1957. 2
comanda em todos os homens as três formas do erotismo (5)». Os diferentes estados que ele distingue — o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado — implicam, cada um deles a seu modo, «arrancar o ser à descontinuidade». Por isso, quando afirma: «Essencialmente, o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação», justifica‐o estabelecendo que ele é, como a morte, destruidor: «Toda a ação erótica tem por princípio uma destruição do ser fechado que um parceiro de jogo é, no seu estado normal (6)». Georges Bataille foi filho da inquietação e do tormento. Nascido em 1897 no Puy‐de‐Dôme, teve na infância a visão do seu pai cego e paralítico, espetáculo aterrador que lhe acentuou o sentido do trágico. Educado no ateísmo, julgou que a sua conversão ao catolicismo, enquanto jovem, iria apaziguar‐lhe a instabilidade: doente e reformado depois da Primeira Guerra Mundial, chegou a pensar em ser monge. Renunciou a isso, porém, para entrar como aluno na Escola de Chartes, e ser arquivista‐paleógrafo. Depois de ter perdido a fé num ataque de riso em 1920 — episódio que contou de forma inesquecível em L'Expérience Intérieure — fez uma estadia em Espanha e regressou a Paris para ocupar um lugar na Biblioteca Nacional. As suas amizades literárias, os seus trabalhos, não o impediram de passar por um período de depressão, do qual saiu fazendo‐se psicanalizar. Fundou a revista Documents (1929‐1931), à qual se ligaram os surrealistas dissidentes de Breton. Depois, preocupado com a política, aderiu ao «Círculo Comunista Democrático», de tendência anti‐estalinista, e publicou no órgão do grupo notáveis estudos sobre o fascismo, a filosofia de Hegel, a noção de gasto. O desaparecimento deste Círculo fê‐ lo organizar em 1935 o movimento «Contra—Ataque» que tinha em vista reunir os intelectuais de esquerda. Depois, afastando‐se da ação política, quis criar uma sociedade secreta anti‐cristã cujo programa de inspiração nietzschiana está refletido nos quatro números do Acéphale. Proclamava a necessidade do êxtase e do amor extático como desprezo pela realidade imediata: «Um mundo que não pode ser amado até à morte — tal como um homem ama uma mulher — apenas representa o interesse e a obrigação do trabalho. Se for comparado com os mundos desaparecidos, é feio e surge como o mais falhado de todos (7)». Com o mesmo espírito contribuiu para a fundação do «Colégio de Sociologia». Todas estas tentativas se perderam com o começo da Segunda Guerra Mundial. Em 1942 é atingido pela tuberculose e obrigado a abandonar a Biblioteca Nacional para se instalar em Vézelay. Os seus dons de animador encontram‐se na origem da revista Critique. Só em 1949 é que voltará a reentrar em funções, primeiro como conservador da Biblioteca de Carpentras e depois, a partir de 1951, na de Orleães onde se conservou até à morte, em 1962. A sua intensa liberdade moral foi tanto mais surpreendente por se ter 5
ibid ibid 7 «La Conjuration Sacrée», Acéphale n.° 1 1936. 6
inscrito em condições de vida de um homem de estudo. Bataille partiu de uma meditação torturada sobre a animalidade, fonte de horror e pensamentos culposos sobre o proibido. Para o ser pensante, que tende à inteligência pura, a animalidade é um escândalo, uma inevitável e não consentida queda; arrasta a atos que comprometem a sua dignidade; faz o espírito perder‐se nas exigências sujas do corpo. Os primeiros escritos de Bataille (W.C. — cujo manuscrito ele queimou — História do Olho, O Ânus Solar) expuseram esta verdade com violência. Comenta‐a num curioso artigo, chamado «O Dedo Grande do Pé», em que denuncia a vergonha e o nojo que estão ligados aos pés, dos quais faz emblema de animalidade, apesar de serem eles que garantem a posição vertical. Descrevendo os costumes de pudor de certos povos antigos, e nos tempos modernos «a hilaridade que geralmente desperta, mal se pensa em dedos de pés», aí vê sinal de uma oposição entre o mundo do céu representado pela cabeça, e o mundo da lama em que os pés se metem: «A vida humana comporta realmente a raiva de ver que é um movimento de vaivém, desde a imundície ao ideal, e do ideal à imundície, raiva que é fácil incidir num órgão tão baixo como um pé (8)». Em vez de esquecer as contingências do corpo, o pensamento de Bataille detém‐se nelas, aprofunda e cultiva o mal‐estar que elas introduzem na arte de viver. Sem assimilar a carne ao pecado, como um teólogo, insiste sobre o seu caráter conspurcante e conspurcado; pretende que pensemos nela com susto, pois «o agachamento» contesta o movimento do ser para os cimos: «Abismamo‐nos afastando as pernas, ficando o mais possível abertos àquilo que já não é nós, mas a existência impessoal, pantanosa, da carne (9)». O que dá um atrativo tenebroso às relações carnais é precisamente a impossibilidade de negar as funções excremenciais: «O horror da excreção feita a recato, com vergonha, à qual se junta a fealdade formal dos órgãos, constitui a obscenidade dos corpos — zona de vazio que temos de ultrapassar e sem a qual a beleza não teria o seu lado irresoluto, que atua e nos amaldiçoa (10)». A exaltação do amor tem isto de prodigioso, fazer‐ nos assumir a nossa animalidade, já não como inferioridade mas prazer; por isso, experimentar o êxtase da animalidade e agir como amante exaltado são sinônimos: «O ato de amor inteiro seria pôr‐me nu à noite, na rua, não por causa de uma mulher que anda na rua a desoras, mas impossibilidade de eu viver só, num inquebrável silêncio. Com isto eu faria o inconfessável, diferente do que posso referir a propósito de uma vulgar insignificância, em que já se não voltaria, depois, a pensar. Eu podia defecar, deitar‐me ali e chorar (11)...». Georges Bataille, filósofo do gasto e da transgressão, em todos os seus livros desenvolveu uma extraordinária ontologia da nudez. Antes dele, nenhum filósofo tinha estudado com tanta profundidade o significado da nudez na vida humana. Em geral julga‐se que a nudez exprime a plenitude do estado natural; por 8
Em Documente, 1929. Sur Nietzeche. 10 Ibid. 11 Le Petit, Paris, Pauvert 1963. 9
