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A pi~biica~áo deste livro foi possível graças as contribuiçóes da Evangelisches Missionswerk iii Deutschialid (Hamburgo, Alemanha) e das Igrejas Pro~estantesUnidas na Holanda - Ministérios Globais (Utrecht),
às q~iaisa hsociaçáo de Semi~iários'kológicos Evangélicos agradece.
Associaçáo de Seminários Teológicos Evangélicos I'resideni-e: Prof. Manoel Bernardino de Santana Filho (Rio de Janeiro) Vice-Preçide~ite:Prof. Dr. Gerson Luis Linden (São Leopoldo) Secretário: Prof. Dr. Nelson Krlpp (Sáo Leopoldo) Tesoureiro: Prof. Gerson Correia de tacerda (Sáo Paulo) Vogais:
Profa. Maria Betânia Arliújo (Recife) Prof. Carlos Getúlio Halbero, ( ~ o r c ohlçgre) ' l'rof. Dr. Paulo Roberto Garcia (Sáo Bernardo do Campo) Diretor Executivo
Prof. Fernando Borrolleto Filho
DA IGREJA CRISTÃ E RICHARD A. NORRIS DAUID W. LOTZ ROBERT T. HANDY
3' edição tradução de Paulo Siepierski
Título original: A Hiitory oj'tbe Christian Chuwh - Charles Scribner's Sons, New York 1959 O . Primeira ediçiío em iírigua portuguesa: ASTE O 1967. Segunda edicáo em língua portuguesa: 1980. Tesccira edi5áo cm Krig~iaportuglicba; AS'l'E (baseada na 4nedicáo em ASTEIjUERP inglês) O 2006. Todos os direitos reservados.
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Direçáo Editora1
Fçrliaildo Boitollçt
Seminário Concbrdia
Preparação do Índice Gerson Coirçia de Lacçrdd
Biblioteca
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Revisáo !
hlatioel Zilves Barbosa
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Capa e Projeto GráF~co bfarcos Gianelli
niarcos.giancl1iGgmail.m
Editoraçáo Eletrônica emblerna idtias visuais iellfas [ I I ] 3 0 2 3 4187
Dados Inrcrnacionais de CaraIoga~Zona Publicacão ICIPI IClmdra Brasileira do Livro, Sl', Brasil)
1-irulo iir;girial. .iIiisrorr o f rlie chriiri.ili (:hurik
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ASTF. - r l r s o ç i a ) á o dc Srmiriários Teológicris EsançClicos K ~ i aRego Freitas, 530 E 13 01210-010 Sáo I'aulo, SP Brasil '1C1 (1 1 ) 325: 5467 Fax (1 l i 3256 9896 ~ S I C @ U D ~ . C O ~ . ~ ~
~~~\xv.astc.org.hr.
Sumário
Período I Do inicio h crise gnóstica ...................................
................................11
11 Capítulo 1 .A Situaiáo Geral ....................................................................................... 21 CapítuIo 2 - AnteccJerites Judaicos .................................................................................. Capírulo 3 - Jesus e os Discípulos .....................................................................................29 Capítulo 4 - A Comunidade Crisrá Inicial ........................................................................ 3 2 CapítuIo 5 - Paulo c o Cristianismo Gentílico ............................. ........................... 35 Capitulo 6 O Fim do Período Aposr61ico .................................................................... 44 Capítulo 7 - A Interpretaqáo de Jesus ............................................................................ 4 8 Capítulo 8 - O Crisriailisrno Geniílico do Seguiido Século ............................................... 56 .. ...................................................... 61 Capírulo 9 Organizay2u Crisrá ..................... .. Capítulo 10 - O Cristianismo c o Governo Rorna110 .......................................... ..............67 Capítulo 1.1 - Os Apologistas .......................................................................................... 71
. .
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Período I1 75 D a crise gnósticd a Constmztin o .............................................................. . . Capítulo I .Gnost~cisrna............................... ................................................................ 7.5 CapítuIo 2 .Marcião ....................................................................................................... 83 Capítulo 3 .12/Iontanis~no.............................................................................................. 85 Capitulo 4 - A Igreja Cacólica ........................................................................................ 87 Capítulo j - h Imporrânçia Crescente da Igreja Romana ................................................ 32 Capírulo 6 - Iriiieu de Liáo ............................................................................................... 95 I:apítulo 7 - Tertuliano e Cipriano ...................................................................................97 . . ......................... 102 Capítulo 8 - A Teologia do Logos e o Monarqii~ai~isrno .................... . . Capírulo 9 - A Escola AIexandrina ............................................................................... 106 Capitulo 10 - A Igreja e a Sociedade Romana de 180 a 260 ....................... . . .............. 114 Capítrdo 11 O ~csenvolvimentnConstirucionaI da Igreja ........................................... 119 Capírulo 12 O Culto Público s o Tempo Sagrado .................................................. 123 Capítulo 13 - Batismo .................................................................................................... 126 . . Capítulo 14 - A Eucai-~sria.............................................................................................. 132 Capítulo 15 - C) Perdão dos Pecados ..................................... ....................................... 135 Capítulo 16 Padróes da Vida Crisrã ........................................................................... 138 Capírulo 17 - Kepo~isoe Crescimi-nto ...........................................................................142 C:apítulo 18 - Forcas Religiosas Rivais .......................................................................... 145 C;apítulo 19 - A Luta Final .............................................. ..... ............................................147 -
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HISTORIA !A IGREJA C R I S T ~
Período III
O Estado Imperiul dd Igreja .................................................................1 53 Capítulo 1 .A Nova Sirua~áo......................................................................................... 153 Capítillo 2 .Da Controvtrsia Ariana aré a Morte de Constailtino ................................ 156 Capítulo 3 .A Controvérsia sob o Reinado dos Filhos de Constantino .......................... 163 Capírulo 4 .A Conrinuaçáo da Luta Nicena ..................................................................167 Capítulo j .As Invasões Germânicas .............................................................................173 Capírulo 6 .O Crescimerito d o Papado ....................................................................... 178 Capítulo 7 .~Clonasticisnio.............................................................................................181 Capítulo 8 .hmbrósio e Crisósrorno ..............................................................................188 Capítulo 9 .As C:ontxovérsias C r i ~ t o l ó ~ i c.................................................................... as 191 Capíruio 10 O Orieiite Dividido ............................................................................... 205 Capít-ulo 11 .ControvCrsia e Caristrofe no Oriente ....................................................... 214 Capítulo 12 .O Desen\~oivimentoLonsritucior-ial da Igreja ...........................................217 .Culto e Piedade ...................................................................................... 221 Capítulo 13 .......................................................................... 229 Capítulo 14 .A TradiSáo Cristã Latina Capitulo I j .Jer61iimo ..................................................................................................231 Capírulo 16 .Agostinho dc Hipona ............................................................................... 233 .
.......................................................................... 244 Capituio 17 .A Contro\4rsia . . Pelagizna Capírulo 18 .Sernipelagianismo .................................................................................. 248 Capítulo 19 .GregOrio Magno ..................................................................................... 250
Periodo IV A I'dade Média e o Encerramento dd Conaovkrsiln da Investidurd .
.
......... 258
Capítrilo 1 .Missóes nas Ilhas Brirânicas ...................................................................... 258 Capítulo 2 .0 Cristianismo c o Reino Franco ...............................................................264 Capitulo 3 .Orier-irc e Ocidente na Conrrovérsia Iconociasta .........................................270 Capítulo 4 - Os Frailcos e o Papado ............................................................................. 274 277 Capítulo 5 .Carlos Magno ........................................................................................... Capitulo 6 - O Cristianismo Europeu no Noim Século ..............................................283 Capirulo 7 - O Papado e o Impirio Otônida ................................................................. 293 Capítulo 8 - A Igreja Grega após a Conrroversa lconoclasra ........................................... 301 Capítulo 9 - A Expansáo Cristá na f l t a Idade Média ..............................................305 Capírulo 10 - O Papado Rcformador ........................................................................... 310 Capítulo 11 - Ua Reforma Revolução .......................................................................... 316 Capítulo 12 - Hildelirando e Henrique TV .....................................................................321 Capíriilo 13 - O Fim da Controvérsia sobre as In\restiduras ............................................ 324 ..
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Periodo V A Iddde Média Posterior ....................................................................... 327 Capítulo 1 .iis Cruzadas ............................................................................................... 327 Capítulo 2 .Novos X4ovjmentos Religiosos ....................................................................337 Capítulo 3 .Heresia Medieval - Os Cáraros e Vaidenses; a Incluisição ........................... 348 Capírulo 4 - 0 s Tlorniriicanos. os Franciscanos e outras Ordens Mendicantes ................ 360
Capítulo 5 .Escolascticisrno inicial; h s e l n i o de Cantuária e l'edro Abeiardo ................375 CapítuIo 6 .A Redescoberra de Aristóteies; o Surgimenro das Universidades .................. 387 Capitulo 7 .O Alro Escolascicismo e sua Teologia; "romás de Aquino .............................394 Capítulo 8 .Escolasticismo Posterior; Duns Scotus e Guilherme de Ockharn ................. 408 Capítulo 9 .O Misticismo, a Devocáo h ,4 oderna e a Heresia ..........................................421 Capítulo 10 .Missóes e Derrotas ................................................................................... 428 Capítula J 1 .O Papado em seu Apogeu e Declínio .......................................................430 Capitulo 12 - O Pspado em Avinháo; Defeiisnres e Críticos do Papado; o Grande Cisma ............................................................................................................. 437 Capítulo 13 - Wyclit'e Hus .......................................................................................... 442 Capítulo 14 - Os Concilias Reformadores ............................................................... 453 Capítulo 1 5 - O Renascimerito Iraliano e seus Papas; Líderes Religiosos PopuIares .......................................................................................... 460 Capítulo 16 - 0 s Novos Poderes Nacionais .................................................................... 469 Capítulo 17 - Humanismo ao Norte dos Alpes; Piedade às Vésperas da Reforma ..................................................................................... 476
Período VT A Refirma ............................................................................................ 483 Capitulo 1 .O Desenvolvime~itode Lutero e os Prirnórdios da Reforma .......................489 Capítulo 2 .Separações e Diiisóes .................................................................................506 517 Capítulo 3 - Úirico &íngho e a Reforma Suíqa ............................................................ Capítulo 4 .O s Anabaristas ...........................................................................................524 Capítulo j - O Esrabelecirnentn do Protesta~itisnioAlemão ........................................... 533 Capítulo 6 - Os Países Escar@navos ..................................... .......................... . . . . . . . 545 Capítulo 7 A Reforma na Suíqa Fracófona e em Genebra antes de Calvino .................. 549 Capitulo 8 Joáo Calvino ..............................................................................................553 Capírulo 9 - A Reforma Inglesa ......................................................................................564 Capítulo I 0 - A Reforma Escocesa ................................................................................ 583 Capítulo 11 - A Reforma Católica e a Contra-Reforma .................................................. i 8 9 Capítulo 12 - Disputas Confessionais na Franca, nos I'aaíses Baixos e na Inglaterra ............................................................................................................... 605 Capítnlo 13 - As Controvérsias Religiosas Alemãs e a Guerra dos Trinta Anos ......:............................................................................................................. 619 CiFítulo 14 - Socinianismo ............................................................................................ 630 Capítulo l i - Arminianismo .......................................................................................... 633 Capítulo 1'6 - Anglicanisrno, Puritanismo e as Igrejas Livres na Inglaterra, Episcopalismo e Presbiterianismo na Escdcia ............................................................... 638 Capítulo 17 - O s Quacres .............................................................................................. 660 -
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Período V71 O Cristiaurismo Moderno ...................................................................... 663 Capítulo 1 .Os Primórdios da Ciência e da Filosofia Modernas .....................................663 Capítulo 2 .A Transpiantaçáo d o Criscianisrno para as Américas
................................... 669
Capítulo 3 .O Deísrnn c seus Oponentes; o Ceticismo ........................................... 678 Capítulo 4 .Unitarisino na Inglaterra e na América .......................................................686 Capítulo 5 .O Pierismo na Alemanha ....................................................................... 688 Capítulo 6 .Zinzendorf e o Moravianismo .................................................................... 694 Capí~uIo7 .O Rcavivamenco Evangélico na Grá-Dreranha; Wesley c o Mctodismo ...................................................................................................699 Capítulo 8 O Grande Desperramento .................................................................... 712 CapítuIo 9 - O Impacto do Reavivamenco Evaiigilico; o Surçinicnro das Missões Modernas .............................................................................. 718 Capítulo 10 - h Época da Revolu@o nos Estados Urlidos ............................................. 722 ................................. . ............... 729 Capirulo 11 - O l~uminiçmo( A u f l d ~ r u n Alcrnáo ~) . Capítulo 12 - Tendências no Peiisamerito Prorestante Alemáo no Século Dezeilove ..................................................................................................... 734 Capítulo 13 - O Protesrantisrno Ingles no S&ciiloDczenove ...........................................749 Capítulo 14 - C) Protestanrismo Coritiriental no Século Dezenove ................................. 759 CapíruIo 15 - O Prorestantismo Americano no Siculo Dezenovc ................................... 764 Capírulo 16 - O Carolicisino Romano no Murido Moderno .......................................... 781 Capículo 17 -As igrejas Orientais nos Teinpos Modernos ........................................... 792 Capítulo 18 - O ?r?ovimento Eçumênico ....................................................................... 802 Capítulo 19 - A Igreja no hlundo .................................................................................. 813 -
Prefacio à Terceira Ediqão em Português
Diante da decisáo da ASTE de lançar mais uina edicáo desta obra de VI! WaIker, surge imediaramente a questão: será que o texto náo está ultrapassado?
A pergunta merece ser analisada. final de contas, a primeira ediqáo do texto de Walker ocorreu no ano de 1918, ou seja, há quase um século. Duranrc esse período, a pesquisa hisciirica avançou rnuito. De Gato, ocorreram importantes descobervas que náo foram do conhecimento de Walkcr no início do século
Além disso,
temos de levar cm conta as quesróes metodnlógicas. Também nesse campo houve mudanças significativas. Já náo se analisa a história como se fazia há cem anos.
A partir daí, poderia se concluir que um esforc;~deveria ser feito rio sentido de se publicar algum outro texto a respeito da história da igrcja que fosse mais atual e que levasse em conta as mais recentes descobertas da pesquisa histórica. No entanro, há outros fatores a serem considerados. Em primeiro lugar, a obra de Walker tornou-se um texto clássico, o que a torna indispensável. Em segundo lugar, o texto editado pela ASSE não é, rigorosamente, o mesmo publicado em 1918. Na
verdade, C um texto que já passou por três importantes rex~isóese atua1izac;óes. Ein
1959, a segunda ediçáo do texco de Walker foi revista e atualizada pelos Profs. Cyril C. Richardson, Wilhelm Pauck c Robert T. Handy, do Union Theological Semii~ary da cidade de Nova Iorque. Seus responsáveis informaram no prefdcio daquela edicáo que "era inevitável que alguns trechos necessitassem de alguma rnodernizacãa. Portanro, os Últimos capirulos foram quase rotalme~lrcreescritos (...) A segáo que [rara do período moderno sofreu uin trabalho mais radical de revisão. com vistas a rorná-
Ia mais atualizada". Dez anos mais tarde, Robert T H a n d ~no prefácio da terceira edicán, acrescentou: "Muitos eventos importantes na história da igreja ocorreram
nos anos 60 (...) (Por isso) foi decidido introduzir algumas mudanças na úlcirna parte da obra, acrescentar mais um capitulo e atualizar as sugescóes bibliográficas". Finalmente, em 1984, a quarta edicáo, elaborada por fichard A. Norris, David W. Lotz e Robert T. Handy, informa, em seu prefácio, que foi feito um amplo traballio, com novas concepcóes, remodelacóes e redação, "incorporando os resultados dos
mais recentes trabalhos de pesquisa" no campo dos escudos histcíricos. Todo esse trabalho constante de revisáo e de atualizacão faz com que o texto de Walker conrinue a rer um valor inestimável. Com a sua
baseada na quar-
ta ediqáo em inglês, com nova tradução, a ASTE, sem dúvida, oferece uma contri-
buição imporrai~tea todas as pessoas que se dedicam ao ensino e ao estudo da história da igreja nas mais diversas instituiçóes de ensino teológico de nosso país, bcm como às que desejam crescer no conhecimento do passado do povo de Deus para uma atuncáo mais relevante no presente.
Gerson Correia de Lacerda
Seminário Teológico de São Paulo da 'lPI do Brasil
Período I D o inicio à crise póstica
Capitulo 1
A Situaçáo Geral Na época do nascimento de Cristo, as terras circunvizinhas ao mar Mediterrâneo estavam sob o controle
de Roma, cujo impirio abrangia náo somente os
territórios costeiros mas também as terras interiores. Limitado pelo oceano e pelos rios Reno e Danúbio ao norte do Mediterrâneo, esse império abarcava o norte da África e o Egito e se estendia para o Orienre até as fronteiras com a k m ê n i a e o império persa. No século e meio antes do surgimento do cristianismo, a influência do senado e do povo romano foi estendida desde a Itália, de forma a incluir não apenas a Gália, a Espanha e o norte da África no Ocidente, mas também no Oriente, as monarquias helenísticas que haviam sucçdido ao império de Alexandre Magno. Esse período de expatlsáo coincidiu com uma era de crescente conff ito e insrabilidade na vida social e política da república romana. O assassinato (44 a.C.) de Júlio César, efetuado por um partido que temia a subversáo das instituicóes repiiblicanas tradicionais, foi seguido por guerras civis que afetaram codas as partes dos territórios governados por Roma. De modo geral, foi com alívio e esperanqa, portanto, que o povo saudou o triunfo final de Otávio, sobrinho e filho adotivo de Cisal; cuja tarefa se [ornou reconstituir o estado romano e reformar a administraçáo de suas províncias. Pi-eservando a forma das instiriii~óesrepublicanas, Augusro (como Otávio foi oficial e reverentemente nomeado em 27 a.C. pelo senado) eventualmente concentrou todo o poder efetivo (impeáztm) em suas próprias rnáos, recebendo o status vitalício
de
tribuno d o povo e depois cônsul, com o título "cidadáo líder" (princqs). Agindo com essa autoridade, ele colocou em ordem o governo das províncias e trouxe relativa paz ao conjunto do inundo mediterrâneo.
HISTÓRIA Dh IGREJA C R I S T i
12
O sistema imperial que Augusco entáo estabeleceu abarcou povos de muitas línguas e culturas. Em muitas regióes do império, a unidade social e política básica era - ou tornou-se - a polis, um termo comumente mas inadequadamente craduzido
como "cidade." Isso era uma corporaçáo de cidadáos zelando pelos negócios de um territbrio modesto cujo coração era um centro urbano de maior ou menor tamanho. Sob a égide romana, tais corporaqóes cívicas - que em sua maior parte eram governa- ficaram responsáveis por seus próprios negócios locais c tamdas ~ligar~uicarnente
bém pelos impostos que sustentavam o estado imperial e seus ex6rcitos. Cada cidade portanto supria o necessário para o culto à divindade ou divindades, que eram seus patronos, para a administração da justiça e para o bem-estar de seus cidadáos e outros residentes. Cada cidade era um foco de orgulho local, com suas raízes econômicas na área rural circunvizinha. Conjuntamente, o império era uina muitidáo de agrupamentos étnicos, culturais e religiosos m a n t i d o s juntos por u m a submissão política c o m u m , pela interdependência econômica e comercial e pelo compartilhar de uma cultura superior. Politicamente, tudo dependia de Roma, seu imperador e seus exércitos, tanto para a rnanutenqáo da ordem interna como para a prote~áodas fronteiras exteriores da civiiizaçáo mediterrânea, onde a maioria das legióes estavam estacionadas. Dentro do impkrio, a principal fonte de riqueza era a rerra e seus produtos, e a agricultura era a atividade principal. As comunidades distantes do Mediterrâneo e seus rios tributários viviam em sua maior parte da p r o d ~ q á olocal, mas as cidades do litoral especialmente os grandes centros cosmopolitas corno Roma - eram dependentes de um vigoroso comércio de gêneros alimentícios da vida cotidiana: cereal, vinho e olivas. O cereal do norre da África alimentava a população de Roma e, mais tarde,
A unidade e coesáo do império, entretanto, dependia também da existencia de uma cultura comum superior - a cultura "helenística" que se desenvolveu no encaiqo das conquistas de Alexandre Magno (356-323 a.C.), quando a língua, educaqáo e iiistituiqóes cfvicas gregas foram difundidas pelo mundo mediterraneo oriental. Mesmo Roma, no século e meio anterior ao nascimento de Cristo, tornou-se tribu-
PERIUDU I
DO iiicio A CRISE EFIOSTICA
13
tária intelectual e cultural da tradiçáo grega. Ao passo que a língua grega se tornava o idioma cotidiario do moradores urbanos no Oriente, ela rambtrn se rornava a segunda língua normal para as pessoas instruídas no Ocidente, onde o latim era o idioma comum. Outras línguas (aramaico, copta, púnico) de maneira alguma desapareceram, mas eras tenderam cada vez mais a se tornar línguas das pessoas sem instruçáo e da populaçáo rural. Dessa maneira, a ciência grega, a filosofia religiosa grega e a arte e literatura grega enriqueceram e foram enriquecidas por ourras tradiqóes e criaram a possibilidade de um mundo compartilhado de valores religiosos e culturais para a civiiizaçáo urbana da área mediterrânea. Nesse mundo complexo, diverso e notavelmente sofisticado, práticas, crenças e preocupaçóes religiosas eram centrais nas vidas, tanto de indivíduos como de comunidades. Simultaneamente, entretanto, as correntes religiosas da época eram diversas. Falando em termos gerais, podemos distinguir três amplas categorias de observação e crença religiosa. Primeiro, havia a religiáo tradicional dos deuses da fiamilia c da comunidade - o que poderia ser chamado de "religiáo cívica" do mundo helenísticoromano. Segundo, havia os assirn chamados "cultos de mistério." Estes eram em sua maior parte cultos orientais que tinham suas raízes iníticas 110s ritos de fertilidade locais, mas que, no mundo cosmopolita do império de fala grega, passaram por uma transformaqao e se tornaram fraternidades voluntárias que ofereciam a seus iniciados a salvação dos embaraços do Destino e da Fortuna. Finalmente, havia a maneira de vida que buscava a bem-aventurança e realização humana atravis da busca e prática da sabedoria filosófica: uma sabedoria baseada na crítica aos deuses tradicionais do panceáo grego, mas capaz, conforme o tempo passava, dc ofcrecer uma versáo "dernitol~~izada" da religiáo tradicional. Na prática, estes diferentes estilos de religiáo coexistiam pacificamente, e alguns indivíduos estavam, em um grau maior ou menor, envolvidos em todos os três. Eles respondiam, encreranto, a iiecessidades diferentes, e em cerra medida pressupunham diferentes percepqóes da condição humana. Em um ponto, porém, os vários tipos de religiáo concordavam. As pessoas no mundo romano estavam adquirindo - na maior parte, de fato, já haviam adquirido um novo retrato d o cosmos. A terra chata c o céu conio arco superior do niiro antigo
já era passado. Pessoas instruídas e meio-instruídas igualmenre agora percebiam a Terra como uma esfera sem movimento estabclccida no centro das coisas. Ao redor dela se moviam em suas órbitas as sete esferas planecárias, e ao redor desse sistema se
14
HISTURIA DA IGREJA CRISIA
movia "o céu", o domínio das estrelas fixas. Para os antigos, entretanto, esse universo náo era uma simpies máquina. Em vez disso, eles o
como uma coisa com
alma (ou seja, viva) na qual movimento e mudanca metúdicos eram mantidos pela Mente divina. O mundo estava impregnado de vida, e os deuses que habiravam o céu e as esferas planetárias eram as manifestações ou representantes do Poder divino último, que se estendia a todas as coisas, até mesmo aos negócios naqueie setor do cosmo (Terra) que era o mais distante domínio divino.
A religião tradicionaf no mundo helenístico-romano era um negócio ~ ú b l i c oe social, um negócio da Gamília c da comunidade. Uma vez que o bem-estar das pessoas dependia em todo instante da boa vontade dos deuses, os poderes cósmicos, a religiáo procurava a ajuda deles para vencer as preocupaçóes comuns da vida: o crescimento das plantações, a conduta dos negócios, os difíceis empreendimentos da guerra e da diplomacia. Seus rituais eram muito antigos e tradicionais, quase nunca racionalizados, e conduzidos pelos líderes normais da comunidade: o cabeça da família ou os magistrados elcitos da cidade. Essa religiáo utilizava adivinhacóes, sonhos e oráculos para buscar a vonrade dos poderes; ela utilizava a oragáo e o sacrifício para fazer aliança com eles.
É neste ambiente de tal religih tradicionai que devemos compreender o fenômeno do culto ao imperador ou culto do estado, que se desenvolveu no império romano. Os triunfos das tropas romanas e os benefícios que a ordem imperial concedeu ao mundo mediterrâneo convenceram os próprios romanos, como também a maioria dos povos a eles sujeitos, que o poder romano era uma manifesraçáo do poder dos deuses - que Roma tinha uma missáo divina. O próprio Augusto, consciente de que o destino da cidade imperial somente poderia ser cumprido se ela mantivesse seu pacto com os deuses, empreendeu um reavivamento da religiáo tradicional. Ademais, no momento em que ele erigia um altar para a deusa Paz na casa do senado, em Roma, ele seguia precedentes orientais anteriores encorajando um culto à deusa Roma - o poder divino manifesto na obra conquistadora e ordenadora do estado romano.
Uma perspectiva semelhante jaz por trás do estabelecimento e crescimento do culto ao imperador divino, cujas origens verdadeiras estão no Oriente e não em Roma, propriamente. Quando permitido pela primeira vez na Itália, esse culto assumiu a forma relativamente modesta de veneracáo ao "gênio" d o imperador (ou seja, ao d t e r e80 divino do govemanre humailo), ou entáo da "deificaçáo" de um imperador após sua morre. As sensibilidades romanas originalmente náo permitiram a declaração de
pnioeo I
00 INíEIO iCRISE GNÓSTICA
15
que um ser humano comum fosse eIe mesmo um deus; somente um doido reconhecido como Calígula (37-41 d.C.)
ter dado tal passo. Nas províncias, entre-
tanto, e especial~nenteno Oriente, tal restrição era menos comum. Li,seguindo uin coscume muito antigo, era oferecido culto ao imperador em sua própria pessoa como uma manifestação viva do divino. Esse culto náo suscitava nenhuma piedade pessoal profunda, disseminado e cuidadosamente organizado como eirentualmenre fosse; ele pertencia ao domínio da religiáo cívica formal, e seu papel, como as pessoas de modo geral reconheciam, era político. Ele representava, contudo, uma convicção verdadeira: que a base da ordem política jazia no domínio divino. Essa religião tradicional, porém, era em muitos senão na maioria dos casos irrelevante para as aspiraçóes e necessidades pessoais. Seus rituais, cuidadosamente mantidos como foram, eram impessoais e sua preocupação era com a ordem pública e o bem-estar público. Conseqüentemente as pessoas simples das cidades se voltaram
para outros cultos religiosos para obter seguranqa pessoal, prosperidade e o sentimento de ocupar lugar e destino positivos em um mundo confuso e impessoal.
O cosmo, conforme estas pessoas o experimentavam, nao era um conjunto perfeitamente ordenado e harmonioso. A Terra da experiência deles estava bem distante do domínio abençoado dos deuses. Era o dominio da chance e da necessidade, na qual os poderes demoníacos, cujo território era a região inferior entre aTerra e a Lua, exercitavam sua vontade imprevisí~rei.Muito da religiáo popular, portanto, estava preocupado em compreender e controlar os poderes não h u m a n o s que, frequentemente, capricIiosainent-e, assim parecia, governavam a vida humana. A prática da magia - a iitiiiza~áode encantos, feiticos e amuletos - era reinante. Havia também um grande modismo de astrologia, importada no período helenístico da Rabilônia e difundida por todo o nlundo mediterrâneo. Consultar as estrelas era obter algum discernimento sobre o destino de alguém. Era também confessar que o destino das pessoas estava nas máos de forcas externas.
É essa situacáo que torna compreensível a popularidade dos cultos de mistério. Estes, como já vimos, eram "religióes naturais" orientais que, no período helenístico, foram disseminadas no mundo mediterrâneo como religióes de salva$io. Os mais populares deles eram os cultos da Grande Mãe, originário da Ásia Menor; de Ísis c Será~is,oriundos do Egito; e de Mitras, que se disseminou mais tardiamente a partir da Pérsia. Originalmente Roma viu essas religióes com suspeita. Elas envolviam rituais entusiásticos, até mesmo orgiás~icos,que pareciam incompatíveis com a mordidade
e o decoro público. Não obstante, foram as próprias autoridades romanas que, em um período de crise nas guerras concra Cartago, introduziram o culto da Grande
Máe (adequadamente purificado de seus excessos) no recinto sagrado dos de~lses romanos (204 a.C.); e por volta de 80 a.C., o culto de ísis estava estabelecido nas vizinhanças de Roma, embora tenha sofrido longa oposição governamental. Com o tempo, estes cultos foram aceitos até mesmo no Ocidence como um elemento nor-
mal na vida religiosa, tanto da populacáo como dos governanres.
O que eles oferecianil Por um lado ofereciam, em seus rituais de iniciacão e no çulro, uma cxperiência do Divino que tocava e despertava profundas emoções de reverfncia, adrniracáo c gratidão. Os iniciados desses mistkrios secretos "viam" o deus e entravam em comunháo com um ser divino que se havia manifesto para cuidar deles. Ao mesmo rempo, esses cultos ofereciam a dádiva de uma imortalidade abençoada em comunhão com os deuses. Enraizados como geralmerite estavam no mito de um deus que morria e ressuscitava, eles forneciam uma experiência de reilascimento para uma nova quaíidade de vida. O iniciado, feito uin participante na vida do deus, era elevado acima do domínio terresrre controlado
destino e pelo
acaso e portanto era liberto para a imortalidade própria daqucles que desfrutam comunháo com o Divino. O s cultos de mistério, portanto, eram reiigióes de salvaçáo que tanto se valiam como nutriam uin sentimento de transcendência. Um terceiro caminho pelo qual as pessoas poderiam seguir eni sua busca por uiria vida feliz e realizada era o da sabedoria filosófica. Na periodo helenístico-rornano, "filosofia" nao era o nome de uma disciplina acadêmica preocupada com uma strie particular de questóes abstratas. Ao invés, ela denotava a busca por uma compreensáo do cosmo e do Iugar da humanidade dentro dele - uma comprceiisáo que era
alcanpda somenre pela participacZo em um certo modo dc vida e que se tnanifesram em felicidade ou beaticude. A vocação de filósofo, portanto, niio era para qualquer um. Ela requeria urna vida de disciplina moral e intelectual que apenas poucos poderiam seguir. Por outro lado, as descriç6es do mundo e da coiidiçáo humana que a filosofia desenvolvia rinlian-i urn nieio de se rorriarem triviais na moralidade e na religiáo popular. No fi nai. a filosofia fornecia a moldura de compreensão que dava sencido aos m i ~ o se rituais da religião.
A origem das escolas filosóficas heleníscico-romanas é encontrada no quarto século antes de Crisro, no movimento de inquiriçáo e e s p e c ~ l a ~ áestimulado o pelo ensino de Sócrates em Atenas. Esse niovimenro teve seu primeiro grande líder em
PER~OUUI
DO IFllCIO h CRISE 6NbSTICL
ií
Platão (m. 347 a.C.), cujas idéias foram comunicadas em forma popular em sua série de diálogos. A Academia que ele fundou - e que foi finaIrnente fechada somente em
529 pelo imperador cristão Justiniano - foi a primeira das grandes "escolas" de filosofia helenística. Aristóteles (384-322 a.C.), pupilo de Platáo, rompeu com a Academia depois da morte de Platáo e tornou-se o f~tndadorda escola peripatética, mas a influência do ensino de Aristóteles foi sentida mais fortemenrc na era cristá, depois da republicaçáo de suas obras fiIosdficas e científicas no primeiro século a.C. Subseqüentemente, surgiram as escolas de Epicuro (342-270 a.C.) e aquela dos estóicos, assim chamados por causa do Pórtico ( d a ) , uma saIa pública em Atenas onde seu fundador, Zenáo (ni. ca. 264 a.C.), originalmente ensinara. Cada uma dessas escolas se tornou, efetivamente, uma fraternidade continuadora que expôs e desenvolveu os ensinos de seus fundadores. As diferenqas entre elas envolviam uma ampla ordem de questóes: epistemologia, cosmologia e teologia, como também ética. O problema central que foi debatido no período helenístico, enrretanto, foi o da natureza da vida humana "feliz" ou realizada.
A escola de Epicuro ensinava que o prazer - no seilcido r-iegativo de ausência de perturbaçáo mental ( a t u ~ x i n-) era o bem humano mais elevado. A boa vida é a vida que maximiza o prazer minimizando a dor concornitante ao desejo e ansiedade desnecessários. I'ortanto, paradoxalmente, o maior prazer é alcanqado por uma vida de quietude, afastamento e reclusão: uma vida caracterizada essenciain~entepelo autocoi-itrole. Epicuro e seus seguidores consideravam a religião
-
temor dos deuses e
ansiedade sobre a vida futura - como uma das principais fontes de perturbaçáo e dor. Eles acreditavani, entretanto, que todos esses temores religiosos náo tinham qualquer fundamento. Os deuses existem, eles ensinavam, em um mundo empireo prbprio c não têm nenhuma responsabilidade pelos negócios dos seres humanos ou interesse neles. A morte, ademais, assinala um mero fim à existsncia humana e portanto náo é um mal, uma vez que com a morte desaparece a consciência do prazer e da dor. Essa doutrina se encaixava admiravelmente na convicção epicurista de que o cosmo é formado, corno Demócrito (m. ca. 380 a.C.) havia ensinado anteriormente, pela combinacáo ao acaso e sempre em mudanca de átomos, existindo eternamente dentro do Vazio. Essa filosofia desfrurou de um breve modismo no primeiro século a.C. em círculos aristocráticos em Roma e seu maior produto literário é o brilhante poema De rerum naturil d o romano Lucrécio (m. 55 a.C.). No período cristão, as doutrinas de Epicuro náo foram nem influentes nem disseminadas, mas foram com
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HIST~RIA DA IGREJA GRISTÁ
freqüência injustamente ridicularizadas, por cristãos e outros, para propósitos polemisticos. Muiro mais influente, especialmente no Ocidente latino, era a filosofia dos estóicos com seu ensino de que o único bem humano é a virtude ou "a vida de acordo com a natureza." As doutrinas de Zenáo, expandidas e desenvolvidas por seus sucessores Cleantes (m. ca. 232 a.C.) e Crisipo (m. ca. 207 a.C.), encontraram notáveis expoentes ocidentais em Sêneca (m. 65 d.C.), o ex-escravo Epicteto (m. ca. 135 d.C.), e o iinperador Marco Aurélio (121-180 d.C.). Como os epicuristas, os estóicos eram materialistas. Toscamente falando, eles concebiam o cosmo sendo composto de dois tipos de "coisas" ou "substâncias": uma mattria passiva, e o ativo, ardente, "espírito" ou "sopro" (pizeuma) que rransfunde a matéria, forma-a, e a faz coerir. Tal
pnezlma funciona no corpo cósniico semelhantemente à alma no corpo humano; ou seja, é a fonte da vida e da harmonia. Denominado "Deus" ou "Destino" ou "Razão"
(logos),esse "espírito" é a divindade residente, cujos poderes fluindo sáo os deuses da religiáo popular. A alma humana, ela mesma racional, é uma faísca ou porcão da Razáo divina.
O bem para as pessoas, entáo, consiste em elas serem plcnamenre aquilo que são - isto é, em viver e agir de acordo com sua identidade e natureza interior, que é o
logus. Apenas tal vida é a existência humana exceler-ite (ou, em ourras palavras, virtuosa). Ademais, apenas a vida virtuosa t' livre, pois somente ela está na capacidade de as pessoas a alcanprern, e sornenre ela permite que as pessoas sejam verdadeiramente elas próprias. Qualquer que seja o que dependa, pois, de circunsrância externa
-
saúde, por exemplo, ou sucesso terreno, ou prazer sensual - náo é parte essencial do bem humano. Na realidade, a dependência de circunstância externa aliena a pessoa
de si mesma. Isso é uma doença da alma que os estóicos chamaram 'paixáo" kathoj), por que a pessoa que está sujeita a isso é passiva em rcla~áoàs influências originárias do exterior e nesse caso irrçalizadas e não livres. Essa perspectiva levou os estóicos i percepcão de que as diferenps de posicáo e status sáo secundárias. Todas as pessoas sáo em última instância iguais, cidadãos companheiros uns dos outros e dos deuses em uma cidade cósmica. No período helenístico, os ensinos mais disseminados foram os epicuristas e os estóicos. O futuro, entretanto, pertenceria ao platonismo, que passou por um reavivamento no primeiro século antes de Cristo, embora em uma forma significativamente alterada. O ensino de Platáo estava fundamentado em úlrima análise, em
~nioeoI
00 INICIO À CRISE GNOSTICII
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sua distin~áoentre o que-é (Ser) e o vir-a-ser (Devir). Platáo, buscando o verdadeiro fundamento da ordem nos domínios moral, político e natural, discerniu-o no sistema de Formas ou Idéias - os modelos ou originais da realidade empirica. Estas Formas eram caracterizadas por duas qualidades essenciais. Primeiro, elas eram percebidas simplesmente como um ger, imutáveis, auto-identicamenre, e por conseqüência eternas. Segundo, elas eram percebidas como inteligíveis, capazes de serem alcançadas Platáo via o pela mente. Em contraste com esse domínio do Ser e da Int~li~ibilidade, mundo visível da experiência imediata como um domínio de contínuo De\rir - um '
mundo sobre o qual era impossível ter conhecimento estável, pois estava sempre escorregando entre nossos dedos mentais. Esses dois domínios do Ser e do Devir, contudo, náo estavam divorciados na percepção de Platáo. O mundo empírico reflete e participa do mundo ecerno do Ser. Ele faz isto, ademais, devido à atividade da alma viva c automotriz, que habita ambas as esferas. Quando a alma contempla e internaliza o Ser inteligível, conformando sua própria vida àquela verdade, ela ordena e harmoniza o mundo do Devir, de forma que a ordem temporal se torna "uma imagem móvel da eternidade." A ordem cdsmica é portanto o produto da contemplasáo e agáo da A m a do Mundo; a vocaçáo dos seres humanos, eles próprios almas racionais, é imitar aquela contemplaçáo e acáo: elevar-se ao conhecimento das Formas, daquilo que-é, e nesse conhecimenro conferir ordcm moral e política aos negócios humanos. Os sucessores imediatos de Platáo na Academia continuaram sua tradicáo de pensamento e as inquirições matemáticas que surgiram de sua teoria de que as Idéias e Formas eram "números" arquetípicos. Com Arcesilau (315-241 a.C.) e Carnéades
(213-128 a.C.), a Academia tomou nova dirc~áo.Convencidos de que Sócrates e Platáo nunca haviam proposto um sistema positivo, "dogmático", mas sempre havi-
am examinado as questóes de todos os lados sem alcancar conclusóes firmes ou
6-
nais, esses pensadores ensinaram a doutrina da "suspensáo de juízo" (eporhê). Com esse espírito, eles montaram ataques críticos sobre a crença nos deuses e sobre
OS
dogmas das outras escolas filosóficas (especialmente aqueles dos estóicos), ensinando que o homem sábio encontra na probabilidade, não na certeza, o único "guia para a vida." Esse espírito de "dúvida acadêmica" impressionou em muiro o filósofo roinano Cícero (106-43 a.C.) e através dele o jovem Agostinho de Hipona. No fina!, entretanto, o ceticismo não reinou na Academia de Platáo. No primeiro século antes de Cristo - e aproximadamente ao mesmo cempo quando as obras cien-
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HISTÓRIA DA IGREJA CRlSTh
tíficas e filosóficas de Aristóteles foram redescobertas e começaram a circular - apareceu um movimento, geralmente conhecido como "Platonismo Médio", que procurava retornar aos ensinos positivos de Piaráo, especialmente àqueles conforme enunciados no diálogo Timeti. Foi típico desse movimento, porém (o qual no decurso do primeiro e do segundo séculos cristãos elevou-se para virtual predominância), que sua compreensáo de Platáo fundiu suas idéias com temas extraídos d o estoicismo e, posteriormente, de Aristótelcs. Desse modo o "Platonismo Médio" assimilou de Aristóteles a idiia da matéria sem forma como o substraro último de todas as coisas visíveis, como também o conceito dc um Deus transcendente, entendido como Mente (nous).Esse Deus tinha as Formas de Platáo como o conceúdo de seu pensamento, e assim foi identificado com o domínio do Ser de PIatáo. O cosmo visível é modelado como a Alma-Mundo
eterna, formado e animado por sua contemplaçáo de Deus, que por sua vez confere forma e harmonia à maréria sem forma. Segue-se desse relato de coisas, que o filósofo que busca a auto-realização ao conformar sua maneira de ser à realidade última, tem que tomar o cosmo e sua ordem como o ponto inicial de sua busca, pois o cosmo G a imagem e reflexo da verdade eterna. ,4o final, entrecanto, ele deve transcender o mundo visível. Ele tem de elevar-se em seu pensamento ao Bem original, eterno. Lá a muitiplicidade do mundo espásio-temporal é harmonizada em uma unidade última, e lá a alma racional enconrra sua companhia adequada e o objeto plenamente digno de seu amor. Pois a alma, também, é eterna e imortal, e sua afinidade natural náo é com o mundo espásio-temporal passageiro, mas com o Ser. Portanto o fim da busca filosófica é "semelhança com Deus": um conhecimento de Deus que iniplica um compartilhar na maneira divina de ser. Como já foi dito, essa busca filosófica náo era para qualquer um. O caminho do filósofo para a auto-realização envolvia não apenas estudo e instrução demorada, mas rambéni uma ascese (askêsis) designada para purificar a aima das paixões que a impediam de ser seu verdadeiro eu. Contudo a busca filosófica como era compreendida no período do alto império, tinha mais do que um pouco em comum com o ânimo da religiáo popular, especialmente como esta era expressa no modismo dos cultos de mistério. h b a s buscavam um tipo de salvacáo das mudanças e acasos da \,ida no mundo. Ambas consideravam essa salvaçáo como uma libertaçáo - seja das paixóes que amarravam as pessoas ao mundo espásio-temporal ou dos poderes cósniicos hostis ou indiferentes. h b a s , finalmente, percebiam o ser humano como
PIRIOBO I
00 IlliC10 A CRISE GN~STICA
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capaz de um destino transcendente em comunháo com o Divino. Não é surpresa, portanto, que um filósofo platônico como Plutarco de Queronéia (m. ca. 120 d.C.) seja capaz e dcseje obter sentido filosófico do mito de Ísis e Osíris - para perceber isso como uma alegoria da condição e destino da humanidade. Nem é mais surpreendente que quando outra religião oriental de salvacão - o crisrianismo - começou sua caminhada no ambiente social e cultural das cidades hrlenizadas do impCrio romano, ela enconrrasse ressonâncias sirnpácicas na filosofia e na religião daquela época.
Capitulo 2
Antecedentes Judaicos Nos seis séculos anteriores ao nascimento de Cristo, o povo jude~iesreve sujeiro ao governo de uma série de impérios que controlaram a Siria e a Palestina. Depois da deportaçáo de Israel para a Babilônia por Nabucodonosor (586 a.C.), uma parte do povo retornou para a Judéia sob a direcáo de Esdras, com a bêncáo da nova monarquia aquemênida (persa), e iá, sob a autoridade de um sátrapa local, foi deixada sem perturbacáo tia prática de seus próprios costumes religiosos e sob o governo de sua própria lei. Essa
toleranre dos persas foi continuada pelos governanres
helenísticos daludéia, os Ptolomeus do Egito, e entáo, depois dc 200 a.C., os selêucidas com suas bases de poder na Síria e na Mesopotâmia. Porcanto a Judkia no período helenísrico tinha com efeito o status polírico de uma "ernarquia", governada nos negócios domésticos por um sumo sacerdote hereditário e seus conselheiros. Era um esrado pequeno, isolado canto pela geografia como pela cultura das áreas crescentemente helenizadas do liroral e do norte, e no início tinlia pouca parricipaçáo na prosperidade de seus vizinhos.
Esse mesmo período - particularmente os séculos de governo prolomaico e seleucida - assistiu a uma notável expansáo no número de judeus que viviam fora da Judéia, na
assim chamada Diáspora. Desde a conquista de Jerusalém por Nabucodonosor, havia uma comunidade substancial de judeus na Rabilonia, e mesmo antes daquele período havia pequenos estabelecimentos no Egito. Durante o período helenísrico,
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H I ~ T O R I A DA IGREJA CRISTA
enrretanro, tanto os ptolomaicos como os selêucidas descobriram que os judeus eram súditos úteis e soldados capazes e alegremente os estabeleceram, ou permitiram que eles se estabelecessem fora de sua terra natal já com populaçáo em excesso. Portanto o Egito, a Ásia Menor e a Síria passaram a ter grandes populaqóes judias. Por volta do primeiro século cristáo, talvez tanto quanto um terço da populacáo de Alexandria era judia, e havia estabelecimentos náo apenas no Orienre mas também em Roma e em outras cidades ocidentais. O s judeus d a Diáspora ordinariamente náo se tornavam cidadáos das cidades onde se estabeleciam, pois para isso normalinente eles m i a m que participar no culto dos deuses civis. Eles mantinham sua identidade religiosa e nacional e formavam comunidades especialmente privilegiadas de "residentes esrrangeiros" (metoikoi), ou então, como em Alexandria, uma politeuma - ou seja, uma corporaçáo civica denrro de uma comunidade maior. Seu relativo isolamento fez com que se tornassem objeto de interesse e por vezes de inveja e desconfianca por parte dos outros habitantes das cidades onde se est-abeleceram. Os focos da identidade judaica estavam no templo em Jerusalém e na lei de Moisés, que hncionava não apenas como código religioso mas também como código civil. Os judeus da Diáspora pagavam um imposto anual ao templo até sua des~ruicáo(70 d.C.), e o culto no ~ e m p l oera o centro formal da vida nacional. Na Judéia como tambbm na Diáspora, no entanto, o baluarte operanrc da identidade de Israel, seu senso de ser um povo separado dedicado ao Seril-iorem santidade, era n Lei. Estudnr, entender e manter a Lei era a chamada e o deleite do judeu sério. Essa pseocupaqáo dominante em enrender e manter a sabedoria prática da Lei encontrou expressão visível em duas institui~óes.A sinagoga, cujas origens pro~ravelmente retrocedem ao exílio, era tipicamente uma assembléia de todos os judeus em um dado disrrito, presidido por um grupo de "anciãos" que f'sequencemente tinhain um "príncipe" (archon) sobre eles. Esta assembléia se reunia para orar e santificar o nome de Deus, mas também para ler e inrerpretar a Lei e os Profetas. Os oficiais da sinagoga eram responsáveis pela administração da Lei e portanto pela puniqáo ou excomunháo dos contraventores. Ademais, todavia, a necessidade de interpretar a Lei e santificar a vida da comunidade submetendo todos seus aspectos ao governo da Lei produziu uma classe de funcionários religiosos chamados "cscribas", dos quais o próprio Esdras era contado o primeiro. Esses homens, que na Judéia e em outros lugares se rornaram os verdadeiros líderes religiosos do povo, buscaram tanto expan-
dir o alcance da aplicação da Lei como também vigiar conrra sua violaçáo, interpre-
QERL000I
00 iNfEI0 h CRISE GNOSTICR
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tarido-a da maneira mais cautelosa e escrita possível ("coriscruir um muro ao redor da Lei"). Conseqüentemente, eles gradualmente desenvolveram uma tradi~áooral de interpretaçáo (a ser incorporada bem mais rarde no Talmude), cujo conreúdo foi por propbsitos práticos cratado como parte da própria lei. Foi a partir destes círculos de escribas que subseqüentemente surgiram os movimentos hasidico e farisaico.
A grande crise da vida judaica no período helenístico surgiu em meados do segundo século antes de Cristo, a partir de um conflito dentro da própria comunidade na Judéia, um conflito que possuía tanto fontes religiosas como econômicas. Um partido na comiinidade, extraído da aristocracia de proprietários de terra em Jerusalkm, buscou e obteve com o monarca selêucida Antíoco Epifânio IV permissáo para alterar a base constitucional da vida judaica, rornando Jerusalém uma cidade no estilo grego, com o nome de 'Xntioquia." Consonanre com essa política, i~istiruicóes educacionais gregas - gymnxsion e ephebeion - foram estabelecidas para treinar novos cidadãos; mas acima de tudo, a Lei Mosaica, sob esre acordo, perdeu sua condição de coilstitui~áoda comunidade, uma vez que o poder legislativo estaia agora alocado no recenremente criado (e sem dúvida cuidadosamcnec limitado) corpo dc cidadáos. Essa tentativa por parte das classes endinheiradas de conformar Israel aos novos tempos não encontrou apoio nas pessoas comuns de Jerusalém ou da zona rural, e ccrtamente também não nos escribas e devotos da lei. Ela estaTradestinada a fracassar, com trágicas conseqüências. Quando o
reformador cometeu o erro de substituir o
sumo sacerdote, o povo sublevou-se. Sua rebelião bem sucedida, entretanto, suscitou a intervençáo de Antíoco IV, que para assegurar a segurança de seu reino tomou a linha mais dura possível pelo caminho da puniçáo. Ele aboliu a prática do judaísmo e instalou o culto a Zeus Olímpico no templo de Jerusalém.
Dessa maneira, um conflito religioso sobre a h e l e n i ~ a ~ áentre o judeus na Judiia vinculou-se aos problemas políticos mais amplos do decadente império selêucida. A aboliçáo do culto judaico promovida por Antioco provocou a revolta dos macabeus
(167 a.C.), cujas táticas de guerrilha por fim compeliram Ancíoco e seus sucessores, perturbados como estavam pela guerra e pelas luras dinásticas, a entrarem em acordo com os líderes judaicos. O resultado final disso teve três implicacóes básicas. O culto ao Senhor foi restaurado em um templo purificado e rededicado, e com ele a consti-
tuição tradicional da erinarquia judaica. Os hasmoneus - ou seja, a familia de Judas Macabeu - que na pessoa de Jônaras, irináo de Judas, assumiu o sumo sacerdócio com apoio selêucida (152 a.C.) - passaram a ser, depois de 140 a.C., os governanres
hereditários da Judéia. Ao mesmo tempo, o estado judaico, o qual em 142 a.C. havia se tornado efetivamente independente, cresceu em poderio militar até, sob João Hircano (1 35-1 05 a.C.), vir a controlar roda a Palestina. Nesse processo, entretanto, os objetivos da rebeliáo original foram frustrados. O próprio sumo sacerdócio se desenvolveu cm uma monarquia helenística, e as forcas religiosas que haviam impelido e apoiado a reiroita contra Antíoco encontraram-se em crescente oposiqáo à dinastia dos hasmoneus. Esse período da revolta dos macabeus e do governo hasmoneu foi a matriz dos partidos religiosos e idéias religiosas que dominaram o judaísmo palestino na época de Jesus. O advento dos romanos em 63 a.C. sob Pompeu, o Grande, modificou a situaqáo apenas tornando os conflitos internos mais agudos. Roma começou por intervir para resolver uma disputa sobre a sucessão na casa dos hasrnoneus. Ela solucionou o problema submetendo p n d e parte do reino judaico ao governo de seu propretor na Síria, mas Jerusalém em si foi constituída em um estado-templo, com seus negócios domésticos governados pelo sumo sacerdote hasmoneu. Esse sistema poderia rer funcionado, 1120 fosse por Roma ter mudado sua mente e violentado as sensibilidades judaicas insralando Herodes, chamado "o Grande", como uin rei vassalo
(37-4 a.C.) sobre os antigos rerritórios dos hasmoneus. Um idumeu cujo povo havia sido convertido pela forç.aao judaísmo nos dias do poderio hasmoneu, Herodes era quase universalmcnre odiado, apesar de sua magnífica reconstrução do templo de Jerusalém, suas contribuicóes para a prosperidade maceriai da terra e suas intervençóes ocasionais em Koma para proteger os interesses judaicos. Sua própria presença como rei 1-iolenrava a tradicional constituição tcocrática do povo judeu. Ele era, ademais, náo apenas um estrangeiro mas também um helenizador manifesto, embora algumas vezes cauteloso. Acima de tudo, todavia, sua elevação de impostos empobreceu o campesinato, entregou mais cerras à posse dos latifundiários e transformou muitas pessoas comuns em pcdintes ou bandidos. Roma rentou corrigir seu erro tornando a Judéia uma província sob um procurador romano (6 d.C.), mas o estrago
já estara feito. A disputa religiosa, política e econômica que havia sido acionada por h t í o c o IV e continuada sob os Iiasmoneus foi apenas exacerbada pela política rnmana. Não constitui surpresa que a primeira resposra ao censo romano de 6 d.C. cenha sido uma rebeIiáo local liderada pelo fundador do partido zeiote, Judas o galileu.
