bans* magnus enzensberger
C o m pa n i i ia D a s L e t r a s
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sonho da paz mundial e da Europa unificada, harmónica, mais urna vez se esboroou, passado pouco tempo da queda do muro de Berlím e do fim da guerra fria. Nacionalismos e conflitos étnico-religiosos que pareciam soterrados ressurgem com brutalidade insuspeítada. Guerras regionais edodem por todo o mundo, e a ex-lugoslávia é urna ¡mensa mancha de sangue no projeto europeu comunitario. Mas os odios e ressentimentos espalham-se também pelas grandes capitais do Primeiro Mundo, contra trabalhadores ¡migrantes e outros "perigosos invasores". É sobretudo dessa guerra civil cotidiana, nao declarada, "molecular", que nos fala o ensaísta e poeta H. M. Enzensberger, dando conta desse sinistro e gigantesco "ovo da serpente" que a Europa deste fim-de-século conti nua a incubar.
Ressentimentos seculares represados em potes de veneno que a historia destila nos fios de cada tragédia coletiva; ^racio
Ressentimentos seculares represados em potes de veneno que a historia destila nos fios de cada tragédia coletiva; ^racio n a l isi s m o s m i l e n a r e s q u e a t r a v e s s a m o s tempos da razáo, desde as narrativas de Tucídides sobre as guerras do Peloponeso, há 2500 anos, até o sangue de Sarajevo jo j o r r a n d o n a b u s c a v a d e n a r r a d o r e s q u e Ihe pudessem dar algum sentido, o mapa d a e x - lul u g o s lál á v i a e s t rar a c a l h a n d o a s o r r iri r sis i nistramente da retórica de urna Europa unitária: a voz do poeta, crítico e ensaísta Hans Magnus Enzensberger volta aos cen á r ioi o s d a g u e r r a , d e u m c o n t ini n e n t e e m r u ii nas, para lembrar-nos de que o "ovo da serpente" continua a ser gestado, muito perto, talvez até dentro de nós. S a r c a s m o , d ú v i d a e r e v o l tat a : a n t e a s ideologías bem-pensantes da civilizacao e do progresso, o estilo desse genial escritor alemao despoja-se de maneirismos intel e c t u a i s e c e r tet e z a s p r o n t a s p a r a i n t ror o d u z iri r n o s no d r a m a q u e sa o a s g u e r ra s n o s s a s d e cada dia, dos nacionalismos arcaicos redi vivos aos preconceitos raciais, que atualiz a m b r u t a lil i d a d e s d e tit i p o faf a s c isi s tat a e m c a d a esquina das metrópoles do Primeiro Mun do. Diante de um quadro gravemente imp r e v isi s íví v e l — o f i m d a g u e r rar a f rir i a e a q u e da do muro de Berlim, ao contrario das m a isi s o t im i m i s tat a s e x p e c t a t ivi v a s , sós ó f izi z e r a m r e crudescer crises, odios e rivalidades, seja na economía, seja na política, seja na cul t u r a — , a p r ó x i m a v iri r a d a d e s é c u lol o ( e d o milenio) é como um cadinho de violencias m a n i f e s tat a s e lal a t e n t e s q u e p a s s e iai a á d e r ivi v a ,
GUERRA CIVIL
GUERRA CIVIL
HANS HA NS MAGN M AGNUS US ENZEN ENZENSBE SBERGE RGER R
HANS HA NS MAGN M AGNUS US ENZEN ENZENSBE SBERGE RGER R
GUERRA CIVIL Tradugao de “Visdes da guerra civil”: MARCOS BRANDA LACERDA Tradugao de “A Europa em ruinas” e “A grande migragao”: SERGIO FLAKSMAN
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C o m pa n h ia
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Copyright © 1993 by Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main Copyright © 1990, 1992, 1993 by Hans Magnus Enzensberger Títulos origináis: Aussicht Aussichten en a u f den Bürgerkrieg Bürgerkrieg Europa in ruinen Di e gross grosse e Wanderung
Capa: Joäo Baptista Baptista da Costa Costa Ag uiar ui ar
Prepara Prepa racjäo: cjäo: Márcia Copola
Revisäo: Beatriz Bea triz de Cassia Cassia Mendes Carmen S. da Costa
Dados Internacionai Internacionaiss de Cata logad o na Publicafäo (ci p ) (Camara Brasileira do Livro, si», Brasil) Enzensberger, Hans Magnus, 1929Guerra civil / Hans Magnus Enzensberger; tradu^äo Marcos Branda Lacerda Lacerda e Sergio Flaskman — Säo Paulo : Companhia das Letras, 1995. Títulos origináis: Aussichten auf den Bürgerkrieg ; Eu ropa in ruinen ; Die grosse Wanderung. ISBN 85-7164- 456-X 1. Guerra civil i. Título.
95-1614
c d d -303
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índice s para catálogo sistemático: sistemático: 1. Guerra Civil: Sociología 303-64
1995 Todos os direitos desta ediyao reservados á EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rúa Tupi, 522 01233-000 — Sao Paulo Paulo — Telefone: (011) 826-1822 Fax: Fax: (011)826-552 3
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Visóes da guerra civil civil 7 A Europa em ruinas
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A grande grand e migra^áo
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VISÔES DA GUERRA CIVIL
VISÔES DA GUERRA CIVIL
Somente Somente os os bárba b árbaros ros podem pod em se defender. defender.
Nietzsche
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EXCEg EX CEgÁ Á O M ONST ONSTRUOSA, RUOSA, REGRA MONSTRUOSA
Os animais lutam, mas nao fazem guerra. O homem é o único primata que planeja o exterminio dentro de sua própria espécie e o executa entusiásticamente e em gran des dimensóes. A guerra é urna de suas invenyóes mais im portantes; a capacidade de estabelecer acordos de paz é provavelmente urna conquista posterior. As mais antigas tradic'óes da humanidade, seus mitos e lendas heroicas, falam sobretudo da morte e do ato de matar. A luta travada em maior proximidade física nao se devia apenas á simplicidade da técnica de construfáo de armas. Tratava-se também da maior satisfa?ao psíquica obtida em extravasar o odio naqueles que se conhecem, nos vizinhos. Desta for ma, a guerra civil nao seria apenas urna antiga tradi
por urna racionalizado: por um lado foi expandida me diante a introdujo generalizada do servido militar obrigatório e o desenvolvimento tecnológico; por outro, os Esta dos buscaram b uscaram subm eter suas suas guerras guerras a regulamenta^óes de ordem do direito internacional, fixadas por escrito pela primeira vez em 1907 na Segunda Conv C onvenf enfáo áo de d e Haia Haia.. A guer ra civil torna-se sob esta perspectiva a excegáo á regra, urna forma irregular de conflito. Clausewitz ignora-a completa mente em seu manual da arte da guerra. Até hoje inexiste qualquer teoría útil sobre a guerra civil. A confusa realidade extrapola nao apenas as definifóes dos juristas. Também os planejamentos do generalato fracassam diante de urna nova desordem mundial gerada pelo impacto da guerra civil. Com ela, cria-se urna situa^ao antes desconhecida, cujo enfrentamento se choca frontal mente com o atavismo das concepyóes predominantes. An tigás questóes da antropología sao colocadas sob nova luz. O que é mais estranho: matar gente conhecida ou aniquilar um inimigo de quem nao se tem nenhuma idéia, nem mesmo falsa falsa?? Para Para as tripula^oes dos bombard bom bardeiros eiros da Segunda Guerra Mundial o inimigo nao passava de urna abstraía«; as equipes militares de hoje, herméticamente isoladas em posi^oes subterráneas, em alerta permanente e á espera de uma voz de comando, sao insensíveis á mínima percepgáo dos efeitos desencadeados por um eventual apertar de botóes — uma situaf ao táo perversa que faz parecer par ecer normal a mais absurda das guerras civis. É provável que se trate nao de excefáo, mas de regra, o que leva o homem a extermi nar o que odeia. Esse papel é representado habitualmente pelo rival no próprio território. Há uma correlagao nao es clarecida entre o ódio ao próximo e o odio ao desconhecido. O outro desprezado é originalmente o vizinho. Apenas com a forma^áo de coletividades maiores declara-se como inimigo o desconhecido além da fronteira. 10
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VELH LHAS AS DIVI DI VIDA DAS S, NOVAS NO VAS M ASSAS
Com o fim da Guerra Fria, assistimos também ao fim do idilio poderosamente protegido das nafóes ocidentais. O equilibrio aflitivo proporcionado pela p a x a t ó m i c a nao na o existe mais. Até 1989, duas inconciliáveis superpoténcias nucleares opunham-se frontalmente, e a Alemanha dividi da era o ponto de confluencia dessa confrontado. As angústias criadas por essa frágil situado já estáo meio esquecidas. Em seu lugar surgiram outras. O sinal mais visível do fim da ordem mundial bipolar sao as cerca de quarenta guerras civis declaradas atualmente em curso em todo o mundo. Nem mesmo é possível precisar seu número, já que o caos nao se deixa quantificar. Tudo indica que no futuro esses conflitos tendem a multiplicar-se, nao a reduzir-se. Ninguém estava preparado para essa transformado radical. Ninguém sabe o que fazer. É possível que esteja mos diante de urna nova fase da política. Para compreendé-la, é necessária urna revisáo das guerras civis do passado. A Alemanha talvez nao tenha jamais se recuperado da mais longa e pesada guerra por que passou. A guerra dos Trinta Anos, que custou a vida de dois tercos de sua popu lado, foi urdida e conduzida pelos poderes de Estado. O mesmo vale para as grandes guerras civis da modernidade: a luta entre o Sul e o Norte dos Estados Unidos, dos Brancos e Vermelhos na Rússia, e da Falange espanhola e Repu11
blicanos. Em todos esses casos havia exércitos organizados e frentes de combate; de seus quartéis-generais, as instan cias centrais de com ando buscavam conduzir suas tropas ri ri gorosamente à execuçâ exe cuçâoo ordenada de suas suas intençôes estra estra tégicas. Paralelamente ao comando militar existia o poder
blicanos. Em todos esses casos havia exércitos organizados e frentes de combate; de seus quartéis-generais, as instan cias centrais de com ando buscavam conduzir suas tropas ri ri gorosamente à execuçâ exe cuçâoo ordenada de suas suas intençôes estra estra tégicas. Paralelamente ao comando militar existia o poder político, voltado a objetivos definidos com nitidez e habili tado a atuar como parte negociadora. Mas enquanto a guerra de Estado clássica tende à monopolizaçâo do poder, fortalecendo o aparelho de Estado acima de todos os níveis, na guerra civil existe a ameaça permanente do colapso da disciplina e da desagregaçâo das milicias em bandos armados que operam segundo os próprios designi d esignios. os. Warlords individuáis proclamam a própria independência; governo e quartel-general perdem respectivamente o controle co ntrole político e militar militar sobre as turbas turbas beligerantes. beligerantes. Ao contrário, a maneira como decorreram as guerras nos e u a , México, China e Rússia mostra que ambas as partes mantinham-se em condiçôes de negociar, vencer ou capitular; tais guerras acabavam por consolidar um novo regime, um poder de Estado central que passava a controlar o territorio pelo qual se havia lutado. E urna questáo em aberto se as atuais guerras civis admitem essa perspectiva. Na era do imperialismo náo houve um conflito sequer que nào tivesse alcançado imediatamente urna dimensao internacional. A chamada Realpolitik providenciava para que cada guerra civil fosse insuflada e instrumentada por forças externas. As partes confutantes serviam como figuras de um jogo jog o mais abrangente. Para Para as grandes poténcias tratratava-se da expansao de seu campo de influência e de seus impérios coloniais. Basta lembrar os múltiplos ataques americanos e europeus na China, as intervençôes que se seguiram ao Golpe de Outubro dos bolcheviques ou a Guerra Civil Espanhola, que nào sem razâo foi interpretada 12
como ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial. As superpoténcias insistiram nessa lógica ainda nos anos 70. Elas mantinham guerras por meio de agentes substitutos e intro-
como ensaio geral para a Segunda Guerra Mundial. As superpoténcias insistiram nessa lógica ainda nos anos 70. Elas mantinham guerras por meio de agentes substitutos e intrometiam-se em todo conflito que pudesse trazer-lhes as vantagens de um jogo sem vencedores. Empenhavam-se para que tais conflitos atingissem quase o limiar de urna Terceira Guerra Mundial. Com o fim da Guerra Fria e o colapso da Uniáo Sovié tica essa forma de política exterior perdeu o sentido. Nao apenas em Moscou e Beijng, mas também em Washington, comentava-se que a ajuda fraterna trazia mais prejuízos do que beneficios. Os vencedores económicos das últimas dé cadas foram as nagóes que nao participaram desse jogo. A antiga Realpolitik encontra-se entre as ruinas de um pensamento imperial imperial que pertence perten ce ao século xix e com o qual na da mais poderá ser ganho no mercado mundial. A guerra, o meio mais simples de enriquecimento no passado, passou a ser um mau negocio. O capitalismo reconheceu que o massacre organizado oficialmente nao gera lucro bastante. Obviamente, o entusiasmo pela política de paz manifestado pelos governos dos países industriali zados nao se deve a urna súbita conversáo moral, mas a urna estratégia formulada com frieza. O capital como ins trumento de paz passa a ser urna visao insólita. Sem dúvida, alguns ainda esperam da guerra prósperos índices de crescimento económico. Mas a exportado de armamentos movimenta apenas 0,006% de todo o mercado mundial. O comércio de armas decaiu para a condígáo de fonte secundária de receita, que ainda pode ser submetida a certas limitafóes. Países assolados pela guerra civil deixam de aprese apresenta ntar, r, com o tempo, crescimento econ ómico. ómico . Eles sao punidos com a suspensáo de investimentos. As missóes de paz das das Nagóes Nagóes Unidas Unidas sao a expressá ex pressáoo política política desse des se recoreco nhecimento tardío. As guerras civis atuais surgem esponta13
neamente, de dentro para fora. Nao necessitam mais da par ticipado das potencias externas para assumir maiores proporgóes. Até há pouco, elas ainda continham o germe da luta pela libertado nacional ou do levante revolucionário.
neamente, de dentro para fora. Nao necessitam mais da par ticipado das potencias externas para assumir maiores proporgóes. Até há pouco, elas ainda continham o germe da luta pela libertado nacional ou do levante revolucionário. Apenas com o término da Guerra Fria passaram a mostrar sua verdadeira face. A guerra civil do Afeganistao é um exemplo disso. Enquanto o país era ocup ado pelas tropas tropas soviéticas, soviéticas, o confliconflito podia ser interpretado interpretado segundo o modelo mod elo mundial mundial da didivisáo em dois blo cos. cos . A guerra foi instrumentada instrumentada pelas duas partes: Moscou apoiava seu lugar-tenente e Washington dava sustentado aos mudschahedin anticomunistas. Parecía tratar-se de libertado nacional, de resistencia contra o estrangeiro, o opressor, o incrédulo. Mas Mas assim que os inva sores se foram irrompeu a verdadeira guerra civil. Nada restou daquele verniz ideológico. A intromissáo estrangeira, a integridad integridadee nacional, a verdadeira verdadeira cren cr enfa fa — tudo isso se revelou um mero pretexto. A guerra de todos contra todos tomou seu curso. Processos semelhantes podem ser observados em to do o mundo: na África, na india, no Sudeste asiático, na América Latina. Nada restou da aparéncia heroica e sagra da de partisans, partisans, rebeldes rebeld es e guerrilheiros. guerrilheiros. Outrora, guerrilha guerrilha e antiguerrilha tornavam-se independentes, altamente ar madas em termos ideológicos e contavam com a retaguar da de aliados estrangeiros. Restaram massas amorfas arma das. Todos esses autodenominados exércitos de libertado, frentes e movimentos populares degeneraram em bandos doentios difícilmente diferenciáveis de seus adversários. O confuso alfabeto com que se omam ( f ln l n a o u a n l f , m pl p l a ou m n f l ) nao consegue esconder que existe um objetivo, um projeto, urna idéia que os unifica. A estratégia, pouco dig na de tal denominado, é, de fato, o roubo, o assassinato e a pilhagem. 14
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A GUERRA CIVIL MOLECULAR, A PERDA PERDA D E CONV CON VICTA O
Lancemos um olhar sobre o mapa-múndi. mapa-múndi. Podemos Pod emos lo calizar as guerras em regióes longínquas, principalmente no Terceiro Mundo. Falamos de subdesenvolvimento, ana cronismo, fundamentalismo. Parece-nos que a incompreensível luta transcorre a grande distancia. Mas isso é engano. Há muito que a guerra civil penetrou ñas metrópoles. Suas metástases pertencem ao cotidiano das grandes cidades, nao só de Lima Lima e Johannesbu Johan nesburg, rg, de Bombaim Bom baim e Rio Rio de Jane Ja neir iroo , mas de París e Berlim Ber lim,, Detroit De troit e Birmingh Birm ingham, am, Milao e Hamburgo. Déla nao participam apenas terroristas e agentes secretos, mañosos e skinheads, traficantes de dro gas e esquadróes da morte, neonazistas e seguranzas, mas também cidadáos discretos que á noite se transformam em hooligans, incendiários, dementes violentos e serial killers. Como ñas guerras africanas, esses seres mutantes sao cada vez mais jovens. Enganamo-nos em acreditar que vivemos em paz só porque podemos ir á padaria sem que sejamos atingidos pelos disparos de um franco-atirador. A guerra civil nao vem de fora; nao é um virus adqui rido, mas um processo endógeno. E sempre desencadeada por uma minoría; provavelmente, basta que um cidadáo em uma centena a deseje para tornar impossível a vida ci vilizada em coletividade. Ainda prevalece nos países indus trializados uma grande maioria que prefere a paz. Nossas 15
guerras civis ainda nào chegaram a comover as massas: elas sao moleculares. Mas, como mostra o exemplo de Los An geles, podem alastrar-se repentinamente.
guerras civis ainda nào chegaram a comover as massas: elas sao moleculares. Mas, como mostra o exemplo de Los An geles, podem alastrar-se repentinamente. Mas pode-se comparar o tchetnik ao dono de um bre chó texano que, armado de urna pistola automática, sobe numa torre e dispara sobre a multidáo? Pode-se comparar o líder de urna quadrilha na Libéria a um s k i n h e a d que destroça urna garrafa de cerveja na cabeça de um passivo apo sentado, ou um membro dos autónomos de Berlim a um guerrilheiro das selvas do Cambodja? Ou, ainda, a máfia da Tchetchénia ao Sendero Luminoso? E, finalmente, pode-se comparar tudo isso à normalidade de urna cidadezinha da Alemanha, França ou Suécia? É o discurso sobre a guerra ci vil urna generalizaçâo vazia, um mero disseminador de pá nico? Temo que, apesar das diferenças, haja um denomina dor comum a essas manifestaçôes. O que nos chama a atenatençâo em todas elas é o caráter autista dos criminosos, assim como sua incapacidade de distinguir entre destruiçâo e autodestruiçâo. Nas guerras civis do presente esvaiu-se a legitimidade. A violéncia libertou-se completamente de funda m e n ta le s ideol deológ ógiicas. as. Comparados aos atuais, os combatentes do passado eram homens crédulos. Davam grande valor a matar ou morrer em nome de algum ideal; mantinham-se ligados “inflexivelmente”, “férreamente”, “fanaticamente” etc. ao que se considerava outrora urna visao de mundo, ainda que fos se a mais abjeta. Com os olhos reluzentes, os partidários de Hitler e Stalin seguiam o evangelho de seus guias e, quando se tratava de seus ideáis, nenhum crime lhes parecía de masiado grande. Os guerrilheiros guerrilheiros e terrorista terroristass dos anos 60 6 0 e 70 7 0 recon r econheheciam, da mesma forma, a necessidade de se justificar. Utili zando panfletos e proclamaçoes, catecismos pedantes ou 16
confissôes formuladas burocráticamente, apresentavam as razóes ideológicas de seus atos. Para os criminosos de ho je isso iss o p arec ar ecee inocuo ino cuo.. O que qu e cham cha m a a aten at ençâ çâoo nele ne less é a to
confissôes formuladas burocráticamente, apresentavam as razóes ideológicas de seus atos. Para os criminosos de ho je isso iss o p arec ar ecee inocuo ino cuo.. O que qu e cham cha m a a aten at ençâ çâoo nele ne less é a to tal ausência de convicçâo. Os guerrilheiros latino-americanos nao se incomodam em chacinar os mesmos camponeses em cuja luta por libertaçào eles estariam supostamente engajados; conluios com os baróes da droga ou com agentes secretos nao lhes parecem problemáticos, mas naturais. O terrorista irlandés utiliza-se de aposentados como bombas vivas e manda para os ares carrinhos de bebés. As vítimas preferidas dos combatentes das guerras civis sâo mulheres e crianças. Nào é exclusividade de um tchetnik orgulhar-se do massacre dos ocupantes de um hospital: em todo o mundo ocorre o ex terminio terminio de indefesos. Quem nao n ao possui uma uma pistola pistola é con co n siderado um verme. Os protagonistas sâo quase exclusivamente jovens. Seu comportamento mostra a força do processo de degradaçào do patriarcado. Entre suas tradiçôes estavam as confrarias masculinas. Elas tinham a tarefa de canalizar me diante rituais de iniciaçào a concentraçâo de energía própria à juventude, originada pelo excesso de testosterona, e sua sede de crime e sangue. Exigia-se do macho emergente provas de coragem e exibiçôes de força física. Um código de honra era mantido estritamente. A regra fun damental era de que o desafiante, fosse ele samurai ou mocinho de faroeste, bandido ou rebelde, se medisse com alguém forte e perigoso ou, no mínimo, em relaçâo de igualdade. Essa concepçào é desconhecida dos criminosos de hoje. Revela-se um novo tipo de masculinidade. Poderse-ia chamar sua honra de covardia, embora isso seja uma superestimaçâo. A mera mera disti d istinçào nçào entre coragem co ragem e covardia já lhes lhe s é inco in com m preen pr eensív sível el — um sinal de autismo autis mo e da perper da de convicçâo. 17
Esses defeitos peculiares transparecem com c om maior niti niti dez onde ainda subsistem restos das antigas justificativas ideológicas. É o caso das guerras civis desencadeadas sob
Esses defeitos peculiares transparecem com c om maior niti niti dez onde ainda subsistem restos das antigas justificativas ideológicas. É o caso das guerras civis desencadeadas sob o nome de conflitos étnicos, sejam eles quais forem. Trata se nesses casos de meros trapos do guarda-roupa de costumes da historia, demonstrado já no d é c o r de opereta prefe rido pelos novos detentores do poder. O discurso dos propagandistas é de segunda ou terceira mao. O lixo ideo lógico produzido, por exemplo, pela academia sérvia deveria simular convic^óes, mas mesmo uma visao fugaz da realidade mostra que as quadrilhas nao necessitam desses pretextos. Talvez seja necessário lembrar que as lutas do século xix que levaram á formagáo dos Estados nacionais nao consistiam em brigas irracionais. Quem pensa apenas no re pugnante patos chauvinista que lhes dava sustentado nao se dá conta das conquistas construtivas do nacionalismo europeu cunhado no passado. Apesar de tudo, ele deu origem a constit constituid uidoes oe s que q ue aboliram as distingóes distingóes de ordem fí sica, emanciparam em anciparam os o s judeus e introduz introduziram iram o Estado de direito e o direito de voto generalizado. Inovagóes desse tipo sao completamente estranhas á mentalidade dos membros de quadrilhas atuais. Os nacionalistas de longe interessamse apenas pelo poder de destruido imánente as diferemjas étnicas. O direito de autodeterminagáo do qual falam nao passa do direito de determinar quem deve ou nao sobreviver em determinado territorio; para eles trata-se do simples exterminio de vidas “sem valor”, e isso é tudo. Para os guerrilheiros de Angola, Somália ou Cambodja nada poderia ser mais indiferente do que a sorte de seus pretensos irmáos de tribo; eles nao sentem nada ao arruiná-los, explodi-los ou submeté-los as maiores adversidades. A substancia substancia ideológica ideológ ica do fundamentalismo islámico é provavelmente muito mais pifia do que se acredita no Oci18
dente. Pode-se ouvir de qualquer mugulmano inteligente que ele nada tem a ver com a alta religiáo da historia. Trata se hoje de urna reafáo radical á pressáo pela modernizado,
dente. Pode-se ouvir de qualquer mugulmano inteligente que ele nada tem a ver com a alta religiáo da historia. Trata se hoje de urna reafáo radical á pressáo pela modernizado, expressa na ultrajante caricatura de Saddam Hussein posan do de mugulmano crédulo. Existem semelhan^as na maioria dos regimes de Magreb e do Oriente Próximo. Eles combatem o Ocidente, apesar de sonhar intensamente com suas conquistas mais mortais: mísseis, bombas atómicas e fábri cas de gás tóxico. As diversas seitas, fac^óes e milicias fundamentalistas ambicionam sobretudo o poder de exercer a opressáo sobre seus companheiros de credo. Também aqui o que se vé nao tem relado com convicfóes verdadeiras, mas com copias distorcidas de modelos passados. A guerra civil molecular das metrópoles está igualmen te esvaziada de fundamentos ideológicos. As guerras de quadrilhas nos guetos norte-americanos nao se encaixam no esquema das históricas lutas de classe. O modelo de in terpretado baseado na oposigáo entre brancos e negros tornou-se do mesmo modo insuficiente. As vítimas de assaltos, pilhagens e assassinatos sao sobretudo os próprios negros. Em Los Angeles, o alvo da revolta nao foram os bairros das requintadas vilas residenciáis; os criminosos atearam fogo principalmente as instalares de sua própria community, entre as quais a mais antiga livraria norte-ame ricana, entáo de posse dos negros, e o escritório do políti co local mais atuante. Na luta de gangues atiram por toda parte perdedores contra perdedores. Passemos agora aos nossos próprios participantes da guerra molecular, chamados de radicais de direita ou neonazistas. Com tais títulos, acredita-se saber o que se pode esperar deles. Mas também aqui a ideología é urna másca ra. O assassino juvenil que sai á cafa de indefesos, quando se indagam seus motivos, fornece as seguintes declarares: ‘Nao pensei em nada”; “Estava entediado”; “Nao sei por 19
qué (!), mas os estrangeiros me davam urna sensa^áo desagradável”. Isso basta. Ele nao sabe nada sobre o nazismo. A historia nao lhe interessa. A suástica e a saudagáo a Hitler sao requisitos acessórios. A forma de vestir-se, sua música
qué (!), mas os estrangeiros me davam urna sensa^áo desagradável”. Isso basta. Ele nao sabe nada sobre o nazismo. A historia nao lhe interessa. A suástica e a saudagáo a Hitler sao requisitos acessórios. A forma de vestir-se, sua música e seus vídeos sao quase qua se exclusivamente americanos. A banbandeira de guerra do Reich é empunhada usando-se jeans e camiseta. Chamando-se a si próprio de skinhead, o delin quiente utiliza-se orgulhosamente de urna expressáo ingle sa. A animagáo dentro do movimento está a cargo de bands, compactdiscs e fa f a n z i n e s . “Deutschtum ” [Germanidade] nao passa de um slogan sem qualquer conteúdo, pa ra ocupar apenas espatos vazios do cérebro do usuário. Esse tipo de criminoso dedica-se a esbofetear turcos e vietnamitas, mas também aleijados, mendigos, débeis men táis, anciás e escolares, ou mesmo, se nao lhe faltasse coragem, alemáes ocidentais ou orientáis, conforme a posigáo geográfica do lugar onde vai levando sua vida ruidosa. A escolha entre germanidade e motocicleta, pátria e discote ca nao lhe causaría constrangimento. Já que seu futuro nao possui valor algum, nao é de admirar que ele nao dé a mí nima para as coisas de seu próprio país. O mesmo se aplica ao radicalismo de direita em sua configurado política. Que o cántico da alegría sobre a faléncia do comunismo nao permita que se incorra no erro de pensar que o projeto da direita tenha se extinguido há pouco. Basta que um partido radical de direita chegue as proximidades do poder para que se caracterize o vazio de suas concep^óes políticas. O que se apresenta ai como pro grama é um fantasma, cuja evanescéncia revela-se ante os mais simples fatos económicos. A totalidade dos países in dustrializados está altamente integrada em um mercado mundial e é dependente dele por completo. Autarquía de cunho nacionalista, homogeneidade racial ou étnica, assim como a adogáo de rumos políticos isolados conduziriam 20
populagóes á fome. Internacionalismo de direita é um contra-senso. Por isso, o que se denomina a “nova direita” nao é capaz de formular sequer urna política coerente para a
populagóes á fome. Internacionalismo de direita é um contra-senso. Por isso, o que se denomina a “nova direita” nao é capaz de formular sequer urna política coerente para a Europa. “A Alemanha para os alemáes”, esse lema nao é apenas urna barbarie tendenciosa. Quem o leva a sério teria que desapropriar grandes empresas estrangeiras e fe char o aeroporto de Frankfurt. Obviamente, nem mesmo os propagandistas propagandistas da direita direita acreditam acreditam no próprio blefe. O desaparecimento total de sua velha “visáo de mundo” deixou para tras apenas a ansia da agressáo vazia.