isso as belas mulheres nuas que as revistas exibem, os filmes, são oferecidas como frutos de carne que correspondem a um apetite dos homens tão concreto como a fome. Em Bataille, nada é assim: está sempre presente a nudez como um rasgão do ser. Segundo ele, alguém pôr‐se nu, estar nu, é uma cerimônia patética em que se dá a passagem da humanidade à animalidade; e a necessidade de contemplar o nu não passa da necessidade angustiada de nos informarmos sobre as nossas próprias origens. A nudez define‐se pelo «inacabado»; dá aos indivíduos uma sensação de seres «inacabados» que favorece a comunicação: «A ilusão do acabamento dada — humanamente — na pessoa de uma mulher vestida, mal ela se despe um pouco faz a sua animalidade visível, e vê‐la desperta em mim o próprio acabamento... Na medida em que os seres parecem perfeitos, permanecem isolados, fechados sobre si próprios. Porém, a ferida do inacabado abre‐os. Através daquilo a que podemos chamar inacabado, nudez animal, ferida, os diversos seres separados comunicam, ganham vida perdendo‐se na comunicação de uns com os outros (12)». Perante a nudez, Bataille experimenta uma sensação sagrada onde a fascinação se mistura ao terror: «A nudez mete medo, por toda a nossa natureza ser proveniente do escândalo em que ela tem um sentido de horrível... Aquilo a que se chama nu pressupõe uma fidelidade despedaçada, não passa de resposta tremida e amordaçada ao mais perturbante dos apelos (13)». Todas as reações de Bataille em face de um corpo nu são reações pungentes, que vão do desvario ao doloroso desejo. Não consegue rir‐se, mesmo que procure profanar com uma analogia cômica; evoca com gravidade: «A dura e luminosa nudez do rabo, indiscutível verdade de falésias na concavidade do mar e do céu (14)». O seu herói Dianus, em L'Impossible, vislumbra a voluptuosa E. prostrada no tapete do quarto, nua numa cinta de rendas pretas: «Os braços, as pernas e a cabeleira irradiam para todos os sítios, desenrolados ao abandono como espiras da cobra, e este irradiar não tinha por centro um rosto voltado para o chão mas a outra face rachada profundamente, que as meias faziam mais nua.» Esta visão libertina suscita logo nele um movimento de pânico: «Desci as escadas embriagado de horror, não por um qualquer motivo definido, mas debaixo das árvores de folhagem ainda a gotejar de chuva foi como se este ininteligível mundo me transmitisse o seu úmido segredo de morte.» Quando se pensa nos homens a quem a nudez só inspira as mais vulgares sensações, fica‐se espantado com este filósofo que apenas conseguia abordá‐la com «temor e tremor». Em Bataille, a nudez também era, no plano moral, a atividade intelectual por excelência: «Penso como uma rapariga que tira o vestido (15)». E atribuía ao não‐ saber, no domínio do conhecimento, o mesmo efeito que a rejeição de uma roupa inútil: «O não‐saber desnuda (16)». 12
Le Coupable. L'Impossible, Paris, Ed. de Minuit 1962. 14 Le Coupable. 15 Méthode de Méditation, Paris, Fontaine 1948. 16 L'Expérience Intérleure, Paris, Galiimard 1945. 13
De fato, o ensinamento de Bataille tende a mostrar que o erotismo deve ser vivido religiosamente. Em vez de designá‐lo pelas suas condutas exteriores, caracteriza‐o pelos seus fenômenos interiores, que aproxima dos «fenômenos da mística.» ......................................................................................................................
Bataille foi um homem profundamente obcecado pela morte, como é próprio de todos os indivíduos; mas foi‐o sem tréguas, sempre com força maior e mais atrocidade, ao passo que qualquer outro se entrega com intermitências a esta obsessão, na satisfação das paixões encontra motivo para esquecer a sua necessidade de ser mortal. Criança ainda, teve terrores que sobreviveram à infância: a visão do seu pai enfermo num bacio, a descida a uma cave infestada de ratos. Mais tarde, as suas crises de doença, os períodos depressivos da sua experiência extática, incitaram‐no a julgar‐se sempre à beira do fim. Em vez de procurar não pensar na morte, quis olhá‐la de frente, ou melhor: fazê‐la desejável, como pode sê‐lo um prazer carnal. Desejou que ela surgisse, não como derrota, não como expropriação de si próprio, mas promessa de um poder supremo para o qual temos de preparar‐ nos constantemente, devido à sua violência extrema. Para um descrente, o único meio de fazer desejável a morte é associá‐la ao ato sexual. Desde há muito que a sabedoria das nações chamou ao orgasmo «a mortezinha», por causa das sufocações, dos suspiros, da crise epiléptica que acompanha a cópula, em que os participantes parecem procurar de concerto o seu aniquilamento; porém, dizendo isto fica a pensar‐se numa morte rápida, limpa, sem dor, e seguida de uma alegre renascença. Bataille vê isto mais ampliado, se tal podemos dizer; imagina a pior das mortes, com uma agonia demorada, e também encara o processo de decomposição post mortem. Este horrível quadro é que ele se esforça por desejar, que ele mima no frenesi sexual com improvisações explosivas ou cerimônias preparadas. Ora o que é que pode, na sexualidade, dar fielmente conta do processo de decomposição? É a obscenidade levada ao seu paroxismo, quando o corpo perde o domínio do espírito e ejacula, urina, defeca, peida, vomita, sua, dando o espetáculo de uma irresistível derrocada. A carne mostra‐se então falível, perecível, e compraz‐se porém naquilo que a diminui. Estas imagens é que se impõem a Bataille, porque assumindo a sexualidade assim, de uma forma totalmente desenfreada, habitua‐se à abominação das abominações, faz‐se insensível à morte: «Eu igualaria o amor (o indecente corpo‐a‐corpo) no ilimitado do ser — à náusea, ao sol, à morte. A obscenidade dá um momento de caudal de rio ao delírio dos sentidos (17)». Bataille vai pois empreender toda a espécie de ações, umas por método, outras por impulso irracional, para sexualizar a morte. E assim, no Petit, conta que se masturbou à frente do cadáver da mãe, durante a vigília fúnebre; não se tratava de 17
La Scissiparlté, Paris Gallimard 1970.