E contra esse pano de fundo geral que devemos entender a divisáo que surgiu no tempo dos hasmoneus entre um partido sacerdotal, aristocrático, e um p a r t ~ d omais
1
religiosamente exclusivo, devoto, popular: os saduceus e os fariseus. Os primeiros eram o grupo com o qual os hasmoneus gradualmente se associaram. Esse era um partido essencialmente secular, cujas atitudes eram determinadas mais por um intercsse na expa~isáopolítica e comercial do que por forte çonvicçáo religiosa. Muitos dos princípios religiosos que ele defendia eram simplesmente conservadores. Os saduceus eram leais i Lei, por exemplo, mas náo aceitavam a tradic;áo oral dos escribas. Eles negavam as doutrinas recentemente popularizadas da ressurreigáo ou imorraiidade, e rejeitavam a noçáo de bons e maus espíritos. Embora bastante influentes politicamente, eles náo eram populares junto às massas, que os viam como representantes da opressáo econômica, abertos para as influências estrangeiras e negligentes em sua atitude para com a Lei. Em oposiçáo a esse grupo encontramos os fariseus - "os separados." Esse partido permaneceu na tradição dos antigos escribas e dos hasidim, que se haviam reunido, originalmente para apoiar a revolta dos macabeus. Sua preocupação primeira era com a santificacão da vida por meio de uma observação precisa e alegre da Lei. Ele não revelava !grande interesse na ação política (embora o partido dos zelotcs, que defendia uma rebeliáo contra o poderio romano, parece ter-se originado no movimento dos Eariseus), contudo se posicionou de fato diante das questões que afetavam a vida política.
O partido dos fariseus náo apenas rompeu com os hasmoneus em
reiagáo à política de expansáo nacional destes, mas também questionou o direito deles ao sumo sacerdócio, a verdadeira base do poder real. Os fariseus eram influentes e amplamente admirados, tanto que os hasmoneus foram eventualmente forçados a dar-lhes representacáo no sinédrio, a assembléia de conselheiros do sumo sacerdote. Contudo, eles não eram numerosos, uma vez que muitas pessoas náo tinham nem instruçáo nem tempo para se dedicarem completamente b Lei. Eles defenderam ccrtas crenças populares que se haviam desenvolvido naturalinente a partir da experiência religiosa judaica desde a época do exílio. Eles se apegaram fortemente à existencia dc bons e maus espíriros e à doutrina sobre os anjos e Satanás , a qual era parcialmente o produco da influência persa. Da mesma forma, eles ensinavani a crença na rcssurreiçáo do corpo e em puniçóes e recompensas futuras: crenças escatológicas que, juntamente com esperangas rnessiânicas, floresceram no período intcnso e problemárico dos dois séculos antes do iiascimento de Cristo.
Em conexão com o partido Earisaico em sua oposição às dccisóes dos negócios religiosos (e portanto políticos) dos hasmoncus estavam os cssênios. Os ensinos des-
ta seita sáo coiihecidos por nós principalmente por meio de uma coleSáo de roios descobertos em Qumrá, na margem noroeste do mar Morto. Lá uma comunidade da seita vivia uma vida sernimnnásrica em isolamento do restante de Israel. As origens do movimento sáo obscuras. A princípio ela era conhecida somente por meio dos relatos de Fílon, Josefo e Plíriio, o Velho, escrevendo no primciro século da era cristá.
A comunidade de Qumrá, entretanto, cujas construçóes possivelmente podem ser datadas por vo.olrnde 135 a.C., parece ter-se reunido como o resulrado de um conflito sobre o sumo sacerdócio. Seus membros recordavam um "Mesrre da justiga" como seu fundador e o situavam em oposicáo a um "Sacerdote impion - talvez um sumo sacerdote ilegítimo, cuja ascensáo ao ofício represenrou, pelo menos para um pequeno grupo de piedosos, um repúdio ao fundamento religioso da existência de Israel. Alguils historiadores têm procurado identificar o reconhecimento de Simão Macabeu como sumo sacerdote hereditário (740 a.C.) como a ofensa que gerou a seita. De qualquer modo, esse movimento, diferentemente daquele dos fariseus, retirou-se do cenrro dominante da vida judaica, recusando-se a Ter qualquer coisa a ver com o culto do templo e acreditando que somente ele era a verdadeira congregacão de Israel, o remanescente fiel. Seus membros apreciavam a Lei e reivindicavam para si, pela obediência ao Mestre da Justiqa, a preservaçáo do significado correto da Lei contra as perversões correntes. Eles observavam purjficaçóes peribdicas, um rito anual de entrada e renovaçáo do Pacto, e uma ceia sagrada de pão e vinho. Eles viviam sob unia djsciplina esrrita, que está preservada para n6s no Mm11.d de 'ejsripljnd - uma obra que também reflete a organizacáo cuidadosa da comunidade, com seus supervisares, sacerdotes de Sadoc, anciáos e outros. Acima de xudo, entretanto, eles aguardavam fervorosamente a redenqáo futura de Israel. Eles esperavam v aparecimento de uma figura ou figuras rnessianicas que se lc-vmrariam para reunir juntas as hostes espalhadas de Israel, para derrolar seus inimigos e para inaugurar a era do governo de Deus. Tais esperancas náo estavam limitadas à seita do mar Morto. As frustraçóes religiosas, políticas e econômicas do judaismo popular na Palestina produziram um sentimento conjugado de desânimo e esperanca - desânimo do presente e esperança em
uma intervençáo fiitura, decisiva, de Deiu para corrigir as coisas. Esse sentimento se refletiu acima de tudo na rica literatura de "revelaçáo" ou "apocalíptica' do primeiro e segundo séculos a.C. (e mais tarde). Tais escritos registravam visóes nas quais os mistérios do mundo ceiestid, do curso da história humana, e do pIano de Deus para derrotar a impiedade eram revelados - quase invariavelmente a um sábio anciáo. A
.
mais conhecida destas visóes é o livro canônico de Daniel, composto no cenário da disputa contra Antíoco Epifânio IV. Ao lado dele podemos citar outros exemplos do gênero como O Livro de Enoque, A Assztn~úode Moisés e a posterior revelação cristã de Joáo. O tema principal dessa literatura apocalíptica é a afirmaçáo de que o próprio Deus irá "visicar e redimir seu povo"' para frustrar os poderes do mal terrestres e cósmicos e para afirmar seu próprio reino de justica. Havia obviamenre relatos variados de como isto poderia acontecer. Em algumas fontes, esperava-se que o próprio Deus entrasse em cena; em outras, ele iria agir por intermédio de um ser angilico ou sobrenatural. Em alguns lugares, como j i vin-ios, há mencão ao "Messias" do Senhor, um rei humano na linha davídica, do qual esperava-se a restauraçáo do reino de seu pai. Qualquer que fosse porém a forma de expectativa, ela refletia uma crença náo 'LI
apenas em que Deus agiria, mas também que a agáo de Deus apenas era suficiente
!2
para derrotar o mal.
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O
Igualmente irriporrante na vida judaica pós-exilica era o gênero de pensamento e literatura preocupado com o tema da sabedoria. Tradicionalmcnce, sabedoria signifi-
-
cava o discernimento prático necessário à conduta bem sucedida dos negócios da
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vida, e os sábios eram pessoas que enxergavam dentro das estruturas e significados
5
das coisas.' No judaísmo posterior, isso significava uma compreensáo particular da
> -
lei de Deus, que era equiparada à sabedoria e portanto tornada a base para inquiriId
ções tanto em questóes cosmológicas e antropológicas como também legais e morais.
ra
Tal sabedoria humana, entretanto, era tida como o resultado da aherrura para a ins-
>.
piraqáo da Sabedoria divina, que era tanto plano de Deus como agente de Deus para
-3
a criação e que é descrita en-i A Sabedoria de Salomáo como "uma emanação da @ria
Id
do Todo-Poderoso . . . o espelho perfeito do poder ativo de Deus e a imagem de sua
-
divindade.""
> -
3.
Sabedoria (não diferentemente do logos estóico ou d a Alma-Mundo
platônica) ordena a criajáo, mas ela também busca e reúne as pessoas para a compreensáo e torna-as amigas de Deus. Ela, portanto, também é uma agente de salvaçáo, embora uma agente concebida em uma moldura de pensamento diferente das figu-
-1
ras de salvaçáo da expectativa apocalíptica.
I?
Essas literaturas eram conhecidas e ponderadas não apenas na Judéia e na Palesti-
-3
na mas também na Diáspora, onde se encontrava a grande maioria dos judeus. Sob
35
ra
.i
' Lucasl:68. Sabcduria de Saloináo 7:17-21 Sabedoria de Saloinão 7:25.
os romanos, o judaísmo era uma "rcligiáo autorizada' (~eli~io licita),mão apenas na Palestina mas também nas cidades gregas e romanas, e a lei romana protegia as comunidades de fazendeiros, artesáos e comerciantes judeus por todo o império. Essa proteçáo era necessária, uma vez que a exclusividade religiosa dos judeus, seus privilégios legais e sua indisposiçáo em participar na vida cívica algumas vezes os tornaram impopulares. Na realidade, os judeus da Diáspora fizeram muitos ajustes ao mundo helenísrico, mais notadamente na questáo da linguagem. Eles falavam grego quase universdmente, até mesmo em suas sinagogas; e por volta da época de Augusto, a versáo grega das Escrituras conhecida como a Septuaginta (L=] foi completada e passou a ser empregada em todo canto. Ademais, as comunidades judaicas da Diáspora entraram em diálogo com a religião pagã. Como resultado, elas náo apenas fizeram conversos (prosélitos) mas reunirarn ao redor de si uma grande nuvem de inquiridores parcialmente judaizados ("tementes a Deus"), que serviram como uma área de recrutamento para grande parre da propaganda ~nissionáriacriscá inicial. Esse diálogo produziu seu mais notável fruto na comunidade judaica de Alexaridria, no Egito, onde, na obra de Fílon (m. ca. 42 d.C.), temas das Escrituras judaicas foram combinados em um notável sincre~ismocom idéias filosóficas estóicas c platônicas. Fílon, um judeu fiel, procurou demonstrar que a Lei - isto é, o Pencaceuco internalizava uma sabedoria que concordava com o que havia de melhor
110
ensino
da tradiqáo filosófica. Para fazer isto, ele utilizou o mécodo de interpreragáo alegórico bem conhecido dos cxegetas helenísticos de Homero, e por esse meio desvelou nas páginas de Moisés náo apenas uma dtica mas cambérn filosófica doutrina de Deus e da cria~áo.De acordo com Fílon, o cosmo é produto da boiidade que emana de Deus. Incompreensível em sua rranscendência, Deus está vinculado ao mundo pelos poderes divinos. Destes, o mais alto é o Logos, que flui do prbprio ser de Deus e é náo apenas o agente pelo qual Deus criou o mundo mas também a fonte de todos os
outros poderes e o modelo último das criaçócs espirituais e visíveis. A descriçáo do Logos por Fílon, port:into, conjuga elementos de muitas fontes: da especulacáo de Sabedoria judaica, das idéias platônicas sobre um domínio inteligível de Formas e da nocão escriturística de que Deus cria arra\r&sde sua Palavra (Logo$). Esse tipo de pensamento, que tem paralelos menos sofisticados nas idéias do Novo Testamento de Palavra de Deus e Sabedoria, provaria ser um modelo eficaz no desenvolvimento da teologia cristá posterior.
PERi000 I
O0 INICIOÀ CRISE 6NDSTlCll
Capítulo 3
Jesus e os Discípulos C3 caminho foi preparado para Jesus por um movimento apocalíptico-messiânico liderado por João Batista, que no pensamento dos primeiros cristãos era o precursor do Messias. De vida ascética, Joáo, na regiáo do Jordáo, pregava que o dia do juízo sobre Israel estava próximo e que o Messias estava prestes a vir. No espírito dos profetas de antigamente, elc proclamava a mensagem: "Arrependam-se, pratiquem a justiça." Ele batizava os discípulos no símbolo da lavagem de seus pecados, e ensinou-lhes uma oração especial. Jesus, é nos ensinado, classificou Joáo como o último, e entre os maiores dos profetas. Alguns dos discípulos de JoSo mais tarde se tornaram
seguidores de Jesus, mas seu movimento continuou a ter uma vida indspendente.'
Está faltando material para uma adequada biografia de Jesus. Os registros dos evangelhos sáo primordialmente testen~unhosdo evento divino de Jesus o Cristo, e seus detalhes rêm sido sem dúvida coloridos pelas diferentes experiências, situaçóes e memórias das primeiras comunidades cristás. Os eruditos estáo assim divididos quanto a exatidão de muitos incidentes registrados nos wangclhos. Náo obstante, a vida t: os ensinos de Jesus salientam-se nas páginas dos evangellios em seus contornos essei-ici315.
Jesus cresceu em Nazaré da Galiléia. Essa terra, embora desprezada pelos habitantes mais puramente judeus da Judéia porque scu povo era de constituiqão racial misturada, era fiel às rradi~óese religião judaicas, ci lar de uma
ousada,
orgulhosa, e particularmerite impregnada pela esperança messi~niça.Ali Jesiis cresceu e aniadureceu atravis de anos de experiências r-iáo registradas. Ele aparencen-iente foi tirado dcssa vida pela pregaçáo de Joáo Batista. Ele foi a Joáo, sendo batizado pelo profeta no rio Jordáo. Com seu batismo veio a coi~viccáode que ele i i a ~ ~sido i a escolhido pcir Dcus para cumprir um papel especial na proclamação do reino a ser crn
breve inaugurado pelo Filho do Homeni ceiestiai. Se Jesus reaimenre se viu como Messias tl. unia questão muito disputada. De quaIquer modo, ele parece ter rejeitado as concepçóes populares do ofício messiánico e ter anrccipado não o triunfo polirico
' Ck: Aros I C): 1-4
mas o sofrimento como seu próprio destino, mesmo enquanto acreditalido que em seu ministério o poder do reino vindouro já escava em açáo.
Após seu batismo - ou, como Maceus precisaria isso,' após a prisáo do Batista Jesus começou um ministirio itineranre de pregação e cura, cuja mensagem era a proximidade do reino de Deus e a conseqüente necessidade de arrependimento e fk. Ele reuniu u m grupo de associados (os Doze, simbolizando a totalidade das tribos de Israel) e atraiu um grupo maior de discípulos menos intimamente apegados. Seu ministério foi breve: durou quando muito três anos, e talvez não mais do que um. Ele despertou a oposição das autoridades religiosas, e sem dúvida de o u ~ r o stambém, porque suas acóes e ensinos fizeram com que ele parecesse um blasfemo crítico da Lei e sua intcrpretaçáo tradicional. Ele viajou para o norte, para Tiro e Sidom, e depois para a região da Cesaréia de Filipe, onde os evangelhos registram que seus discípulos reconheceram sua niissáo messiânica. Ele julgava, entreranto, que não importava o perigo e ele deveria testemunhar em Jerusalém. Para lá ele foi, diante de crescente hostilidade; e 12 foi preso e crucificado, certamente na administracáo do procurador Pôncio Piia~os(26-36 d.C.) e provavelmente no ano 29. Seus discipulos se espalharam para suas casas, mas rapidamenre se reuniram novamente em JerusaIém, na feliz convicçáo de que Deus o havia levantado dentre os mortos.
O reino de Deus, no ensino de Jesus, significava a afirmaçáo manifesta do amor e governo justo de Deus. Consequentemenrc, naqueles que discernein sua proximidade ele demanda reconhecimento prácico da soberania e paternidade de Deus. Isso acontece apenas através de uma reorientaçáo completa de valores e atitudes (arrependimento e fé), que se revela no amor a Deus e ao próximo e é coroada e fortalecida pelo perdáo divino. Viver tia perspectiva do reino vindouro é, como Jesus descreve isso, um negócio custoso e exigente. Ele requer uma vontade de abandonar todos os bens menores, transcender as exigências morais normais da Lei e praticar o perdão ilimitado para com os outros. O cumprimento de tal vida é utna comunháo interminável com Deus e seus santos. Para aqueies, por outro lado, que fracassam em discernir e compreender o reino que está alvorecendo no ministério de Jesus, há apenas destruiçáo. Muito dos ensinos de Jesus encontram paralelo no pensamento religioso de sua
I
dessa manifestaçáo penrecostal é talvez impossível de recuperar. Certamente a noçáo
I
de uma proclamação do evangelho em muitas língiias esrrangeiras é incompatível
!
ramento,%omo iambém o C com a impressão dada aos espectadores de que os que
com aquilo que conhecemos como "filar em línguaswde outras partes do Nova Xesfalavam escavam "cheios de virlho novo."- O ponto de maior significaçáo, entretanro, é que esses fenômenos surgiram como mnnifesta evidência do dom e poder de
Cristo. Eles demonsrraram a irlauguraçáo de urna nova era, que o ministério de Jesus havia prometido. Se o discípulo visivelmente reconhecesse sua submissáo pela fé, arrependimento c batismo, o Cristo exaltado, acreditava-se, por sua vez reconheceria 1
o discípulo concedendo-lhe o Espírito; e seu dom atestava a participaqão do discípu-
lo na era vindoura da "restauracão de todas as coisas", promerida lios oráculos de Daiis através dos profetas."
Capitulo 4
A Comunidade Cristá Inicial Na sua fase mais inicial, o movimen~ocristáo tinha seu centro em Jerusalém, onde ele recebeu a forma náo de uma nova retigiáo mas de uma seita ou agrupamento dentro do corpo progeliiror do judaísmo. Presumivelmei~tehavia, desde o inicio, seguidores de Jesus nas cidades e vilas da Judéia e da Galiiéia, mas sobre estes pouco é conhecido. De fato, nosso conhecimento da própria cornui-iidade de Jerusalém C limitado e obscuro, uma vez que os Atos das Apóstolos, nossa única fonte de inforritagáo, deve ser lido com caucela pelo historiador. Ele incorpora tradiçóes antigas e autênticas; mas ao mesmo tempo esri escriro no estilo "criativo" normal das histúrias helenísticas e manipula seu macerial da perspectiva da segunda geraçáo cristã, a qual
já tendia a ver os evenros de quatro ou c ~ n c odécadas anres de sua época conio sendo um tipo de idade dourada da igreja.
'' I Corintius
14:2-19.
Aios 2:I 3, i Atos 3 2 1 .
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PER1000 I
00 INlElO A CRISE GNISTICA
33
O que está claro é que as comunidades originais eram composras de judeus palestinos que, fundamentados na ressurreiçáo de Jesus, proclamavam seu retorno iminente como o realizador do reino de Deus, e que vivinm na antecipaçáo daquele evento. Eles chamavam a si mesmos, aparentemenre, "os pobres"' ou "os santos",' e também, desde bem cedo, "a ekklesia" - i.e., "assembléia" ou "igreja." O que todos esses estilos ou nomes signifkavam era bastante semelhante. A comunidade inicial percebeu-se, cm virtude de sua submissão a Jesus, como a verdadeira "assembléia" de Israel, a comunidade do fim dos tempos que o Senhor reconhecerá quando vier em glória. Que eles se viam simplesmente como judeus, como um Israel renovado, fica evidence pelo fato de que eles eram fiéis tanro no comparecimento ao templo cotrio na obediência a Lei; e sendo assim, eles viviam em paz com as autoridades religiosas em JcrusaIén-i. E desnecessário dizer, essa comunidade possuia suas próprias institui-
ções especiais, que expressavam sua identidade particular. Ela praticava o hatismo, com o qual o dom escatológico do Espíriro Santo estala associado. Ela se remia regularmente para oraçáo, exortaçáo mútua c o "partir do p50"," no qual os hisroriadores têm visto, sem dúvida corretamente, as origens da eucaristia como também uma refeição comuniriíria da comunidade. Ela expressava a f6 que definia sua identidade com expressões do tipo "Jesus é o Messias"' ou "Deus ressuscitou Jesus dentre os r n o r t o ~ . " ~
OS membros fundadores dessa comunidade foram com certeza os Onze (elevados, segundo o livro de Acos, para doze pela eleição de hlatias). Na época em que Atos foi escrito, estes homens estavam sendo chamados "apóscolos", um título que originalr-ilente era aplicado aos missionários itineranres como Paulo. Com exccgáo do caso de Pcdro, enrretarito, e talvez de Joáo, ria verdade nada é conhecido acerca das profissóes ou atividades dos Doze, que desaparecem quase imediacamenre da IOT-
:25
e
: rias
história e m Atos e assim se rornam temas adequados para lendas poscerioreb. Q ~ i a n do I'aulo visitou JerusalCm, a liderança parece que estaTra nas máos de dois ou três "pilares": Tiago o irmáo do Senhor, Pedro e Joáo."
: ual I
Gálaras 2.10.
'
Itomarios 15:25.
' Aros 2:46. ' C:f. Marcos 8:29. ' Kornaiios 10:9. "Cglatah
23,e cf. 1:18-19.
Os problemas para a comunidade de fiéis em Jerusalém começaram como resultado da incorporaçáo, em sua vida, de judeus da Diáspora de fala grega residentes em Jerusalkm. Houve, sabemos, uma reclamagáo t r z ~ i d apelos fiéis judeus de fala grega conrsa os cristãos locais de fala aramaica. De acordo com Atos 6, a única razão para isso era que os "helenistas" estavam magoados porque "suas viúvas eram negligenciadas na distribuicão diária."' Essa breve disputa foi resolvida através da indica~áode sete helenis~aspara adniinistrarem os recursos comuns da comunidade"
um fato
que sem díivida é responsável peia tradiçáo de que estes sete foram os primeiros
d'laconos. ' Havia contudo nessa situaçáo, aigo mais do que um mero problema administrativo. Isso fica evidente na continuaqáo da narrativa de Atos. Ali Esteváo, o aparente líder dos helenistas, é achado em deba~cpungente com membros de outras sinagogas de faia grega, que o acusavam de falar "palavras blasfemas contra Moisés e Deus."' Como consequêiicia dissa, Estevão é arrastado para diance do sinédrio e eventualmente condenado à morte por apedrejamento. Presumivelmente, então, faltava a Esteváo e seus companheiros de fala grega o respeito pelo templo e pela Lei que os cristãos palestinos habitualmente revelavam, e foram perseguidos não por causa de sua crença em Jesus como o Messias, mas porque fararam como se estivessem preparados, segundo os judeus pensavam, para lanqar fora certas exigências da Lci à luz de sua nova f6. Essa percepcáo da questáo é confirmada por dois outros relatos regiscrados em Atos. Primeiro, C relatado que a morte de Esteváo foi a cena de abertura de "uma grande perseguiçáo
. . . contra a igreja em Jerusaiem",'" contudo ao mesmo tempo 6
deixado evidente que "os apóstoios" não foram afetados por essa perseguição." Em outras palavras, a persegui550 foi seletiva e alcanqou apenas aqueles cristãos - os heleiiistas - que falavam "palavras contra este santo lugar e a Iei."12Acomunidade de fala aramaica foi deixada relativamenre em paz, como a continuaqáo da narrativa em Atos claramente pressupõe. Mas, em segundo lugar, com a dispersáo dos líderes
- Aros 6:l. "tos 63. .Atos 6:J 2. Atos 8 : 1.
" Ibid. '%[os
6:ii
a ~ ~ i u aI o
00 INICIO A CRISE GNÓSTICA
.? 5
heleiiistas que a perseg~liçáoproduziu revelou-se o início de uma nova fase n a vida e missáo da igreja. Pois "eles iam por toda parcc anunciando a palavra"," levando-a para Samária,'" e depois para a Fenícia, Chipre e Antioquia, onde, assim parece, surgiu a primeira ekklesia cristá que misturou gentios e judeus.lí O s helenistas, cntáo, primeiro levaram a mensagem do Cristo ressurreto para a Diáspora. Ainda mais, suas açóes confirmaram a impressão que haviam dado às autoridades de Jerusalém sobre sua aticude para com a Lei. Eles admitiram gentios "tementes a Deus" em sua comunidade, em uma violação à prática ortodoxa.
A comunidade de Jerusalém, entretanto, desfrutou relativa paz, obviamente mantendo sua fidelidade ao rremplo e à Lei e náo tendo, pelo menos por um período, nenhum cnvolvime~itocom a nova missáo ciu com os novos centros de vida cristá cm lugares coma Antioquia e Damasco. Essa paz foi breremenre quebrada sob o reinado de Herodes Agripa I (41-44 d.C.), a quem o imperador Cláudio havia restituído parte do reino de seu avô, Herodes o Grande. Querendo talvez construir uma reputaqáo de entusiasta pela ortodoxia, Agripa mandou executar Tiago ("o irmáo de Joáo") e atirar Pedro na prisáo.'Talvez tenha sido essa breve perseguicáo que provocou a saída de Pedro de Jerusalém e sua subseqüente atividade como um apóstolo missionário. De todo modo, a lideranca da comunidade de Jerusalém ficou com Tiago o irmáo do Senhor, que a exerceu, sugere Atas, juntamente com um corpo de anciáos até sua morte de mártir em cerca de 63."
Capítulo 5
Paulo e o Cristianismo Gentilico A perseguiçáo que resultou no martírio de Estêvzo iniciou o movimento que implantou o cristianismo nas cidades da Diáspora judaica. Mais do que isso, entre-
'' Atos 8:4. '"tos 8:5,2í. l 5 Atos 1 1 :13-20 “Atos 12: 1-3. 17Aros 2I:lS.
36
HISIÓRlA OA IGREJA C R I J T ~
tanto, ela produziu em Antioquia aquilo que foi de fato um segundo centro focal de vida cristá. Antioquia era uma cidade de primeira categoria, capital da província da Síria e antiga sede da monarquia selêucida, com uma p n d e populaGáo cosmopolita, iricluindo uma significativa comunidade judaica. Lrí, a mensagem sobre Jesus foi pregada aos gentios "tementes a Deus" e rais pessoas foram admitidas na assembléia criscá sein primeiro se tornarem prosélitos judeus. Uma conseqüência desse desenvolvimento foi que o povo em Antioquia começou a perceber os seguidores de Jesus como um corpo distinto náo apenas do paganismo mas também do judaísmo normativo, e conseqiienternente, foi ali que os membros da igreja primeiro receberam um r6tulo.
A populacão, sem dúvida meio desdenhosamente, chamou-os
"cris-
tãos" - iim termo pouco utilizado pela própria igreja aré cerca da metade do segundo século. Outra consequência de tal deseniolvimento foi, inevitavelmenre, suscitar a qucstáo sobre se as pessoas que não pudessem ser membros da sinagoga poderiam ser membros da ekklesia, o povo escatológico de Deus. Se o governo da Lei fosse iinposto sobre os genrios convertidos a Cristo, a igreja continuaria a ser um agrupamento denrro de Israel; se tais conversos estivessem livres da Lei, a igreja poderia comprecnder a si mesma como tendo uma rnissáo universal. Nesse debate precedente dentro do próprio judaísmo
-
-
que já possuía
o papel decisivo seria desempenhado pelo
apóstohi Paulo. Paulo, cujo nome hebreu, Saulo, lembrava o antigo herói de sua tribo nativa de Benjamim, nasceu na cidade cilícia de Tarso. Seu pai aparentemente era cidadáo romano, como também judeu na rradicáo farisaica. Na época da nascimento de Paulo, E r s o era um çencro cultural e inrelccrual de certa imporrância e um centro de ensino estóico. Náo há razão para acreditar, enrretanco, que Paulo, criado em uma família estritamente judaica, tenha recebido uma educaçáo no estilo grego. O idioma grego, podemos estar certos, foi sua língua normal desde a infância, e ele não poderia ter deixado, enquanto jovem, de ficar familiarizado com as generalidades populares do pensamento religioso e moral helenístico. Não obsrante, foi na cradiçáo rabínica que ele foi criado. Atos, de fato, faz Paulo afirmar haver sido ele "criado"
em Jerusalém "aos pés de Gamaliel",' um famoso mestre da Lei. Este pode ter sido o caso, embora isso pareça pressupor que sua família se mudou deTarso, e náo encontramos nenhuma confitmacáo disso em suas cartas, que dáo a impressáo de que
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00 l l l C 1 0 A CRISE GNÓSTICA
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Paulo teve muito pouco a ver com Jerusalém até após sua conversáo. Por outro lado, o relato em Atos é compatível com aquilo que conhecemos das colivicçóes e compromissos originais de Paulo. Ele era dedicado ao ideal farisaico de uma nação formada santa pela estrita observância da Lei de Deus, c ele insisce em que sua própria conduta, mensurada por aquele parâmecro, era irrepreensível. Foi sem dúvida esse ideal
quc motivou Paulo a perseguir a igrrja. Se ele esrew ou náo presente, como Atos afirma que esteve, no apedrejamento de Estêváo em Jerusalém, foi Estêvão o lielenista, quem falou contra a Lei e o tcmplo c quem representou a d i ~ t o r ~ áem o que consistia o cristianismo inicial que teria ofendido Paulo, "ráo exrrcmamente zeIoso"' que era pelas tradiçóes do judaísmo. Portanto, não é surpresa nenhuma o fato de náo ouvirmos nada de qualquer aqáo sua contra a comunidade cristá palesrina em Jerusalém. Contudo o encontramos viajando para Damasco, uma cidade da Diáspnra, para levar disciplina a ser aplicada contra os cristãos de lá (que devem, incidentalmente, ter tido alguma conexáo com a sinagoga). Seu a~iragonisrnoestava direcionado não contra os fiéis como cais, mas conrra aqueles cuja f i ia de mão em máo com uma tendência de torcer as exigências da Lei. Embora as datas da história de Paulo sejam um tanto ou quanto incertas, pode ser que a grande mudança em sua vida tenha ocorrido por volta do ano 35. Viajando para Damasco com urna tarefa di~ci~linadora, ele foi apanhado em um encontro com o Cristo ressurreto, que o chamou para uma inissáo especial. A narureza da expaikncia de Paulo somente pode ser conjcrurada; dos efeitos em sua vida, porém, rijo
pode haver dúvida alguma. Ele se uniu às rnesinas pessoas a quem havia procu-
rado restaurar ao judaísmo por meio de instrumentos disciplinares. Mais do que isso, ele descobriu no Senhor ressurreto de sua visáo o único em quem c pelo qual sua própria identidade era determinada. Ele pode dizer:
.".. e vivo não mais eu, mas
Cristo vive em ~ n i m . Mais " ~ importante de cudo, ele estava convencido de que náo a observância da Lei, mas a cornunháo com o Jesus crucificado e ressurreto era a çon-
diFáo necessária (e suficiente) da participação das pessoas na renovada criaçáo da promessa de Deus. No caso de Paulo, a conversáo mostrou-se imediaramente em ação. Ele relata ter
ido em primeiro lugar para a Arábia - i.e., o território de Nabatéia ao sul de Darnasc», com sua capital em Petra. Lá ele parece ter pregado seu evangelho em alguma medida, uma vez que as autoridades nabarbjas o perseguiram mesmo em Damasco." Três anos após sua conversão, eli fez uma visita de duas semanas a Jeri~salém,"pua visitar Cefas" (Pedra),' e lá ele enconrrou também Tiago, o irmáo do Senhor. Por quase uma década (da qual Aros náo nos diz nada) ele trabalhou na Siria e na Cilícia (província da qual Tarso, de onde era nativo, era a capital), s e m dúvida estabelccen-
da igrejas. Eveneudmcnte ele foi trazido para Antioquia por Barnabé,%rn crista0 judeu helenista cujo lar era em Chipre e que pode ter sido um daqueles espalhados de Jerusalém após o martírio de Escêváo. Naquele momenro, entretanto, a inevitável crise surgiu. Visitantes cristáos de Jerusalém vieram a h r i o q u i a . De acordo com a tradiçáo da igreja de Jerusalém, eles insistiram: "A menos que sejam circuncidados de acordo com o costume de Moisés, vocês náo podem ser salvos." O debate assim ocasionado levou Pa~rlo,Banlabé e * .
Tito, um converrida gentio não circuncidado, a Jerusalém para deliberar com os
líderes da igreja de lá, Paulo descreve a reunião em Gálatas 2:l-10, e um diferente relato do que parece ser a mesma reuniáo é fornecido em Atos 15. Ambos os relatos concordam no resultado geral da reuniáo. Os líderes da igreja de Jerusalém e os iíderes da tiova missão gçntíiica dcancaram um acordo prodigioso. A chamada de pessoas como Paulo e Barnabé foi reconhecida como Icgítirna, e foi admitido que o evangelho pertencia aos gentios canto quanro aos judeus. Assim, haveria duas correntes no empreendimento missionário da igreja; mas as novas congregacóes gentias e seus líderes deveriam "se lembrar dos pobres" - isto t, eles deveriam simbolizar sua cornunháo com a congregacão de Jer~isalémcontribuindo para com ela em suas necessidades mate ri ai^.^ O relato em Atos 15 registra que o concílio apostólico exigiu
que os crisráos gei~iílicns"se abstivessem das contamina~óesdos ídolos, da prostitui+o, do que é sufocado e do sanguev9- em outras palavras, ele emitiu um decreto governando as condições da mesa de comunhão encre cristãos judeus e gentios. Pau-
'
I Corínrios
' Giilaras
11:3L.
1 :lS.
"Aros 11:Lj. Atos 15:l r Gálatas 2:9-10. ' Atos 15:20.
i ~ ~ r o oi o
DO INICIB A CRISE GEIÓSTIGA
39
10, entretanto, indica que o problcrna de comunhao na mesa surgiu somente após a conferência a p ~ s t ó l i c a .e' ~ein nenhum caso suas cartas revelam cor-ihecimencode tal decreto. Bastante possivelnlente, o autor de Atos está atribuindo ao conselho um acordo que se liavia tornado tradicional em seu prbprio cempo.
E com roda probabilidade nesse ponro - depois e náo ar-ires da conferência aposcólica - que Paulo e Barnabé, respondendo à orieiitaqáo do Espírito, saíram cm uma viagem que os levou para Cliipre e depois para Perge, Antioquia da Pisídia, Icônio, Listra e Derbe. Esta é a assim chamada "primeira viagem missionásia" descrita em Atos 13 e 14. Quando íie seu retorno dessa viagem, surgiu sm h t i o q i i i a o debate entre Pedro e Paulo sobre a questáo de comer com os cristáos gentios." Essa discordância, desnecessário dizer, náo se referia à questáo basilar de se os gentios poderiam ou náo pertencer ao povo de Deus sem se submeterem à circuncisáo e as outras prescriçcles rituais da Lei. Aquela questao j2 havia sido resolvida. Paulo, entretanto, náo estava disposto a coriceder, mesmo na quesiáo subsidiária da mesa de comuilháo, unia vez que para ele o que estava em jogo era o princípio de que "o homem náo é juslificado por obras da lei, mas pela fé em Cristo Jesus."" Nesse debate, Barnabé, amigo e companheiro de Paulo, ficou do lado de Pedro. O resultado foi que quando Paulo novamente partiu em suas viagens rnissionárias, ele "cscolheu Silas" como seu companheiro, enquanto "Barnabé tornou Marcos consigo e velejou para Chipre."" Então vieram os curtos anos do grande esforço missionário de Paulo "para conquistar a obediêricia dos gentios"'%através da implanta~áodo evangelho em cada regiáo do mundo civilizado, mesmo as mais distantes, como as extremidades ocidei-itais do império romano.lí Sua viagem começou com visitas de retorno &scomunidades que ele já havia estabelecido no sul da Ásia Menor. Ele ficou retido por um período na GaIácia devido a uma doença,16 utilizando a ocasiáo para estabelecer no-vas igrejas ali. Com seus companheiros, entretanto, ele foi orientado a deixar a
Gdaras 2:1 1-13. Gáiataç 2:)1-12, 12 =a'1. tas 2 : 16. Aros 15:39-40. '^ Ronianos 15:18. " Ronianos 15:24. " Gilaras 4:13. lu
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40
HISTÓRIA DA IPREJA CRISIÃ
Ásia Menor. De Trôade ele atravessou para a Macedania, e seguiu seu caminho pela ..
- -
magnifica Via Egnatia, que levava para o 0est.c em d i r e ~ á oao mar Adriático e à Itália. Tendo estabelecido comunidades em Filipos e ern Tessalônica (a sede do procônsul romano da Macedônia), Paulo foi desviado de sua rota quando problemas em Tcssalônica o foscaram a partir "durante a noite" e virar levemente em direçáo ao sul para a GrGcia central. A persegui+
o seguiu, entretanto, e ele continuou para o sul
ate o porto marítimo de C o ~ i n r opor via de Atenas. Em C:orinto ele passou dezoito meses pregando e ensinando na casa de Tito Justo, um gentio temente a Deus. De 12, Paulo viajou com dois novos amigos e colegas, os judeus romanos Áquila e Prisciia, para Efeso, riias cle logo os deixou ali para retorilar à Palestina e Antioquia, reaparecendo eiri Efeso depois de outra visita as suas igrejas na Frígia e Galácia. Quando de seu retorno a Éfeso, ele corneqou irm ministério ali de alguns anos dc duraçáo (53?-
56?)'-- um ministério que produziu sua correspondência com os coríiitios e também, com toda probabilidade, suas carras aos Gálaras, aos Filipetises e a Filemom.
A partida de Pauh de Éfeso levou-o dc rolta a Corinco para uma estada de três meses; ali ele escreveu sua carta aos ltomanos, na qual conhecemos os dois projetos que agora goxrcrnavamsuas aqóes. Um deles era levar para a igreja em Jerusalém, como um gesto remediador de agradecimento e solidariedade, a oferta que ele havia colerado de suas novas congregacóes gentias. Ele estava determinado a fazer isso ele mesmo, ainda que estivesse incerto quanto a sua recepqáo pelos judeus c cristáos judeus na Palestina. O segundo projeco era realizar seu plano original de levar o evangelho ks partes ocidentais do império, de forma a saldar sua "dívida, tanto a gregos corrio a bárbaros."'Como acabou acontecendo, foi sua viagem a Jerusalém, oiide no final ele foi aprisionado pelo governo roinano, que em últi~na instância o Icvou a Roma, mas somente apús dois anos de encarceratnento em Cesal-éia c apenas como um homem indiciado. Pouco C sabido sobre os últimos dias de Paulo. Alguns estudiosos cêm argumentado que ele foi solto de sua prisão e realizou outras viagens, mas o peso da evidência é contrário a esta hipótese. A probabilidade C que Paulo cenhn sido executado em Roma algum tempo antes de
64 d.C.
As cartas de Paulo, que circularam e sem dúvida gradualmente foram colecionadas nas igrejas que rle esrabeleceu,
' l5
A r o s 19:s-10. Romanos 1:14.
ao o corpo de literatura cristá mais antigo. A exren-
PEAIOBO 1
DO IRICIOk CRISE GAOSTICA
41
sáo e o grau de autoridade que elas alcançaram estáo refletidos no fato de que gerações posteriores citaram-nas simplesmente como contendo as palavras do "Apóstolo." Junto aos evangelhos, elas têm exercido, em cada geracáo, uma influência mais profunda na piedade e pensamento cristáo do que qualquer outro grupo de escritos.
A razáo para essa influência não está na clareza ou caráter sistemático do pensamento
de Paulo. No sentido moderno, Paulo não foi um teólogo "sistemático", e seus escritos (até mesmo a cuidadosamente planejada e argumentada carra aos Romanos) sáo de natureza pessoal e ocasional. A influência deles está baseada mais propriamente no caráter rico e sugestivo do pensamento de Paulo e ocasionalmente em seu aspecto inacabado c mesmo ambíguo. Não há ambigüidade, entretanto, quanto ao fundamento de seu ensino e prega@o. Ele está naquilo que o próprio autor chama simplesmente de "o evangelho" ou "meu evangelho" (pois isso lhe foi dado por r e v e l a ç ã ~ , ainda '~ que seu conreúdo também fosse um assunto da tradição"). Isso era a boa nova de que em lesus, Deus havia agido ao providenciar salvaçáo para todos os que cressem - uma salvaGáocuja realizacão completa está no futuro mas cujo início pode ser experimentado mesmo no presenre. Esta salvação tinha suas raízes na morce e ressurrciçáo de Jesus - dois evcntos que no pensamento de Paulo se salienta~ramcomo objeto de transcendente significacáo. "Cristo morreu por nossos pecados"", de acordo com as profecias das Escrituras hebraicas; ele "se deu a si mesmo pelos nossos pecados para nos livrar do presente sécrdo mau."" Mais do que isso, "Cristo foi ressurreto dentre os mortos glória do Pai" de forma que, exatamente como ele, os fiéis "possam andar em novidade de vida."" Os cristáos, porranto, unidos com Cristo pela fé e se rejuhilando no dom do Espírito de Deus, aguardam pelo momento em que o Senhor retomará e a obra da salvaçáo será finalizada, quando "nós traremos também a imagem do celestial. No cernc da compreensáo de Paulo deste evangelho está sua convicç5o de que os fiéis esrão de fato unidos a Cristo no Espírito. Os eventos da morre do Senhor para
" Gálaras 1: 12. 2" ?'
Corinrios 1 5 3 .
Ibid.
" Gálatas 1 4 . Romanos "
64.
1 Corintir)~15:49.
HISTÓRIR DA IGREJA GRISTA
42
o pecado e de sua re~su~reiçáo para a nova vida náo sáo simplesmente acontecimentos "objetivos" que têm efeitos no estado de coisas cdsmico. Eles sáo eventos que acontecem no e para o fiel. "Nós fomos portanto sepultados com ele pelo batismo na morte ;-' nosso homem velho foi crucificado com ele . . . a fim de não mais servir1,
iL<
mos ao pecado."'Tonsequentemente, ele diz a seus correspondentes, "cremos que rambém com ele viveremos."" "Vocês devem se considerar mortos para o pecado mas vivos para Deus em Cristo Jesus."'%ssa
idéia de unidade ou identificacão com
Cristo funciona, para PauIo, em duas direções. Por um lado, ela se expressa em sua descricáo da igreja ("os santos") como o corpo de Cristo, animado e feito um pelo Espírito de Deus que vem do Senhor ressurreto. Por outro lado, ela é a fonte de sua comprcensáo do imperativo btico que está coiocado sobre os criscáas. Eles foram, Pau10 insiste, "1ai.ados .
. . santificados . . . justificados no nome do Senhor Jesus
Cristo e no Espírito de nosso Deus."" Por conseqtiincia estáo "unidos ao Senhor"," e esre é um estado de coisas inteiramente em desacordo com umavida imoral. Sendo "o corpo de Cristo e individualmente membros dele", os fiéis devem cultivar as gra-
tas sobre eles despejadas pelo Espírito e, acima de tudo, fazer do maior dom de todos, o amor, seu obietivo.?' Essa convicçáo, entretanto, de que Jesus o Cristo é aquele em quem a salvacão de Deus ~ o d ser e enconrrada inevitavelmente ocasionou um problema para Paulo: o problema do que dizer sobre a Lei judaica, a base do "antigo" pacto. Esta questão foi levantada para ele por uma circunstância concreta - a saber, a afirmaçáo de alguns cristãos de que mesmo os crentes gentios têm que manter a Lei para terem parte no pacto da graça de Deus. Para Paulo isso era embara~osoe, ao final, uma exigência intolerável. Como ele percebia isso em seu papel como alguém a quem Cristo havia
incumbido com uma missão para não judeus, o Cristo crucificado e ressurreco personificava a nova vida para "rodo o que crê"," seja judeu ou grego. Exigir mais do
" Romanos
0:4.
'"ornanos 6:G. Romanos 6:8. Romanos 6: 1 1. "' 1 Corinrios ú:1 I . I Corínrios 6: 17. '' 1 Coríntios 1227-14:l. "'Kornanris 1:16.
'-
''
etilooo I
00 INICIO A CRISE GNÓSTIEA
43
que uniáo com Cristo pela fé era, portanro, questionar a suficiência daquilo que Deus havia feito para a humanidade. Isso era, lia realidade, decair da confianca no alo gracioso de Deus em Cristo. "Separados estão de Crisro, vocês que se justificain pela lei; da graca de~airam."'~Conseqüentemente, Paulo insistia rin que "o homem náo é justificado pelas obras da lei mas pela fé em Jesus Cristo";'" e para provar esse ponto ele apelou para o exemplo de Abraáo, o pai d o povo de Deus, quem "creu a Deus, e isso lhe foi imputado como j ~ s r i q a . " ~Desde ' o início, a intençáo de Deus havia sido trazer redeni-áo para todos através de Cristo como um "dotn Sratuito"'" que necessitava apenas dc aceitação pela fé. Portanto "Deus encerrou a todos debaixo
da desobediência, a fim de usar de misericórdia para com todo^."^ Nada senáo a graqa de Deus em Cristo vale ou importa, n o fim das coriras. Isto náo significa que para Paulo a Lei é m i . No que se refere ao seu ensino, "a lei é espiritual."" Paulo nunca sugere que o que a Lei inculca está errado ou em colisáo com a vonrade de Deus. Isso significa, enrreranro, que a Lei é preIiminar, "Alei foi nosso aio até que Cristo veio."" Ela é ao mesmo tempo a reaçáo dc Deus ao pecado e a revelacáo d a realidade e poder do pecado.'O Náo obstante, a salvação C "a parte d a lei"," "pois se a justificiicáo fosse pela Iei, entáo Cristo teria morrido em vZo."+' E assim estamos de volra à convicção essencial de Paulo: como com Abraáo, fé "será imputada a ntjs os que cremos naquele que dos mortos rcssuscitou a Jesus nosso Senhor; o qual foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitado para a nossa j u s t i f i ~ a ~ á o . " ~ ~
'' Gálatas 5:4. '"C;álatas 2: 16. Gálatas 3:G; Romanos 4:3; c cf. Gêncsis 1 5 6 Romanos 6 2 3 . j7Rornarios 11:32; cf. Cálatas 5 4 . l"ornanos 7:14. '"Gálaras 3 ~ 2 4 . '" Gálaras 3:I3; Romanos 7:7. " Roinanos 3:21. "'Gálatas 2:2 1. '' Romanos 4:24-25. '5
"
4'4
HISIIRII OII IGREJA GRIST~
Capitulo 6
O Fim do Periodo Apostólico A proeminência das cartas de Paulo no Novo Testamento e a dedicação do autor de Atos à carreira missionária de Paulo deixam o leitor mediano do Novo Testamento com a impressão de que cristianismo primitivo e cristianismo paulino foram virtualmente de igual exrensáo. Na realidade este náo é o caso. O próprio Paulo fala de igrejas esrabelecidas por outros missionários.' A igreja de Roma estava estabelecida antes de Paulo escrever sua famosa carta de introdução para ela. A assim chamada Primeira Epístola de Pedro se dirige (entre outros) a criscáos no Ponto, lia Capadócia e na Bitínia - províncias às quais a missâo paulina não se estendeu. Os evangelhos de Mateus e de Joáo tesrificam a existência na Síria, e possivelmente na Ásia Menor, de comunidades e rradifóes cristás cujas raízes foram plant.adas bastante independenremente do trabalho de Paulo. As igrejas originais de Jerusalém, da Judéia e da Galiiéia náo deviam nada a missáo paulina. Devemos portanto assumir que o cristianismo primitivo era, canto em seu pensamento como em sua organizaçáo, mais diverso do que uma leitura superficial do Novo Testamento poderia sugerir. Do ponto de vista do historiador, portanto, é uma infelicidade que, para o período apbs as mortes de Paulo e Pedro, os dados para reconstrução do desenvolvimento da igreja sáo esparsos, e difíceis de interpretar com confianp. E possível, entretanto, identificar com razoável cerceza os escritos cristáos que pertencem a este último
terço do primeiro séc~ilo,ainda que nem sempre seja fácil datá-los ou siruar seus locais de origem com qualquer precisão. Ao mesmo tempo, existem referências nos escritos não cristáos que iluminam a história da igreja nesse período. Montando esses vários tipos de evidência, podemos alcançar algumas coi~clusóesbastante gerais sobre a vida da comunidade cristá no último terço do primeiro sécuio. Assim, aprendemos com o historiador romano Tácito que em 64 d.C. um incêndio "mais sério e terrível"' do que qualquer outro que já houvera afligido a cidade de Roma queimou violentamente por mais de uma semana e devastou dez dos catorze
' Konianos 1í:ZO. Atrais 15:35.
PERIOPO I
0 0 INiCIO A CRISL GNOSTICA
45
distritos da cidade. Apesar dos esforqos do imperador Nero para oferecer socorro e seu gasto de dinheiro pessoal na reconstruçáo, muitos suspeitaram de que ele havia começado o incêndio de forma a ter a oportunidade de reconstruir Roma em um estilo mais esplêndido. A resposta de Nero para esse rumor foi encontrar bodes expiacórios: "aqueles a quem a populaçáo chamava cristáos, que eram detestados por causa de sua obras vergonhosas." Os cristáos foram aprisionados e juigados, nem tanto por causa do incêndio, cstarnos informados, mas por causa do "ódio à raqa humana"; e eles foram condenados à inorte e executados por mérodos calculados para fornecer diversão sensacionaiista para o púbIico.' Aparentemente, portanto, ao cernpo de Nero os cristáos eram reconhecidos em Roma como um grupo distinto, independente da comunidade judaica, c eram impopulares porque náo se misruravam com os outros mas se mantinham para si mesmos. As autoridades (e a população, no que diz respeito ao assunto) podem cê-10s considerado como uma sociedade secreta ilícira perigosa para a ordem pública. Esse ataque local à igreja de Rorna, conquanto agourento sobre o que viria, teve pouco efeito real sobre o movimento ctistiio, em Roma ou onde quer que seja. De importância muito maior para o futuro da igreja foi a rebeliáo judaica de 66-70 d.C., a qual, embora náo tenha envolvido os judeus da Diáspora, devastou a Judéia e a Galiléia e resultou na queima do templo e na quase desrruiçáo de Jerusalém. Ao
tempo em que essa rebeliáo conlqou, os cristáos de Jerusalém haviam perdido seu primeiro líder, Tiago o irmão do Senhor, que havia sido condenado 5 morte c cxecutado pelas autoridades judaicas. O úriico relaco que temos da sorte da igreja nessa catástrofe vem de EusCbio de Cesaréia, que em seu escrito do quarto sicri10 intitulado
História Ei~lesiústica narra que um oráculo levou os fiéis a migrarem de Jerusalim para a cidade de Pella na Transjordânia antes de começar a luta séria.' Quer aceitemos ou náo este relato, parece provável por uma evidência indireta que os crisráos na Palestina assumiram um posicionamen~oneutro durante a guerra judaica, e que este fato exacerbou o conflito entre sinagoga e igreja e fez com que ficasse cada vez menos possível para os fiéis viver como judeus praticantes e membros da sinagoga. Pela última década do primeiro século, os rabinos que reorganizaram e revigoraram o judaísmo depois da destruiçáo do rernplo haviam inserido nas orações da sinagoga
Anais 15:44. "zs~ória EcIe~zhtica3.5.3.