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ABNEGAÇÂO ABNEGAÇÂO E
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ABNEGAÇÂO ABNEGAÇÂO E A UTODE UTO DES STRUIÇÂO TRUI ÇÂO
O autismo dos combatentes nào é a única particularidade que chama a atençâo em todas as guerras civis mo leculares e regionais. Urna segunda característica é sua abnegaçâo. Com isso, essa palavra adquire um significado completamente novo. Em um livro imprescindivel de 1951, pode-se 1er o seguinte a esse respeito: Provavelmente, jamais faltou ódio ao mundo; no entanto, ele [entâo] evoluiu ao ponto de tornar-se um fator políti co decisivo em todos os assuntos públicos... O ódio nao pode concentrar-se realmente em nada e nao encontrou ninguém que pudesse justificá-lo, fosse o governo, a bur guesía ou as respectivas forças estrangeiras. Desta forma, penetrou em cada poro da vida cotidiana e pode disseminar-se em todas as direçôes e assumir as formas mais fan tásticas e imprevisíveis... Cada um passou a ser contra ca da um e, sobretudo, contra os vizinhos... Mas o que distingue as massas modernas dos bandos [de tempos passados] é a abnegaçâo e o desinteresse no próprio bem-estar... Abnegaçâo interpretada nao como urn urna qualidade positiva, positiva, mas como com o um sentimento sent imento segun do o quai nào se é afetado pelos acontecimentos e podese ser substituido por outro a qualquer momento e em qualquer lugar... Esse fenómeno de urna radical perda de si mesmo, essa indiferença cínica ou enfastiada com que 22
as massas defrontavam-se com a própria destruigao, era completamente inesperado... As pessoas comegavam a sofrer de urna perda do senso comum normal, da capacidade de discernimento, assim como de um fracasso nao
as massas defrontavam-se com a própria destruigao, era completamente inesperado... As pessoas comegavam a sofrer de urna perda do senso comum normal, da capacidade de discernimento, assim como de um fracasso nao menos radical do mais elementar instinto de autopreservafáo. Hannah Arendt analisava o período entre as duas guerras mundiais. Ela descrevia a base popular que levou ao surgimento dos sistemas totalitários. A atualidade de sua análise é evidente. Contudo, diferentemente dos anos 30, os criminosos de hoje nao necessitam de rituais, manifesta r e s públicas, públicas, unif uniforme ormes, s, progra programas mas,, incitamento incitamento ou jur jura a mentos de fidelidade. Eles renunciam inclusive a um Führer. O ódio é suficiente. Se o terror naquele tempo era um monopolio dos regimes totalitários, hoje ele reaparece de forma independente do Estado. Gestapo e g p u tornam-se entidades supérfluas quando seus clones infantis fazem o trabalho com as próprias máos. Desta forma, qualquer trem de metro pode tornar-se urna Bosnia em miniatura. Para um novo pogrom nao se necessita mais de judeus e para uma nova purificado so cial dispensa-se a presenta de indesejáveis contra-revolucionários. Basta que alguém torga para um outro time de futebol, que sua quitanda prospere mais que a do vizinho, que se vista melhor, que fale uma outra linguagem, que precise de uma cadeira de rodas ou que use um len
estupidez, ela nao é suficiente para explicar o impulso pa ra a autodestruigáo em forma de violencia. O nexo existen
estupidez, ela nao é suficiente para explicar o impulso pa ra a autodestruigáo em forma de violencia. O nexo existen te entre causa e efeito é táo evidente que qualquer minoría pode entendé-lo. As lamúrias sobre o aumento do desemprego sao acompanhadas de pogroms que fazem parecer absurdo a qualquer capitalista dotado de razáo investir onde ninguém pode estar certo da própria sobrevivéncia. O mais imbécil dos presidentes sérvios sabe tanto quanto o mais imbécil dos rambos que a guerra civil em que se envolveu pode transformar o país em um deserto económico. A única conclusáo possível é que a automutilagáo coletiva nao é um subproduto inevitável, e sim o objetivo de fato. Os combatentes sabem muito bem que a vitória é inalcangável e que só a derrota os espera. Fazem todo o possí vel para o recrudescimento de suas posigóes e almejam transformar nao apenas o adversário, mas também a si mesmos, na mais pura podridáo. Um assistente social francés informa da periferia de París: “Eles já quebraram tudo, as caixas de correio, as portas, as escadarias. Saquearam e demoliram o hospital em que seus pequeños irmáos e irmás sao tratados de graga. Eles ignoram qualquer regulamento. Arrasam simplesmente consultorios médicos e dentários e escolas. Basta que lhes construam um campo de futebol pa ra que eles o destruam serrando as través”. As imagens de guerras guerras civis civis moleculares e macroscóp ma croscópi i cas igualam-se até nos detalhes. Urna testemunha relata o que viu em Mogadichu. Um jornalista estava presente á destruigao de um hospital por um bando armado. Nao se tratava de uma agao militar. Nada os ameagava; nao se ouviam tiros na cidade. O hospital já estava drásticamente danificado e equipado apenas com recursos de emergéncia. Os criminosos agiram com extrema minúcia. Os colchóes foram rasgados, recipientes de sangue e medicamentos 24
quebrados; depois disso, a quadrilha, em seus disfarces ro tos e sujos, ocupou-se dos equipamentos remanescentes, dando-se por satisfeita somente depois de inutilizar o úni
quebrados; depois disso, a quadrilha, em seus disfarces ro tos e sujos, ocupou-se dos equipamentos remanescentes, dando-se por satisfeita somente depois de inutilizar o úni co aparelho de raio X, o tubo de oxigénio e o esterilizador. Cada um desses zumbís sabia que nao havia previsáo para o término do conflito; todos sabiam que já no dia seguinte suas vidas poderiam depender dos remendos de um médi co. O que os interessava era aniquilar qualquer perspectiva reduct io a d de sobrevivencia. A isso poder-se-ia chamar de reductio insanitatem. No estado de demencia coletiva, ao mesmo tempo assassina e suicida, desaparece a categoría do futu ro. Persiste apenas o tempo presente. Conseqüéncias deixam de existir. Neutraliza-se a atividade reguladora do ins tinto de preservará« da vida. Isso nos remete á especulado de Freud, que no fim nao via outra saída senao postular um instinto de morte que visasse primariamente a aniquilado da própria vida e, se cundariamente, da vida de um estranho — uma hipótese jamais jama is demonst dem onstrad radaa em empí píric ricam amen ente te e que qu e perm pe rman anec ecee n e bulosa. Mas já o conceito de instinto de preservado é pro blemático, para nao se dizer ingenuo. É possível que ele explique o comportamento de plantas e bactérias, mas fracassa na observad0 de seres mais complexos. Ele nao acrescenta nada ao estudo da historia. Afinal, milhóes de pessoas morreram como mártires e santos, heróis e fanáti cos, sem atender ao principio da autopreserva^áo. Pensa dores pessimistas como De Maistre reconheceram o signifi cado central do sacrificio e transformaram a repressáo em virtude. Pode ser que todas as religióes tenham origem no sacrificio humano e, mesmo depois da supressáo da concepdo de Deus, jamais tenham faltado ao homem objeti vos relevantes pelos quais se deva matar ou morrer. Póde se perguntar até se isso que se denomina cultura seria possível sem a capacidade de entrega da própria vida. 25
Certamente, ainda hoje existem homens que atuam com abnegagáo, tomando-se esta palavra em seu sentido antigo: antigo: voluntarios voluntarios dispostos a enfrentar qualquer qualqu er risco pes-
Certamente, ainda hoje existem homens que atuam com abnegagáo, tomando-se esta palavra em seu sentido antigo: antigo: voluntarios voluntarios dispostos a enfrentar qualquer qualqu er risco pessoal, oposicionistas que, como Jan Palach e os anónimos monges budistas da Indochina, defendem suas convicgóes até o ponto de atear fogo a si mesmos, mas também sacer dotes sectários e fanáticos confusos, que vislumbram um além paradisíaco, alcangável mediante a extingáo de suas vidas. Mas nao sao esses poucos que escrevem a historia na guerra, e sim os muitos aos quais nada restou que justificasse o sacrificio realizado. O que confere á guerra civil de ho je urna urna qualida qua lidade de nova nov a e sinistra é que qu e ela se dá sem se m que qu e haja qualquer necessidade de mobilizagáo; isto é, que nela nao se trata absolutamente absolutamente de nada. Com isso, ela se torna um retrovírus da política, desde que vejamos na política náo apenas urna discussáo sobre interesses de poder e re cursos materiais, mas também sobre perspectivas para o fu turo e, portanto, sobre a realizagáo de ambigóes, projetos e ideáis. Embora esse intrincado jogo de interesses tenha transcorrido no passado sempre de forma imprevisível e ra ramente sem derramamento de sangue, as intengóes dos participantes permaneciam mais ou menos calculáveis. Ao contrário, onde náo se atribuí valor algum á própria vida, ou á de outros, isso já náo é mais possível. Com isso, neutraliza-se qualquer pensamento político, de Aristóteles a Maquiavel, de Marx a Weber. Em um mundo entrecortado por bombas errantes resta apenas urna utopia negativa — do mito primevo de Hobbes da luta de todos contra todos.
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BECO BECOS S E LABIRI LABIRINTOS NTOS D E I NTERPRETA NTERP RETA (24O
Diante do incompreensível, é irresistível a tentado de buscar buscar e x p lic li c a re s simpl simples. es. Ning Ningué uém m se surpree surpreende nde de que que políticos e editorialistas déem preferencia as mais iracas das interpretares disponíveis. Eles seguem o esquema político-partidário tradicional. Quem se refere a seus próprios esfor^os pode abreviar o discurso. Oradores conservadores evocam incansáveis um a n den régime imaginário pretensamente dominado pelos bi nomios tradifáo-decéncia, honestidade-ordem. Eles supóem que a origem da selvageria mundial localiza-se nos movimentos de emancipadlo dos últimos duzentos anos e na desintegrado do poder das velhas autoridades. Prome terá a salva^ao por meio do retorno ás virtudes, cujas raízes estariam ñas sociedades patriarcais estratificadas. Compreensivelmente, nao esclarecem como e com quais meios políticos tais idéias possam ser implantadas em uma fase posterior á civilizado industrial. Por outro lado, na visáo da social-democracia, Rous seau triunfou mais uma vez. Ela deixou de estatizar os meios de produfáo, mas instituiu a terapia social. A idéia de que o homem seja naturalmente bom encontra seu último reduto na assisténcia social. Estranhamente, motivos pastorais misturam-se a envelhecidas teorías da sociedade e a uma desnaturada versao da psicanálise. Em sua bondade 27
ilimitada, esses tutores isentam os confusos militantes de qualquer responsabilidade sobre suas atitudes. A culpa jamais recai sobre o criminoso, e sim sobre o meio em que
ilimitada, esses tutores isentam os confusos militantes de qualquer responsabilidade sobre suas atitudes. A culpa jamais recai sobre o criminoso, e sim sobre o meio em que vive: a familia, a sociedade, o consumo, a mídia, os maus modelos. De certa maneira, a cada assassino estende-se um questionário de múltiplas alternativas, que ele pode preencher como melhor lhe aprouver: Mamáe nao me quena; tive professores demasiadamente autoritários/antiautoritários; papai chegava bébado/nunca chegava em casa; o banco encerrou minha conta/ deume crédito demais; meus pais se separaram muito cedo/muito tarde; onde vivi havia muito/pouco tempo de lazer. Por isso nao me restou outra op^áo senáo cometer um atentado/ um roubo/ um assassinato/ dar inicio a um in cendio. (Assinale (Assinale com um x a alternativa correta.) Assim, o crime é abolido da face da térra. Já nao existem mais criminosos, mas apenas casos clínicos. Hoss e Mengele também seriam vistos como vítimas necessitadas de cuidados, a quem deveríamos um tratamento psiquiátri co adequado, devidameñte financiado pelo sistema público de saúde. Questóes moráis advindas dessa lógica estariam exclusivamente a cargo dos terapeutas, já que apenas eles dispóem da compreensáo sobre o drama de seus pacientes. E estes, táo alheios á possibilidade de contribuir sobretudo no que diz respeito a si mesmos, deixam de existir como pessoas e passam a ser apenas objeto de tutela do Estado. Comparadas ao kitsch político desses lugares-comuns, tornam-se plausíveis mesmo as mais grosseiras teorías ma terialistas da crise. No mínimo, elas se baseiam em fatos económicos e sao, portanto, verificáveis. Apenas os idiotas se satisfazem com o argumento de que a análise marxista 28
teria perdido sua legitimidade por ter saído de moda. Nao há dúvida de que, desde que deixou de ser urna visáo do futuro e passou a ser urna realidade global, o mercado
teria perdido sua legitimidade por ter saído de moda. Nao há dúvida de que, desde que deixou de ser urna visáo do futuro e passou a ser urna realidade global, o mercado mundial vem produzindo mais perdedores do que ganhadores. E isso nao se restringe apenas ao Segundo e Terceiro Mundos, mas se estende também aos países capitalistas centráis. Quando nos primeiros naufragam países e conti nentes inteiros no sistema internacional de trocas, aqui sao atingidos contingentes crescentes da populado que nao conseguem acompanhar a acirrada disputa da qualificagao profissional. Imaginando-se um atlas que mostré a distribuido geo gráfica dessas massas “supérflu “supérfluas” as” — isto é, por po r um lado as regióes subdesenvolvidas em suas diferentes gradagóes e, por outro, as zonas de subemprego ñas metrópoles — e comparando-se os lugares que abrigam essas massas á lo calizado das hordas de guerras civis, pode-se notar nítida mente urna correlagáo. Poder-se-ia concluir que violencia coletiva é apenas uma reafáo dos perdedores á sua desesperangosa situad0 económica. No entanto, as conseqüéncias políticas profetizadas pelos teóricos marxistas náo aconteceram. Neste sentido, suas teses mostraram-se falsas. A luta de classes náo se rea liza em ámbito internacional. Ambas as partes da célebre “contradigáo fundamental” evitaram ainda mais uma con frontado global. Os perdedores, muito distantes da idéia de se unirem, trabalham em sua autodestruifáo e o capital retira-se sempre que pode dos cenários de guerra. Ainda que sem garantías de éxito, é necessário nesse contexto frear a crenga renitente de que as relagóes de ex plorado se reduzem a um problema de distribuido, como se se tratasse da divisáo justa justa oü injusta injusta de um b olo ol o de uma dimensáo dada. Deixando-se de lado o fato de que esse cli ché náo se fundamenta na teoria marxista, essa concepdo 29
é simplesmente falsa. Ela se revela de preferencia em afir m a r e s como: “Nós Nós vivemos as custas custas do Terceiro Terceiro Mundo” Mundo”;; nós, isto é, os países industrializados, somos táo ricos por
é simplesmente falsa. Ela se revela de preferencia em afir m a r e s como: “Nós Nós vivemos as custas custas do Terceiro Terceiro Mundo” Mundo”;; nós, isto é, os países industrializados, somos táo ricos por que os exploramos. Quem afirma isso com tanta convícgao mostra mostra muita muita dificuldade dificuldade em lidar lidar com fatos concreto s. Bas Ba s ta relevamos um único indicador: a participado africana na exportado mundial é de 1,3%; a latino-americana, de 4,3%. Economistas que investigaram essa questao duvidam se a populado dos países ricos notaría se os continentes mais pobres desaparecessem do mapa. Esse desequilibrio catastrófico nao pode ser alterado nem mesmo pelas crises de endividam endividament ento, o, pela o sc ila d o de presos de matéri matéria-pr a-priima, pela fuga de capitais e pelo protecionismo. Teorías de que a pobreza se explica apenas por fatores externos sao alimento barato nao apenas á indignado mo ral. Elas possuem urna vantagem a mais: servem para o de sencargo de consciencia dos poderosos do mundo pobre e póem a responsabilidade da miséria exclusivamente sobre os ombros do Ocidente, que, aliás, foi há pouco rebatizado com o nome de “Norte”. Pode-se ouvir de africanos, que se deram conta desse truque, que pior do que ser explorado pelas multinacionais é nao ser explorado por elas. Eles reconhecem o seu principal inimigo nao mais nos centros do capitalismo, mas naqueles gángsteres políticos que há dé cadas arruinam sistemáticamente seus países. Urna pessoa racional nao pode acreditar que os grandes bancos teriam encenado a guerra civil de vinte anos no Tchad, que Idi Amim estaría a servido da c í a e que os tigres támeis seriam meras marionetes do Pentágono. Apesar disso, na Europa mantém-se firme a opiniáo de que nao existem criminosos de fato, mas apenas mentores á distancia. No que tange á guerra civil da Iugoslávia, nao se deveria, segundo esse ra ciocinio, ciocinio , prender dirigentes dirigentes sérvios ou croatas, e sim alguns alguns 30
secretários de Estado em Bonn, supostamente empenhados no renascimento do Grande Império Alemáo. Ilafóes insanas desta ordem desempenham um papel importante também no caso das guerras civis moleculares,
secretários de Estado em Bonn, supostamente empenhados no renascimento do Grande Império Alemáo. Ilafóes insanas desta ordem desempenham um papel importante também no caso das guerras civis moleculares, com a diferen^a de que elas sao ai dirigidas principalmen te a estrangeiros, judeus, coreanos, latinos e ciganos — os responsáveis pela miséria, de acordo com a paranoia dos perdedores. Todas essas conspirares fantasiosas servem apenas para turvar a terrível verdade: tanto em Nova York como no Zaire, tanto ñas metrópoles como nos países po bres, é cada vez maior o número de pessoas excluidas de finitivamente da vida económica. Já nao vale mais a pena explorá-las. Se isso é verdadeiro, uma pálida luz recai sobre as “teorías do anacronismo”. Tais teorías véem todos os conflitos relevantes como crises de adequafáo. A modernizagao global é pensada como um processo linear irrefreável. Guerras civis, da mesma forma como outras manifestares repudiáveis, sao definidas como contradirás inerentes ao progresso. Subdesenvolvimento, fundamentalismo, conflitos tribais sao considerados táo-somente como manifesta r e s de atraso atraso cult cultur ural al.. A versáo versáo vulga vulgarr desse ponto de vis vis ta atinge seu ápice na afirmado de que outras sociedades estariam vivendo “na mais obscura Idade Média”. Traduces étnicas ficticias, como o folclórico baile carnavalesco, sao levadas a sério. Essa concepfáo desenvolvimentista é fundamental mente otimista. Superados os antigos e tradicionais modos de produfáo e mentalidades, nada mais obstruiría o caminho para um futuro feliz. As sociedades atrasadas precisa rían! seguir apenas a trilha de seus precursores progressistas para alcangá-los. Mas, infelizmente, esse modelo histórico-filosófico está, ele próprio, defasado. Pois o projeto de modernizado fracassou; nao se apresenta solufáo algu31
ma para aqueles “que ficaram para tras”, nao importa onde eles estejam. Por razóes ecológicas, demográficas e econó micas, mic as, o desnivel desnivel de m odern od ernizad izad o jamais jamais poderá ser corricorri-
ma para aqueles “que ficaram para tras”, nao importa onde eles estejam. Por razóes ecológicas, demográficas e econó micas, mic as, o desnivel desnivel de m odern od ernizad izad o jamais jamais poderá ser corricorrigido; pelo contrário, ele aumenta a cada ano. Todos sabem disso, do trabalhador rural “sem-terra” e o metalúrgico desempregado ao apático delinqiiente e o confuso líder de gangue. “Em seu íntimo, o colonizado náo reconhece nenhuma autoridade. Ele é humilhado, mas náo está convencido da humilhado.” Tomando como exemplo o dominio colonial europeu, Frantz Fanón demonstrou há mais de trinta anos que os Con denados da térra érra náo se rebelam apenas contra a privado e a fome, mas também contra a humilhado a que sao continuamente submetidos. Este pensamento náo é novo. Ele se originou na filosofía alemá. A célebre fábula de Hegel desenvolve-o da seguinte maneira: a condigáo primeva da sociedade humana é a luta nao apenas por re cursos existentes, mas também pelo reconhecimento da parte de seu semelhante — urna luta de vida ou morte travada até que o mais fraco seja arrasado ou tenha capitula do. Nesse caso, ele se torna escravo do vencedor. Mas a dialética quer que o escravo, por meio de seu trabalho, e náo o senhor, transforme o mundo, e até o momento em que o senhor se torne dependente dele. Quando se chega a esse estágio, ele obtém seu reconhecimento. O momento histórico no qual isso acontece é a Revolugáo Francesa. Apenas a partir daí surge o Estado universal, constitucional e homogéneo que garante o reconhecimento a todos os cidadáos. Com isso, todos conquistam a liberdade, a emanci pado; com Napoleáo, a historia chega a seu final e a igualdade é consubstanciada. Náo é necessário ser um hegeliano para concordar que o anseio por reconhecimento é um fato antropológico fun damental. Mas é ilusorio pensar que esse anseio tenha sido 32
alguma vez satisfeito. É até duvidoso que isso seja possivel. Ao certo, sabemos somente que a grande maioria dos seres humanos vivos pode apenas sonhar com isso. Provavel-
alguma vez satisfeito. É até duvidoso que isso seja possivel. Ao certo, sabemos somente que a grande maioria dos seres humanos vivos pode apenas sonhar com isso. Provavelmente, o poder de persuasáo dos regimes terroristas do século xx estaría ligado ao fato de terem prometido aos humilhados impor o reconhecimento à força, dando-lhes a forma de urna coletividade popular, urna sociedade sem classes, um templo da credulidade. Tais regimes renovavam a promessa mediante a negaçâo sistemática e a todos desse mesmo reconhecimento. Após a queda qu eda desses des ses regimes reg imes a lu ta recome reco meça. ça. A diferença agora é que, na terminología de Frantz Fanon, falta ao humilhado o senhor colonial: “O colonizador é um per seguido, que sonha sempre em se tornar um perseguidor... Nos conflitos tribais ressuscitam os antigos ressentimentos sepultados na memoria coletiva. O colonizado entrega-se dos pés à cabeça aos atos de vingança... A autodestruiçâo física de urna coletividade é, portante, um dos estertores da tensáo do colonizado”. Hegel forma formaliz lizaa objetivamente objetivamente o conce co nceito ito de reconhe recon he cimento. Quem se sente diminuido jamais estará satisfeito. Urna coisa é postular a igualdade perante a leí, que, aliás, chegou a ser obtida em maior ou menor grau em alguns países. Da mesma forma, o Estado de direito conseguiu banir as mais mais crassas formas formas de opressáo, op ressáo, o Estado social con seguiu garantir um mínimo existencial a todos os cidadaos etc. No entanto, o desejo de reconhecimento desenvolveu, primeiro ñas metrópoles, depois ao mundo inteiro, urna di námica com a qual um filósofo de 1806 jamais poderia ter sonhado. Qualquer coletividade, mesmo a mais rica e pacífica, produz continuamente perdas concretas de igualdade, me lindres da auto-estima, injustiças, sobrecargas pessoais e frustraçôes de toda espécie. Ao mesmo tempo, com o au 33
mentó da igualdade formal e da liberdade, tendem a crescer as expectativas dos cidadáos. Quando tais expectativas nao sao satisfeitas, qualquer um pode sentir-se humilhado. O anseio de reconhecimento é insaciável. O noticiário nao
mentó da igualdade formal e da liberdade, tendem a crescer as expectativas dos cidadáos. Quando tais expectativas nao sao satisfeitas, qualquer um pode sentir-se humilhado. O anseio de reconhecimento é insaciável. O noticiário nao se cansa de difundir as mesmas historias. No gueto, basta usar um tenis de urna determinada marca para se tornar vítima de um latrocinio, e um funcionario de escritório, cuja carreira como p o p s t a r nao deu certo, vinga-se da humilhafáo assaltando um banco ou atirando as cegas na multidáo. Urna última explicado, a mais deprimente de todas, refere-se ao crescimento vertiginoso da populado do pla neta. Já em 1950, Hannah Arendt suspeitava que a leviandade com que os regimes totalitários puderam impor sua lógica assassina origina-se nesse rápido crescimento e no desterro das massas, as quais, vistas segundo o modelo de categorías utilitaristas, tornam-se, de fato, “supérfluas”. É como se o valor atribuido á própria vida e á dos outros diminuísse na proporfáo em que aumenta o número de ha bitantes da térra. Nao é fácil entender essa idéia. No entanto, nao ape nas a estatística do fluxo de refugiados e os índices populacionais e migratorios revelam como o planeta está se tor nando escasso. Basta observar ao redor. O desemprego e a falta de moradia, a favelizafáo das grandes cidades, os na vios e alojamentos abarrotados demonstram a todo mo mento ao inconsciente que nós nos no s excedem os em termos numéricos. A reagáo cega a esse fato é um debater-se psicótico. Essa tendencia manifesta-se em toda parte. Mesmo pessoas aparentemente normáis prontificam-se a eliminar os “seres supérfluos”, aos quais eles próprios pertencem se cretamente. Diferem apenas o alcance a lcance de d e suas atitu atitudes des e os meios á sua sua disposifáo. disposifá o. Enquanto o incendiário possui ape nas urna garrafa com gasolina, já o poderoso pode oferecer 34
gás tóxico e mísseis. Os incitadores da guerra civil nao vi sara apenas a chamada “purificagáo étnica”; em última ins tancia, seus esforgos sao voltados ao completo despovoa-
gás tóxico e mísseis. Os incitadores da guerra civil nao vi sara apenas a chamada “purificagáo étnica”; em última ins tancia, seus esforgos sao voltados ao completo despovoamento. O melhor recurso que lhes cabe depois de verem fracassar a carnificina total é a expulsáo em massa, empregada contra o mundo exterior como urna arma demográfi ca. A pena imposta pela defesa dos restos de urna civiliza d o é cumprida cumprida por terceir terceiros, os, que vém ao socorro das das vítimas. Os líderes dos bandos consideram a populado um lixo indesejável a ser eliminado. Em digressóes dessa ordem, náo é fácil dizer onde ter mina a exegese e onde comega o desprezo pelo ser huma no. A fronteira é ultrapassada quando se vé proclamada a idéia de que a humanidade obedecería, sem saber, a um imperativo biológico segundo o qual a populado mundial busca reduzir-se a um nivel suportável pela biosfera. Náo falta quem faga afirmagóes como essa. Há cientistas argu mentando dessa forma, devidamente apoiados por autonomeados advogados da natureza. Curiosamente, a ilustragáo dessa tese fica quase sempre a cargo de um experimento lendário, no qual se obriga um número cada vez maior de ratos a viver em espagos cada vez menores. Segundo esta lógica, guerras civis e outras formas de automutilagáo náo passam de mecanismos de sobrevivéncia da espécie ao prego de incontáveis vítimas. Tais Tais idéias expóem expó em apenas a arrogáncia arrogáncia e a megaloma megalom a nía de seus autores. Muitos biólogos trabalharam nos siste mas totalitários desde seus primordios. O desempenho dos especialistas em eugenia e dos experimentadores em medi cina é inesquecível. As conseqüéncias puderam ser vistas nos campos de concentragáo. A comparagáo com ratos náo é á toa. Mas, mesmo ignorando-se a vulnerabilidade moral da argumentagáo da biología, há em seus fundamentos um defeito intelectual. 35
Quem argumenta dessa forma tem a pretensáo de ob servar a humanidade de fora — urna perspectiva destituida de sentido já a partir de suas implicafóes epistemológicas.
Quem argumenta dessa forma tem a pretensáo de ob servar a humanidade de fora — urna perspectiva destituida de sentido já a partir de suas implicafóes epistemológicas. Nao é possível entender de que forma um observador hu mano poderia colocar-se no lugar de um virus ou urna galáxia. Dessa maneira nao se pode chegar a urna visáo mais objetiva sobre o comportamento humano. Este truque nao pode tomar como base principalmente o pensamento de Hannah Arendt. A biologia nao colabora em nada para o conhecimento da guerra civil.