atração edipiana mas necessidade de dar saída à angústia; aliás voltou a repetir esta confidência, com pormenores suplementares. Frequentou prostitutas convencido de que amá‐las é amar a podridão a que toda a carne se volta, ou pelo menos habituar‐ se a ela; pareceu‐lhe que o sexo de uma mulher da vida, aberto a todos, era uma espécie de vala comum e, se ele sentisse prazer em lá ficar soterrado, iria ter igual apetite no túmulo. Por isto vemo‐lo fazer analogias apavorantes, associar reminiscências dos seus terrores infantis (nomeadamente o seu medo aos ratos, a sua fobia da cave de trevas úmidas e bafio insulso) aos seus desejos pelo corpo feminino: «Essa parte das raparigas, entre a meia‐perna e a cintura — que responde com violência à expectativa — responde como a inapreensível passagem de um rato. O que nos fascina é vertiginoso: a insipidez, os refegos, o esgoto são da mesma essência, ilusória, que há no vazio de uma ravina onde caímos (18)». Quando está no bordel, «no templo inundado de ofuscante claridade do amor imundo», vê abrir‐se «o abismo mortuário da orgia», assimila as prostitutas e os seus clientes a mortos: «Só assim é que eu, angustiado no sufocante reino dos cadáveres, entrei num estado quase cadavérico (19)». Quando Bataille diz: «O que é menos vincado no meu caráter (vá lá...) é o lado casca‐grossa ou porco (20)», acreditamo ‐lo sem dificuldade; os seus escritos eróticos são terrificantes porque provêm de um homem aterrorizado, que opõe o terrorismo do sexo ao terrorismo da morte. Pretende fazer‐nos respirar «aquilo que a loucura sexual tem de irrespirável». Imaginando orações quotidianas e ritos, meditando sobre as situações impossíveis a que ele próprio aspira, cultivando de uma forma intensiva os seus fantasmas, obriga a literatura a fazer um cerco ao inconfessável. Nas narrativas de Bataille a parte autobiográfica é sem dúvida menor do que parece. Exprime pseudo‐realidades que ele desejaria viver, ou então entrega‐ se a interpretações delirantes de fatos vividos. Os seus pseudônimos: Troppmann, Lord Auch, Dianus, Pierre Angélique, Louis Trente (*), correspondem às diversas personagens que ele representa na sua vida secreta, e servem quando calha para nomes de heróis das suas ficções. Quer acumular, comprimir em si pensamentos obscenos, para só poderem sair de uma forma vulcânica: «Assim é que o amor grita na minha garganta: sou o Jesúvio, paródia imunda do tórrido e ofuscante sol (21)». O Jesúvio, esse deus‐vulcão que Bataille julgava ser durante a sua juventude, é «a imagem do movimento erótico, que às idéias do espírito, através de enorme arrombamento, confere força de escandalosa erupção (22)». Perante estes excessos 18
L'Impossible. La Déesse de Ia Noce, Paris, Gallimard. 20 La Scissiparité. * Até 1944, Georges Bataille publicou todas as suas obras atrás de pseudônimos (com exceção de O Anus Solar). Por exemplo, Lord Auch serviu, para a História do Olho, Louis Trente para Le Petit e Pierre Angelique para Madame Edwarda, (Nota do T.) 21 L'Anus Solaire, Paris, Ed. de Ia Galerie Simon 1931. 22 Ibid. 19
verbais do seu erotismo, nunca esquecemos que se trata de um homem que tenta redefinir o desejável, incluindo nele o indesejável. Exortava‐se ao comprazimento de coisas repugnantes (André Breton censurou‐lho com impiedosa mordacidade), rodeando o comércio carnal com toda a espécie de infectas javardices: «Desde essa época, Simone apanhou a mania de partir ovos com o rabo [...] e eu inundava‐me com esta abundante porcaria (23)», Para ele não é excessivo imaginar bêbedas impudicas, de perpétua incontinência urinária, que ainda por cima tenham promíscuas invenções: «Eu não gostava daquilo a que chamam «os prazeres da carne», porque são realmente insípidos. Eu gostava daquilo que se considera «sujo» [...] o deboche que conheço suja, não só o meu corpo e os meus pensamentos, como tudo o que imagino perante ele, e sobretudo o universo estrelado (24)». Dir‐se‐ia que pretende nausear com a carne (e ter prazer com essa náusea) para melhor amar a morte, porque se a carne lhe parecesse branda, requintada, imaculada, mais difícil lhe seria ter desapego à vida, da qual ela seria expressão edênica. ......................................................................................................................
Apesar de possuírem uma particularidade exclusiva, as lições de Georges Bataille estão adaptadas ao nosso tempo. A sua lucidez cruel, o seu pessimismo exaltado conservam as virtudes capitosas de um álcool. Exprimiu os estados inefáveis da sensualidade, sem esconder nunca o seu esplendor inquietante: «A sorte dos amantes é o mal (o desequilíbrio) a que o amor físico os obriga. São condenados, sem fim, a arruinar a harmonia entre eles, a combater na noite. Pelo preço de um combate, pelas chagas que fazem um ao outro é que se unem (25)». Fez visível o sentido interior que anima a ultrapassagem das dores e das alegrias: «O amor só tem por objeto o risco, e só ele, o risco, força para amar (26)».
ALEXANDRIAN (extratos de Georges Bataille ou L'Amour Noir.)
23
Histoire de l'Oell, Paris 1928. ibid. 25 L'Allelulah. 26 ibid. 24
Este livro reúne os dois textos mais significativos que Georges Bataille escreveu sobre a sua concepção anal (ou seja, noturna) do sol. O Anus Solar foi publicado pela primeira vez em 1931, numa plaquette ilustrada por André Masson. O autor anunciava o seu texto, nos prospectos da editora, dizendo: «Se tememos ofuscar‐nos ao ponto de nunca termos visto (— em pleno Verão, e nós próprios com a face vermelha banhada de suor —) que o sol é agoniante e cor‐de‐rosa como uma glande, aberto e urinante como um meato, talvez seja inútil voltar a abrir, no meio da natureza, olhos carregados de interrogação; a natureza responde à chicotada, tão galante como as formosas domadoras que admiramos nas montras das livrarias pornográficas.» Postumamente, em 1967, foi publicado o texto O Olho Pineal na revista «L'Éphémere». E noutro lado, no Dossier de L'Oeil Pinéal, podemos ler: «Eu imaginava esse olho no alto do crânio como um horrível vulcão em erupção, e precisamente com o caráter duvidoso e cômico que ligamos ao rabo e às suas excreções, ora o olho é, sem dúvida alguma, o símbolo do sol ofuscante, e esse que eu imaginava no alto do meu crânio necessariamente uma brasa, votado que estava à contemplação do sol no auge do seu brilho.»
Edições de G. Bataille em português:
1964 — A Literatura e o Mal (Ed. Ulisseia) 1968 — O Erotismo (Moraes Editores) 1978 — O Azul do Céu (Ed. António Ramos) 1978 — Madame Edwarda, O Morto, História do Olho (Ed. António Ramos) 1982 — O ABade C. (Contexto) 1984 — As Lágrimas de Eros (Ed. & Etc) 1985 — O Anus Solar (Hiena Editora)
O ÂNUS SOLAR
Claro está que o mundo é paródia pura, quer dizer que toda a coisa vista é paródia de outra, ou a mesma coisa mas com uma forma que decepciona. Desde que as frases circulam nos cérebros ocupados em refletir, o mundo chegou à identificação total, pois uma cópula ajuda cada frase a religar as coisas entre si; e estaria tudo visivelmente ligado se um só olhar bastasse à descoberta do traçado inteiro que um fio de Ariana deixou e conduz no seu próprio labirinto o pensamento. Mas a cópula dos termos não irrita menos que a dos corpos. E quando a mim próprio exclamo: SOU O SOL, disto resulta uma ereção integral porque o verbo ser é veículo do frenesi amoroso.
Todos têm consciência de que a vida é paródica e uma interpretação lhe falta. Por isso o chumbo é a paródia do ouro. O ar é a paródia da água. O cérebro é a paródia do equador. O coito é a paródia do crime. O ouro, a água, o equador ou o crime podem ser enunciados indiferentemente como o princípio das coisas. E se a origem não lembra o chão do planeta, que nos parece base, mas o movimento circular que em redor de um centro móvel o planeta faz, um carro, um relógio ou a máquina de costura podem de igual forma ser aceitos na função de princípio gerador.
Os dois movimentos principais são o rotativo e o sexual, de combinação expressa numa locomotiva de pistões e rodas. Dois movimentos que se transformam um no outro, reciprocamente.
Assim notamos que a terra a dar voltas faz coitar animais e homens (e, como aquilo que resulta também é a causa que o provoca), animais e homens quando coitam fazem dar voltas à terra. A combinação ou transformação mecânica destes movimentos foi procura dos alquimistas a que chamaram pedra filosofal. E usar uma tal combinação de valor mágico, determinou a presente situação do homem no meio dos outros elementos.