46
HISTORIA OA IGREJA CRISTÃ
um ailátema que rornwa impossível para um "Nazareno" a participa+o oficiai na
Iiturgia. Esta grande crise na hisrdria do judaísrilo, pois, tevc coIiio uma de suas consequ~nciasa separação da igreja de seu corpo geliiror, mesmo para cristáus de prática e parenrela judaica. Isso significou, portanto, que os cristáos que continua-
vam, como muiros na I'alcstina aparentemenre fizeram, a guardar a Lei c celebrar as frsras judaicas tornaram-se cada vez mais um grupo marginal e anacronico, em disparidade ranco com o judaísmo como com as crescentes igrejas gentias.
O último cerco do primeiro século represenra portanto um período de crise náo apenas para o iudaísrno mas também para o novo movimento cristjo. Os gaildes líderes dos primeiros anos (Paulo, Pedro e Tiago) estavam mortos. Ademais, a igreja estava comeqando a ser notada, inesmo que local e ocasionaimenre, pelas aurorida-
des; e apesar de sua coi-rcínua dependência da liceratur-a, cradiqáo e pensanlento judaico, ela agora se salientava ainda mais claramente da siiiagoga. Não é surpreenderite, além disso, que esse período de problemas e de rransic5o tenha trazido a luz diferenps e debates sérins denrro das próprias comunidades cristãs. Surgiram questões sobre o significado e as implicaiióes práticas de sua mensagem referentes ao Cristo ressurreto. E ~orn~resnsível, porranto, que essa era tenha produzido uma enxurrada significati~ade literatura crisrk e que essa literatura quase uniformemente reflira as necessidades das igrejas em esrabiiirar sua vida e testemunho - definir sua tradiSio e assim estabelecer sua identidade independente. Do ponto de ~+ista do fururo crisi-ão,as contribuiçóes mais significativas para essa literarura sáo os quarro evangelhos, cada um dos quais, em sua maneira distintiva, representa uma tentativa de ajunrar em uma obra única tanto a mensagem apostólica sobre a morte e ressurreição de Jesus como as tradiqóes sobre seu ensino c rninisrério. Cada um deles efetua essa tarefa a partir da opinião tanto de uma comunidade cristá particular ou de Lim grupo de comunidades, como de sei1 próprio editor ou autor, o qual monta a estória de uma maneira que reflete simultaneametite a vida daquela comunidade e sua própria cornpreensáo do sentido do evangelho. Há, náo obsrante, relaqócs tradicionais e literárias entre os quatro evangelhos. Ií. consenso dos estudiosos - questionado por alguns - que Mateus e Lucas simul~aneamenteseguem, revisam e suplemenram Marcos, que assim parece ter sido o representanre da forma original do evangelho, datando-o do período 65-75 d.C. O evangelho de João, uma obra distinta em mais de um sentido, quase certamente náo possui nenhuma relaçáo
PLRIOUD I
DO INICIO h ERISE ENOSTICh
47
literária coni os outros três; não pode haver dúvidas, no entanto, de que ele manuseia e interpreta de sua própria maneira, muitas das mesmas tradiçóes
-
como faz, pelo
menos em parte, o posterior, semignóstico EvaizgeIha de Tomé, o qual representa lima vcrs5o diferente das tradições referentes as declaracóes e ensino de Jesus. O objetivo destas obras foi articular e definir a base e a substância da mensagem cristá por meio do relato da estória de Jesus, conforme os mestres e
cristãos a haviam
tradicionalmenre conduzido; e elas J e faro parecem ter incorporado todas as reincmoraçóes do ministério e ensino de Jesus existentes nas últimas décadas do primeiro século. Entretanto, náo é apenas nos evangelhos que
discernir os esforcos dos
cristáos do final do primeiro século para ordenar suas vidas e definir sua mensagem. Uma variedade de escritos - muitos dos quais reivindicam aucoria apostólica c podem muito bem representar o pensamento de discípulos ou "escolas", na tradicão de um dos líderes originais da igreja - tracarn dos problemas do movimento cristáo e da interpreta~áode sua vida e mensagem. Nesta categoria, por exemplo, estão as cartas atribuidas a Pedro e Tiago, como também alguns escritos paulinos, como as epístolas pastorais e a Carta aos Efésios. O livro dos Atos dos Apóstolos, uma peça que acoinpanha o evangelho de Lucas, pertence a um lugar especial, pois riáo apenas possui sua própria perspectiva teológica como também oferece uma interpretagáo da história inicial do cristianismo calculada para enfatizar a coerência e concordância básica das diversas tradiçóes. Todos estes escritos respondem a necessidades na vida das igrejas, e todos igualmente testificam um progressivo senso de necessidade de uma tradiçáo "apostólica" estabelecida, autoritária, para fornecer u m a base à autocompreensáo das igrejas. O movimento cristáo escava começando a perceber que vivia através da mensagem sobre Jesus, conforme estava baseada em sua própria vida e ensino e proclamada pelo testemunho dos líderes e fundadores das primeiras comunidades.
A Interpretação de Jesus Quesráo de importância crucial para as igrejas do final do primeiro século foi entender Jesus ein e através dos eventos de seu ministério, morte e ressurreicáo. Qual era o significado de sua pessoa e atividades? E quase desnecessário dizer que a reflexão sobre essa questão crisrológica, começou com o mesmo dado que originalmenre inspirou a pregacáo e a fé da comunidade primitiva: a experiência de Jesus ressuscitado. Para os primeiros seguidores do "caminho", essa experiência, acompanhada que foi pelo dom do Espírito Santo,' significou que por Jesus e nele a "vida eterna",' a vida do governo instaurado por Deus, já havia iniciado. O Ressurreto era as "prirnícias" da nos7acriaqáo de Deus? - da re-formaçáo do cosmo. Como tal, ele era também o porrador do reino de Deus, aquele em e através do qual o reino vem e é feito acessível. Era nacural, porranro, que na primeira instância a significância de Jesus tivesse sido expressa em categorias messiânicas. Sua ressurreicáo havia demonstrado que ele era aquele que Deus enviaria para cumprir todas as coisas." Assim Paulo, utilizando aquilo que sem dúvida era uma fórmula tradicional, diz aos cristáos romanos que a boa nova se refere ao Filho de Deus, "que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o espírito de santidade, pela ressurreiçáo dentre os mortos";' e em outra carta o mesmo apóstolo explica que a cbarnada dos cristáos é "esperar dos céus a seu [de Deus] Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira v i n d ~ u r a . "Nestes ~ resumos brísicos de sua proclamaçáo, a atenção de Paulo, como aquela dos discursos atribuídos a Pedro em Atos, está cenrrada na ressurreicáo e no esihdton - o dia final do Senhor; a significância de Jesus é vista no fato de que, como a pessoa para quem
;iros 2:3?; J o ã 20:22. ~
' Cf. Aros 1348.
' 1 Corititios 15323. 'Aros 320-21: 10:42. iRomanos 1 :3-4. C' 1 Tcssaionicenae!, 1: 10.
PERIOUOI
00 INICIO
b CRISE 6N6STIEh
49
a ressurreição para a vida verdadeira já aconteceu, ele será o representante designado de Deus - "Cristo" e "Filho" de Deus - no úItimo dia. Como tal, Jesus é o da salvaçáo.
Tal cristologia messiânica também está por trás do uso primitivo dos títulos "Filho do Homem" e "Senhor." Quanto ao primeiro desses títulos, houve e há uma grande controvérsia entre os eruditos sobre a sua origem, his~briae sentido. Pode
haver pouca dúvida, entretanto, que nos evangelhos sinóticos como nbs agora os possuímos, "Filho do Homem" como um título aplicado a Jesus, quer em primeira instância descrever seu papel escatológico como o representante dos "santos do Altíssimo",- que virá "com as nuvens do céu."' Nos evangelhos esse [ítulo também foi, obviamente, associado com sua ressurrei~áoe, de fato, com seu papel como aquele que sofre. Semelhantemente, o estilo "Senhor" parece, em seu uso original, ter denotado Jesus como o Vindouro,' que em virtude de s u a ressurreiçáol" já é mesmo agora o representante exalcado do poder de Deus.
A ressurreiçáo de Jesus, porém, significou mais para os primeiros crisráos do que poderia ser conduzido por declarações sobre sua funcáo messiânica como o personificador e portador do reino vindouro de Deus. O futuro que ele representava como aquele a quem Deus ressuscitara para a nova vida não era, afinal, apenas seu. Era o futuro de todos os fiéis e, de faro, o descino para o qual Deus havia chamado todas as suas criaturas humanas. Mais do que isso: a nova vida realizada no Cristo ressurreto era um dom no qual os fiéis poderiam mesmo agora, através do dom do Espírito, possuir uma parcela prelirninar. Portanto, o Cristo surge no primitivo pensamento cristáo náo apenas como o portador do reino, mas também como aquele em quem os fiéis descobrem sua própria verdadeira identidade, porque eles compartilham a vida dele e encontram suas próprias vidas transformadas nele. Nesse estilo, as epístolas joaninas restificam o senrimento dos cristãos em conformar-se "no Filho"," de estar "nele, que é verdadeiro, em seu Filho Jesus Cristo."" Semelhantemente, o autor de Hebreus insiste em que o "filho do homern" agora "coroado com glória e
' Dailiel 7:18, 22. C(. Marços 14:62. 1 Corintios 16:22; cf. Apocalipsç 22:20. l u Aros 2 ~ 3 6 . " 1 João 2:24. !'Ibid.
ío
HISTORIA DA IGREJA EAISTÃ
honra"'"
náo obstante, da mesma "origem" que aqueles a quem santifica e "náo se
envergonha de chamá-los irrnão~."~%stsresentimento de unidade no Cristo e de participacáo em sua vida náo está em nenhum lugar, entretanto, mais claramente expresso do que nas cartas paulinas. Nelas se diz que os fiéis estáo "em Cristo" - estão batizados "em Cristo Jesus", de forma que no compartilhar de sua morte para o pecado eles também possam vir 3 parrilhar sua ressurreit$io." Paulo pode dizer que não é mais ele quem vive, mas Cristo é quem vive nele,'" e da mesma maneira ele entende que a "vida" dos fiéis "está escondida com Cristo em Deus."': Conseqüentemente, os seguidores de Cristo sáo, coletitqmente, "um corpo em C r i ~ t o " ,e' ~podem aré nzesrno ser chamados sim~lesrnente"Cristo."" Esse mesmo tema toma forma na idéia de Paulo que Cristo é o '(último Adáo",'" o "segundo homem" que i "do céu" e cuja imagem os fiéis devem carregar." Nesse papel, o Cristo é contrastado com o primeiro Adáo, que representa e resume a humanidade como ela está enredada no estado de morte que o
traz. Jesus por sua parte é a pessoa através de quem o
poder do pecado 6 conqiriscado e a "grayd" reina "para a vida etcrna." O Cristo porranto personifica a nova humanidade, c os fiéis entram nessa sua identidade através da f i pela qual eles estáo unidos a ele como seus membros. Claramente, contudo, este retraro de Jesus como o Messias, Filho de Deus e Senhor, por um lado, e, por outro, como o Segundo Adão em quem a identidade da humanidade é concretizada, cetn sentido somente na hipótese em que a totalidade da carreira de Jesus é a obra de Deus, uma aqáo e uma declaração através das quais e nas quais Deus realiza seus propósitos para a humanidade. Porranro, nós encontrainos, cornecando com Paulo, uma tendência para interpretar náo meramente a ressurreiçáo mas também o ministério e a morte de Jesus como eventos que fluem da iniciativa de Deus. Pedro, em Aros, está escrito, declara que foi 'pelo determinado conse-
Iho e presciência de Deus" que Jesus foi executad~.~' Esca declaraçáo, enrretanco,
''Hcbreus 2:(;-8; cf. Salma 8:4-6.
"' Hebrcus 2: 1 1 .
li Romaiios 6:3ss. '"Gálatas 2:20 Colossenses 3:3. '' Romanos 12:5. I'' 1 Corínrios 12:12.
''
O'
i Corínrios 15:47.
" 1 Coríntios 15:49. Atos 2:23.
ptnioao I
00 INlE10 A CRISE GNÓSTIEA
51
meramente repete a convicçáo de Paulo de que Deus "enviou" seu Filho" e o "propôs como propiciaçáo."'"É,
portanto, náo apenas em sua ressurreicáo e seu retorno para
restaurar todas as coisas que Jesus é o Cristo. E rambém na roralidade de seu ministério e em sua morte que ele é o
da atividade redentora de Deus. "Eu
entreguei a vocês", escreve Pauio, "o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras."" Náo é surpresa, entáo, que quando retornamos aos evangelhos, encontramos que o papel e significado que eram inicialmente arribuídos a Jesus à luz de sua ressurrei~ á sáo o agora vistos como tendo pertencido a ele rarnbérn em sua vida e ministério. Em Marcos, o status de Jesus como Filho de Deus já se mostra q~iandode seu batismo nas máos de Joáo - ou seja, logo no início de sua carreira pública. Lucas e h/Iateus, no entanto, levam essa lógica um passo adiante. Seus relatos do nascimento de Jesus deixam cIaro que sua própria presenqa na história humana tem que ser entendida como uma açáo de Deus. Mesmo sua concepcáo no útero de Maria foi obra do Espíriro de Deus, anunciada por uin anjo de acordo com uma profecia de Isaías. No decurso dc scu ministirio, ele é reconhecido por demônios como Filho de Deus, e a eles se apresenta como o "Filho do Homem", que G chamado a cumprir em sua morte o papel do Servo Sofredor, de Isaías. Na tentaqáo, que segue seu batismo, ele é visto no papel do novo Adáo, "tentado", como o ser humano original, "por Satanás" e vivendo "com as bestas selvagens",'" mas triunfando onde seu primitivo sósia havia sucumbido. Portanto, os papéis messiânico e adâmico de Jesus sáo seus desde o início de sua estória. Através de toda sua carreira, entáo, Jesus é a própria personificacáo dos propósitos de Deus, e aquele em quem eles sáo realizados. Esta convicçáo - de que aquilo que Deus é para a humanidade e o que a humanidade é para Deus sáo ambos concebidos e concretizados em Jesus - deu surgimento a outra, e especialmente importante, tendência na cristologia primitiva.
As origens dessa tendência podem também ser encontradas em Paulo. Em sua correspondência aos coríntios, o apóstolo descobre que tem que lidar com um grupo de fiéis que reivindicam possuir uma compreensáo superior do misrério da forma de
" iálacas 4:4.
"- Romanos 3:25.
'' 1 Coríntios 15:3.
'"iarcos
1: 13.
Deus lidar com sua criacáo. Eles têm, ou afirmam rer, uma percepção especial naquela sabedoria transcendente de Deus, que é colocada em prática ria salvaçáo da humanidade. Esses convertidos, correspondencemenre, acham que a pregayáo de Paulo de uin ser humano crucificado é 'ttolice", e o cricicam por não oferecer a suas igrejas uin ensino mais profundo. Em resposta, Paulo diz que "o poder de Deus e a sabedoria de Deus"'- devem ser enconrrados náo em qualquer conhecimento ou realização
humana, mas apenas em "Cristo crucifi~ado."'~ Cristo 6 aquele a quem Deus fez náo apenas "justiça e santificaçáo e redenção" para suas criaturas, mas também "sabedoria. ""1 Em ourras palavras, o Jesus que foi crucificado e ressurreto dentre os mortos personifica e expressa a Sabedoria divina que é ao mesmo tempo mente e propósito de Deus na criação e o "poder" pelo qual Ele realiza seu propó~ito.~" Paulo faz essas afirrna~óes,obviamente, em um conrexto polêmico. Ele identifica Jesus o crucificado como Sabedoria de Deus apenas para poder impedir seus convertidos de buscarem aquela Sabedoria em algum outro lugar. Não obstante, ele assume sua idéia bascanre seriamente a partir do momelito em que a formula. Ela de fato é repetida crn 1 Coríntios 8:6, onde Paulo fala de "um SG Deus, o Pai, de quem sáo todas as
coisas e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual existçm todas as coisas, e por ele nós também." Aqui, a linguagem tradicionalmente utilizada da Sabedoria divina é explicitamente aplicada ao Senhor ressiirreco, e é deixado daro que Jesus é o foco, não apenas para a igreja mas para a tocalidade do cosmo, do poder
e propósito ativo de Deus. Esse tema, contudo, náo 6 ecoado apenas por Paulo. O evangelho de hlateus identifica Jesus em seu minisrério terreno como a presenqa da Sabedoria divina."' A epístola aos Hebreus se inicia com uma passageni que descreve o "Filho" de Deus conio aquele aci-avés do qual o mundo foi criado e quem, como a Sabedoria de Deus, í:o "resplendor da sua [de Deus] glória e a expressa imagem do seu Serbn3:Na epíscola
aos Colossenses, ademais, é encontrado uni primitivo hino crisráo que retrata o Filho de Deus como "a imagem do Deus invisível", em quem 'todas as coisas foram
'-1 Coríntios 1:?4. 'V Corintios 1:23. '"1 Coríiirios 1:30.
X'er I:2. Marrus I I : I 9 . i? Hcbrcus 1 :2-3. "
PERIOBII I
DO INICIO j\ CRISE ENdSTICA
53
na-
criadas" e enl quem "todas as coisas sub~istem."~' O Filho messiânico que foi ressurreto
da
dentre os mortos para ser o portador do reino de Deus é agora visto como a personi-
,110
ficaçáo daquela Sabedoria que tem sido a portadora do governo universal dc Deus
sias
desde o início da criaçáo.
do-
Desse modo, quase inevitaveimente, a lógica desce tema leva para o tipo de
.cá0
cristologia que está formulada no quarto evangelho. Lá também, uma forma da idéia
ri áo
da Sabedoria divina
.do-
surge como logor, a "Palavr;i" de Deus. O Logos pré-existe à própria criaçáo, estando
:TOS
"no principio
tanto divino como criador: "Todas as coisas foram feiras por intermédio dele, e sem
isas
ele nada do que foi feito se fez."" Este mesmo Logos, entretanto, que é o poder
.i -a -
criador de Deus também é o portador de vida divina e "a verdadeira luz"36- em uma
.,a-
palavra, o poder de Deus para a redenç~o.O poder salvífico de Jesus, entáo, o fito de
.
t determinante da comyreensáo de Jesus. A Sabedoria agora
. . . com Deus."?'
Como a própria auto-expressão de Deus, o Logos é
. ,. :?Ia
que nele a "graça e verdadeni- de Deus são concretizadas e tornadas disponíveis para
iida
aqueles que o amam e p a r d a m suas palavras, significa que sua vida e morte humana
as
têm como seu significado e realidade interior a Sabedoria eterna, vivificadora, de
rem
Deus: "A Palavra se fez carne e habitou entre nós.".'hAssim Jesus no quarto evangelho
:i
pode dizer, l n t e s que Abraáo existisse, eu Essa criscologia da encarnaçáo da Palavra c Sabedoria prC-existenre de Deus era de significaçáo crucial tanto para aquilo que era dito sobre Jesus como para a influência que ela possuia na formaçáo da crenqa cristá. Por um lado, ela servia para explicar uma reivindicação que sempre havia estado implícita na designaçso de Jesus como Messias, Senhor e Segundo Adáo - a reivindicacão, a saber, que sua encarnaçáo é o cumprimento do propósito eterno de Deus para a raça humana. Ela articulou
essa reivindicacáo consideraildo a vida humana de Jesus como a personificaçáo da :tola
I'alavra, "o Filho unigênito do Pai"," que era a pe~sonifica~áo do poder e propósito
> Fi-
3ram '"olosseiises
João 1 : I . ?'Joáo 1:3. "'Joáo 1 :9. Joáo 1:14.
'-
Ihid. "João 8:58. "João 1:14.
1: 15-1 7.
H I S I O R I I DA IGREJA GRIITh
$4
de Deus como exercitados na criacão e redencáo. Por outro lado, essa cristologia era uma forte afirmacão do sig1iificado universal do ministério, morte e rcssurreicáo de Jesus. O que estes eventos desencadearam, afirmava, foi o cumprimento daquilo que Deus em sua Sabedoria havia estado operando sempre e em rodo lugal-. Eles maiiifestaram de uma maneira concreta o significado irn~iicicona própria criaçáo do cosmo e da humanidade, pois em ú l ~ i m ainstância seu sujeito e agente era aquela Palatrra divina em quem todas as coisas têm existência. Embora em uma diversidade de formas particulares, a cristologia da encarnaqáo dominou a Iirera~urado final do primeiro século e início do segundo."' Ela surge, por exemplo, nas cartas de Inácio, bispo de h t i o q u i a na Síria, para quem Jesus o Cristo
-
"a vida da qual somos inseparáveis"" - deve ser entendido como "nosso
Deus." Isso tiáo significa, entretanto, que Inácio ignora ou minirniza a humanidade natural de Jesus. Pelo conrrário, ele polemiza contra o docetismo (a percepçáo de que o lado carnal, corporal de Jesus é mera "aparêncij') e insiste em que Crisco verdadeiramente nasceu, verdadeiramente soiTeu e foi verdadeiramente crucificado.'VorIanco, para Inácio existem duas dimensóes da pessoa de Cristo. Em Jesus, espírito e carne, divino e humano, sáo apenas um. "Há apenas um médico - de carne embora espiritual, nascido embora não criado, Deus encarnado, vida genuína em meio à morte, nascido de Maria coino tambtm de deu^."^" Cristologias dessa forma encarnacional estavam também em evidência em outros serores da igreja. O documento denominado I cLemena, uma carta da congregação romana para a de Corinro, fala em um idioma teológico judeo-cristão bastante diferente daquele que modela o pensamento de Inácio. Não obstante, utiliza a linguagem de Hebreus para re~ratarJesus como o reflexo do esplendor de Deus, o "espelho" da "face transcendente. . . de Deus"," e 'bcetro da majestade de Deus"" - em outras palavras, como a Sabedoriae Poder de Deus, que vem ao mundo para sofrer mas que é ao mesmo tempo descendente de Jacó "de acordo com a carne."" Um escrito um
"' Sobre essa lireracura, ver capírulo 1:8. "
Efbsios 3.2.
1-2. '"fésios 7.2. I Clemente 36. '"1 Clemente 16.2. '^ 1 Clemente 32.2. " Esmirnense,.
''
pouco posterior, de Roma, O Pdstor de Hermtls, conjuga a idéia do "Espírito Santo pré-existente que criou a totalidade da c~iaçáo"~' com o retrato de Jesus como o servo sofredor e exaltado. Essa tendência ou tema cristológico, entretanto, não foi universalmente Preferido. Em alguns círculos na igreja, a própria n o ~ á ode uma unidade de carne e espírito, mundano e divino, parecia tanto inacreditável como ofensiva; e cristologias gnósticas, como veremos, tenderam a negar ou qualificar qualquer doutrina da verdadeira "encarnaçáo" da Palavra de Deus. Ao mesmo tempo, houve uma tendência persistente no cristianismo judaico que veio a rejeitar as tradiçóes paulina e joanina e insistiu em um retraro de Jesus como aquele ser humano que havia cumprido completamente a lei de Deus. Constituído Filho de Deus e Messias no seu batismo, Jesus retomaria
em glória como o Filho do Homem celestial. Denominados "ebionitas" por escritores cristáos posteriores (que haviam esquecido que ebianim significava "os pobres": ver Gálatas 2:10), os grupos que esposaram essa perspectiva "adocianista" eram sem dúvida herdeiros das primitivas igrejas da Judéia, cuja influência, juntamente com o número de seus membros, definhou após a guerra judaica de 70 d.C.
Houve, portanto, e continuou a haver, uma variedade de idPias cristológicas na igreja primitiva. Entretanto, o final do primeiro século e o início do segundo assistiu à e~iiergênciade uma linha de peiisamento do~iiiiiante.Alguém poderia, segu~idoo TOS
modelo de Inácio e das cartas joaninas, conceber o Cristo como o portador de uma
;i0
vida nova e imortal, divina em qualidade, a qual os fiéis sáo convocados a partilhar.
-c-
Como alternativa, alguém poderia vê-lo primordialmenre, no esrilo de I Clemente,
'.a-
como o mestre, modelo e revelador da justiça divina, a qual os fiéis são convocados a
10
imitar e encarnar em suas próprias vidas. Em ambos os casos, entretanto, a pessoa
-3
:-as
humana de Jesus foi entendida como expressando e corporificando a vida divina do
:ue
pré-existente Filho, Palavra ou Sabedoria de Deus, com quem, pelo envio gracioso
2m
de Deus. ele era um só ser.
j6
HIST6RIA DA ICREJA GRISIA
Capitulo 8
O Cristianismo Gentílico do Segundo Século Por volta do ano 100, o cristianismo estava representado na Ásia Menor, Síria, Macedônia, Grécia e na cidade de Roma. Ele poderia muito bem ter estado - e por volta de 130 certamente estava - presence no Egito, embora nada seja sabido de suas origens ali. Nas porções ocidentais do império ele havia se disseminado muito pouco, se alguma coisa.
ás ia Menor era inquestioriavelmente o território mais extensi-
vamente crisrianizado no império. Por volta de 111-1 13, Plínio o Jovem, goveriiador da Bitínia, relatou ao imperador Trajano que "o conrágio daquela superstiçáo [i.e., o crisrianismoj havia penetrado náo apenas nas cidades mas também nas vilas e árcas rurais"; e ele notificou quc até quando ele começou a agir para combater sua disseminaçáo, os templos pagãos haviam sido "desertados."' Pode haver nisso algum exagero retórico (Plínio está obviamente muito preocupado com o fenomeno do cristiar-iismo), mas seu testemunho é de qualquer forma evidência confiável da agilidade do movimento cristáo nos territdrios ao longo da costa do mar Negro. Um testemunho igualinente confiável dc sua vivacidade é a variedade e quantidade de escricos crisráos que podem ser situados nos anos finais do primeiro século e a primeira metade do segundo. A esse período pertencem, obviamente, algumas das obras posteriormente incluídas no cânone do Novo Testamento: as duas cartas atribuídas a Pedro, por exemplo, como também as cartas joaninas, o Apocalipse de João e, com roda probabilidade, as Epís~olasPastorais. Em adiçáo a cstes livros, há a colecão de literatura (que uma série de descobertas relativamente modernas tem gradualmente aumentado) i qual tradicionalmente nos referimos como os 'pais apostólicos." Essa referência vem desde o século dezessete, quando os estudiosos pensavam que estas obras haviam sido escritas "nos tempos apostólicos" por discípulos imediatos dos fundadores da igreja. Entre tais obras, sempre tem sido dado um lugar de honra a I Clemente, uma carta escrita em nome da igreja de Roma aos cristãos de Corinto, por volta do ano
95. Ela, a peça dc escrico cristáo mais antiga conhecida, que por fim náo conseguiu Plinio, Epistola 96
PIA1000 1
00 IlllC10 À CRISE GNÓSTICA
57
ser incluída no cânone do Novo Testamento, geralmente tem sido atribuída a Clemente, um presbitero (ou talvez bispo) proeminente da igreja romana. Ela lida com problrnias de ordem eclesiásrica dianre de uma rebeliáo ern Corinro concra a auroridade dos presbiteros daquela igreja. Ao lado de i Clernente estão as sere cartas escritas (ca. 113) por Inicio, bispo de Antioquia, para as igrejas que o haviam recebido (ou, como rio caso da igreja romana, estavam para recebe-10) enquanto ele viajava sob estrira vigilância militar para ser julgado em Roma por causa de sua fé. Inácio está também preocupado com
de ordem eclesiástica, embora em seu caso essa
preocupaçiio seja estimulada por questóes teológicas. Ele urge seus leirores ii unidade
em Cristo, uma unidade a ser realizada na prática através de comunhão obediente com o bispo, presbíteros c diiconos da igreja local. No processo, ele argúi conrra as doutrinas docéticas e judaizantes que, coriforme ele as
escáo dividindo as
comunidades. Estáo juntos 2 1 Clemente e às epístolasde Inácio uma carta de Poiicarpo, bispo de Esmirna, e um documento denominado
Epi'tolrr de Barnabé. Este último,
talvez escrito em Alexandria por volta de 130, é na realidade um tratado c não uma carta, que explica por meio de mitodos alegóricos o "verdadeiro" (i.e., cristáo) sentido da Lei judaica. A esse tratado foi aiiexada uma iilstrugáo é ~ i c acristã primitiva. Finalmente, a lista tradicional dos "pais apostólicoç" incluía um primitivo sermáo cristáo, provaveImente de origem alexandrina, erroneamente chamado de Segunda
EpZstola de Clem~nte(2 C%emente). ._I-
,áo i
a
r a-
;o-
.m Ai-
Em eras posteriores, entrecanto, foram feitas adiçóes a essa lista dos "pais apostólicos." Mais notavelmente, havia o apocalipse (ou revelação) denominado O X'rrsto~, escrito por volta da passagem para o segundo século por um profeta cristáo de Roma chamado Hermas, que estava preocupado com o estado mora1 de sua comunidade e pela quesdo sobre se pode ou não haver um "segundo arreprndimenco" para pecados sérios cometidos após o batismo. Também está incluída entre estas obras a assim chamada Carta a iliogr~eto,embora a erudição posterior tenha atribuído esta pega à últinia metade do segundo século e identificado-a como uma obra de apoIogCtica cristá. Mais recentemente ainda - como resultado da descobcrca feita em Constantiiiopla em 1883 - foi adicionada a essa lista uma obra cujo título completo
t O Ensino do Senhor xt~avésdos L)oze Apástolos aos Gentios. Comurnenre denominada Didaquê, esta obra, como a Epistola de Burnabi, L uma composiçáo. Ela contém uma versáo da mesma insrruçáo ética primitiva que está anexa ã esta última, e assim concinua para fornecer uma ordem eclesiástica simples - um conjunto de instruçóes
58
HISTORIA DA IGREJA ERISIÃ
referentes ao batismo, i eucaristia e ao governo da igreja. Ela é comumeilte atribuída à Síria e datada por volta do início do segundo século.
Nem mesmo estas obras, contudo, exaurem a lisca de producóes lieerárias do movimento cristáo no início do segundo século. Por um lado, parece provável que este seja o período ao qual devemos atribuir o início da literatura gnóstica cristá. É difícil datar a& mesmo aproximadamente os materiais gnósticos conhecidos por nós, mas está claro que os grandes mestres gnósticos, Basílides evaiencino, estavam trabalhando em Alexandria antes de 140, cerca de quando Valcntino apareceu em Roma. O s fragmentos das carras e fiomilias de Valentino que foram preservadas para nós por Clemente de Alexandria podem muito bem, portanto, datar desse períodocomo, para esre assunto, deve o evangellio que é atribuído a Basílides e seu comentário sobre ele, o Exegehcu.' E basrante separado da literatura gnósrica, exisrem remanescentes de rim número de outras obras desse período: por exemplo, A Pregaaçiio de
Adro; o influente Apocalipse de Pedro, que era conhecido e utilizado pela igreja de Roma táo tardiamente como o final do segundo século; e a Carta do~Apó~t~lus ('pistula Apostolouum), um escrito anti-docdtico que testemunha uma disputa entre grupos gnósticos e não gnóstiços na igreja. Uma revista dessa literatura deixa pelo menos um ponto claro. O cristianismo nas primeiras décadas do segundo século era um movimento acossado por debates e
conflitos. Ele ainda se movia na sombra do mundo de pensamento do judaísmo tardio. Aquele próprio mundo de pensamento, todavia, não era uma estrutura monolítica, mas uma coisa solta e variada, como é demonstrado pela diversidade de ênfases, interesses e doutrinas que está refletida nos escritos cristáos dessa época. A irnpressáo é que quesróes estavam sendo levantadas em rodas as áreas onde a proclamação primitiva da igreja náo havia nem contemplado nem respondido: questões sobre o significado e valor dos escritos da igreja, que nesse período eram simplesmente as Escrituras tradicionais do judaísmo; sobre a moldura de crenças e valores dentro da qual a proclamaç.áo de "Jesus e a ressurreiçáo" era para ser compreendida; sobre a ordem das comunidades e o esrilo de vida que os cristáos eram convocados a viver. O tempo, ademais, tornaria estes problemas mais agudos. Ao mesmo tempo, contudo, essa literatura deixa claro que havia forças em acáo que esravam empurrando as igrejas para soluções comuns desses problemas - forças
' Clrmenre de Aiexandria, Strornata 4.12.81; Origcnzs, Hornilzas e m 1.ucas 1 2 .
~ k i i o n or
00 INICIO A CRISE 6NÓãTICA
59
que, de fato, exigiam que as igrejas formassem sua mente coletiva sobre aquilo que defendiam. Uma dessas forças, e talvez a mais iliiporrante, era a convicção mais fundamental do movimenro cristáo sobre si mesmo: que seus membros e seguidores pertenciam a "uma raqa escolhida
. . . uma nação santa, povo de propriedade exclu-
siva de deu^."^ Embora as comunidades fossem variadas e espalhadas, elas estavam cor-iscienres de ser um povo único cuja cidadania partilhada náo estava em Roma mas na Jerusalém celestial."ste
fato é comprovado náo meramente por suas pala-
vras - como, por exemplo, a referência de Inácio à igreja "católica" (;.e., universal) que está "onde quer que Jesus Cristo esteja"' - mas também por seu liábiro, para o qual tiáo existe ncnhum paralelo na antiguidade, de escrever umas às outras cartas de repreensão, conselho e exortaçáo. Este senso de unidade, de pertencer a um povo eleito, ajuda a explicar a seriedade com a qual esses grupos assumiram suas discordâncias. Isso também explica sua compuisáo em buscar resoluções e decisões compartilhadas. Este senso de unidade foi fortalecido pela surpreeilden~eunanimidade com a qual eles aceitaram certas normas ou autoridade para sua vida e ensino comum, e também pela persistência e desenvolvimento de certas inscituiçóes coinuiis. Todas as comunidades apelavam para as Escrituras judaicas (embora estas, como o fut-uro iria mostrar, consci~uíssemum problema comum a todas elas como também um recurso compartilhado), e todas apelavam da mesma forma para as palavras do Senhor c para o tesremunho dos líderes da comunidade primiti1.a - "as ordenancas dos apóstolos", como Inácio as considem6 Havia, resumindo, aquiescência geral à crenca de que o ensino e a prática das igrejas tinham que ser compatíveis com suas origens na obra de Crisro e da primeira geracão de seus discípuios. A seriedade com a qual essa convicçáo foi mantida é demonstrada por nada melhor do que pela regularidade exaustiva com a qual os primeiros escritos cristáos sáo atribuídos a um ou outro dos Doze - ou, como a Didaquê ou a Epistulir Apostolorum, a totalidade dos fundadores da igreja. Ademais, a vida comum das igrejas foi modelada por instituições comuns que f~~ncionavam como inscrumenros de unidade e continuidade. O discípulo era admitido à igreja pelo ritual do batismo. Isto envolvia náo apenas a lavagem mas rambérn
i
1 I'edro 2:9. Hermas, O Pastor ("Simili~udes"1.1)
Esmirnenses 8.2. T~raliunos7. I.
a declaração de uma confissão de fé tradicional, e pressupunha o entendimento do significado daquela fé e do estilo de vida que ela exigia. As assembléias regulares da comunidade, que aconteciam no Dia do Senhor (Domingo) em celebrar;áo à resçurreiçáo de Jesus, envolviam não apenas oraçáo, louvor e a leitura das Escrituras, mas também pregaçáo, profecia e a celebrayáo da Ceia do Senhor ou eucaristia. Estas açóes comuns e rotineiras eram oportunidades que tanto modelavam como interpretavam a vida e a identidade da comunidade, e forneciam uma matriz na qual uma linguagem simbóiica comum era preservada e desenvolvida. De igual importância na vida da igreja do segundo século era a disciplina da comunidade. A igreja era um corpo "separado" de cujos membros esperava-se que conduzissem suas vidas em um cerco escilo. Havia disciplinas de jejum e oraçáo.' Entendia-se que os cristãos náo contraíam segundas núpcias, náo abandonavam à rriorte bebes indescjados, nerri praricavani o aborto. Eles riao de\re.rriaii~se envolver com as fesras pagás nem com qualquer ocupaçáo que pudesse ser interpretada corno
dispondo-os a o sert~içod o s "dern6nios", que eles enrendiam serem os deuses pagáos.
Tudo isso significou, obviamente, que eles pouco poderiam rer a ver com a vida pública de qualquer cidade na qual morassem, uma vez qiie a religiáo pagá era inevitavelmente parte do próprio recido daquela vida. Acima de tudo, entretanto, eles deveriam amar os irmáos e praricar caridade e esmolas. "O jejum oração, mas a esmola é mclhor que ambos.""
t melhor do que a
mais eloqüente condenaçáo de heré-
[icos feita por Inácio vem em sua alegacão que "Eles náo têm cuidado pelo amor,
nem para a viúva, nem para o brfiio, nem para o aflito, nem para o atormentado, nem para o prisioneiro, nem para aquele liberto da prisáo, nem para o faminto ou para o sedento."') I Clenzente sabe de fiéis que venderam a si mesmos como escravos para suprirem os necessitados."' As comunidades cristás náo apenas viviam por uma disciplina, mas rambém funciona~.arncomo associações íntimas nas quais a assistência mútua sistemática era organizada e exercirada. Esrc fato, tambkm, sem díwida contribuiu para um senso de coesáo e para um baixo patamar de tolerância para com discordincia ou conflito fundamental.
P I R ~ ~ DI U
00 INICIO A CRISE G N O S I I C A
Capítulo 9
Organização Cristá Nenhuma questáo na His~óriada Igreja cem sido mais obscurecida pela controvérsia do que aquela das origens do miiiistério oficial da igreja. Devido a escassez de evidência que tenha sobrevivido, poucas questóes sáo mais difíceis de responder em 1
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levemente diferente em lugares diferentes. Em outras palavras, nem todas as comunidades cristãs do primeiro século riveram as mesmas estruturas ao mesmo tempo. Entretanto, por volta da metade do segundo século um padráo substancialmente uniforme de miiiistério local estava corneqando a prevalecer por todo o mundo cristáo. Em cada cidade, os cristãos cendiam a ter um líder principal e pastor, chamado
epzskopos - "bispo" ou, mais literalmente, "supervisar" ou "superintendente." O episkopos trabalhava por um Iado com u111 corpo de colegas chamados pvesbuteroi ("anciáos") e por outro com um grupo de assistentes que o "serviam" em suas funçóes administrativa e pastoral - os didkonoi,ou "diáconos." Esses oficiais não eram, obvi-
;1zs L:
detalhes. Com toda probabilidade, o decurso de desenvolvimento institucional foi
amente, indicados ou selecionados de um corpo de profissionais mais ou menos treinados, como tem sido o caso com o minisrério cristáo em muitos lugares desde os períodos clássico posterior e medieval. Eles eram membros do corpo de crisráos em uma determinada cidade, selecionados por seus ralenros e qualidades pessoais.
As razóes para a emerghcia de tal padráo de rni~iistérioe governo são, em geral, evidentes. Como já vimos, a comunidade cristã em qualquer cidade era um corpo intimamente entrelaçado. Ela se reunia regularmente para a execucáo de seus ricuais característicos. Ela também servia como uma sociedade para a assistência mútua dos membros, e fornecia susrenro para os pobres, para a viúvas e para os Órfáos. Além disto, essas igrejas parecem de modo geral ter regulado seus próprios negócios e as relagóes entre seus membros, sem apelar para os tribunais romanos reforçando seus próprios padróes de comporramenro e de resolugáo de disputas.l Finalmente, essas comu~iidadesencontraram sua razão de ser na nova vida do Crisro ressurrero,
I
Vti- I C:oríntios j:3-5; 151-2;Maccus 18: 15-18.
62
HiSIURi& DA IGREJA CRISTÁ
comunicada a zlas por Deiis no Espírito e articulada na prodamnçáo e ensino dos apóstolos e discípulos originais. Elas estavam certas, portanto, de que a preservaçáo e transmissão desse evangelho em sua forma autê~iticaera essencial para a vida delas.
A emergência de oficiais da comunidade, liestas circunstgncias, para servirem como líderes do culro,, governantes da vida comuilit5ria, administradores de seus negócios e mestres da verdade pela qual ela vivia, não pode ter tido nada de surpreendente. Por outro lado, esse grupo de condicóes, que encorajaram ou exigiram uma organizacáo fixa das igrejas, apenas gradualmente teve seu efeito. Em primeiro lugar, a execuqáo dessas fungócs exigiam um ministério oficial somente enquanto as igrejas cresciam e deixavam, pouco a pouco, de ser grupos pequeniiios que podiam se reunir em uma única casa. Em segundo lugar, os problemas sobre a vida, ordem e crengas
da comunidade teriam de surgir antes que o formato do ministério oficial pudçsse ser fixado e sua auroridade estabelecida. Não obstante, náo h5 nenhuma dificuldade quanto ao "porquE" do surgirnen~ode um ministério oficial liem sobre sua natureza e funcóes, quando ele surgiu.
Em contraste, há, e sem dírvida continuará a haver, dificuldade sobre o "como" do desenvolvimento do ministério oficial. O livro dos Aros dos Apóstolos lios informa que a igreja de Jcrusal6m foi no final governada por Tiago, o irmáo do Seiihor, em associacáo com um corpo de "anciáos." Alguns estudiosos têm argumentado que, desde o sucessor de Tiago, que presidiu a igreja de Jerusal&mdepois da guerra judaica, que também era um parente de Jesus ("um primo do Salvador"'), a constituição original daquela igreja foi a de um "califado", no qual a comunidade deveria ser governada por descendenres colaterais de Jesus. Outros, descontando esta hipótese,
têm, náo obstante, pensado que o retrato de "Tiago e os anciáos", em Atos, forneceu o modela que foi mais [arde imitado (talvez originalmente em Ancioquia) na instirui550 do bispo com seu conselho de presbíterns. De fato, porém, a primeira indicagáo da existência de tal estrutura vem, como veremos, da primeira década do segundo século. Apesar da declara~áoem Aros de
que Paulo e Barnabé fizeram com que os discípulos "elegessem anciáos em cada igreja",3 as cartas de Paulo náo fazem nenhuma rnencáo a oficiais de igreja estabelecidos e certamente nenhuma a anciáos. É verdade que 1 Tessalonicenses 5:12 se refere
' Eusébio, Históiia Eclc~lijisli~tl3.11. ' Arar 1 4 ~ 2 3 .
P ~ R I O B OI
OU INlElO À CRISE G N Ó S I I E A
63
a pessoas que "presidem sobre vocês no Senhor", e que Filipenses 1:1 inclui "os bispos e diáconos" cntrc os "santos cm Cristo Jesus que estão em Filipos." Por outro lado, a correspondêiicia de Paulo com os coríntios náo contém tais referências, as quais também náo podem ser encoiltradas em nenhuma de suas outras cartas cuja autoria náo seja dispueada. Pode ter havido, em algumas das igrejas paulinas, o início rudimentar de uma estrutura de rninisr2rio e governo, mas náo há qualquer indicação nem de que o próprio Paulo tenha sido diretamente responsável
sua institui-
qáo nem de que ela tenha se tornado estabelecida c formalizada. E este é mais ou menos o estado de coisas que espetaríamos encontrar. Isso não quer dizer, obviamente, que Paulo náo teve interesse no funcionamento
da 'Variedade de ministériosnq em suas igrejas. Ademais, sua discussáo desse problema nas cartas aos corínrios sugere que em Corinto já havia algum conflito sobre a quescáo do ministério de quem, ou que tipo de ministério, era o mais importante. A resposta de Paulo a essa situacão foi enfarizar que todos os rniriistérios sáo dons de Deus e do Espírito e que todos são essenciais para o bem-estar "do corpo", mesmo aqueles que parecem obscuros ou desonráveis. O que ele quis dizer por "ministério", enráo, é qualquer dom que se expressa no serviqo construtivo à comunidade, da cura à administracáo; e estes diferentes dons do único Espírito sáo dados a todos os mem-
bros do corpo. Paulo acreditava que, entre estes dons, alguns sáo de primeira importincia: aqueles que constituem os indivíduos como "após[olos
. . . proferas . . . mes-
tres", nesta ordem.' Em outras palavras, o de que a igreja náo pode prescindir sáo aqueles dons e vocacóes referentes à proclamação, inrerpreraçáo e explicaçáo da nova vida "em Cristo Jesus." Mesmo neste caso, entretanto, ele não esrava sc referindo aos ofícios mas às formas de atividade nas quais as pessoas são chamadas
elo Espírito,
da mesina forma que ele próprio havia sido "chamado pela vontade de Deus para ser apóstolo."W próprio Paulo exercitou um ministério bastante ativo de superintendência e governo sobre as congregações que ele havia fundado, e de fato empregou assistentes no trabalho,? mas nunca se considerou em qualquer sentido como um oficial da igreja.
1 Cciiíntiris 12:5. 12:2S ' l Coríntios I:1. ' E.g., Timóteo eni 1 Corínrios 4:17, 16:lO. "
' 1 Corinrios
Todavia, por volta do final do primeiro século, haviam surgido oficiais, não apenas nas igrejas ~aulinas,mas na igreja de Roma e, aparentemente, na regiáo da Síria e tambénl na Palestina. Além do mais, a estrutura e nomenclatura desses ofícios parecem ter sido aproximadamente as mesmas em todas essas regióes. Assim 1 Clementt. fala de "bispos e d i á c ~ n o s "e ~localiza o início desses oficios na fundaqáo apos-
tólica. A carta pressupóe que tais oficiais existam náo apenas em Roma mas rambém em Corinto. EIcs sáo pessoas indicadas "com o conseiltimenro de toda a igreja";' esse fato e a circunstância de que eles estão em uma sucessáo que vai até os apóstolos,1° faz com que a rebcliáo dos cristáos contra sua autoridade seja tanto ímpia como destrutiva da ordem divina. I Cleíizeritc também menciona anciáos como oficiais na igreja, mas tudo na carta sugere que ela usa "ailciáo" e "bispon como palavras incercambiáveis para o mesmo ofício.
X mesma dupla estrutura aparece nas Epístolas Pastorais e na Didaqz~ê.Este último documento quase certamenre reflete uma situaçáo de transicáo, na qual a autoridade dos oficiais locais tem que ser elogiada diante do apelo carismático de "apóstolos" e "profetas" itinerantes, que ocasionalmence mostravam uma tendência ao charlaranismo. A Didizqz~éadequadar~~er-ite fornece as normas para a distinção entre os verdadeiros e falsos profetas (o falso profeta pede dinheiro e náo pratica o que prega") e exorta seus Icirores a "elegerem" para si "bispos e diáconos que sejam iim crédiro ao Senhor. . . Pois o ministério deles para vocês i': idêntico àquele dos profetas e ~riestres."" As Epístolas l'astorais, diferentemente da Didaqzlê, mencionam anciáos como também diáconos e bispos, mas uma passagem em Tito" parece indicar que ali, como eni I (ile~ze~zre, "anciáo" e "bispo" denotam os tilesrnos indivíduos. + *
iambérn na mesma direqáo que 1 Cli.i?ze?zte, as Pastorais intimam que esses oficiais
exercitem autoridade com apro~~acão apost6liça e sob direcáo apostólica. Ao dcscrever o trabaIho do anciáo-bispo, as Pastorais etiFatizam três temas. O bispo deve, primeiro, ser u m triodelo de vida cristã: "não dado ao vinho, náo espancador, mas nioderado, inimigo de co~ite~idas, náo ganancioso."" Segundo, ele dcve ser capaz de
PERlono i
0 0 INlCtO il CRISE BNOSTICI
65
gerenciar os negócios - um administrador. Acima de tudo, entretanto, ele deve ser um "mestre
'* 15
, seguir o modelo das sás palavras"'"ue "
personificam a doutrina do
próprio apóstolo e "reter firme a palavra fiel, que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, para exortar na sá dourrina."" Há falsos mestres lá fora, e os líderes das igrejas locais têm como sua responsabilidade primária dar testemunho do estilo de vida e doutrina que a primeira geraqáo de pregadores cristáos havia inculcado. Eles são, de fato, guardiáes do "depósito" (pauathêkê) apostólico.'" . . Essa preocupação pela manutençáo do testemunho cristão autêntico (i.e., original) está refletido igualmente nas cartas de Inácio, que elogia os membros da congregaçáo em Éfeso por terem "sempre sido de uma só mente com os genuínos apóstolos."19 Na verdade, entretanto, Inácio coloca sua ênfase menos na concordância com os apóstolos do que na unidade de vida dos fiéis com o próprio Cristo e, acravés de Cristo, com Deus. Quando ele discute o ministério oficial, discorre longamente sobre seu caráter como um símbolo efetivo dessa unidade. "Os bispos", diz eie, ,
". .
refletem a mente de C r i ~ t o " , ?e~os fiéis, se eles contiliuam em unidade com os
bispos e em subrnissáo a eles, exatamente por este fato entram na unidade de Crisco com Deus." O que se salienta, no entanto, nas cartas de InAcio é o h t o de que em todas as igrejas a que ele se dirige (exceco a de Roma), ele pressupóe náo um miniscério duplo de anciãos-bispos e diáconos, mas uma estrutura tripla na qual o ofício de bispo está claramente distinto daquele do ancião. Em cada uma dessas igrejas há um bispo, que governa com um corpo de anciáos e tem seus diáconos como "ministros."
É pois nas cartas de Inácio que o Iristoriador encontra primeiro a estrutura minisreria[ que, no decorrer do segundo século, veio a prevalecer em todas as igrejas.
A questão de como, por qual processo, esse desenvolvimento ocorreu, tem sido rema de muito debate. Uma hipórese é que ele surgiu quase naturalmente, e com certeza informalmenre, coilforme responsabilidadc e statLrs especial ein cada igreja eram atribuídos ao anciáo que regujarmente presidia as reunióes que Inácio denomi-
''
I Timtjrco 32,5:17.
'9 Timt5rco
1 :13.
1:9. " 2Timóteo 1:12: cF. /Iros 20:28-31. '' Efésios 11.2 O' EfGsiob 3.2. " Efésios 5.1-3.
na "presbitério." Esta hipótese encontra alguma confirmaçáo no fato de que, mesmo após o desenvolvimento do episcopado monárquico, parece que frequentemente se referia aos bispos como "anciáos." A ordem eclesiástica do terceiro século, conhecida como Didascalia Apastolontm, identifica o pastor principal de uma igreja local como "bispo s cabeca entre o pre~bitério",~" está claro que por um longo período os anciáos foram considerados não como os representantes ou delegados do bispo mas como seus colegas. Ela encontra confirmacáo suplementar, embora indireta, no faro de que pelo menos por um período as duas diferentes estruturas devem ter existido simultaneamente e ninguém (incluindo Inácio) parece ter-se ofendido com isto. Na virada do segundo século, o sistema que reconhecia anciáos-bispos e diáconos e aquele que falava de bispo, anciáos c diáconos podem muito bem ter sido, na prática real, muito semelhantes, se aceitarmos que muitos grupos cristâos locais ~eriarntratado, pelo menos informalmen[e, um indivíduo entre seus anciáos como seu líder e mescre principal. Com o estabelecimento desse padráo de ordem eclesiástica, surge também o início rudimentar da idéia de "sucessáo apostólica" ou "sucessão dos apóstolos." E em I
Clemente que este desenvolvimento é mais óbvio. Ali a autoridade dos bispos e diáconos é submetida, pelo menos em parte, ao fato de que seus ofícios foram estabelecidos pelos apóstolos;" e uma sentenqa na carta - uma sentença que, infelizrnente, é bastante ambígua - pode significar que a igreja de Roma considerava seus anciáosbispos como "sucessores" dos apóstolos.'~staidéia, entretanto, mesmo se ela representa o pensamento da igreja de Roma, náo estava ainda disseminada no início do segundo século. As Epístolas Pastorais reivindicam a autoridade de Paulo para a instituiçáo dos ministérios episcopal e diaconal mas náo sugerem que os oficiais locais "sucediam" a autoridade apostólica. E Inácio de Antioquia, embora convencido da necessidade de fortalecimento da autoridade do bispo e do presbitério, náo faz nenhum esforco para reivindicar a fundacáo apostólica para esses oficios. O desabrochar completo da idéia de sucessão apostólica teve que esperar pelas coiltrovbrsias do final do segundo século sobre o giiosticismo.