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INDICIO IN DICIOS SE A UT U TO-EXP O-EXPE ERIM RI M ENTA £ 4 O
No cometo nao há sangue, os indicios sao irrisorios. A guerra civil molecular inicia-se discretamente, sem que ha ja urna urna mob m obili iliza zafá fáoo geral. Pouc Po ucoo a pouc po uco, o, multip mu ltiplica lica-se -se o lixo ñas rúas. No parque, amontoam-se seringas e garrafas de cerveja quebradas. Ñas paredes surgem pichafóes mo nótonas, cuja única mensagem é o autismo: elas exorcizam o eu que já nao mais existe. Na sala de aula os movéis sao destrocados, os jardins fedem a merda e urina. Trata-se de declarares de guerra mudas e diminutas, mas percebidas pelo experiente morador da cidade. Logo revela-se o anseio por um gueto mediante sinais eloqüentes. Pneus sao furados, telefones de emergencia inutilizados, automóveis incendiados. Ñas agóes espontáneas expressa-se a raiva das coisas em bom estado, o odio por tudo o que funciona e que forma um amálgama indissolúvel com o ódio por si mesmo. A atitude dos adolescentes antecipa a guerra civil. Isso nao se deve apenas á concentrado de energia física e emo cional, mas também á perplexidade diante do legado com que se deparam, aos problemas insolúveis de urna riqueza infeliz. No entanto, o que leva os jovens á violencia está la tente também em seus pais: um rancor destrutivo, que ape nas em casos agudos é canalizado para formas toleradas socialmente, como a obsessáo por automóveis, comida e 37
trabalho, alcoolismo, avareza, agressividade, racismo e violência na familia. É difícil precisar o foco do perigo nessa profusáo de
trabalho, alcoolismo, avareza, agressividade, racismo e violência na familia. É difícil precisar o foco do perigo nessa profusáo de agressôes. A percepçào oscila a todo instante como em urna ilusáo de ótica. Um cidadáo que nao tem carro narra sua historia: Quando tomo o trem urbano, tarde da noite, acontece o seguinte: o vagáo está quase vazio e mal-iluminado. Um senhor de idade dorme em um canto e um grupo de bébados conversa na outra extremidade. As pessoas ao meu lado sao provavelmente funcionários que fizeram hora extra. O trem pára e sobem quatro rapazes de cerca de vinte anos; as mesmas jaquetas de couro de sempre, as mesmas botas. Falam bastante alto em uma língua língua que eu nào entendo, talvez árabe. A atitude é desafiadora. Eles se movimentam pelo vagáo como se estivessem à procu ra de vítimas; se aproximam de mim, e ¿mediatamente me sinto ameaçado. Olham-me fixamente. Parece que váo me assaltar. Entâo eles se váo e meu olhar recai sobre o rosto dos outros passageiros. Estáo amargurados, rancorosos e sao de uma peculiar feiúra distorcida. As frases que pronunciam me sao bem conhecidas. Até o senhor que dormía desperta e murmura alguma coisa sobre enforcar e fuzilar. Ai nao é mais dos estrangeiros que tenho medo, mas de' meus próprios compatriotas. Diz uma outra pessoa: o passeio escolar de minha filha é cancelado, porque existem très crianças turcas na clas se déla; os país proíbem a ida de seus filhos, porque pa ra eles o risco é muito grande. Isso é um indicio de que existem lugares públicos offlimits-, nao se pode mais freqüentá-los sem que se sinta ameaçado. Isso nao é novo. Há anos, o bairro de Kreuzberg em em Berlim foi tomado por duzentas pessoas que se denominavam autónomos. Nesse contexto, a palavra autónomo significa o seguinte: 38
urna sociedade humana nao existe para nós. O objetivo de calar o resto da populado foi amplamente alcanzado. Surgiu urna zona livre de direito dominada pela censura, pelo medo e pela chantagem. As instituicjóes se omitiram;
urna sociedade humana nao existe para nós. O objetivo de calar o resto da populado foi amplamente alcanzado. Surgiu urna zona livre de direito dominada pela censura, pelo medo e pela chantagem. As instituicjóes se omitiram; os restos da vida civil foram sendo pouco a pouco elimi nados. Zonas semelhantes existem também na Europa Orien tal e na antiga Alemanha Oriental. Nao deixa de ser urna ironia que as zonas militares de outrora voltaram a ser novamente setores especiáis. Em alguns bairros prevalece a lei do mais forte. A polícia, que se sente inferiorizada, nao ousa penetrar nesses lugares, tornando-se, veladamente, cúmplice. Pode-se falar aqui de regióes de libertado no sentido em que os criminosos conseguirán! livrar-se do dominio da civilizado e de seus fardos. Essas circunstancias levam a uma migrado em duplo sentido: a ocupado por parte de gangues de delinqüentes em trajes de direita radical e a fuga dos que se sentem amea^ados, no inicio estrangeiros e grupos alternativos, mas depois todos os que se recusam a submeter-se submeter-se ao re re-gime de terror. A perspectiva para esses territórios é a de cadencia. Da mesma forma como nos e u a , um fator essencial nesse processo é a desindustrializado. Diluem-se as condigóes medianas de vida. Surgem, de um lado, re gióes protegidas com seus próprios servidos de seguran za e, de outro, guetos e favelas. Nos bairros entregues aos delinqüentes, tribunais e patrulhas policiais nao tém mais o que fazer. A situado se torna incontrolável. Um caso especial sao as zonas de fronteira com regras próprias e turbulencias. Contrabando, criminalidade e tráfico transformaran! de modo radical os padróes de convivencia. Colaboram para isso também os imigrantes ilegais, que na maioria das vezes foram socializados de forma completamente diversa e pouco sabeni das formas habituais de comportamento social. Mas também entre os 39
nativos neutralizam-se rápidamente as normas da civilizagao. Em seu lugar aparecem as leis elementares da vio lencia. Da mesma forma como Saddan Hussein ignora as
nativos neutralizam-se rápidamente as normas da civilizagao. Em seu lugar aparecem as leis elementares da vio lencia. Da mesma forma como Saddan Hussein ignora as regras do direito internacional, sao extintas todas as obrigagóes entre os moradores, sejam elas normas escritas ou nao. No final, conta apenas o revólver. Aos amentados restam apenas duas estratégias: fugir ou defender-se. Uma minoría privilegiada busca caminhos próprios de fuga; muda-se para um “paraíso de férias” qualquer, entrincheira-se em uma segunda residencia ou um re tiro, funda comunidades rurais ou seitas apartadas do meio social. A fuga dos milhóes que nao possuem meios materiais assume a forma da busca de asilo social e da migragáo de miseráveis. Quem nao foge procura se proteger. Em nivel mundial trabalha-se no fortalecimento de fronteiras contra os bárba ros. Mas no interior das metrópoles formam-se também arquipélagos de seguranza rigorosamente guardados. Ñas grandes cidades americanas, africanas e asiáticas já existem há tempos os bunkers dos felizardos, cercados por altos muros e arame farpado. As vezes sao bairros inteiros, nos quais se pode entrar apenas com permissóes especiáis. A passagem é controlada po r barreir barreiras, as, cameras eletrónicas e caes treinados. Guardas armados de metralhadoras complementam de suas torres a seguranza da regiáo. O parale lo com com os campos de con cen trad o é evident evidente, e, com apenas apenas a diferenga de que aqui é o mundo exterior que é visto co mo zona potencial de exterminio. Os privilegiados pagam pelo luxo com o total isolamento: eles se tornaram presas de sua própria seguranza. A dinámica da guerra civil pertence o momento de se armar. Onde o Estado nao exerce mais o monopolio da vio lencia, é necessário que cada um se ocupe da própria defe40
sa. Mesmo Hobbes, que concede ao Estado um poder quase ilimitado, sustenta o seguinte: “A obriga^áo dos subordi nados nados em rel rela^á a^áoo ao sobera so berano no dura apenas até o momento
sa. Mesmo Hobbes, que concede ao Estado um poder quase ilimitado, sustenta o seguinte: “A obriga^áo dos subordi nados nados em rel rela^á a^áoo ao sobera so berano no dura apenas até o momento em que este, com base em seu poder, pode garantir-lhes protegáo. Pois o direito natural dos homens de se defender nao pode ser suspenso quando quand o ninguém mais está está em condigóes de garanti-lo”. Os motivos para a retragáo do Estado sao diversos. No inicio, com freqüéncia, estáo a covardia e o cálculo tático, como na República de Weimar e, recentemente, na Alemanha reunificada. Quando a guerra civil se achar em estado avanzado, a polícia e a justiga nao seráo mais senhoras da situagáo; enquanto se estiverem encarcerando pessoas, as prisóes repletas tornam-se campos de treinamento para combatentes. Em outros casos, como na Uniáo Soviética, o poder do Estado perde sua legitimidade. Mais um passo adiante e chega-se á situagáo da Iugoslávia, em que o próprio regime fomenta a formagáo de quadrilhas. Quem possui os meios necessários, já em um estágio inicial sairá em busca de mercenários para substituir a polí cia. Um sinal nítido dessa tendencia é o crescimento da indústria de seguranza. O guarda-costas passa a ser um sím bolo de status. Firmas de seguranza sao contratadas até por órgáos oficiáis para a defesa da infra-estrutura. Onde os guardas de aluguel sao muito caros para os moradores, criam-se exércitos de cidadáos e vigilante groups. E onde isso nao é possível, mais cedo ou mais tarde as pessoas compraráo revólveres; nesse sentido, os Estados Unidos sao um modelo, pois lá o direito individual de posse de ar mas faz parte da ideología nacional. Guerras civis, sejam elas moleculares ou de grandes dimensóes, sao contagiosas. Enquanto decresce o número dos náo-participantes em razáo de morte, fuga ou mesmo por se alinharem a um ou outro grupo, os participantes sáo 41
cada vez mais semelhantes entre si. Seu comportamento passa por um um processo proce sso de assimilaçâo e adaptaçào, adaptaçào , da mesma forma como suas concepçôes moráis. Nas regiôes beli
cada vez mais semelhantes entre si. Seu comportamento passa por um um processo proce sso de assimilaçâo e adaptaçào, adaptaçào , da mesma forma como suas concepçôes moráis. Nas regiôes beli gerantes das cidades, polícia e exército atuam como se fossem mais urna quadrilha entre outras. Regimentos de combate ao terror praticam a pena de morte preventiva. Contra criminosos menos perigosos e viciados em drogas entram em açâo os esquadróes da morte, que reproduzem a imagem de seus adversários. Ao lumpemproletariado equivale urna urna burguesía de mesma qualifica qu alificaçâo çâo — urn urna inimi imigo go na escolha dos dos lumpenbourgeoisie — , que copia o in meios de atuaçâo. De forma semelhante manifestam-se os combates na guerra. Agressâo e defesa tornam-se forças indiferenciáveis. O mecanismo corresponde à vingança san guinaria. Um número crescente de pessoas sao atraídas pa ra o redemoinho de pánico e ódio, até chegar-se a um perfeito estado de associalidade. “Nao sabemos o que acontece conosco.” Essa é a frase mais freqüente que se escuta dos sobreviventes de Sarajevo. Quando todas as explicaçôes fracassam, a auto-experimentaçâo torna-se talvez urna das poucas possibilidades que restam de compreender a fundo a questáo. Bill Buford, um escritor americano, empreendeu esse experimento. Na reportagem Entre os vándalos, ele narra como se transformou em membro de urna corja. A noticia trata da fase de laténcia da guerra civil, ambientada em um estádio de futebol. Embora ainda nào pudesse gabar-me de uma relaçào ínti ma com “eles”, eu notava que sentía pouco a pouco prazer com os acontecimentos... Hoje, tendo refletido melhor, nào me parece muito diferente do hábito da bebida ou do cigarro: no inicio, repugnante; entáo, com algum esforço, saboroso; com o tempo transforma-se em um vi cio. No final chega a ser talvez um recurso autodestrutivo. 42
Na cena seguinte, a assimila^áo da violencia atinge um ponto culminante:
Na cena seguinte, a assimila^áo da violencia atinge um ponto culminante: Eles eram seis e comegaram a pisotear o garoto estirado no chao. O garoto protegía o rosto com as máos. máos. Para Para miminha surpre surpresa, sa, me era possível possível reconhe reco nhecer cer pelo p elo som se um sapato errava seu alvo ou se atingía os dedos e nao a tes ta ou o nariz da vítima. Fiquei paralisado. Refletindo ho je sobre aquela cena, imagino ter estado próximo o sufi sufi ciente para pór um fim áquele acontecimento... Mas nao o fiz. Nem sequer pensei nisso. Foi como se o tempo tivesse ficado dramáticamente mais lento. O cometo e o fim de cada segundo eram marcados com tanta nitidez quanto a seqüéncia de fotogramas em um filme; eu estava hipnotizado diante de cada urna das imagens que via... Com esse primeiro choque foi como se tivesse ultrapassado um tipo de limiar, urna linha imaginária de separagao: de um lado prevalecía o senso do permitido, um pacto sobre o que se podia e o que nao se podia fazer, mesmo naquela desordem; mas agora havíamos alcanza do algum lugar onde nao existiam limites, onde o senso de que havia coisas que nao podiam ser feitas deixava de atuar... Era uma excitagáo grandiosa, um sentimento transcendente — no mínimo um sentimento de alegría ou, antes, algo semelhante ao éxtase. Desprendia-se uma energía contagiante; impossível nao se emocionar pelo menos um pouco. A meu lado, alguém dizia estar feliz, muito feliz; nao podia lembrar-se de ter sido mais feliz em toda a sua vida.
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INOCENCIA TARDIA, CAMPOS AM POS M INADOS INA DOS
O simples discurso sobre a guerra civil acaba por de sembocar cedo ou tarde em um tipo de auto-experimenta?áo. Nenhum osso é quebrado; no entanto, a discussáo em si traz consigo traeos essenciais de seu objeto. Nao sou neu tro. Estou contaminado. Sinto como estáo arraigados em mim o rancor, o medo e o odio. Estou profundamente en volvido com aquilo que estou dizendo. Meu cerebro trans borda de substancias químicas, produzindo mensagens so bre as quais nada sei. Corro o perigo de perder o controle sobre meus pensamentos. É impossível manter um discurso linear sobre esse te ma. Quem apenas tenta afirmar sua própria posifáo está es timulando o conflito. Nao existe um ponto de Arquimedes. Penetrei em um campo minado moral e intelectual. Movimento-me com cautela. Sei que conseguirei, no máximo, orientar-me melhor, mas nao ultrapassá-lo. Nao concordo com ninguém, nem mesmo comigo. Já que nasci por acaso aqui, na Alemanha, vejo-me ainda, depois de cinqüenta anos, agachado em um poráo, envolto em urna manta. Pos so distinguir até hoje os gañidos da defesa antiaérea dos uivos de bombas lanzadas por avióes. Durante o sono assalta-me as vezes o glissando lento, crescente e decrescente, das sirenes de alerta, urna melodía repugnante. Lembro-me bem dos sobressaltos meio sufocados, meio m eio apáticos causa44
dos pelos bombardeios. E os adultos, á espreita, acocora dos nos bancos do poráo e para quem os “ataques terroris tas” destinavam-se aos Aliados, compunham a "inocente populafáo civil”. Fico perturbado cada vez que escuto essa
dos pelos bombardeios. E os adultos, á espreita, acocora dos nos bancos do poráo e para quem os “ataques terroris tas” destinavam-se aos Aliados, compunham a "inocente populafáo civil”. Fico perturbado cada vez que escuto essa expressáo. Quando a guerra civil atinge seu ápice, verifica-se que a maioria nao a quería. A maioria é muda. Ninguém presta atengáo nela. Sempre que ve urna chance, ela dá as costas as lutas e desaparece. A maior parte das mulheres ocupa-se apenas em procurar ñas ruinas um punhado de farinha, carváo, algumas batatas e em arrastar seus filhos para outro lu gar. Velhos remexem os restos de cabanas incendiadas, homens fatigados sepultam os mortos. Todos conhecem cenas como essas ou ainda piores. Essas pessoas nao atiram e nao torturam. Seus rostos nao estáo marcados pelo ódio ao próximo. Estáo pálidos de exaustáo. Mas isso nao foi sempre assim. Urna estranha mudanza ocorreu com a “inocente populagáo civil” que se escondía no poráo enquanto as bombas de fósforo transformavam a cidade em um mar de fogo. Eu vi como os olhos deles reluziam a cada discurso do Führer. Ele nao ocultava ao povo suas suas verdadeiras inten^óes: inten^óes: um “gig “gigantes antesco co comb co mbate, ate, jamais visto”, a luta definitiva até o último recurso. Pude ver também como a multidáo se comportara quando, poucos anos antes, as sinagogas ardiam. Sem o seu consentimento entu siasta, os nazistas jamais teriam chegado ao poder. Considero um idiota quem quer que acredite que isso se aplique apenas aos alemáes. Sem aquela eneigia envol vente, aquele sentimento de “alegría”, o “éxtase” de que fala Bill Buford, nao se consegue detonar seja a guerra civil molecular diante dos portóes de nossas casas seja o inferno além de nossas fronteiras. No inicio reina sempre o júbilo histórico sobre as arquibancadas dos estádios ou ñas rúas de Rostock e Brixton, Bagdá e Belgrado. Com freqüéncia, freqüéncia, os 45
incitadores de guerras legitimaram-se por meio do voto po pular. Eles conquistaram maiorias triunfáis e fortaleceram gradualmente suas posigóes sempre por meio das urnas.
incitadores de guerras legitimaram-se por meio do voto po pular. Eles conquistaram maiorias triunfáis e fortaleceram gradualmente suas posigóes sempre por meio das urnas. Apenas mais tarde, muito mais tarde, o crime, de acordo com um modelo que me parece familiar, seria imputado a este ou áquele personagem, entáo com o corpo já com pletamente crivado de balas. Mas quem criou e alimentou os criminosos, quem rezou por eles e os aplaudiu, senáo a “inocente populado civil”? O combatente camuflado, o vi gía do campo de concentrado, o assassino com slogans nazistas, caneces populares ou ora^óes incitantes na ponta da língua: estes nao sao seres de outro planeta e sim mensageiros alimentados pelo rancor, pela crueldade e pela se de de vingan^a de toda urna coletividade. Apenas quando sentem no próprio corpo as conseqüéncias letais de suas atitudes e omissóes, chega o momento da inocencia.
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A CULTURA DO ODIO, A MÍDIA EM TRANSE
Sorte daquele que conseguiu iludir-se julgando que a cultura poderia criar urna sociedade imune á violencia. Já antes do inicio do século xx, artistas, poetas e teóricos da modernidade demonstravam o contrario. É inegável sua preferencia pelo crime, pelo satánico outsider, pela destrui d o da civi civili lizado. zado. A intelligentsia do f i n de sié siécl e, de París a Sao Petersburgo, namorava o terror. Os primeiros expressionistas ansiavam pela guerra da mesma forma como os fu turistas. Mesmo depois da Primeira Guerra Mundial continuava a crescer a glorificado da violencia. Parte expressiva da cultura erudita exaltava o retorno á barbárie. Os escritos de Sade passaram a ser cultuados, e assim permanecem até hoje. Ernst Jünger propagava o poder purificador da tempestade de aqo, Céline flertava com a turba anti-semita e André Bretón preconizava que “a mais simples atitude surrea lista” consistía em “andar pela rúa com um revólver na máo e atirar na multidáo as cegas, pelo máximo de tempo possível”. Questiona-se até que ponto a cultura da violencia da vanguarda européia pode ser levada a sério. Suas provoca r e s revel revelam am nao apenas apenas o ódio pro profun fundo do ao stat status us quo, quo, mas também a si mesma. Provavelmente, elas serviam de compensado á própria impotencia e como meio de defesa contra o cerco da modernizado, que amea?ava sabotar-lhe as pretensóes de prestigio. Além disso, há que se ter em conta a tendencia á pose, á artificialidade, táo cara a seus re presentantes. Finalmente, pode-se entendé-las como sinais 47
de advertencia em cujo fascínio escondia-se urna premonigáo. Mas para o atributo de incitadores da guerra civil faltou aqueles artistas o poder da influencia. Contud Contud oder foi exercido pela lúmpen-
de advertencia em cujo fascínio escondia-se urna premonigáo. Mas para o atributo de incitadores da guerra civil faltou aqueles artistas o poder da influencia. Contud Contudo, o, esse e sse mesmo m esmo poder p oder foi exercido pela lúmpenintelectualidade fascista e comunista, que delirava com a li quidado da burguesía, do campesinato, dos judeus, dos ciganos e de todos que fomentassem idéias divergentes das suas. Grande parte da intelligentsia iugoslava demonstrou que a produfáo do ódio e a preparado da guerra civil pertencem, ainda hoje, as mais relevantes tarefas dos agentes culturáis. Nos países mais importantes do mundo, o culto á vio lencia e a nostalgie de la boue tornaram-se um bem comum por meio da industria ind ustrializad lizadoo e da massificagáo massificagáo da cultu cultura. ra. O conceito de vanguarda assumiu com isso um significado in fame, com o qual seus defensores nao podiam sequer sonhar. Eles nao acreditavam na possibilidade de ver suas fan tasías elitistas imitadas e interpretadas ao pé da letra por lumpesinato artístico. O massacre torna-se diversáo de massa. Cinema e ví deo disputam a transformado de assassinos profissionais, seqüestradores e serial killers em sucessos de público. Os teatros oficiáis pateiam desamparados, com suas encenaf oes de merda e sangue, sangue, no vácuo deixado pelos p elos filmes de horror. A representado seca da realidade, que “nao poupa o espectador de nada”, é definida como uma “impiedo sa confrontado”, como uma “provocado corajosa” e co mo um “choque redentor” — uma hipocrisia crítica exposta á contemplado pública passiva. Enquanto isso, o velho e querido rock, em sua eterna juventude, mantém-se firme com grupos cujos nomes sao Public Enemy, Slayer, Kahlschlag [Zona Devastada], Endsieg [Vitria Final] e Bru tal; um deles, com o nome de Guns N’ Roses, “debutou” Apcom a venda de 15 milhóes de exemplares do álbum Appetitefor destruction. 48
No mercado de artes, o vandalismo vem atingindo altas altas cotagóes. A tautológica turma dos grafiteiros é conduzida sem demora para os museus e galerías. O desejo de chocar é exposto abertamente no mercado de artes. Naturalmente,
No mercado de artes, o vandalismo vem atingindo altas altas cotagóes. A tautológica turma dos grafiteiros é conduzida sem demora para os museus e galerías. O desejo de chocar é exposto abertamente no mercado de artes. Naturalmente, trata-se de um prazer mediado, cuja excitado resulta da re confortante distancia da realidade. Seria ingenuo admitir o nexo entre causa e efeito onde se trata de pura intromissao interesseira do artista em um meio alheio ao seu. Mesmo ocasionalmente ornados de emblemas, os cri minosos há muito nao dependem dos modelos de uma es tética decaída. O transe gerado pela assimilacáo da mídia nao é explicado por uma relado imitativa, mas pelo feedback direto estabelecido entre a imagem e a realidade. Inúmeros criminosos tém a sensagáo de nao serem eles próprios participantes de suas a^óes. Parece-lhes que nao sao eles que surram outras pessoas até a morte, como se tudo nao passasse de uma “cena de televisao”. As teorías da si mulado terminam por obter uma confirmado absurda me diante a incapacidade dos criminosos de distinguir entre fil me e realidade. Em certo sentido, a mídia fortalece a pessoa que se tornou irreal e lhe fornece uma espécie de prova de existen cia. Isso é uma conseqüéncia daquela abnegado patológi ca diagnosticada por Hannah Arendt. Todo cidadao meio maluco pode pod e alimentar a esperanza de se ver estampado na primeira página do New York Times com uma garrafa de cerveja em uma das máos, enquanto a outra está levantada para a saudagáo a Hitler. E nos noticiários de televisao ele pode maravilhar-se com sua obra do dia anterior: casas em chamas, cadáveres mutilados, audiencias oficiáis de emer gencia e reunióes de Estado para a discussáo da crise. Assim atua a televisao: como uma pichado única e gigantes ca, como uma prótese de compensado para a atrofia autística do eu. 49
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TENDA TE NDA DOS DO S MILAG MI LAGRE RES S, COMPL OM PLE EXO DE D E CULPA ULPA
Nunca se falou tanto em direitos humanos como hoje; mas também nunca foi táo grande o número daqueles que, na melhor das das hipóteses, sabem sa bem algo a esse respeito apenas de ouvir falar. A Declarafáo Universal dos Direitos Huma nos, aprovada sem voto contrário na Assembléia Geral das Nagóes Unidas em 1948, postula em um preámbulo e trinta artigos um longo catálogo de direitos políticos e sociais. Entre eles estáo o direito á vida, á liberdade e á seguranza da pessoa, o direito á liberdade de credo e pensamento, o direito á liberdade de expressáo, á liberdade social e ao trabalho, assim como o direito a um padráo de vida que ga ranta saúde e bem-estar. Como se nao bastasse, lé-se ainda: “Todo ser humano tem direito a urna ordem social e inter nacional, na qual todos os direitos e liberdades relaciona dos acima possam ser realizados”. Os países comunistas, a África do Sul e a Arábia Saudi ta se abstiveram de votar, o que, ainda assim, deve-se inter pretar como um pequeño tributo á verdade. Todos os demais, inclusive aqueles nos quais perseguifáo e censura, tortura e repressáo, estavam na ordem do dia, assinaram o documento sem he sitad sita d o. Até Até hoje conta-se na Assembl Assembléi éiaa Geral com urna maioria absoluta de ditaduras abertas e enrustidas; as democracias representam urna pequeña mino ría mas quase sempre sao culpadas pela participaijáo em 50
inúmeras guerras coloniais desde 1948 e por terem apoiado regimes terroristas em conveniencia própria. Quatro quintos da populagáo mundial vivem em con-
inúmeras guerras coloniais desde 1948 e por terem apoiado regimes terroristas em conveniencia própria. Quatro quintos da populagáo mundial vivem em condifóes incompatíveis com a retórica da declara<:áo; ano a ano, acrescentam-se a esse número quase 100 milhóes de pessoas, cujas perspectivas sao ainda piores que as de seus pais. Diante dessa situa^áo, as orgulhosas formulares das Nagóes Unidas assumem uma aparéncia cínica. De forma semelhante, os súditos do Estado soviético poderiam sentir se escarnecidos pela constituido stalinista de 1936, que ga rantía a cada um todos os direitos fundamentáis possíveis. Os europeus e os norte-americanos tém que responsabilizar-se bilizar-se a si si mesmos quando sao s ao hoje interpretados interpretados literal literal mente; pois eles próprios alfaram os direitos humanos á condifáo de norma política pela primeira vez na Declara d o de Independencia americana americana em 1776 e depois, depois, em Pa Pa rís, no ano de 1789, na Décl arati arat i on des des droi droits ts de l ’homme homme et du citoyen. Pouco tempo depois, durante o período do Terror, em 1793, proclamou-se le bonheur commun, isto é, a felicidade geral, como uma meta de Estado. Com certeza, o clamor por justicia, a vontade de ajudar o próximo e de ser solidário nao sao mais escassos naquelas regióes do planeta que nao produziram declarares sobre o bem e o desejável do que na Europa e na América do Norte. Os po bres países africanos acolheram mais refugiados de guerras civis do que a Comunidade Européia; movimentos pró-democracia existem em todos os continentes; mas, no que concerne á xenofobia e ao racismo, as sociedades ricas, do Jap Ja p á o á Californ Cali fornia, ia, nao na o sao sa o supera sup erada dass por po r ninguém. ning uém. A retórica do universalismo é uma característica espe cífica do Ocidente. Os postulados dele decorrentes valem para todos sem exce^áo e distin^áo. O universalismo nao reconhece nenhuma diferen^a entre o que é próximo e o que é distante; ele é abstrato e incondicional. A idéia dos 51
direitos humanos impóe a todos um dever que é, em prin cipio, ilimitado. Nisso se revela um cerne teológico que sobreviveu a todos os processos de secularizado. Todos de-
direitos humanos impóe a todos um dever que é, em prin cipio, ilimitado. Nisso se revela um cerne teológico que sobreviveu a todos os processos de secularizado. Todos devem responsabilizar-se por todos. Nessa pretensáo está contido o dever de tornar-se semelhante a Deus; pois ape nas ele atende ao pressuposto da onipresenga ou mesmo da onipoténcia. Mas, uma vez que nossas afóes sao finitas, o abismo entre intencáo e realidade expande-se cada vez mais. Logo penetra-se no campo da hipocrisia objetiva, quando o universalismo evidencia-se como uma armadilha moral. É comum escutarmos acusafóes de culpa pelos massacres e atos de violencia realizados em toda toda parte, pela fome, o desterro e a tortura de seres humanos. Estaríamos assistindo a tudo de bracos cruzados, impassíveis, preocupados apenas com nossas atividades cotidianas... Sem dúvida, sao acusafóes bastante persuasivas, dirigidas nao apenas aos governos e as grandes potencias, mas também áquela senhora no metro e as pessoas simples em geral. É indiscutível que todos nos tornamos espectadores. Essa condigáo nos diferencia das pessoas do passado que, quando nao eram elas próprias vítimas, criminosos ou testemunhas, tomavam conhecimento dos acontecimentos por meio de boatos e lendas desta ou daquela colorado política. O que ocorria em qualquer outro lugar sabia-se apenas de ouvir falar. Mesmo até meados do século xx, a opiniáo pública sabia pouco ou nada a respeito dos maiores crimes da época. Hitler e Stalin fizeram de tudo para acobertá-los. O genocidio era tratado no Reich como segredo de Estado. Nos campos de exterminio nao havia came ras de televisáo. Hoje, ao contrário, os assassinos prestam-se com satisf a d o a dar dar entrev entrevist istas as e a mídia mídia se orgulh orgulhaa de estar presen te á hora e ao local do crime. A guerra civil torna-se uma sé52
rie de televisáo. Os combatentes expóem seus crimes para a opiniáo pública, esperando com isso incrementar seu prestigio. Eles imitam os gángsteres e seqüestradores de
rie de televisáo. Os combatentes expóem seus crimes para a opiniáo pública, esperando com isso incrementar seu prestigio. Eles imitam os gángsteres e seqüestradores de avióes e de pessoas, em cujas exigencias inclui-se regular mente a presenta de cámeras de televisáo; a mídia provi dencia para que lhes seja garantido o reconhecimento almejado. Os repórteres reiteram que estáo apenas cumprindo o dever; dever; eles dizem que nos apresentam os fatos em sua simplicidade, os quais sáo seguidos da necessária ma nifestado de indignado do comentarista. Mas é inevitável que se misture á acusado urna mensagem adicional e subliminar. Esta diz que o terror é a norma e que o impensável pode ser realizado a qualquer momen to e em qualquer lugar. E, poitanto, por que náo aqui também? Todo policial conhece a figura do criminoso imitativo, hoje um fato político. Nesse sentido, a mídia, intencional mente ou náo, acaba promovendo o crime que noticia. Se as imagens do terror náo nos transformam em ter roristas, transformam-nos em voyeurs. Assim, cada um de nós se vé submetido a urna chantagem permanente. Pois apenas aquele que testemunha pode ser questionado sobre o que faria contra o que lhe está sendo exposto. Assim, a mais corrupta das mídias, a televisáo, eleva-se á condi^áo de autoridade moral. A exigencia absurda de fazer alguma coisa (mas o qué?) e de agir (como?) dirigida a todos traz, veladamente, urna série de conseqüéncias. Essa exigéncia dirige-se áquele “nós” aclamador dos direitos humanos e que instaurou a consciéncia pesada. Este “nós” refere-se ao Ocidente, isto é, áquela regiáo do mundo considerada rica e que ainda se define como civilizada. A moralidade é o último refugio do eurocentrismo. Quem já procurou discutir com um tamil ou um curdo os problemas da Irlanda do Norte ou do País Basco sabe 53
que provocará urna rea^áo de perplexidade. A réplica com a qual se deve contar é a seguinte: o que me importam as suas historias? E, na melhor das intengóes, o asiático lhe as-
que provocará urna rea^áo de perplexidade. A réplica com a qual se deve contar é a seguinte: o que me importam as suas historias? E, na melhor das intengóes, o asiático lhe assegur segurar aráá que tem tem out outra rass p re o cu p ares ar es . Recomenda-se Recomenda-se cau tela antes de negar-lhe o direito a essa posifáo. Pois, da mesma forma, o cidadáo que mora em Ohio, no Piemonte e em Hessen se sentirá desanimado perante a sobrecarga dos incompreensíveis tiroteios que desfilam pelas telas de televis televisáo. áo. Já a mer meraa quanti quantidade dade de de in fo rm a le s com as quais ele é bombardeado opóe-se a qualquer possibilidade de elaboragáo mental consistente. Apenas os especialistas, que náo tém outra coisa a fazer, podem se dar conta das 150 nacionalidades liberadas com a derrocada da Uniáo So viética. A despeito disso, o noticiário das oito exige daquela vendedora do supermercado que diferencie entre inguches e tchetchenos, entre georgianos e adjarianos. Nagorno-Karabakh permanece há anos na ordem do dia, e nós somos obligados a fazer urna imagem daquela regiáo com base em cadáveres mutilados. Devemos guardar os nomes de gángsteres, que nem sequer pronunciamos corretamente, e devemos nos preocupar também com seitas musulmanas, milicias africanas e grupos paramilitares cambodjanos cuja motivagáo política nos será sempre obscura. Quem náo for capaz disso é tachado de ignorante, insensível e um subproduto egoísta da sociedade do bem-estar, para quem o sofrimento alheio é indiferente. Os receptores dessas mensagens estáo inseguros. Alguns deles sao tomados por sentimentos de culpa. Mas sua possibilidade de ajudar é muito limitada, a náo ser que se dediquem profissionalmente á assisténcia social. Muitos co laboran! financeiramente e sáo acusados de comprar ape nas um álibi moral. Caridade náo passaria de um paliativo, urna manobra barata para livrar-se da má consciencia. No 54
entanto, os o s pregadores preg adores da virtud virtudee nao na o revelam jamais o que se deveria fazer. É, no melhor dos casos, ingénua a pedagogía que
entanto, os o s pregadores preg adores da virtud virtudee nao na o revelam jamais o que se deveria fazer. É, no melhor dos casos, ingénua a pedagogía que acredita sensibilizar seu rebanho apenas aumentando-lhe a dose do remédio. Isso surtiría o efeito contrario, inmunizan do o paciente contra a estimulado da consciencia; a sobre carga psíquica e cognitiva acaba provocando o efeito con trario. O espectador sente-se incompetente e impotente. Ele se fecha em urna redoma e se desliga. As mensagens recebidas passam a ser repelidas ou simplesmente negadas. Essa forma de defesa interior nao é apenas compreensível; ela é também inevitável. Ninguém saberia dizer como se deve reagir corretamente á diária carnificina em massa. Mas isso ainda nao é tudo. O conceito de “reagao paradoxal” é conhecido da farmacología: urna substancia dosada ou aplicada erróneamente pode produzir o efeito con trario ao esperado. Da mesma forma, exigéncias moráis que excedam as possibilidades de a^ao conduzem os indi viduos á passividade ou á pura negagáo de sua responsabilidade. Ai se localiza o germe do processo de brutalizagáo que pode evoluir para a agressividade furiosa.