Um sapato abandonado, um dente estragado, um nariz curto demais, o cozinheiro que cospe na comida dos patrões, estão para o amor como a bandeira está para a nacionalidade. Um guarda‐chuva, uma sexagenária, um seminarista, o cheiro de ovos podres, os olhos cegos de um juiz, são raízes por onde o amor se alimenta. Um cão que devora um estômago de pato, uma mulher bêbeda que vomita, um guarda‐livros que soluça, um frasco de mostarda, representa a confusão que veicula o amor.
Um homem é provocado no meio de outros, ao saber por que não é nenhum dos outros. Deitado no leito, ao pé de uma mulher que ele ama, esquece que não sabe a razão por que é ele próprio, em vez do corpo em que toca. Sofre, sem saber, com a escuridão da inteligência que o impede de gritar que ele próprio é a mulher já esquecida da presença dele mas excitada no aperto dos seus braços. O amor ou uma raiva de menino, a vaidade de uma velha da província, a pornografia clerical, o enorme diamante da cantora, fazem extraviar‐se personagens esquecidas em casas cheias de pó. Bem podem procurar‐se avidamente umas às outras: só paródicas imagens conseguem lá ver, tão vazias como espelhos.
Esta mulher inerte e ausente, pendurada nos meus braços sem sonhar, não me é mais estranha do que a porta ou a janela por onde vejo e passo. Quando adormeço, incapaz de amar aquilo que acontece, recupero a indiferença (que lhe permite deixar‐me). Nos meus braços é impossível que ela saiba quem encontra, pois fabrica,
obstinada, um esquecimento total. Os sistemas planetários a rodar no espaço, como discos cujo centro se desloca a toda a velocidade para descrever um círculo infinitamente maior, afastam‐se da posição que tinham para regressar a ela quando a rotação acaba. O movimento é figura do amor, incapaz de estacionar neste ou naquele ser para passar, com rapidez, de um ser a outro. E o esquecimento que vai condicioná‐lo mais não é do que subterfúgio da memória. O homem, como um espectro, é ligeiro a levantar‐se de um caixão, e como ele sossobra. Horas mais tarde levanta‐se outra vez e sossobra, e sempre assim, dia após dia: grande coito com a atmosfera do céu que a rotação da terra, perante o sol, dirige. E apesar da vida terrestre ritmar o seu movimento nessa rotação, por imagem não tem a terra que roda mas o membro que penetra a fêmea e dela quase por inteiro sai, para voltar a entrar. Amor e vida só parecem individuais na terra, pois lá se destrói tudo com vibrações de amplitude e duração diferentes.
Apesar disto, não há vibração que não vá conjugar‐se em movimento circular contínuo; como a locomotiva que anda à superfície da terra, imagem da metamorfose contínua.
Os seres só morrem para voltarem a nascer, como os fatos que saem dos corpos para entrarem outra vez dentro deles. As plantas crescem em direção ao sol, e sucumbem depois em direção à terra. As árvores espetam o solo terrestre com uma quantidade enorme de membros florescidos que se empertigam em direção ao sol. As árvores que tão fortemente se levantam, acabam por queimar‐se com o raio, ou ser abatidas, ou ficarem de raiz ao sol. Regressadas ao chão, voltam a erguer‐se como antes e com outra forma. Coito polimorfo que no entanto está ligado à uniforme rotação da terra. A mais simples imagem de vida orgânica ligada à rotação, está nas marés. Do movimento do mar, coito uniforme da terra com a lua, procede o coito polimorfo e orgânico da terra com o sol.
A primeira forma do amor solar é a nuvem levantada acima do elemento líquido. Às vezes a nuvem erótica faz‐se tempestade e cai de novo na terra, transformada em chuva, enquanto o raio rompe as camadas do ar. Pouco depois a chuva torna a levantar ‐se sob a forma de uma planta imóvel. A vida animal descende toda do movimento dos mares, e dentro dos corpos a vida continua a sair de água salgada. Assim foi que o mar interpretou um papel de órgão‐fêmea, líquido pela excitação do macho. O mar está continuamente a masturbar‐se. Os elementos sólidos contidos e agitados dentro de uma água que se anima de movimento erótico, brotam sob a forma de peixes voadores.
A ereção e o sol escandalizam tanto como o cadáver e a escuridão dos antros. Os vegetais crescem uniformemente para o sol e os seres humanos, falóides que são como as árvores, nisto contrários aos outros animais, têm por força que desviar os olhos. Os olhos humanos não suportam o sol, nem o coito, nem o cadáver, nem o escuro, embora o façam com reações diferentes.
Se o meu rosto se injeta de sangue, fica vermelho e obsceno. Com reflexos mórbidos denuncia ao mesmo tempo a ereção sangrenta e uma exigente sede de impudor e orgia criminal. Por isto afirmo sem medo que o meu rosto é escândalo e só o JESÚVIO (*) exprime as paixões que tenho. O globo terrestre está coberto de vulcões que lhe servem de ânus. E ainda que este globo nada coma, às vezes deita fora o conteúdo das entranhas. Conteúdo que salta com estrondo e cai e escorre nas faldas do Jesúvio, a espalhar morte e terror por todo o lado. Na verdade, o movimento erótico do solo não é fecundo, como o das águas, mas *
Ainda jovem, Bataille Inventou esta palavra a partir de Jesus e Vesúvio, para designar uma espécie de deus‐vulcão (ver o texto introdutório de Alexandrian). (Nota do T.)
muito mais rápido. Às vezes a terra masturba‐se com frenesi, arruinando por completo a sua superfície.
O Jesúvio é pois imagem do movimento erótico, que às idéias do espírito, através de enorme arrombamento, confere força de escandalosa erupção.
Quem acumula esta força eruptiva está necessariamente situado em baixo. Para os burgueses, os operários comunistas são tão feios e sujos como partes sexuais e peludas, ou partes baixas: e cedo ou tarde vai haver uma escandalosa erupção, durante a qual vão rolar cabeças de burguês, nobres e destituídas de sexo. Desastres, revoluções e vulcões não fazem amor com os astros. As revolucionárias e vulcânicas deflagrações eróticas são antagônicas do céu. Como os amores violentos, dão‐se à revelia da fecundidade. À fecundidade celeste opõem‐se os desastres terrestres que são imagem do amor terrestre sem condição, ereção sem saída nem regra, escândalo e terror.
Assim é que o amor grita na minha garganta: sou o Jesúvio, paródia imunda do tórrido e ofuscante sol. Quero ser estrangulado a violar uma mulher a quem pudesse dizer: «és a noite». O Sol só ama a Noite e dirige a sua luminosa violência, falo ignóbil, para a terra; mas não consegue ainda assim chegar aos olhos e à noite, apesar das imensidões terrestres noturnas estarem constantemente a dirigir‐se à imundície do raio solar. O anel solar é o ânus intacto do seu corpo adolescente, e nada há tão ofuscante que se lhe possa comparar; a não ser o Sol, e apesar de ter um ânus que é a noite.