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PERIODO I
DO INICIO A CRISE 6 N d S I l E A
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Mesmo por volta do início do século, entretanto, um padráo rcgrtlar de minisrério e governo estava em processo de ser estabelecido. A unidade da igreja - como poderia se esperar, dado a organizacáo social e política do mundo romano - era o corpo de crisráos em uma polis particular. Cada uma dessas igrejas tendeu a ter um pastor principal, chamado de bispo, que náo apenas presidia as reunióes litúrgicas mas também dirigia os negócios discipIinares e administrativos da comunidade e, acima de tudo, era o mestre oficial da igreja, o guardiáo e intérprete de sua tradiçáo doutrinária e ética. Com o bispo estavam associados nesse trabalho o corpo de anciáos, ao qual ele mesmo era considerado pertencer, e os "ministros" ou diáconos que aparentemente passaram a assistir o bispo em seu trabalho litúrgico, administrativo e disciplinar. Cada um de tais corpos, com seus oficiais, era enrendido como sendo a
ekklesia, total e completa em seu local parricular. Apesar do fato óbvio de que cada igreja local frequentemente trocava idéias e admoestaqóes com outras igrejas, náo havia nenhuma organizacáo da igreja acima do nível da polzs.
Capitulo 10
O Cristianismo e o Governo Romano Em questões de religião, Roma normalmente foi tolerante, seguindo nessa ma& ria as políticas das anteriores monarquias helenísticas do oriente. As autoridades romanas entendiam que cada uma das cidades e nagóes sob a sua influência possuía divindades, rituais e práticas religiosas que desejava, da mesma forma que o Senado e o Povo de Roma adotavam os seus. Sob o governo romano, tais cultos locais ou étnicos eram permitidos e protegidos, conquanto a honra devida fosse dada a Roma e seus deuses. Assim, o judaísmo era uma religio licita ("religiáo autorizada"). E enquanto os romanos tendiam a repugnar o proselitismo judaico e tenratam mais de uma vez tornar o judaísmo menos visível na própria Roma, eles náo obstante chegaram até mesmo a dispensar os judeus da participa~áono culto imperial. Essa tolerância do pluralismo, porém, tinha certos limites, que se tornavam apam jogo os interesses de Roma ou o bem-estar dos cidadãos rentes quando e ~ t a \ ~ aem
HlbThRIA DA IGREJA CRISIA
6.8
romanos. Algumas práticas religiosas pareciam aos romanos imorais e portanto ofensivas aos deuses de cuja boa vontade a cidade (e o impirio) em última iristância dependia. Tais práticas estavam sujeitas a ser suprimidas, seja na própria Roma ou nas províncias. Assim, ouvimos que enquanto Xugusto havia se contentado em proibir que qiialquer cidadáo romano na Gália participasse no ccrrível e selvagem culto druídico", que praticava sacrifício humano, "Cláudio aboliu-o cocalmente."' Ao mesmo tempo, os romanos eram tradicionalmente cautelosos em relação a sociedades (colIegia) religiosas voluntárias que praticavam seus ritos de forina reservada. Os membros de tais grupos eram passíveis de ser suspeitos de fazerem juramentos de sangue, que os obrigavam ao crime e à sedicáo. Resumindo, os cultos religiosos que pareciam ameaçar o estado e a ordem pública romana - seja ofendendo os deuses de Roma seja parecendo encorajar conspiraçáo - eram considerados automaticamente ilícitos, mesmo que pouca ou nenhuma acáo pudesse de fato ser tomada para suprimi-los.
A tal stacus como uma associaqáo náo autorizada e potrnciaimente poderosa, o movimento cristão era uin candidato narural. Ele náo era a religiáo tradicional de qualquer nacão ou cidade e portanto raramente poderia reivindicar o tipo de reconhecimento que Roma deu às religióes egípcias ou judaicas ou para um culto local como aquele do Baal sírio. Ademais, os cristáos se reuniam privadamente, e seu monoteísrno exclusivo os compelia a recusar qualquer participaçáo nas atividades religiosas pagás. Isro significava náo apenas que o povo tendia a suspeirar deles como estando a preparar alguma coisa indecente ou sinistra, mas também que em qualquer
polis onde eles habitassem seriam nocados como um pequeno grupo de dissidentes obstinados da própria base da vida comunitária. Paulo traduz a atitude cristá ao dizer: "Nossa cidadania esc6 no cEii."' Para o historiador romano Tácito, essa atitude pareceu mais como "6dio à raça hunlana." Portanto, quando Plínio, durante seu mandaro como governador da Bitínia, escreveu para o imperador Trajano sobre o problema dos criscãns, sua própria linguagem rraiu a reação que os fiéis despertavam
em seus contemporâneos. Eles "sc reúnem antes do amanhecer", diz ele, "e recitam por turnos uma forma de palavras para Crisro como deus." Além disso, eles se comprometem utls aos ourros "com um juramento", e embora eles insistissem em que
2sse juramento os comprometia não para o crime mas para o bom comportamenEo, I'línio obviamente teve dificuldade em creditar tal negacáo. Corre~~ondeiltemcnte, ele torturou duas jovens escravas que eram diaconisas cristãs tentando descobrir mais sobre esse juramento, mas ele relata: "Eu náo descobri nada além de uma supersti~áo extravagante e p e r v e r ~ a . "Elç ~ náo duvida nem por um momento de que os crisráos sáo culpados de "crimes secretos", mas está indeciso sobre se eles devem ser processados por esses crimes ou pelo "noine meramente" (i.e., simp1esment.e por serem crisráos).*
A réplica do imperador Traja110 é tão instrutiva quanto o relato de Plínio. Náo há quesrionamento na mente do imperador sobre se os cristáos representam uma asso;iaçáo náo autorizada e em princípio perigosa. Náo obstante, ele obviamente náo
;credita que eles constituam, na prática, um verdadeiro problema. Ele deeermina, pois, que quando apanhados eles devam ser punidos (ainda que se negarem sua fé, des possam ser perdoados), mas que eles náo devem ser perseguidos ativamente. O ~ o ~ e r n a d oentão, r, náo deve se envolver em uma tentativa sistemática para exrirpar sxa seita. O sucessor de Trajano, o imperador Adriano, parece ter tomado uma aBtu-
t e bastante semelhante. Seu pronunciamento sobre esse rema, concretizado em um Locurnento oficial enviado ao procônsul da Asia (ca. 125), pressupóe que o cristiarisrno náo está autorizado e portanto é ria, entretanto, é se certificar de que os
de puniçzo; sua preocupagáo primájudiciais apropriados sejam
ifpuidos e que as pessoas náo sejam punidas pela fé cristá como uma conseqüência tumultos populares ou acusriçóes falsas ou an6nimas.j Mesmo dessas fonres escassas, há muito a ser aprendido sobre a situação do crisrianismo sob o domínio romano durante o segundo siculo e posteriormente. Pri--.tiro, parecc claro que os imperadores desse período não estavam nçin mriito inte:-;sados nem bastante preocupados com o fenômeno do cristianisrno. Todavia, eles ?resumiam que o crisrianismo era indesejável e passível dc pu~iiçáo,e por causa desse : ilzo
eles expuseram os cristáos i liosrilidade das popuIagóes locais c também i per-
: : y i ~ á o e punicóes dos governadores imperiais. Ademais, o documento oficial de idriano sugere que os cristáos causavam rnrritci mais problemas às autoridades impe-
riais por serem o motivo de desordens e tumultos locais do que por qualquer ameaça que representassem por si mesmos ao impirio; e nessa intimaçáo há uma indicaçáo da verdadeira fonte dos problemas dos cristáos - uma indicaçáo que é confirmada pela evidência das primeiras listas de mártires crisráos. Tais documentos indicam que náo foi a política imperial mas a hostilidade popular que instigou as primeiras perscguiçóes. Em Liáo e Vienne, na Gália, foi a violência de "um populacho enfurecido contra seus supostos inimigos c adversários""ue
comeqou a perseguiçáo em 177
d.C.; e em Roma, Justino, o apologista cristáo, não foi perseguido pelas autoridades mas apenas entregue a elas por um colega intelectual, o filósofo cínico Crescente. Somos inclinados a co~icluirque a incidência real de perseguiçáo dependia grandemente das atitudes e sentimentos dos cidadáos locais para com os cristáos e das medidas com que os governadores provinciais estavam querendo pacificar o sentimento popular cooperando com este. Esta conclusáo é fundamentada, ademais, no caráter esporádico das primeiras perseguicóes. Mais importante d o que as políticas ponderadas dos imperadores (os quais parecem de fato ter dado pouca arençáo ao "problema cristáo") eram o temor popular e a desconfiança dos cristáos, os quais acredicava-se com certeza serem ateístas (uma vez que eles não cultuavam os deuses), conspiradores e dados habitualmente a crimes indizíveis.
Qual foi a resposta cris~áa esta siruaçáo? Diante da perseguiçáo, aprisionamenro e morte, os fiéis entenderam estar sendo chamados, através da confissáo resoluta de sua fé no Senhor, a partilhar do sofrimento pelo qual Cristo havia vencido as forças do mal no mundo. A morte de um mártir (uma "testemunha") era então a culminaçáo gloriosa de uma luta que conduzia à vida eterna. Quando a jovem escrava Blandina foi enforcada na arena cm Liáo, os fiéis "viram na figura de sua irmá aquele que foi crucificado por eles" e souberam "que todos os que sofrem pela glória de Cristo têm para sempre comunháo com o Deus vivo."' Esta luta, contudo, náo era coilsiderada como uma rebeliáo contra Roma e seus imperadores. Era direcionada contra Satanás e suas hostes, que mantinham o mundo em escravidáo ; e o imperium romano, apesar de sua pretensóes blasfemas, era um instrumenro de Deus para manter o mal sob relativo controle.Vortanto, diante da iminência da ardente provação da persegui-
"usébio, Hzstiria Ecl~*siástica\' 1.8. Ibid., V.I.42. Ver tamhCm I Pedro 4:i. "ornanos 13:1-7.
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P E R I O ~ UI
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Dil INiClO A CRISE GNhSTIEA
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a Primeira Epístola de Pedi-o pôde conclamar os cristáos: "Sujeitai-vos a toda
zsroridade humana por amor do Senhor, quer ao rei, como soberano, quer aos go-:-rnadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores, e para louvor dos {ue fazem o bem."' Roma, a ordem imperial, foi percebida náo como a verdadeira
!ante do mal pelo qual os cristáos eram afligidos mas ao invts como um poder que, .za providência de Deus, impedia que as coisas ficassem rnuito pior
::ízo
- r este era um
que, sem dúvida de uma maneira bastante rudimentar, refletia o verdadeiro
rjrado das coisas.
Capítulo 1 1
Os Apologistas ,4s acusaçóes feitas contra os cristáos, sem mencionar a politia oficial de considerar a igreja como uma associa~áonão autorizada, impeliram os fiéis não apenas a dar .,,remunho no sofrimento mas também explicar e defender sua fé. Surgiu, porcanto, ->-
zo decorrer do segundo século um novo gênero de literatura Cristá, a "apologia" a s i m chamada do grego apologia, que significava "um discurso para a defesa." Os
uurores destas obras são conhecidos coletivamente como os apologistas; e embora :scritos desse tipo tenham sido produzidos bem depois do final do segundo dculo, o período de cerca de
130 atC por volra de 180 d.C. é frequentemente citado como a
tra dos Apologiscas.
O primeiro desses escritores foi um certo Quadratus, provavelmente um ateiliense, quem por volta de 125 escreveu uma apologia endereçada ao imperador Adriano. Irualmenre estáo p~eservadosapenas fragmentos desta obra. Melhor conhecido é o ;pelo similar de Aristides, o u a o ateniense e filósofo de estilo, o qual endereçou seu Irgumento a Antonino Pio por volta de 140. N o entanto, o escrito mais famoso de rodos é a Apologia de Justino Mártir, um filósofo cristáo que aparentemente dirigiu
-na escola em Roma e escreveu em meados do segundo século. Um discipulo de
Justirio, Taciano (quem também liarmonizou os quatro evangelhos no seu famoso
Diatessauon) escreveu um Discz~rsouos G~egos,que talvez seja menos uma defesa d o cris~ianismod o que um ataque frontai à religião e cultura pagás. Também para serem classificados nesse grupo de escritores esráo Melito de Sardes, o qual escreveu entre
169 e 180; Acenágoras, de quem nada C sabido excero sua autoria da Súplicapelos Cristdos (ca. 177);e o bispo Teófilo de Antioquia, quem escreveu a longa apologia, Pma Autolico. Náo há evidência de que qualquer dessas obras tenha influenciado amplamente a opiniáo pagã (embora uma delas, a Apologi~zdc Justino, evenmalmente tenha suscitado um contra-ataque pagáo, na Palavm %rdadeira do filbsofo Celso) ou que elas tenham sido lidas pelos imperadores aos quais elas tecnicamente foram enderepdas. Elas foram, entretanro, valorizadas nos círculos cristáos, porque ofercceram as primeiras explica~óesarrazoadas das convicções da igreja. Seus autores eram homens de alguma cultura literária e filosófica, que se esforçaram por falar a linguagem das classes instruídas. Ao mesmo cempo, suas obras mostram que eles estavam familiarizados náo apenas com o conteúdo da catequcse e pregaçáo cristá tradicional, mas também com algumas das principais idéias e temas da apologética judeo-helenística anterior, na qual elcs lavraram para seus próprios propósitos.
O mais proeminente deles, Justino Mártir, nasceu na colônia romana de Flavia Neapolis perto do lugar da antiga SiquEm. O relato de sua vida c conversáo, que é fornecido nos capítulos de abertura de seu Diálogo com Flfo, oaJudeu indica que eie foi um estudante de filosofia que pertencia à tradicáo platônica. O ensino dessa escola, relata Justino, "fori~eceuasas a minha mente",' e ele "esperava em seguida considerar Deus, pois este é o objetivo da filosofia de PLaráo."? Justino continua relatando, porém, quc em extensa conversaçáo com "um certo a n ~ i á o "ele , ~ foi persuadido de que certas convicçóes da posicáo platônica eram questionáveis. Acima de tudo, ele aprendeu que o verdadeiro conhecimento de Deus somente poderia advir por revelação e que tal revelaçáo havia sido entregue por meio dos profetas, "os quais falaram pelo Espírito divino."* Estes profetas "deram glória a Deus o Criador e Pai do universo e anunciaram seu Filho, o Cristo a quem ele e n ~ i o u . Assim, "~ Justino foi I Di~ilo~ 2.6. o qhid. iU ~ d l o 3.1. s llid.. 7.1. i Ibid., 7.3.
~ r ~ l o Ia o
Oii INICIO A CRISE CN6SIICA
73
ionvelicido de que o objetivo da busca filosófica somente poderia ser alcançado por meio da revelaçáo por Deus de si mesmo em seu Filho e que a verdade dessa revelacá0 fora evidenciada c garantida pelo testemunho inspirado dos profetas hebreus. Podia ser verdade que "a função da filosofia é inquirir do D i v i n o " ; h a s quem quer que deseje "vir a estar com Deus em um estado de inalienabilidade [en apatheiailntem que conhecer Deus conforme ele é revelado em Cristo. O crisrianismo, entáo, para Jusrino, era a mais antiga, mais verdadeira e mais divina das fiiosofias porque iira a sabedoria revelada pelo próprio Deus, primeiramente por meio dos profetas, e depois em seu próprio Filho.
A Apologia de Justino foi escrita depois que ele fixou residência em Roma, por mlta de i53 d.C. E I ~se inicia arguiildo a injustiça e irracionalidade de punir os fiéis simplesmente por causa do nome "cristáo" e náo por atos criminosos comprovados. .!.demais, ela insiste em que os cristãos náo são culpados das acusações comumer-ire atribuidas a eles. Eles nâo sáo ateístas, posto que cultuam o verdadeiro Deus ao invés dos dcmbnios que se passam por deuses. Eles certamente náo sáo conspiradores nem anarquistas, pois o "reino" que eles buscam é de Deus e náo um reino humano rival do reino de César. Eles não são criminosos, pelo contrário, inculcam uma moralidade csrrita, de acordo com o ensino de Jesus e buscam promover a paz e a decência. Tendo chegado a esses pontos, Justino entáo prossegue para estabelecer a superioridade da crença cristã sobre a religiáo pagá e para expor siias credenciais, denioristran-
do como os profetas hebreus haviam predito a dispensaçáo cristã. No centro da apologética de Justino encontra-se seu uso da idéia do Logos divino. Esta palavra ern grego significa náo apenas "palavra" ou "discurso",
irias
também
-razáci." Como Juscino a utiliza, eia pode obviamerite se referir à razáo humana -
aquele talento por meio do qual a pessoa humana entende a realidade e exercita sua liberdade de escolha. Primariamente, contudo, o Logos para ele é "o primogênito de Deus",' "o Espírito e o Poder de Deus",' o qual Justino parece idenrificar com a .Uma-Mundo criadora do diálogo Z m e u de Platáo." Esse Logos tem estado ativo
Ibid., 1.3. 2 .-ipo/oDi(z 1.2.A Apoiogín dc Justino normalmt.nte 6 citada como sciido duas obras, embora a "szgundal' .LIA l i a v c r d ~ d e um aptndice da priniçira. . .4poloRin 46.2. Isid., 33.6. I'sid., 60.1.
74
HISIORIA DA IGREJA CRISTA
por toda a história humana como o revelador de Deus, e todas as pessoas humanas partilham do, ou participam no, LogoslFilho dc Deus à medida que são racionais. Consequentemente, Justino pode dizer: "Aqueles que viveram pela assistência d o lagos sáo cristáos, mesmo que tenham sido julgados ateístas
- tais como Sócrates e ...e
Heráclito e seus sernelhanses entre os gregos, e, entre os bárbaros, Abraáo
Elias."" O que a f6 criscá distintivamente conhece e declara, entretanto, é que esse Logos divino "nasceu como ser humano de uma virgem, e recebeu o nome de Jesus, e foi crucificado e morreu e ressuscitou e subiu ao céu."'Vortanto, não é correto dizer que o Cristo veio a existir somente "cento e cinqüenta anos atrás." Ele tem sido sempre o companheiro da humanidade, mas nem sempre esteve presente na maneira em que os cristãos o conhecem - como uma pessoa humana denominada Jesus. De um ponto de vista, portanto, a doutrina do Logos, de Justino, nada mais é do que a reiteraçáo de temas já encontrados na tradiçáo cristá - e judeo-helenística. Ela atua na cristologia de sabedoria que nós já observamos em escritores cristáos anteriores, e sem dúvida, também, direta ou indiretamente, nas especulaçóes de um pensador como o judeu Fílon (ver I:2). Mais aiém, em seu pano de fundo, encontramos o primirivo uso estóico de lagos para denotar a divindade imaiiente no cosmo. Justino, contudo, assimilou estas idéias na cosmovisáo do Placonismo Médio, e assim percebe o Logos como uma figura mediadora, p a d o "antes de todas as criaturaç"'"ara ser o agente
do n á ~ - ~ e r a deonáo-norninável Deus na criaçáo e na revelaçáo. Esta
linha de pensamenro, partilhada por todos os apologistas, iria ocasionar muita controvérsia e dificuldade na teologia cristá posterjor. Por outro lado, o próprio inreressc de Justino na doutrina do Logos não se concentrou priorirariamente ao redor de sua relevâilcia para as doutrinas de Deus e da criação. Mais importante para sua tarefa apologética era a capacidade da doutrina do Logos de dar expressão às reivindicações universais da fé cristã. Ela o capacitou para dizer que averdade que os cristáos conheceram em Jesus, o Cristo, era uma verdade para rodos os seres humanos, e uma verdade da qual todas as tradiçóes históricas testemunhavam, porque Jesus é a presença humana concreta da Razáo de Deus, universal e criadora, o verdadeiro princípio da própria ordem-mundo. A teologia de Juscino, portanto, estabelece a base para um diálogo aberto entre a fé cristá e a tradição da filosofia religiosa gentílica, e neste sentido assinala os prirnórdios de uma teologia "ciencífica." Ibid., 46.3. 'qbid., 46.5. l 3 I Apoíogia 6 1.1. "
Periodo I1 Da crise gnóstica a Constnntino
Capitulo 1
Gnosticismo
Llurante o tempo de vida de Justino Msrrir (ou seja, o período aproximadamente entre 130 c 160 d.C.) einergiu na comunidade cristá um debate cujas raizes se encontram no primeiro século. Nessa controvérsia, de um lado estavam os grupos que vieram a ser chamados "gnósticos", e do outro lado os defensores daquilo que pode ser considerado como uma interpretação de bom senso do ensino tradicional das igrejas. O debate levantou quesróes difíceis e fundamentais, náo meramente sobre problemas particulares - por exemplo, a natureza do mal, o significado de "Deus", e o caráter da redengáo - mas também sobre a maneira na qual a linguagem da catequese
da igreja deveria ser interpretada. Como resultado, ele provocou desenvolvimentos significativos na amplitude, profiindidade c precisão da tradição teológica cristã, como também nas instiruicóes pelas quais aquela tradicáo era lapidada e rransmitida. Apesar da importância histórica desse debate, não tem sido fácil para os estudiosos situarem o fenômeno do gnoscicismo sob um foco claro ou mesmo decidirem sobre uma maneira uniforme de caracterizá-lo ou defini-lo. Uma razão para essa falta
de clareza é sem dúvida o fato de que o gnosticisn~orepreselita menos um grupo específico de ensinos do que um sentimento religioso de rejeiçáo do mundo conju-
gado com o que poderia ser melhor denominado como um hábito transcendental da mente. Seu ambiente cuitural e social parece ter sido o mundo urbano no qual símbolos e textos religiosos judaicos estavam sendo arrastados em sincretismo com noqóes e temas filosóficos popularizados, retirados da religiáo helenística. Uma vez que
foi precisamente esse mundo que o cristianismo penetrou quando o evangelho foi conduzido "aos gentios", náo é surpresa que muito do escrito e ensino gnósrico com
HISTbRIA OA IGREJA CRISIÃ
76
o qual estamos fanliliarizados esteja parcial ou totalmente cristianizado. Náo obstante, é necesssrio para o historiador distinguir, em benefício da clareza, entre o fenômeno
geral do gnosticis~~lo em si mesmo e as formas definidas e pai-titulares que ele assumiu através da associaçáo com o cristianismo. Outra razáo para essa falta de clareza encontra-se no caráter das fontes das quais os historiadores tiveram até recentemente que extrair seu conheci~nentodo gnosticismo. É verdade que os estudiosos modernos tiveram acesso a poucas obras completas de autoria gnóstica. A Curta a Fhm, do çristáo gnóstico Ptoloineu, foi preservada em seu original grego pelo heresióiogo Epifânio, do quarto século. Dcscobertas do século dezoito no deserto egípcio forneceram textos importantes no
vernáculo egípcio, o copta. Entre estes estavam o Pistis-Sophiu, um diálogo do Jesus ressrirreto com seus discípulos; duas obras contidas no assini chamado Códice de Bruce, uma sem tírulo e a outra intitulada O Misté~iodo Grdnde Logos; e o extremamente importante Ensino Sec~etodt j o h , publicado pela primeira vez em 1955. Não obstarite, as fontes principais para o conhecimento do gnosticismo têm sido as obras de seus oponentes e criticos cristáos do final do segundo e início do terceiro séculos: escritores como Ireneu de Liâo, Clemente de Alexandria, Orígenes, Tertuliano e Hipólito de Roma. D e tais autores possuímos resumos do ensino gnóstico e, com freqüência, citaçóes extraídas dos escritos gnósticos. (Assim, Orígenes nos fornece exrensas citações do comentário mais antigo conhecido do quarto evdngell~o,da pena do gnóstico Hcrácleon.) Mesmo quando há boa razáo para pensar, entretanto, que as fontes que esses escritores utilizam são confiáveis e que seus relatos são acurados (que normalmente é o caso, mas nem sempre), seu testemunho é de valor limitado. Por um lado, suas teorias sobre as origens e fontes do gnosticismo (que eles gostavam de levar, por meio de uma sucessão de mestres ar6 Simão, o Mágico, conforme retrarado na narrativa de Atos 89-24) foram na maioria dos casos produzidas para servir às necessidades de suas polêmicas. Por outro lado, sua compreensáo e manejo das idéias gnósticas podem ser preconceituosos c antipáticos mesmo quando seus relatos sáo fiéis. Foi, portanto, um evento de grande importância para o mundo dos estudiosos quando, em 1945, uma pequena biblioteca de treze códices foi descoberta em Nag Hammadi, no Egito, em um local náo muito distanre de um mosteiro do quarto século, em Chenoboskion. Esses códices contêm uns quarenta e oito pequenos tratados em tradução copta, dos quais a grande maioria sáo obras gnósticas. Eles agora,
paiooo 11
DA CRISE GNÓSIICA A CONSTANTIND
71
depois de muitos anos de controvtrsia e iiegocia~áo,foram editados e traduzidos, e presentemente estáo scndo estudados sisten~aticamenre.'E dessa descoberta que cemos obras como O Evangelho da Erdddt, O Eva~ige1hode Tom&,o assim cliairiado
Eztado 7Fipartido e o Tratndo Sobre í~ Ressu~~eiçúo, frequentemente referido como a Eplstola a Regino - todas esras obras iluminam o caráter de um gnosticismo cristão. A biblioteca também possui, todavia, obras de proveniência gnóstica que mostram pouco ou nenhum interesse no cristianismo ou familiaridade com ele. De qualquer forma, duas coisas têm ficado claras a partir de um estudo dos materiais gnósticos. A primeira é que o gnosticismo náo foi de forma alguma um fenômeno uniforme. 'Ianto os relatos dos primeiros críticos cristáos como os materiais da própria coleqáo de Nag Hammadi, indicam que não havia um único corpo de ensinamentos comum a [odos os escritos ou todos escritores pertencentes a essa corrente na religiáo antiga. Além disso, contudo, c igualmente importante para uma compreensão do cristianismo do segundo século, agora estrí claro que nem todo gnosticismo era cristão e que o niovimeilto ou tendência religiosa que ele representa, existiu independentemente da igreja, ainda que ele náo preceda em muito o cristianismo. Do ponto de vista dos escritores e pensadores cristáos do segundo skculo, tal~lezo gnosticismo frequentemente tcnha parecido uma hai~esis("seita" ou "heresia") procriada dentro da igreja. Mas se isso aconteceu, a explicaç5o parece estar no fato que, sem dúvida desde Lima data bem antiga, houve pessoas de um hábito gnóstico de mente que se cornaram convertidas ao cristianismo, ou foram atraídas pelo ensino deste, e que interpretaram o significado dessa nova f6, de uma maneira consoante com suas crenças habituais. Mas quais eram as características salientes dessa corrente ou movimento na religião antiga? Um estudante abordando as fontes pela primeira vez, inevitavelmente ficará impressionado logo de cara
elo próprio ânimo e estilo dos escriros gnósticos.
Primeiro, o que eles têm a oferecer é sempre um ensino secreto, revelado a poucos e misterioso em sua própria subst4ncia. Nem rodo mundo é capaz d o conhecimento
(gnôsis) que o gnóstico possui, e uma (embora náo a única) razáo para isso é que o conhecimenro se refere a coisas que náo sáo aparentes - verdades sobre uma realidade primordial que não estáo apenas além do pensamento e da experiência ordinários
Para umavcrsáo itiglesa, vtr J .
:
M. Robinson
r r al.,
I2e ;Va~HarnmodiLLibraryiz Enzlijh (Sin Francisco,
78
HISTÓRIR DA IGREJA GRISTÃ
mas positivamente sáo estranhas a eles. Há, portanto, uma qualidade deliberadamente semelhante a enigma, acerca de muito do discurso gnóstico, um deleite no obscuro, no complexo e no mistificador. Novamente, g a n d e parte do ensino gnóstico (na realidade, a própria essência dele) está expresso mitologicamente. Isto é, a gndsis que vem como uma revelagáo aqueles "no conhecimento" toma a forma de uma estória
(muthos) sobre as realidades transcendentes, primordiais. Todavia o mito gnóstico é distinto em qualidade. Os atores nele não são aqueles deuses e deusas da t r a d i ~ á o primitiva os quais a filosofia grega estava empenhada em demit~lo~izar. Bastante
frequentemente eles são noçóes filosóficas ou teoIógicas abstratas, ou símbolos religiosos genéricos, que são utilizados não como símbolos mas como nomes "remitologi~ados",como eram, e feitos sujeitos de uma narrativa. Finalmente, como já indicamos, ninguém que olha para essas fontes pode passar muito tempo sem perceber o caráter sincrético do pensamento gnóstico. Cerros elementos nas Escrituras judaicas
- a estória da cria~áo,por exemplo - figuram amplamente nos escritos
gnósticos. Mas também figuram temas da mitologia pagá, da astrologia popular c da magia, para náo mencionar idéias filosóficas com paralelos no Platonisino Médio, Nco-Piragorismo e Judaísmo Helenístico. Há inevitavelmente, portanto, algo de caráter fantasmagórico em rorno da literatura gilóstica. Isso não quer dizer, porém, que sua mensagem seja trivial e apesar da variedade de sistemas e mitos gnósricos, eles parecem ter certos temas gerais e preocupaçóes em comum. Se tivéssemos que resumir o máximo possível o conteúdo da
p ô s k que C revelada aos eleitos, diríamos que é a certeza de que eles sáo "pessoas deslocadas" na presente realidade. Eles sáo seres-espíritos oriundos do mundo secreto de Luz e Conhecimento, perdidos e cruelmente aprisionados no cosmo visível, marerial, das trevas e da ignorância, contudo destinados a retornar inevitavelmente ao seu verdadeiro lar. Assim, o gnóstico cristáo Teódoto pode explicar que no batismo "Náo é a lavagem apenas que liberta, mas também a gnôsis que diz quem nós éramos, o que nos tornamos, em que situacáo nós fomos atirados, em que direção estamos nos dirigindo, do quc temos sido redimidos, o que vindo-a-ser é, e o que vindo-a-ser-de novo
Sáo estas questões - sobre a iden-
tidade, queda e redençáo dos seres-espíritos - que os mitos gnósticos buscam responder. Clemcntc de Alexandria, Excertos de Teo'dom 78.2.
P ~ E ~ U BIIO
DA CRISE 6N#SI16A II COltUNTINO
79
O esquema básico desses mitos, entáo, parece ser a idéia de uma duaiidade ou reproduçáo de mundos. Em alguns relatos, essa divisáo entre dois domínios - um de luz e outro de trevas - é concebida como original e primordial. Em tais mitos, o deslocamento dos seres-espíritos, que são gnósticos em potencial, é retratado como o resultado de um infeliz encontro e mistura das duas ordens. Ein outros relatas - e é esse segundo tipo de miro que prevaleceu entre os gnósticos cristãos do segundo século das escolas dominantes de Basílides e Valenrino - o mundo-trevas, o "cosmo", náo é original mas secundário e derivado. Ele náo existia "no princípio." Ao invés, ele foi produzido como resulrado de uma queda ou erro trágico., um distúrbio no reino superior. De acordo com uma versão comum desse riiito, o membro mais baixo e mais inferior do mundo-luz, o "Eon" chamado Sofia ou Sabedoria, caiu em erro e paixáo por meio de seu desejo de conhecer o Pai i n c ~ ~ n o s c í v eSua l.
redeqáo e restauração à ordem, entretanto, impôs o exílio desse erro e paixáo do mundo superior; e como resulrado dessa expulsão d o mal, iniciou-se um processo pelo qual um cosmo inferior - um cosmo no qual os elementosespíritos exilados estáo aprisionados
- veio a existir.
Portanto, vieram a existir dois mundos paralelos: o mundo original, rnundo divino de coisa-espírito, que 6 denominado "a Plenitude" (plêroma),
e o mundo inferior, mundo material, que algumas vezes C denominado "o \?azion (Kenbma). É característica d o pensamento gnóstico crisráo enfztizar o paralelismo entre estas duas ordens. Tudo o que é verdadeiro e importanre acontece na Pfenitude, mas é imitado de uma maneira transposta no nível inferior do cosmo visivel. Assim, por exemplo, o dmrna da redencáo, conforme os cristãos o entendem, é uma sombra ou imagem do verdadeiro drama redentor que acontece no mundo-espírito. Entreranro, essc pardelismo é desenvolvido de uma maneira calculada para sublinhar não a união mas a separação das duas ordens. Primeiro, a "coisa" da qual eles são constituídos é diferente, e a diferenga atinge a irreconciliabilidade. O mundo-luz é feito de espírito (pneuma),ao passo q u e o mundo inferior 6 feito de alina @suchê) e matéria (hulê). Da mesma forma, os dois mundos são comandados por duas deidades diferentes. Há uma imagem-Deus q u e é o "Modelador" (Deiiiiurgo) do costi~oniaterial. Este, na realidade, C o -.Senhorn e "Deus" do qual as Escrituras judaicas falam. Apesar, entreranto, de 5ua rejvindica~áorola de ser o único Deus, ele náo é nem membro do mundo:spírito, mas é constituído de simples coisa-alma e é ignorante da verda-
deira fonte e fundainento das coisas. "O Senhor Deus", resumindo, é uma cópia ( u m tipo de imitaçáo de segunda classe) da M e n t e d a qual o m u n d o espírito e seus habitantes emanam. Portanto a situaçáo dos gnósticos é clara. Em seu eu interior, verdadeiro, eles são espíritos e sua morada apropriada está na Plenitude. Perdidos como estáo, entretanto, em um cosmo estranho, eles estáo condenados h ignorância dc sua verdadeira nacureza e destino.
G somente através da graça de uma revelaFáo que eles se tornam
conscientes de que sáo "formados" para a restauracão a seu estado apropriado. Urna vez que recebem essa "formaqáo em conhecimento", contudo, eles compreendem que sáo os eleitos - seres de uma ordem superior mesmo ao Deus-Criador das Escrituras judaicas e portanto libertos dos embaraços da ordem-mundo opressiva que ele tenta gox7ernar. Inevitavelmente, entáo, sua situaçáo como recipientes de gn6sis os coloca à parte das outras pessoas. Os gnósticos cristjos d o segundo século na realidade vieram a reconhecer três classes de pessoas, que correspondiam aos três tipos de "coisa" cósmica. Havia aqueles (os pagãos, talvez) que esIavam desesperai-ic;osamente enredados no mundo de carne ou matéria c portanto destinados em últinia instância à destruiqáo. Depois havia aqueies (aparentemente os fiéis cristáos corniins) que per-
tenciam propriamente ao Deus das Escrituras judaicas por que viviam, como ele, no nível da alma. Esses "psíquicos" estavam destinados náo para a destruiçáo mas para um tipo de salva~áode segunda classe, juncamente com o Deus a quem eles serviam. Finalmente, é claro, havia os "espirituaisn, os próprios gnósticos, com seu destino na Plenitude do mundo divino.
E desnecessário dizer, esse sentimento de constituir
uma elite çuja salvaçáo escava assegurada e cujo status os situava além da preocupaçáo com os simples exteriores da vida no cosmo, fazia dos gnósticos próximos
perturbadores na vida das igrejas. Eles frequenteiiiente professavam indiferença à vida de "f6 e obras" e a necessidade de testemunho pelo martírio. Eles tinham, ou pareciam ter, pouco compromisso coni a vida comunitária, institucional da igreja. Eles aparentemente estavam, pelo menos na impressáo que passavam para os outros, literalmente bastante acima de tudo isso.
A essa descriqáo do significado de redençáo c dos destinos divergentes da raça humana correspondia um ensino sobre o próprio Redentor. O s gnhsticos cristáos eram distintos dos outros pelo fato de que eles identificavam o portador da revelação salvífica com o Crisro ou Jesus. Devido a sua doutrina de dois mundos e dois níveis
de salvação, entretanto, a tendência natural dos gnósticos cristáos era imaginar dois
P E ~ O D ~11I
OA CRISE GNOSTIEA A CONSTANTINO
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Cristos paralelos. Um deles era meramente um Cristo "psíquico", o Messias prome[ido pelo Deus-Criador da fé judaica. Era sua a obra e mensagem de que os Eiéis comuns se apropriavam. O verdadeiro Salvador, entretanto, veio da PIenirude e desceu sobre seu correlato psiquico no momento do batismo deste último. Nesta versáo do tema da encarnacáo, as obras e
do Cristo "ordinário" eram vistas, de
acordo com o princípio do paralelismo de mundos, como insinuacóes da revelaçáo superior exibidas pela Palavra da Ple~iirude;e essa revelação mais nobre apenas os gnósticos podiam çompreerider. Entretanto, o conhecimento salvífico náo poderia tocar a carne, a ordem material, de maneira nenhuma. Conseqiientemence, o pensamenro gnóstico estava propenso ao docetismo: isto é, à convicçáo de que o Salvador náo operou no domínio da carne de forma alguma mas ceve apenas a aparência de um corpo. Talvez seja muito fácil para os esrudantes modernos do cristianisn~oantigo mininiizarem a seriedade com a qual a mensagem gnóstica pretendia declarar, e frequentemente foi vista deciarando, o encargo da fé da igreja. Scmelhantemente, é muito fácil subestimar o nível ao qual certas idéias gnósricas foram modificadas ou qualificadas como resultado de sua cristianizagáo. O que sabemos dos grandes mestres gnósticos crist5os do início do segundo século indica que eles eram intérpretes sinceros e significativos da tradição e literatura criscá priniiriva. Com certeza, eles npelavain para uma tradicáo secrcta especial deles próprios, uma "tradicáo apostólica, a qual recebemos por meio de uma sucessáo."' Eles apontavam como início dessa tradi~áoas revelagóes dadas pelo Cristo ressurreto aos seus discípuIos depois da ressurreição, e muito da literatura gnóstica é dedicada a rais revelaçóes. Ao mesmo tempo, entretanto, está claro q u e os seguidores d o pensador gnóstico Valentino
(fl.
130-160) encontraram muito de sua inspiraçáo nas cartas de Paulo. A distincáo que eles faziam encre "espiritual", "psíquico" e "carnal", por exemplo, quando aplicada tanto as pessoas humanas como aos níveis de ser no universo, deve muito i linguagem paulina; e Teódoto, discípulo de Valentino, apela para Colossenses para justificar sua maneira de falar sobre "a Plenitude."' Foi observado acima que Herácleon, que foi outro seguidor de Valentino, escreveu o primeiro comentário conhecido do evangelho de Joáo, e Irelieu de Liáo foriiece evidência abundante de que os mestres
81ST6RIA DA IGREJA CRISTA
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valentinianos eram intérpretes alegóricos diligentes dos evangelhos sinóticos. Os gnósticos cristáos também náo negligenciaram as Escrituras do Antigo Pacto. Ptolomeu, também seguidor de Vdentino, dedica muito de sua Carta a Flora a uma análise complexa e discernidora das "fontes" da Lei judaica, sobre a qual ele entáo se esmera para indicar o mistério dos três níveis de ser - espírito, alma ("o Meio") e matéria. Contudo, apesar desse apelo gnóstico as fontes da crença cristã, parece que muitos líderes das igrejas (incluindo alguns, como Clemenze de Alexandria, que gostavam de chamar a si mesmos gnósticos) viram no gnosticismo cristáo uma distorçáo sistemática do significado da tradi~ão-ensino.Eles ficaram chocados e ultrajados com a sugestáo de que o Deus último náo é idêntico com o Criador deste cosmo e furiosos com a aiegaçáo de que na rejeiçáo à revelaçáo gnósrica eles provavam ser "psíquicos" de segunda classe. Na crítica gnóstica das Escrituras judaicas, eles percebiam uma negação da continuidade da auto-revelação de Deus na história, e na in~erpretaçáognóstica dos evangelhos e das cartas de Paulo eles enxergavam uma fuga deliberada do sentido pleno das palavras. Eles deploraram a tendência gnbstica de reduplicar o Cristo e de negar ou qualificar a afrrmaçáo de que ele veio "na carne." Eles quesrionaram a reivindicação dos gnósticos de, como "espirituais", serem superiores ao Deus-Criador e seus mandamentos, e frequentemente suspeitaram de que
cal reivindicacão nada mais era do que uma maneira de dissimular um gosto pela libertinagem. Acima de tudo, eles repudiaram a sugestáo gnóstica que bem e mal são substâncias ou tipos de existência: que "espírito" é aut.omaticamentc bem e "carne", como tai, mal e irredimível. Para eles, tal perspectiva exalava o cheiro de fatalismo ou dccerminismo; eles preferiram insistir em que o mal náo é "coisa" ori tipo de coisa, mas uma forma de escolha. Resumindo, eles ficaram srstematicamente ofendidos pelas implicaçóes desenvolvidas do dogma gnóstico dos dois mundos, e essa questáo [ornou-se campo de bataiha.
Capítulo 2
Marciáo Nas menees daqueles contrários ao casamento entre o gnosticismo e a fé cristá, a figura do herético Marciáo representava uma ameaça igual e bem similar Aquela proposta pelos seguidores de Rasílides e Valentino. Marciáo, entreranto, apesar da presença em seu ensino de idéias gnósricas, náo compartilhava, pelo menos náo para corneCar com elas, das pressuposicóes e predisposiçóes bzisicas que modelavam a cosmovisáo gnóstica, e o movimento que ele iniciou e organizou na realidade assutniu uma forma radicalmente diferente do gnosticismo. Nascido em Sinope, na Ásia Menor, onde era um abasrado armador cristão, Marciáo, já meio como um centro de tempestades nas igrejas de sua cerra nativa, foi para Roma por volta de 139. Lá ele se uniu à congregaçáo roinana, dando-lhe uma contribui~áosubstancial de duzentos mil sestércios' para sua obra de caridade, e comecou a ensinar sua própria compreensáo do evangelho, que estava baseada em uina interpretaçáo das cartas de Paulo. Suas perspectivas criaram suficiente agitaqáo, escândalo e oposição para causarem sua cxcomunháo e a d e ~ r o l u ~ ádeo seu dinheiro em 144. A resposta de Marciáo a esse repúdio foi reunir seus seguidores em uma
igreja separada, a qual aparentemente foi cuidadosamente organizada. Para esse corpo ele forneceu um cânone oficial de livros sagrados: dez cartas de Paulo (ele náo conhecia, ou decidiu náo incluir, as Epístolas Pastorais) e uma forma do evangelho
de Lucas. A comunidade que ele fundou se disseminou rápida e amplamente e subsistiu como rival das igrejas de persuasão ortodoxa até o quinto século. Ela se tornou especialmente forte na Síria.
O problema com o qual o ensino de Marciáo começou foi o da relacáo entre o evangelho cristáo e o judaísmo e o ensino religioso das Escrituras judaicas. Nas cartas de Paulo, as quais ele parece rer lido com uma mente mais estimulante do que muitos de seus contemporâneos, ele aprendeu que a dispensaçáo cristã estava escabelecida
Um sesttrcio de prata valia um quarto de u m denário, o qual corrcspondia a. uma diária de um irabalhador da vinha. Devido às flutua~óesdecorrcnces da inflat;áo, algumas vezes foram emitidos sestircios de cobre. Seu peso, entretanto, manteve-se rçlaci\~amentcestdvel, o u scja, 25,4 gramas. A oferta de Marciáo correspondeu, rtiráo, a 5080 quilos de prata. [N.T.] A
R4
HISTURIA DA IGREJA ERISTÁ
na revelaçáo em Cristo, de um Deus de graça e amor. Elc também deduziu de sua leitura de Paulo que entre esse evangelho de um Deus de amor e a religiáo-Lei do judaísmo havia oposicáo e inconsistência. Essa convicqáo era, na perspectiva de Marciáo, fortalecida e confirmada pelo conteúdo das Escrituras judaicas. Estas ele lia de uma maneira nova para os círculos cristãos. Ao invés de tornar a Lei e os Profetas como símbolos e prenunciadores da dispensaçáo cristã, ele insistia em uma leitura literal. Sua conclusáo desse exercício foi que o Deus do pacto mosaico e o Deus de Jesus e de Paulo eram duas coisas bastante diferentes. O último era um Deus de amoi-
e de misericórdia. O outro era um Deus de justiça severa
-
arbitrário, incoerente,
mesmo tirânico. Ele expôs esse contraste sistematicamente em sua única obra escrita, da qual apenas sobreviveram fragmentos. IntituIada Antitesrs, ela desenvolvia a compreensáo de Marciáo da fk cristá ao exibir o que ele percebia como incoerências entre as Escrituras judaicas e a crença cristá.
É no desenvolvimento e articuiaçáo de Marciáo desse conceito básico que certos ternas gnósticos se tornam aparentes eni seu pensamento. Ele era táo insistente sobre a absoluta novidade da dispensacão cristá que se recusava a ver qualquer antecipação dela na liistória judaica (ou em qualquer outra). O Deus e Pai de Jesus Cristo era desconhecido antes da manifestaqáo de Jesus. Por seu turno, o Deus das Escrituras judaicas deve ser vis10 como uma segunda deidade, inferior, íiistinta e oposta ao verdadeiro Deus. Desse modo - e talvez sob a influência do mestre gnóstico Cerdo, cm Roma - Marciáo adotou um dualismo estrito. O cosmo visível, como criaçáo do Deus de Israel, e, além do mais uma criacão da matéria, era uma obra má destinada à destruiçáo. O Cristo, o qual veio como o agente do Deus de amor desconhecido
para resgatar alinas ("uma vez que o corpo, oriundo da terra, não pode possivelmente partilhar da salvaqáo"'), simplesmente apareceu na Galiléia, náo tendo passado pelo nascimento humano e não possuindo corpo humano. Consoante com esta perspectiva da macerialidade e do corpo, os fiéis marcionitas tinham que se absrcr de qualquer intercurso sexual, mesmo no casamento. O rigorismo de Marciáo também está demonstrado na exigência que seus seguidores evitassem comer carne.
O ensino de Marciáo fez mais do que confrontar as igrejas com a ameaça de uma instituiçáo rival. Ele também as forçou a considerar a questão da continuidade d o
v~aioou11
DA CRISE GNÓSIICA L CONSTANTINO
85
cristianismo com sua heranta judaica e, como urn aspeceo dessa quescão, o problema da unidade história-salvação, sujeiea a Deus. Ademais, o estabelecimento por Marçiáo 1
de
de um cânone de escritos cristãos autoritativos (dos quais ele cuidadosamente cxpur-
i
lia
gou todas as passagens que pareciam ernpresrar auroridade às Escrituras judaicas)
-.
:,as
indubizavclmente forneceu um modelo e um esrímulo que indicaram o caminho
:ira
para a adoçáo posterior e gradual por parte da igreja de seu próprio cânone de vinte
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de
e sete livros.
xor :.:e,
Capitulo 3
Montanismo O ensino de Marciáo c o debate contemporâneo sobre a fusão da fé crisrá com o gnosticismo combinarain para criar nas igrejas uma crise de auto-compreensáo. Essa crise ficou, no mínimo, mais aguda devido a um terceiro movimento que surgiu e se espalhou durante as últimas décadas do segundo século. Chamada por scus seguidores "Nova Profecia", esse movimento 6 conhecido pela hisrória como "Monta~iismo", segundo seu fundador, Monrano, um convertido ao cristianismo que viveu na região da Ásia Menor, onde as fronteiras das províncias romanas da Frigia e da Mísia se encontram. Por volta do ano 170, ele comepii a proclamar a seus colegas fiéis que ele era um profeta - que, de fato, ele era o porta-voz daquele Espírito que o Senhor havia prometido à igreja como aquele que iria "ensinar. . . todas as coisas" e "conduzir vocês a toda verdade."' Logo duas mulheres, Priscila e Maximila, se juntaram a Montano; elas partilhavam sua inspiracáo e, como cIe, entregavam oráculos pressagiosos e ocasionalmente obscuros em um estado de êxtase, falando náo em suas próprias pessoas mas na do próprio Espírito. Eles logo adquiriram um substancial número de seguidores locais para si mesmos e para sua mensagem, e quando seu movimento se espalhou despertou a oposição quase instantaneamente dos líderes das comunidades cristãs, os quais pronramente perceberam esse movimenro como uma ameaça para sua náo bem segura autoridade oficial, para a vida ordenada das igrejas ! Joáo
I4:2(;;16: 13.
e para a tradição de ensino estabelecida, à qual a Nova Profecia dizia na realidade substiruir.
O problema não era que Moncano fosse um profeta, pois a profecia existia na igreja desde os seus primórdios, e não há razáo para pensar que ela havia se extinguido no Ultimo terço do segundo século. O problema era que essa era uma nova profecia. Ela não era familiar em sua forma (Montano introduziu as palavras "Observem que um homem é como uma lira, e eu vôo sobre ela como um
na qual o
"eu" somente pode se referir ao ~ s ~ í r i t oEla ) . também ~ era nova na substância daqui-
10 que cotiduzia. Montano e seus companheiros representavam um reavivamento do espírito apocalíptico e anunciavam o próximo fim do mundo. O Senhor estava na iminência de retornar, e a nova Jerusalém seria estabelecida nas vizinhanqas da cidade de Pepuza, na Frígia. Em um espírito consoante com essa perspectiva apocalíptica, Montano e seus seguidores viram a si mesmos em uma re1aqáo de completa alienac;áo do mundo. Sua chamada era o martírio, e seu dever era esperá-lo e jamais fugir da persegui~áo.Como uma preparaqáo para o final de todas as coisas, eles purificavam a si mesmos e rompiam seus laqos com a sociedade. 0 s frígios, como eles eram frequentemenre chamados, jejuavam mais tempo e mais elaboradamente do que os outros cristáos e desencorajavarn - se é que náo proibiram, como Marciáo - o casamento. Priscila e Maximila dentro desse espírito deixaram seus maridos.
O movimento se difundiu com grande rapidez, ainda que a última das profetisas iniciais, Maximila, morta em 179, fosse lembrada pelas palavras: "Depois de mim não haverá mais profetisa, mas o fim."3 Ele se espalhou pela Ásia Menor, alcan~oua Síria e Antioquia, e foi conhecido em Roma e no Ocidente por volta do final de uma década. O rnoncanismo ceve como seu convertido mais ilustre o escritor cristáo norte-africano Tertuliano, que foi acraído pelo montanismo náo canto por causa do apocalipticismo deste mas devido à seriedade e rigor moral que o mesmo exigia dos fiéis cristáos. ParaTertuliano, o montanismo representava a igreja pura, náo corrompida pelo compromisso com o mundo e dotada com a presença viva e a autoridade do Espírito. Os bispos da Ásia Menor realizaram um ou mais sínodos (os primeiros sínodos de que temos qualquer registro) para lidar com o
frígio" e no
final condenaram a Nova Profecia. N o Ocidente, sua receptividade foi mais Stcvenson, A I\$W E I I S P ~ Zp.W113. , N.T. Plectro era a varinha utilizada para fazer vibrar ' Ibid.
as
cordas da lira.
~tniooo11
DA CRISE 6NÓSTIGA A CONSIANTINO
87
diversificada. Zeferino, bispo de Roma (199-217) de início recebeu o montanismo com tolerância, mas depois, nas palavras de Tertuliano, "fez o Paracleto fugir."4 No norte da África, parece ter havido um movimento interior na igreja, que apenas posteriormenre se separou dos outros cristáos, e subsisriu por lá até o [empo de Agostinho de Hipona.