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P EDIDO EDI DOS S D E SOC SOCORR ORRO, O, FORMAS FORM AS D E TUTE UTELA
Nao apenas os individuos em geral estáo sobrecarregados, mas também os sistemas políticos vigentes. Até o momento nao existe um mecanismo capaz de evitar o surgimento continuo de guerras civis. A forma clássica de po lítica exterior, os organismos internacionais, para nao men cionar a Comunidade Européia, nao estáo em condifóes de criá-lo. As autoridades sáo acusadas com a mesma intensidade de náo atuarem sempre que necessário. Os boinas azuis estáo estacionados hoje em mais de quinze países. O custo político dessas opera^óes é astronómico, as prerroga tivas sáo contraditórias e de éxito duvidoso. Enquanto as causas dos conflitos forem racionalmente tangíveis, as missóes de paz náo teráo sucesso. A mediagáo pressupóe que cada urna das partes tenha a vontade e a capacidade de estabelecer acordos de paz. No entanto, prevalece habitualmente o desejo de prosseguir com a guerra até a autodestruigao. O espirito apaziguador que desejar atirar-se nos bracos dos confitantes preci sa estar consciente de que se colocará sob a mira dos bandos guerr guerreir eiros os indi indisti stinta ntamen mente. te. O rg a n izar iz ares es de auxilio auxilio sáo permanentemente ameafadas; comboios para o fornecimento de meios de sobrevivencia sáo assaltados e sa queados; mediadores sáo colocados sob suspeita e extorquidos; voluntários sáo tomados como reféns, negocia^óes 56
sabotadas; tropas de paz servem de alvo em pesados tiroteios. Os governos que as despachan! para as regiôes ameaçadas privam-lhes do direito direito de autodefesa; imagine-se entâo
sabotadas; tropas de paz servem de alvo em pesados tiroteios. Os governos que as despachan! para as regiôes ameaçadas privam-lhes do direito direito de autodefesa; imagine-se entâo se lhes será possível um dia impor seus objetivos militar mente. Sançôes e embargos sâo insinuados, mas jamais delibe rados de fato. Nunca se realizou um bloqueio efetivo, ga rantido pela atuaçào de forças armadas, embora esse recur so pudesse ser extremamente eficaz. Qualquer guerra civil desaparecería dentro de meses, caso fossem obstruidas suas ligaçôes com o mundo exterior, caso bloqueassem o fornecimento de energía e muniçào, os caminhos de comunicaçào, os meios de transferencia de dinheiro, de transporte e de alimentaçâo. Mas precisamente a eficácia dessa receita impede sua aplicaçâo. Pois já nos acanhados passos iniciáis vê-se a coalizáo interventora sentada no banco dos réus, acusada de causar danos inexoráveis à “inocente populaçâo civil” por meio do isolamento dos grupos beligerantes. A conseqüéncia desse dilema é a crescente perda de credibilidade e autoridade daqueles que participam de tais intervençôes. Náo obstante, cada mobilizaçâo traz consigo a necessidade de novas mobilizaçôes. Por que se realizam operaçôes no país X, enquanto o país Y fica abandonado a sua própria sorte? As partes prejudicadas em guerras civis náo entendem por que o mundo exterior náo demonstra vontade de apressar-se em ir a seu auxilio. Quando a ajuda necessária náo vem, a esperança torna-se decepçào, a ex pectativa torna-se indignaçào, râncor e sentimento de vingança. Para isso já existem exemplos das primeiras décadas do século, como o Diario de Sao Petersburgo, escrito em 1919: Querem nos matar, querem arrasar a Rûssia, esses euro peas ignorantes, insensatos... O comportamento crimino57
so, absurdo da ententesegue seu curso... Todos nos que vivemos na Rússia gostaríamos tanto de ver a Inglaterra sentir no próprio corpo o que ela nos faz... Jamais ocor-
so, absurdo da ententesegue seu curso... Todos nos que vivemos na Rússia gostaríamos tanto de ver a Inglaterra sentir no próprio corpo o que ela nos faz... Jamais ocorreu urna coisa assim em toda a historia mundial. Todas as analogias sao inúteis. Urna cidade gigantesca tornou-se suicida. E isso diante dos olhos da Europa, que nao mexe um dedo sequer em nosso favor e que, afundada em tanto sangue, tornou-se idiota ou satánica... Essa é a for mulado exata: se em um país da Europa, no século xx, pode existir uma escravidáo táo grande e a Europa a ig nora, ou a aceita, entáo a Europa precisa ser arruinada. E isso acontecerá. As acusagóes de culpa crescem na mesma proporfáo em que se multiplicam as guerras civis. Quem se recusa a agir militarmente é acusado de discriminado e barbárie. Com isso, até o discurso anticolonialista perde cada vez mais em consistencia. De um lado, ele sacraliza os conceitos de soberanía, independencia e náo-intervengáo; de outro, confere-se ás poténcias do Ocidente uma competencia universal universal,, revertendo-se revertend o-se o papel de verdadeiro culpado pa ra o de salvador em potencial e vice-versa. Isso chega ao ponto de já se estarem manifest m anifestando ando anseios por uma uma recolonizado na forma de mandatos. Esse Esse é o caso extremo extremo de uma uma p ro jed je d o que oferece ofe rece aos protagonistas das guerras civis uma confortável cobertura. Jam ais ai s os cri crimi minos nosos os locáis loc áis e a massa de seus se us correli cor religion gionáários devem ser culpados dos conflitos. De preferencia, encontram-se outros outros criminosos estabelecid os no n o exterior. exterior. Pa rece náo incomodar a ninguém que, com isso, declara-se a menoridade de populares de regióes inteiras do planeta. Tratam-nas como bonecas, incapacitadas para agóes próprias, colocando-as sempre na condido de objeto e nunca na de sujeito. Isso vai ao encontro dos sentimentos de superioridade dos senhores coloniais de outrora, que tratavam 58
os dominados como co mo cri crianz anzas: as: nao se deve deixá-los ter acesso a objetos perigosos; eles precisam de um tutor. A funcáo de vigilancia recairia sempre sobre o Ocidente, que passaria entáo a responder pelas conseqüéncias, indepen-
os dominados como co mo cri crianz anzas: as: nao se deve deixá-los ter acesso a objetos perigosos; eles precisam de um tutor. A funcáo de vigilancia recairia sempre sobre o Ocidente, que passaria entáo a responder pelas conseqüéncias, independentemente do que se faz ou se deixa de fazer. Na confusáo dos conceitos sobre os tipos de interven g o corre-se o risco de ignora ignorarr urn urnaa distinfáo da da ordem do direito internacional que diz respeito a guerras de invasáo territorial de um lado, e, de outro, conflitos internos. Essa doutrina, que pode estar baseada em bons fundamentos, levou recentemente a conseqüéncias práticas na medida em que o Iraque invadiu em primeiro lugar um Estado vizinho mais fraco e depois passou a lanzar mísseis sobre Is rael, um país distante e completamente á parte do conflito. A coalizáo contra Hitler jamais teria ocorrido caso ele se contentasse em matar cidadáos de seu próprio país. Da mesma forma, ninguém teria enfrentado Stalin enquanto ele aterrorizasse somente a populado soviética. A Guerra Fria Fria sur surgiu giu apenas quando quan do ele se empenh em penhou ou em levar o ter ror para além de suas fronteiras. A ética universalista nao consegue mover-se no campo de diferenciales elementares como essa. Ela reivindica a participado militar ilimitada, a qualquer momento e em qualquer lugar. Mas essa divida nao será quitada jamais. Há muito tempo ultrapassou-se o limite daquilo que os governos dos poderes po deres intervenci intervencionistas onistas em potencial sáo capazes de explicar politicamente á sua própria populado. A guer ra na Iugoslávia mostrou que os europeus náo tém nem vontade nem capacidade de impor a paz. Mesmo os e u a , urna superpoténcia mundial, estáo sobrecarregados com o papel de policiais do universo. O sentimento de culpa, o dinheiro nheiro e os o s enormes enorm es contingentes de soldados sáo ainda ainda in in suficientes para extinguir as guerras civis do mundo.
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PRIORIDADES E ANTINOMI ANTINOMIAS AS
Em 1931, um pesquisador genial de nome Kurt Gödel demonstrou a impossibilidade de se chegar a urna matemá tica completamente livre de contradiçôes. Com isso ele sepultou de vez a convicçào extremamente enraizada entre matemáticos de que é possível retirar-se do pántano da inconsistência à custa das próprias pernas. Se esse objetivo n áo pode ser alcançado nem pelos lógicos mais refinados, como deverá ser possível resolver as permanentes antino mias da ética mediante um conjunto simples de axiomas? E chegado o momento de se despedir de fantasias onipotentes. Com o tempo, ninguém, seja uma coletividade ou um individuo, poderá escapar de avaliar o grau de sua própria responsabilidade e de determinar prioridades. (Talvez seja necessário explicar o que significa uma prioridade. Muitas pessoas acreditam ser mais tolas do que de fato sáo quando se deparam com um argumento que náo cabe em sua visáo de mundo. Portante: a palavra prioridadenáo sig nifica simplesmente ou isso ou aquilo, isto é, uma opçâo excludente excluden te entre uma uma coisa e outra. outra. O que é necessário que aconteça primeiro? Onde posso aplicar minhas forças de modo mais eficaz? Quais opçôes sao as mais importantes? Isso basta com relaçâo á semántica. Está claro? Aquí termi na a digressáo dirigida ás mentes refratárias.) 60
Esse questionamento implica decisôes dificeis e desagradáveis de serem tomadas, e que contradizem fortes tradiçôes ideológicas. Aquele que fala da relatividade e da limitaçâo temporal das nossas possibilidades de açào vê-se
Esse questionamento implica decisôes dificeis e desagradáveis de serem tomadas, e que contradizem fortes tradiçôes ideológicas. Aquele que fala da relatividade e da limitaçâo temporal das nossas possibilidades de açào vê-se imediatamente na berlinda rotulado de “relativista”. Mas se cretamente todos sabem que é necessário preocupar-se an tes de tudo com seus filhos, seus vizinhos e com as coisas que nos circundam de imediato. imediato. Mesmo o cristianismo cristianismo falou falou sempre das coisas mais próximas e nâo das mais distantes. A busca por uma limitaçâo da responsabilidade pode levar a bons resultados. Para isso existem modelos antigos como a adoçâo e o apadrinhamento à distância. Esses mo delos revelam que nào se trata incondicionalmente de proximidade física, para nào mencionar o mero parentesco, mas sobretudo de estabelecer uma relaçâo estreita entre aquele que presta a ajuda e aquele que a recebe. Isso per mite nâo apenas a concentraçào de energia material e emo cional. No lugar da abstraçâo surge uma relaçâo concreta. Toda tentativa de ajudar ou de ser ajudado traz consigo inegâveis conflitos com os quais se pode conviver desde que as partes se conheçam. Mas o estabelecimento de prioridades possui também um lado obscuro, e seria seria desonesto des onesto nào n ào mencionâ-lo. m encionâ-lo. A papalavra triagevem do francés e significa “escolher”, “separar”. Esse conceito aparece na medicina de guerra do século xix. Após as grandes batalhas, os médicos estavam diante da questáo de como deveria se dar o tratamento dos feridos em condiçôes dificeis e perigosas de transporte, capacidade limitada de alojamentos médicos e recursos insuficientes de tratamento. Impós-se de forma mais ou menos explícita a regra da triagem, calcada em uma escolha a partir de très categorías. Feridos leves eram tratados apenas superficial mente e precisavam contar com suas próprias forças para a recuperaçâo. Feridos irrecuperáveis eram deixados à sua 61
própria sorte. Tratamento médico eficaz era garantido ape nas aqueles cuja necessidade era aguda ou que tinham boa perspectiva de cura. O dilema dos médicos e voluntários é
própria sorte. Tratamento médico eficaz era garantido ape nas aqueles cuja necessidade era aguda ou que tinham boa perspectiva de cura. O dilema dos médicos e voluntários é evidente. Eles tinham que viver com o risco moral contido em qualquer decisao entre vida e morte. Situagóes semelhantes sao comuns na medicina intensiva e de transplante. Seria uma perversidade comparar o principio da triagem ao principio de selegáo fascista; pois aqui se trata de salvar vi das e nao na o de aniquilá-las. Nao estáo á vista vista soluyóes soluyóe s univeruniversais que possibilitem o tratamento indiscriminado de todos os necessitados. Pelo contrário, previsíveis sao a prolifera£áo e o agravamento futuro das situagóes de emergéncia. Em casos extremos revela-se a perturbadora desorien tado, com a qual se debatem todas as éticas atuais da responsabilidade. Trate-se de ajuda humanitária, intervengáo política ou militar, desterro ou migrado em massa das zo nas de miséria, todas as opgóes imagináveis, queira ou nao queira, terminam seguindo a lógica da triagem. Também o gradualismo, o estabelecimento de prioridades, a limitado das responsabilidades, mesmo plenamente fundamenta das, nao oferecem a saída do campo minado e servem ape nas como recursos precários e provisorios. Contrapostos as promessas do universalismo, tais recursos oferecem apenas a vantagem de sua utilidade imediata e de prevenir contra a ilusáo. Ninguém nega que a solidariedade universal seja um objetivo nobre. É admirável aquele que quer e que pode praticá-la. No entanto, as condiyóes específicas de cada sociedade mostraráo mostraráo quanto tempo tem po sua pretensao de estar ao lado do bem ilimitado pode conviver com a barbárie coti diana. Os alemáes, por exemplo, difícilmente poderiam apresentar-se como avalistas da paz e campeóes mundiais dos direitos humanos, quando bandos delinqüentes e incendiários propagam día e noite o medo e o terror. 62
Nao podemos responder pelo problema de Kashmir; sabemos muito pouco sobre as desavengas entre sunitas e xiitas, támeis e singaleses; o que deverá tornar-se Angola é urna questáo a ser discutida em primeira linha pelos pró-
Nao podemos responder pelo problema de Kashmir; sabemos muito pouco sobre as desavengas entre sunitas e xiitas, támeis e singaleses; o que deverá tornar-se Angola é urna questáo a ser discutida em primeira linha pelos próprios angolanos. E, antes de cairmos nos bracos dos bos nios beligerantes, é preciso que se esgote a guerra civil em nosso próprio país. Para os alemáes deveria prevalecer o seguinte pensamiento: nossa prioridade nao é a Somália, mas Hoyerswerda e Rostock, Mölln e Solingen. Para a reso l u t o desses desses problemas problemas basta basta o alcance alcance de nossa nossass agöe agöes, s, com esse propósito pode-se exigi exigirr a participa par ticipado do de nossos nossos concidadáos, por esses problemas somos os próprios responsáveis. Mas nao é necessário ser alemáo e, sobretudo, nao é necessário falar inglés ou latim para saber o que significa: H i c Rhod Rhodus, hic hic salt salta! a! First First thin thi ngsfirst. fi rst. O fogo está em to da parte diante de nossas próprias casas.
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M I LA GRES GRES TEMPORARIOS
Nem todos estáo acometidos da demencia assassina e suicida. Nem todos desejam o desaparecimento dos outros ou de si mesmo. No dia da exaustáo absoluta, quando se tiver atingido o objetivo dos combatentes, quando portanto o país estiver em ruinas e os mortos sepultados, ai sim aparecem os verdadeiros heróis da guerra civil. Eles chegam tarde. Sua aparigáo nao é heroica. Eles nao chamam a atengao e nao sao vistos ñas telas de tevé. Em urna oficina improvisada sao produzidas próteses para os aleijados. Urna mulher procura trapos para serem usados como fraldas. De pneus furados a bala sao feitos sapatos. O primeiro encanamento é improvisado, o primeiro gerador cometa a funcionar. Contrabandistas se encarregam de fornecer combustível. Um carteiro aparece. A máe que perdeu seus filhos coloca urna placa feita á mao dian te de urna cabana e inaugura o único café visível na imensidáo do lugar. O bispo atrai mercenarios perdidos para dentro da choupana ao lado da igreja e monta uma oficina mecánica. Inicia-se a vida civil. Náo há como evitar, até a próxima vez. Mesmo a guerra civil de pequeñas dimensóes, a guer ra civil molecular, náo dura eternamente. Após a batalha de rúa, rúa, vem o vidracei vidraceiro; ro; após o saque aos bens ben s públicos, p úblicos, dois homens com alicate e conectores ligam novamente o tele64
fone na cabine devastada. Médicos de emergéncia trabalham durante toda a noite ñas clínicas abarrotadas para sal var a vida de sobreviventes. A persistencia desses homens parece um milagre. Eles
fone na cabine devastada. Médicos de emergéncia trabalham durante toda a noite ñas clínicas abarrotadas para sal var a vida de sobreviventes. A persistencia desses homens parece um milagre. Eles sabem que nao podem consertar o mundo. Apenas um pe queño canto, um telhado, um ferimento. Sabem até que os assassinos assassinos retornaráo na semana seguinte ou em uma uma déca dé ca da. A guerra civil civil nao dura dura para sempre, semp re, mas ameaga com co m egar continuamente, a todo instante. Tentou-se fazer de Sísifo Sísifo um herói existencial, um outsider e rebelde de dimensóes trágicas sobrenaturais, cir cundado por um brilho diabólico. Talvez isso seja falso. Talvez Sísifo seja algo muito mais importante, uma figura do dia-a-dia. Os gregos interpretavam seu nome como um superlativo de sophos, “astuto”; Homero chama-o, inclusi ve, de o mais astuto entre os homens. Ele náo era filósofo, mas um ser ardiloso. Conta-se que conseguiu encantar a Morte, pondo um fim á extingáo voluntária da vida, ao ato de matar. Até que Ares, o deus da guerra, libertou a Morte e entregou-lhe o próprio Sísifo. Mas este a enganou uma segunda vez e retornou á Terra. Imagina-se que viveu por muitos anos. Mais tarde, como punigáo por sua compreensáo hu mana, mana, foi condenad cond enadoo a empurrar empurrar uma uma enorme enorm e pedra para o topo de uma montanha, continuamente. Essa pedra é a paz.
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REFERENCIAS E A GRADE GRADEC CIM ENTOS
Os dados sobre participares no mercado mundial e expor tado de armamentos foram extraídos das estatísticas do g a t t e do do siPRi. Citei Hannah Arendt a partir da terceira parte de sua obra Elemente und Ursprünge totaler Herrschaft ( The The orig origi ns of of tota totalli tarianism L4s origens do totalitarismo, Nova York, 1951, ed. ale ma, 1955). O depoimento do assistente social francés foi publica do por Stephan Wehowsky no Süddeutschen Zeitung, ed. de 21-22/11/1992; o artigo tem o título de “Lust an der Randale” [o prazer da vadiagem]. A expressäo reductio ad insanitatem é de Robert Hughes. Informales mais precisas sobre a questäo A uf Kos oste ten n der Drit Dri tten Welt? [Äs custas do Terceiro Mundo?] podem ser obtidas no ensaio de mesmo nome de Siegfried Kohlhammer (Göttingen, 1993). O livro injustamente esquecido de Frantz Fa nón é Les damnés de la terre [Os condenados da terra] (Paris, Verdamm dammten di di ese serr Erde Erde,, Frankfurt am Main, 1961, ed. alemä: Di e Ve 1966). A mais importante interpretado recente da dialética enntroduction ti on ä la l a le l ecture de He contra-se em Alexandre Kojéve: I ntroduc gel (Paris, 1947, ed. alemä: He Heg gel . Ei ne Ve Vergegenwär nwärtti gung se seiines nes Denkens, Stuttgart, 1958). A citado do Leviathan de Thomas Hobbes está localizada no capítulo 21. Sobre a concepd° de for taleza e de novas fronteiras fronteiras há há urn rnaa boa publ pu blic icad adoo de Jean-Chrismpire et le l es nouve nouveaux aux barbar barbare es (Paris, 1991, ed. tophe Rufin: L ’empir alemä: Das Reich und die neuen Barbaren, Berlim, 1992). Existe uma edido alemä da reportagem de Bill Buford Among the thugs walt [Tesäo (Londres, 1991) com o título de moda de Geil a uf Gewal 66
pela violencia] (Munique, 1992). [A edigäo brasileira, Entre os vándalos, é de 1992, da Companhia das Letras.] A apología do herói de revólver de André Breton pode ser lida no Second manifes tedu surre surreali al i sm sme e(Paris, 1930, ed. alemä: Manifeste des Surrealis
pela violencia] (Munique, 1992). [A edigäo brasileira, Entre os vándalos, é de 1992, da Companhia das Letras.] A apología do herói de revólver de André Breton pode ser lida no Second manifes tedu surre surreali al i sm sme e(Paris, 1930, ed. alemä: Manifeste des Surrealis mus, Hamburgo, 1968). O Petersburger Tagebuch [O diario de Säo Petersburgo] de Sinaida Hippius foi publicado em alemäo com o título Im Reich des Antichrist [No império do Anticristo] (Munique, 1921, Berlim, 1993). Kurt Gödel publicou primeiramente seu tratado “Über formal unentscheidbare Sätze der Princi pia Mathematica”[Premissas formalmente diferenciáveis dos prin cipios da matemática] no volume 38 do Monatshefte für Mathematik und Physik (1931). Hoje fala-se até de “matemáticas locáis” (cf. J. L. Bell, “From absolute to local mathematics”, Synthese, vol. 69, 1986). Agradego a Robert Nozick (Harvard) assim como a Gabriele Goettle e Karl Schlögel (Berlim) pelas essenciais sugestöes e reflexöes. O presente texto foi exposto parcialmente em junho de 1993 em Osnabrück como agradecimento pelo Premio da Paz que reSpi egel e cebi dessa cidade. Uma edifäo prévia foi publicada no Spie em diversos jomáis europeus. HME
t.