O OLHO PINEAL I. ANTROPOLOGIA CIENTÍFICA E ANTROPOLOGIA MITOLÓGICA Se a descrição da vida humana desde a sua origem é tentativa de representar o consumado pelo universo informe ao produzir o homem, e não outra coisa, e como foi levado a esta produção inútil, e por que meios fez de uma criatura assim algo diferente de todo o resto, em tal medida será necessário pôr de parte a antropologia científica, reduzida a um balbuciar mais senil ainda do que pueril, reduzida a respostas que tendem a dar por irrisórias as perguntas que se lá fazem, quando afinal já só essas respostas o são, miseravelmente, em face da brutalidade inevitável, exigente, de uma questão capaz de assumir o próprio sentido da vida que essa antropologia pretende, por finalidade, descrever. Pelo menos na primeira fase não se rejeita a especulação filosófica com impaciência menor do que a impotente pré‐história, apesar de uma tal especulação, obediente a movimentos de má consciência, quase sempre se destruir a si própria e se anular, cobarde, em face da ciência. Porque afinal, se esta desumana anulação pode ainda ser denunciada, mesmo que o homem consiga ainda contrapôs a sua maldade e a sua demência a uma necessidade que o deprime, nenhum dos meios próprios da investigação filosófica conhecidos é de molde a impôr‐lhe uma confiança, qualquer que seja: até aqui a filosofia tem sido, como a ciência, voz da subordinação humana, e sempre que o homem tenta representar‐se, não mais como instante de um homogêneo processo — processo indigente e lamentável — mas rasgão novo no interior de uma natureza rasgada, não será a fraseologia nivelante o que brota daquele entendimento seu, capaz de ajudá‐lo: deixa de poder reconhecer‐se nas degradantes cadeias da lógica e, pelo contrário, vai reconhecer‐se — não só cheio de cólera, mas em extático tormento —na virulência dos seus fantasmas. Não obstante, introduzir uma série intelectual sem leis no interior do mundo do pensamento legítimo, define‐se logo a operação mais temerária e espinhosa. E é evidente que haveria de constituir, não sendo praticada sem equívoco, com determinação e rigor raramente atingidos noutros casos, a mais inútil das operações. Excetuado o caráter pouco acessível ao medo — trata‐se aqui, essencialmente, de ser atraído por objetos os mais repugnantes sem ficar deprimido —, duas condições vão impôr‐se ao que resolveu investir a inteligência de um
conteúdo que lhe permanece estranho; e não só impôr‐se de forma clara e distinta, mas revelar‐se, também, imperativas prescrições.
II. CONDIÇÕES DA REPRESENTAÇÃO MITOLÓGICA Em primeiro lugar, faculdade adquirida que passou a ser, o conhecimento metódico não pode ser posto de parte; Isto porque iria perder‐se o livre jogo das imagens Inteligíveis, pelo menos nas circunstâncias atuais em que não há contacto estreito com o mundo homogêneo da vida prática, e dissolver‐se fatalmente numa região onde não existe pensamento nem palavra susceptível da menor consequência. A ciência terá pois de começar por minguar até um estado que deve definir‐se pelo termo de subordinação, de forma a dispormos livremente dela como se fora animal de abate e para fins que já não são os seus. Abandonada a si própria, livre no sentido mais pobre da palavra (em que a liberdade só é impotência) e uma vez que recebeu por herança o encargo de dissipar e aniquilar os fantasmas mitológicos como condição primeira de existência, nada impediria que ela cegamente esvaziasse o universo do seu conteúdo humano. Todavia, possível será usá‐la para limitação do seu próprio movimento e situar ‐se ela própria além dos seus limites que não pode atingir nunca, e que vai fazê‐la transformar‐se num esforço incapaz de resultar, num ser vago e afetado de esterilidade. Estabelecidos assim pela ciência, é bem verdade que estes elementos ainda não passam de vazios termos, de impotentes paralogias. Só passando destes limites exteriores de uma outra vida ao seu conteúdo mitologicamente vivido, é possível tratar a ciência com o desdém que a sua natureza específica exige, e tal só acontece quando a vencemos pelas suas próprias armas, obrigamos à produção das paralogias que a limitam. Desde logo, a segunda condição não passa de uma das formas da primeira; e ainda aqui se usa a ciência com um fim que lhe é contrário. Excluir a mitologia pela razão é necessariamente exclusão rigorosa, e não há que voltar atrás, temos é que fazê‐la ainda mais severa, sempre que preciso, mas os valores que essa exclusão cria tem ela própria, ao mesmo tempo, que invertê‐los, ou seja, que apenas há valor significativo numa série mitológica, desde que ela não possua, segundo a razão, conteúdo válido. Porque o caráter afetivamente violento da inteligência humana, se é projetado como um espectro na noite deserta do absoluto e da ciência, daí não segue que esse espectro tenha algo de comum com a noite onde o seu brilho congelou. Pelo contrário, um conteúdo espectral só existe verdadeiramente nessa qualidade se o meio que o contém passa a definir‐se pela intolerância àquilo que nele surge como um crime. No que respeita à ciência, para qualificar a parte excluída é necessária a sua repulsa representada com a maior força possível. Qualificação esta comparável à carga afetiva de um elemento obsceno, que apenas há‐de sê‐lo com a
proibição que lhe atribuíram. Enquanto se não dá a exclusão formal, um enunciado mítico pode ainda assimilar ‐se a outro, racional, pode ser descrito como real e metodicamente explicado. Ao mesmo tempo perde, porém, a qualificação espectral, a sua falsidade livre. Como sucede nas religiões imperativas reveladas, entra em conjuntos místicos que têm por fim escravizar ferozmente os homens miseráveis a uma necessidade econômica; ou seja, e sem nenhum apelo, a uma autoridade que os explora. É verdade que uma tal operação seria hoje inconcebível, uma vez que o desenvolvimento próprio da ciência limitou as suas possibilidades. A partir de uma concepção mística do universo, a ciência separou os elementos que o constituem por duas classes profundamente distintas: por assimilação elaborou‐lhe as partes carenciadas e práticas, transformando uma atividade mental, que até ali só era o instrumento da sua exploração, em instrumento útil à vida material do homem. Ao mesmo tempo teve que afastar as partes delirantes das velhas construções religiosas, para as destruir. No entanto, este ato de destruição transforma‐se em libertador na parte final do desenvolvimento: o delírio foge à necessidade, repele o seu manto pesado de servidão mística, e só assim, nu e lúbrico, dispõe, como se fossem brinquedos, do universo e das suas leis.