Capítulo 4
A Igreja Católica Nem o gnosticismo nem o montanismo, por mais atraentes e persuasivos que fossem para a mentalidade religiosa do segundo século, foram abrapdos pela maioria dos cris~áos.O que emergiu, todavia, das controvérsias de meados e final do segundo stculo foi uma igreja que havia feito opcóes e nesse processo havia não apenas definido seu ensino moral e doutrinário mas também - e taIvez aiiida mais importante - reconhecido e estabelecido certas instiíuicóes como os portadores definitivos de sua rradiPo. Em nenhum caso essas instituições eram novidade; o que era novo era a clareza e uniformidade com a qual sua autoridade foi aceita e, ao mesmo tempo, a insistência, ou reconhecimento, que seu significado era incompatível com os ensinos de pessoas como Marciáo ou os gnósticos valentinianos. Em outras palavras, o "catolicismo primitivo" que emergiu como cristianismo normativo desse período de debate, represenra um estágio novo no desenvolvimento da tradi~áocristã uma apropriação da mensagem cristã que era, ao mesmo tempo, uma definicá0 mais
próxima e mais elaborada de seu sentido e implicacóes. Um sinal e forma desse desenvolvimento foi a crescente proeminência e autoridade atribuídas às fórmulas confessionais ou credais. Tais fórmulas haviam sempre figurado na vida da igreja. Algumas vezes elas haviam tomado a forma de resumos de ensino ou pregaçiio - por exemplo, a fórmula tradicional que Paulo cita para relembrar seus converridos coríntios daquilo que ele havia "enrregue" para eles,' ou a referência
' Contra Praxeas, I 1 Corínrios 15:3ss.
resumida de Justino Mártir a "Jesus Cristo, o qual veio ein nossa era, foi crucificado e morreu, ressurgiu, subiu aos céus e reina."2 Em outras circunstâncias, as fórmulas confessionais haviam servido a um propósito polêmico e buscavam especificar mais estreitamente o significado de uma crença tradicional. Um exemplo disso é a fórmula joani~ia"Jesus Cristo veio na carne."We igual senão de maior importância, entretanto, eram as formas de discurso que foram przservadas e [ransmi~idascomo partes padráo da tradição litúrgica. Assim, certos hinos possuíam um caráter confessional," como também a oraçáo eucarística, na qual as obras salvíficus de Deus eram expressas na forma de uma ação de graças. Mais central de todas, contudo, por causa da solenidade cerimonial e psicológica do momento da iniciação, era a contissáo de fé que conscituía a Mrmula do batismo. Nas comunidades do primeiro século, essa confissáo pode ter sido uma afirmação cristológica coIrio "Jesus é Senhor." Por volta da metade do segundo século, entretanto, a confissáo batismal tinha um formato de tríade. Aos candidatos ao batismo eram feitas três questóes quando eles estavam dentro da água, a cada uma das quais eles respondiam "Creio"; e com essas três afirmações e as lavagens que as acompanhavam, os candidatos eram declarados batizados "no nome do I'ai e do Filho e do Espírito Santo."' A confissáo batismal, entáo, era a base da tnembrezia de um indivídiio na comunidade e, consequent.ernence, a expressáo mais fundamental da autocornpreensáo da comunidade. Encontramos urna amostra de tal confissáo batismal i<.
interrogatória" na bem conhecida f6rmula de Hipólito, que reflete a prática da
igreja de Roma nas últimas décadas do segundo século. "Crê em Dcus Pai Tod~-~oderoso?" "Creio." "Crê em Jesus Cristo o Filho de Deus, nascido do Espírito Santo e da Virgem Maria, o qual foi crucificado sob Pôncio Pilatos, rnorrcu e ressurgiu ao terceiro dia dentre os mortos, c subiu aos céus e está assentado à máo direita do Pai, e vir2 julgar os vivos e os mortos?" "Creio." "Crê n o Espírito Sanco, na Santa Igreja, e na ressurrei~áoda carne?" "Creio."
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Apoluceia 42.4.
1 Joáo 4:2. Filipciiscs 2:jss.; Colosserlses 1:158s Marcus 2R:I 9.
P E R ~ O ~IIO
DA CRISE GNOSIICA A CONSTIINTINO
89
Seria um equívoco, contudo, pensar que qualquer forma de palavras como estas S ~ i s eempregada universalinente, ou que fórmulas desse tipo fossem oficialmente
:Jmpostas e "decretadas." Essas confissóes - ou "sirnbolos", como elas passaram a ser +amadas - eram essencialmence formas orais, e se desenvolveram náo por causa de lonferência e decisáo mas devido a processos informais de tradição. Cada igreja posi d a sua própria confissáo batismal, cujo palavreado poderia ou náo coincidir exataTsnte com aquele de alguma outra igreja. O que era uniforme era a csrrutura da zonfissáo; o que todo mundo estava certo era de que cada confissão local incorpora-:a e expressava a única fé. Não é surpreendente, pois, que nos debates do segundo ,iculo sobre o significado da fé cristá, muitos se referiram aos termos da confissáo harismal como personificando os compromissos pelos quais a igrcja permaneceria s u cairia. Tal referência assumiu a forma de insistência sobre uma "regra" (kano"n), dirersamente chamado de "regra da verdade", "regra de fé", "regra eclesiástica", "tradiçáon e também "kerygma." Estes termos se referiam náo a uma forma de palavras mas a um padráo e conteúdo de ensino. A "regra" era essencialmeilte um resumo da instrução catequética na qual os rieófitos aprendiam o significado da fé batismal da igreja. Quando resumida, ela tendeu, náo inesperadamente, a ter a mesma estrutura que a tríade confissáo batismal. No decurso do terceiro século, essa "regra" foi formulada pelas diversas igrejas na forma breve de símbolos "declaratórios", i.e., credos formados não como questóes a serem respondidas com uma afirmaqáo de fé, mas como declaracóes diretas por parte do fiel. Tais credos foram utilizados como base c esboço para a instruçáo pré-latisrnal e sáo os aticesrrais diretos do assim chamado Credo dos Apóstolos como cambéni daquele cornumente denominado "Niceno." Paralelamente ao knnôn ou regra fornecido pelas fórmulas confessionais tradicionais, entretanto, as igrejas do segundo século em seus debates com o gnosticismo e os marcionitas estabeleceram o cerne de ainda outra regra o u norma: a do "cânone" das Escrituras do Novo Testamento. O procedimento, se esta
t a palavra, pelo qual a
iormaçáo dessa coleçáo se deu foi informal e decentralizada - um negócio prolongado de crescente consenso, que foi completado somente no quarto século. Esse desenvolvimento envolveu três processos simultâneos. O primeiro foi um reconhecimento crescente da necessidade de uma tradiçáo fixa, escrita, especialmente onde os ensinos de Jesus eram concernentes. O segundo foi o proccsso pelo qual escritos cristáos tais como os evangelhos e as cartas apostólicas foram reconhecidos ocupando o mesmo lugar essencial. na vida das igrejas que as Escrituras judaicas e portanto passa-
90
lllSIORiA DA IGREJA
CRISTA
ram a ser citadas e tratadas da mesma maneira; i.e., como inspiradas pelo Espírito de Deus. O terceiro foi o complexo assunto de decidir exatamente quais escritos cristáos se qualificavam para esse status. No que concerne a este último problema, parece que foram empregados dois critérios coordenados. Os livros eram escabelccidos
como "canônicos" se eles eram Iidos regularmente nas assembléias licúrgicas das igreja e se eles eram tidos como "apostólicos" - i.e., se eles pudessem ser razoaveltnente
considerados como escritos por um apóstolo ou por alguma outra pessoa da geraçáo dos fundadores cujo testemunho era idêntico ao dos apóstolos. Estes dois critérios nem sempre concordaram, e houve debates (algumas vezes extensos) sobre tais escritos, como a EpístoIa aos Hebreus (que a igreja romana muito prontamente suspeitou náo ser uma carta paulina autêntica) ou o Pastor de Hermas que, conquanto claramente náo apostólico, fora estabelecido no uso iitúrgico. Um terceiro critério, mais informal, também veio a ser utilizado, o da doucrina. O quarto evangelho foi durante algum rempo suspeito por causa do deleite que os gnósticos e os seguidores da Nova Profecia rinham nele. Seu estabelecimento como canônico foi sem dúvida devido tanto a seu uso bastante disseminado como ao fato de que um nome apostólico estava associado com ele.
O cerne desse cânone em desenvolvimento eram o corpo paulino e os quatro evangelhos, juntamente com os Atos dos ApóstoIos. Aparentemente, havia uma coleção de cartas pauIinas em uso bem cedo no segundo século, e elas já eram consideradas (pelo menos em aiguns lugares) como "Escrituras" e "difíceis de entender."' O caso com os evangelhos é um pouco diferente. Parece, a partir da evidência de um documento como i Clemente, que mesmo depois de os quatro evangeihos terem sido compostos, as pessoas por aigum tempo, no que se refere aos ensinos de Jesus, apelaram para a tradiçáo oral ao invés de fazê-lo com relaçáo aos documentos escritos. Ao tempo de Justino Mártir, contudo, pelo menos os três evangelhos sinóticos estavam em uso litúrgico em Roma, e parece provável que por volta do início do último terço do segundo século todos os quatro evangelhos eram amplamente utilizados. Havia um problema, entretanto, com o fato de que havia quatro deles e que eles não estavam perfeitamente unidos em seu testemunho: um problema com o qual Taciano, discípulo de Justino, lidou produzindo uma harmonia dos quatro, o famoso
Diatessaron, e Ireneu de Lião procurou resolver argumentando que eles
P E R I DI~IO
DA CRISE GNOSIIEA A CONSIANIINO
91
çomplementavam um ao outro e portanto apresentavam um testemuriho total único. Todavia outro problema apareceu com o fato de que, enquanto muitas igrejas reconheciam a auroridade dos quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e Joáo (embora alguns cristáos judeus, é-nos relatado, admitiam apenas a auroridade de Mateus), em algumas igrejas, como Alexandria sendo um exemplo notável, também eram lidos outros evangelhos. Parece ser o caso, entretanto, que por volta da passageni para o cerceiro século esse cânone básico estava firmemente estabelecido, e de
fato as igrejas também conheciam e utilizavam outros livros que finalmente vieram a ser incluídos no cânone. No final, o Novo Testamento incluiu obras que representavam a maioria das correrites de tradicáo significativas no cristianismo primitivo, embora ele tenha excluído obras que fossem explicitamente gnósticas. Com a articulaçáo da tradicáo confessional-credal e do emergente cânone do Novo Testamento, as igrejas definiram o que elas enrendiam ser o cristianismo autêntico e apostólico. Náo havia, na mente delas, nenhum conflito entre essas duas "regras de fé", porque a tradiçáo credal simplesmente resumia a mensagem óbvia e básica das Escrituras profética e apostólica. Desta inaneira, ademais, ela supria a igreja com a necessária chave para a interpretacão das parres mais obscuras das Escrituras - uma chave que, não apenas incidentalmente, excluía a cxegese gnosticizante.
E verdade que os gnósticos da cscola valentiniana argumeiltas7arn que eles possuíam uma tradiçáo apostólica prbpria - uma tradiçáo secreta &e., náo pública) que portava aquilo que o Cristo ressurreto e os apóstolos haviam ensinado quando eles cstavam falando "sabedoria entre os perfeitos."' Esta proposiçáo, contudo, foi categoricamente negada por Ireneu de Liáo e por aqueles que seguiram as Jinhas de sua polêmica anti-gnóstica. Exatamente como esses pensadores estavam convencidos de que os apóstolos tiveram "conhecimento perfeito", assim também eles estavam convencidos de que tudo o que os apóstolos haviam recebido dc Cristo havia sido confiado àqueles a quem eles haviam indicado como seus sucessores púbiicos para governar as igrejas. Havia, pois, de fato, conforme o gnóstico Pcoiomeu havia argumentado, uma "sucessão apostólica", mas esta era constituída pela sucessáo ordenada
dos mestres oficiais da igreja, os bispos. E o que ta1 sucessáo transmitia como sendo aposcólica era precisamente a tradiFão confessional-credal das igrejas. Vamos então, argumentavam eles, para as igrejas de hndaçáo apostólica - aquelas como Esmirna,
^
1 Coriniios 2:6.
92
HISTORIA DA IGREJA CRISTÃ
Éfeso ou Roma, que podem traçar a linha de seus bispos até um fundador apostólico.
É a tradiçáo pública destas igrejas que representa o ensino au~êntico,e aquela tradiçáo pode ser confirmada pelo faro de que ela concorda com o pleno testemunho das Escrituras apostólicas. Portanro, a igreja E o único repositório do ensino cristáo, pois "os apósrolos, como um homem rico que vai ao banco, depositaram em suas máos, copiosamente, todas as coisas pertinentes à verdade."Vreservar e conduzir esta verdade (a mensagem do evangelho) era responsabilidade e privilégio dos bispos. Dessa maneira, através das lutas do segundo século, as igrejas eram fortalecidas conforme se prendiam às suas raízes do primeiro século, através de um tríplice cordáo de credo, Escritura e ofício de ensino oficial. Ao mesmo tempo, por esta definiqáo inscitucional das fontes de sua vida e ensino, elas iniciaram uma nova fase na história do movimento criscáo - diferenciando-se de seu passado no próprio ato de apropriar-se dele.
Capitulo 5
A Importância Crescente da Igreja Romana Ninguém que consulte as fontes da história da igreja primitiva pode deixar de ficar impressionado peIo papel proeminente desempenhado na vida da igreja pela comunidade cristã de Roma. As origens desra comunidade sáo obscuras. Ela pode ter-se iniciado com a conversão de um grande grupo de judeus heleiiizados (talvez dc uma sinagoga inteira) nos primeiros anos da nlissáo de Jerusalém. Quaisquer que sejam suas origens, essa congregação estava, já no final do primeiro século, comeGalido a se pronunciar com uma voz de peso nos negócios da igreja em geral. Para explicar esse fenomeno, diversos fiitoses podem ser mencionados. Tanto Pedro como Paulo morreram e111 Roma, c o esplendor de seus nomes foi associado àquela igreja desde um momento bem antigo, ainda que nenhum dos dois tenha sido na realidade seu fundador. Ademais, ela possuía o presrígio que lhe era dado pela sua localizaçáo na capital do império e pelo fato de que no início do segundo século ela h
Irçnsu, (.òlrtil? as He~rsias3.1.1
~ ~ i l o n11 o
DA CRISE GRÓSTIGR A CONSTAMTIMO
33 .
era apareritemente a maior de todas as congregaçóes locais de cristáos. A influência dc Roma foi, conforme o tempo ia passando, aumentada pela bem conhecida generosidade da igreja dali. Inácio de Anrioquia exaItou-a por "ter a presidência do amor";' e pelicas décadas mais tarde Dionísio de Corinto elogiou a congregação romana por enviar "contribuições para as muicas igrejas em cada cidade . . . aliviando a pobreza dos necessitados, e minisi-rando aos cristáos nas minas."' Dadas estas circunstâncias, podemos entender o senso de autoridade com o qual a igreja de Roma se endereçou à igreja de Corinto em 1 Clemente. A carta claramente esperava ser atendida, e seu tom, se dc um irmáo, era de irmáo maior.
Há mais na estória do que isso, todavia. Para entender a influência da igreja romana no segundo e início do terceiro séculos, remos que levar em conta tanto seus problemas especiais conio suas respostas a estes probleinas. Sua localizaçáo na encruzilhada principal do império parece ter tornado a igreja romana, desde um período bem cedo, em uma encruzilhada navida do movimento cristáo. Ela foi, atP o terceiro século, uma igreja de fala grega e portanto uma igreja de imigrantes, e conforme ela crescia sua membrezia passava a incluir fiéis de muitas regióes do irnpério. De Ireneu
'
dc Liáo c de outras fontes, aprendemos que também havia cm Roma um grande grupo de cristáos norte-africanos. Jusrino Mirtir foi para lá, daÁsia Menor; Valentino, dc Alexandria; Marciáo, do Ponto. Náo muito tempo depois de seu inicio na Frígia, a Nova Profecia chegou em Roma e ceve seguidores lá. Acabou acontecendo enráo que, o que acontecia em outros lugares na igreja tendia a ser um problema dc preocupaçáo domésrica para a igreja de Roma. Se Roma parece i-er metido o dedo na torta de todo mundo é porque ela tinha um pedaso das tortas de todo mundo em sua própria mesa. Como os bispos romanos lidaram com esta situação? Até onde podemos falar, o monoepiscopado foi estabelecido crn Roma mais vagarosamente e com mais dificuldade do que em outras igrejas, talvez exatamente por causa do ramanho e diversidade da comunidade. Quando porém uma a~itoridadecentral se desenvolveu, foi com uma compreensáo consciente do papel do bispo e da base de sua reivindicação de obediência. O bispo era a voz e o representante da rradi~ãosobre a qual a igreja de Roma fora fundada - a tradição que vinha de Pedro e Paulo, quem na época de
' Romanos. ' Eusthio. Hiirbria Ecf~izástira4.23.10
94
HISI~RIA DA IGREJA CRISTÃ
Ireneu eram tidos como os fundadores da igreja. Isto significa que Roma foi vista, especialmente
110
Ocidente, como a igreja apostólica por excelCncia (Jerusalém,
reconstruída como uma colônia romana depois da revolta dos judeus de 135, náo poderia fazer tal reivindicaçáo), e seu bispo a testemunha focal da tradição apostólica. Isso também significa que quando um bispo romano agia, dentro de sua própria esfera, para resolver algum problema ou decidir algum debate, sua palavra frequen~ementeaferava, e também carregava algum peso sobre ourras igrejas, pois os problemas de Roma, como já vimos, frequentemente tinham suas raízes em outros setores do mundo çristáo.
A ilustragáo que simboliza esta situagáo pode ser vista na extensa querela sobre a data apropriada para a celebração da Páscoa, comumente conhecida como controvérsia "Quartodécima." Conquanto exisra razão para pensar que a Páscoa tenha sido observada desde cedo na história cristã, o primeiro registro explícito de sua celebraçáo está em um relato da visita de Policarpo, bispo de Esmirna, a Aniceto, bispo de Roma, em 154 ou 155 - uma visita sem dúvida vinculada à proeminência de fiéis da Ásia Menor denrro da igreja romana. Naquela época, a prática na Ásia Menor era observar a Páscoa com uma vigília, c u h i n a n d o na eucaristia, durante a noite do décimo quarto dia do mês de Nisá: ou seja, a celebraçáo coincidia com a data do início da Páscoa judaica, não obstante o dia da semana em que ocorresse. O costume romano, pelo contrário, que também era observado em algumas partes do Oriente, era manter a festa sempre no domingo seguinte à Páscoa judaica. Policarpo c Aniceto náo puderam resolver essa diferença de prática, mas náo obstante separaram-se com expressóes de boa v0ntade.j Sua concordhcia em divergii; entretanto, significou que a igreja roiriana fico~idividida entre aqueles que observavam o costume asiárico e aqueles que seguiam a prática local.
A situação local em Roma tornou-se táo aguda e divisível com o passar do tempo que Vícor, bispo de Roma (189-198), realizou sinodos na própria Roma, na Paicstina e outros lugares que decidiram em favor da prática romana. As igrejas da Ásia Menor, entretanto, lideradas por PnIícrares, bispo de Éfeso, recusaram-se a obedecer. Por causa disso Vítor excomungou as congregaçóes recalcitrantes. Esta ação arbitrária provocou muito protesto e náo parece ter sido muito efetiva na Ásia Menor, mas sem dúvida ela capacitou Vítor a impor uma prática uniforme em sua própria igreja. i
Eusibio, História Ecle~ihrica5.24.16s
~ t ~ l o eii n
DA GRISE PNDSTIGA A CDNITANTINO
85
Ela também foi um sinal de que a igreja de Roma e seu bispo estavam adquirindo autoridade e influência além de sua esfera imediata - uma autoridade e influência que nenhuma outra igreja poderia igualar.
Capitulo 6
Irineu de Lião Qualquer que seja a base da crescente influência dos bispos romanos, ela náo se fundava sobre sua contribuiç,Xo corrio pensadores ou teólogos. O primeiro líder teológico de d i ~ t i n ~ ánoo debate com Marciáo e os gn0sticos foi, na realidade, um bispo de uma igreja relativamente nova e obscura na Cália, Ireneu de Liáo, ele próprio um imigrance para o Ocidence proveniente da Ásia Menor. Nascido cerca de 135 d.C., ele ficou conl-iecido na história primeiro como um presbítero da igreja em Lião. Durante a grande perseguição que ocorreu ali em
177, ele estava ausente em lima rnissáo oficial a Roma. Quando de seu retorno, ele foi escolhido bispo para suceder a Patino, que havia sido martirizado. Foi em Liáo que ele escreveu as duas grandes obras que presentemente possuímos: a
Demonstra~áodiz Pregaçdo Apostólica, que foi publicada pela primeira vez no início do século vinte; e a obra muito mais extensa em cinco livros que ele intirulou
TPO . .. .:>[I-
.
Lia A-=
Umd Arz~ssnç50e Destuzdi@o do Falsanzrnre Intitz~Iado"Conhrcinae~to':mas que a íradiçáo tem mais convenientemente denominado Coiztru d s Here~ius.Esta irnportante obra foi completada provat~elntentepor volta de 185. Irenttu faleceu cerca de 200, segundo a tradiqáo como mártir. Ireneu acreditava e argumentava que a tradiçáo-ensino das igrejas como ela era ordinariamente exposta representava a versão autêntica da fé cristá. Foi ele
-iLi-.
.
,
1x2-mas rqa.
quem, de forma apropriada, primeiro desenvolveu o apelo à tradiçáo (a "regra da verdade") e as sucessóes dos bispos e presbíteros que a haviam transmitido, como uma arma contra seus oponentes gnósticos e marcionitas. O grande peso de seu argumento, entretanto, nasceu de um apelo às Escrituras profética e apostólica, as quais, ele estava convencido, iriam elas mesmas refutar o ensino herético dire-
96
HISTJjRIA DA IGREJA
GRISTP
tamente, se fosse dada atençáo ao pleno sentido delas e se suas passagens obscuras fossem compreendidas à luz daquelas cujo significado era óbvio. Na perspectiva de Ireneu, a 'primeira e maior"' das questóes levantadas por Marciáo e os gnósticos surgia da negação que eles faziam que o verdadeiro Deus e o criador do mundo sáo uma e a mesma pessoa. Em resposta, ele insistiu que tanto a regra de fé como as Escrituras conhecem apenas um Deus, o Criador, o qual "contém todas as coisas" enquanto não sendo eie próprio contido ou limitado por coisa a l g ~ m aO .~ Criador chamou o mundo à existência ("do nada"), e o muiido que ele então criou não era nenhuma "Plenitude" espiritual distante mas este cosmo visível. Como o criador imediato do mundo, ademais, Deus náo está distante do mundo mas intimamente presente nele. Por suas próprias "duas rnáos", Logos e Sabedoria, Filho e Espírito, Deus formou a humanidade com amor, adaptando essa criatura de corpo e alma para crescer, para a realizaqáo e maturidade por meio da "recepcáo do Espírito do PaY3 e assim alcançar a imortalidade na contemplaçáo de Deus. O único Deus,
em outras palavras, exatamente porque ele é o único criador de todas as coisas, não é estranho a nada do que criou. Sobre o fundamento desta compreensáo de Deus como o único criador, Ireneu pôde considerar a segunda quescáo que Marciáo e os gnósticos haviam proposto para ele: a da salvaçáo. Repudiando a segregaçáo gnóstica de espírito, alma e carne como "substânciaÇ>lou "naturezas" antagônicas, a crença correspondente de que a carne é incapaz de salvação, Ireneu insiste em que a salvaçáo náo é a correçáo mas a realizaqáo da criaqáo. A humanidade original que Deus fez de terra e imbuiu com x.i'd a é o mesmo "Adáo", o qual no final é realizado na semelhanqa de Deus - o qual é de fato "figura daquele que havia de vir."' Mesmo o pecado e desobediência desta hurnanidade terrestre não a separou totalmeilte de Deus, pois em seu Logos e Sabedoria Deus tem estado em sua constante companhia através da história, instruindo-a e guiando-a para o supremo momenro quando o Segundo (e verdadeiro) Adáo devesse aparecer: o Cristo, em quem a humanidade, tanto carne como alma, está unida ao Logos de Deus. Urilizando Efésios 1:10, Ireneu portanto vê o Cristo como aquele em quem o relacionamento l-iistórico total entre Deus e a humanidade é "resumido" Contra i75 Here.via~2.1 . I
' Ibid., 2.1.2. ' Ibid., 5.6.1.
Cf Rornatios 5 1 4 .
~ c n i o o o11
DA CRISE GNÓSTICA A EONSTRNTINO
97
ou "recapitulado" em todas as suas dimensões - reicerado para ser corrigido e cumprido. O Cristo portanto representa para Ireneu o destino e a verdadeira identidade do Adáo que Deus originalmente criou. Os cristáos seguem, escreve ele, "ao úi-iico Mestre verdadeiro e imutável, o Logos de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo, o mediante seu amor transcendente se tornou o que somos, para assim nos transformar naquilo que ele próprio é."' Este destino que o Crisro personifica e rorna possível para a humanidade será finalmente realizado para os fiéis nos últimos dias, quan-
do todas as coisas seráo mara\~ilhosamenterenovadas. Ireneu via a si mesmo acima de tudo como um presenrador e intérprete da tradiçáo, e assim ele era, entretecendo em sua síntese anti-gnóstica temas dos pensamentos paulino e joanino, da rradiFáo de sua nativa Ásia Menor, e das apologias de escritores como Juscino Márcir e Teófilo de Aneioquia. Ao mesmo tempo, como muitos "tradicionaliscas", ele era um ~ e n s a d o rinoxpador. Em seu corifronto com
O
dualismo dos gnósticos e marcionitas, Ireneu agarrou-se a uma visáo: a da unidade da natureza humana e da coiitinuidade da história da salvai;áo em seu caráter, como a obra do único Deus em seu Filho e Espírito.
Capitulo 7
Tertuliano e Cipriano Cerca de três anos após Ireneu ter sido escolhido bispo de Liáo, em julho de 180, ocorreu um evento cujo registro fornece nosso primeiro conhecimento do cristianismo na província da África do Norte: o martírio na capital, Cartago, de doze fiéis da cidade de Scillium. A natureza desse evento é, para o historiador, pressagiosa, pois a igreja norte-africana, do segundo ao quinto siculo, compreendeu-se acima de tudo como uma igreja de mártires. Ela viu a si mesma como uma igreja marcada oposiçáo aos poderes que governam este mundo - como uma eleita cheia do Espírito, cuja esperança escava centrada na viildicacáo futura por Deus das pessoas que re" Contra (1s H ~ l s i n s5 ; picfáci».
iiham sido fiéis a Ele no seio de uma sociedade que O negou. Essa perspectiva esta
manifesta não apenas no relato do testemunho dos mártires de Scillium, mas
tarn-
bém no Martii-iode I'erpétud e Felicidade, que rcgiscra as experiências de um grupo de mártires cartagineses nas perseguicóes desencadeadas pelo imperador Sétimo Severo
(193-21 1). Acima de tudo, porém, ela transpira para nós nos numerosos tratados de Tertuliano, o primeiro escritor cristáo de cerra habilidade a utilizar o latim, e o horriem que deu à teologia latina seu vocabulário e sua agenda básica. Pouco é conhecido da vida de Tertuliano, exccto aquilo que pode ser reunido da cronologia incerta de seus escritos. Ele cra um convertido ao cristianismo, um nativo de Cattago que provavelmenre nunca se afastou muito de casa, c um liornem com uma educaqáo profissional em retorica. Sáo Jer8nim0, escrevendo dois séculos dcpois, afirma que Tertulianri era um presbítero, mas isso é bastante improvávei. Ele eclode no cenário crisrán no norte da África em 197 com o surgimento de sua Apo-
logia, uma imitacjo furiosa da dc Justino Mártir, e parece ter morrido por volta dc 225. Nesse intcrim, ele publicou uma torrente de tratados eloquentes, argutos e controversos sobre doutrina c moral que revelam ter sido ele um debatedor arbitrário e tendencioso mas rambérn um cristáo de espírito radical e inflexível. No ceriie da teologia de Terculiano encontra-se sua preocupaçáo pela pureza e santidade da igreja a autenticidade prática dc sua vida e ensino. A igreja vive pela -
reveiayzo de Deus - "Nos reunimos para ler os livros de Dcus"' - e essa revelaçáo, ceritralizada em Jesus Cristo e seu evangelho, é a lei que governa sua vida. Ao observar essa lei em f i e prática, a igreja e seus meriibros se apropriam das promessas do evangelho e aguardam com confianca "o juízo vindouro."' Naquele dia, o mundo c seus govcrnanecs, os quais têm servido e adorado os dern6nios que se opóem a Deus, veráo, para sei1 espanto, vindicada a verdade que eles rejeitaram, e os fiéis recompensados pelo Dcus cujas palavras estes têm observado. O b s e r ~ ~as a rpalavras de Deus, entretanto, significava para Tertuliano existir sepa-
rado do mundo, o qual tinha o culto idólatra dos demônios construído na própria estrutura de sua vida. Os cristáos oravam a Deus pelo imperador c pela paz e bemestar do império; mas eles compreendiam, também, que "enquanto as naq6es estáo se rcgozijando, nós [crisráos] estamos lamentando."' Na perspectiva de Tertulialio, por-
' 14p~/ogzo3 9 3 . ' Apol(~xiu39.4. j
Sobre ar Espetrícuiuc 28
PER~OOOII
D A CRISE ~ N O S ~ I EAACONSTANTINO
99
tanto, como na dc muitos criscáos antes dele, os fiéis náo tinham nada que ser\' ao exército, ao governo, às insticuiçóes educacionais ou a qudquer negbcio que direta ou indiretamente apoiasse a religião pagã. Eles niio deveriam ter nada a ver com as diversões públicas de qualquer ripo, uma vez que estas, a parte de seu conteúdo iinoraI, eram ce1ebra)óes em honra aos "deuses" do mundo pagáo. Esse espírito rigorista se estendia também a oucros assuntos. Os cristãos batizados eram pessoas cujos pecados cometidos haviam sido perdoados pelo arrependirnen~oe pela lava-
i:,da
gem com água e pelo Espírito Santo; mas tendo sido porranto Iibertos para cumpri-
- :-il.o
rem a vontade de Deus, o resrantc de suas vidas depois do batismo era o esforGode
:om
"competidores para a salvacáo, buscando o favor de Deus."' Como muitos escritores
5
de-
do Novo Testamento,' entáo, Tertuliano não dava nenhuma esperaqa para os fiéis
Ele
que haviam caído etn pecado grave após o batismo. Em seu trarado Sobre a Penitên-
.:?O-
cia ele argumentou que uma (e apenas uma) de tais quedas poderia ser compensada por um "segundo arrependimento." Mais tarde, entretanto, a reflexáo sobre os fracassos dos cristãos, como também a oposiçáo de pessoas das camadas mais altas, direcionararn-no para a posicáo mais severa dos montai~istas,e em seu período montanista ele negou a possibilidade de qualquer arrependimento e rcstauraçáo após o batismo. Não havia espajo na igreja ou na vida criscá para um fracasso sério e deliberado em viver s elos preceicos do evangelho - da mesma maneira que não havia espaç.0 para
tentativa, sob perseguiçáo, para escapar do ~rivilégiodo rnarcí-
rio, o único verdadeiro "segundo arrependimeriro."
O posicionamento de Tertuliano quanto a vida e moral cristá foi acompanhado por seu posicionamento em relação às quesróes doutrinárias. Embora esclarecido quanco à filosofia de seu tempo, ele insistiu quc a fé cristá nada tinha a ver com as rradicóes das escolas filosóficas oriundas de Atenas. Sua rradicáo vinha de Jerusalém
(de Cristo e dos apóstolos) e era mantida, como Ireneu havia argumentado, pelas sucessões de bispos nas igrejas apostólicas. O negócio da igreja era simplesmente manter essa tradição: aderir inqucstionavelmente à "regra de fé'' que era a única chave para as Escrituras. Tertuliano com propriedade empregou sua habilidade com a pena contra os heréticos de sua tpoca. Ele escreveu cinco livros intitulados Corztra
Mal~i20e outro tratado, Contra os ~ l e ~ z t i ~ z i a nDefendeu as. as doutrinas da criacão, da encarnaçáo do 1,ogos e da ressurreiqáo da carne. Sua mais notável contribuiçáo a ' Sobre a Pezitêizciir 6. ' Cf. 1Ichrcus 10:26; 1 João i:16-17.
100
HISTÕRIA OA IGREJA CRISTA
teologia, entretanto, foi feita no tratado Contra P ~ x r d sno , qual ele desencadeou um ataque contra o mestre "monarquiano" o qual havia negado a realidade substantiva do Logos enquanto distinta do Pai (ver II:8). Nessa obra, Tertuliano desenvolveu a forma sistemática mais antiga da doutrina da Trindade, argumentando que há uma "substância" divina que está articulada ou é "administrada" cm três "pessoas" distintas mas contínuas: Pai, LogosIFilho e Espírito. Ao mesmo tempo, ele ofereceu um relato reflexivo da encarnaçáo, explicando que a pessoa de Cristo é uma uniáo de duas "substâncias" distintas, inconfundíveis, divina e humana, em uma única 'pessoa." Essa terminologia - difícil de interpretar por causa das diferenças entre os significados dos tcrn-ios latinos de Terruliano e os de seus derivados na língua portuguesa moderna - se tornou a base de todo o discurso cristológico e trinitário Ocidental e latino posterior. Tertuliano entáo viu a igreja como a sociedade daqueles que viviam sob o governo de Deus no meio de um mundo governado por demônios, e portanto como a sociedade exclusiva na qual o Espírito J r Deus era concedido e a salvaçáo obcida. Para ele como para os escritores do Novo Testamento, essa era a comunidade do fim dos tempos, que deve manter sua identidade e sua pureza para ser a morada do Espírito e eventualmente entrar na "heranca dos santos na luz."6
Na época de Terruiiano e posteriormente, o cristianismo se espalhou com notável rapidez no norte da África e na Numídia, mas na geraçáo após sua morte ela passou por um reste severo, quando os imperadores Décio e Valeriano desencadearam as primeiras perseguições universais às igrejas (ver 1I:lO). Naquele tempo, o bispo de Cartago era Cipriano, um antigo professor de retórica e cuidadoso estudioso de Tertuliano, cuja conversão por volta de 246 o havia levado quase imediatamente a proeminência na igreja. Eleito bispo bem às vésperas das perseguiçóes, Cipriano descobriu ser seu destino guiar as igrejas africanas através da dor, desilusão e divisóes engendradas pelo esforco imperial, em fazer com que os cristáos apostatassem. No final, em 258, ele também foi martirizado, por decapitação, mas náo antes de ter reconsiderado e reinterpretado sua herdada compreensão da igreja i luz de sua resposta à perseguiçáo. Cipriano nunca duvidou de uma premissa básica. Tanto para ele como para Tertuliano, "não há salvaçáo fora da igreja",' pois "aquele que náo tem a igreja como
PERIODO II
DA CRISE ENliSTICA A EONSTANTINO
101
sua Máe náo pode ter a Deus como seu Pai."Vara ele a igreja também era a única arca de salvaqáo. O s eventos das perseguições, entretanto, suscitaram questões sobre como essa premissa deveria ser e~itendida.Em primeiro lugar, um grande número de cristáos procuraram evitar a prisão ou a morte. Eles ou sacrificavam ou entáo compravam certificados fraudulentos (libelh] para assegurar às autoridades romanas que eles haviam sacrificado. Pelos padrões de Tertuliano, tais pessoas haviam simplesmente se colocado fora da esfera da salvacáo. Os bispos africanos, entretanto, sob a pressão de suas próprias consciências pastorais como também dos confessores que reivindicavam autoridade para perdoar e restaurar apóstatas, concordaram cm readmitir à igreja, na condiqáo de penitência "prolongada"", aqueles que haviam procurado certificados fraudulentos. Com esta açáo, porém, eles implicaram que a identidade e sanridade da igreja não poderiam mais ser fundamentadas na pureza e er-
fidclidade de seus membros individuais. Nem mesmo a santidade dos mártires pode-
a
ria compensar o lapso de tantos entre seus irrnáos e irmás. Sobre que, cntáo, estava
-ida.
f~~ndarnenrada a santidade da igreja? Ademais, as perseguiçóes causaram cismas (ver
rim
11: 1O), porquanto grupos em Roma e Cartago formaram corpos separados porque
do
achavam os bispos muito frouxos ou muito rigorosos em seu tratamento dos lapsos.
.í
110
;
Assiin a questão da unidade da igreja surgiu de uma forma aguda. Em quê a unidade :ave1
da igreja estava fundamentada? Os corpos cismáticos (mas admitidamente não heré-
:>SOU
ticos) também eram "igreja"?
-71 as
Cipriano pensava que não. Era sua percep~áoque a igreja estava, em última ins-
3
de
tância, fundamentada sobre os apósrolos a quem Cristo havia comissionado. Portan-
2
de
to eram os apóstolos como um colégio único (coZlegitina: um corpo de "colegas"),
:te
a
exercendo separadamente uma única autoridade náo dividida, o fundamento da igreja
O ofício apostó-
-:ano
e conseqüentemente a base de sua identidade, santidade e unidade.
.
:soes
lico, entretanto, na perspectiva de Cipriano havia recaído sobre os bispos, os suces-
.
No
sores dos apóstolos, que exerciam separadamente a autoridade de um ministério
5
ter
coletivo único. "Há um só Deus e Cristo é uin só, e há uma só cátedra [episcopado]
: res-
fundamentada sobre a rocha, pela palavra do Senhor."" Ein conseqüência, sair da comunháo com o bispo em qualquer local era, muito simplesmente, sair da igreja, a arca da salvacão. Pela mesma medida, sobre o princípio de que "o bispo está na igreja
:
Snhm n IJzidude du Igreja 6. Cipriano, Fpí~~o/u 55(51).6. ' Epístolik 43(39).5.
e a igreja no bispo"," o caráter da igreja como a morada do Espírito de Deus e a Máe dos santos tambtm dependia, conforme a perspectiva de Cipriano sobre isso, da legitimidade, integridade e santidade do bispo. Se o líder c presidente da igreja, o qual ensinava o evangelho, administrava o sacramento do batismo e oferecia a Deus o sacrifício da igreja lia eucaristia, fosse indigno ou impuro, então a própria comunidade deixaria de ser "igreja." Esras perspectivas - as quais de fato tornaram a unidade e santidade da igrcja
dependentes da pessoa do bispo - tiveram conseqüências tanto lógicas como históricas. Em primeiro lugar, elas levaram diretamente ao sistema de governo sinodal pelos bispos, um sistema que Cipriano encorajou e ao qual ele se submeteu. Cada bispo em seu Iocal sucedia à autoridade apostó1ica e por sua vez a exercia. Cada bispo tinha portanto direiro a voz nas preocupaçóes comuns da igreja em sua totalidade, a qual era sovernada apropriadamente náo por qualquer indivíduo mas pelo próprio colégio de bispos. Mesmo o bispo de Roma - quem certamente desfrutava uma dignidade especial e um especial direito à liderança, porquanto sucessor de Sáo Pedro - era não obstante, substantivamente, colega e portanro igual aos seus irmáos. Ao mesmo tempo, a maneira de Cipriano focalizar a sanridade, e desra maneira a identidade da igreja na pessoa do bispo, levou quase ineviravelmence à posição teológica assumida pela igreja donatis~ano quarto e quinto séculos (ver 1II:l).
A Teologia do Logos e o Monarquianismo Roma foi, durante os episcopados de Vítor (189-198), Zeferino (198-217) e Calixto (217-222), a principal arena para um debate sobre as implicacões da teologia do I.ogos, conforme ela havia sido desenvolvida por Justino Mártir e ourros apologistas. O interesse desse debate cnconrra-se menos em qualquer questáo útil do qual ele veio (ele parece ter sido conduzido pela maior parte com excessivo calor e ainda mais confusáo) do que no faro que ele representa um primeiro encontro com
PER1000 II
OA CRISE GNÓSTICA A COISTANTIHO
111.3
problemas, os quais iriam engajar as igrejas na grande controvdrsia rrinitária do quarro século - probiemas em primeira instância sobre a compreensáo cristá de Deus. Náo pode haver dúvida que a teologia do Logos suscitou muitas questóes sérias. Enraizada nas cristologias da sabedoria do primeiro século (ver I:7), ela ~itilizavaas expressões "FiIho de Deus" e "Cristo" para denotar uma figura mediatória a qual era, na frase de Justino, "outro Deus"' junramence com "o único não criado",' o Pai. Essa distinçáo entre Pai e Filho era, insistia Justino, simplesmente de "número" e náo de " ~ o n r a d e " ;o~Logos era como uma tocha acendida dc outra,' divino como seu progenitor era divino. Não obsranre, na descricão de Justino, como mais tarde iia de Tertirliano, a geraçáo do Logos ocorre apenas com uma perspectiva para a criaçáo do mundo. O Filho, portanto, não é co-eterno com Deus; ademais, ele existe para fornecer um mediador entre Deus e o cosmo na criacáo e revelação, como a linguagem dc Joáo 1:3 e 1:18, para náo mcncioriar 1 Coríncios 8:6, parecia sugerir. Assim, a teologia do Logos surgiu para introduzir um "segundo Deus", de modo não compatra
tível com o princípio do monoreísmo; e mais ainda, eia sugeria que o Logos repre-
r10
sentava um grau ou tipo secundário de divindade. Ela "subordinava" o Filho ao Pai. Foi contra a primeira destas implicações da doutrina do Logos - a de uma Jualidade (ou trindade) de seres divinos - que um pequeno movimento surgiu tomando como seu lema o termo grego monn~chiu,que significava (toscamente) "singularidade do
primeiro princípio." Esse "monarquianisrnon cIiegou em Roma, provenienct: da Asia Menor, em duas ondas sucessivas que representavam ponros de vista significativamente diferentes. Ambos foram repudiados por causa da maneira na ¶ual seu monotcísmo estrito os levava a compreender a pessoa de Jesus.
A primeira dessas ondas chegou por 170lta de 190 na pessoa de um ccrto Teódoto, um curtidor de Bizâncio. Este homem, apesar de sua excomunháo por Vitor, encontrou discípulos eriérgicos em um certo Asclepiódoto e outro Teódoto, chamado "o banqueiro", os quais rapidamente estabe1eceram unia igreja cismárica. O círc~ilodeles não foi popular entre os crisráos comuns ern Roma, porque seus membros se deleitavam com o estudo de Ariscóteles e seu comentarista Tcofrasto, para náo mencionar Euclides o marcmático e Galeno o escritor sobre medicina, e praticavam raciUiáio
' Tbid., 5.6. ' -
lbid., 128.4. lhid., 61.2.
104
HISTORIA DA IGREJA G R ~ S T Á
ocínio dialético (sem dúvida para a frequente confusáo de seus oponentes). O que realmente preocupava a igreja, codavia, era o ensino deles que "Cristo foi um homem ~ o r n u r n " ,nascido ~ da Virgem Maria e do Espírito Santo, sobre quem o dunamzs ("poder") divino desceu em seu batismo e foi "adotado" na esfera divina através de sua ressurreiçáo. Dessa maneira, esses monarquianos "dinâmicos" ou "adocianistas" foram capazes de dispensar a doutriiia do Logos - embora somente ao custo da negaçáo da identificação ou uniáo dc Deus com a humanidade, em Cristo.
A segunda (c historicamente mais importante) onda de monarquianismo chegou em Roma por volta de 200, quando Zeferino era bispo, através de um homem de Esmirna chamado Noero. Este Noeto liavia sido expulso de uma igreja esmirnense por ensinar que "Cristo era o próprio Pai, e o próprio Pai nasceu, sofreu e m o r r e ~ i . " ~ Diferentemente deTeódoto, entáo, ele não negava a doutrina da encarnaçáo; mas ao dispensar a figura de um Filho ou Logos distinto, ele fez do próprio Deus o sujeito da encarnacáo. Essa mesma linha foi evidentemente seguida pelo oponente de Tertuliano, Práxeas (ver II:7), o qual (em adiçáo às suas atividades anti-montanistas) negava qualquer distinçáo entre Cristo e o Pai e utilizava o termo "Filho" para significar o Jesus humano. Portanto, também em sua perspectiva, era o Pai quem liavia nascido e quem havia sofrido em uniáo com a humanidade de Jesus - uina alegação que fez com que seus críticos posteriores rotulassem essa posiçáo de "patripassiai~ismo." Uma forma mais persuasiva e duradoura da p o s i ~ á omonarquiana foi desenvolvida por u m certo Sabélio - um homem que, apesar do fato que pouco foi lembrado sobre sua pessoa o u carreira, eventualmente emprestou seu nome à totalidade do movimenro. O "sabelianismo" procurou considerar seriamente a estrutura tríade da fé batismal da igreja. E assim fez utilizando os termos "Pai", "Filho" e "Espírito" para denotar, náo realidades distintas do Deus Supremo, mas três papéis o u "modos" nos quais o Deus único sucessivamcnre revela a si
mesmo em rclaçáo com o mundo e coin a humanidade, o u seja, como Criador, Redentor e Santificador. Consequentemente, os estudiosos modernos têm descrito o sabelianismo como "monarquianismo modalista", ou, porque os papéis em questáo referem-se não àquile que Deus é em si mesmo mas simplesmente a modos nos quais ele "administra" suas relaçóes externas, como crinitarianismo
' Eusibio, Hiitiriu E~'hirirti~x 5.28.6; Srcvcnson, A A'Ew Eussbiai,p. 157. "
Hipólito, Coiien ,Voeto 1; Stevenson, A h'er~lEurebiui, p. 159.
PEB~DUO11
OA CRISE GNííSTICII h CIIIYSIAUrlMO
I05
"econômico" (do grego aikonamia, que literalmente significa "administração doméstica").
O principal oponente em Roma do monarquianisrno moddisca foi Hipólito (m. ca. 235). Este presbítero - o provável autor das obras às quais devemos muito de nosso coilhecimento da história e liturgia da igreja romana nesse período - esteve eiigajado em controvérsia simultânea com o bispo romano, Calixto, ao qual ele acusou tanto de ter sido romado pelos monarquianos, como por relaxar o rigor dos
padrões morais exigidos dos criscáos em Roma. Contra Sabélio, Hipólico reitero~i eloquenremente a perspectiva que o Logos é uma
(na Iiilguagem de Tertuliano,
prosôpon) distinta do Pai, mas criada por Deus para a realizagáo de sua vontade. No final, Hipólito es~abeleceuuma comunidade cismática em Roma, de táo indisposto que estava pelo sucesso c ensinos de Calisro, a quem ele considerava em rodo caso COIIIO
seiido nioral e intelcctualrnentc impróprio pai-a o oficio de bispo. Foi Calixto,
talvez ironicamente, quem evenrualmente excluiu Sabélio da comunhão da igreja
romana, pois ainda que o bispo estivesse firmemente persuadido da unidade de Deus, ele também estava certo de que "náo foi o Pai quem morreu mas o Filho."- Com este juizo, ainda que obscuro e ambíguo, o assunto silenciou por um tempo.
E desnecessário
dizer, as mesinas ou semelhantes qucstões surgiram em outros
momentos e outros lugares, no terceiro século. Ema espécie de rnonarquianismo adocianista foi ensinado na Síria por Paulo de Samdsata, o qual foi condenada por roi
um sínndo em Antinquia, em 268. O sabeiiatiisrno mostrou sua cabeça na Libia e na
:P
I'entápolis, e fui atacado por Dionísio, bispo de ,Mttxandrla, em termos tão extrema-
dos que foi repreendido em uma correspondência significativa, por seu hornonimo, Dionísio de Roma (259-268), o qual estava tão preocupado quanro Calixto havia estado com o pluralismo e subordinacionismo da teologia do Logos. Foi Terculiano
($ ca.I 250), . do qual temos um tratado imporrance, Du Eirdade - quem chegou mais perto da indicaqáo de maneiras nas quais a teologia do Logos poderia ser reconciliada com o princípio do monoteísmo. h resoluqáo destas questóes, entretanto, teve que esperar os debates, investigagões e decisóes da igreja do quarto skculo., p. 164. - e mais ainda, talvez, seu discípulo romano Novaciano
Hipólito, He&tacáo de Todas as Hei-esiar 7.1 1.13; Srevenstin, ri 1Vezi1Eusebiz<~, p. 164
Capitulo 9
A Escola Alexandrina A Cartago de Tertuliano e a Roma de Hipólito eram cidades de história, caráter étnico e cultura bem diferentes da metrópole helenística de Alexandria, no Egito. Fundada pelo próprio Alexandre Magno em 332 a.C., Alexandria foi sucessivamente a capital do império burocrático dos Ptolomeus e o centro da administração romana do Egito. Ao mesmo tempo, era um dos principais centros de comércio do Mediterrâneo, através do qual a produçáo do vale do Nilo fiuía para outros setores do mundo romano. Acima de tudo, Alexandria era um centro intelectual, cuja magnífica biblioteca a havia tornado um foco de cultura literária, científica e filosbfica desde o reino do primeiro Ptolomeu. Toda escola filosófica tinha seus representantes ali; o comércio de idéias estava no sangue da cidade. Uma conseqkência deste fato é que Alexandria fornecia urna arena na qual idéias religiosas e movimentos de origem diversa sc encontravam e se influenciavam uns aos outros e na qual todos estavam sujeitos a interpretacáo e crítica filosófica. Pouco é conhecido sobre as origens do cristianismo em Alexandria. O movimento deve ter aparecido por lá, entretanto, em um período relativamente cedo, uma vez que tio momenco em que o~ivimospela primeira vez sobre eIe, por volta do final do segundo século, ele parece estar firmemente enraizado. Há evidência disponível, contudo, de que desde o início o cristianismo em Alexandria havia estado dividido entre um gnosricismo cristão intelectual e erudito (o gnóstico Basílidcs estava ensinando
em Alexandria no reinado de Adriano, ca. 130) e uma comiinidade de fiéis "simples"
tradicionalistas qrie desconfiavam profundamente das concessões para com a religiáo e filosofia pagás, as quais esse gnosticisino sofisticado parecia representar.
É contra esse pano de fundo que devemos cntcndcr a obra do primeiro grande mestre crisdo de Alexandria, Clemente (?-ca. 21 5). Como Justino Mártir um convertido ao cristianismo e, também como Justino, um intelectual profissional, Ciemente foi para Alexandria, após estudar com urna série de mescrcs cristãos em outros lugares, para ouvir a sabedoria de um homem do qual ele náo diz o nome, mas a quem Eusébio, o historiador eclesiástico, ideilrifica como um certo Panteno, que era
prnioun 11
011 CRISE G%óSTICA A CORSTAIYTINO
ia?
o responsável pela escola dos fiéis em Alexandria.' Clemente se estabeleceu em Alexandria e eventualmente, como Justino em Roma, teve unia "escola" própria. O que é interessante e característico acerca de seu nonie é que por um lado ele se considerava como um defensor e intérprete do cristianismo costumeiro, consciente do dever de "náo cransgredir de maneira alguma a regra da Igreja",? ao passo que por outro lado ele representava aquela aritude simpática para com a cultura e erudição "secular" de que a maioria dos cristãos comuns desconfiavam totalmente. Ele era, encáo, de fato um homem de centro, o qual considerou seriamcrite o gnosticismo que repudiava c ofereceu uma defesa da tradiçáo de ensino que era calculada para sugerir que a filosofia helenística era ranro sua aliada como sua inimiga.