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A EUROPA EM RUÍNAS
A EUROPA EM RUÍNAS
Poucos dias antes de deixar Luanda, amigos americanos me levaram para jantar num restaurante do mercado ne gro. Comemos em mesas na calcada, numa pequeña área rodeada por uma cerca. Toda a clientela parecía compos ta de gente que lucrava de algum modo com o mercado negro. Sentamo-nos bem perto da cerca que nos separava da rúa e, estando eu de costas e absorvido na conver sa, nao percebi de inicio o grande grupo de pessoas que se tinha reunido atrás de nós e estendia as máos para ten tar pegar coisas em nossos pratos. Mas a gerencia do res taurante logo mandou um seguranza, que derrubou uma velha senhora com um soco na cabera e espantou a tur ba. Alguns desapareceram, enquanto outros, sempre mantendo uma certa distancia, continuavam a olhar fixamente para os freqüentadores, em silencio. Aquí em Beirute, há refugiados deitados em cada degrau grau,, e tem-se a impressáo de que nao n ao ergueriam ergueriam os olhos nem mesmo se um milagre ocorresse no meio da praga, táo certos estáo de que nenhum milagre há de acontecer. Se alguém lhes dissesse que algum outro país além do Lí bano estava disposto a aceitá-los, comegariam a recolher seus caixotes, sem acreditar de verdade. A vida que levam é irreal, uma espera sem qualquer perspectiva, e nao se apegam mais a ela: a bem dizer, é a própria vida que 71
se aferra a eles, urna vida fantasmagórica, um animal invisivel que sente fome e os arrasta pelas estaçôes ferro-
se aferra a eles, urna vida fantasmagórica, um animal invisivel que sente fome e os arrasta pelas estaçôes ferroviárias em ruinas, dia e noite, chova ou faça sol; ela res pira nas crianças que dormem estendidas no meio do entulho, com as mâos entre os braços ossudos, enrodilhadas feito embriôes no ventre materno, como se dese jassem ansiosas voltar voltar para là. là. A guerra em El Salvador jà dura vários anos, sem qualquer sinal de paz à vista. Em diversas ocasióes, pareceu que o governo conquistara urna vitória decisiva; mas os guerrilheiros sempre tomam a brotar, sem perder muito de sua força. Devemos ter em mente, com a máxima cla reza, que a liderança do movimento contava com cerca de 8 mil homens quando a guerra começou; hoje, embora as baixas tenham sido consideráveis entre mortos e capturados, eles somam mais de 20 mil. O que é perturbador nesta área do Norte do Sri Lanka nâo é que qu e tenhamos medo de ser molestados molestados — pelo pe lo me nos nâo à luz do dia — e sim a certeza de que pessoas co mo nós, caso fossem submetidas a este tipo de vida, sucumbiriam em no máximo très dias. Percebemos com muita clareza que até mesmo uma vida como esta tem suas próprias leis, e que levaríamos anos para aprendélas. Um caminháb carregado de policiais: espalham-se imediatamente, alguns ficam parados e sorriem, enquanto eu olho para eles sem a menor idéia idéia do que esteja aconac ontecendo. Quatro rapazes e très moças sào embarcados no caminhào, onde se acocoram entre jovens que já foram recolhidos em outros lugares. Indiferentes, impenetráveis. Os policiais portam capacetes, além de pistolas au tomáticas, e portanto tém autoridade, mas nenhum conhecimento. Os jornais trazem uma coluna diária sobre ataques nas ruas, vez por outra sâo encontrados corpos nus e os assassinos geralmente vém do outro lado. Distri tos inteiros sem uma única luz acesa. Uma paisagem de 72
montanhas de tijolos, por baixo délas os soterrados e acima délas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos. Noticias sobre o Terceiro Mundo, do tipo que lemos
montanhas de tijolos, por baixo délas os soterrados e acima délas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos. Noticias sobre o Terceiro Mundo, do tipo que lemos todas as manhás na hora do café. No entanto, os nomes dos lugares sao falsos. As locacóes envolvidas nao sao Luanda e Beirute, El Salvador ou Trincomalee; sao Roma e Frankfurt, Atenas e Berlim. E apenas 45 anos nos separam de condigóes que nos acostumamos a considerar africanas, asiáticas ou latino-americanas. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a Europa estava reduzida a destrozos, e nao apenas no sentido físico; também parecia arruinada em termos políticos e moráis. E nao era apenas aos alemáes derrotados que a situagáo parecia sem saída. Quando Edmund Wilson esteve em Londres no mes de julho de 1945, encontrou os ingleses num estado de depressáo coletiva. A atmosfera da cidade lembrou-lhe o desalentó de Moscou: “Como tudo passa a parecer vazio, insalubre e sem sentido no momento em que a guerra aca ba! Só o que nos sobra é a vida empobrecida e humilhante de que o avanzo contra o inimigo desviava nossos espíritos. Já que todos os nossos esforijos se voltavam para a destruifáo, nao pudemos construir em nosso país nenhum lugar onde possamos refugiar-nos em meio á nossa própria ruina”. Ninguém se atrevía a crer que o continente devastado ainda pudesse ter qualquer futuro. No que dizia respeito á Europa, tudo indicava que a história do continente tinha chegado ao fim com um ato absurdo de autodestruigáo, desencadeado e concluido pelos alemáes com urna energía selvagem: “Eis o que existe”, escreveu Max Frisch na pri mavera de 1946, “a reiva crescendo no interior das casas e os dentes-de-leáo no interior das igrejas. Pode-se até ima 73
ginar que tudo isto poderia continuar a crescer, que urna floresta poderia desenvolver-se cobrindo nossas cidades,
ginar que tudo isto poderia continuar a crescer, que urna floresta poderia desenvolver-se cobrindo nossas cidades, lenta e inexoravelmente, prosperando sem a ajuda de máos humanas, um silencio de cardos e musgo, urna térra sem historia, apenas o chilreio dos pássaros, a primavera, o verao e o outono, ou tono, o sopro dos anos, qu e nao há mais ninninguém para contar”. Se, na década de 40, alguém contasse aos habitantes das cavernas de Dresden ou de Varsóvia como seria sua vi da em 1990, todos achariam que era louco. Para as pessoas de hoje, porém, seu próprio passado tornou-se igualmente inimaginável. Faz muito tempo que o reprimiram e esqueceram, e falta aos mais jovens a imaginado e o conhecimento que lhes permitiriam formar urna idéia de como foram aqueles tempos distantes. A cada ano que passa, fica mais difícil imaginar as condifóes do nosso continente ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os romancistas, com as excegóes de Heinrich Boíl, Primo Levi, Hans Werner Richter, Louis-Ferdinand Céline, Curzio Malaparte e poucos ou Trümmerlite rli te-tros, capitularam diante do tema; a chamada Trü ratur— a literatu literatura ra das ruinas ruinas — nao cumpriu exatamente exatam ente o que prometía. Os velhos jomáis da tela exibem imagens monótonas de destruifáo, e a narragao é composta de frases ocas; os filmes nao nos dao qualquer indicagáo do estado interior dos homens e mulheres que atravessavam as cidades de vastadas. A literatura de memorias produzida mais tarde ca rece de autoridade, em parte porque os autores tendem quase sempre á autojustificagáo e auto-acusayáo. Mas há outra objegáo de maior peso: ela nao langa dúvidas sobre a integridade desses autores, e sim sobre sua perspectiva. Quando se voltam para o passado, eles perdem precisa mente aquilo que mais deveria importar: a coincidencia do observador com aquilo que ele examina. As melhores fon74
tes tendem a ser os relatos de testemunhas oculares con temporáneas. O estudo desses relatos é, contudo, urna experiencia estranha. Urna das peculiaridades do período pós-guerra é
tes tendem a ser os relatos de testemunhas oculares con temporáneas. O estudo desses relatos é, contudo, urna experiencia estranha. Urna das peculiaridades do período pós-guerra é urna ignorancia desconcertante, um estreitamento dos ho rizontes inevitável sob condigóes de vida extremas. Na melhor das hipóteses, o que se constata é urna clara falta de conhecimento do mundo, fácilmente explicável pelos anos de isolamento. John Gunther escreveu em Varsóvia sobre um jovem soldado com quem travou conversa numa noite de veráo de 1948: “Com ele nao havia rodeio. Sabia exatamente o que a Polonia sofrera e o que ele próprio sofrera. Sua ignoráncia do mundo exterior, porém, era considerável. Nunca tinha encontrado um americano antes. Quería saber se Nova York tinha sido táo kaputt pela guerra quanto Varsóvia”. Em outros lugares, os americanos eram encarados co mo se fossem marcianos, e tudo o que traziam consigo era tratado com urna reverencia que lembrava os cargo cults da Polinésia. Naqueles anos, os europeus tinham atitudes semelhantes as encontradas no Terceiro Mundo. Qualquer um que só pense na próxima refeifáo, que seja forjado a improvisar um teto sobre a cabera, geralmente carece da vontade e da energía necessárias para manter-se a par dos fatos e bem informado a seu respeito. Além do mais, havia a ausencia da liberdade de ir e vir. Milhóes de pessoas estavam em movimento, mas apenas para salvar a própria pe le. As viagens, no sentido corrente da palavra, eram total mente impossíveis. A pobreza das fontes, porém, nao se deve apenas a causas externas. Nos primeiros anos depois da guerra, as conseqüéncias a longo prazo das ditaduras fascistas tornavam-se evidentes em toda parte. Isso ocorreu sobretudo na Alemanha, mas também podia ser observado em outros lu 75
gares (houve colaboracionistas em todos os países ocupa dos). E é exatame exa tamente nte por po r isso isso que os o s individuos individuos diretamendiretamen-
gares (houve colaboracionistas em todos os países ocupa dos). E é exatame exa tamente nte por po r isso isso que os o s individuos individuos diretamendiretamente envolvidos dáo os piores testemunhos. Os europeus se refugiaram numa amnésia coletiva. A realidade nao era apenas ignorada; era negada por completo. Com um misto de letargía, desprezo e autocomiserafáo, os europeus regrediram a uma espécie de segunda infancia. Qualquer um que se deparasse pela primeir primeiraa vez com esta síndrome ficava atónito; parecía uma forma de insanidade moral. Quando visitou a Renánia em abril de 1945, a jornalista america na Martha Gellhorn ficou enfurecida, na verdade chocada, com as afirmacóes dos alemáes que entrevistou: Ninguém é nazista. Ninguém nunca foi. Pode ser que houvesse alguns nazistas no próximo povoado e, pen sando bem, aquela cidade a vinte quilómetros daqui era um verdadeiro foco do nazismo. Aqui entre nós, para lhe dizer a verdade, havia muitos comunistas aqui. Sempre fomos conhecidos conhecid os como c omo vermelhos. Oh, os jude judeus? us? Bem, nao havia muitos judeus nessa vizinhanfa. Dois, talvez seis. Eles foram levados embora. Eu escondí um judeu por seis semanas. Eu escondí um judeu por oito semanas. (Eu escondí um judeu, ele escondeu um judeu, todo mundo aqui escondía judeus.) Nao temos nada contra os judeus; judeus; sempre nos demos muito muito bem com eles. Estamos faitos deste governo. Ah, como nós sofremos. As bom bas. Semanas vivendo nos poróes. Bem-vindos sejam os americanos. Nao temos medo deles; nao temos nenhuma razáo para temer. Nao fizemos nada de errado; nao so mos nazistas. Achamos que estas palavras deviam ser musicadas. Ai os alemáes poderiam cantar este refráo, e ele ficaria aín da melhor. Todos os alemáes falam assim. Ficamos sem saber como foi que o detestado governo nazista, a que ninguém obedecía, conseguiu sustentar-se por cinco 76
anos e meio. É claro que nao existe na Alemanha homem, mulher ou crianza que tenha sido favorável á guer ra nem por um minuto sequer, segundo dizem. Nós, vazios de expressáo e cheios de desprezo, escutamos essa
anos e meio. É claro que nao existe na Alemanha homem, mulher ou crianza que tenha sido favorável á guer ra nem por um minuto sequer, segundo dizem. Nós, vazios de expressáo e cheios de desprezo, escutamos essa historia sem qualquer simpatía e certamente sem respeito. Ver uma nagáo inteira passando a culpa adiante nao é um espetáculo muito instrutivo. Mais Mais de dois anos ano s depois, d epois, outra outra observadora observad ora estrangeira, a jornalista Janet Flanner, chegou a conclusóes semelhantes: A nova Alemanha encara com amargor todos os outros habitantes da Terra e, curiosamente, está muito satisfeita consigo mesma. Explodindo em queixas sobre sua fome, seus lares perdidos e outros sofrimentos, contempla sem interesse ou compaixáo as dores e perdas que impós a outros. Ao mesmo tempo, espera e aceita, geralmente com reparos em lugar de agradecimentos, a caridade das na^óes que tentou destruir... A frase que mais se ouve ho je em Berlim é: “Isso foi durante a guerra, guerra, mas agora esta mos em paz”. Esta afirmativa críptica significa, em tradufáo livre, que ninguém se sente responsável pela guerra, a qual é vista como um ato da historia, e que para eles os problemas e as confusóes da paz sao culpa dos Aliados. Ninguém aqui menciona mais o nome de Hitler. Apenas dizem, sombríos: “Früber war es bessef (as coisas iam melhor antes), querendo dizer nos tempos de Hitler. Só poucos alemáes parecem lembrar que, depois das ocupa r e s de 1940, algu alguns ns deles tiv tiver eram am o bom senso de criar criar o slogan: “Aproveitem a guerra. A paz será terrível”. E é. Isso basta para dar uma idéia do estado da consciencia dos alemáes. Mas outros europeus nao estavam menos en gañados. Conta John Gunther: “Perguntei a um alto políti co grego qual era a solugáo, se é que existia, e ele respon77
cleu cleu numa palavra: guerra’. gue rra’. De fato, muitos gregos gre gos conse con ser r vadores acreditam que só podem ser salvos por urna guer ra declarada entre os Estados Unidos e a Uniáo Soviética;
cleu cleu numa palavra: guerra’. gue rra’. De fato, muitos gregos gre gos conse con ser r vadores acreditam que só podem ser salvos por urna guer ra declarada entre os Estados Unidos e a Uniáo Soviética; desejam ativamente a guerra, por mais horrível que isso possa parecer, e nao fazem qualquer esforzó para escondé-lo. Perguntei ao meu amigo: ‘E o senhor acha que vai haver have r urna urna guerra?'. guerra?'. E ele el e responde respo ndeu: u: A Europa está vivendo na anarquia. Cem milhóes de pessoas foram escravizatem que acontecer. É preciso haver urna guer das. A guerra tem ra, senáo perderemos tudo”.
Qualquer pessoa que recorra as opinióes publicadas na esperanza de obter um quadro mais claro da situayáo na Europa do pós-guerra ficará ainda mais frustrada. É virtual mente impossível encontrar veredictos equilibrados, análises inteligentes ou reportagens convincentes nos jornais e revistas dos anos de 1945 a 1948. E nao apenas por causa das restrifóes impostas impostas pelas potencias po tencias de ocupa^áo. A disdisposi
Por todas essas razóes, nao se pode confiar muito no testemunho dos individuos diretamente afetados. Se alguém quiser obter um quadro razoavelmente preciso das condifóes ¡mediatamente posteriores á guerra, precisa vol-
Por todas essas razóes, nao se pode confiar muito no testemunho dos individuos diretamente afetados. Se alguém quiser obter um quadro razoavelmente preciso das condifóes ¡mediatamente posteriores á guerra, precisa voltar-se para outras fontes. Tudo parece indicar que a fonte mais confiável que temos é o olhar de alguém de fora. E os relatos mais agujados foram produzidos pelos autores que acompanhavam os exércitos vitoriosos dos Aliados. Entre eles se destacam os melhores repórteres dos Estados Uni dos, jornalista jornalistass com co m o Janet Jan et Flanner e Mart Marthha Gellhorn, e es e s critores como Edmund Wilson, que nao se achavam supe riores demais para trabalhar na imprensa. Todos se filiam á grande tradi^áo anglo-saxá da reportagem literaria — na Europa continental, até hoje, nada foi produzido que se lhe compare. Outras fontes valiosas sao produto do acaso, co mo os relatórios confidenciais de um editor americano que trabalhava para o servido secreto dos Estados Unidos ou as anota^óes de refugiados que tentaram o retorno para o Velho Mundo. Mais tarde, escritores de países poupados pela guerra, como o suífo Max Frisch e o romancista sueco Stig Dagerman, também deram suas contribuiyóes. Todos eles vinham de um mundo que era semelhante ao nosso: ordenado, regular, caracterizado pelas mil e urna coisas que consideramos normáis numa sociedade civil operante. Por isso mesmo, a sensa^áo de choque que tiveram diante da catástrofe européia foi maior ainda. Mal conseguiam acreditar em seus olhos ao se deparar com as ce nas brutais, extravagantes, aterradoras e comoventes que encontraram em Paris e Nápoles, ñas aldeias de Creta e ñas catacumbas de Varsóvia. É o olhar do estrangeiro que pode nos fazer fazer percebe perce berr o que qu e ocorria na Europa; Europa; porque ele el e nao se concentra numa análise ideológica restritiva, e sim nos detalhes físicos mais reveladores. Enquanto os principáis artigos e polémicas do período apresentam sempre um es79
tranho ranço, esses relatos de testemunhas oculares preservam seu frescor. Os especialistas especialistas na percepçâo percep çâo produzem melhor quanquan-
tranho ranço, esses relatos de testemunhas oculares preservam seu frescor. Os especialistas especialistas na percepçâo percep çâo produzem melhor quanquando generalizam menos, quando nâo censuram as contradiçôes fantásticas do mundo caótico em que ingressaram, apresentando-as da forma como as encontram. Max Frisch conclui suas anotaçôes sobre Berlim citadas acima com uma observaçâo lacónica que silencia qualquer debate acerca do estado da civilizaçâo: “Uma paisagem de montanhas de tijolos, por baixo délas os soterrados e acima délas as estrelas cintilantes; nada se move ali, além dos ratos. — Noite no teatro: ¡figénia". Um grau francamente espantoso de antevisao emerge dos textos desses estrangeiros. Ñas capitais das poténcias vitoriosas da época, funcionavam comissóes de planejamento compostas de políticos, economistas e cientistas sociais com a finalidade de preparar relatónos sobre os futu ros desenvolvimentos da Europa. É espantoso descobrir que os relatos dos melhores jornalistas, que perambulavam pelo continente com grande independéncia, confiando confiando ape ape nas em seus olhos e ouvidos, sao muito superiores ás análises lises desses especialistas. Um bom exemp exe mplo lo é a reportagem reportagem escrita por Martha Gellhorn em julho de 1944, momento em que nao havia em Washington ninguém que já pensasse na Guerra Fría. Fría. Num povoado povo ado à beira do Adriático, Adriático, no meio de um duelo de artilharia, Gellhorn travou conversa com sol dados de uma unidade polonesa que combatía os alemáes: Eles viajaram muito desde que deixaram a Polonia. Intitulam-se os Lanceiros dos Cárpatos porque, em sua maioria, fugiram da Polonia atravessando aquelas montanhas. Faz quase cinco anos que deixaram seu país. Por très anos e meio, este regimentó de cavalaria formado na Si ria lutou no Oriente Médio e no Deserto Ocidental. Em ja80
neiro passado, voltaram para seu continente europeu através da Italia, e foi o Corpo Polonés, em que este regi mentó blindado lutou como com o infantaria, infantaria, que qu e finalmente tomou Cassino em maio. Em junho come^aram seu grande avanzo ao longo do Adriático, e a presa, Ancona — em
neiro passado, voltaram para seu continente europeu através da Italia, e foi o Corpo Polonés, em que este regi mentó blindado lutou como com o infantaria, infantaria, que qu e finalmente tomou Cassino em maio. Em junho come^aram seu grande avanzo ao longo do Adriático, e a presa, Ancona — em que este regimentó foi o primeiro a entrar — , ficou ficou para trás de nós. Ainda falta um longo caminho até a Polonia, até os grandes montes Cárpatos, e cada milha do caminho foi conquistada com grande bravura. Mas agora eles nao sabem o que váo encontrar quando chegarem em casa. Combatem o inimigo que tém na sua frente, e o fazem de maneira soberba. E temem de todo o coragáo um aliado que já está instalado em sua pátria, pois nao acreditam que a Rússia vá renunciar á Polonia depois da guerra-, te mem acabar sendo sacrificados nesta paz, como ocorreu com a Tchecoslováquia em 1938. É preciso lembrar que praticamente todos esses homens, qualquer que seja sua patente, classe ou condifáo económica, cumpriram pena em alguma prisáo alema ou russa durante esta guerra. É preciso lembrar que, por cinco anos, nao tiveram qual quer noticia de suas familias, das quais muitos membros ainda se encontram presos na Rússia ou na Alemanha. E preciso lembrar que a historia desses poloneses só conhece 21 anos de liberdade nacional, acumulando urna longa e dolorosa memoria de dominio estrangeiro. Assim, conversamos sobre a Rússia e eu tentei dizerlhes que seus medos tinham de ser infundados, ou entáo nao haveria paz no mundo. Que a Rússia haveria de apresentar na paz a mesma grandeza dos tempos de guerra, e que o mundo precisava reconhecer o valor e o sofrimento dos poloneses, dando-lhes a liberdade de reconstruir e melhorar a sua sua pátria. pátria. Tentei dizer que eu nao podia acre ac re ditar que esta guerra, travada para defender os direitos do homem, vá ignorar no final os direitos dos poloneses. 81
Mas nao sou polonesa; venho de um grande país livre e falo com o otimismo dos que estáo sempre sempr e a salvo. salvo. E lembro do soldado alto e gentil de 22 anos que dirigía meu
Mas nao sou polonesa; venho de um grande país livre e falo com o otimismo dos que estáo sempre sempr e a salvo. salvo. E lembro do soldado alto e gentil de 22 anos que dirigía meu jipe um dia, dia, explic e xplicando ando calmamente que seu pai morrera morrera de fome num campo alemáo de prisioneiros, que sua máe e sua irmá estavam havia quatro anos sem dar noti cias num campo de trabalho na Rússia, que seu irmáo estava desaparecido e que ele próprio nao tinha profissáo porque entrara para o exército aos dezessete anos e assim nao tivera tempo de aprender nada. Ao me lembrar desse rapaz e de todos os outros que conheci, com suas historias espantosas de provafao e exilio, pareceu-me que nenhum americano tinha o direito de falar com os poloneses, já que nunca sequer passamos perto de um sofrimento comparável. Os editores da revista Collier’s, para a qual Martha Gellhorn trabalhava, recusaram-se a publicar esta reportagem porque as observagoes proféticas dos poloneses sobre a Uniáo Soviética, o mais importante aliado dos Estados Uni dos á época, nao lhes eram convenientes. O que torna o trabalho desses repórteres tao esclarecedor nao é que eles dispusessem de urna objetividade su perior, mas justamente o contrario: atinham-se a seu ponto de vist vistaa radicalmente subjetivo, subjetivo, mesmo m esmo — e sobretudo so bretudo — quando se enganavam. Um dos custos da proximidade ¡mediata é que a pessoa acaba infectada pelo que a cerca, nao tendo como elevar-se acima dos acontecimentos. As questóes mais sensíveis no contexto dos anos do pós-guerra emergem assim com maior clareza: as fricfóes entre in gleses e americanos, a fúria dos vitoriosos ante a impudéncia pomposa dos italianos, e acima de tudo o ódio aos alemaes, que em alguns observadores chega a assumir a forma de asco e desejo de vinganga. Quem quer que tivesse procedido como os alemaes e continuasse a proceder 82
como eles — ou seja, sem qualquer remorso — nao podía esperar um tratamento justo; quase todos os representantes das nagóes vitoriosas estavam convencidos disso, e nao é de modo algum supérfluo lembrar as expressóes extrema
como eles — ou seja, sem qualquer remorso — nao podía esperar um tratamento justo; quase todos os representantes das nagóes vitoriosas estavam convencidos disso, e nao é de modo algum supérfluo lembrar as expressóes extrema das de sentimentos durante aqueles anos. Nao admira que os observadores originários de países neutros apresentem avaliagóes mais sofisticadas. Nao que possam ser acusados de urna simpatía especial pelos alemáes; conseguem, porém, mais que os vitoriosos, reconhecer as ambigüidades de seu próprio papel. Depois de urna visita á Alemanha no outono de 1946, o sueco Stig Dagerman escreveu: Se pretendermos arriscar algum comentário sobre a disposi^áo amarga em relagáo aos Aliados, temperada de autodepreciagáo, apatía e comparares com as desvantagens do presente — todas evidentes para qualquer visi tante naquele outono sombrío — é necessário ter em mente toda urna série de ocorréncias particulares e de condi
cheiroso, salta em seu carro inglés ou em seu jipe ameri cano e meia hora depois, junto a uma dose de bebida ou a um bom copo da verdadeira cerveja alemà, no bar do
cheiroso, salta em seu carro inglés ou em seu jipe ameri cano e meia hora depois, junto a uma dose de bebida ou a um bom copo da verdadeira cerveja alemà, no bar do hotel freqüentado pela imprensa, compóe um artigo so bre o tema “O nazismo ainda vive na Alemanha”. Cinqüenta anos depois da catástrofe, a Europa se en tende mais do que nunca como um projeto comum, mas ainda está longe de ter formulado uma análise abrangente de seus primordios nos anos imediatamente posteriores à Segunda Guerra Mundial. A memoria do período é incom pleta e tacanha, nos casos em que nao cedeu totalmente à repressâo ou à nostalgia. E isso nào ocorre apenas porque as pessoas estivessem absorvidas em sua própria sobrevivência e mal se incomodassem com o que acontecía ao la do délas; délas; ocorre o corre também tam bém porque relut relutam, am, hoje, em falar falar so bre os esqueletos ocultos no armário. Preferimos tratar do futuro promissor da Comunidade Européia ou da abertura da Europa Oriental a lembrar aqueles tempos táo desagradáveis, em que ninguém se disporia a arriscar um níquel apostando no renascimento de nosso continente. Uma estratégia um tanto fatal, porque em retrospecto tudo indica que foi nos anos 1944-8 que, sem que os protagonistas suspeitassem, plantaram-se as sementes nao só dos futuros sucessos como também dos futuros conflitos. Umaa bomba de alto teor explosivo é uma bomba de al Um to teor explosivo, o inchaço da fome nao faz distinçâo en tre pretos e brancos ou justos e injustos, mas nem o poder de destruiçâo das forças aéreas e nem a miséria do pos guerra guerra foram foram capazes capaz es de homogeneizar homo geneizar a Europa e eliminar eliminar suas diferenças. Essas diferenças nao eram visíveis na terra queimada, mas permaneceram em hibernaçâo na cabeça das pessoas. As sociedades européias eram como cidades que foram destruidas, mas se preservaram plantas detalha84
das de sua construgáo e todos os registros de imóveis; seus diagramas invisiveis de circuitos e instalares, os projetos de suas redes, redes, sobreviveram sobreviveram á destru des truid ido, o, com toda a var varieiedade original. As diferengas ñas tradigóes, ñas capacidades
das de sua construgáo e todos os registros de imóveis; seus diagramas invisiveis de circuitos e instalares, os projetos de suas redes, redes, sobreviveram sobreviveram á destru des truid ido, o, com toda a var varieiedade original. As diferengas ñas tradigóes, ñas capacidades e ñas mentalidades tornaram a emergir. E as tentativas de ressurreigáo foram correspondentemente diversas. Como escreveu Norman Lewis em sua reportagem de 1944 sobre Nápoles: É espantoso testemunhar a luta desta cidade táo despeda zada, táo faminta, táo desprovida de todas as coisas que justificam a existencia de urn rnaa cidade, para para se adaptar adaptar ao colapso que a reduziu a condigoes que devem assemelhar-se á vida na Idade das Trevas. As pessoas vivem acampadas como beduinos em desertos de tijolo. Há pouca comida, pouca água, nada de sal e nem de sabáo. Muitos napolitanos perderam tudo o que possuíam, in clusive quase todas as roupas, nos bombardeios, e vi estranhas combinagóes de vestimentas pelas rúas, inclusive um homem vestindo urna antiga casaca, calcas de caga e botas do exército, e várias mulheres usando trajes femininos que podem ter sido feitos de cortinas. Nao há automóveis, mas carrosas as centenas, e algumas carruagens antigas como caleches e faetontes puxadas por cavalos magros. Hoje, em Posilippo, parei para observar o desmembramento metódico dos destrozos de um trator alemáo por jovens que se afastavam dele como formigas obreiras, carregando pedamos de metal de todas as for mas e tamanhos. A cinqüenta metros dali, urna mulher bem vestida com urna pluma no chapéu agachava-se pa ra ordenhar urna cabra. Á beira-mar, mais abaixo, dois pescadores amarraram com cordas várias portas recupe radas das ruinas, empilhando seu equipamento sobre elas e preparando-se para zarpar. Inexplicavelmente, nao é permitido que barcos de pesca saiam ao mar, mas a 85
proclamaçào nào diz nada sobre jangadas. Todos impro visan! e adaptam.