III. O OLHO PINEAL Partindo destes dois princípios e supondo a primeira condição preenchida, ao menos numa grande parte, o que implica conhecimento científico dos objetos visados, nada consegue travar a descrição fantomática e aventureira da existência. O que resta dizer sobre a forma de onde emana esta descrição — e que relações há entre o descritivo consumado e um objeto — só pode constituir reflexão acerca da experiência feita. Localizado ao meio e no alto do crânio, o olho que se abre ao sol incandescente a contemplá‐lo numa solidão sinistra, não é produto do entendimento mas de uma existência imediata: abre‐se e fica cego como um poder destrutivo ou febre que devora o ser, a cabeça mais exatamente, e faz assim o papel de incêndio numa casa; em vez de guardar a vida como ao dinheiro o cofre, vai a cabeça gastá‐la sem freio, pois recebeu o poder elétrico das pontas no final dessa metamorfose erótica. Esta grande cabeça é figura e luz desagradável da noção de gasto, mas além‐ noção vazia, ainda, e tal como é elaborada a partir da análise metódica. Acolhido, o mito identifica‐se com a vida, mas com a perda da vida também — com a decadência e a morte. De modo algum é produto externo ao ser que o concebeu, antes forma que ele assume nos seus lúbricos avatares, na dádiva
extática que faz de si mesmo enquanto vítima nua e obscena — e vítima que o não é perante um imaterial e obscuro poder, mas a enorme gargalhada das prostitutas. A vida já não parece um percurso definido de um sinal prático ao outro, mas uma doentia incandescência, um perdurável orgasmo.
IV. OS DOIS EIXOS DA VIDA TERRESTRE Por mais ofuscante que seja, já não direi a representar mas consumir até ao esgotamento o ser, a aparência indistinta e primeira que ele teve, pode a forma mítica passar de conteúdo a contentor, a uma forma circunstancial que embora irrecebível, provavelmente, pela ciência, não parece diferir das habituais construções do entendimento. A repartição das vidas orgânicas pela superfície do solo deu‐se em dois eixos, vertical um deles, que prolonga o raio da esfera terrestre, e o segundo horizontal e perpendicular ao primeiro. Os vegetais desenvolvem‐se quase todos no eixo vertical (também da queda dos corpos); e os animais num eixo que é ou tende a ser, pelo contrário, horizontal. Todavia os animais, de movimentos que não passam, na sua maior parte, de um escorregar paralelo às linhas traçadas pela rotação terrestre, nunca são alheios de todo ao eixo da vida vegetal. Assim é que a vida, mal nascem, e de forma relativamente contínua a saída do sono e o amor, levam‐nos a levantar‐se do chão (ao contrário da noite e da morte que fazem os seus corpos abandonar‐se a uma força dirigida de cima para baixo). Mesmo em casos os mais regulares, têm esqueleto que não é de sujeição perfeita ao trajeto horizontal: o crânio, com ele o orifício dos olhos, está acima do nível da vértebra anal. E ainda assim, referido que seja à posição de coito masculina e à estrutura de alguns pássaros, nunca atinge a verticalidade integral.
V. SITUAÇÃO DOS CORPOS E DOS OLHOS HUMANOS À SUPERFÍCIE DO GLOBO TERRESTRE Só o ser humano, ao preço de um esforço doloroso e reles que o rosto dos grandes símios traduz, soube fugir da horizontalidade calma e animal, conseguiu apropriar‐se da ereção vegetal e em certo sentido deixou polarizar‐se pelo céu. Por isso a Terra de regiões imensas, coberta desses vegetais a fugir dela em todo o lado e que não param de ofertar‐se e destruir‐se, projetar‐se no celestial vazio ora inundado de luz, ora noturno, também entrega à decepcionante imensidão do espaço o conjunto de homens tomados de riso ou amargura.
Nesta libertação do homem, que acede na superfície de um globo à sufocante inexistência de limites, está longe a natureza humana de fazer sem resistência a sua entrega. E se é verdade que o seu sangue, os seus ossos e os seus braços, o remoinho do prazer (ou mesmo o silêncio da verdadeira angústia); se é verdade que o riso já senil e o ódio baço constantemente se perdem e levantam a um céu tão belo como a morte, tão claro e tão inverossímil como a morte, os olhos, esses continuam a prendê‐lo às coisas vulgares com os fortes laços que a necessidade usa para determinar‐lhe os passos. O eixo horizontal da visão, que a estrutura humana estritamente observou ao longo de um rasgar e resgatar do homem que rejeita uma natureza de animais, é expressão de miséria tanto mais pesada quanto, em aparência, se confunde com a serenidade.
VI. A ÁRVORE-VERTIGEM Esta contradição de eixos da estrutura humana não tem nenhum sentido para o antropólogo, a quem só resta verificá‐la. E se acaso lhe destaca a importância, sem sequer poder explicar‐se, denuncia apenas uma injustificável tendência para o misticismo que existe dentro de si. Descrever os eixos perpendiculares só tem razão de ser se o jogo pueril de uma vida mitológica começa a poder construir‐se com eles: sem dar já resposta à observação, ou à dedução, mas desenvolvimento livre de relações entre a consciência imediata e variada da vida humana e os dados que se consideram inconscientes mas são constitucionais dessa vida. Por isso ao destacar‐se da horizontalidade do sistema da normal visão ocular, o olho pineal surge numa espécie de nimbo de lágrimas; como olho de uma árvore, ou antes, árvore humana. E esta árvore ocular ao mesmo tempo não passa de um grande pênis cor‐de‐rosa (ignóbil) embriagado de sol, que sugere ou solicita um mal‐estar: a náusea, o enjoativo desespero da vertigem. Nessa transfiguração da natureza, durante a qual até a visão que a náusea incita é dilacerada e de lá extraída pelas cintilações de sol que ela cativa, a ereção deixa de ser levantamento penoso ao rés do solo e transforma‐se num vômito de insípido sangue, em queda vertiginosa no espaço do céu, acompanhada de um horrível grito.
VII. O SOL Tal como o cadáver no fundo do poço, situado ao fundo do céu o Sol responde a este grito desumano com o atrativo espectral da podridão. A natureza
imensa parte as cadeias e vai afundar‐se no vazio sem limites. Um pênis cortado, mole e sangrento substitui‐se à ordem natural das coisas. Nas suas dobras, onde ainda há magoados maxilares que mordem, acumulam‐se pus, baba e larvas que enormes moscas foram lá deixar: fecal como o olho que pintaram no fundo de um vaso, este Sol que passou a cintilar com um brilho cedido pela morte, sepultou a vida nas pestilências da noite.
VIII. O JESÚVIO O globo terrestre fez‐se enorme como um crânio calvo em cujo centro o olho, aberto ao vazio, é vulcânico e lacustre ao mesmo tempo. Entre refegos fundos de carne peluda vai estendendo uma paisagem desastrosa e o pêlo dos seus matagais inunda‐se de lágrimas. Mas os sentimentos perturbados de uma decadência ainda mais estranha do que a decadência da morte não vão buscar a sua origem num cérebro que é igual aos outros: só lentos intestinos se comprimem por baixo dessa carne nua, tão afetada de obscenidade como um traseiro, e ao mesmo tempo satânica como as nádegas de Igual forma nuas que uma jovem feiticeira mostra ao céu completamente negro, no instante em que a sua base vai abrir‐se para lá cravarem um archote em chamas. O grito de dor arrancado a esta cratera cônica febril soluço de ribombo de trovão. O olho fecal do sol arrancou‐se, também, a estas entranhas vulcânicas; e a dor de um homem quando arranca os olhos a si próprio, e com os seus próprios dedos, não será mais absurda do que este parto anal do sol.