As obras mais importanres de Clemente, que sobreviveram, sáo em número de crês. Há em primeiro lugar sua Exortilço aos Pilgzos, uma crítica da rcligiáo pagã que emite uma chamada para seguir ao Logos de Deus. Depois há a obra intitulada I'edagogo,
que busca expor a Iógica da conduta cristá (e é, incidentalmente, uma
mina de informaçáo sobre os costumes da época de Clemente). Finalmente, ele escreveu uma obra intitulada Stvornuta ou Mirceliinrns, uma coleçáo de seus pensamentos sobre as questões teológicas e religiosas de seu tempo. Disposta em sere livros (um oitavo livro prometido nunca foi completado), a Stromnta é alusiva em estilo c náo sistemática em forma. Ela sugere, em vez de afirmar uma posicáo reológica, embora desenvolva com grande clareza a posiyio de Clemente sobre certas questóes: a difamaqáo da carne e do casamento, a relação entre a tradição filosófica grega e a revela~áoe o objetivo e caráter da vida cristã. Para Clemente, assim como para Justino, o Logos divino havia sempre sido o instrutor da humanidade em todos os lugares. "Nosso pedagogo é o Deus santo, Jesus, o Logos que é o guia de toda a humanidade."? Conseqiientemenrc, C sua inspiração que se encontra, de uma maneira ou de outra, por trás da tradiqáo filosófica dos gregos. "Deus é a causa de todas as coisas boas, mas primeiramente de algumas, tais como o Antigo e o Novo Testamentos; e de outras por conseqüência, como a filosofia." Em outras palavras, Clemente queria seguir a crença banal judeo-helenística que os filósofos haviam originalmente tirado suas melhores idéias dos escritos de Moisés. Mas ele é capaz de oferecer uma hipórese ainda mais radical: "Taivez, também, a filosofia tenha sido concedida aos gregos
I08
HISIORII DA IIREJA CRISTA
direta e primariamente, até que o Senhor os chamasse. Pois ela foi pedagogo, assim c o n ~ oa Lei o fora para com os hebreus, para trazer a mente helênica a Cristo."" Clemente portanto seguiu Justino e Lreneu percebendo a história de Deus com a humanidade como um processo de educagáo - um caso depaideia. Mais claramente do que ambos os seus predecessores, entretanto, Cleinente utilizou esse mesmo modelo para descrever a vida criscá do crente individual, a qual era para eIe um caso de aprendizado, treino (askêsis) e crescimento no conhecimento de Deus. Enquanto o norre-africano Tertuliano imaginava a vida crista primariamente em terinos morais, como um caso de obediência ao preceito divino, e os gilósticos percebiam-na consistindo de uma iluminação de uma vez para sempre, Clemente concebia-a em vez disto como um processo gradual de transformaçiío inoral e intelectual que resultava na semelhança com Deus - o destino implícito na criação de Adáo "segundo a imagem de Deus." Tal sernelhanp com Deus é, para Clemei~te,como tambtm para lrençu antes dele, coincidente com conhecimento de Deus, uma vez que conhecer alguma coisa é participar em sua maneira de ser. Portanto, o ideal cristáo
t
aquele do "verdadeiro
gnóstico", o qual à fé tem adicionado conheci~nento,"ao conhecitnento, amor; e ao amor, a herança."5 "Parece-me", escreve Clemente, "haver um prirnciro tipo de mudança salvifica do paganismo para a fé; um segundo da fé para o coilhecimento; e este último, quando se transforma ern amor, começa imediatamente a estabelecer uma amizade mútua entre conhecedor e conhecido", até que, contiiluando a avariçar, o eu 'progride.
. . para aquilo que 6 de fato a morada do Senhor" e permanece lá
como "uma luz subsistindo e contiiluando para sempre, absolutamente iivre de toda vicissitude."" CLernente deixou Alexandria em 202, diante da perseguição que lá ocorreu durante o reinado de Sétimo Severo; nada é conhecido de sua vida depois disso. Em Alexandria, entretanto, o tipo de trabalho que ele havia feito foi continuado, embora em estilo e espírito vastamente djferente, por seu pupilo Orígenes, o maior e mais influente pensador crisrão de seu tempo, cuja obra rendeu-lhe o respeito rancoroso att rriesmo de um filósofo radicalmente anti-cristáo como o neoplatônico Porfírio.
prnloao 11
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Zriro; e 3clecer r r x e lá :r toda r - du.I.
i09
Nascido de uma familia cristá em Alexandria entre 182 e 185, Orígenes, após a partida de Clemente r a morte de seu pai, Leônidas, na perseguiçâo, reuniu um
com a
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OA CRISE GNÓSTIER iI GfiISIINTINO
Em
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grupo de inquiridores e constiruiu uma escola, que pode ou ngo ter sido uma contin u a ~ á oda escola catequética da qual Eusébio fala. Seja como for, Qrígenes foi capaz de continuar seu trabalho ali, com a aprovacáo do bispo, DemCtrio, ate 21 5 , quando o imperador Caracala expulsou todos os professores de filosofia de Alexandria. Orígenes já havia viajado um pouco anres - para Ronia (ca. 21 1-212), onde ele coiilieceu Hipólito, e para a Arábia (ca. 2 13-2 14),onde seus préstimos foram solicitados para lidar com um problema criado pelo ensino monarquiano. Dessa vez, entretanto, ele foi para Cesaréia, na Palestina, onde fez amigos de valor permanente. Ele retomou seu ensino em Aíexandria em 21 6 e continuou ali ate 230 ou 23 1, quando partiu em uma jornada para a Grécia. No decorrer da permanência em Cesaréia, ele foi ordenado presbítcro por insistência de seus amigos dali, provavelmente para que pudesse ficar livre para pregar. Eiirretanro, o bispo Demétrio - o qual havia de alguma forma se tornado duvidoso quanto a algumas das idéias invulgares de Orígenes, estava quase certamerite com ciúmes de seu sucçsso, e tendeu a ouvir fofocas hostis sobre ele - considerou esse ato da igreja de Cèsaréia como uma invasáo de seus direitos; consequen.temente, ele aproveitou a oportunidade para corcar Orígcnes da comunhão com a igreja de Alexandria, e Orígenrs passou o restance de sua carreira escrevendo, ensinando e pregando em Cesaréia, com uma disciplina e dedica~áoque lhe rendeu o apelido de "Adamâncio." Ele foi aprisionado e torturado durante a perseguição de Décio em 250 e morreu em Cesaréia ou em Tiro, provaveImentc: em 351 (254?), etn consequcncia de seus sofrimentos. Orígenes era um homem de erudipo variegada. Ele foi um adepto da filosofia de seu tempo, com uma apreensão atenta e exata das idéias das diversas escolas de pensamento. Sua visão geral, ademais, foi modelada pelo eclético Placonismo Médio prevalecente em Alexandria e no Orienre, cujas generalidades ele assumiu, bastante riaturalmente, como certas. Todavia, ele tinha uma opinião muito menos entusiástica e mais distante da filosofia e cultura ria tradiçáo helênica do que tanto Clemenre como Justino. Ele não era dado a ciraçóes cordiais ou desnecessárias de poetas ou filósofos, embora ele os co~ihecessesuficientcmerite bem, como demonstra sua obra apologética erudita Cantrd Celso; e sua maneira de lidar com as generalidades do Platonismo Médio pareceu, para um pensador pagáo como Porfirio, misturar "idéi-
110
HISTORIA DA IGREJA CRISTA
as gegas" com "mitos estrangeiros."' A explicação dessa aticude complexa 6 que por convicçáo consciente Orígenes estava cerro de que o único caminho para a sabedoria era por meio de estudo sério e compenetrado da revelaçáo divina nas Escrituras. E foi a essa tarefa que ele dedicou sua vida. A ampla maioria de seus escritos tomaram a forma de comentários das Escrituras, e mesmo seus escritos "sistemáticos" ocasionais seguiram um método amplamente exegético. Se a sabedoria que ele discernia na Bíblia era de fato informada pelas pressuposiçóes filosóficas que ele trazia em sua interpreracáo, a compreensão resultante era não obstante, para ele, escriturística. Talvez a dádiva mais importante de Origenes para as igrejas foi o princípio, pelo qual ele próprio viveu, de d a sc~$tura.
O est~idode 0rígenes da Escritura rinha como fundamento o trabalho textual sistemático. Em um esforço para assegurar um cexto correto da versáo Septuaginta das Escrituras hebraicas - a versáo regularmente utilizada nas igrejas - ele compilou através dos anos sua monumental Hexaph, a qual trazia em colunas paralelas o hebraico, uma transliteraçáo grega do hebraico, a Septuaginta, e três outras versões gregas. Em sua exegese, ele repudiou o liceralismo dos rabinos e de Marciáo. Em primeiro lugar, ele estava convencido de que em muitos lugares o sentido literal era ; ~ indigabsurdo, como na fábula de Jotáo, onde sáo encoiitradas árvores f a l a n d ~ou no de seu tema como quando Deus é descrito perdendo a calma; ou incompatível com outras passagens, como em muitas perícopes dos evangelhos. Em segundo lugar, ele estava certo de que escritos inspirados pelo Espírito de Deus devern superabundar em sentido, de forma que mesmo onde o sentido literal é importante, se quer dizer muito mais além daquilo que é diretamente dito. A tarefa do exegeta, portanto, é despregar não apenas o sentido literal mas também o sentido "espiritual" iilais elevado ou profundo, de acordo com a advertência e a prácica de Paulo." Essa maneira dc conceber e manusear as Escrituras deveu muito à dois precedentes: a alegorizaçáo estóica dos poemas homéricos e, acima de tudo, a exegese alegórica de Fílon do pentateuco. Ao mesmo tempo, Orígenes estava em dívida com a tipologia cristã primitiva, que interpretou as Escrituras hebraicas retrospectivamente, encontrando sua chave e seu significado "profundo" em Cristo e ila dispensaçáo cristá. De igual modo, para Orígenes, o propósito fundamental do sentido espiritual da Escri- EusChio, Histúuin Ec/esiáiticn 6.19.7 Juízcs 9:7-1 j. ' 2 Corinrios 3 6 ; Gdatas 4:21-27.
PEAiODD 11
DA CRISE GNÓSIICA A EOASIANTINO
il!
tura está em nossa compreensão da relação do eu humano com Deus em Cristo, da vida da igreja como a comunidade da nova dispensaçáo, e da realiza~áodaquela vida na "restauração de todas as coisas" (pois a Lei, somos ensinados, é uma "sombra das coisas vindouras"'"). No terceiro livro de seu tratado Dos Primeiros PrincQios (Peri
archdn), ele justifica e procura sistematizar seus procedimentos exegéticos; mas uma vez que sua prática era mais flexível do que sua teoria, este que é o tratado cristáo mais antigo sobre hermenêutica oferece apenas uma idéia bastante imprecisa daquilo que Orígenes de fato realizava. Mesmo no meio de seus labores exegéticos, entretanto, Orígeiies náo poderia ignorar os problemas imediatos da igreja em Alexandria. Como Clemente, ele se viu forçado a abordar o problema gerado pela presença de uma comunidade gnóstica vocal e fazer isso de maneira a alistar a erudiqáo filosófica do lado da ortodoxia.
E
típico dele [er desempenhado essa tarefa, não por se engajar em polêmicas demoradas mas por desenvolver sistematicamente uma posição que lidava com as questões e idéias nas quais os gnósticos inrercainbiavam, mas assim o fez em um sentido diferente: ou seja, de acordo com a tradiçáo de ensino da igreja, a qual Orígenes entendia ser náo uma formulação suficiente da verdade (como Tertuliano havia argumentado), mas o fundamento e ponto de partida da inquirição teológica. O resultado foi uma cosmologia teol6gica na qual ressoavam termos platônicos e mesmo gnósticos, mas apenas quando transpostos em uma chave definida pelos princípios da tradi~áo de ensino alexandrina. Essa cosmologia teológica, expressa em um dos primeiros [rarados, Dos P~imeiros
I'rincz$ios, gira sobre três idéias centrais. A primeira delas, que foi igualmente central para Ireneu, é simplesmente o axioma ~norioteístade que existe um só Deus, o qual
é a única base e fonte de todo ser, tanto material como imaterial. A segunda idéia, também crucial para Irerieu é o princípio anti-gnóstico que o mal náo é uma coisa ou tipo de coisa substantiva (tal como ~iiatériaou carne) mas uma desordem introduzida pela atividade livre de personalidades criadas. Se existe mal no mundo, ele não é em última instii~~cia uma aflicáo externa da humanidade mas um produto da escolha humana. Finalmente, Orígenes aceitava uma antiga tradiçáo de interpretaqáo, j5 explorada por Fílon, que sustentava refletirem os dois selaros da criação nos capítulos dc abertura de Gênesis, na realidade dois estágios da criaqáo divina, o primeiro pre-
"' Dos Primeiros fiir~cz)zos, yreficio.
112
HIXIDRIA DA IGREJA ERISTA
ocupado com a aparência da oidem imacerial, inteligível, e a segunda com a formação do cosmo visível. Ao mesmo tempo, Orígenes estava convicto de que a criaçáo originai de Deus fora uma sociedade de "espíritos" imateriais, finitos porque criados; autodeterminados porque racionais. Imagens ou reflexos da própria imagem de Deus, o Logos, estes espíritos viviam na harmonia da igualdade perfeita, regozijando-se naquele conhecimento de Deus que era a realizaçáo apropriada de sua natureza. O mal penetrou qualido esses espíriros, tendo-se saciado coni a conteinplacáo de Deus, escolheram decair de sua própria felicidade: Deus, em um cscado de separaçáo, variedade e multipliçidade auto-desejado. Alguns sc tornaram demônios e outros anjos e outros ainda as almas dos seres humanos, mas todos, em um grau ou outro, caíram de sua identidade conternplativa original para a distraçáo e a alienação. Como conseqiiência e símbolo de seu estado alterado, Dcus enráo trouxe à existência o cosmo visível, físico, destinado a ser para essas criaturas um segundo melhor mundo - um mundo no qual harmonia foi imposta sobre desordem e no qual os espíritos decaídos poderiam ser "ensinados" de volta à sua glória original. Desse relato transparece o que a rcdençáo significava para Orígenes. Ela significava "a restauraçáo de todas as coisas" para aquela unidade e harmonia originais onde, como Paulo havia dito, "Deus será tudo em rodos." O processo pelo qual essa restauraçáo fina1 se realiza é, para Orígenes assim como para Clemente, essencialmente educaqáo e treino, pois Deus respeita a liberdade de suas criaturas e náo as salvará (na realidade, náo pode) apesar delas mesmas. O momento central iiessa tutelagem divina é a encarnacáo do Logos ererno de Deus, em quem, enquanto Sabedoria, a mente e ser de Deus estáo articulados para as criaturas. O Logos aproxima-se dos seres
humanos decaídos através da mediacão da única criatura racional que não caiu: o ser humano que é Jesus. Era a compreensáo de Orígenes que esse único espírito não caído, pela intensidade de seu amor por Deus, estava ráo unido com o Logos a ponto de ser virtualmente indistinguível dele - da inesrna maneira, diz ele, como o ferro é indistinguível do fogo que o torna incandescente. Por sua vez, a união da alma de Jesus com um corpo concreriza a encarnaçáo d o Filho/Logos divino. Esta existência carnal do Filho de Deus capacita os seres humanos a se elevarem através da fé ao conhecimento da verdade eterna a qual o Cristo encarna - uma verdade que é sempre a mesma, contudo sempre adaptada às variáveis capacidades e necessidades de seus recipientes. Orígenes parece na realidade conceber o Cristo de uma maneira análoga àquela na qual ele concebe as Escrituras: o que a letra da Escritura está para seu
PERI~DOII DA CRISE GN6SIICA A CONSTANIINO
11.7
significado mais profundo, a carne de Cristo está para sua natureza-Logos - um prenúncio da verdade que é vida. E o destino do ser humano individual é partilhar a idenridade do Jesus humano como este participa na vida divina através do Logos. Como todas as grande criaqóes teológicas, esse esquema de Orígenes levantou tantas questóes quantas respondeu. Ele parece, por exemplo, ficar do lado gnóscico na quesráo da ressurreiçáo corporal; pois claramente, na perspectiva de Orígenes, embora a carne náo seja má, era também não é, como Ireneu havia insistido, um constituinte essencial ou original da natureza humana. Novamente, a ênfase de Orígenes na mutabilidade e liberdade das criaturas racionais suscicou, para ele como para seus críticos e seguidores, a questão sobre se a redençáo jamais poderia ser verdadeiramence final - se, de fato, o ciclo de queda c restauração náo poderia se repetir para sempre. Pela mesma medida, sua convicçáo de que a restauraçáo final deve de faro incluir "todas as coisas" o levou à conclusão universalista que mesmo Satanás e os demônios não caíram fora do alcance do amor de Deus, uma perspectiva que iiáo concordava bem com muito da escatologia primitiva, que tinha como definitivo um local para o inferno assim como para o céu. Náo foi unicamente no domínio da escacologia, entretanto, que o esquema de Orígenes criou dificuldades, mas rambém na área total do problema da criaçáo e da relaçáo de Deus com o mundo. Os céticos haviam frequentemente levantado uma quescáo espicaçante sobre o que Deus estava fazendo antes de criar o mundo. A resposta de Orígenes para o desafio implicado nessa questão foi simplesmente negar que há qualquer "antes" ou "depois" em Deus. Se o ser e fazer de Deus sáo estritamente acemyorais, entretanto, e se, pois, ele é o imutável criador, entáo parece que o mundo que ele cria tem que ser sem princípio ou fim no tempo; e esta conclusiÍo Orígenes parece ter considerado seriamente, embora ele estivesse incerto quanto a isso. Ele insistiu, contudo, em que o "princípio" do qual Çênesis e o quarro evangelho falam náo C o corneqo do mundo remporal mas seu fundamento eterno, a Sabedoria de Deus. Se isto é verdadeiro, entretanto, eiltáo a Sabedoria de Deus (isto é, Filho e Logos de Deus) também é eterna e atemporal, coeva com Deus como primeira auto-expressão e imagem perfeita de Deus. Significava isto, entáo, que o Logos e o mundo, uma vez que cada um em sua maneira par~icularé coevo com Deus, sáo igualmente primordiais com Deus? E tal conciusáo condiz com o monoteísmo? Orígenes cinha respostas para estas questóes. A "geracão ererna" do Logos náo implicava para ele que o Logos seja igual a Deus; posto que "gerado" implicava ser secun-
114
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTh
dário - ou seja, subordinado. Por outro lado, esta subordinação do Logos a Deus, como da radiaçáo à fonte, náo situava o Filho entre as criaturas, uma vez que ele náo era, semeIhanre a elas, gerado "do nada" como um ser mutável e portanto temporal. Esta distinçáo, todavia, dependia inteiramente da negação de Orígenes que Deus existe, e conseqüentemente que Deus gera ou cria, "no tempo"; e náo foi grande o número de pessoas que o compreenderam nesse ponto, para que sua resoluçáo dos problemas da criasão e da teologia do Logos prevalecessem. Este fato ficou bem expresso na controvérsia ariana, na qual um Iado desposou o subordinacionismo de Orígenes, e o outro, sua idéia da geraçáo eterna do Logos, conquanto nenhum parece ter entendido o que escas noções significavam no sistema de Orígenes.
Capítulo 10
A Igreja e a Sociedade Romana de 180 a 260 As décadas de abercura e de meados do terceiro século - a era de Tertuliano, de Hipólito, de Orígenes e de Cipriano - marcou um período de crise e mudança tanto para o próprio império romano como para as comunidades cristás no seio dele. No que se refere ao império, essa crise tinha muitas raízes. A mais óbvia delas, e aquela que dominava crescentemente a consciência tanto dos governanres como do povo, era de narureza militar. Começando no reinado de Marco Aurélio (m. 18O), as tribos bárbaras além das froncciras do império no Rcno e no Danúbio, agora organizadas em agrupamentos maiores e mais formidáveis, cada vez mais invadiam e saqueavam
suas províncias. Depois de 235, foi adicionada a esta pressão a da nova di~iasria Sassânida na Persia, que estava inclinada a reconquistar os territórios que no passado haviam pertencido ao império de Dário e Xerxes. Roma portanto se achou engajada em uma luta pela sobrevi.irência, e houve ocasióes, na segunda metade do terceiro
século, quando sua perspecriva de sobrevivência pareceu verdadeiramente sombria. Escas prcssóes militares, ademais, não eram as únicas a perturbar o mundo romario. Elas revelavam e acentuavam outras fraquezas na vida do império. As necessidades do exército cresceram em ramanho e força. Elas absorviam cada vez mais parte da
PER1000 11
DA CRISE GNISTICA A CORSTAFITINO
i 15
3eus,
riqueza do cidadáo comum. Os impostos ficaram mais pesados e aceleraram a fuga
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de camponeses sobrecarregados de suas terras, ainda que progressivamente empobre-
:>oral.
cessem as classes superiores nas cidades provinciais. Para arrecadarem mais dinheiro,
3eus
os imperadores permitiram a cunhagem de moedas sem a devida base. A consequên-
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cia disso foi que, conforine o terceiro século chegava ao fim, uma inflação galopante
dos
colhia o império. Estes problemas sociais e econômicos foram acompanhados por
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algo que chegava a uma crise constitucional. Marco Aurélio havia abandonado a
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prática peia qual cada imperador escolhia e "adotava" um sucessor capaz de executar
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o ofício imperial. O princípio hereditário ao qual ele e seus sucessores imediatos
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retomaram acabou fracassando no intento de produzir homens capazes de liderar o
império em tempos de crise. Em conseqüência, os imperadores depois de 235 vieram c partiram (com freqüência alarmante), segundo a vontade dos exércitos; sua sobrevivência dependia de seu sucesso militar e de sua habilidade em manter a lealdade de suas tropas. Esta situação de crescente crise e instabilidade
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nal devido apenas a um esforço militar sem paralelo e por sua reconstituiçáo sob Diocleciano e Consrantino - também teve uma dimensáo religiosa. Nrinca a boa -. i .
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de uma sançáo religiosa para sua autoridade. É sintomático destes fatos que logo no imperadores Severos posteriores (218-235) houve um esforço para a unificaçáo religiosa sob a égide do Solinuicrzts, cuja soberania o imperador simbofizava. Nestas circunstâncias, as comunidades cristás no terceiro século encontraram-se em uma posiçáo ambígua e incerta. Um fator nesra situação era, obviamente, sua própria expansão contínua e consolidação. Por aquela época, o crisrianisrno escava
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súditos individuais. Nrinca o prbprio ofício imperial estivera em maior necessidade início do terceiro sécrilo houve um reavivamenco do culto imperial, e que com os
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vontade e assistência dos deuses haviam parecido mais necessárias a Roma e seus
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da
disseminado no Egito, Ásia Menor, Síria, África do Norte e Itália e crescia na Gilia e na Espanha. Era predominantemente urbano e portanto eminentemente visível;
em alguns lugares, ademais, seus seguidores eram suficientemente numerosos para que escritores como Tertuliano e Orígenes pudessem questionar se ele poderia jamais ser extirpado. Ainda mais, o movimento cristáo náo era simplesmente uma corrente de opinião ou de crença, uma "escola de pensamcnto." Se agrupar-se a ele era se tornar parte de uma comunidade centrípeta, organizada separadamente, que náo apenas possuía seus próprios líderes e oficiais, seus ricos característicos no batismo e
116
HISTORII OA IGREJA C R I S T ~ ~
na eucaristia, seu próprio calendário de observâncias e celebraçóes, suas próprias finanças e propriedades, mas tambtm mantinha uma hostilidade contínua para com os fundamentos religiosos da sociedade romana. Nem todos os cristáos partilhavam da perspectiva rigoristados montanistas ou de um pensador como Hipólito de Roma, o qual identificou o estado romano como o anticristo. Orígenes, embora devoto como era à vocação de mártir, deixou espaço em sua cosmovisáo para a operação do império romano, e seus labores intelectuais, como os de Clemente, reivindicaram para o cristianismo uma parceia na herança cultural do mundo da antiguidade tardia. Não obscante, ele e seus companheiros cristáos tinham claro em suas mentes que a realidade na qual sua vida comum estava baseada - a realidade do dom de Deus em Cristo - era incompatível com a reivindicaçáo da religião pagá, a qual eles persistiam em considerar como uma barganha com os demônios. Mesmo ein seus momentos mais "liberais", portanto, a igreja tendeu a aparecer nas cidades do mundo romano como o mais complicado dos probiemas para qualquer ordem política ou cultural: uma sociedade alternativa.
O cristianismo, entáo, no terceiro século viu sua posição alrerada. Ao passo que antes ele tinha sido um negócio de muita pouca significância para ser tomado a sério tant-o pelos lideres políticos como pelos inrelectuais, ele agora arraía a atençáo em instâncias mais elevadas, e mais ainda uma vez, que o terceiro século era uma época de crise. O filósofo Celso já havia atacado os cristáos, ao tempo de Irelieu, em sw
Palavi-a Ver-dadrir-a,a qual eventualmenrc exigiu uma réplica do próprio Orígenes. No terceiro século, Porfírio (232-305),o filósofo neoplatônico e intérprete de Plotino (205-270), foi mais além e produziu uma obra erudita em quinze livros contra os cristáos. Entre os imperadores, por outro lado, alguns eram tolerantes com o cristianismo e alguns positivamente interessados nele. Caracala (21 1-217) deixou os fiéis em paz; embora Escápula, o procônsul daÁfrica (21 1-212), tenha procedido contra os cristãos durante sua breve administraçáo ali, isso aparentemente foi de sua própria iniciativa. Alexandre Severo (222-2351, sob a influência dominante de sua máe Júlia Mainéia (quem uma vez convocou Orígenes a Ancioquia para conversar com ele sobre questóes religiosas), exercitou uma tolerância consciente e até mesmo empregou um erudito cristáo, Júlio Africano, para s u p e ~ i ~ i o n a rconstruçao de uma biblioteca perto do panteáo em Roma. E verdade que Sétimo Severo (192-21 1) havia publicado um decreto proibindo conversóes ao judaísmo ou ao cristianismo e que esse decreto havia desencadeado perseguições locais tanto em Alexandria como
PLAIOIOII
OA CRISE ~NÓSTIEAA EONSIRRTINO
117
em Cartago em 202. No geral, entretanto, a primeira metade do terceiro sécuIo foi um período de paz, expansáo e crescente confianca para as igrejas.
Em 247, o imperador Filipe o Arabc, conhecido por sua simpatia para com os cristãos, participou em ritos solenes para celebrar o milênio do estado romano. O s cristáos se recusaram a participar destas cerimônias, ainda que elas estivessem ocorrendo em um período de perigo milirar e incipiente desordem civil, pois eram os deuses primitivos de Roma que estavam sendo gIorificados. 'Iilvez náo seja surpresa, portanto, que em 248 Orígenes tenha obsen~adoentre a populaçáo em geral uma crescente aversão aos cristáos, que haviam portanro chamado a atetiçáo sobre si como marginais náo cooperativos. No mesmo ano, comecou uma série de iiivasóes perpetradas pelos
gados contra o império. Incapaz de lidar com elas, Filipe o Árabe foi
destronado por um soldado-imperador conservador da IIíria chamado Décio (249-
Z j l ) , cujo objetivo era a restauraqáo da glória roiriana por meio de um retorno às virtudes e aos deuses que haviam feito Roma magnífica no passado. No mesmo ano da ascensão de Décio, houve um levante popular contra os cristáos em Alexandria. Entáo o próprio Décio agiu, insrituindo o que foi de fato a primeira perseguicão universal as igrejas. Ele começou em janeiro de 250 prendendo os líderes das igrejas. Fabiano, bispo
de Roma, foi executado; Cipriailo de Carcago e Dionísio de Alexandria buscaram escoi~derijo.Em junho, Décio decrerou que todos os habirances do imptrio deveriam clamar aos deuses por auxílio sacrificando a eles e, ademais, deveriam provar que haviam feito isso obtendo certificados oficiais
(libelli)de comprovaçáo. A prisão
ea
tortura, como a sofrida por Orígenes, eram as conseqüências da recusa. A persegui~ á foi o breve; Décio partiu em campanha nas províncias danubianas e foi morto em
251. Mas o efeito na igreja pareceu um pouco menos do que uma catástrofe. Orígenes e Cipriano igualmente registram que grandes massas de cristáos se apressaram a sacrificar ou para comprar junto a oficiais amigáveis os
libelli exigidos. O bispo de
Esmirna, sucessor do martirizado Policarpo, apostatou, como tambbrn (para decepqáo de Cipriano) dois bispos da África do Norre. Nos últimos anos do sucessor de Décio, Valeriano (253-260), a perseguicio foi renovada. Desta vez o decreto foi explicitamente dirigido aos líderes das igrejas - o ciero em primeira instância, depois os leigos proeminentes, os quais eram ameagados com perda de propriedade e priviiEgio. Foi esta fase da pcrscguiçáo que retirou as vidas de Cipriano e de Sixto I1 de Roma.
IIH
HISTÓRIA DA IGREJA CRI SI^
Estas perseguições deram um choque nas igrejas, que sem dúvida teve um efeito permanente em sua vida e auto-compreensáo. Já vimos como elas induziram em Cipriano a reiilterpretacáo da compreensão norte-africana tradicional de igreja. O que elas não conseguiram, entretanto, foi uma reducáo significativa no número de cristãos. Tanto aqueles que haviam sacrificado (sncrz$cati) como aqueles que haviam comprado certificados (libelhtici) parecem no geral ter procurado readmissáo às igrejas. Não foi a fé deles que falhou, mas sua coragem. Eles foram, ademais, cnçorajados em seu desejo pelos confessores (aqueles aprisionados por sua fé), que admitiram que o teseemunho prestado por eles Ihes propiciava a autoridade para perdoar e restaurar aqueies quc haviam fàfhado, e que, pelo menos na África do Norte, propuseram fazcr uso indiscriminado desse privilégio. Outros, de uma disposicão mais rigorista, pensavam que não poderia haver nenhum perdáo para a apostasia. Os bispos, com sua autoridade desafiada pelos confessores, estavam inclinados no geral a readmitir os faltosos, mas apenas sob condiçóes que mantivessem a disciplina da igreja. Assim, os bispos nor~e-africanosprescreveram longas penidncias para os libeflatici e acé mesmo permitiram a restauração dos sacrz@cdti, embora apenas no momento da morre. Essa política de meios termos, seguida cm sua essência também em Roma, produziu rea~õesdos dois lados. Em Roma, o presbítero Novaciano, autor de um tratado importante, Sobre n r(i.indude, liderou um cisma rigorista convicro de que uma igreja que restaurasse apóscatas traía sua própria natureza e vocaqáo. Em Cartago, por outro lado, outro presbítero, de nome Novato, criou um cisma em apoio à autoridade dos confessores e sua política "frouxa." Mesmo que as perseguições não renham entáo reduzido grandemente o número de crisrãos elas perturbaram profundamente as igrejas e levaram o problema da disciplina e perdão, há muito tempo fonre de dcbatc, a um ponto culminante (ver 11:15). O fim das perseguiçóes, ademais, ao passo que introduzia um período de paz para as comunidades cristás, de maneira alguma marcava uma solucáo de seu status no mundo romano. No final, tal soluqáo somenre poderia ser produzida por mudanças significativas na vida da igreja, como também na do império.
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OR CRISE GFldsllCA A CO%STRNTINO
119
Capitulo 1 1
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Quaisquer que tenham sido as incertezas e crises da existência cristã no rcrceiro século, a realidade é que durante a maior parte daquele período as igrejas desfrutaram de relativa paz. Foi, portanto, uma era de expansão para as igrejas em muitas partes do mundo romano, e com a expansáo veio o desenvolvimento e consolidaçáo da organizaçáo da igreja sobre os hndamentos já estabelecidos no segundo stculo. Estes desenvolvimentos aferaram o status e articulaqáo do ministério oficial, a organizaçáo interna das igrejas individuais e as rela~óesdas igrejas umas para com as outras.
A palavra "igreja" continuou a denotar primariamente a assembléia de cristáos em um local específico - isto t , na prática, umapoilis específica com seu centro urbano e interior rural. Tais "cidades", entretanto, variavam bastante em tamanho, dos centros cosmopoliras como Roma, Alcxandria ou Antioquia, para aquilo que pelos padróes modernos não era mais do que pequenas vilas, e o tamanho e complexidade das congregaçóes cristãs variavam correspo~identemente.Em alguns iugares, todos os cristãos poderiam reunir-se em um Iocal para sua assembléia eucarística regular; em outros, corno Roma e Alexandria, se desenvolveram centros subsidiários que eventualmente vieram a ter algo como o carircr da posterior "paróquia" (paroikia). Qualquer que fosse o tamanho e complexidade da corigregaçáo, porém, sua unidade ou consensio (para utilizar o termo de Cipriatio) era representada pelo fato de que o bispo local era o líder e pastor de toda a congregação. Escolhido pela comunidade, o bispo era ordenado com a imposi~áode máos por bispos vizinhos - uma indicaçáo do fato de que cm sua responsabilidade pastoral ele era o representante não apenas da congregação à qual pertencia mas também da igreja ~iniversal.Uma vez eleito e ordenado, ele era o governante na congregacáo. O bispo administrava os negócios financeiros da comunidade, era seu principal mestre, escolhia e ordenava seus outros ministros (presbítcros, diáconos e outros), aplicava a disciplina c presidia as assembléias barismal e eucarística. Tcndo em vista que ele "oferecia os sacrifícios" (como I Clemente diz no final do primeiro século') na liturgia eucarística, o bispo veio a ser
120
HISIÓRIA DA IGREJA E R I S T ~
chamado sacerdos ou hiel-eus ("sacerdote"), um título que também poderia ser aplicado aos seus colegas, os presbíteros.
O bispo, entretanto, náo estava sozinho no exercício da lideranga administrativa,
pastoral e litúrgica. O terceiro século assistiu a um crescimento no número de ofícios , "clero", "clérigon em português) ou ordens (latim ovdznrs, daí "orde(grego k l i ~ u idaí nação" em português) que serviam as igrejas. Crescentemente, vários daqueles sem ofícios, os quais eram chamados laikoi ou plebs ("laicato", "plebe"), os ocupantes destes ofícios e ordens incluíam náo apenas os bispos, diáconos e presbíteros, mas também, de tempos em tempos, leitores, viúvas, subdiáconos, virgens, diaconisas, catequistas, acólitos, exorcistas e porteiros. Desnecessário dizer, tal desenvolvimento era mais elaborado nas gandes comunidades e em todo caso ocorria de forma vagarosa, informal c desigual. Os mais proeminentes entre estes oficiais eram sem dúvida os diáconos, os quais, como os assistentes pessoais do bispo, náo apenas desempenhavam um papel litúrgico importante mas também eram diretamente responsiveis pela cxecuçáo da obra de caridade da comutiidade. O número deles frequentemente estava (como em Roma) limitado a sete, de acordo com Atos 6 3 . O bispo Fabiano de Roma (236-250), martirizado na persegui~ãode Décio, parece ter dividido sua
cidade, para propósitos de adminisrraçáo eclesiástica, em quais tinha um diácono como supervisor.
sete
regióes, cada uma das
E compreensível, entáo, que quando um
bispo morria era bastante freqüentemente um de seus diácoilos quem era eleito para seu lugar.
A ordem dos presbíteros, contudo, estava ganhando importância durante aquele período, particularmeilte nas igrejas onde o número ou distribuição
dos
cristãos tornavam um único local de reunião sob a presidência do bispo, difícil ou impossível. Originalmente associados, conselheiros e colegas do bispo, os presbiteros haviam desempenhado um papel que, se dignificante, era também obscuro. Em suas novas circuilstâncias, entretanto, eles se tornaram os representantes ou deregados do bispo nas reunióes locais para instrucáo e, ern última instância, para celebração da eucaristia. Assim, um presbírero poderia ficar visitando periodicamenre uma área rural ou urbana sob a responsabilidade do bispo ou aí fixar residência; ou poderia presidir assembltias vizinhas denrro de uma g a n d e cidade. Em poucos lugares, onde a responsabilidade de um bispo veio a abranger mais de uma cidade, eram os
presbíteros que se tornavam, pelo menos por um momento, os prir-icipais pastores das congregações recém-estabelecidas. A rendência era, entretanto, acreditar que cada
piriono 11
DA CRISE ENÓSTICA A COtiSTAHIIND
121
centro de populaçáo cristá devesse ter seu próprio bispo. Na província daÁfrica, por volta d o final do terceiro século, havia bispos em aproximadamente duzentas cidades c vilas. Paralelamente aos diáconos e presbíteros, membros das assim cliamadas ordens menores operavam em papéis centrais na vida das igrejas. A ordem das diaconisas, por exemplo, parece ter sido numerosa, pelo menos nas igrejas da Síria cuja prática é representada pelas injun~óesda Didascalia Apostolorum, do terceiro século. Ncssc texto, refere-se a elas simplesmente como "diáconos" c é atribuído hs mulheres um ministério especial, sob o fundamento de que "nosso Senhor e Salvador também foi ministrado por mulheres ministras."' Subdiáconos, que são conhecidos de Carcago como também de Roma, eram assistentes dos diáconos em seu trabalho litúrgico e administrativo. A ordem das viúvas, cuja rnembrezia e regulamento era um problema já no final do prinieiro século, se dedicava à oracáo e à visitaqáo aos doentes e necessitados. Uma das ordens mais citadas é a do leitor, ao qual era atribuída a leitura pública das Escrituras na liturgia e que pode muito bein ter sido o guardião dos livros que lia. Outro ofício comum era o de carequista, e no terceiro século, com a organizacão mais elaborada do cacecumenato (ver 11: 13), este teria sido um posto de grande dignidade e responsabilidade.
A parte a elaboracáo de ofícios e ordens nas igrejas, o terceiro século assistiu a outro desenvolvimen~ode importância especial para a vida das comunidades cristás. Apesar de seu status extralegal, e sem dúvida porque em muitos senão em todos os lugares sua existência era reconhecida defacto, as igrejas, na pessoa de seus bispos, se tornaram proprietárias. Elas haviam, obviamente, desde o início disposto de dinheiro recebido como ofertas dos fiéis. Elas iiáo haviam, no eiitanto, possuído edifícios ou outra propriedade imóvel. Seus locais de reuniáo eram casas particulares colocadas à sua disposiçáo por fiéis individuais. No decorrer do terceiro século, contudo, elas cornecaram a adquirir, senáo a construir, seus próprios Iocais de reuniáo, como as escavações em Dura-Europas (na Síria oriental) e em Aquiléia têm revelado. A igreja romana parece ter corne~adoa adquirir seus próprios cemitérios na época de Zeferino. Esta evidência, embora seja esparsa, provavelmente representa uma tendência geral e comum, pois a questáo da restauraçáo de propriedades eclesiásticas surge em letras capitais nos decretos imperiais de tolerância no início do quarto R. H Colinolly, rd., UidfzrcairaApnrtoiorunr (Oxford, 1979), pp. 147s
127
RISTÓRIA DA IGREJA CRISTA
século. Se tais propriedades eram adquiridas normalmente através da compra ou (como parece ser a alternativa mais provável) por legado e doaçáo, náo
t sabido. Em
todo caso, sua aquisicáo reria significado cargas adminis~rativasadicionais (como também tentaçóes adicioilais) para o bispo e seus diáconos, como também uma fonte potencial de receita regular tanto para obras de caridade como para o sustento das atividades e dos oficiais da igreja. Finalmente, é no terceiro século que vemos os primórdios, ainda que bem incipientes, de uma organizaçáo da igreja acima do nível local. Já no segundo século, como conseqüência da crise rnontanista na Ásia Menor e do debate sobre a data da Páscoa, foram realizados coiicílios de bispos segundo uma base regionat para discutir e resolver problemas comuns. Ein muitos setores do mundo çristáo, essa prlitica se tornou comum. O s bispos, como represei-itantese líderes de suas igrejas, se encontrariam para lidar com alguma questão delicada (como na série de concílios realizados no Oriente para considerar o caso do monarquiano Paulo de Samósata) ou simplesmente para discutir problemas comuns. Em algumas áreas, tais concílios ou sínodos passaram a ser reaIizados em uma base regular. Na província da África - de acordo com o ensino de Cipriano sobre a natureza do ofício do bispo e seu exeinpio na apclaçáo para a a ~ á oconciliar para solucionar o problema dos lapsos - concílios passaram a ser realizados anualmente. Lado a lado com o deserivolvinienro das instituiqóes coilciliares,
uni
sistema co-
rnecou a surgir no qual certas igrejas e seus bispos eram reconhecidos como tendo eminência e autoridade especiais em uma província ou área particular. Estas eram ordinariamente as igrejas das capitais provinciais e também, exatamente por causa dessa razáo, os centros dos quais o cristianismo havia originalmeilre se espalhado em suas rcgiócs. Assim, Cartago era o local da "igreja rnáe" da província da África, e seu bispo, pelo menos a partir do tempo de Cipriaiio, coiivoçava e presidia os concílios de bispos naquela província. Similarmeiite, a igreja roinana e seu bispo tinham unia superintendência natural sobre as igrejas da maior parte da Itália, como acontecia com a igreja de Alexaiidria em relacáo ao Egito. Eventualmente (mas náo até o quarto sii.culo) esse nascente sistema de organizaçáo suscitou não um mas dois níveis de jurisdic;ao superior. No Oriente, c muito mais gradualmente no Ocidente, cada província passou a ter sua igreja e bispo "metropolitano." Mas algumas igrejas notadamenre Roma, AIexandria, Antioquia e Cartago - eram reconhecidas como tendo uma área muito maior que a de uma única província. Tais igrejas passaram a
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DA CRISE GNÓSTlGX A CONSIRNTIHO
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ser chamadas, em um período posterior, "patriarcais", e no Ocidente, como rambém em Alcxandria no Oriente, foram aos bispos destas sés que o estilo "papa" (papas) veio a ser, embora náo exclusivamente no início, regularmente aplicado.
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Capitulo 12
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O Culto Público e o Tempo Sagrado
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Desde os tempos mais antigos os cristãos se reuniam regularmente no primeiro dia da semana,' cujo início eles consideravam, no modo rradicioi~aljudaico, o pôrdo-sol do dia anterior. A observaçáo desse dia era central no padráo de suas vidas, e
eles tinham seus próprios nomes para ele, ainda que estivessem acostumados ao scu n o m e pagáo, dies solis (dia d o sol). Eles o chamavam "dia d o Senhor",' presumivclmente porque, segundo a rradiçáo, este foi o dia da ressurreição do Senhor. Eles também o chamavam "o oitavo dia",' porque como o dia no qual "Deus inaugurou um novo mundo"' ele caiu "além" dos confins da semana comum da mesma maneira que o reino de Deus transcende o mundo comum. Ele era, portanto, r;ndo :--anl :lusa cn1
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um dia de celebraçáo, impróprio para a melancolia ou tristeza. Desenx Lveu -se uma tradiçáo no sentido de que naquele dia náo era permitido a ninguém jejuar ou ajoelhar-se.
A ocripacáo dessas assembléias no primeiro dia era celebrar a nova vida e a esperança que os fiéis parrilhavam no Cristo ressurreto. E por coerência, uma das marcas do dia era a participação eiii uma refciçáo cerimonial que rememora17ae reproduzia o senrido das aqóes do Senhor em sua Última Ceia com os discípulos. Naquela oportunidade, de acordo com a tradiçáo lirúrgica cuja forma mais antiga é encontrada em 1 Coríntios 11:23-25, Jesus, quando procedeu a costumeira açáo de graças
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sobre o páo (no início da refeicáo) e sobre "o cálice de benGáoU(ao final da refciçáo)
Atos 70:7;1 Corintios 1 6 2
' Apocalipsç 1: l O. Cf. João 20:26. Epistoh k B~iriiizhé1 5:8.
pôs estes elementos de lado. Eles deveriam ser símbolos dele próprio, em sua morte triunfante e do "novo pacto" entre Deus e a humanidade, que era o fruto daquela morre. A refeição, portanto, como a igreja a reencenava, era percebida como uma proclamação "da morte do Senhor até que ele venha"' e ao mesmo tempo uma maneira na qual a igreja participava, aqui e agora, da nova vida do Cristo ressurreto, a "vida da era vindoura." Nos tempos mais primitivos, essa refeiqáo cerimonial era exatamente isto: uma refeiçáo comum da comunidade à qual, em um certo morneilto, a açáo de graças crucial sobre o páo e o cálice e o partilhar deles foram incorporados. Com o tempo, entretanto - talvez por causa dos tipos de problemas que Paulo encontrou em sua congrega~áoem Corinto"
a aaáo de graças e comunhão foram
separadas da refeiçáo comunirária e se [ornaram uma cerimônia independente. A transição escava completa na época de Justirio Mártir. Em sua descricáo do culto cristão no dia do Senhor,' a eucaristia ("a~áode graças") figura proeminentemente, mas as aqóes da Última Ceia náo mais ocorriam no contexto de uma refeição ordinária. Como resulrado, há uma açáo de graças proferida sobre o páo e o cálice conjuntamente, na qual "o presidente dos irmãos
. . . rende louvor e glória ao Pai do univer-
so por meio do nome do Filho e d o Espírito Santo, e oferece açóes de graças demoradamente porque fomos julgados dignos de receber essas coisas dele." Em seguida os "diáconos dáo a cada um dos presentes uma porçáo do pão e vinho coin água 'agradecidos', e os levam aos ausente^."^ Não era apenas a celebraqão da eucaristia, entretanto, que marcava a observaçáo primitiva do dia do Senhor. Desde a época da primeira geraçáo cristã, os fiéis se reuniam regularmente (e não apenas no primeiro dia) para um exercício de louvor, instruqáo e oraçáo: um culto modelado no culco da sinagoga (e sem dúvida em muitos casos simplesmente idêntico a ele). No tempo de Juscino, tal assembltia, com a ênfase adicional na leirura da Escricura, era o início normal da liturgia do 'primeiro dia." "No dia chamado Domingo há uma reunião . . . e as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas sáo lidos, rant.0 quanto o tempo pern~itir.Quando o leitor termina, o presidente, através de um discurso, urge e convida a imitaçáo destas coisas nobres. Entáo todos nós nos levantamos conjuntamente e oferecemos o r a ~ ó e ~Tais ."~
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1 Coríntios 112 6 . 1 Coríntios 11:17-22. I Apolonid 67, e cf. 65-66
Ibid., 65.
PERiOnb II
DA EAISI GNÓSTICA A CONSTANTINO
125
rc~iniõesnão eram, e náo pretendiam ser, breves ou apressadas. As lei~uras,como - ~ s t i n indica, o eram longas. Outras fontes indicam que elas eram intercaladas com o c a t o dos salmos, que possivelmente as precediam. Em alguns locais no cerceiro iPculo, o "discurso" do bispo era seguido por homilias similares por qualquer dos >resbiteros que desejasse falar, e sem dúvida este era o contexto principal para as s~ocuçóesdos profetas. As oraçóes que seguiam a pregaqáo eram as intercessões da ~ornunidade;antes de elas começarem, aqueles que ainda náo haviam sido batizados sram dispensados (pois "vocês não devem permitir que niriguém coma ou beba de r:ia eucaristia, exceto aqueles batizados no nome do Senhor"'"), e quando eIas termix y a m iniciava-se a celebração da refeiçáo eucarística. Assim, conforme as palavras
4, Tertuliano,"
o ciclo da semana era cumprido, pela adrninistraçáo da "palavra" e
oferecimento do "sacrifício" de pão e vinho com aqáo de gracas. Tal ciclo da semana foi logo suplemenrado por urii segundo, que iinha o ano como sua base e que estava centrado na observação cristá da Paschu - Páscoa. Que os srimeiros cristãos (mesmo os gentios entre eles) compreenderam o simbolismo da Páscoa judaica e lhe atribuíram grande significado é evidente da maneira na qual Paulo insiste sobre uma interpretaçáo cristológica a seu respeito ("Cristo nosso cordciro pascal foi imolado"'"), sem mencionar a ênfase dada pelo quarto evangelho (o qual neste ponto difere dos outros evangelhos) ao fato que Jesus morreu "no dia da preparação da páscoa'13 , quando os cordeiros para a celebração estavam sendo imoiados. A páscoa, enráo, rornou-se para os criscáos a celebraqáo do novo txodo - a morte de Crisro na vida, a qual havia sido yré-figurada na libertaCáo dos israelitas do Egito. As igrejas da Ásia Menor preservaram por longo tempo o que foi provavelmente o costume original de celebrar a festa no décimo quarto dia do mês hebraico Sisá, a data tradicional da páscoa, mas o hábito palestino, alexandrino e romano de rdaptar a celebraçáo da páscoa ao padráo da semana crisrá eventualmente prevaleceu, e a páscoa se tornou um festival de "primeiro dia." Ela era marcada, entretanto, por observaçóes especiais (notadamente por uma grande vigília durante as horas de lrcvas precedentes ao dvorecer do domingo), e seguia a um jejum solene, o qual na
-
ibid., 67. Didilquê 9.5. Sobrt u %;e A s Mulheres 2.1 1.2 1 Coríntios 5:7. loáo 19:14,31.
i26
HISTÓRIR DA IGREJA CRISIÃ
época de Hipólito em Roma estendia-se desde a sexta-feira. O terceiro século no Oriente assistiu à extensáo do jejum para abranger a totalidade daquilo que viria a ser a "Semana Saiita." A páscoa assim tornou-se o festival central do ano cristáo, e por voIta do terceiro século era celebrada n5o por um dia somente mas, na realidade, por cinqüenta dias - a esta~áointeira desde a própria páscoa até o pentecostes (o festival judaico das semanas), o qual comemorava o "mistério" total da salvacão conforme compreendido no triunfo de Cristo e seu dom do Espírito Santo.
Capítulo 13
Batismo A cerimônia do barismo, intimamente associada à páscoa criscá canto em sua prática como em seu significado, foi desde os tempos mais primitivos o modo de iniciacá0 formal na comunidade escatológica do povo de Deus em Cristo. O costume de lavar em água para simbolizar penitência e purificação possuía amplo precedente na tradiçáo judaica (para náo mencionar a pagã). Bastan~eseparado das diversas lustraçóes prescritas em 1,evítico e daquelas empregadas ritualmente na comunidade de Qumrã, há o provável costume de lavagens no processo de fazer prosélito no judaísmo. O precursor imediato do batismo cristáo, entretanto, foi aquele praticado por joáo "o Batisra" - um batisr-ilo que significava penitência e conversá0 e assim é descriro cri1 Marcos 1 :4corno sendo "para o yerdáo dos pecados." O rito de Joáo era aparentemente Lirn rito que prenunciava a era messiânica e a renoraçáo do dom do Espírito que aquela traria.' Era um ato quc almejava preparar un-i povo para receber o Messias. O costume cristáo do batismo comecou, até onde podemos dizer, apenas após a experi?ncia da ressurreiqão. Ele se diferenciava do batismo de Joáo, portanto, porque simbolizava a entrada na nova relação com Deus que havia sido realizada na morte e ressurreição do Messias, Jesiis, e assim conferia o dom escatológico do Espírito. Tudo isso é evidente de nossa tcsremunha mais antiga, Paulo. Apesar de sua afirmaçáo que
sua própria vocacáo era para pregar e náo pára batizar,' Paulo sabe e pressupóe que todos OS seus coriversos "foram lavados . . . santificados . . . justificados fio nome de nosso Senhor Jesus Cristo e no Espíriro de nosso Deus."' O que isto significa para ele é que nessa lavagem e na confissão de fé que a acompanha,' os fiéis têm "se revestido de Cristo."' Eles foram "sepultados . . . com ele pelo batismo na morte."" Conseqüentemente, eles não mais estão escravizados ao pecado mas no batismo fizeram a transicáo crucial para uma nova ordem de existência. "Vocês . . . devem se considerar a si mesmos mortos para o pecado e vivos para Deus em Jesus Cristo."Essa participaçáo na morte e nova vida de Cristo, ademais, é realizada pelo dom do Espírito. "Pois em um único Espírito fomos todos 116s batizados em um corpo . . . e a todos nós foi dado beber de um só Espírito"" com a conseqüência, di7. Paulo, que
a comunidade de fiéis é "rernplo de Deus", no quaI o Espírito de Deus habita."