proclamaçào nào diz nada sobre jangadas. Todos impro visan! e adaptam. As atitudes que Lewis descreve ainda sao característi cas da populaçâo do Sul da Itália até os dias de hoje: urna inventividade que sabe como se aproveitar de qualquer abertura, um parasitismo de urna energía heroica, urna disposiçâo incansável de tirar partido de um mundo hostil. Mais ou menos na mesma ocasiáo, as prioridades dos fran ceses eram muito diferentes. Em fevereiro de 1945, Janet Flanner escrevia: A melhor noticia aquí é a resisténcia infinita dos france ses enquanto seres humanos. Diante de suas dificuldades, os parisienses sâo mais educados e pacientes do que eram em tempos de prosperidade. Embora nào tenham sabâo que faça espuma, tanto os homens quanto as mulheres emanam um cheiro civilizado quando os encontra mos no metro, em que todos viajam pois nào há ônibus nem táxis. Tudo aqui é substituto de alguma outra coisa. As mulheres que nào sao arrumadas, magras e puídas tém urna aparéncia arrumada, magra e chique quando fazem estalar os saltos-plataforma de seus sapatos de madeir deiraa — substi substituta tuta do couro — que soam como com o cascos casc os de cavalo. Seus casacos de ombros largos e um tanto surrados de pele de carneiro — substituta dos tecidos de là que os nazistas preferiam para seu próprio consumo — foram comprados no mercado negro très invernos atrás. As midinettes de Paris, para cuja imutável alegría nào existe substituto na terra, ainda usam seus turbantes acolchoados modelo Carlos x, fantásticamente altos e feitos em casa. As calças dos homens sáo surradas, porque nào podem ser reformadas em casa. Os jovens intelectuais dos dois sexos andam pela rua de roupas de esqui. Sáo os trajes que a resisténcia usava quando combatía e se 86
aquis, e isso ditou a moda dos congelava ao ar livre livre nos maquis, estudantes da Sorbonne. As normalidades mais sérias da vida parisiense tradicio nal seguem existindo em forma reajustada. As lojas de do
aquis, e isso ditou a moda dos congelava ao ar livre livre nos maquis, estudantes da Sorbonne. As normalidades mais sérias da vida parisiense tradicio nal seguem existindo em forma reajustada. As lojas de do ces convidam a freguesia a entrar e se inscrever para receber os pralinés de amêndoas, o doce convencional servido nos batizados franceses, mas é preciso exibir um certificado médico jurando que você e sua mulher estào realmente esperando um filho. Os alegres grupos de jovens convidados que podem pagar seguem para o ban quete de casamento apertados dois a dois em vélo-taxis, carrinhos de aluguel puxados a bicicleta que custam cen tenas de francos a hora. Outra noite, esta sua correspon dente viu um casai de noivos mais modestos iniciando sua vida comum no metrô. Destacavam-se dentre os demais passageiros da plataforma de Odéon, o noivo em seu smokingalugado com co m urna urna flor na boutonnière, a noiva toda de branco — isto é, urna capa de chuva branca, botas brancas de borracha, um suéter e urna saia brancos, um turbante branco e um grande ramalhete branco e fora de moda. Estavam de máos dadas. Soldados americanos do outro lado da linha gritavam-lhes votos de boa sorte. É claro que estas descriçôes também refletem os preconceitos e idées reçues do observador. Mas esta interpretaçào nâo basta para dar conta do que mais importa. E isso fica especialmente claro na matéria de John Gunther que apresento a seguir. Ela contraria praticamente todos os cli chés sobre os poloneses. Este vendaval concentrado de horror puramente inútil transformou Varsóvia em Pompéia. Ouvi um polonés sério dizer: “Talvez alguns gatos possam ter sobrevivido, mas certamente nenhum cachorro”. Depois da libertaçào, no inicio de 1945, o governo polonés tomou a decisáo heroica de reconstruir. 87
Todo polonés que eu encontrava exibia urna esperan za quase quas e violenta. “Está vendo vend o aquilo?” Um ministro do
Todo polonés que eu encontrava exibia urna esperan za quase quas e violenta. “Está vendo vend o aquilo?” Um ministro do gabinete me apontou algo que lembrava urna ravina atravancada. “Dentro de vinte anos, será nossos Champs Elysées.” Particularmente impressionante é [o trabalho de re construyo] na Cidade Velha, quase tao destrocada quanto o gueto. Uma pilha rasa de tijolos é tudo o que resta do Hotel Angelski, onde Napoleáo costumava hospedar se. Os tijolos velhos sao usados ñas novas estruturas, o que produz um efeito enlouquecido de colcha de retalhos. Centenas de casas só foram reconstruidas pela metade; assim que um único aposento da casa fica habitável, as pessoas mudam-se para lá. Nunca vi coisa mais impressionante do que a maneira como algumas pe^as de madeira sao usadas para fechar uma pilha de pedras ou tijolos, criando um aposento ou nicho para uma fami lia em cima dos destrozos. Uma das pontas de um prédio pode ser uma pilha de pó; na outra, véem-se cortinas ñas janelas. Boa parte desta furiosa reconstrugáo se deve ao traba lho voluntário; em sua maioria, ainda por cima, é feita á máo. Até mesmo os ministros saem e trabalham aos do mingos. Em toda Varsóvia, nao há mais do que dois ou tres misturadores de concreto e tres ou quatro guindastes elétricos; em toda Varsóvia nao se encontra uma única escavadeira! Um bando de homens escala uma parede, prende no alto um gancho de ferro atado á ponta de uma corda, depois desee e puxa. Pronto — a parede cai. E entáo alguns dos tijolos avariados sao usados no que está sendo construido. O efeito é quase o mesmo da dupla exposigáo num filme. Nao há tempo para um assentamento correto! Assim, esta cidade catastróficamente estripada, quem sabe a ruina mais selvagem jamais produzida pela máo da 88
maldade humana, vem sendo transformada numa nova metrópole que ferve e espuma de vigor. Tijolo a tijolo, minuto a minuto, máo após máo, Varsóvia está voltando
maldade humana, vem sendo transformada numa nova metrópole que ferve e espuma de vigor. Tijolo a tijolo, minuto a minuto, máo após máo, Varsóvia está voltando à vida graças à energia criativa e à imaginaçào de um povo imensamente talentoso e dedicado. Muito diferentes sao os sentimentos experimentados por outro visitante que observou o inicio da reconstruçâo alema numa viagem pelo Sul da Alemanha. E nao se pode exatamente dizer que os comentários de Alfred Dôblin tenham perdido parte de sua força com o correr das últimas décadas. A principal impressáo produzida pelo pais, e ela provoca o maior espanto em alguém que lá chegue no final de 1945, é que as pessoas correm de um lado para o outro em meio ás ruinas como formigas cujo ninho tenha sido destruido. Agitadas e ansiosas por trabalhar, sua principal queixa é nào poderem começar de imediato, por falta de materiais e de instruçôes. A destruiçào nào os deixa deprimidos, atuando como um estímulo intenso para o trabalho. Estou convencido de que, caso tivessem os meios de que carecem, sentiriam urna satisfaçâo pura com a destruiçào de suas cidades antigas, ultrapassadas e mal planejadas, e com o fato de terem agora a oportunidade de erguer algo de melhor qualidade, totalmente moderno. Uma cidade populosa como Stuttgart: multidôes, com o número aumentado pelo influxo de refugiados de ou tras cidades e regióes, caminhavam pelas ruas em meio aos destroços medonhos como se nada tivesse aconteci do e a cidade sempre tivesse ostentado sua aparéncia atual. Seja como for, a visào das casas destruidas nào tem nenhum efeito sobre eles. E se alguém acredita, ou já acreditou, que o infortunio de seu próprio país e a visào de tamanha devastaçào le89
variam os individuos a pensar, tendo sobre eles um efeito educativo, pode ver com facilidade que estava engaña do. As pessoas se limitam a apontar para certos grupos de casas, dizendo: "Aquelas foram atingidas durante esse
variam os individuos a pensar, tendo sobre eles um efeito educativo, pode ver com facilidade que estava engaña do. As pessoas se limitam a apontar para certos grupos de casas, dizendo: "Aquelas foram atingidas durante esse bombardeio, e as outras durante aquele outro”, e contam algumas anedotas. E só. Nao segue mensagem alguma, e com certeza nenhuma reflexáo posterior. As pessoas váo para o trabalho, entram em filas aqui, como em toda par te, para receber comida. Já J á há teatros, concert con certos os e cinemas aqui e ali, e todos ao que parece sao muito freqüentados. Os bondes estáo cir culando, horrivelmente lotados como em toda parte. As pessoas tém espirito prático e se ajudam mutuamente. Preocupam-se com o presente imediato de um modo que já vem perturbando p erturbando os mais mais ponderados. Aqui vive, como antes, um povo industrioso e ordeiro. Sempre obedeceram ao governo. Obedeceram a Hitler também, e de modo geral nao compreendem por que essa obediencia pode ter sido supostamente dañosa. Será muito muito mais mais fácil reconstruir suas cidades que q ue fazé-los fazé -los perperceber o que vivenciaram e compreender como tudo isso aconteceu. Pode parecer injusto que o veredicto sobre os esforgos de reconstruyo dos habitantes de Stuttgart soe táo mal-humorado em comparado com o elogio feito aos habitantes de Varsóvia. Mas nao temos como compreender a intrigan te energia dos alemáes se virarmos as costas á idéia de que conseguiram transformar seus defeitos em virtudes. Ficou demonstrado que qu e a insensibilidade foi a condi^áo de seu susucesso futuro. A qualidade ambigua desta relagáo emerge da reportagem seguinte, escrita por Robert Thompson Pell, um agente do servido secreto americano que, na primavera de 1945, viu-se encarregado de examinar as atividades dos di rigentes da empresa I. G. Farben durante o Terceiro Reich. 90
De maneira gérai, fiquei com a impressâo de que os líde res alemâes decidiram acomodar-se à necessidade — mas só até certo ponto. Enquanto isso, continuam a sondar nossos pontos fracos,. testando-nos a cada oportunidade,
De maneira gérai, fiquei com a impressâo de que os líde res alemâes decidiram acomodar-se à necessidade — mas só até certo ponto. Enquanto isso, continuam a sondar nossos pontos fracos,. testando-nos a cada oportunidade, tentando descobrir se de fato vamos cumprir o prometi do quando batemos na mesa, e apresentando o máximo de resistência que se atrevem a oferecer. Dizem quase abertamente que nâo conseguiremos dar conta da situaçào, e que no final acabaremos tendo que apelar mais uma vez para eles. Têm certeza de que cometeremos tan tos erros que lhes será inevitável reassumir o poder. Até entâo, tentarâo ganhar tempo e se preparar devidamente, enquanto deitamos tudo a perder. Além disso, exageram ao máximo o “perigo vermelho”. Assim que alguém se mostra ainda que só um pouco abordável — ou que acreditam perceber sinais disso — eles nos repetem incessantemente: “Estamos muito satisfeitos por serem vocês aqui, e nâo os russos”, e em alguns casos chegam até a afirmar que o exército alemáo só se retirou para que nos pudéssemos salvar dos russos a maior parte possível da Alemanha Ocidental. Os diretores que eu pegava em meu jipe todo dia mostravam-se sempre prontos a declarar que o povo alemâo fora vitima de uma conspiraçâo internacional visando en tregar este adorável país a forças desconhecidas; que a Alemanha travara uma guerra defensiva; que os violentos ataques aéreos dos Aliados uniram o povo alemáo, nao tiveram qualquer valor militar e foram um erro sério; e que eram eles os verdadeiros defensores da civilizaçâo ocidental contra as “hordas asiáticas”. Em suma, o país vivia no caos e o povo numa condiçào de histeria que evoluiu rápidamente, transformándo se numa atitude de desafio e num sentimento de que recebiam um tratamento injusto, uma atitude imaculada por qualquer sinal de culpa. A maioria desses homens de al91
ta posiçâo, às vezes as mais altas, na sociedade alemâ ad mitía prontamente que a Alemanha perderá a guerra, mas
ta posiçâo, às vezes as mais altas, na sociedade alemâ ad mitía prontamente que a Alemanha perderá a guerra, mas se apressava em acrescentar que a razâo fora a superioridade dos Aliados em poderío e em materiais; e logo em seguida acrescentavam que, no futuro, tentariam levar es te fato em consideraçào. A impressâo gérai era, em suma, inquietante. Até onde pude avaliar, a atitude do executivo médio era marcada pela autocomiseraçâo, pela auto justificaçâo bajuladora e por um sentido de inocéncia inocénci a ofendida, acompanhados de súplicas por piedade e pela ajuda para a reconstruçâo desse país devastado. Muitos deles, se nâo a maioria, esperam confiantes que o capital americano logo se comprometa com o trabalho de reconstruçào, e declaram-se dispostos a pôr sua força de trabalho e seu intelecto a serviço desses senhores tempo rarios; como conseqüência, nào escondem sua esperança de reconstruir uma Alemanha aínda mais poderosa e maior do que foi no passado. Graças à ironía da historia ou, melhor, a seu escárnio, essas ilusoes de 1945 transformaram-se de certa forma em realidade. O fato de que os derrotados de entâo, os alemáes e os japoneses, japonese s, sintam-se sintam-se hoje vitorios vitoriosos os é mais que um es cándalo moral; é uma provocaçâo política. Nossos líderes, naturalmente, jamais se cansam de protestar que, nesse meio tempo, todos nos tornamos pacíficos, demócratas e moderados; numa palavra, bem-comportados. E o mais notável é que esta assertiva é verdadeira. Essa mutaçâo transformou os alemáes no que antes acusavam os outros de ser: uma naçâo de pequeños comerciantes. E nisso nào estâo de modo algum sozinhos. Todas as naçôes da Europa es tâo, com graus variados de sucesso, tentando fazer o mesmo. Desde o final do monopolio comunista do poder, o pri mado da economía também parece estar se instalando na porçào oriental do continente. Cinqüenta anos depois da 92
Segunda Guerra Mundial, uma coisa é certa: a tentativa de suicidio que fracassou nao foi só a alema, mas a da Europa
Segunda Guerra Mundial, uma coisa é certa: a tentativa de suicidio que fracassou nao foi só a alema, mas a da Europa como um todo. Contudo, quanto mais nosso continente torna a ocupar o centro da política mundial e do mercado mundial, mais tende a ganhar terreno um novo tipo de eurocentrismo. Um slogan registrado registrado por ninguém menos men os que Jose Jo sep p h G o ebbe eb bels ls tornou tor nou a apar ap arec ecer er no deba de bate te públic pú blico: o: “A Fortaleza Europa”. Antes, tinha um sentido militar; volta co mo um conceito económico e demográfico. Nessas circuns tancias, a Europa cada vez mais próspera fará bem de lembrar-se de uma Europa em ruinas, da qual apenas algumas décadas a separam.
A GRANDE M1GRAÇÂO Trinta Trinta e trè très l etre trei ro ross de si nal alii zaçâo zaçâo
A GRANDE M1GRAÇÂO Trinta Trinta e trè très l etre trei ro ross de si nal alii zaçâo zaçâo Seguidos de uma nota a respeito de “Certas peculiaridades da caçada humana ”
J á nao sabemos mais a quem devemos estima timar e honra rar. r. Neste steponto, ponto, passam passamos a se serr como como os bár bárbar baros os e em m re retando ando uns aos out outros. Poi P oispor spor natur nature eza somos todos odos iguai ais, s, sese ja j amos bárba rbaro ross ou gre reg gos. E esta i gual dade decorre rre daqui quil o que, que, por por nature natureza za,, é i ndi ndi spensável nsável a todos todos os homens. Respiram spiramos os todos todos pel pel a boca e pel pel o nar nari z, e todos come co memos com com as máos. Antífon, “Da verdade”, século v a. C.
Ju J unto á Estátu tátua a da Li Lib berda rdadefic fi ca a ins inscrigá igáo: “Nesta tér ra republicana todos os homens nascem livres e iguais”. Mas log logo o abaixo, abaixo, em le letras me menore nores, podepode-se ler: “Com a excegáo da tribo de Hamo”. — Esta anula a outra. Ah, vós vós, os republi publ i canos! canos! Hermán Melville, “Mardi e uma viagem até lá”, 1849
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Um mapa do mundo. Enxames de setas azuis e vermelhas condensam-se em redemoinhos antes de se dispersar em direfóes opostas. Por baixo deste diagrama, há curvas que demarcam as zonas coloridas de diferenga de pressáo do ar, isóbaras e ventos. Esses mapas meteorológicos sao bonitos, mas nao podem ser devidamente interpretados sem conhecimento prévio. E esse conhecimento é abstrato. Precisa representar um processo dinámico por meios está ticos. Só um filme poderia mostrar o que de fato está acontecendo. O estado normal da atmosfera é a turbulencia. E o mesmo se aplica á ocupafáo da térra pelos seres humanos.
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Mesmo depois de mais de um século de pesquisas so bre o Paleolítico, a origem do Homo sapiens aínda náo foi estabelecida acima de qualquer dúvida. Parece certo, contudo, que a espécie surgiu no continente africano e se espalhou por todo o planeta, em estágios complicados e cheios de perigo, por meio de urna longa cadeia de migra97
çôes. Ficar no mesmo lugar nâo é urna das características genéticas fixas de nossa espécie; é um traço que sô se desenvolveu relativamente tarde e está quem sabe ligado à invençâo da agricultura. Nossa existência primária é a de caçadores, coletores e pastores.
çôes. Ficar no mesmo lugar nâo é urna das características genéticas fixas de nossa espécie; é um traço que sô se desenvolveu relativamente tarde e está quem sabe ligado à invençâo da agricultura. Nossa existência primária é a de caçadores, coletores e pastores. Certos traços atávicos de nosso comportamento que, vistos de outra maneira, parecem enigmáticos, como o tu rismo rismo de massa massa ou a paixâo pelo automóvel, podem po dem ser ex plicados por esse passado de nomadismo.
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O conflito entre as tribos nómades e as sedentárias manifesta-se claramente no mito de Caim e Abel: “Abel era pastor de ovelhas, e Caim lavrador da térra”. O conflito ter ritorial acaba em morte. E a historia vai além — o agricul tor, depois de ter assassinado o nómade, é desalojado por sua vez: “Tu andarás vagabundo e fugitivo sobre a terra”. A historia da humanidade pode ser lida como um desdobramento desta parábola. Populaçôes estacionárias se formaram vezes sem conta ao longo dos milénios. No geral, porém, sâo a exceçâo. A regra é a conquista e a pilhagem, a expulsào e o exilio, a escravidâo e o rapto, a colonizaçâo e o cativeiro. Urna proporçâo considerável da humanidade sempre esteve em movimento, migrando ou fugindo pelas razóes mais diversas, de maneira pacífica ou violenta — urna circulaçâo que só pode levar a urna turbulência perpétua. Trata-se de um processo caótico, que frus tra qualquer tentativa de planejamento ou até mesmo de previsào a longo prazo.
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Dois passageiros num compartimento de trem. Nao sa bemos nada sobre eles, nem sua origem e nem seu destino.
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Dois passageiros num compartimento de trem. Nao sa bemos nada sobre eles, nem sua origem e nem seu destino. Instalaram-se com o conforto possível e tomaram conta de todas as mesinhas, cabides e bagageiros. Jomáis, malas e sacólas se espalham pelos assentos vazios. A porta do com partimento se abre e entram dois novos viajantes. Sua chegada nao é bem-vinda. Urna distinta relutáncia em se levan tar, limpar os assentos desocupados e abrir espado para os recém-chegados é evidente. Embora nao se conhegam, os passageiros origináis comportam-se com um notável grau de solidariedade. Apresentam urna frente unida contra os recém-chegados. O compartimento transformou-se em ter ritorio deles, e encaram como intruso qualquer um que chegue. Sua consciencia é a dos nativos que reivindicam todo o espado para si. Esta visáo nao tem justificativa racio nal. Ao que tudo indica, possui raízes mais profundas. Ainda assim, a situafáo raramente chega ao ponto do conflito declarado. Os O s passageiros estao sujeitos a um siste siste ma de regras que nao depende deles. Seu instinto territorial é sobrepujado tanto pelo código institucional da ferrovia quanto por outras normas implícitas de comportamento, como a cortesía. Assim, só olhares sao trocados e pretensas desculpas murmuradas por entre os dentes cerrados. Os novos passageiros acabam sendo tolerados, e os outros acabam se acostumando com eles. Ainda assim, permanecem estigmatizados, embora em grau cada vez menor. Este modelo anodino nao deixa de apresentar tragos absurdos. O compartimento do trem é, ele próprio, um do micilio transitorio, urna locagáo que só serve para a troca de loca^óes. Sua natureza é a flutuagáo. O passageiro é a própria negagáo da pessoa sedentaria. Ele trocou um territorio 99
real por um virtual. Apesar disso, defende seu abrigo passageiro com um ressentimento magoado.
real por um virtual. Apesar disso, defende seu abrigo passageiro com um ressentimento magoado.
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Toda migra migra gao — qualquer que qu e tenha sido o fator fator a desencadeá-la ou sua motivagáo subjacente, seja ela voluntária ou involuntária e seja qual for a escala que assume — leva a conflitos. A defesa dos interesses locáis e a xenofo bia sao constantes antropológicas que precedem qualquer racionalizado. A distribuido universal desses tragos indica que sao mais antigos que todas as sociedades conhecidas. Para manté-los sob controle, para evitar banhos de sangue e tornar possível possível pelo pe lo menos m enos um mínimo de troca e comunicado entre os diferentes cías, tribos e grupos étni cos, as sociedades antigas inventaram os tabus e os rituais da hospitalidade. Esses cuidados, porém, nao revogam o status do estrangeiro. Pelo contrario: eles o fixam. O hospe de é sagrado, mas nao pode ficar para sempre.
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Dois novos passageiros abrem a porta do comparti mento. A partir desse momento, a posigao dos que entraram antes muda. Pouco tempo atrás, eram elés os intrusos; de urna hora para outra, viraram nativos. Agora pertencem ao clá sedentário dos ocupantes do compartimento e reivindicam todos os privilégios a que estes acreditam ter direito. A defesa de um território “ancestral” ocupado apenas há pouco parece paradoxal. Os ocupantes nao sentem em patia para com os recém-chegados, que se véem obrigados a enfrentar a mesma oposigáo e a mesma iniciado penosa 100
que aqueles atravessaram há pouco. Curiosa a rapidez com que a origem das pessoas é escondida e negada.
que aqueles atravessaram há pouco. Curiosa a rapidez com que a origem das pessoas é escondida e negada.
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Clás e grupos tribais existem desde que a térra é habi tada por seres humanos; as nagóes só existem há mais ou m enos eno s duzentos duze ntos anos. Nao é difícil ver ve r a eliferenga. Os gru pos étnicos surgem de maneira semi-espontánea; as nagóes sao criadas de forma consciente, e muitas vezes sao entida des artificiáis, que nao podem prescindir de urna ideología específica. Esta base ideológica, com seus rituais e emble mas (bandeiras, hinos), teve inicio no século xix. Da Euro pa e da América do Norte, espalhou-se por todo o mundo. Um país que deseje afirmar-se como nagáo precisa de uma consciéncia de si bem codificada, de um sistema próprio de instituigóes (exército, alfándega e fisco, polícia, corpo diplomático) e de ¡números ¡números meios legáis legáis de demarcar-se demarcar-se externamente (soberanía, cidadania, passaportes). Algumas nagóes, mas nem todas, conseguiram transferir para si for mas mais antigas de identificagáo. Esta operagáo psicológi ca é difícil, porque sentimentos poderosos que antes inspiravam associagóes menores precisam ser mobilizados em prol de formagóes estatais modernas, e raramente ocorre sem o apoio de lendas históricas. Em caso de necessidade, a prova de um passado glorioso é forjada, e tradigóes veneráveis sao simplesmente inventadas. A idéia abstrata de na gáo, porém, só conseguiu adquirir uma vida independente quando o Estado Estado foi capaz capaz de desenvolver-se orgánicamen org ánicamen te a partir de condigóes mais antigas. Quanto mais artificial é a génese de uma nagáo, mais precário e histérico é seu sentimento nacional. Isso se aplica ás "nagóes tardias” da Europa, porque os novos Estados emergiram do sistema 101
colonial, bem como as unióes forjadas como a ex-Uniáo Soviética e a ex-Iugoslávia, que apresentam urna tendencia á desintegrado e á guerra civil.
colonial, bem como as unióes forjadas como a ex-Uniáo Soviética e a ex-Iugoslávia, que apresentam urna tendencia á desintegrado e á guerra civil. É evidente que nenhuma nado tem urna populado absolutamente homogénea do ponto de vista étnico. Este fato está em conflito fundamental com o sentimento nacio nal que acabou tomando forma na maioria dos Estados. Em geral, o grupo nacional hegemónico acha conseqüentemente difícil conciliar-se com a existencia de minorías, e cada onda de ¡migrantes é considerada um problema polí tico. As excegóes mais importantes a este padráo sao os Es tados modernos mod ernos que devem sua existencia existen cia á migra migra gao em grande escala; sobretudo os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália. Seu mito fundador é a tábula rasa. O reverso desta moeda é o exterminio da populad0 indígena, a cujos remanescentes só muito recentemente foram conce didos direitos minoritários essenciais. Quase todas as outras nagóes justificam sua existéncia por urna auto-imputad0 vigorosa. A distingáo entre a “nossa” gente e os “estrangeiros” lhes parece totalmente natural, aínda que seja questionável do ponto de vista histórico. Quem quiser se aferrar a essa clistingáo precisaría afirmar, nos termos de sua própria lógica, que sempre esteve lá — urna tese muito fácil de ser rebatida. Nessa medida, uma historia nacional adequada precisa presumir a capacidade de esquecer tudo o que nao se ajuste em sua descrido dos acontecimentos. No entanto, o que se esquece nao é apenas a origem variegada dos individuos. Os movimentos migratórios em grande escala sempre levam á disputa pela distribuido dos recursos. O sentimento nacional prefere reinterpretar esses conflitos inevitáveis como se a disputa tivesse como objeto antes recursos imaginários que recursos materiais. As lutas se travariam entáo devido á diferencia entre a auto-imputa102
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gao e a imputagáo externa, um campo que abre possibilidades ideáis de florescimento para a demagogia.
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gao e a imputagáo externa, um campo que abre possibilidades ideáis de florescimento para a demagogia.
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A auto-imputagáo e a imputagáo externa jamais conseguem coincidir. E isso é inevitável. A correspondencia harmoniosa entre as duas é sempre aparente. A frase: “Os fin landeses sao espertos e beberróes” significará coisas muito diferentes se quem a pronunciar for um sueco ou um fin landés. Basta pensar ñas diferentes reagóes que ela provo ca. Entre os finlandeses, só um finlandés pode dizé-la; vinda de um sueco, seria escandalosa. Essas diferengas sempre encobrem uma longa historia de contatos e conflitos. A interagáo entre a auto-imputagáo e a imputagáo externa é complicada. A curiosidade e a integragao, uma atitude defensiva e uma sensagáo de ofensa, o ressentimento e a projegáo desempenham um papel, bem como estratégias de autocrítica, de ironía e de apaziguamento das suspeitas. Originalmente, porém, as coisas eram muito simples: Os indios Nahua Nahua chamavam as tribos tribos vizinhas de popolaca, que quer dizer “gagos”, e mazahua, “os que berram como cervos”. Em russo, os alemáes sao chamados de nemets-, esta palavra é derivada de nemoi, que significa “mudo” — ou seja, alguém que nao sabe falar. A palavra grega barbaros, usada para os náo-gregos, tinha inicialmente o sentido de “gago” ou “balbucíante”, e adquiriu as conotagóes freqüentes de “deseducado”, “vulgar”, “covarde”, “cruel”, “inculto”, “violento”, “avarento” e “traigoeiro”. Os hotentotes, palavra que em africáner quer dizer “gago”, chamam a si próprios de k’oi-n, “seres humanos”. 103
Também no caso dos Ainu, o nome do grupo é idénti co à palavra que significa “ser humano”, enquanto os japo neses o chamam de emishi, “bárbaros”.
Também no caso dos Ainu, o nome do grupo é idénti co à palavra que significa “ser humano”, enquanto os japo neses o chamam de emishi, “bárbaros”. O mesmo ocorre com o povo nativo da península de Kamtchatka — que se designa itelmen, “os seres humanos” humanos ” — , e só é superado pelos pel os Chukchi, Chukchi, que afirmam serem luorovetlan, ou “os verdadeiros seres humanos”. Esta consciéncia que os povos tém de si próprios é universalmente difundida, e foi descrita da seguinte maneira por Claude Lévi-Strauss: É sabido que o conceito de “humanidade”, abrangendo todas as formas de vida da espécie humana, sem distinçâo de raça ou civilizaçâo, só surgiu muito tarde e nào é muito difundido... A humanidade só vai até os limites da tribo ou do grupo lingüístico, nào passando as vezes da própria aldeia e, assim, um grande número dos chama dos povos primitivos usam para designar-se um nome que significa “homens” (ou às vezes “os bons”, “os excelentes” ou “os perfeitos”), indicando ao mesmo tem po que as outras tribos, os outros grupos ou as outras aldeias nao compartilham as boas qualidades — nem sequer a natureza — do homem mas, no máximo, consistem nos “maus”, “maus”, no's “mac “macac acos os raste r asteiros iros”” ou nos “ovos ovo s de piolho”. Há casos em que se nega aos estrangeiros até mesmo este último ponto de contato com a realidade, e eles sao chamados de “fantasmas” ou “apariçôes”. Vem daí a curiosa situaçâo de dois interlocutores que trocam impiedosamente seus epítetos depreciativos.
As migraçôes contemporáneas diferem dos movimentos anteriores de populaçôes em mais de um aspecto. Em 104
primeiro lugar, a mobilidade aumentou muitíssimo nos últi mos dois séculos. Foi o comércio oceánico europeu o pri meiro a criar a capacidade que tornou possivel o movimento de milhôes de pessoas por grandes distâncias. O merca
primeiro lugar, a mobilidade aumentou muitíssimo nos últi mos dois séculos. Foi o comércio oceánico europeu o pri meiro a criar a capacidade que tornou possivel o movimento de milhôes de pessoas por grandes distâncias. O merca do mundial desenvolvido requer a mobilizaçâo global e a impôe pela força sempre que necessário, como ocorreu no caso da abertura do Japâo e da China no século xix. O ca pital derruba as barreiras nacionais. Pode fazer um uso tático dos impulsos patrióticos e racistas, mas estratégicamente nâo os leva em consideraçào, porque o intéressé comercial nao pode ter preocupaçôes particulares. O livre movimento do capital tende a arrastar atrás de si o livre movimento da força de trabalho, sem levar em conta sua raça ou sua nacionalidade. Com a globalizaçào do mercado mundial (que só se completou hà muito pouco tempo), os novos movimentos migratorios também vào adquirir uma nova qualidade. Os movimentos moleculares de massas devem tomar o lu gar das guerras guerras coloniais promovidas pelo Estado, das expeexpe diçôes de conquista e das expulsées. Enquanto o dinheiro eletrónico obedece apenas à sua própria lógica e vai derro tando com facilidade todas as resisténcias, os seres huma nos agem como se estivessem sujeitos a alguma compulsáo incompreensível. Seus embarques sao como movimentos de fuga, que seria cínico chamar de voluntários.
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Ninguém emigra sem a promessa de uma vida melhor. Antigamente, os veículos da esperança eram a lenda e os rumores. A Terra Prometida, Arabia Felix, a lendária Atlántida, Eldorado, o Novo Mundo; foram essas as historias má gicas que motivaram muitos a partir. Hoje, sáo as imagens em alta freqüéncia que o sistema global dos meios de co105
municagáo transmite até a última aldeia do mundo pobre. Seu teor de realidade é ainda menor que o das lendas maravilhosas do inicio do período moderno; apesar disso,
municagáo transmite até a última aldeia do mundo pobre. Seu teor de realidade é ainda menor que o das lendas maravilhosas do inicio do período moderno; apesar disso, seus efeitos sao incomparavelmente mais poderosos. A publicidade em especial, compreendida sem esforzó nos paí ses ricos onde tem origem como um mero signo sem refe rentes reais, é vista no Segundo e Terceiro Mundos como uma descrido fidedigna de um modo de vida possível. Em grande medida, é ela que determina o horizonte de expec tativas associado com a emigrado.
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Ao longo de séculos, o deslocamento das popula^óes eraa quase um jogo de soma zero. er zero. A p o p u lad la d o mundia mundiall exibia flutuafóes ao longo do espado e do tempo, mas o au mento absoluto era táo insignificante que elas pouco im portavam. vam. Contudo, C ontudo, depois depo is que qu e comegou com egou a apresentar apres entar um crescimento exponencial, as regras do jogo mudaram. Mais cedo ou mais tarde, o inimaginável aumento quantitativo acabará tendo um efeito sobre a qualidade dos movimentos migratorios. Que isso já esteja ocorrendo nao é certo. Hoje, estima-se que mais de 20 milhóes de imigrantes oriundos de outras áreas vivam na Europa Ocidental. O fluxo de refu giados da África e da Ásia tem uma escala semelhante. Sao números imensos. Mas se for considerado que entre 1810 e 1921 34 milhóes milh óes de pessoas, pessoa s, sobretudo da da Europa, migra migra-ram apenas para os Estados Unidos, náo se pode afirmar que essas cifras estejam além de qualquer possibilidade de comparado histórica. De fato, a migrado tem sido, até ho je, basta ba stante nte limitada, limita da, espe es peci cial alm m ente en te se compa com parad radaa ao cres cr es cimento absoluto da populado mundial (as Na^óes Unidas 106
prevéem um aumento de quase 1 bilháo de pessoas entre 1990 e o ano 2000). Isso nos leva á conclusáo de que o des tacamento efetivo mobilizou apenas urna fragao dos mi grantes potenciáis: a verdadeira migrado de populafóes
prevéem um aumento de quase 1 bilháo de pessoas entre 1990 e o ano 2000). Isso nos leva á conclusáo de que o des tacamento efetivo mobilizou apenas urna fragao dos mi grantes potenciáis: a verdadeira migrado de populafóes ainda está por acontecer. Os meios de comunicado antecipam esta perspectiva futura de maneira perigosa, e a descrevem em termos fan tásticos. Um estranho gosto pelo medo emerge dos quadros apocalípticos que projetam. Todas as manifestares atuais atuais da crise — a condigno instável instável da econom econ omía ía mundial, mundial, os graves perigos tecnológicos, a desintegrado do império soviético, a amea^a amea^a ecológica ecoló gica — provocam cenários desta naturez natureza. a. O pánico antecipatório pode p ode até servir servir como com o imuimunizayáo, urna forma de inoculado psíquica. De qualquer maneira, porém, em vez de levar-nos a tentar encontrar solu^óes isso só leva, na melhor das hipóteses, a políticas que se alternam entre tímidas medidas de reforma e bloqueios ao pensamento e á a^áo.