IX. O SACRIFÍCIO DO GIBÃO O intolerável cantar dos galos tem solar significado pelo orgulho, pela sensação de triunfo no homem quando vê em pleno céu as suas próprias dejeções. De igual forma um imenso amor equívoco, tão suave como o espasmo de uma rapariga, abandona‐se, atira‐se durante a noite a um universo gigante ligado à sensação íntima de ter urinado as estrelas. Para renovar este pacto que é brando e liga à natureza o ventre, uma apodrecida floresta faz oferta das suas enganadoras latrinas onde animais pululam, coloridos ou peçonhentos insetos, vermes e passarinhos. A luz solar decompõe‐se na ramaria alta. Uma inglesa que se transfigura pela cabeleira aureolada e loura, entrega o corpo admirável à lubricidade e à imaginação de vários homens nus que
um espantoso cheiro a podre eleva ao êxtase. Os seus lábios úmidos abrem‐se ao beijo como um pântano sereno, como um rio que em silêncio corre, e os olhos submersos de prazer perdem‐se como a boca, e tão intensamente como ela. Levanta o maravilhoso rosto carregado de cintilações acima dos animais humanos que a manipulam entre si e passam, abre os grandes olhos a uma cena cheia de loucura. Perto de uma fossa redonda, francamente aberta na vegetação exuberante, um gibão‐fêmea de grande corpulência está a braços com três homens que tentam amarrar‐lhe o corpo a poder de cordas: tem o rosto ainda mais estúpido e ignóbil do que é hábito, dá inverossímeis gritos de susto a que respondem outros de macacos mais pequenos empoleirados na ramaria alta. Amarrada como uma galinha, ou seja, com as pernas dobradas contra o corpo, os três homens vão descê‐ la e prendê‐la de cabeça para baixo a um pau cravado ao meio da fossa. Nessa posição a boca engole terra à mistura com os seus gritos bestiais, e a grande protuberância anal ao contrário, de cores‐de‐rosa muito vivos, fica a olhar o céu como se fora uma flor (a extremidade da estaca foi introduzida entre a barriga e as pernas dobradas): só essa parte, de uma obscenidade capaz de siderar de espanto, ultrapassa o nível da fossa. Preparativos terminados, os homens e as mulheres presentes rodeiam a fossa (na verdade, além da inglesa há outras mulheres, e não menos do que ela entregues à orgia): todos nus, desvairados todos com a atividade do prazer (esgotados de volúpia), ávidos, sem fôlego já, e muito enervados... Todos, à exceção da inglesa, agarraram em pás — a terra para entulhar a fossa está distribuída à volta. O gibão reles em postura reles, continua a dar terríveis gritos, e todos, a um sinal da inglesa, começam a encher de terra a fossa e por fim a espezinhá‐la com extrema rapidez e frenesi: num abrir e fechar de olhos o animal fica enterrado vivo. Faz‐se um relativo silêncio; nenhum destes olhares assombrados deixa de prender‐se à protuberância imunda e solar de tão bela cor sangrenta, que sai da terra e assim, tão ridícula, estremece em sobressaltos de agonia. E nessa altura é que a inglesa estende sobre a fossa cheia o esguio corpo nu de encantador traseiro: aflorada com formosos dedos brancos, a mucosa carne daquele crânio calvo um tanto sujo de merda na raiada flor do cume, ainda é mais inquietante. Todos os outros retêm ali à volta o seu grito, e limpam o suor; têm os dentes a morder os lábios; das suas bocas excessivamente perturbadas chega a correr uma leve baba: contraído pela sufocação e pela morte também, o belo furúnculo de carne vermelha acendeu‐se com mal‐cheirosas e escuras labaredas ........................................... Como a tempestade que rebenta e, depois de alguns minutos de espera insuportável, devasta todo um campo em ambiente meio escuro, com trombas de
água loucas e trovoada, a própria vida está agora a vacilar e, com essa mesma forma doentia e profundamente perturbada (é verdade que usando sinais bem mais difíceis de discernir) atinge um nível onde só existe vazio alucinante, um cheiro a morte que nos fica na garganta. Na realidade já não é banal cadáver mas JESÚVIO pestilento aquilo que a boca da inglesa (lançado que foi o pequeno, o pueril vômito) esmagou com ardentes beijos da maior ternura: o ruído insólito propagava‐se na carne e estalava, misturado a outro, de entranhas, que até enojava. Estas circunstâncias inauditas tinham libertado orgasmos, qual deles mais sufocante e ligado a maior espasmo, no círculo dos infelizes que ali estavam a olhar; de gargantas que se estrangulavam em suspiros roucos, em gritos impossíveis, com olhos umedecidos pelo choro brilhante da vertigem .................................... O sol vomitava como um bêbado doente, acima das bocas que se enchiam de gritos cômicos no vazio de um céu absurdo. E assim era que um calor e um espanto inauditos selavam uma aliança: — estafante como um suplício, o nariz que se corta, a língua que se arranca — celebravam núpcias (festejadas a fio de navalha em formosos rabos, cheios de insolência), a cópula do olho fedorento com o sol...