A luz dessa compreensáo pauiina de batismo, não é surpreendente quc cscritorcs posteriores também assumem uma perspectiva séria dele. Para o autor do quarto evangelho, o batismo significa ser "nascido de novo . . . da água e do Espírito", e fora dele ningutm pode "entrar no reino de Deus."" Nri primeira epistola de Pedro, a água do barismo é comparada às ;íguas do dilúvio que salvaram Noé e sua família." Heririas, em seu Pastei-, registra uma visão profitica da igreja como urna "torre" que é "edificada sobre as águas" pelo motivo que "sua vida foi salva c deverá ser salva por meio da água."12 I'ara Justirio hlártir, também, o batismo é "renascirnento" (i~nn~eizizêsis) eni um novo modo de vida, o qual ele explica aos seus leitores contrastando a condiqáo de "filhos da necessidade e ignorância" com a de "[filhos] da cscolha e conhecimento", cujos pecados foram perdoados." O batismo para ele é a libertaçáo que redime as pessoas do ~ e c a d oe por meio de "iluminaçáo" (phótisvrzos)" capacita para fazerem a vontade de Deus. Eni todos estes testemunhos, de Paulo a ' 1 I:«rínti
' Gilatas 3 : 2 . R < I I I I ~ I0:4. I~.~ Koiiianos 6: 1 I . ' 1 Coríntios 12:12. ' 1 Corínrios 3:16. '[I João 3 3 , 5. ' 1 I1rdrr)320-21. ' Hrrmas, O i'ajtor ("Visiies" 33.5). :' I ApoilogLz 61.3, 10. lbid., 61*10. '+
Justino Mártir, surge a convicçáo de que o batismo representa um momento decisivo de transiçáo entre identidades velha e nova, entre morte e vida. E é neste sentido que ele foi universalmente compreendido no cristianismo primitivo. Como poderíamos esperar, existe pouca evidência na literarura amplamente ocasional do primeiro e segundo séculos, que traduz os componentes ou a forma da cerimônia do batismo. Náo obstante, essa literatura fornece indiçaçóes dos momentos ce~itraisdo processo iniciatório. Em seu cerne, obviamente, encontra-se a prdpria
lavagem. De acordo com a Didaqut, esta deveria se possível ter lugar em "água viva [i.e., corrente]", presumivelmente por imersáo. Na ausência de um rio, entretanto, era aceitável ucilizar água parada e até mesmo "derramar água sobre a cabeça."15 Claramente, ademais, essa lavagem era sempre acompanhada por uma confissão de
fk, a única "fórmula batismal" conhecida pela igreja primiriva. Paulo foi batizado quando "invocou o nome [do Senhor]";'% o tesoureiro da rainha Candace, de acordo com uma antiga adicáo corretiva ao texto de Atos, foi batizado com a confissão, "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus."" Como já vimos (ver 11:4), essa confissão de fé comeqou logo no início a assumir uma forma tríade de acordo com a linguagem de Mateus 28:19. Os fiéis entravam em sua nova vida por meio do reconhecimento e afirmaçáo da tríplice fonte daquela vida: Jesus o Senhor, o Pai que o enviou e o Espírito do Pai pelo qual eles estavam unidos ao corpo de Cristo.
O processo iniciatório parece, entretanto, pelo menos em alguns lugares, ter envolvido mais do que apenas lavagem acompanhada por uma confissáo de fé. Os Atos dos Apbstolos registra que esse processo consistia de três elementos: arrependimento, batismo "no nome de Jesus Crisco para o perdáo dos.
. . pecados", e a recepção do
"dom do Espírito Santo."'Westes três, o primeiro é obviamente em cerro sentido preliminar ou preparatório. Ele era uma pressuposiçáo ~iecessáriada iniciaqáo cristá e se materializava eventualmente, tanto em certas cerimônias do próprio rito batismal como na instituiçáo do catecumenato. O segundo elemelito E a lavagem-com-confissáo, que Atos associa especificamente com o perdáo de pecados (talvez assumindo uma perspectiva mais estreita do sentido dessa cerimônia do que a assumida por Paulo). O rerceiro elemento, a recepqáo do Espírito, o autor de Atos considera como
PER1000 II
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DA CRISE CNBSTICA
L COKSTRITINO
129
.'>tFew~tia .. essencial da iniciação na vida cristá," e ele a associa (embora não no caso
:r isrituri50 Cornéliozo)com um rito de irnposicáo de máos, o qual parece normal-
-.=rite, embora nem sempre, seguir imediatamente ao batismo propriamente." O :- 2 Atos parece refletir, em seu restemu~ihomeio confuso, é o começo do início de -1 processo
pelo qual momentos diferentes no significado da iniciaçáo crisrá passa-
r m a estar associados com elementos sucessivos na prdpria cerimônia.
Os primeiros relatos relativamente completos da iniciaçáo cristá chegam atC z i i do início do terceiro século -
na fiadiçáo Apostólica, de
2ipólito de Roma, mas também nos relatos contidos no tratado de Tertuliano,
-7Ònia mas rambém sua solenidade e p d u a l elaboraqáo, um reflexo de seu lugar ;:ntral na vida c consciência das igrejas. Diferentemente da eucaristia, que acon-.<,ia ..- cada domingo, o batismo normalmente ocorria apenas uma vez (ou quan-
d o muito duas vezes) em cada ano. Ele perrencia, e m outras palavras, ao ciclo -nua1 e i ~ á osemanal de celebraçáo e ocorria em conexão com a observação da ?ascoa cristá, seja na própria páscoa ou no pentecostes. Dc acordo com o relato
LS Hipólito," as prepara~óespara a cerimônia começavam na quinta-feira antes i a festa, na oportunidade em que os candidatos eram instruidos a se lavarem. Na iesta-feira e no sábado, eles jejual~amcomo símbolo de arrependimento. A ceririónia em si c o m e p v a "ao cantar do
no domingo, quando era proferida
xma oraçáo sobre a água e os candidatos se despiam de roupas e ornamentos. Despidos, eles solenemente renegavam a Satanás e seus servos e suas obras e eram ;ingidos com "o óletr do exorcismn." Depois eles eram conduzidos por urn diicono nara dentro da água - primeiro as crianças e os infantes (pelos quais seus pais falavam), depois os homens, em seguida as mulheres - onde um presbítero Iavava iada candidato três vezes enquanto cada um deles fazia a confissão tríplice em resposta às questóes do presbítero (ver 11:4). Saindo da água, os candidatos eram ungidos uma segunda vez, com "o óleo de acáo de gracas", entáo enxutos, vestidos e levados para a igreja reunida. Ali o bispo impunha suas mãos sobre cada
um deles com oração, e ungia cada um deIes na fronre, fazendo o sinal da cruz. A
-
A r o s 8:lL-17. ' Aros 1 0 : 4 4 4 8 . .%tos 196
'' Trfidigáoilyosrúlicu 20-22.
HISTbRIR DA IGREJA CRISTA
130
cerimônia continuava com a celebraçáo da eucaristia, na qual os recém-batizados participavam pela primeira vez. Na estrutura dessa cerimônia (os detalhes da qual variavam de igreja para igreja), é fácil discernir os contornos da seqüência lucana de arrependimento, batismo e
imposiçáo de rnáos (embora nem Tertuliano nem Hipólito têm dificuldade, como Lucas aparentemente teve, para separar o dom do Espírito d o batismo propriamente). É rambém fácil apreciar quáo dramacicamenre a cerirnôiria simbolizava a transiçáo de uma ordem e contexto de vida para outra. No decorrer do terceiro século, este sentimento que a iniciacáo cristá representava uma "virada" radical da morre para a nova vida foi fortalecido pelo desenvolvimento e institucionalizaçáo sistemárica do catecumenato, o qual alongou bastante u estágio preliminar ou preparatório da iniciaçáo. Já em Hipólito, o início desse desenvolvimento está evidente. Tertuliano insisce em que as pessoas devem se preparar para o batismo com oraçáo, jejum e confissão de pecados.'? Hipblito, entretanto, não está satisfeito com exortaçáo apenas: elc prescreve urna disciplina ordenada para os que desejam ser batizados. Quando estes expressam sua vontade, primeiramente a maneira de vida de cada um e sua ocupaçáo devem ser investigadas; se forem admitidos como candidatos, eles deverá0 permanecer até três anos nesse estado marginal, sendo instruídos (katêchoumenoi) e testados, antes de serem concretamente levados para o batismo. Quando esse tipo de procedimento se tornou comum, as igrejas organizavam o progresso dos catecúmenos, conduzindo-os solenemente por estágios para uma compreensão do mistério da fé e vida cristã - a qual, como Hipóliro insiste," i ~ á odesreria ser revelada para incrédulos. Foi nesse contexto de um catecumenaco organizado que os credos declaratórios, do cipo do posterior Credo dos Apóstolos, surgiram para servir como bases para inscruçáo e como resumos da crença cristá que os candidaros para o batismo pudessem memorizar. Um resultado de todo esse desenvolvimento foi que muitas pessoas passaram muito tempo de suas vidas como cacecúmenos. O próprio Tertuliano - mesmo diante da prática, já bem estabelecida nessa época, de batizar infantes e crianças
- achava prudente que as pessoas postcr-
gassem o barismo acé que elas estivessem completa e verdadeiramente preparadas para levar a vida que o batismo exigia. "Se alguém compreender a gravidade do " Sobre "
O
iiiltisino 20.
Padiçdo Aposróiirn 73.14.
vtnioio 11
DA CRISE GNÓSTICA A EONSTANIINO
13 7
batismo, ficará mais temeroso em obtê-lo do que em postergá-io"", escrcveu ele; e a instituicáo do catecumenato era, e pretendia mesmo ser, uma testemunha perrnariei-ite dessa conviccáo da " g a ~ ~ i d a d edo " batismo. Nas comunidades cristãs primitivas, entáo, a cerimônia do batismo era considerada como uma questáo, bastante literalrnenrc, de vida e morte. No que se refere ao seu significado, houve diferenças de ênfase, mas pouco debate. A cerimônia do barismo significava e portava perdáo dos pecados e renascimento em Cristo através do dom do Espírito. Ela era portanto no sentido mais estrito, elemento constitucivo da igreja. Exatamente por causa desse fato, entretanto, inevitavelmente surgiu controvérsia, nem tanto sobre o sigilificado da cerimônia mas sobre as cor-idiçóes exigidas para seu "verdadeiro acontecimento." Todo mundo sem dúvida concordaria com Tertuliano, que qualquer pessoa batizada poderia em princípio administrar o batisrno.lGMas poderia o batismo verdadeiramente acontecer
-
poderiam o perdáo dos
pecados e a vida no Espírito ser verdadeiramente conferidos - em uma comunidade cismárica ou herética? Cipria~iode Cartago e Esteváo de Roma (254-257) entraram na controvirsia sobre essa questão, quando ambos enfrentaram o mesmo problema: o que fazer com pessoas batizadas em um grupo cismático se elas buscassem resrauraçáo na Igreja Católica. A posiçáo de Esteváo era recebê-las e restaurá-las como penitentes, com imposição de mãos - uma política que, umavez que as tratava como pessoas adequadamente batizadas, parecia admitir, ou que os grupos cismáticos se qualificavam como "igreja" ou que o batismo
ocorrer fora da igreja." Cipriano, enrretan-
to, não admitiria nenhuma destas premissas. Ele assumiu a posiçáo que, uma vez que o Espírito Santo é concedido apenas na igreja", o templo do Espírito de Deus, tais pessoas na verdade nem foram batizadas e somente poderiam ser restauradas se fossem (re-)batizadas Uma vez que Esteváo faleceu em 257 e Cipriano foi martirizado no ano seguinte, a controvérsia não foi solucionada. As igrejas norte-africanas continuaram a seguir a posição de Cipriano, a qual viria a se tornar um problema novamente na controvérsia donatisca.
Sobre o Batismo 18.
'' Sobre o Batirnro 17.
132
HISTQRII DA IGREJA E R I S T ~
Capítulo 14
A Eucaristia Já fizemos alguns reiatos sobre a compreensáo inicial da eucaristia. O termo "eucaristia" tornou-se, pelo menos a partir do fim do primeiro século, a palavra prevalecente e ordinária para a cerimônia que havia originalmente, talvez, sido referida como "o partir do páo."' Ela denotava em primeira instância, e bastante apropriadamente, o oferecimento de açáo de graças a Deus sobre o páo e o vinho na refeicáo cerimonial da igreja. Ela veio a denotar, por extensão, a liturgia completa do dia do Senhor, incluindo o ministério da vinho "agradecido", o
(x7cr I1:12), e, ademais, o próprio pão c
os fiéis partilhavam no clímax da refeiçáo. Uma vez que,
como já vimos, o que essa açáo rota1 simbolizava era o Cristo em sua morte e nova vida triunfanre (o mesmo "mistério" da páscoa no qual o batismo iniciava o fiel), o que sua execuçáo pretendia era o envolvimento o u participação da igreja reunida na vida escarológica e transtemporal do Senhor crucificado c ressurreto. Essa participação era consumada no partilhar do pão e vinho aos quais Jesus havia atribuído o significado de seu corpo e sanguc. Náo há nenhuma falta, nas fontes do seguiido e terceiro séculos, de referências à eucaristia ou de indicacóes da maneira na qual os primeiros cristáos a viram e a entenderam. Náo há, enrretanto, quase nenhum debate ou especulaçáo sobre esse tema, do tipo que caracterizou as tentativas medieval e reformada de sistematizacão da compreensáo da ccrirnô~iiae de sua racionali~a~áo. O discurso e ensino cristáo primitivo sobrc a eucaristia, como o discurso e cnsino crisráo primitivo sobre o batismo, desloca-se iiáo no domínio da explicação ou descrição "literal" mas da metifora viva. De fato, eles percebem a própria cerimônia como metáfora encenada - não
uma simples figura de linguagem, por certo, mas o alcance de (ou o ser alcançado por) uma realidade em e acravbs de outra.
A chave para a compreensão cristã primitiva da eucaristia talvez encontre-se na própria idéia e aqáo de dar gracas. Enraizada nas "bendiçócs" judaicas sobre o pzo e o cálice, que eram bênçáos de Deus para suas dádivas na criaçáo e reden~áo,a "gran-
' I.ucos 2 4 3 5 ; Aros 2:4h
PEflionB 11
DA CRISE CNÕSIICI A CONSTINTINO
1.3.3
de açáo de graças" da eucaristia rendia louvores a Deus, ao confessar diante dele, e portanto comemorar (anamnêsis), sua obra de salvaçáo no Cristo. Essa comemoração, entretanto, que tinha lugar na açáo de gracas, não era um simples ato rneritai de rememoraçáo. Os judeus, que na refeição pascal "comemoravam" o êxodo, escavam constituídos, naquele aro, no povo do êxodo: a comemoraqáo levava à participaçáo no evenro rememorado. Da mesma forma, os cristáos que rememoravam o Cristo em sua morte e ressurreicáo salvífica através de sua açáo de gracas a Deus eram constituídos, naquela açáo, participantes no Cristo - em tudo que ele era, fez e significou. Ademais, eIes faziam essa comemoração não simplesmente nas palavras de sua açáo de graças mas nas açóes que eles também executavam
-
as açóes de pegar, aben-
çoar e ~ a r t i l h a ro páo e o vinho. Pois essas mesmas acóes eram uma cornemoracáo uma reencenaçáo das mesmas açóes com as quais Jesus havia simbolizado o Novo Pacto em seu sangue. A liturgia completa de açáo de gracas, portanto, era uma oferta de louvor a Deus em e por meio da quai a igreja reunida era alcançada pela nova vida em Cristo, Há pouca surpresa, então, na descriçáo de Inácio da eucaristia como "a medicina da imortalidade",' uma vez que "imortalidade" é sua palavra para aquela nova vida. Nem é incompreensível quando u n ~escritor como Tertuliano pode, em uma passagem, simplesrnenre identificar "o corpo do Senhor" com "a eucaristia'"i e em oritra afirmar que o pão da eucaristia tem a "figura" do corpo de Cristo4 ou "torna seu corpo manifestovi (reprdesentizí).Para os propósitos deTertuliano, as duas formas de linguagem interpretavam uma a outra e afirmavam, dc maneiras diferentes, a coincidência do Cristo em quem Deus de uma vez para sempre operou salvaçáo c o pão e vinho que "significan? ele próprio. Essa conricqáo de que a aqáo da igreja na eucaristia coincidia, em virtude da promessa de Cristo da graciosidade de Deus, com a realidade que ela reinemorava e comemorava, levou a um desenvolvirnen[o uiterior. que
scr estudado no ensino
de Cipriano. Desde bem cedo," tinha sido comum se referir à aqão da eucarisria como uma "oferta" ou "sacrifício." Ta1 linguagem deu expressão ao fato de qric a eucaristia era uma oferta de louvor e adoraçáo e oraqáo a Deus, e tairibém ao fato de
' Efdsios 20. Sukre u ~Lfodir~i~r 9. Coizt~c MLEI.C 3.13.4, ~~O i
Ibid., 1.11.3. Cleme~ire44.4.
" Vcr i
1.34
HISTURIA DA IGREJA CAISlÁ
que nela as "dádivas" do povo eram apresentadas a Deus. Assim, no modelo de oraçáo eucarísrica em que Hipóiito fornece sua Sradic20 Apostúlic~~, o bispo diz em certo momenro: "Nós te oferecemos este páo e este ~ á l i c e . "Esta ~ oferta de coisas materiais da criacão para uso de Deus já havia sido ei~fatizadapor Ireileu em sua polêmica anti-gnóstica.' Com Cipriano, entretanto, a idéia da eucaristia como sacrifício
t
desenvolvida de uma maneira que quando muito havia estado implícita em alguns escritores anteriores - uma maneira que dependia em úIcima instância da descriçáo de Cristo como o "sumo sacerdote", o qual efetuara salvação "quando a si mesmo se
ofereceu."' Foi idéia de Cipriano que a igreja, a qual através de seu sacerdote humano "imitava o que Cristo fez" na Última Ccia para assim comemorar e entrar em sua obra salvífica, está, na verdade,
ela oferece seu próprio sacrifício de louvor,
participando na auto-oferta definitiva de Cristo; pois, escreve ele, "Cristo levou-nos a todos e nisso ele também levou nossos pecados", e na eucaristia "a assembléia de
fiéis é associada e conjugada com ele, em quem ela crê."'" É a idéia expressa nestas úlrirnas palavras que parece estar, mais fundamentalmente por debaixo das apreciacóes crisrás primitivas da eucaristia. Paulo havia perguntado a seus conversas em Corinro: "Porventura o cálice da bençáo que abencoamos, não é a participacão no corpo de Cristo?"" Cipriano, seguindo o pensamento de Paulo e desenvoIvendo uma imagem tradicional, afirma que na eucaristia "nosso povo é demonstrado formar um único, da mesma forma que muitos gráos, reunidos e moídos e misturados juntos em uma massa, fazem um pão, assim também em Cristo, o qual é o pão celestial, nós podemos saber que há um único corpo, com o qual nós somos ajuntados e u~iidos."'~
;
7iadifáoApos~ólicir4.1 1
T f . Contra ai Heresiizi- 5.2.2.
' Hebreus ::26-27.
' V p i s t o l ~63 (62).1 3 - 1 4 . " 1 Coríncios 10:16, c cf. 17. Epístok 63 (62).i 3.
"
vcniooo 11
DA CRISE GNOSIICA A EONSTANTINO
1.55
O Perdão dos Pecados Era de maneira geral aceito no cristianismo primitivo que o batismo trazia consi50 o perdáo de Deus para os pecados passados. Também era aceito que a conversáo ou arrependimento (metanaia) do fiel era parte, ou condição, do dom batismal do perdáo, que deveria ser evidenciada náo simplesmente no recoi-ihecimento do pecai o e no jejum e oraçáo mas também em mudança de vida - incluindo, se necessário, rnudanga de ocupacão. Esperava-se que o novo cristáo levasse uma nova vida, conGssando a Cristo, evitando a idolatria, vivendo em amor com todos, praticando mreza sexual estrita e abstendo-se da acumulação de riquezas e outros embara~os mundanos. Os padróes da disciplina cristá, eram entáo, tanto estritos como elevados. Inevitavelmente, os fiéis não conseguiam cumpri-los à risca - algumas vezes de forma pequena e ordinária, mas outras vezes de forma que pareciam ~ i á oapenas dramáticos mas escandalosos, e, no final, inconsistentes com a profissão de fé cristá. Hermas, em seu Pastor, está chocado e ultrajado com L ' d i á ~ o t.~. .oque ~ devoram a subsistência de viúvas e órfáos",! "que são rixosos uns para com os outros",' "que rêm o Senhor em seus lábios mas náo em seus corações",' "que sáo ricos e que estão envolvidos com uma grande quantidade de negócios."' Havia, portanto, um sério problema para as igrejas na questão do que fazer com, e o que fazer sobre, os pecados cometidos depois do batismo. Estes pecados excluiriam o pecador da comunidade cristá - do povo sleito de Deus? Eles poderiam ser perdoados? Hermas revela bastante coisa sobre as atitudes da igreja de Roma no início do segundo século, quando ele anuncia o fardo da mensagem conduzida em sua visão: que para aqueles que prestassem atençáo L suas palavras, o arrependimento seria seguido do perdáo, mas "se ainda persistir pecado após este dia [para arrependirnen[o] ter terminado, eles náo teráo ~ a l v a ~ á oA . " idéia ~ de Herrnas, enrretanto - que Deus tem permitido a igreja, seu povo, apenas uma oportunidade histórica para Hermas, O Pmtor (Similicude 9.26.2)
' Ibid., 9.23.2. '
Ibid., 9.21.1. Ibid., 9.20.1. Hcrrnas, O i)ast~i.(Visán 2.2.4-5).
arrcpcndimenco - náo parece ter sido representativa da perspectiva normal. É verdade que a Epísrola aos Hebreus (que pode ela mesma ter sido escrita de Roma) insiste em que "se peçamos deliberadamente depois de termos recebido o pleno conhecimento da verdade, já náo resta mais sacrifício pelos pecados."Nas igrejas joaninas, porém, era ensinado que "se confessarmos os nossos pecados, [Deus] é fiel e justo, para perdoar os nossos p e ~ a d o s " , ~embora o autor das cartas joaninas qualifique admitindo que exis~eum "pecado quc é m o r t a l . " T o m o ele percebe isso, entáo, alguns pecados ou cipos de pecado são em si mesmos provocadores da morre, e para eles náo pode haver perdáo; mas para oiitros, pecados mais comuns, o perdáo de Deus está sempre disponii~elpara aqueles que se arrependerem. Por volta do início do terceiro século, a perspectiva joanina havia prevalecido, mas em uma forma significativamente desenvolvida. Por um lado, de modo geral cra crido que havia certos pecados imperdoáveis. Comentando sobre a afir1nac;áo em 1 João que "há um pecado que é para a morre", Orígenes deixa claro que idolatria, adulrério e fornica~áosão pecados que Deus náo perdoa, c ele censura os bispos ("sacerdotes") que rem a pretensáo de perdoar tais pecado~.Tertulianotamlbim distingue entre pecados "rernissiveis" e "irremissí~~tis",'~ e nessa última categoria ele inclui não apenas idolatria, adultério e forilicaçáo mas também blasfknia c apostasia."
Por outro lado, ariibos esses escritores estáo em acordo que a maioria dos pecados comuns devem ser tratados pelo perdáo múeuo, pela oraçáo e pela satisfaçáo alcançada por meio do jejuni e da esmola. Para pecados graves, entretanto, que náo figuram na lista dc ofensas imperdoáveis ou "irremissíveis", havia, no início do terceiro século, uma disciplina penireiicial pública em uso pelo menos no Egico, África do Norcc e Roma. As raizes dessa disciplina sem dúvida retrocedem até bein discante na história da igreja. Paulo inscruiu seus convertidos em Corinto a excluir de sua comunhão um homem que estava "vivendo com a mulher de seu pai"," implicando que a igreja reunida tinha autoridade para julgar e excomungar pecadores; e o evangelho de Mateus concedeu à as-
' Hebreus IU:76. I JoZo 1 3 . " 1 5050 5:16. " Sobre a Oi-apio 28.5-3. 'O
Sobrea Modéftia 2.12.
" Ihid., 9.9. '' 1 Corínrios 5:1-5.
PERIOIOII
DA CRISE GNISTICA A CDNSTANTIRO 137
sembléia cristá e seus líderes a autoridade para "ligar" e "desligar."'Wa disciplina penitencjal posrerior, na qual essa mesma autoridade era exercitada, o que era buscado pelo penitente e concedido pela igreja era a oportunidade para aquele "segundo arrependimento" que a visáo de Hermas havia anunciado como uma possibilidade definitiva. O processo era Iongo e formal. Chamado exomologêsis ("reconhecimen~o" - i.e., de pecado), ele envolvia confissáo aberta diante da igreja reunida, um período
de penitência e exclusiio da eucaristia, e finalmente uma restauração pública da comunhão totd da igreja, simbolizada pela imposição de máos pelo bispo. A duraqáo
do período de penitência variava de acordo com a gravidade do pecado ou pecados do indivíduo. Era requerido, conta-nos Tertuliano, que os periitenres "permutassem por tratamento severo" os pecados qiie haviam cometido: que eles se \restissem de luto, comessem e bebessem o mais simples possível, e "se nutrissem de oraçóes nos jejuns.""' Ademais, o priviiégio de exurnolagêsis estava disponível apenas uma vez no tempo de vida cristá de qualquer indk'I'd uo. Na época de Tertuliano e Orítgenes, contudo, houve um vigoroso debate sobre a quesráo dos pecados "irremissíveis." Como já vimos, Orígenes conhecia bispos que, a seu ver, excediam sua autoridade permitindo o arrependimento e a restauraçáo de idólatras, adúlteros e fornicadores. Tertuliano rebelou-se contra a política de um bispo (muito provavelmente o bispo de Cartago) que permitiu fosse realizada penitência para adultério e fornicaçáo, e a quem ele chama, com amarga ironia, "pontifex maximus" e "bispo de b i ~ p o s . "Hipólito '~ relata que seu adversário favorito, o bispo Ca1ixt.o (217-222) de Roma, reivindicava a autoridade para remir (sem dúvida após a ~enirência)pecados da carne e aparenrernente até mesmo pecados mortais. Parece
que Calixro argumentou que o maildamento do Senhor para deixar que o joio e o trigo "cresçam juntos até a ceifa"l%ignificava que a igreja tinha um lugar em si aré mesmo para pecadores," uma percepsáo que prognosticou uma alteracá0 fundamental na imagem que a igreja tinha de si mesma. Tertuliano e Hipólito viam a igreja
da mesina maneira que Henrias havia visto urn siculo antes: como a sociedade dos redimidos, na qual pecado sério náo
Matr'iis 18:18; 1618-19. '"obre o Arrependimento 9.4. I' Sobre LI 1Modéstia 1.h. ' Mateus 13:30. " Hipáliro, Ili3iiosophuumenu 9.12
ser tolerado. O argumento de Caiixto
138
HIST6RIA DA IGREJA
EAISIA
sugere que ela era ao invés uma sociedade "mista", cujo objetivo era precisamente levar os pecadores à salvaqão. No final, como as conseqüências das perseguicóes de Décio e Valeriano demostraram, foi a perspectiva de Caiixto que triunfou. Quando os bispos da África
do Norte, com o consenrimenro final do próprio Cipriano, concordaram em permitir que a disciplina do e~omolo~êsis fosse aplicada até mesmo aqueles que haviam fracassado sob a perseguic;áo, a própria doutrina primitiva do pecado imperdoável fracassou (ver I1:lO). A disciplina da confissão, penitência e restauração poderia ser aplicada a todos os pecados.
Capítulo 16
Padrões da Vida Cristá As disciplinas associadas ao batismo e à penitência, sem mcncionar os ideais e exigcncias morais susterirados por escritores cristáos desde Herrnas até Orígenes e Tertuliano, deixam claro que as igrcjas do segundo e terceiro séculos continuavam a se ver como uma sociedade algo "separada" - governada por um Espírito diferente do
que os espíritos que governavam o mundo livremente. A fonte original desta atitude pode sem dúvida ser buscada na cosmovisáo da apocalíptica judaica. Repudiando a corriip~áopolítica, moral c religiosa de um mundo emaranhado nas redes do mal, o apocaliprico havia olhado para o fbturo, para a derrota deste mundo - para uma nova era quando Deus iria punir o mal, recompensar a jusrila sofredora e assim estabelecer a c r i a ~ á ocorretamente. Já que, contudo, aqueles que haviam crido na mensagem da ressurreicáo de Jesus e haviam entrado, pelo batismo, em sua nova vida, sabiam que eles mesmos possuíain uma parcela já agora nas boas coisas da era vindoura, eles também sabiam que era sua vacaçáo viver coma um povo "crucificado . . . para o mundo."' Sem dúvida esse compromisso foi honrado táo frequentemente na infraçáo corno
PERIOBO II
Dll CRISE GWÓSIICA A CONSTANTINO
133
na observatáo, mas náo obstante foi honrado. Uma evidência primária desse fato é o respeito e a devocáo que os cristáos primitivos concederam aos mártires e ao ideal do martírio. Os mártires náo foram, para eles, simplesmente pessoas corajosas que sustentaram suas convicçóes. Eles foram lutadores no conflito entre o bem e o mal, que partilharam no sofrimento triunfante de Crisro e - exatamente por estu razão - obtiveram a plenitude da vida de Cristo na era viiidoura. O mártir foi de fixo o imitador aperfeiçoado de Cristo, que com o Senhor esrava de hco "crucificado
. . . para o
mundo" e portanto um modelo para rodos os cristáos. Nem rodos os fiéis poderiam - ou desejariam - ser mártires no sentido apropriado, mas todo criscáo poderia, de sua própria maneira, partilhar na morre de Crisro para esta era e em sua nova vida para Deus e com Deus; e foi exatamente cal vida que as igrejas primitivas procuraram não simplesmente encorajar mas até mesmo, atravís de sua disciplina, institucionalizar. Essa vida tinha dois lados, que correspondiam a dois momentos centrais do batismo: arreperidime~-ito- uma rejeição da vida anriga
-
e incorporaçáo em Crisco atravbs do Espírito. Portanto, por um lado, o fiel deveria se desligar dos interesses e preocupações do mundo (e até mesmo hostilizá-los), isto é, a busca de poder, riquezas e prazer. Por outro lado, elc deveria participar de uma
e
nova vida comunal cujo traço central era "afciçáo fraternal" suplementada com
tnes e
"amor."' Ainda que essas comunidades não buscassem alcançar "todas as cciisas em
-. dm a
comum",' elas continuavam a atribuir um alto valor h transcendêr-icia de barreiras
r r e do
sociais convencionais, partilha de bens e apoio mútuo entre membros, e de fato elas
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se organizaram para este fim.
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Ademais, as igrejas recebiam encorajameilro c orientaçáo na busca desses ideais
o
do mesmo mundo que elas criticavam. O ânimo do apocalíptico judeo-cristáo - sua
1 30Vê
percepçáo que o mundo como presentemente constituído não era local apropriado
i3ele-
para os seres humanos, que seu caminho deve ser rejeitado e sua vida transcendida -
E zgem
possuía análogos lia religião e filosofia pagãs da época, e não demorou muito para os
3iam
crisráos passarem a utilizar a sabedoria popularizada dos filósofos e moralistas pa-
sles
gáos para expressar seus próprios ideais. Paulo utiliza a linguagem da filosofia estóica
izra o
e cínica quando elogia sua própria "auro-suficiência" (autarkez'a)' - isto é, indiferença
.:-.al,
.:
para com as coisas exteriores ou independência em relacáo a elas, que era correlata de L
2 Pcdro 1:7.
' Atos 2:44.
' Filipenses 4:1 1.
140
UlSIORlh DA IGREJA CRISTA
liberdade interior; e Atos faz o mesmo quando descreve Paulo discursando sobre "justiça e autocontrole" (enkrateia) em sua exposiçáo d o significado de "fé em Cristo Jesus."' De uma maneira semelhante, a linguagem de um estoicismo platonizado é utilizada em 2 Pedro para caracterizar o formato e a meta da vida cristá. No espírito apocalíptico, essa carta convoca para "vidas de santidade e piedade" para apressar "a vinda do dia de Deus",%as
interprera o sentido dessa demanda na linguagem da
filosofia popular. Os cristãos devem "escapar da corrupçáo que há no mundo por causa da paixáo (pathor), e se tornarem co-participantes da natureza divina."' Em pensadores como Clemente de Alexandria e Orígcnes, tais ideais e idéias filosóficas se tornaram a moeda comum do discurso moral criscáo e deram formato à compreensão de arrependimento e renascimento por muitos séculos posteriores. Houve, entretanto, sérios problemas ocasionados para as igrejas por essa deinanda por simultânea conversá0 do mundo e participaçáo na nova vida do reino de Deus. A natureza desses problemas pode ser ilustrada pelo conflito no segundo skcu-
10 sobre o lugar do casamento na vida crisrá. Havia muito no Novo Testamento, para náo mencionar o ânimo da ipoca, para sugerir, por um lado, que as relacóes sexuais no casamento eram uma maneira segura para prender alguém ao mundo e seus valores, e, por outro lado, que elas náo tinham lugar na vida do novo reino. Paulo havia insistido em que "aqueles que casarem reráo preocupaqóes mundana^",^ c Jesus havia sublinhado que "na ressurreição nem casam riem se dáo em casamento; são, porém, como os anjos no céu."' Dizeres como estes são bastante responsáveis pela estima universal recebida pela virgindade ou continência (novamente, enkrateia) no cristianismo primitivo. Praricá-la era tanto separar-se do mundo como viver a vida da era vindoura, e por volta do terceiro século muitas (talvez a maioria) comunidades cristás tinham, e reverenciavam, seus virgens, homens e mulheres. Em alguns lugares, a admiraçáo pela vida de continência estava aliada com a condenacão direta d o matrimônio. Esse foi o caso de Marciáo e seus seguidores, de muitos gnósticos, de Taciano discípulo de Justino e do movimento "encratita" que ele liderou na Síria, e de escritos como os Atos de Tomás e os Atos de Paulo.'O Tal radicalismo inflexível, contudo, pare-
' Atos 24325.
" 2 Pedro 3:11s. 2 Pedro 1 : 4 . H
1 Coríntios 7:28.
" Mateus 2 2 3 0 . 'O
Ver Hcnnecke-Schncemelchcr, ed.,New 7ktnmenrApor~~phn, vol. 2.
FERI000 11
DA CRISE 618511CA 11 COIISTINTINO
141
ceu excessivo para muitos fiéis, os quais, como o autor de 1 Timóteo, defenderam o casamento." Como Clemenre de Alexandria mais tarde, eles não viam nenhuma inconsistência em afirmar que o matrimônio deveria ser reverenciado e que a virgindade representava uma vocação autêntica (e superior) para os cristáos. Uma posição de meio termo similar emergiu na igualmenee difícil quesráo da riqueza. Os evangelhos deixam claro que Jesus considerava as "grandes posses"'2 como um obstáculo para a encrada no reino de Deus, e uma desconfiança semelhante das riquezas e das pessoas ricas está aparence, por exemplo, na denúncia delas na Epístola de Tiago,li como também no apelo de 1 Timóteo ao aforismo bem contiecido que afirmava que "o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males."" Quando, de acordo com uma estória lendária mas iilsrrutiva, o aposto10 Tomé recebeu uma grande soma
de ouro para consrruir um palácio para o rei, ele em vez disso gastou a doa550 no cuidado dos pobres
-
e assim buscou para seu patrão real um palácio ainda mais
valioso no céu.15 Os cristãos primitivos, então, tenderam a considerar a posse ou aquisiçáo de riqueza pessoal incompatível com a separaçáo do mundo que o evangelho requeria. O que eles elogiavam era o contentamcnro com as iiecessidades,'"ermanecendo "inconcaminados do mundo",17 e a partilha de bens com os necessitados. A mudança social inicial da igreja da sociedade camponesa da Palestina para as cidades do mundo helenístico significou, encreranto, náo somente que mais pessoas
de relativa prosperidade se juntaram a ela mas também que eIa perdeu sua identificação primária com a "subclasse" rural da sociedade romana. Nestas circunstâncias, foi novamente a mensagem de Clemente de Alexandria - desta vez em seu pequeno tratado, Quem é o homem rico quererá ralvo? - que melhor expressou a rnenraiidade e expectativas posteriores de muitos fiéis. A posse de riqueza em si mesma náo era errada, mas somente poderia ser justificada se a riqueza fosse empregada em obras de caridade. Isso náo quer dizer, no entanto, que o ideal radical do mártir - aquele que entregou (e de fato lutou) o mundo por causa da nova vida em Cristo - havia desaparecido
:' 1 l'imótço 4 : 3 .
''Marços 10:22.
"Tiago 2:l-7, 5:l-6. :' 1 6 :1O. :' Henneclte-Schnezmrlcher, h'ew TestamentApocryphn, 2:45 Iss :" 1 Tim6rco
6:s.
- - Tiiagii 1:27.
da? igrejas. Exatamente como Clemente e seus contemporâneos manteriam, que a vida conrinente ou celibatária era superior à condição matrimonial, eles também argumentariam que a entrega direta de riqueza era mais nobre até mesmo do que sua adminisrracáo para o benefício de outros. Ademais, conforme o terceiro sCcuIo chegava ao fim e o cristianismo se espalhava entre o campesiilato rural náo helenizado do vale do Nilo e do interior da Siria, o espírito de mártir radical e rebelde foi despertado novamente. Um novo asce~ismoreafirmou os ideais de continencia e pobreza e eventualmente produziu o movimento monásrico do quarro e quinto séculos.
Capítulo 17
Repouso e Crescimento No a110 260 o imperador Valeriano (253-260), em campanha contra os persas, foi derrotado e capturado por Sapor I (234-270).Seu filho, colega e sucessor, Galieno
(253-268),imediatamente revogou o edito de perseguicão de seu pai, e pelos próximos quarenta anos as igrejas cristãs desfrutaram um período de alívio da perseguiçáo oficial - um alívio que, contudo, foi ocasionado nem tanto por causa de uma mudanqa fundamental, da parte das autoridades imperiais, mas devido ao fato de que elas tinham pouco tempo para lidar diretamelite com a questão religiosa. Esse periodo de crescimetito, consolidação e paz para as igrejas foi o período de crise mais aguda do império, quando sua própria sobrevivência estava amea~ada. No Reno e no Danúbio e nas fronteiras orientais houve constantes e simultâneas pressóes e invasóes. Ademais, a habilidade dos imperadores e seus exércitos lidarem com essas ameaças externas foi prejudicada pelo repetido surgime~itode usurpadores e a consequente necessidade de combater perturbadoras guerras civis. Os persas por três vezes invadiram as províncias orientais, uma vez conquistando a Síria e capturando a própria Antioquia. As tribos góticas forçavam seu caminho cruzando o Danúbio e náo apenas saqueando os Bálcás e a Grécia mas por duas vezes penetrando na Ásia Menor. Em um certo momento a confederaçáo de tribos germânicas
chamadas francos alcançou um ponto tão distante quanto a Espanha, em uma incursão cruzando o Reno, e até mesmo atacou o norte da Africa. Sob essas pressões, os imperadores pareceram por um momento incapazes de manter o impirio unido. Por 'L.
catorze anos (259-273), houve um império" independente na Gália, com sua capital em Augusta Trevirorum (Trier). No Oriente, o reino tributário de Palmira, sob sua rainha, Zenóbia (267-273), anexou a Siria, Mesopotâmia, Egito e partes da Ásia Menor e governou-as como um estado independente. Foi somente sob Cláudio Gótico
(268-270) e o g a n d e Aureliano (270-275) que a maré começou a baixar e o império foi reunido contra seus inimigos. E foi somente com Diocleciano (284-305) que os imperadores foram capazes de voltar seriamente suas mentes para a reforma interna e a recriação da ordem romana desestabilizada. Até aquele tempo, a quesráo dos cristáos e seu status - isto é, a quesráo da posição e submissáo religiosa do império permaneceu suspensa. No final desse período, o cristianismo estava representado em todas as partes do império e seus aderentes podem ter alcançado tanto quanto cinco milhões - uma significativa senão ampla minoria da populaçáo. Suas maiores concentraçóes estavam naÁsia Menor, Egito, Síria, África do Norte e Itália central. No Egito e no norte da África, em particular, ele havia sido bem sucedido ao conquistar a obediência das populaçóes camponesas rurais, um faro náo sem significância para sua história futura. Ao mesmo tempo, sua membrezia chegara a incluir pessoas das camadas sociais mais altas. Na época de Diocleciano havia cristáos na equipe imperial e, nas cidades provinciais, cristáos que pertenciam a ordem daqueles responsáveis pelo serviço de magistrados (por isso o concílio de EIvira na Espanha teve que legislar, no inicio do quarto século, que os cristáos que, como magistrados, tiveram que vestir os trajes do sacerdócio pagáo, poderiam ser restaurados à comunháo após dois anos de penitência, depois de comprovado que eles náo haviam nem sacrificado nem pago por sacri-
fícios). Ademais, havia, nos dias de Diocleciano, cristáos no exército - talvez em decorrência de recrutamento - que ocasionavam disrúrbios de tempos em tempos por causa de seus escrúpulos na quesráo da veneracão aos deuses pagáos. Portanto a igreja se espalhou não apenas geográfica mas também socialmente, e sua membrezia aproximou-se do ponto onde representaria algo parecido com a média da populaçáo geral.
A última metade do terceiro século parece, contudo, ter produzido pouco na forma de pensamento teológico original. Os verdadeiramente últimos anos do sécu-
lo viram Eusébio de Cesaréia (ca. 260-ca. 340) - um pupilo do presbítero Panfílio, o qual havia sido ele mesmo um estudante de Orígenes - começar a trabalhar em sua monumental História Ecleszásticd, a qual foi terminada somente em 323. Em sua ínrima associaçáo com a tradiçáo origenista, Eusébio era aparentemente típico da maioria dos mestres cristáos de sua época. Os sucessivos bispos de Alexandria, especialmente Dionísio (in. ca. 264), encorajaram e representaram um tipo de origenismo popular; e a Cesaréia palestina, onde Orígenes havia ensinado durante os últimos anos de sua vida e onde sua biblioteca foi mantida, tornou-se um centro para a difusáo de seus ideais. Por outro lado, não eram poucos os oponentes dessa tradiçáo.
A cidade de Antioquia, em particular, produziu dois mestres notáveis cujas idéias contrastavam radicalmente com as de pessoas como Dionísio e Eusébio.
A primeira destas foi o notório Paulo de Samósata, que se tornou bispo de Antioquiapor volra de 260 e lá floresceu sob o governo da rainha Zenóbia, de Palmira. Paulo tinha posiçóes muito semelhantes àquelas dos monarquianos de uma geracão anterior em Roma. Contra o trinitarianismo pluralista dos origenistas, ele enfatizava a unidade de Deus e explicava a encarnaçáo como uma instância do Logos divino habitando uma pessoa humana. Ele foi condenado e deposto em 268 por um sínodo de bispos que representavam a tradiçáo origenista. Antioquia foi também o lar do presbírero Luciano (m. 312), um famoso exegeca quem, como Orígenes, trabalhava com o texIo da Septuaginta e dos evangelhos, mas que repudiou os métodos alegóricos de Orígenes e manteve uma interpretacão mais literal do texto das Escricuras. No que concerne às perspectivas teológicas de Luciano, quase nada é conhecido exceto o que pode ser inferido do fato de que Ário e seu protetor, Eusébio de Nicomédia, foram ambos pupilos do mescre de Antioquia. Luciaiio morreu como mártir na última das grandes perseguiçóes. Um contemporâneo de Luciano, Metódio de Olimpo (m. ca. 3 1 I ) , também pegou o porrete contra Orígenes. Uma figura obscura, de cuja vida pouco se conhece e muito de suas obras sobrevivem somente em fragmentos, Metódio acacou Orígenes não apenas no tema da ressurreição do corpo e na doutrina da "pré-existência" das almas mas também no tópico de suas perspectivas sobre a criação "no tempo." Sua obra mais bem conhecida é a assim chamada Simpúsio ou
Banquete dar Dez Virgens - uma imitaçáo do Simpúsio de Platáo, escrito em elogio à virgindade.
Capítulo 18
Forças Religiosas Rivais Se o terceiro século foi um período de expansáo e consolidaçáo para as igrejas, foi rambém um período de mudança religiosa para o mundo romano como um todo. O próprio paganismo experimentou uma mudanca no ânimo religioso. A atenqáo estava centrada menos nos muitos deuses incracdsrnicos da religiáo clássica e mais no Deus transcendentemente santo e doador de vida cujo poder eles, em sua forma diminuída, representavam. Esse desenvolvimento é manifesto particularmente na evoluçáo do culto imperial. Os imperadores, seres humanos como eram, náo eram -=
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mais vistos como deuses. Ao invés, eles eram vistos como pessoas as quais, por causa de seu ofício, eram "filhos dos deuses": isto é, que compartilhavam em sua maneira
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mortal na santidade do Divino e desfrutavam de sua protecáo. Foi nesse espírito, por
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exemplo, que Diocleciano chamou a si mesmo "Jovius", um esrilo que significava náo que ele fosse identificado com Júpiter (o deus supremo do panteso romano) mas que ele o representava e pertencia à sua "família." Por trás dessa mudança no sentido do culto imperial encontra-se o desenvoivimcnto no terceiro século do mono~eísmosolar - adoraçiio do sol doador dc vida como um símbolo do Deus último o qual é a fonte de todas as coisas e que frequentemente era identificado com Apoio. Encorajado pelos imperadores da dinascia dos Severos no início do terceiro século, a popularidade desse culto cresceu conforme o tempo passava. O imperador Aureliano construiu um p n d e templo para o Sol Invicto, que ele pretendia ser o centro da vida religiosa do império. Os cristáos no quarto século náo poderiam encontrar melhor maneira de rivalizar essa deidade popular do que utilizar seu aniversário, 25 de dezembro (o solstício de inverno), para celebrar o nascimento de Cristo, o Sol da Justiça. Em um nível mais popular, o culto ao sol e à transcendente vida que ele representava assumiu contornos no disseminado culto de Mitra, a divindade iraniana da Luz da Manhã. Mais popular no Ocidente do que no Oriente, e especialmente influente nas camadas do exército romano, os mistérios de Mitra não apenas ofereciam imortalidade para seus iniciados mas também inculcavam uma ética de fidelidade severa, boa conduta e autocontrole.
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HIãIÓRIA DA IGREJA C R I S T ~
Não desassociado destes desenvolvimentos na religião estava o surgimento do neoplatonismo, a escola filosófica cujos ensinos se tornaram, no terceiro e quarto séculos, o veículo de um reavivamento pagão e uma força de oposição entre as pessoas instruídas nas reivindicaçóes do cristianismo. A fonte e inspiracão do movimento neoplatôriico foram os ensinos de Plotino (205-27O), cujos ensaios escritos, pretendidos exclusivamente para seus esrudantes em Roma, foram reunidos por seu discípulo Porfirio (233-304) em uma coleçáo intitulada Ezkuclles. Um intérprete cuidadoso e criativo iiáo apenas dos escritos de Platáo mas de toda a tradição da filosofia grega, Plotino discerniu seu Sol, o Primeiro Principio de toda realidade, em uma Unidade transcendente (ele a chamou "o Uno" ou "o Bem"). Esse Princípio estava "além do ser" e portanto além dos poderes da mente para alcançar ou descrever; rodavia por outro lado ele era a fonte fecunda de todo ser - efervescente, como ele uma vez escreveu, com uma vida que inunda e dissemina a si mesmo. Desse centro e fonte, todas as coisas se movem para fora e para baixo em uma série gradual de "hipóstases", que representam níveis simulrâneos de existência, de consciência e de valor. O mais elevado destes é o Intelecto, no qual a existência e a consciência dela sáo o mais intimamente possível uma só coisa. O segundo nível G o da Alma, onde surge o tempo e a consciência primeiramente assume a forma de apreensão e raciocínio serial. O último nível P aquele da Natureza, no qual existência e consciência se tornam externas uma a outra e surge o corpo. Cada um desses níveis, entretanto, reflete de sua própria maneira a realidade de sua Fonte, e cada um se esforca para se voltar e se elevar, por um processo de auto-concentraçáo, para a Unidade. O n e ~ ~ l a t o n i s mentão, o, conforme Plotino o representou, convocava a pessoa a seguir uma ascese que conduzia a uma rota interior em direçáo h unidade de existência e consciência no Uno. Nas m5os dos sucessores imediatos de Plotino, Porfírio e Iamblichus (ca. 250-ca. 325),o pensamento de Plotino foi 1150 apenas sistematizado mas também disposto ao serviço da religiáo popular, perdendo no processo muito de seu ânimo de otimismo transcendente. Tal foi seu poder e atraçáo, contudo, que o neoplatonismo, apesar de sua aliança aberta com a causa da prática religiosa pagá, Tornou-se uma fonre e companheira de diálogo para o pensamento de muitos mestres cristáos do quarto século - mais notavelmente, tdvez, os pais capadócios e Agostinho de Hipona.
O mesmo não pode ser dito de outro influente movimento religioso do terceiro ( e quarto) séculos que entraram em rivalidade com o cristianismo. O rnaniqueísmo,
PmInnn II
Oh CRISE GWOSTICI
A CONSTANTINO
1.4;
que desperrava a hostilidade tanto de pagãos como de cristãos, penecrou no império romano a partir da Pérsia. Fundado por um mestre persa chamado Mani (216-277), o qual foi chamado, em uma série de visões, para ser o fundador e apóstolo de uma religiáo nova, universal, o maniqueísmo era uma f i dualista com muitas afinidades com o gnosticismo. O tema fundamenral de Mani era o conflito entre a Luz e as Trevas, dois irreconcilidvveis mas igualmente
domínios de existência, cada
um dos q~iaisé governado por seu próprio rei. A criaqáo da presente ordem-mundo,
conforme Mani a via, era o i-esultado de um conflito entre esses dois reinos, no qual as Trevas buscaram engolir a Luz e foram pelo menos parcialmente bem sucedidas. A vocaçáo das pessoas, entáo, era reconhecer que sua natureza tl. uma mistura de luz e trevas e, com a ajuda dos emissários da L,uz - Buda, Zoroastro, Jesus e o próprio Mani - serem purificadas das trevas. Esta purificaqáo era efetuada pela abstinência de tudo o que amarra o indivíduo à materialidade. Portanto os iniciados completos na
fé maniqueísta renunciavam ao mundo totalmente. Eles não trabalhavam nem se casavam, não possuíam nada, rejeitavam toda "impureza." Resumindo, eles laburavam, por meio da auto-negação, para apressar a purificaqáo do mundo - a segregacão
da Luz, das Trevas. Estes iniciados completos, "os eieiros", eram servidos e seguidos por uma segunda classe de fiéis que eram denominados "ouvintes." O maniqueísmo espalhou-se rápida e amplamente no império romano, especialmente na África do Norte e Síria; sua influência indireta chegou a períodos tão distantes quanto a Idade Média, quando um movimento similar surgiu como o albigensianismo, no sul da França.
Capitulo 19
A Luta Final Em 284 Diocleciano ascendeu ao trono imperial. Um dálmata de origem humilde, ele alcançou proeminência no exército e foi elevado à dignidade imperial, conforme o costume de sua época, por seus soldados. Embora ainda continuasse a ser necessário para o império empreender guerra defensiva em suas fronteiras, a crise militar do terceiro século estava bastante sob controle para Diocleciano ser capaz de
i 46
HISTflRIA DA IGREJA G R ~ S T ~
voltar sua atencáo para a reconstruqáo interna - dinástica, militar e econômica. O primeiro passo em seu programa, que foi desenvolvido gradualmentr-, foi indicar. em 285, um segundo imperador para partilhar sua autoridade e supervisionar os
negócios na porçáo ocidental do império. Com tal passo, Diocleciano evidentemente esperava assegurar náo apenas que haveria uma supervisáo mais efetiva da máquina administrativa em cada setor da império, mas tamb6m que um imperador nunca mais teria que conduzir campanhas militares em duas frentes simultaneamente. Seu próximo passo, tomado poucos anos depois, foi associar com esses dois "augusti"
-
isto é, ele próprio e seu colega, h4aximiano - dois imperadores juniores, chamados "cCsares", aos quais foram atribuídas se~óesdo império para governarem e defenderem. Estes dois cbares também foram designados herdeiros aparentes dos dois "augusti". Coma seu próprio císar, Diocleciano seiecionou Galério, outro soldado
dt: origem dalmárica; e paraMaximiano foi indicado Constâncio I, pai de Consrantino o Grande. Isso náo significava, obviamente, que agora havia quatro impérios separa-
dos. Embora cada augusto e cada césar tivesse sua própria capital, sua própria equipe adminisrra~ivaencabeçada por um prefeito pretoriano, e seu próprio exércieo móvel, todas as leis e decretos eram emitidos conjuntamente: o império era um, ainda que seus governantes fossem quatro.