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Um salva-vidas está apinhado de sobreviventes de um naufrágio. Espalhadas pelo mar agitado á sua volta, há outras pessoas que correm o perigo de se afogar. Como devem se comportar os ocupantes do barco? Devem empurrar ou cortar as máos da próxima pessoa que agarrar as bordas do bote? Seria assassinato. Puxá-la para dentro? Ai o barco afundaria, arrastando com ele todos os sobreviventes. O dilema faz parte do repertorio padráo da casuística. Os filósofos moráis e o resto das pessoas que costumam discuti-lo geralmente deixam de atentar para o fato de que eles próprios estáo seguros em térra firme. No entanto, to das as reflexóes abstratas so^obram apenas neste faz-de107 107
conta, seja qual for sua conclusáo. A melhor das intenfóes é frustrada pelo aconchego da sala de conferencias, porque ninguém é capaz de declarar de forma crível como se com
conta, seja qual for sua conclusáo. A melhor das intenfóes é frustrada pelo aconchego da sala de conferencias, porque ninguém é capaz de declarar de forma crível como se com portaría numa emergencia. A parábola do salva-vidas lembra o quadro do com partimento do trem. É o mesmo modelo levado ao extremo. Aqui também os viajantes se comportam como se fossem proprietários, com a diferenga de que o territorio ancestral que defendem é urna casca de noz á deriva, e de que aqui se encontra em jogo náo mais um certo adicional de con forto, mas urna questáo de vida e morte. Evidentemente, náo é acidental que a imagem do sal va-vidas seja recorrente no discurso político sobre a imigrafáo, em geral na forma de urna assertiva: “O barco já está cheio”. E o mínimo que se pode dizer sobre esta frase é que, do ponto de vista factual, ela está incorreta. Basta olhar rápidamente em volta para contestá-la. E aqueles que a usam também sabem disso. Náo estáo interessados em sua precisáo, contudo, mas na ilusáo que ela evoca, que é assustadora. É evidente que muitos europeus ocidentais acreditam que suas vidas estáo em perigo. Comparam sua situagáo com a de sobreviventes de um naufrágio. E isso equivale a virar, por assim dizer, a metáfora de cabera para baixo. De urna hora para outra, sáo aqueles que tém um te people e fugitivos, to sobre as caberas que se imaginam boat peopl emigrantes pilotando jangadas precárias, albaneses num navio-fantasma superlotado. As dificuldades em alto-mar que sáo fantasiadas desta forma tém a intenyáo presumível de justif justifica icarr um comportamento que só s ó é concebíve conc ebívell em sisituagóes extremas. Náo é grande a distancia que separa es te ponto das máos decepadas da parábola.
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Há algo de reconfortante na analogía do compartimen to do trem, simplesmente porque a cena da a
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Há algo de reconfortante na analogía do compartimen to do trem, simplesmente porque a cena da a
14 Supérfluo, supérfluo... uma excelente palavra que encontrei. Quanto mais profundamente mergulho em mim mes mo e quanto mais examino de perto toda a minha vida passada, mais me convengo da dura verdade da expressáo. Supérfluo — exatamente. A palavra náo se aplica a outras pessoas... As pessoas sáo boas e más, inteligentes e idiotas, agradáveis e desagradáveis; mas supérfluas? Náo teria ocorrido a Ivan Turgueniev considerar os camponeses de sua propriedade, e menos ainda todo um povoado, uma regiáo, um povo ou um continente como supérfluos. Embora seu herói Chulkaturin, no romance Diá109
rio de um homem supérfluo (cuja situado parece quase idílica 150 anos após a sua morte), fale nesses termos de seu pai proprietário de térras com suas casas de campo e de si o — seu tédio, sua solidáo e sua sua náuse a pala
rio de um homem supérfluo (cuja situado parece quase idílica 150 anos após a sua morte), fale nesses termos de seu pai proprietário de térras com suas casas de campo e de si mesmo mesm o — seu tédio, sua solidáo e sua sua náusea náuse a — , a palapalavra “náo se aplica a outras pessoas”, pensa ele. Mas o tempo encarregou-se de demonstrar que estava enganado. É claro que, em todas as épocas, houve grandes massacres e pobreza endémica. Os inimigos eram os inimigos, e os pobres eram os pobres; mas foi só depois que a historia se transformou na historia mundial que povos inteiros se viram condenados á superfluidade, e por autores que permanecem estranhamente desprovidos de tema. Os juízes que proferem a senten^a sáo conhecidos pelos nomes de “colonialismo”, “industrializado”, “progresso tecnológico”, “revolufáo”, “coletivizafáo”, “solufáo final”, “Versalhes” ou “Yalta”, e seus decretos sáo pronunciados abertamente e executados de forma sistemática, de maneira que ninguém possa ter qualquer dúvida quanto ao destino que o aguar da: a fuga ou a emigrado, a expulsáo ou o genocidio. O crime organizado pelo Estado continua difundido. No entanto, o mercado mundial, abrangente e anónimo, aparece cada vez com mais clareza como a instancia que condena contingentes cada vez maiores da humanidade á superflu superfluidade idade.. Náo mediante a per p erse segu guid idoo política, por orordem do Führer ou por urna decisáo do partido, mas espon táneamente, por sua própria lógica, de maneira que um nú mero cada vez maior de pessoas vai sendo enquadrado. O resultado náo é menos homicida, mas é menor ainda do que antes a probabilidade de que os culpados sejam cha mados a se explicar. Na linguagem económica, isso signifi ca: urna oferta imensamente crescente de seres humanos se vé diante de urna demanda declinante. Mesmo ñas socieda des afluentes, mais gente se torna supérflua a cada dia que passa. O que fazer com eles? 110
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O estatuto lógico das alucinares é tal que duas fobias mutuamen mutuamente te excludentes excludentes acabam sendo capazes de enc on
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O estatuto lógico das alucinares é tal que duas fobias mutuamen mutuamente te excludentes excludentes acabam sendo capazes de enc on trar espado no mesmo cérebro sem qualquer problema. É assim que muitos partidários do modelo do bote salva-vi das se mostram obcecados ao mesmo tempo com urna ilusáo que exprime precisamente o medo oposto. De novo, postula-se um fato: “Os alemaes (franceses, suecos, italia nos) estáo desaparecendo”. Extrapolares a longo prazo de estatísticas demográficas atuais sáo produzidas para ser vir de base a esses chavóes, muito embora previsóes como essas tenham sido repetidas vezes desmentidas no passado; extrapolares ilustram as terríveis conseqüéncias — urna populado cada vez mais idosa, a decadencia, o despovoamento — acompanhadas por urna atencáo inquieta para com o crescimento económico, a receita fiscal e o sistema previdenciário. A idéia de que um excesso e urna escassez de pessoas possam existir simultáneamente no mesmo territorio causa pánico — um mal para o qual a expressáo “bulimia demo gráfica ” pode ser apropriada.
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As análises dos tempos distantes em que se fez urna tentativa de formular urna economia política da migrado parecem reconfortantes em sua sobriedade, se comparadas com as fórmulas delirantes de hoje. Na virada do século, o economista americano Richmond Mayo Smith apresentou um exemplo modelar desta reflexáo ponderada: 111
A quantidade de dinheiro trazida pelos ¿migrantes nâo é grande, e é provavelmente mais que anulada pelo dinhei ro que os imigrantes enviam de volta para sustentar as fa milias e os amigos na terra natal ou ajudá-los a emigrar
A quantidade de dinheiro trazida pelos ¿migrantes nâo é grande, e é provavelmente mais que anulada pelo dinhei ro que os imigrantes enviam de volta para sustentar as fa milias e os amigos na terra natal ou ajudá-los a emigrar por sua vez. O elemento valioso é o próprio imigrante saudável como fator de produçâo. Diz-se, por exemplo, que um escravo adulto valia entre oitocentos e mil dóla res, e assim deve ser atribuido a cada imigrante adulto o mesmo valor para o país. Ou já se disse que um imigran te adulto representa o que custaria criar urna criança do nascimento até, digamos, a idade de quinze anos. Emst Engel calcula que isso represente 550 dólares para urna criança alema. O procedimento mais científico, porém, é calcular os ganhos prováveis do imigrante durante o res to de sua “vida”, e deduzir deles as despesas de seu sus tento. O resto representa seus ganhos líquidos, com os quais ele contribuí para o bem-estar do novo n ovo país. país. W. Farr Farr calcula que isso monte, no caso dos emigrantes ingleses nâo especializados, a cerca de 175 libras esterlinas. Mul tiplicando este valor pelo número total de imigrantes adultos, chegamos ao valor anual da imigraçâo. Tais ten tativas de atribuir um valor monetário preciso à imigraçâo sâo fúteis. Elas ignoram a questáo da qualidade e da oportunidade. O imigrante vale o que custou para criá-lo apenas se for saudável, honesto e disposto a trabalhar. Se estiver doente, for aleijado, indolente ou desonesto, po de representar uma perda direta para a comunidade, e nao um ganho. Assim, também, o imigrante só vale seus ganhos líquidos futuros para a comunidade se houver de manda para sua força de trabalho.
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Por muito tempo, a ansiedade com as conseqüéncias da emigrado era maior na Europa que o temor das conse qüéncias da imigrafáo. Este debate remonta ao século
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Por muito tempo, a ansiedade com as conseqüéncias da emigrado era maior na Europa que o temor das conse qüéncias da imigrafáo. Este debate remonta ao século x v i i i . O conceito da populado como riqueza deriva das teorías do mercantilismo. Naqueles dias, a emigrado era vista co mo urna urna hemorragia, hemorragia, e tentava-se ten tava-se limitá-la, limitá-la, até mesm m esmoo proibi-la bi-la.. A em igrad ig rad o secreta, secreta, especialmente o recrutamento recrutamento e o incitamento á emigrado, era sujeita a punifóes severas em muitos países, prática a que os Estados comunistas aderiam até muito pouco tempo atrás. Luís xrv ordenou que as fronteiras francesas fossem cuidadosamente vigiadas a fim de manter seus súditos súditos no país, país, e na Inglater Inglaterra ra a em igra ig rad do de artesáos qualificados era proibida até meados do século xix. O chamado Dinheiro da Libertado, ou Dinheiro da Partida, urna taxa sobre a emigrad0 imposta sobre as propriedades dos emigrantes, esteve em vigor na Alemanha até 1817, e os nazistas reverteram a esse processo de con fisco quando ainda náo queriam exterminar os judeus, só expulsá-los.
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A Irlanda é o exemplo clássico de um país de emigra d o - A ex p lora lo rad d 0 brutal brutal pelos ingleses ingleses levou levou,, na década década de de 1840, a urna fome catastrófica, de que o país nunca se recuperou por completo. Em 1843, a Irlanda tinha 8,5 milhóes de habitantes; em 1961, esta cifra caira a menos de 3 mi lhóes. No período de 1851 a 1901, a média de 72% de todo o povo irlandés emigrou. A Irlanda continua a ser um dos países mais pobres da Europa Ocidental. Pode-se discutir 113
infindavelmente se cabe á emigrado a culpa por sua po breza ou se, ao contrário, ela melhorou a situad0 dos ha bitantes.
infindavelmente se cabe á emigrado a culpa por sua po breza ou se, ao contrário, ela melhorou a situad0 dos ha bitantes. Urna conclusáo ingénua mas esclarecedora foi extraí da pelo redator anónimo de urna enciclopédia datada de 1843: “A emigrado é um remedio fraco contra o pauperis mo. Se, hoje, pudéssemos remover todos os pobres das tér ras assoladas pelo pauperismo, aínda assim haveria, se suas causas continuarem ativas, a mesma quantidade novamente dentro de vinte anos, talvez de dez... Em geral, o Estado deveria deveria esforcar-s es forcar-see para criar e manter, manter, dentro de suas fronteiras, condiyóes tais que pelo menos a destituido e a insatisfagáo nao expulsassem seus habitantes”.
19 Os emigrantes nunca representam um corte da popu lado como um todo, fato que tem crucial importancia pa ra qualquer avaliagáo das conseqüéncias. “É o homem do tado de energía, de alguns recursos, de ambifáo, que arrisca o sucesso no novo país, deixando em casa os po bres, os indolentes, os fracos e os aleijados”, escreveu Mayo Smith. “Afirmá-se que tal emigrado instituí um processo de selegao que nao é favorável para o país natal.” Esta tese é sedutora. A evasáo de cérebros, urna espécie de fuga de capital demográfico, teve efeitos devastado res em países com o a China, China, a india e a ex-Uniáo ex-U niáo Soviética. Soviética. Teve urna importáncia considerável no colapso da Alemanha Oriental. Grande proporgao da intelligentsia iraniana emigrou ñas décadas recentes. O número de médicos do Terceiro Mundo trabalhando na Europa Ocidental excede o número de trabalhadores assistenciais dos países da Comunidade Européia enviados para a Ásia, a África e a Amé114
rica Latina — onde há escassez de médicos treinados em toda parte. Quanto mais qualificados os ¡migrantes, menos reser vas eles encontram. O astrofísico indiano, o grande arqui-
rica Latina — onde há escassez de médicos treinados em toda parte. Quanto mais qualificados os ¡migrantes, menos reser vas eles encontram. O astrofísico indiano, o grande arquiteto chinés, o negro africano ganhador do Prémio Nobel sao bem-vindos em todo o mundo. Os ricos também nun ca sao mencionados neste contexto; ninguém questiona sua liberdade de movimento. Para os negociantes de Hong Kong, a aquisiçào de passaporte británico nâo enfrenta qualquer problema. Para imigrantes de qualquer pais, a cidadania suiça também é apenas uma questâo de preço. Ninguém jamais fez qualquer objeçào à cor da pele do sultâo de Brunei. Onde as contas bancárias sào saudáveis, a xenofobia desaparece como num passe de mágica. Mas os estrangeiros sào mais estrangeiros ainda se forem pobres. Neste ponto, os traficantes de armas e drogas, junta mente com os bancos que lavam seu dinheiro, ganham de qualquer um. Nâo reconhecem qualquer distinçâo de raça ou nacionalidade. Sào quem sabe as únicas pessoas no mundo praticamente desprovidas de preconceitos.
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É claro que os pobres também nâo formam uma sociedade homogénea. Em todos os países ricos, há procedimentos complexos para o controle da imigraçào. Eles favorecem, entre os pobres, aqueles com certas características muito muito peculiares que qu e sâo valorizada valorizadass sob o capitalismo, capitalismo, co co mo o conhecimento do mundo, a determinaçâo, a flexibilidade e as energías criminosas. Essas virtudes sào indispensâveis para a superaçào dos obstáculos burocráticos. Em outras situaçôes, porém, a força física também conta. SÓ os 115 115
mais jovens e fortes dos albaneses foram capazes de resis tir às autoridades italianas até o fim. Novamente Mayo Smith: “Por outro lado, diz-se que os
mais jovens e fortes dos albaneses foram capazes de resis tir às autoridades italianas até o fim. Novamente Mayo Smith: “Por outro lado, diz-se que os homens que prosperam na terra natal sao os menos inclina dos a emigrar, porque tém menos a ganhar com isso. Sao portanto os inquietos, os malsucedidos, ou pelo menos os que nao sao muito aptos para a competiçâo exaustiva nos países mais velhos que sao tentados a partir”. Que existe alguma verdade nesta idéia é demonstrado pelas crédulas vítimas das quadrilhas organizadas que contrabandeiam gente da Ásia, da África e da Europa Oriental. Esses viajantes nâo tém a menor idéia do que os aguarda. Quando chegam a seu objetivo, parecem apáticos, como se tivessem há muito abandonado toda esperança.
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O mercado negro neg ro floresce em todos os lugares lugares onde há restriçôes. Funcionando como vasos comunicantes, equili bra a pressáo entre a oferta e a demanda sem precisar obe decer às leis, aos regulamentos ou às normas éticas. Já que nâo existem no mundo sistemas completamente fechados, as transaçôes ilegais nunca podem ser evitadas de todo, mas só obstruidas. As forças do mercado sempre procuram e encontram as menores brechas, as fissuras mais minúscu las, e acabam ultrapassando todas as barreiras. Assim, desenvolveu-se um comércio ilegal de seres humanos em todos os países ricos. No entanto, enquanto nos mercados negros clássicos obtém-se preços sempre su periores aos do comércio legal, o mercado negro da força de trabalho obedece à lógica inversa. Quem governa aqui nâo é a escassez, mas a superfluidade. Pessoas supérfluas 116
sào baratas. A imigraçào clandestina reduz o preço da for ça de trabalho. Cada ¡migrante empregado ilegalmente pressupôe um empreendedor agindo na ilegalidade. A economía oculta em gérai funciona de par com as quadrilhas de criminosos
sào baratas. A imigraçào clandestina reduz o preço da for ça de trabalho. Cada ¡migrante empregado ilegalmente pressupôe um empreendedor agindo na ilegalidade. A economía oculta em gérai funciona de par com as quadrilhas de criminosos e as redes que contrabandeiam seres humanos. Na indústria têxtil, partes do setor de serviços e, acima de tudo, na construçâo civil, predominam práticas que lembram os mercados de escravos do passado. Em certas partes dos Estados Unidos e nos países medi terráneos terráneos da Europa, Europa, é tamanho o poder político político da econo eco no mía oculta que ela acaba exercendo uma pressáo considerável sobre o governo. Também na Alemanha, as autoridades muitas vezes fecham os olhos diante do trabalho ilegal. As regras que supostamente deveriam controlar a imigraçào sào sabotadas de modo sub-reptício, e surgem curiosas for mas de compromisso. Inevitavelment Inevitavelmente, e, o tamanho desses mercados de escra vos é desconhecido. Ninguém tem intéressé em descobrilo. A única coisa certa é que os números envolvidos sao muito grandes. Nos Estados Unidos, estimativas sugerem que existem vários milhóes de imigrantes ilegais, em sua maioria vindos do México; na Itália, a cifra deve ser bem maior que 1 milháo. E ao exame mais próximo fica eviden te que a “política para estrangeiros” anunciada oficialmen te baseia-se numa série de enganos deliberados.
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Será que a Grande Migraçâo representa uma soluçào, e, em caso positivo, para qual problema? Seria bom para a Albania, por exemplo, se a metade ativa de sua populaçào fosse admitida em outros países? “É evidente que náo se 117 117
pode dar urna resposta geral para esta pergunta.” Foi a es ta conclusáo que Richmond Mayo Smith chegou cem anos atrás. Hoje, pouco pode ser acrescentado.
pode dar urna resposta geral para esta pergunta.” Foi a es ta conclusáo que Richmond Mayo Smith chegou cem anos atrás. Hoje, pouco pode ser acrescentado.
23 A divindade de Asylon concedía imunidade a qualquer inocente que estivesse sendo perseguido, especialmente os estrangeiros, mas também a qualquer pessoa que carregasse a culpa por um crime de morte — anulando assim a continuidade da vinganga sangrenta. Sao essas as origens do desenvolvimento secundário político e social da idéia do asilo no sentido utilitário de um sistema de leis que nao é maís predominantemente controlado pela religiáo. Assim, nao se concedía maís asilo a todos, mas apenas a certas pessoas... como um privilégio ditado por interesses económicos e do Estado, exigindo um reconhecimento diplomático por decreto. Ele assegurava por tante, no interesse do comércio internacional, a protefáo ao estrangeiro, que fora disso praticamente nao tinha direitos.
D er kle kl ei nePaul auly, Munique, 1975, vol. i, p. 671 O asilo é uma antiga convengáo de origem sagrada. Deve seu nome aos gregos, embora a convengáo possa também ser demonstrada em outras sociedades tribais, por exemplo, entre os judeus. Também sobreviveu durante a Idade Média: os criminosos e devedores que se refugiassem numa igreja só podiam ser entregues á justi
Na lei internacional, as embaixadas eram os primeiros lugares de asilo, urna tradigáo observada até hoje, notavelmente na América Latina. Do conceito expandido de sobe ranía, os Estados nacionais derivaram o direito de acolher
Na lei internacional, as embaixadas eram os primeiros lugares de asilo, urna tradigáo observada até hoje, notavelmente na América Latina. Do conceito expandido de sobe ranía, os Estados nacionais derivaram o direito de acolher estrangeiros que sofressem perseguido política em sua tér ra natal e recusar-se a entregá-los. No entanto, o asilo nao é o direito individual do refugiado, mas do Estado que o admite. Entre os casos representativos desta prática estáo os poloneses rebeldes, além de revolucionários como Garibaldi, Kossuth, Louis Blanc, Bakunin e Mazzini, vistos co mo criminosos em seus países de origem mas muitas vezes festejados como heróis nos países que os acolheram. Os refugiados, que na Alemanha chamamos de candi datos a asilo ou Asylanten, “asilantes”, geralmente tém pouco em comum com essas figuras históricas. O uso lingüísti co contemporáneo é influenciado por um sentido que a palavra só assumiu no período vitoriano: “Os asilos que ocorrem com mais freqüéncia, e cuja necessidade se sente especialmente especialm ente ñas grandes grandes cidades, cidades, sao os seguintes: seguintes: i) pa ra bébados (casas de inebriados); ii) para prostitutas (mui tas vezes chamadas de Fundagóes de Madalena); iii) para prisioneiros libertados que nao conseguem emprego; iv) para mulheres pobres depois do parto; v) asilos para os sem-teto”. Sao essas as expressóes antiquadas de urna obra de re ferencia do inicio do século. Esses lugares de custodia nada tém a ver com o senti do original de asilo. Náo se destinam a estrangeiros, mas a estigmatizados locáis. A única coisa que essas pessoas tém em comum é a pobreza.
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A idéia de asilo sempre foi ambigua. O utilitarismo e
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A idéia de asilo sempre foi ambigua. O utilitarismo e uma ética determinada pela religiáo fundiram-se a tal pon to que é difícil separá-los. No inicio eram o roubo, o homi cidio e a matanza. No interior dos clás, a única san^áo exis tente era a cadeia interminável da vinganga de sangue, e quem nao pertencesse a eles nao tinha qualquer direito. O asilo — etimológicamente, “o lugar onde ninguém era roubado” — era uma improvisado, criada a fim de atender a uma necessidade e a tornar possíveis a comunicado e as trocas além das fronteiras tribais. A imunidade do asilo era necessariamente observada tanto para culpados quanto para inocentes, tanto para os criminosos quanto para as vítimas, e a ambigüidade moral ainda é evidente nos dias que correm. Basta pensar em fi guras como Pol Pot em Beijing, Idi Amim na Libia, Ferdinand Marcos no Havai ou Stroessner no Brasil, para nao falar dos inúmeros nazistas que, com a ajuda do Vaticano, encontraram refúgio na América Latina. Originalmente, es ta prática pode ter representado uma tentativa de dar aos governantes derrubados derrubados a o p d ° de se retir retirare arem, m, reduzi reduzinndo o risco de guerra civ civil il.. Como Com o demonstra o exe mplo mp lo cambodjano, porém, a concessáo de asilo também pode servir á finalidade de manter vivos os conflitos. De qualquer for ma, o “nobre” que procura asilo é uma idéia do século xix. Em perspectiva histórica, ele é a excedo.
25 Confundir o direito de asilo com outras questóes de imigrado e emigrad0 tem conseqüéncias fatais. A expan120 120
sao social e política do conceito de asilo tornou a confusáo ainda maior. Nao é claro por que os imigrantes devam ser considerados iguais a ditadores derrubados ou criminosos em fuga, e nem confundidos com alcoólatras ou vagabun
sao social e política do conceito de asilo tornou a confusáo ainda maior. Nao é claro por que os imigrantes devam ser considerados iguais a ditadores derrubados ou criminosos em fuga, e nem confundidos com alcoólatras ou vagabun dos. O resultado é que “candidato a asilo” tornou-se urna expressáo discriminatória, carregada negativamente, uma batata quente política. Esta confusáo deliberadamente engendrada, contudo, volta-se contra aqueles que a praticam, porque contradiz a idéia fundamental de asilo ao separar os bons dos maus se gundo o lema: eu decido quem é um candidato a asilo “ge nuino” e quem nao é. Isso é simplesmente impossível, mesmo com a melhor boa vontade vontade do mundo — o que nem se pode supor. A distingáo entre refugiados económicos e vítimas de perseguido política tornou-se um anacronismo em muitos países. Um Estado legalmente constituido que tente estabelecer a distin
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A Alemanha é um pais que deve sua populaçâo atual
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A Alemanha é um pais que deve sua populaçâo atual a grandes movimentos migratorios. Desde tempos remotos, há urna troca constante de grupos populacionais, pelas mais diversas razôes. A posiçâo geográfica já é motivo sufi ciente para que os alemáes, como os austríacos, sejam um povo muito misturado. Que as ideologias da pureza do sangue ou da raça tenham sido politicamente dominantes logo aqui deve ser entendido como urna forma de compensaçào. Os arianos nunca foram mais que urna fábula risível. (Nessa medida, o racismo alemáo é diferente do racismo ja ponés, que apela para o grau relativamente alto de homogeneidade étnica da populaçâo da ilha.) Um exame rápido de um atlas histórico basta para mostrar que a idéia de urna populaçâo alema homogénea e compacta é infundada. Sua funçâo só pode ser a de tentar soerguer, por meio de urna ficçâo, urna identidade nacional especialmente frágil. A historia recente do pais prova exatamente isso. A Se gunda Guerra Mundial mobilizou os alemâes em mais de um sentido. Por um lado, a maioria da populaçâo masculi na se espalhou até o cabo Norte e o Cáucaso (e, como pri sioneros de guerra, áté a Sibéria e a Nova Inglaterra), e por outro o fascismo forçou elementos substanciáis da elite alemâ e quase toda a populaçâo judaica à emigraçâo ou à morte. Durante a guerra, quase 10 milhôes de trabalhadores forçados, um terço dos quais eram mulheres, foram trazidos à força de toda a Europa para a Alemanha, de modo que 30% de todos os empregos, e na indústria de armamen tos mais da metade, eram preenchidos por estrangeiros. Depois da guerra, estes foram seguidos por milhôes de pessoas deslocadas; só muito muito poucas dessas pessoas, contudo, ficaram na Alemanha. 122
Novas migragóes em grande escala comegaram ao fi nal da guerra. O número de refugiados que, entre 1945 e 1950, ingressou ñas quatro zonas de ocupa^áo é estimado em 12 milhóes; além disso, houve mais de 3 milhóes de
Novas migragóes em grande escala comegaram ao fi nal da guerra. O número de refugiados que, entre 1945 e 1950, ingressou ñas quatro zonas de ocupa^áo é estimado em 12 milhóes; além disso, houve mais de 3 milhóes de “reinstalares” de pessoas oriundas da Europa Oriental e da Uniáo Soviética que eram consideradas de origem ale ma. Entre 1944 e 1989, 4,4 milhóes de individuos passaram para o Oeste vindos da ex-Alemanha Oriental. E entao, em meados dos anos 50, comeyou o recrutamento sistemático de migrantes para o trabalho, razáo principal para que mais de 5 milhóes de estrangeiros tenham residéncia legal na Alemanha. (A proporfáo de estrangeiros ainda se encontra bem abaixo do nivel de 10% que, se incluirmos os polone ses das provincias orientáis da Prússia, foi registrado antes da Primeira Guerra Mundial.) Até a década de 80, o direito de asilo era um fator infi nitesimalmente menor nos movimentos populacionais. Mas entre 1955 e 1986, de 400 mil a 600 mil alemáes emigravam a cada ano, fato que, notavelmente, é ignorado ñas discussóes políticas. É desconcertante que urna populagáo que tenha atravessado tempos como esses possa sofrer da ilusáo de que as migrafóes atuais sejam um fenómeno sem precedente. E como se os alemáes tivessem sido vitimados pela amnésia observada na fábula dos passageiros do trem. Em grande medida, sáo recém-chegados, que mal acabaram eles próprios de conquistar um assento, mas insistem em gozar dos direitos direitos dos que aqui se encontram desde sempre. s empre. Como se sabe, as conseqüéncias váo além de uma relutáncia em se instalar com menos conforto, apertados no compartimento de primeira classe. Desde 1991, adquiriram os contornos de uma cacada humana organizada.