X. O OLHO DE BRONZE As meninas que rodeiam jaulas de animais, no jardim zoológico, não podem deixar de extasiar ‐se com o rabo — tão lúbrico — dos macacos. No seu entendimento pueril, essas meninas, criaturas que apenas parecem existir para estreitar homens — boca a boca, ventre a ventre — nos sítios mais duvidosos que a natureza tem, propõem enigmas de uma perversidade que mal chega a ser burlesca. Não resistem e pensam nos seus próprios rabos, nas suas próprias dejeções que uma deprimente interdição afeta: ultrapassando os varões da jaula, a imagem da sua imundície pessoal como que se oferece na calvície matizada de vermelho ou roxo do ânus de alguns macacos, que chega a ser de cômico esplendor e sufocante atrocidade. Mal se dissipam os delírios mitológicos depois de terem cansado o espírito com uma ausência de relações, desmesura para com as verdadeiras necessidades da vida, os fantasmas expulsos de toda a parte até o sol abandonam à vulgaridade de um bonito dia, dão lugar a formas sem mistério onde é fácil andar sem mais finalidade do que objetos definidos. Basta, porém, o idiota de um macaco na jaula e uma menina encavacada a vê‐lo fazer imundícies, para de repente encontrarmos o bando fugidio de fantasmas cujas gargalhadas obscenas ainda há pouco souberam conferir mais peso a um rabo tão gritante como um sol. Aquilo que a ciência não consegue dar: o significado de exceção, o valor expressivo de um orifício excremencial que ressalta num corpo de pêlos como uma
brasa, como um rabo humano sai das cuecas na retrete, e a menina de tal forma vê que só lhe resta abafar um grito. Impelida por uma necessidade, afasta ‐se; corre numa álea e os seus passos estalam a gravilha, não vê sequer as bolas garridas dos seus companheiros, feitas para atrair como qualquer outro colorido intenso. Vai numa correria ao mal‐cheiroso lugar e lá se fecha surpreendida, como a rainha muito jovem se fecha, curiosa, na sala do trono: obscuramente mas com êxtase, aprendeu a conhecer o rosto, o bafo cômico, da morte; só ignora ainda os seus próprios soluços de volúpia que mais tarde, muito mais tarde, vão ligar‐se àquela meiga descoberta... Ao correr da ereção progressiva que vai do quadrúpede ao Homo Erectus, a ignomínia do ar animalesco eleva‐se a proporções horripilantes, desde o lemuriano formoso e de barroquismo leve que se desloca ainda no plano horizontal, até ao gorila. Não obstante, a linha de evolução terminal dirigida ao ser humano dá‐se ao contrário na série das formas, no sentido de uma regularidade cada vez mais nobre ou mais correta: por isso a retidão automática de um militar fardado que atua a vozes de comando, emerge sobre a confusão imensa do mundo animal e propõe‐se ao universo da astronomia como termo. Pelo contrário, se a esta matemática e militar verdade contrapomos o orifício excremencial do macaco, que parece sua compensação inevitável, o universo que parecia ameaçar o esplendor humano com uma forma desagradavelmente imperativa, não recebe mais resposta do que a ininteligível descarga de uma gargalhada... Com a deslocação aos saltos de ramo a ramo, a vida arborícola dos macacos provocou a ruptura do equilíbrio que resulta da locomoção retilínea, e tudo aquilo que procura obscuramente mas sem tréguas saltar para fora do organismo animal, concentra‐se totalmente livre na região do orifício inferior. Esta parte, que nunca se tinha desenvolvido e nos outros animais se escondia sob a cauda, deu rebentos e floriu: fez‐se protuberância calva e berrante, com as mais belas cores da natureza. Impotente desde há muito tempo a ocultar a grande hérnia de carne, a cauda sumiu‐se nos macacos mais evoluídos, nesses que trouxeram o gênio da espécie, e no fim do processo a hérnia pôde abrir‐se em flor com a mais aterradora das obscenidades. O desaparecimento do livre apêndice caudal que é vulgar associarmos, mais do que outra coisa qualquer, ao orgulho humano, de modo algum significa regressão da bestialidade original mas libertação das forças anais — lúbricas, nojentas ao máximo — que apenas encontram no homem expressão contraditória. Sentindo‐se abalada até aos alicerces, a terra deu resposta à duvidosa diarréia da natureza, descarregada na pegajosa penumbra da floresta por tantas e berrantes flores de carne, com uma ruidosa alegria de entranhas, com o vômito de inverossímeis vulcões. Como o ataque de riso que provoca outro, ou o bocejo que em toda a sala faz nascer bocejos, o burlesco da diarréia fecal desencadeou uma diarréia de fogo no céu negro todo devastado por trovões. Com esta magia, ao pé de imensas
árvores de brasa derrubadas uma vez que outra por ventanias de fumo sangrento, e rios de tortuosa lava de um vermelho incandescente que pareciam saídos do mais alto céu e corriam por toda a parte, os grandes símios fugiam numa gritaria pueril e de pêlo chamuscado. Muitos eram apanhados por troncos em fogo e deitavam ‐se aos gritos, de costas ou barriga para baixo; ficavam logo acesos e ardiam como lenha. Uns tantos conseguiam chegar à praia sem árvores, poupada pelo fogo, protegida do fumo por um vento contrário: já não passavam de peitos rasgados e sem fôlego, vultos informes meio consumidos pelo fogo que se levantavam ou gemiam caídos no chão, convulsionados por intoleráveis dores. Perante o espetáculo de lava encarnada — tão esplendoroso como um pesadelo — de lava apocalíptica que parecia saída em sangue dos seus próprios ânus (como os corpos peludos tinham antes expelido, e feito exibição sádica, de ânus imundos — talvez para insultar ou conspurcar o que existe), os pobres bichos transformavam‐se numa espécie de ventres de mulher durante o parto, em qualquer coisa de horrível... A partir do verme, e com ironia, é fácil ver os animais — peixe, macaco, homem — como simples tubo de dois orifícios, o ânus e a boca. As narinas, os olhos, os ouvidos, o cérebro, representam a complicação do orifício bocal; o pênis, os testículos ou os órgãos femininos que lhes correspondem, a do orifício anal. Por isso os violentos impulsos do interior do corpo podem descarregar‐se indiferentemente numa ou noutra extremidade; e de fato vão fazê‐lo ali mesmo, onde a resistência é mais fraca. Qualquer que seja a sua espécie, os enfeites da cabeça têm todos um sentido de generalizado privilégio da extremidade oral; e só lhes podemos contrapor as riquezas decorativas da obscena extremidade dos macacos. Todavia, na grande carcaça de antropóide que um dia se viu erguida em pleno solo e já não balouçada de árvore em árvore, completamente direita e paralela à árvore, os grandes impulsos com exutório livre na região anal passaram a embater numa nova resistência. Devido ao porte direito é que uma tal região deixou de ficar em saliência e perdeu o «poder privilegiado das pontas»: a ereção só poderia manter‐se com esse «poder das pontas» substituído vulgarmente por uma barreira de músculos em contração. Assim foi que obscuros impulsos vitais se viram repentinamente atirados para o rosto e a região cervical: descarregaram‐se cada vez mais frágeis (chegando essas novas formas de descarga, não só a estar adaptadas ao princípio da nova estrutura, à ereção, mas a contribuir para a sua rigidez e força): Além disso, para vasar acréscimos, a extremidade facial assumiu uma parte — relativamente fraca mas significativa — das funções de excreção até ali voltadas, quase todas, para a extremidade oposta, e os homens passaram a escarrar, tossir, bocejar, arrotar, assoar ‐se, espirrar, e a chorar muito mais do que os outros animais, tendo sobretudo adquirido a faculdade estranha de soluçar e rir à gargalhada.
Apesar de substituída pela boca no fim da evolução, apenas a glândula pineal — extremidade do edifício superior — permaneceu em estado de saída virtual, só encontrando o seu sentido (sem o qual se escraviza espontaneamente um homem e a si mesmo reduz à situação de empregado) à custa da confusão mítica: como se fora caso de transformar melhor a natureza humana em valor estranho à sua própria realidade, e deixá‐la assim ligada a uma existência espectral. Relacionada com este último fato é que a metamorfose do grande símio deve representar‐se como inversão respeitante, não só à direção das descargas que o homem faz pela cabeça — dando à cabeça uma existência que diverge completamente da boca, uma espécie de flor aberta numa riqueza de formas a mais delirante — como ao acesso da natureza viva (até então ligada ao solo) à irrealidade do espectro solar. A inversão do orifício do ânus, tal como resulta da passagem da posição agachada à direita, é que dirige a decisiva volta ao contrário da existência animal. O cume calvo do ânus fez‐se enegrecido centro de matagais, da estreita ravina que rachou as nádegas. A imagem em espectro desta mudança de sinal é figurada pela nudez humana — que ficou estranha e obscena — e substitui o peludo corpo dos animais; especialmente com os pêlos da puberdade, que nascem ali mesmo, onde o macaco é glabro. Cercada por uma auréola de morte é que se levanta a criatura assim, pela primeira vez tão clara, tão grande, e não passa, à luz de um sol doente, do celeste olho que lhe falta.
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