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Será a xenofobia um problema especificamente ale-
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Será a xenofobia um problema especificamente alemáo? máo? Se fosse assim, assim, seria bom demais — e a solu^áo seria seria obvia: bastaría isolar a República Federal para o resto do mundo poder emitir um suspiro de alivio. Seria fácil apontar países vizinhos onde a imigrafáo é tratada com mais ri gor e onde as cotas de admissáo sao ainda menores que na Alemanha. Mas essas comparares sáo improdutivas. A xe nofobia é um fenómeno universal. A irracionalidade da controvérsia náo é especificamente alemá, porque o tema nao parece fácilmente acessível á razáo em parte alguma. O que, entáo, é táo especial assim no caso dos alemáes? Por que urna polarizado táo extrema terá surgido aqui? A culpa histórica sentida pelos alemáes, tenha ou náo fundamento, náo é urna explicado suficiente. As causas sáo mais remotas. Estáo na consciencia precária que a na d o tem de de si mesma. mesma. E verdade verdade que os alemáes náo gosgostam uns dos outros e nem de si mesmos; as emocóes que vieram á tona com a unificado da Alemanha náo deixam qualquer dúvida a respeito. Mas alguém que náo gosta de si mesmo vai achar difícil amar aqueles que nem seus vizi nhos sáo. Isso é evidente náo só na hostilidade em relado aos estrangei estrangeiros ros que, da ne n e g a d o de fatos fatos obvios ( “A Alemanh Alemanhaa náo é um país de imigrayáo”) á mobilizagáo de quadrilhas de desordeiros, formou um continuum, mas também na oposigáo a ela. Náo existe lugar onde a retórica universalista seja mais valorizada que na Alemanha. Os imigrantes sáo defendidos num tom moralizante de absoluta corregáo: lemas como: “Estrangeiros, náo nos deixem sozinhos com os alemáes!” ou: “Alemanha nunca mais!” demonstram urna inversáo hi124
pócrita de sinais. O cliché racista aparece de forma negati va. va. Os ¡migrantes sao idealizados de urna urna forma que qu e lembra o filo-semitismo. Levada a extremo, a inversáo do preconceito pode se transformar em discriminado contra a maio-
pócrita de sinais. O cliché racista aparece de forma negati va. va. Os ¡migrantes sao idealizados de urna urna forma que qu e lembra o filo-semitismo. Levada a extremo, a inversáo do preconceito pode se transformar em discriminado contra a maioria ria. O odio de si mesmo é projetado nos outros outros — especial esp ecial mente na afirmativa insidiosa: “Sou um estrangeiro” que inúmeras celebridades alemas adotaram. Urna curiosa alianza entre os remanescentes da esquerda e o clero emergiu. (Alianzas semelhantes também podem ser observadas na Escandinávia, sugerindo que es ta postura pode ter a ver com a cultura política do protes tantismo.) Pregar o Sermao da Montanha é, sem dúvida, um dever da Igreja. A ineficácia nao pode ser urna objepáo no contexto religioso. Professá-la só se transforma em hipocrisia quando isso pretende apresentar-se como solugao polí tica. Qualquer um que conclame seus concidadáos para oferecer ofere cer abrigo aos cansados can sados e sofredores sofred ores da Terra Terra — umi tas vezes com referéncias a crimes coletivos que váo da conquista da América América ao Holocausto H olocausto — sem considerar as conseqüéncias, sem levar em conta as media
rafraseando Brecht: “Nao seria mais fácil/ Neste caso para os pregadores/ Dissolver o povo/ E eleger um outro?”.
rafraseando Brecht: “Nao seria mais fácil/ Neste caso para os pregadores/ Dissolver o povo/ E eleger um outro?”.
28 O apego aos principios é urna fraqueza tradicional dos intelectuais intelectuais alemáes. alemáes. Ele leva a exigencias éticas constantes e excessivas sobre si mesmo e a urna perda recorrente de credibilidade. Existe, porém, outro aspecto desagradável. Já J á é difícil para os alem al emáe áess cons co nseg egui uirr conv co nviv iver er cons co nsig igoo próprios e com seus vizinhos. Aínda assim, os mesmos mora listas bem pensantes dispostos a acolher todos os necessitados da Terra ao mesmo tempo exigem que os vilóes de ontem se transformem num modelo de altruismo para to dos os outros, de modo que os problemas do Segundo e do Terceiro Mundos possam ser resolvidos pela contrita alma germánica. Neste caso, também, a idéia sofre embarazos assim que entra em conflito com qualquer interesse concre to; mas quando a política é conduzida desta forma, o em barazo é o menos significativo dos problemas que surgem.
29 E sempre impossível prever quantos imigrantes um país é capaz de acomodar, porque náo se trata apenas de urna questáo de números absolutos: há variáveis demais em jogo. O aprendizado social e psicológico, bem como processos de familiarizado, náo podem ser arbitrariamen te acelerados. Com populafóes sem prática, aumentos abruptos de cotas podem produzir rea^óes semi-alérgicas. A análise económica, porém, oferece as melhores diretrizes objetivas. Os conflitos inevitáveis que decorrem da 126
migrafáo em grande escala só se intensificaram quando o desemprego se tornou crónico nos países receptores. Em tempos de pleno emprego, que provavelmente nunca mais
migrafáo em grande escala só se intensificaram quando o desemprego se tornou crónico nos países receptores. Em tempos de pleno emprego, que provavelmente nunca mais voltaráo, milhóes de migrantes foram recrutados para o trabalho. Quase 10 milhóes de imigrantes entraram nos Esta dos Unidos vindos do México; 3 milhóes trocaram o Magreb pela Franca; 5 milhóes vieram para a Alemanha, entre eles quase 2 milhóes de turcos. A mígrafáo nao era apenas tolerada, era bem-vinda. A disposigáo só mudou quando o desemprego come^ou a aumentar, apesar de um crescimento simultáneo na prosperidade. Desde entáo, as opor tunidades para os imigrantes no mercado de trabalho reduziram-se de maneira dramática. Muitos estáo destinados a fazer carreira no seguro social. Diante de barreiras burocrá ticas praticamente intransponíveis, outros precisam viver na ilegalidade. As únicas perspectivas que estáo abertas para eles sáo a economía oculta e a criminalidade: o preconceito se transforma numa profecía que se cumpre a si mesma.
30 Outro obstáculo estrutural á imigragáo, cuja importan cia é subestimada, é o welfare State. Em contraste com os Estados Unidos, onde nenhum recém-chegado pode contar com urna rede social para ampará-lo, os habitantes de mui tos países europeus podem ao menos reivindicar salva guardas mínimas, como auxílio-desemprego, seguro-saúde e seguro social. Em principio, esses direitos náo podem ser recusados a estrangeiros. No entanto, em lugares onde a propriedade individual e coletiva é considerada sagrada, é limitada a disposi^áo de estender a solidariedade a estrangeiros. Os sindicatos e os 127
partidos partidos social-democratas também precisam precisam ceder ce der quando o ivelfare State é submetido a pressóes cada vez maiores. Os sistemas de previdencia existentes sao concebidos co
partidos partidos social-democratas também precisam precisam ceder ce der quando o ivelfare State é submetido a pressóes cada vez maiores. Os sistemas de previdencia existentes sao concebidos co mo associagóes de membros pagantes; sua escala de tem po é curta, e seu financiamento a longo prazo, incerto. Nao existe muito sentido em demonstrar que os recém-chegados sao nao apenas usuários mas também contribuintes do w el fare fare State State, ou que a imigragáo também pode ter um efeito benéfico sobre a estrutura etária da populagao. A condifáo para tal seria um mercado de trabalho ca paz de absorver os imigrantes. De qualquer forma, muitos demógrafos acreditam que a esperanza de urna harmonizagao desse tipo é uma ilusáo. A imigragáo teria que atingir proporgóes enormes para poder restaurar a pirámide de idades tradicional. Dependendo do modelo usado, já se calculou que os Estados Unidos precisariam de 4 a 10 milhóes, e a Alemanha de pelo menos 1 milháo de imigrantes joven jov enss a cada ano, para que este objetivo fosse alcanzado. Náo há nada que sugira que estes países pudessem lidar com tal influxo, nem política e nem económicamente.
31 De um ponto pon to de vista vista subjetivo, subjetivo, as coisas p arecem aín da piores. A disposigáo e a capacidade de integrado náo podem mais ser presumidas em qualquer país ou grupo. A idéia da sociedade multicultural continua a ser um slogan confuso, enquanto as dificuldades que ela coloca, e deixa de esclarecer, permanecem tabus. A disputa cansativa nun ca será resolvida se ninguém souber, ou quiser saber, o que significa cultura — “Tudo o que os seres humanos fazem e náo fazem” parece ser a definigáo mais precisa. Apenas por esta razáo, a discussáo está condenada a reproduzir a con128
tradigáo entre a subestimado deliberada e a denúncia, o idilio e o pánico. As experiencias fornecidas pelas migragóes em larga escala do passado sáo ignoradas nessas discussóes. Os ad-
tradigáo entre a subestimado deliberada e a denúncia, o idilio e o pánico. As experiencias fornecidas pelas migragóes em larga escala do passado sáo ignoradas nessas discussóes. Os adversários da imigragáo negam os exemplos de sucesso que podiam ser encontrados em toda parte, dos suecos na Finlándia aos huguenotes na Prússia e em outras áreas, dos poloneses no Ruhr aos refugiados húngaros de 1956. Os defensores náo admitem falar nos riscos. Recusam-se a le var em considerado as guerras civis no Líbano, na ex-Iugoslávia e no Cáucaso, ou os conflitos ñas cidades ameri canas. A idéia de um Estado multinacional raramente se mostrou duráve durável.l. Talvez seja seja pedir demais que alguém lembre a desintegrado do Império Otomano ou a monarquía dos Habsburgo. Mas no que diz respeito á ex-Uniáo Sovié tica, náo se precisa de qualquer conhecimento de historia; basta urna televisáo. A Uniáo Soviética envidou grandes esforgos para instilar um sentido de identidade e de objetivos comuns numa “sociedade multicultural”. O resultado foi uma implosáo de conseqüéncias incalculáveis. Perigos também também podem p odem ser observados nos países clássicos de imigrado. Tradicionalmente, os recém-chegados se mostravam dispostos em extremo a se adaptar, aínda que seja duvidoso que o célebre meltingpot tenha existido. Em sua sua maioria, maioria, eram perfeitamente perfeitam ente capa c apazes zes de disting distinguir uir a integrado da assimilagáo. Aceitavam as normas escritas e náo escritas da sociedade que os acolhia, mas tendiam a preservar sua tradifáo cultural — e muitas vezes também seus costumes lingüísticos e religiosos. Hoje, é impossível contar com uma atitude semelhante entre as velhas minorías ou os novos imigrantes. Com freqüéncia cada vez maior, renuncia-se a lagos comuns. A pobreza e a discriminado levaram as minorías, especial mente nos Estados Unidos, mas também na Grá-Bretanha e 129
na Franga, a adotar ideologías políticas agressivas. Os ex cluidos viraram a mesa e estáo se desconectando. Urna quantidade cada vez maior de grupos da populagáo insistem
na Franga, a adotar ideologías políticas agressivas. Os ex cluidos viraram a mesa e estáo se desconectando. Urna quantidade cada vez maior de grupos da populagáo insistem em afirmar sua “identidade”. Nao é nada claro o sentido disso. Porta-vozes militantes expóem exigencias separatis tas. Ás vezes, os lemas recorrem aos legados do tribalismo. Fala-se de urna “nagáo” negra e de urna “nagáo” islámica. Na Inglaterra, os fundamentalistas paquistaneses criaram um “Parlamento mugulmano” argumentando que a populagáo islámica do país constituía um sistema político próprio. Teorías conspiratórias atraem seguidores em massa; muitos negros americanos acreditam que o tráfico de drogas é urna estratégia calculada dos brancos com a finalidade de exter minar a minoría negra. Há confrontos náo apenas ap enas com a maioria, maioria, mas também entre as diferentes diferentes minorías. minorías. Os afro-americanos a fro-americanos combatem co mbatem os judeus, os latinos combatem os coreanos, os haitianos lutam lutam com os negros locáis e assim assim por diante. Os conflitos sociais tornam-se nacionalizados. Em alguns bairros, há virtuais guerras tribais. Nos casos extremos, o apartheid é de fendido como um direito humano, e a conversáo do gueto num Estado independente é elevada a finalidade última. Ainda assim, os porta-vozes desses movimentos sáo dema gogos sem qualquer legitimidade democrática, e náo pare ce que as massas que supostamente representam estejam de fato dando-lhes apoio.
32 Mesmo que a disposigáo dos imigrantes em se integrar esteja diminuindo, náo sáo eles que provocam o conflito, e sim aqueles que se consideram nativos. Se ainda fossem apenas os déclassés, os skinheads e os neonazistas! Mas es130
ses bandos constituem apenas a vanguarda violenta e autodesignada da xenofobia. A meta de integrado ainda nao foi foi aceita aceita por grande grandess contingentes contingentes da po p u lad la d 0 européi européia. a. A maioria nao está pronta para ela, e hoje talvez nem seja
ses bandos constituem apenas a vanguarda violenta e autodesignada da xenofobia. A meta de integrado ainda nao foi foi aceita aceita por grande grandess contingentes contingentes da po p u lad la d 0 européi européia. a. A maioria nao está pronta para ela, e hoje talvez nem seja capaz de levá-la a cabo. Um argumento recente contra a imigragáo deriva do arsenal do anticolonialismo. A Argélia para os argelinos, Cuba para os cubanos, o Tibete para os tibetanos, a África para para os africanos — palavr palavras as de ordem com o essas, que ajudaram muitos movimentos de liberta?áo a chegar á vitóría, agora também estáo sendo adotadas pelos europeus, o que náo deixa de ter urna certa lógica insidiosa. É possível ver o projeto de uma “política preventiva de migra^áo”, visando remover as causas da emigrado, como uma uma variante filantrópica desta idéia. Para que ele tenha ten ha sucesso, seria necessário eliminar o abismo existente entre os países ricos e os pobres, ou pelo menos reduzi-lo consideravelmente. A tarefa está além da capacidade económica das nafóes industriáis, mesmo deixando de lado a questáo dos limites ecológicos para o crescimento. Além disso, náo se detecta em parte alguma a vontade política de promover uma redistribuido global. Meio século das chamadas polí ticas de desenvolvimento fazem qualquer esperanza de tal meia-volta parecer utópica. Em 1925, Imre Frenczi, alto funcionário da Liga das Nagóes, perguntou como “pode jamais haver na Terra uma distribuido uniforme de pessoas cujas tradi^óes, cu jo padráo de vida e cuja raga diferem tan to uns dos outros, sem pór em perigo a paz e o progresso da humanidade”. Ninguém ainda sabe responder.
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Que qualquer um possa dizer em voz alta o que pensa do governo ou do Estado ou do Senhor ñas alturas sem ser torturado e ser ameagado de morte; que os desentendimentos sejam resolvidos diante de um tribunal e nao por rixas de sangue; que as mulheres possam deslocar-se livremente e nao sejam forjadas a vender-se ou a ser circunci dadas; que as pessoas possam atravessar as rúas sem serem acuadas por disparos de metralhadora ou pelo avanzo fu rioso da soldadesca; tudo isso nao é apenas bom, é essencial. Em todo o mundo, há gente, presumivelmente a maioria, que deseja essas condi^óes e está disposta a defendé-las onde quer que elas existem. Sáo estes os pré-requisitos mínimos da civilizado. Na história da humanidade, este mínimo só foi aleanfado excepcionalmente, e sempre de maneira temporária. Quem se dispóe a defendé-lo dos desafios externos vé-se diante de um dilema: quanto mais ferozmente a civilizado se defende de urna ameaga externa e ergue barreiras á sua volta, menos, no final, resta a defender. No entanto, no que tange aos bárbaros, náo precisamos ficar á sua espera nos portoes. Eles já estáo sempre entre nós.
CERTAS PECULIARIDADES DA CANADA HUMANA Qualquer pessoa que intervenha nos discursos políti cos da vida pública alemá o faz por seu próprio risco. Náo sáo tanto as acusag acusagoes oe s moráis costumeiras costum eiras nessa esfera que q ue funcionam com co m o dissuasor dissuasor (fundam-se numa tradicáo tradicáo estabelecida e sáo um trago familiar do jornalismo); mais sérios 132
sao os riscos intelectuais corridos por alguém que participe do debate público. Será inevitavelmente ridicularizado assim que der sua contribuido. A razáo náo é difícil de en
sao os riscos intelectuais corridos por alguém que participe do debate público. Será inevitavelmente ridicularizado assim que der sua contribuido. A razáo náo é difícil de en contra contrar: r: todos tod os os que se s e submetem ás premissas premissas de um talk show já estáo perdidos, e só podem culpar a si mesmos. Náo é segredo de onde emanam as regras, ás quais os par ticipantes se subordinara mais ou menos de bom grado. Anos atrás, correu pelo quartel-general dos partidos a noticia de que a ocupado das idéias é, estratégicamente, táo importante quanto o controle do aparelho do poder. Só podemos admirar a pericia com que a classe política, para a qual qual nada é menos m enos conveniente con veniente que as idéias idéias,, apossou-se ap ossou-se dessa teoría. Urna conseqüéncia é que o debate político es tá se tornando mais e mais um fantasma dos meios de co m un icado ica do;; ele se evapora evapora na na telev televisáo isáo,, e especialmente no que a televisáo tem de pior: os jomáis diários sobre os acontecimentos acontecim entos políticos em Bonn. Bonn . O discurso da oposigáo oposigáo é restringido por essas condifóes: ele se contenta em virar de cabera para baixo os slogans de seus adversários. Náo há lugar onde este padráo bruto se manifeste com mais clareza que na “política dos estrangeiros” e no “deba te do asilo”. As próprias formulagóes sáo obviamente produtos das estrumeiras de Bonn. Os políticos, porém, conseguiram deslocar a discussáo para duas áreas que podem ser arbitrariamente intercambiadas na medida do necessário. Por um lado, é instigada urna discussáo abstrata e morali zante sobre os principios; por outro, é possível, a qualquer momento, recorrer a minúcias do procedimento legal cada vez que é levantada a questáo de pór qualquer coisa em prática. Com esta dupla estratégia, questóes bastante ob vias, que os promotores evidentemente náo estáo interessados em formular, acabam se perdendo no caminho. Eu gostaria de levantar urna dessas questóes aqui. Embora náo seja central para o problema da Grande Migrado, 133
ela é, ainda assim, uma questào de vida e morte para aque les que já vivem na Alemanha — qualquer que seja seu passaporte, seu visto ou sua legitimidade. É a questào de
ela é, ainda assim, uma questào de vida e morte para aque les que já vivem na Alemanha — qualquer que seja seu passaporte, seu visto ou sua legitimidade. É a questào de saber se este pais é realmente habitável. Considero um lu gar inabitável quando um bando de desordeiros tem a liberdade de atacar pessoas no meio da rua ou atear fogo as suas casas. Podemos ignorar a questào de quem é ou nào supostamente alemao, pelo menos na medida em que ela nào é decidida pela obrigaçào de um grupo usar roupas normáis enquanto o resto é forçado por lei a ostentar triángulos, cruzes ou estrelas. Já que ninguém ainda propos leis como esta, a distinçâo entre nativos e estrangeiros é irrelevante neste contexto. E também é supérfluo, neste contexto, distorcer sentimentalmente o estatuto do estrangeiro, por exemplo, com a afirmaçào popular que vem sendo procla mada por todas as pretensas celebridades: “Eu sou um es trangeiro”. Até mesmo o mais breve dos olhares revela que vadios e chatos, cretinos e idiotas sáo encontrados em meio à populaçâo nativa com a mesma freqüéncia estatística que ocorre entre os turcos, os tâmeis ou os poloneses. Ser força do a viver junto com eles sem recorrer à violéncia é uma exigéncia nada razoável, que numa sociedade civilizada to dos, sem exceçâo, sáo obrigados a aceitar. Mesmo os que náo querem aceitá-la devem, se necessário, ser obrigados a fazê-lo. fazê-lo. Pois Pois o que qu e é intolerável intolerável é a presença presenç a de pessoas que empreendem caçadas humanas individuáis ou organizadas. A simples distinçâo nào tem nada a ver com o chama do problema dos estrangeiros. E nem tem nada a ver com as novas novas regras regras para para os procedimentos procedim entos de d e asilo, menos m enos ain da com a misér miséria ia do Terceiro Terce iro Mundo Mundo ou com o racismo racismo onipresente. O que está em jogo é o monopolio da força bru ta que o Estado reivindica para si. 134
Podem-se acusar os varios governos desta república de todos os tipos de coisa, mas ninguém poderia dizer que jamais jama is hesitara hesit aram m em fazer faz er uso desse de sse m onop on opol olio io sempre sem pre
Podem-se acusar os varios governos desta república de todos os tipos de coisa, mas ninguém poderia dizer que jamais jama is hesitara hesit aram m em fazer faz er uso desse de sse m onop on opol olio io sempre sem pre que ele lhes pareceu ameaçado. Ao contrário, o Executivo nunca demonstrou a menor falta de entusiasmo nessas situaçôes. Os guardas federáis da fronteira, os serviços secre tos, as forças especiáis de segurança, as unidades móveis de resposta rápida da policía, os departamentos de detetives estaduais e federáis sempre estiveram à máo com todos os recursos e equipamentos, de computadores a esquadróes de helicópteros, de kits de identificaçâo a carros blindados de transporte de tropas. E o Legislativo também nunca se mostrou menos diligente. Chega ás raias da irresponsabilidade a abertura de novas figuras legáis, desde o conceito de “associaçâo criminosa” até a lei que proíbe vi sitas e cartas aos prisioneiros que aguardam julgamento. Em decorréncia, o Estado alemâo tem acesso a um arsenal assustador de meios de autoproteçâo. Nos últimos meses, porém, nem mesmo o mais insig nificante dos usos foi dado a todos esses recursos. De fato, todo o aparato da repressáo, da policía aos tribunais, reagiu giu ao surgimento de urna urna grande quantidade de bandos ban dos de desordeiros ñas duas partes da Alemanha com um grau de contençâo sem precedentes. A única exceçâo foram as detençôes; nos casos em que foram feitas, os acusados quase sempre acabaram postos em liberdade no día seguinte. O gabinete do procurador federal federal do Estado Estado e da policía fede ral, antes onipresentes nos meios de comunicaçâo, dedica dos a repelir qualquer ameaça ao povo alemáo, guardaram siléncio, como se estivessem temporariamente aposenta dos. Os guardas federáis da fronteira, que apenas poucos anos atrás ocupavam todas as estradas vicinais do país, parecem ter sumido da face da Terra. 135
Quanto aos políticos, muitos deles subiram ao palco num papel pouco familiar: o de assistentes sociais. Seus esforgos terapéuticos nao na o visavam as vítimas da cagada — lo gradas com frases altissonantes — mas as pessoas que em-
Quanto aos políticos, muitos deles subiram ao palco num papel pouco familiar: o de assistentes sociais. Seus esforgos terapéuticos nao na o visavam as vítimas da cagada — lo gradas com frases altissonantes — mas as pessoas que empreenderam a cagada humana. Lamentáveis deficiencias do sistema educacional, especialmente na ex-Alemanha Orien tal, foram mencionadas; súplicas se ouviam pedindo a compreensáo para com a dura realidade do desemprego; além de sua imaturidade, a desorientagáo cultural dos matadores foi levada em consideragáo. No fim das contas, estávamos lidando com “pobres almas” que precisavam ser tratadas com a máxima paciéncia. Náo era mesmo possível esperar que essas pessoas táo desprivilegiadas fossem perceber que atear fogo a criangas é, no sentido estrito, uma atividade náo permissíve permissível.l. Precisamos chamar a atengáo o quanto antes para o suprimento insuficiente de atividades de lazer postas á disposigáo desses facínoras. Esta compaixáo profunda é espantosa, quando nos lembramos das imagens de Brokdorf (uma usina que se transformou transformou no fo co dos protestos antinucleares) e da Star Start t bahn West (uma das pistas do aeroporto de Frankfurt, des tinada inicialmente ao uso militar norte-americano, cuja construgáo foi adiada por anos de protesto). Naquela ocasiáo, os ocupantes do poder náo pareceram cogitar na criagáo acelerada de discotecas ou clubes de jovens como uma possível solugáo; evidentemente, nos anos 70, o acesso livre e inconteste ao paraíso da sociedade de lazer ainda náo se transformara num direito inalienável. Ao contrário, os pontapés, as porretadas e os tiros eram desferidos com vi gor considerável e, se me lembro bem, o Estado chegou a se declarar pronto a produzir algumas vítimas fatais no cor rer do processo. Dever-se-á esta súbita mudanga de disposigáo a uma conversáo? Desde o Iluminismo, sempre surgiram humani136
tários que nos asseguravam que a lei criminal é inadequada como solugáo para os problemas sociais. E isso nao pode ser negado, dadas as condifóes das prisóes e o alto índice
tários que nos asseguravam que a lei criminal é inadequada como solugáo para os problemas sociais. E isso nao pode ser negado, dadas as condifóes das prisóes e o alto índice de reincidencia, ainda que os reformadores continuem a nos dever urna alternativa convincente. No entanto, isso nao explica a intrigante mudanza de atitude da parte do aparelho de Estado, assumindo urna leniéncia compassiva para com assassinos. assassinos. Ladróes Ladróes de lojas e assaltantes assaltantes de bancos, ban cos, vigaristas e estelionatários, terroristas e extorsionistas continuam a ser presos como sempre; nenhum partido político chegou a defender a abolido sumaria do código penal ou mesmo urna reforma geral do sistema penal. Precisamos portanto procurar outras explicares Para compreender a discrepancia entre a perseguido entusiasmada de um lado e, do outro, o mais completo laissez-faire. É possível que a intensidade do esforgo dependa dos interesses que a lei existe para proteger? Nos precedentes já citados, era uma questáo da propriedade privada de bens imóveis, do direito de ampliar aeroportos, construir estra das e erguer instala^óes nucleares de todo tipo. Nos ata ques e nos crimes dos últimos meses, contudo, as vidas de alguns milhares de habitantes do país correram risco. Evi dentemente, as agencias do Estado devem considerar que o homicidio e a matanza sao uma simples contravendo, enquanto a remodo de uma cerca é um crime sério. As circunstancias também suscitam outras interpreta r e s - É difíc difícil il acreditar acreditar nela, mas nao se pode excluir de to to do a hipótese de que haja políticos que simpatizem com os bandos homicidas que infestam o país. Talvez seja mais provável que muitos se limitem a assistir sentados e impassíveis á cagada humana porque imaginem que esta atitude possa trazer-lhes mais vantagens políticas. Nao é agradável, é claro, acreditar em tamanho grau de idiotice, e só a au137
sência de outras explicaçôes plausíveis justifica cogitarmos nesta hipótese. Até mesmo a mais estúpida das pessoas compreende
sência de outras explicaçôes plausíveis justifica cogitarmos nesta hipótese. Até mesmo a mais estúpida das pessoas compreende urna coisa: renunciar ao monopolio da força pelo Estado tem conseqüências que podem prejudicar a própria classe política. Um dos resultados é a necessidade de autodefesa. Se o Estado se recusa a protegé-los, os individuos ou gru pos ameaçados precisarào armar-se. O comércio interna cional se encarregará de atender à demanda corresponden te. Assim que a resisténcia tiver sido organizada, haverá guerras de quadrilhas (um desdobramento que já pode ser observado ñas cidades maiores, como Berlim e Hamburgo). Politicamente, podem surgir condiçôes semelhantes as que a Alemanha viveu no período final da República de Weimar. Além disso, se o terror de massa nas ruas nào conseguir os resultados que espera, acabará se voltando contra a clas se política. Ninguém tem urna segurança pessoal perfeita, e seria urna ilusáo acreditar-se que essas tropas de choque do germanismo iráo continuar, a longo prazo, a retribuir a indulgéncia paternal com que qu e sáo tratad tratados os em muitos lugares lugares.. Esta tolerancia, que sempre favorece os criminosos e nunca as vítimas, é um indicio de um gosto excessivo pela continuidade. Certos políticos tém dificuldades obvias para rom per com ela. Isso permite várias conclusses, entre as quais só urna é surpreendente: o sentido de autopreservaçâo des sas pessoas é menos pronunciado do que pensávamos.
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ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELA HELVÉ TICA EDITORIAL EM GARAMOND LIGHT E IMP RES SA PELA PELA GEOGRÁFICA SOBRE PAPEL SYMETRIQUE PARA A EDITORA SCHWARCZ EM MAIO DE !995.
aparentemente, da capacidade de intervengo racional dos estados, do direito internacional ou da sociedade civil. Ler este Guerra civil é tomar contato com um campo minado que aproxima, pelo pelo lado mai mais tenebroso, os cotidianos cotidianos do Pri Primeir meiro e Terceiro Terceiro Mundos. Se Se os paí países e continen continentes tes váo fi ficando mais mais parecidos no no
aparentemente, da capacidade de intervengo racional dos estados, do direito internacional ou da sociedade civil. Ler este Guerra civil é tomar contato com um campo minado que aproxima, pelo pelo lado mai mais tenebroso, os cotidianos cotidianos do Pri Primeir meiro e Terceiro Terceiro Mundos. Se Se os paí países e continen continentes tes váo fi ficando mais mais parecidos no no que a humanidade humanidade tem de de pior, pior, é o caso caso de nos perguntar como nossas limitadas facul dades dades de seres pensantes e sensí sensívei veis s po dem contribuir para afastar o terror, pelo menos enos nos nos lugar lugares es e momento momentos s que nos to cam diretamente.
0 poeta e ensaísta alemäo Hans Magnus Magnus Enzensberger Enzensberger nasceu nasceu em 1929 1929,, na cida cidade de de Kaufbeuren, Kaufbeuren, em All Allgäu, na Baviera. No Brasil, ¡á publicou, entre ou tros, os livros Elementos para urna teoría dos meios de comunicado; Com raiva e paciencia, Eu falo dos que nao falanr, 0 curto veráo da anarquía e A ou outr traa Europ Europa, a,
dois últ últimos pela pela Companhia Companhia das das Letras.