As reformas de Diocleciano náo pararam aí. Ele duplicou o número de províncias redesenhando as fronteiras e entáo agrupou essas novas províncias em áreas administrativas maiores denominadas "dioceses", cada uma das quais foi submetida a um . vigário" ou governador geral. Ele iniciou o processo de reorganizar o exército e C'
separar a autoridade civil do comando militar. No interesse da autocracia imperial, ele retirou do senado romano os últimos vestígios de sua antiga auroridade política.
Em um esforço (sem sucesso) para lidar com os
econômicos do império,
ele tenrou congelar os preços dos bens. Ele foi melhor sucedido no congelamento de certas ocupaçócs essenciais vinculando legalmente os filhos às responsabilidades de seus pais, uma política que foi continuada por seus sucessores. Diocleciano, resumindo, iniciou a criação daquela forma do império romano que iria sobreviver, com sua capital em Bizâncio, até 1453.
A religiáo, contudo, era realrne~iteum proliler~iapara o imptrio nas quescóes referentes à eficiência militar e à admini~tra~ao civil. Diocleciano e seus colegas, como seus predecessores e sucessores, entendia que o destina de Roma dependia em última insrância de sua alianca com os deuses. Para Diocleciano, e para seu césar.
PEIIOPO II
DA CRISE GNOSTICA II EONSTINIINO
i49
Galério, "os deuses" significava os antigos protetores de Roma - como testemunha a assocjaçáo deliberada de si mesmo com o poder de Júpiter. Isto não quer dizer, entretanto, que ele estivesse inclinado, como uma questáo de princípio, à extirpaçáo das outras religiões. Durante a maioria de seu reinado, ele exibiu a mesma tolerância que havia marcado a política de seus predecessores, e isso apesar do fato que Galério (para não mencionar outros nos círculos da corte) era abertamente hostil para com o cristianismo. Chegando perto do final de seu reinado, no entanto, as circunstâncias conspiraram para convencê-lo de que a existência do cristianismo estava rompendo o pacto entre Roma e seus deuses. Náo apenas os criscáos no exército estavam insultando os deuses recusando-se a reconhecê-los, mas Diocleciano foi informado por seus sacerdotes de que, por causa da presença em sua corte de ''homens profanos" ~:~resumivelrnente cristáos), os augúrios tradicionais, pelos quais os imperadores aprendiam a vontade dos deuses, ficavam sem efeito: os deuses nZo çstaxpam respondendo.
E quando Diocleciano enviou ao oráculo de Apolo, em Mileto, uma inquiricáo sobre que curso ele deveria seguir diante desta situaçáo, a resposra foi desfavorável para os cristáos. Assim, Diocleciano foi induzido a seguir a linha preferida por Galério, e ele começou uma série de ações que foram calculadas para Iivrar primeiro a corte e o ssército, e depois o império como um todo, dos cristáos. Começando em fevereiro de 303, apareceram três editos de perseguiçáo em rjpida sucessáo. Os templos cristáos deveriam ser destruídos, os livros sagrados deveriam ser confiscados, e finalmente, o clero deveria ser aprisionado c compelido a oferecer sacrificio. Em 304, um quarto edito exigia que todos os cristáos oferecessem sacrifício. Onde a perseguiqáo foi intensa - como o Oriente de modo geral e no norte da ifrica e na Itália - os efeitos desses editos náo foram diferentes daqueles das perseguigOes anteriores sob DCcio e Valeriano. Alguns fiéis foram martirizados, muitos sofreram, e muitos apostataram. Em 305, atormentado por problemas de saúde, Diocleciano retirou-se de seu oficio como augusto e compeliu à resignaçáo simultânea seu colega Maximiano. Tal evento inaudito, entretanto, náo parou a perseguiçáo.
.'ipaz, é verdade, veio para as igrejas no Ocidenre, porque o novo augusto ali,
Constância I, estava entre aqueles que acreditavam em que a política de perseguiçáo não era aconseíhável. No Orienre, porCm, o augusto sênior, Galério, e seu novo ;&ar, Maxirnino Daia, continuaram as perseguições persistentemente. Enquanto a severidade da perseguiçáo estava crescendo no Orienre, codavia, uma nova estrela estava surgindo no Ocidente. O afastamento voluntário de Diocleciano
removeu do poder o único homem cuja autoridade poderia ter mantido o novo sistema de sucessão no ofício imperial. Em sua ausência, o poder dos exércitos para levantar e derrubar imperadores foi reafirmado. Em 306, o novo augusto do Ocidente, Constâncio I , morreu subitamente em York, na Bretanha. Seu filho Consrantino, que havia acabado de retornar para seu lado após longa residência na corte de Diocleciano, foi imediatamente aclamado imperador pelas tropas de Constâncio. Respaldado nesse apoio do exército, Constantino compeliu Galério a reconhecê-lo como "césar", e foi-lhe dado por responsabilidade a Bretanha, a Gália e a Espanha. Ele deveria, teoricamente, ser subordinado e herdeiro aparente de Severo, que havia sucedido Constâncio como augusto no Ocidente. Severo, entretanto, foi vencido e deposto por outro usurpador, Maxêncio, o filho de Maximiano, o colega original de Diocleciano, que assim tornou-se o soberano da Itália c do norte da África. Quando a primeira década do quarto século chegou a seu final, entáo, o Ocidente estava dividido enrre Constantino e Maxêncio, que mantiveram uma trégua crescentemcnte inquietante. Antes que a disputa decisiva pelo Ocidente ocorresse, entretanto, o imperador Galério, no Oriente, publicou, de seu leiro de morte, um edito de tolerância para com os cristáos. Publicado em 31 1, o edito admitia que os propósitos da perseguição náo haviam sido alcan~ados.Os cristáos 1150 haviam rerornado "para a convicçáo de seus antepassadoç" ou cessado "de fazerem leis para sua própria observância." Ademais, eles náo apenas náo estavam servindo aos deuses de Roma, como também haviam sido impedidos pela perseguiçáo de cultuat seu próprio deus. Diante destas circunstâncias, e sem dúvida com alguma idéia de que sua doença poderia ser devida à m i vontade do deus cristáo, Galério decretou que "os cristáos podem eximir nova-
mente" e que 'Será dever deles orar a seu deus para nosso bem estar."' Tal ato de indulgência, contudo, pouco serviu a Galério. Ele morreu pouco depois de ter proclamado a tolerância.
A morte de Galério deixou quatro concorrentes ao trono imperial. No Oriente, Licínio, que controlava os territórios ao norte do Helesponto, defrontou-se com Maximino Daia, que mantinha a Ásia Menor, Sitia, Palestina e Egito. Este último havia renovado a perseguicão aos cristáos náo muito tempo depois da morte de Galério
I
Lacrâncio, Sobre as hlortes dos Pe~se~uidorts 34.
~tniosa11
DA CRISE GHLSIICA h CONSTI!iIINO
i 51
e se aliado a Maxêncio, no Ocidente, visando oposiçáo à já estabelecida aliança entre Conscancino e Licínio. Em 3 13, Licínio derrotou Maximino em uma batdha próxima de Heráclea Pôntica e assumiu controle do setor oriental do império. No Ocidenre, as questóes haviam sido resolvidas quase exaramente um ano antes. Lá Constantino, com um exército que parecia muito pequeno para sua tarefa, havia cruzado os Alpes em uma brilhante marcha e vencido diversos combates contra as tropas de Maxêncio no norte da Itália. Arriscando tudo, ele continuou em direção ao Sul para confronrar Maxêncio, o qual, com efetivos superiores, havia se retirado para trás dos muros da própria Roma. Distúrbios em Roma, entretanto, onde ele náo era querido pela populaçáo local, levou Maxêncio a retirar suas tropas da cidade e confrontar as forças de Constantino diante da ponte Múlvia, sobre o rio Tibre. Foi nesse momento que ocorreu o evento que haveria de mudar o curso da história da igreja e do império. Constantino, como seu pai, havia sido um firme opositor da perseguição aos cristáos. Também como seu pai, todavia, ele se havia associado com o vago monoteísrno solar popularizado pelo imperador Aureliano - um culto inteiramente em consonância com as sensibilidades pagás. Mas na véspera da batalha na ponte Múlvia, Consranrino teve um sonho no qual viu as letras iniciais do nome de Cristo com as ~alavras:"Por este símbolo vencerás."' Tomando isto como um presságio, ele resolveu confrar sua causa ao deus dos ctistáos e teve o monograma Chi-Rho ~ i n t a d onos escudos de seus soldados. Na luta seguinte, Maxêncio perdeu a bacalha e a vida. Constantino havia conquistado o controle do Ocidente. Quando entrou triunfante em Roma, Constantino lembrou-se daquele a quem devia sua virória. Os costumeiros tributos de agradecimento aos deuses de Roma foram omitidos. O imperador havia jogado sua sorte com a causa minoritária dos cristãos, e daí em diante ele consideraria o deus crisráo como o protetor do império e o patrocinador de sua própria missáo de reforma e reconstruçáo. Roma tinha um continuador
da obra de Diocleciano, mas a tarefa de Diocleciano agora deveria ir adianre sob o patrocínio do mesmo deus cujos seguidores ele próprio havia perseguido.
E muito pouco necessário dizer que Consrantino usou de cautela na maneira segundo a qual ele tornou essa nova fidelidade conhecida. Ele aceitou o título pagáo de Pontífice Máximo, e suas moedas ainda mostravam os emblemas do Deus Sol.
-
Lacráncio, Sobre ai Mortes dos Perseguidores 44
152
H I S T O R I I DA IGREJA CRISTA
Num encontro em Miláo em 313, ele e Licínio fecharam um acordo quanto ao tratamento dos cristáos que, conquanto fosse além da mera tolerância, escava longe de qualquer tipo de oficializaçáo da igreja. O acordo proclamava liberdade de consciência e concedia ao cristianismo absoluta igualdade legal com os outros cultos, e ordenava a restitui~áode roda propriedade eclesiástica confiscada na persegui~áo. Licinio, todavia, cumpriu esse acordo meio de má vontade. Ele não era perseguidor, mas - ainda um aderente leal do paganismo - também náo estava propenso a dar privilégios à igreja. Quando a tensão entre ele e Constantino cresceu na década seguinte a seu encontro em 3 13, Licínio impôs severas restriçóes à vida pública das igrejas. Foi portanto como campeáo da fé cristá, e náo apenas como um homem com um sentido de missão política, que Consrantino encontrou uma desculpa para invadir os territórios de Licinio em 324. Derrotado em dois combates, Licínio retirou-se para Tessalônica e finalmente condenado à morte. Constantino era o único soberano do império, e as igrejas despertaram para perceber que a causa de Koma e a de Cristo haviam-se tornado uma única causa.
Período III O Estado ~ m ~ e ~ a Igreja l'da
=i Nova Situação Na mente de Constantino, provavelmente havia, pelo menos antes de tudo, pourr Jiferen~aeiltce o monoteismo dos cristáos e aquele do culto solar que o imperador
.\:reliano
havia encorajado e que ele mesmo havia coiiscientemente esposado depois
j1 O. Ambos proclamavam a supremacia de uma única deidade transcendente por
1 :
x i o governo os "poderes" subordinados do cosmo eram ordenados. Ambos, portari-1,.projetavam
um retrato da ordem-mundo consoante com o senso de Constantino
sua própria rnissáo: restaurar a monarquia universal que integraria e unificaria a
t :
::;iedade humana na Terra. Náo obstante, fora o Deus cristáo que havia lcvado Iùnstantino à vitória diante das muralhas de Roma, e depois daquela vitória foi nas .::ias
cristãs que Constantino confiou para oferecer ao único Deus, a "sumrna
i.:
initas", o culto que, apenas ele, poderia assegurar o bem-estar do império e a
--:-.:lizaçáo bem sucedida do próprio empreendimento de Constantino. Foi neste es:.rito (classicamente romano) que ele instruiu Anulino, o governador da província .!I
jfrica, a isentar o clero da "igreja ca~óficá'das ohriga~óescivis, para que eles
~idesserndedicar-se integralmente ao culto a Deus e assim "conferir benefício incal:::ix.el
aos negócios públicos."' Ele passou a considerar como seu dever assegurar a
;:íisfaFáo das igrejas para que elas pudessem, por meio de sua adoração, assegurar o 1 tm-estar
dos povos do impkrio.
-1s aqóes de Constantino depois de 313 dáo clara evidência desse compromisso. naquela data inicial, ele liavia tomado um conselheiro eclesiástico, na pessoa do ~ i s espanhol ~ o Hósio (Óssio), de Córdova. Foram feitas doacóes em dinheiro para
._-rsiasindividuais, para fins de caridade. O imperador construiu basílicas com seus ...Aio, História Ec6esiiísticn, 10.1.
154
HISThRIA DA IGREJA CRISTA
próprios recursos para servirem como locais de culto cristáo. Em 321 ele publicou um decrero quc permitia às igrejas receberem heranças, concedendo-lhes assim o srarus legal de corporaçóes. Ele legislou que o dia do Sol, o "primeiro dia" cristáo, deveria ser guardado como um feriado de trabalho semanal. Em casos nos quais ambas as partes de uma causa civil concordassem voluntariamente com o acordo, ele permitia que tal causa fosse levada ao rribunal do bispo cristáo local, cuja decisáo teria o efeito de lei. Quando ele construiu para si uma nova capital no local da primitiva Bizâncio - uma cidade que ele, para simbolizar o espírito e realizagóes de seu reinado, denominou "Nova Roma", mas que posteriormente chamou "Constantinopla" - ela foi liberalmente equipada com santuários criscáos mas não dedicou nenhum local ao culto pagáo. Ao seguir esta política, Constantino estava assumindo um sério risco. Em primeiro lugar, os cristãos eram e por algum tempo permaneceram uma minoria no império. O apoio e interesse do imperador não produziu conversões imediatas à causa cristá; o paganismo continuou náo apenas a existir, mas atC mesmo a exibir sintomas
de considerável disposiçáo, e as classes ricas e instruídas náo apoiaram a mudança de fidelidade religiosa do imperador. Mais do que isso, entretanto, como Constantino logo descobriu para sua frustracáo, as próprias igrejas, após um período de intensa e por vezes cruel perseguiçáo, estavam conturbadas e, em alguns locais, seriamente divididas. Seu compromisso com a causa delas significava, portanto, não apenas que ele teria que apoiar e encorajar o culto delas a Deus, mas também que ele teria que intervir na resolu~áode seus confliros. Quão difícil e ingrata essa carefa poderia ser, Conscantino aprendeu bem cedo, quando, nos anos imediatamente após sua vitória sobre Maxêncio, ele enconrrou-se envolvido em um cisma nas igrejas da África e da Numídia.
O cisma donatista, como veio a ser chamado, como os cismas em Roma e Cartago na Ppoca de Cipriano, estava enraizado em um conflito sobre a ideologia do martírio. Na tradição de Tertuliano e do próprio Cipriano, o cristianismo popular norteafricano continuava a glorificar avocacáo de mártir e o espírito de oposição ao mundo que ela personificava. Seus fiéis também estavam convencidos da verdade d o ensino de Cipriano, que o Espírito Santo náo poderia ser concedido em uma igreja cujo bispo era, por causa de apostasia ou outro grande pecado, indigno de seu ofício. Houve, portanto, durante a perseguição sob Diocleciano, grande oposiçáo ao bispo
de Cartago, Mensúrio, e seu arquidiácono, Ceciliano, quando eles abertamente
~ r ~ l o nIIIo
IESTA00 IMPERIAL DA IGREJA
155
desencorajaram o culto aos mártires e deram a impsessáo de náo esrarem sendo totalmente sinceros ern sua oposicáo aos poderes do mal. De igual modo, quando Mensiírio morreu e Ceciliano foi apressadamente eleito e ordenado bispo em seu lugar, muiros crist5os na província da África - e todos os bispos da Numidia, que não haviam sido consultados, conforme era o costume - ficaram indispostos. Tal indisposicáo tornouse um cisma quando foi plausivelmente alegado que um dos bispos que havia ordenado Ceciliano havia aposcatado (por ter enrregue os livros sagrados de sua igreja às autoridades), e por isso a ordenação nao poderia ser valida e que Ceciliano na verdade iláo era bispo. Assim, na ipoca ern que Constanrino entrou em cena, a igreja africana estava dividida. Ceciliano comandava o grupo que era chamado "católico" porque estava em comunháo com as igrejas alhures no mundo romano; seu rival era Donato, o Grande, uma figura carismática que comaridava "a igreja dos mártires." Quando Constantino de fato reconheceu o grupo de Ceciliano como a igreja cristá
na África, os donatistas apelaram para ele por um julgamento formal, insistindo que eles e apenas eles eram a legítima igreja. O imperador assim achou-se envolvido nos negócios internos das igrejas. Constantino nesse rnoniento iniciou um procedimento que se tornaria política imperial no que se refere às quesrões eclesiásticas. Ele despachou a questáo para dois sucçssivos concílios de bispos: primeiro, ao bispo de Roma, Miicíades, o qual deveria reunir-se com três bispos gauleses como um tribunal; depois, quando os donaristas apelaram da decisáo de Miicíadcs conrra sua causa, a um concílio maior realizado em
Arles (314),na própria Gdia. Novamente a acusacão donarista, de que a ordenaçáo de Ceciliano era inválida porque uiri de seus ordenadores era uni apóstara, foi rejeitada por razóes de faro; c foi negado o princípio donatisra, que um dérigo moral-
mente indigno não pode realizar aros eclesiais válidos. Estes esforces para derrotar o cisma, todavia, foram infrutíferos. Constantino tentou brevemente reprimir o donarismo pela forqa, mas logo abandonou este esforço. O cisma permaneceu e o "pars Donati" prosperou e cresceu na África, reivindicando ser a única igreja vcrdadeira c de fzto corporificando muito do espírito tradicional autêntico do cristianis-
mo africano.
Capítulo 2
Da Controvérsia Ariana até a Morte de Constantino Quando em 324, após a derrota de Licínio, Conscantino assumiu o controle da metade oriental do império, ele encontrou um debate violento que dividia náo uma única província mas a totalidade dos antigos domínios de Licinio. Desta vez a questão era teológica. Ela se referia ao velho problema da teologia do Logos: a questáo da natureza ou status do Verbo ou Filho de Deus e sua relaçáo com Deus por um lado e com a ordem criada por outro. Foi um debate que náo seria resolvido oficialmenre por quase sessenta anos e que, no final, exigiu um repensar da maneira pela qual os crisrãos expressavam sua compreensáo de Deus.
A conrrovérsia havia começado em Alexandria, provavelmente em 318. Lá o presbítero Ário, o qual presidia a "paróquia" suburbana de Baucalis e era uma figura popular e proeminente na igreja alexandrina, havia proposto a noçáo de que o Logos é uma criatura chamada à existência por Deus "a partir da não existência." Como
uma criatura, o Logos estava sujeito a mudança e capaz, pelo menos em principio, tanto da virtude como do vício, exatamenre como os seres humanos. Ademais, ensinava Ário, houve um "tempo" (um "quando") no qual o FilhoiLogos ainda náo exist-ia. O papa de Aexandria, Alexandre (312?-328?),ouviu estas noçóes apresentadas em um debate entre Ário e outro mestre e deu sua decisão que Ário estava errado e deveria parar de expressar tais opinióes. Ário, entretanto, riáo est-avasem seguidores tanto no meio do clero como no meio do laicato. Ele deixou claro que pretendia continuar disseminando suas noçócs. A extensáo da controvkrsia se ampliou. Ao final, cerca de 320, Alexandre fez com que Ário e seus associados fossem depostos por um concílio de cerca de cem bispos egípcios; mas naquele momento Ário havia fugido para a I'alestina, certo de que fora do Egito elc encontraria simpatia e apoio para suas idéias, como de fato aconteceu. Enrre outros, ele conquis[ou o influenre Eusébio de Nicornidia (m. ca. 342), bispo da capital imperial no Oriente e, como Ário, antigo pupilo do mártir Luciano de Antioquia. Por um período, Ário permaneceu com Eusébio em Nicomédia, e foi lá, com toda probabilidade, que ele escrcveu seu Tália, uma obra (no presente conhecida apenas em fragmentos) na qual ele apresentou suas noçóes mais ou menos sisrematicamente. Entre cIcs, A i o e Euséliio,
~tnloooi11
O ESTA00 IMPERIAL DA IPREJA
157
através de uma campanha de cartas, fizeram pressáo para forçar Alexandre a restaurar Ãrio; Alexandre em resposta montou sua própria campanha de correspondência, insistindo que a negaçáo de Ário da divindade do Logos/Filho era blasfema. O bispo defendia que o Filho é gerado eternamente, sem referência a tempo, vem "do próprio Deus" em lugar "da náo existência", e é imutável e perfeito. Esta posiçáo, entretanto, que ressoava Orígenes sem claramente reproduzir seu subordinacionismo, provocou nos arianos a resposta de que Alexandre estava ensinando dois deuses co-iguais - dois "não criados."
A questáo central nesse debate quando eIe desabrochou foi, então, aquela do Logos. Esta questáo girava em torno da interpretaçáo do termo grego gennêtos conforme este era aplicado ao Filho. Tradicionalmente como "criado", na terminologia filosófica grega ele tinha um sentido mais amplo e consequentemente mais vago. Ele denotava qualquer coisa que de alguma maneira "veio a ser" e como resultado alguma coisa "derivativa" ou "gerada." O pensamento cristáo havia logo aprendido a expressar seu posicionamento monoteísta insistindo que Deus é o único agennêtos ("nán derivado", "não gerado"): isto C, o primeiro princípio único e absoluto. Por
contraste com Deus, cudo o mais que existe - incluindo o Logos, Filho de Deus - era descrito como gerado. Isso implicava, é claro, náo apenas que o Logos era subordinado a Deus (como qualquer "imagemn, mesmo uma imagem exata, é secundária à realidade que eIa representa), mas também que o Logos tinha al,
00
as criaturas, que Deus não tinha - dguma
em comum com
de "geracidade." "Algo em co-
mum", contudo, não necessariameiite implica identidade de status, e a tradição da teologia grega normalmente diferenciava a maneira na qual o LogosiFilho fora gerado daquela na qual as criaturas - como a alma ou corpo humano - foram geradas. Estas últimas vieram a ser "a partir da náo exisrência"; o oucro, por seu turno, fora "nascido" de Deus e era, porranro, em uni sentido secundário mas real, divino. O que a [radiçáo grega imaginava, portanto, era u111 pluralismo de pessoas di~inasem
rima hierarquia do ser. Havia um primeiro princípio eterno e imutáveI, Deus, o qual
dá surgimento ao Filho e Imagem, o Logos, e através dessa Iniagem de si mesmo chama "a partir da náo exiscência" um mundo de criaruras. Ário simultaneamente afirmou e desafiou csça tradiçáo. Ele manteve a idéia hierárquica de que o Logos faz a ~iiediaçáoentre Deus e o mundo, mas ao mesmo rempo argumentou que encre o gerado e o náo gerado, Deus e criatura, náo pode haver nenhum meio termo ontológico. O mediador tem que ser ou Deus ou criatu-
ra, e uma vez que não pode havcr dois Deuses, segue-se (como l'rovérbios 8:22 parece dizer claramente) que o Filho t uma criatura. Sem dúvida ele é a mais gloriosa das criaturas, ins~rumentode Deus na criaqáo e redenção, c portanro uma criatura em um nível difcrente das outras. Náo obstante, ele é uma criatura mutável, e talvez exatamente por esta razão um padrão mais adequado para uma humanidade que foi criada "segundo a imagem de Deus", i.e., no modelo do Logos. Por conrsaste, a posiqáo de alguém como Alexaiidre, que queria enfatizar a deidade do Logos e sua semelhan~aexata com Deus, parecia envolver uma de duas pressuposiçóes impossíveis. Ou existirim dois Deuses co-iguais, ou então não havia, como os monarquianos ensinavam, nenhuma distinçáo real entre Pai e Filho. Resumindo, tanto Ário como Alexandre questionaram de fato se o esquema hierárquico tradicional, que fazia uma ponte sobre a brecha entre um Deus imutável e uma criação mutável apelando ao l-ogos como uma pilastra no meio do caminho, poderia ser sustentado. No primeiro aro desse drama, as confusos e inseguros bispos das igrejas orientais terminaram por rejeitar ambas as posicóes e reafirmar a tradiçáo que Ário e seu bispo haviam, por carniiihos diferentes, colocado em risco.
Náo foi simpiesmente confusão, entretanto, que Coiistantiiio encontrou no Oriente em 324. Muiros líderes da igreja já se havizni posicioriacfo, e havia guerra. aberrd do tipo mais einbarnqoso e acrimonioso, na qual questões teológicas haviam-se tornado intrincavelmente mist~rradascom qurstóes de personalidade e presrígio. No início, o imperador parece náo ter entendido este faro. Seu lance de abertura foi enviar seu conselheiro, Hósio de Córdova, para Alexandria com uma carta que conclamava à re~oncilia~áo e sugeria que a questáo seiido debatida "náo era lucrariva" - um desacordo menor sobre um ponto de detalhe. Esse esforço bem intenciona-
do mas ma1 feito foi em váo, como Hbsio rapidamente descobriu. No seu caminho de volta para o imperador, entretanto, ele presidiu uma assembléia de bispos que haviam ido para Antioquia instalar um novo bispo ali. Após selecionarem um certo Eustátio, um anti-ariano convicto, os bispos emitiram uma confissáo de fi que insistia contra Ário quc o Logos/Filho é "gerado não da náa existência mas do Pzi; não feito porém mais propriamente descendente", e que ele "existe erernamenre" e é "imutável e invariável."' Esse repúdio ao ensino ariano, fraseado em termos familiares à tradição oriental em teologia, sem dúvida encorajou o imperador a pensar que seu
'1. Srçvenson, ed., A Nezu Eurrbirrr (New York,
1957), p. 355.
~rironniii
O ESIADO IMPERIAL DA IEREJA
159
problema, e da igreja, poderia ser resolvido pelo mesmo método que ele havia rentado com a questáo donatista no Ocidente - isro é, por um concílio de bispos. Ele prosseguiu, então, para convocar todos os bispos do império a se reunirem na cidade de Nicéia, na Ásia Menor, para aquele que seria o primeiro concílio universal da igreja. Este concílio, que se reuniu em maio de 325, tem estado na tradiçáo cristá como aquele cuja confissão de fé definiu os verdadeiros fundamentos da ortodoxia. Os bispos, a maioria dos quais havia sofrido de uma maneira ou outra nas perseguicóes recentes, esravam sem dúvida arôniros e gratificados em descobrir que agora podiam viajar às cuscas do império. A grande maioria deles veio do Oriente: de cerca de duzentos ou trezentos que participaram, apenas seis eram ocideritais. Eles representavam três escolas de pensamento. Um pequeno número, liderados por Eusébio de
Niçomddia, eram inteiramente arianos. Outro grupo pequeno, incluindo Eustátio de Antioquia e Marcelo de Ancira, apoiava fervorosamente Alexandre. A maioria - o mais proeminente dos quais, talvez, fosse Eusébio de Cesaréia, o historiador da igreja - eram conservadores no sentido que representavam, embora nem sempre cuidadosa
ou esclarecidamente, o pluralismo e subordinacionismo da tradiçáo oriei-ital.O próprio jrnperador esteve presente na assembléia e presidiu seus procedimencos. As açóes do concílio, como também os textos de seu credo e cânones, sáo conhecidas apenas por relatos náo oficiais, e algumas vezes bem posteriores. Logo após a abertura do concílio, a assembléia demonstrou a direçáo que ela iria seguir ao rejeitar a confissáo de fé apresenrada pelos arianos. Mais tarde, porém, Eusébio de Cesaréia, o qual havia consistentemente demonstrado simpatia pela causa ariana (embora ele náo fosse ariano no sentido estrito), leu o credo batismai de sua cidade nativa para eliminar qualquer suspeita sobre si; e nessa ocasiáo, os bispos, liderados pelo próprio imperador, coricordararn em que a confissáo era inteiramente orrodoxa, ainda que náo excluísse de fato uma interpretaçáo ariana. O que o imperador e os bispos estavam buscando, parece, era uma forma de repudiar o ensino de A i o , que náo excluísse explicitamente o posicionamcnto oriental tradicional. De modo correlato, eles pegaram outro credo batismal, de tipo bem semelhante ao de Eusébio e alteraram seu texto para atingir seus propósitos, criando no processo um novo tipo de confissáo, náo litúrgica. Em seu final, eles adicionaram uma série curta de anátemas que condenavam diretamente as proposiçóes básicas afirmadas pelos arianos. No próprio texro, eles inseriram as expressóes significativas "verdadeiro Deus de verdadeiro Deus",
HISTÓRIA DA IíiRfJA CRISTÃ
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"gerado náo feito", "da substância [ozaciul do Pai", e - mais importante de todas, como se veria niais rarde - "de uma substância [homoousios] com o Pai." A força geral destas expressóes estava evidente. Elas excluíam absolutamente a idéia de que o Logos
é uma criatura, afirmavam que ele é verdadeiramelite o "Fillio" de Deus eternamente gerado, e insistiam em que ele pertence i mesma ordem de ser que Deus. Desde bem do início, entretanto, pessoas como Eusébio de Cesaréia tiveram dúvidas quanto ao credo, dúvidas cenrralizadas na palavra barnoousios. Este era, scguramente, um termo vago e náo técnico que era capaz de uma série de sentidos relativamente ampla. Ele poderia em princípio ser levado a significar exata igualdade de ser, mas também poderia ser levado a indicar não mais do que um grau significativo de similaridade entre Pai e Filho - que, obviamente, rodos estavam contentes em afirmar. Por o u u o lado, o termo era náo-escriturístico, tinha uma história teológica
muico duvidosa, e estava aberto para o que eram, do ponto de vista de Eusébio, algumas i~iterpretaqóesequivocadas de fato perigosas. Ele observa, por exemplo, que "de uma substância" poderia, à luz da utilizaçáo popular ordinária, indicar que o Logos t algum tipo de "extensáo" ou "pedaço" do "material" divino, e assim sugerir que Deus próprio é corpóreo, divisível e murável. Ao mesmo tempo, náo havia dúvidas de que isto poderia ser entendido como uma negaqáo da existência de qualquer distinção entrc Pai e Filho e assim abrir a porta para o monarquianisrno, o bicho papáo da tradisáo pluralista orierital. Foi assegurado a Eusébio, contudo, que o termo pretendia apenas dizer que "o Filho náo tem nenhuma semelhança com as criaturas geradas, mas t semelhante em cada aspecto unicamente ao Pai que o gerou, e que ele náo é de alguma outra realidade c substância, mas do Pai."2 Baseado nessa explicacáo, ele, juntalilente com Eusébio de Nicomédia e todos exceto dois dos bispos, assinaram o credo - desejosos, sem duvida, de fazerem o que o imperador queria. Porém elc e muitos ounos continuaram a suspeitar da linguagem do credo, a dar-lhe uma interpret-agão rninimizadora, e a fazer-lhe o mínimo de referência possível. O credo alcançou o objetivo de excluir o ariailismo e fornecer à igreja oriental uma fórmula com a qual todos poderiam concordar em um sentido ou outro. Suas implicacóes positivas para uma compreensão cristã de Deus, contudo, poderiam apenas ser extraídas por meio de um debate sobre as questóes que suscitava.
O concílio lidou com outros problemas além da questão central do arianismo. H.-G. Opitz, Urkurzln zur Gejchichtr des a~tnniscbenStreites (Aihawmijls Wede 3.1, Berlin, 1934), p. 46.
~~~1000111
O
ESlA00 IMPERIAL DA IGREJA
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Primeiro, estabeleceu uma série de cânones que pela primeira vez definiram uma estrutura eclesiástica formal acima do nivel local. Essa estrutura, que ganhou contornos muito mais rapidamente no Oriente do que no Ocidente, estava baseada nas divisóes provinciais do império. O concílio na realidade limitou a autoridade das igrejas locais e scus bispos, convocando sínodos provinciais regulares de bispos, atribuindo ao bispo da metrópole provincia1 um ireto sobre a eleição e ordenação de bispos em sua área, e insisrindo em que ninguém poderia ser feito bispo sem a participaçáo de pelo menos oucros três bispos da província. Ademais, o concíliu reconheceu uma jurisdiçáo excepcional, mais exrensa que o território de uma pro~ríncia,para os bispos de Alexandria, Roma e Antioquia - um primeiro passo em direçáo ao reconheciinenco de sés patriarcais.
O concílio também foi convocado a encontrar uma forma de corrigir o cisma na igreja egípcia, que datava desde a perseguiçáo sob Diocleciano. Naquela época, Pcdro, bispo de Alexandria, havia fugido para um esconderijo. Em sua ausência, Melício, bispo de Licópolis, assumiu para si a oportunidade de ordenar clií.rigospara Alexandria. Pedro tomou tal ato como uma usurpagáo de sua autoridade e respondeu excomungando Melício, o qual por sua vez organizou igrejas separadas. Conduzido sem dúvida por Constantino, o concílio procurou sarar este cisma - quc havia persistido, mesmo após o martírio de Pedro, no episcopado de seu sucessor, Alexandre - com u m coinpromisso. O clero meliciano deveria reter suas funcóes, mas sob a auroridade de Alexandre. O s bispos melicianos, se adequadamente eleitos para esse propósi10,
poderiam suceder aos seus correspondentes católicos, quando da morre desces
últimos.
O desejo de Constantino por paz e reconciliação, personificado na legislaçáo do concílio de Nicéia, não esmoreceu depois do encerramento do concílio. Sua maneira de buscá-las, entretanto, apenas provocou um aumento de conflito. Em 328, o mes-
mo ano n o qual o ex-diácono Atanásio sucedeu a AIexaiidre como bispo em .Vexandria, o imperador convocou Eusébio de Nicomédia (o quaI ele havia exilado pouco tempo depois de Nicéia, por este ter-se cornuriicado com Ario) para ser novamente bispo da capital imperial. Um político resoluto e brilhante como também um ariano, Eusébio logo tornou-se o principal conselheiro eclesiástico de Constantino. Com a confiança e o ouvido do imperador, ele sem demora arquitetou uma campanha para livrar a igrcja dos inimigos da teologia suhordinacionista da tradição orienral. Ao final, ele não apenas havia alcançado sua meta mas assim feito sem mostrar
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HISTOAIA OA IPREJA C R I S T ~
qualquer indício de que a questão real era a estimada fórmula niceila de Consrantino, a qual, como E~isébiosem dúvida a percebia, era um instrumento do interesse monarquiano.
A primeira vírima da campanha de Eusébio foi Eustátio de Antioquia, um antiorigenista notório c aberto, a quem Eusébio de Cesaréia havia acusado publicamente de monarquianismo. Informado por seus conselheiros dc que Euscátio era um perturbador da paz da igreja, um homem de caráter moral duvidoso, e que havia proferido juízos severos contra a máe do imperador, Helena, Constantino concordou com a deposiqáo de Eustátio por um sínodo origenista em Antioquia, por volta de 330 e fez cumprir esta ação exilando Eustátio para a Trácia. A próxima, e mais difícil, vítima de Eusébio foi Atanásio, o novo papa de Alexandria (328-373). Este era um defensor determinado e decidido da fórmula nicena, a qual percebia como representante das percepçóes de seu
Alexandre. Atanásio, por causa dos
métodos arbitrários que empregou ao lidar com os melicianos e consolidar sua autoridade sobre a igreja egípcia, permitiu o ataque de seu oponente. Em 355, Atanásio foi arrastado diarite de um sínodo em Tiro, composto inteiramente por seus amargos inimigos teológicos. Ele foi acusado, entre outras coisas, de efetuar o assassinato de um bispo meliciano chamado ArsZnio. A acusaçáo era falsa (Atanásio não fez mais do que sequestrar Arsênio), mas náo havia esperanca de justiça para o sucessor de Alexandre em tal concílio. Atanásio portanto fugiu secretamente de Tiro para apelar
pessoalmente ao imperador, em Constantinopla. No final, entretanto, o apelo deu em nada. Eusébio de Nicomédia e seus associados persuadiram Constantino de que Atanásio havia ameaçado cortar o suprimento de gráos do Egito para a capital. Isto significava uma acusaçáo de ~raiçáo,e Constantino, aceitando-a sem investigação, exilou Aranásio para Trier, na Germgnia. O último triunfo de Eusébio foi a deposi-
$50 e exílio de Marcelo de Ancira, outro anti-origenista extremado. Entáo, quando Constantino, a quem Eusébio de Nicornédia batizara em seu leito de morte, expirou em maio de 337, os inimigos de Nicéia e defensores do subordinacionismo haviam triunfado. O arianismo em qualquer forma explícita havia sido condenado pelo concílio, mas os oponentes vocais do arianismo haviam sido derrotados como conseqüência desse mesmo concílio, prevalecendo assim a teologia tradicional do Oriente. Seria uma forma ou oucra dessa teologia tradicional, a posiçáo da maioria dos bispos orientais, que iria desfrutar do apoio imperial no Oriencc até o advento de 'Yeodósio 1.
O ESTADO IMPERIAL DA 1CRElA
PEnloaoiii
Capitulo 3
-4 Controvérsia sob o Reinado dos
Filhos de Constantino A morte de Conscantino levou a uina divisão do império encre seus trcs filhos. O mais velho, Constantino 11, recebeu a Grã-Bretanha, Gália e Espanha. A Constâncio
TI foi atribuído o Oriente: Ásia Menor, Siria e Egito. ,%o mais jovein, Constante, coube o setor cenrral do império, incluindo o norte da África. Consrantino 11, quan-
do
sc
esforcava para afirmar sua autoridade sobre seu irmáo mais jovem, caiu em
uma armadilha em Aquiléia, em 340. Após esta data, portanto, a maior parre dos domínios romanos era governada por Constante, Lim faro que náo ficou sem significado para a história da controvérsia sobre Nicéia.
O primeiro foco daquela controvérsia - que logo abrangeii a totalidade da igreja, tanto Latina como grega - não foi o credo de Nicéia ein si mas o posicionamento daqueles bispos, Atanásio e Marcelo de Ancira em particular, a quem os líderes ori,-ncais haviam deposto. O s novos
imperadores no início de seu reinado conjunto
permitiram que esses bispos exilados retomassem, e Acandsio estava de volta ein .\lexaildria, antes do fim de 337. A influência de Eusébio, contudo, o qual havia se mudado de Nicomédia para se tornar bispo de Constantinopla (339) e quem ainda funcionava como o líder efetivo dos bispos orienrais, tornou iinpossível a permani.11cia de Atanásio. Impelido para fora de Alexaridria, na primavera de 339 e substituído por um ariano, Grcgório da C a ~ a d ó c i a(o
chegou com uma escolta de solda-
dos), Atanásio fugiu para Roma, onde Marcelo de Ancira logo se uniu a ele. Lá, os cxiiados alistaram o apoio e simpatia de Júlio, o bispo de Rorna, a queiii os bispos eusebianos haviam anteriormente pedido, em um momento de fraqueza, para considerar o caso de Atanásio. Júlio, agora desfrutando do apoio do imperador Constante, convocou um sínodo sm 340, que declarou serem injustas as deposicóes de Atanásio e de Marcelo. Os iideres orientais, recusando-se a serem represenrados na assembléia que eles mesmos haviam solicitado, selitiram-se ultrajados com essa interferência em seus negócios. Eles entendiam que Atanásio e Marcelo haviam sido depostos legitimamente e a quesráo de sua restauracão náo poderia ser levantada legalmente. Eles estavam, ade-
~ t i i o a orii
O ESTA00 IMPERIAL DA IGREJA
i 65
r-ldo, náo duraria muito tempo. Etn 350 o imperador Constante foi assassinado por rqueles que apoiavam um usurpador, cujo nome era Magnêncio. Após uma disputa que durou três anos, Magnêncio foi por sua vez derrotado por Constâncio 11, o qual assim se tornou em 353 o único governante do império. Essa mudança crítica na situação política foi acompanhada por um reasiivamento da batalha teológica de uma forma nova e mais explícita. Restaurado à sua sP, Atanásio lançou uma defesa clara e agressiva d o credo niceno e d o termo homoousios (o qual até aquele momento raramente havia sido mencionado na controvérsia), publicando um rrarado, Sobre os
Decretos do Sínodo Niceno (350-351). Nessa época residia em Alexandria um mestre da segunda geraçáo de arianos, chamado Aécio (m. ca. 370), o qual produziu uma réplica ao argumento de Atanásio, que se tornaria a marca registrada de um arianisrno renovado e radical: a afirmação de que o LogosJFilho é "diferente" do Pai. Um novo palco havia sido aberto na controvérsia sobre Nicéia. Estes desenvolvimentos teológicos foram obscurecidos nci início pelos heróicos esforços do imperador Constâncio, visando a criar unanimidade fazendo cumprir uma ortodoxia imperial essencialmente dcscompromissada, de meio termo. Seu primeiro passo nessa direçáo foi livrar-se de Atanásio. Em sínodos realizados em Arles (353) e Milão (355),ele forçou os bispos ocidenrais a abandonarem Aranásio e voltarem à comunháo completa com as igrejas orientais. Aqueles que resistiram - Libério de Roma (352-366), o então idoso Hósio de Córdova e Hilário de Poitiers (m. 367) - foram prontamente exilados. Atanásio foi expulso de Alexandria em 356 e se refu-
giou, durante os seis anos seguintes, entre os monges do interior do Egito. Depois de realizar isso, o impcrador passou, sob a orientação de conselheiros ariarios, a tratar do problema doutrinário. Um sínodo reunido na residência imperial, Sirmium, em
357 publicou uma declaraçáo que insistia cm que "náo deveria havcr mencáo" à termos como substafitiiz, ou ousziz, ou hamoousios, que eram não escriturísricos, ou a frases sugerindo que o Filho
"subordinado ao Pai."' Esta fórmula, que repudiava
Nicéia e de faro dava lugar para o arianismo, passou para a hisrtiria como "a blasfêmia dc Sirmium", rótulo este dado pelo bispo Febádio de Agennum, na Gália. Apesar da oposição, todavia, Constâncio não desanimou. Por ~ n c i ode Lima série de concílios e sínodos em 359, ele compeliu o infeliz assentimento tanto dos bispos orientais como dos ocidentais à formula que foi finalmente eçtabelccida como repre-
1. N.D. ICrlly. Eltriy
C;l>i.iitinrrCreeds, 3" ed. (New York, 1972). pp. 285s.
i66
HISTÓRIA OA IGREJA CRISTA
sentante da ortodoxia imperial por um sínodo realizado em Constantinopla, em
360. Esta fórmula - um compromisso vago que na realidade marcava o triunfo oficial cia causa ariana - proibia o uso dos lermos ousia e "l-iipóstase" e contentava-se com a afirrnacáo de que "o Filho P semelha~lteao Pai." Esta fhrmula "liomoianá' (do grego hoi-noios, "semelhante") repudiava a doutrina "anomoiana" de Aécio e seus seguidores, que afirniavam ser o Filho "diferente" (nnomoios)do Pai, mas náo excluia a doutrina original do próprio Ário.
O rriunfo político de uma forma de arianismo, entretanto, foi acompanhado por outros, menos óbvios, desenvolvimentos, que prognosticaram uma mudanca no clima teológico. Liderados por Basílio, bispo de Ancira (336-3(;0), muitos dos liispos orientais na tradi)áo orige~iistareagiram fortemente náo apenas cuntra o anomoianismo de Xtcio, mas também contra a nova ortodoxia dos bispos da corte de Conscâncio. Em oposição à fórmula minirnizadora de que o Logos é "semelhante" ao I'ai, eles insistiram que ele iiáo
t apenas "semelhante" mas "semelhante no que se
refere à substância" (homoiousios).O temor do n~onarquianismo,que até esse nsoinento os havia cegado para as i m p l i ~ a ~ ó da ç s Iinguagem ariana, era agora conjugado a um igual temor de que a divindade do Filho fosse negada. Eles ainda escavam hesitando para urilizar o Termo homoourior (que a eles parecia impIicar uma negaçáo que Deus, 1,ogos e Espírito são hipóstases distintas), mas a posi~áodeles agora estava se aproximando daquela definida pela f6rmula nicena. Enquanto isto, de seu exílio no deserto egípcio Atanásio também estava resistindo à solução teológica de
Constância defendendo a linguagem de Nicéia. Para Atanásio, como ele era veloz cm dizer, homoourios náo significava que o Filho é "idênrico com o Pai." Em vez disto, significava que CI Logos está "em posse coinplera de algo que pertence ao Pai"; que existe uma "similaridade inalterável - para náo dizer iden tidade - de . . . qualidades" entre eles, ainda que o Logos "tenha do Pai o que quer que ele p o s s u a . " O ponto dessa disputa para ele já havia sido esclarecido eni seu tratado apologttico anterior (33921, Sobre n Encarnaqdo. Com Ário, Acanásio aceitava a perspectiva de que não pode haver meio caminho entre criador c criatura. Difcrcncemente de Ário, contudo, ele estava convencido de que c r i a ~ a oe redençso da mesma forma implicam e impóem uma presença direta do Deus incriado nas criaturas e para elas - uma imanência do Transcendente. Ele náo atribuiria, portanto, criação e redengáo a uma
PERIODO III
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
16'
criatura glorificada como o Logos ariano e assim isolar Deus do mundo de Deus. Para ele, também, não seria possível para a humanidade vir a partilhar no modo de ser divino (ser "divinizado"), exccto através da preseiica daquele que é verdadeiramente Deus. Portanto, o Logos, em e através de quem Deus cria e redime, tem que ser cudo o que Deus t. Esta, para Atanásio, era a mensagem de Nicéia; e sua compreensáo náo estava muito distante da dos hornoiousianos da escola de Basílio de Ancira, de forma que uma conjugacáo de mentes estivesse fora de questáo. Tudo dependeria da descoberta de uma forma de combinar a insistência oriental nas três hipóstases com a linguagem nicena dc "uma substância' (ausin).
A Continuação da Luta Nicena Constâncio I1 morreu em 361 e foi sucedido como único governante por seu primo Juliano (332-363), cognomiiiado na tradicáo crisrá "o Apósrata." Filho do meio irmáo de Constantino, Júlio ConstâiMo, JuIiano com cinco anos de idade vira seu pai e todos exceto um de seus irmáos assassinados pelas tropas de Constâncio 11. Educado para ser cristão, mas !governado por uma permanente desconfiaiica de seu primo imperial, Juliano foi feito césar em 355, época em que ele havia-se tornado, sob a influência de mestres neoplatônicos, um pagáo convicto embora discreto. Um administrador e líder milirar capaz e criativo na Gália, estava marchando no comando de suas tropas para derrotar Const.âncio II quando este morreu. Uma vez no poder, Juliano buscou seu ideal de uma reforma e reavivamento da religião pagá, com a qual tinha um compromisso sério, para náo dizer romântico. No processo, tomou várias medidas para limitar a influência dos cristáos e desencorajar cosrurnes cristáos. Particularmente, excluiu os cristáos do ensino em escolas mantidas pelo governo imperial (e porcanto, na realidade, da educacão retórica que era a chave para o progresso público) e da ocupasão de alros ofícios imperiais. Ademais, desde o início de seu reinado, permitiu que os diversos bispos - tanto homoousianos como homoiousianos - a quem Coilstâncio havia exilado, retornassem para suas igrejas,
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HISTURIR DA IGREJA CRISIÃ
"com o objetivo de que, conforme essa liberdade aumentasse a divisão deles, ele no final náo tivesse temor algum de uma multidáo unida."' Pelo menos em Alexandria cssa política falhou. Atanásio retornou de seu esconderijo entre os monges d o Egito em 362, e foi recebido com cal entusiasmo por uma rnultidáo unida, que Juiiano o exilou pela quarta vez, anres do fim do ano.
O breve reinado de Juliano - que terminou em 363, quando ele perdeu sua vida em campanha contra os persas - demonstrou a fragilidade do partido arianizador que Constâncio havia apoiado. Em primeiro lugar, Atanásio, em um sinodo reunido em Alexandria, em 362, estendeu um ramo de oliveira para o partido homoiousiano ao admitir, por um lado, que "três hipbstases", o brado dos conservadores orienrais, não queria dizer "crês Deuses" ou rrês "subsistências . . . estranhas em substância uma das outras", e entáo insistindo, por outro lado, em que homoausios significava "identidade de natureza" mas que náo tinha a intencáo de ncgar a verdade que Pai, Logos e Espíriro são distincos.%ste sínodo também deixou claro que (como Atairásio havia argumentado em uma correspondência com o bispo Serapiáo de Thmuis) o Espírito Santo também deve ser considerado como sendo "da mesma substância" que Deus. Portanto, o sínodo, sob a Iiderança de Atanásio, decretou que para a reconciliaçáo dos partidos seria suficiente para todos repudiarem o arianismo, "confessarem a f i confessada pelo santos pais em NicCia", e "anatematizarem . . . aqueles que dizem ser o Espírito Santo uma criatura."' Estes eram termos generosos, tendo em vista advirem de um combatente táo decidido como Atanásio - c que havia sofrido tanto do próprio grupo com o qual ele agora buscava alcançar rec~ncilia~áo. Como os próprios homoiousianos, ele obviamente estava convencido naquele momento de que a ameaca real à fé cristá era a ortodoxia imperial de Constâncio 11, e assim convicco ele abriu caminho para a resoluçáo que surgiria com os pais capadócios depois de sua morte, em 373.
A morte de Juiiano foi seguida pelo breve reinado de Joviano (363-364),um cristáo iliceno que teve pouca oportunidade ou inclinaçáo para se meter nos ncgócios eclesiásticos. Joviano - cuja ascensáo trouxe Atanásio novamente de seu quarto exílio - foi sucedido por Vaientiniano I (364-375), o qual dispos o Oriente sob o
' h i , i r i o Marccliiio, Rei-am I;eitaurrm Libri 12.5.4.
' z m r f j ad~ntrochenoi5-6. ' Ibid., 3 .
PERIDUU 111
O ESTADO IMPERIAL DA IIREJA
169
soverno de seu irmão Valente (374-378),para facilitar a defesa das ameaçadas fronrsiras romanas. Valentiniano evitou o máximo possível interferir em problemas religiosos e praticou uma tolerância imparcial; mas seu irmáo, o qual era fortemente influenciado pelo clero ariano de Constantinopla, seguiu ativamente as políticas de Constâncio 11. Em 365, ele condenou Atanásio para um quinto exílio, mas sua ira caiu indiscriminadamente tanto sobre os líderes homoousianos como sobre os Iíderrs homoiousianos e assim fortaleceu o processo de reconciliação que Atanásio havia iniciado em 362. Quando da morte de Aranásio, em 373, tanto a liderança intelectual como polirica na luta contra o arianismo haviam passado para novas mãos: aqueles do assim zhamado partido "novos nicenos." Este grupo, liderado por Basílio Magno, bispo metropolitano de Cesaréia da Capadócia (370-379) e Melécio, bispo de Antioquia rn.381), era composto por origenistas orientais e ex-homoiousianos que se haviam
mmido para apoiar a fé nicena sob a influência de Atariásio. Foi sua tarefa trabalhar zela reconciliação dos diversos grupos e escolas que se haviain posicionado contra o ;rianismo mas estavam eles mesmos divididos por antagonismos ou equívocos pasiados, e ao mesmo tempo formular e defender um quadro de trabalho teológico no
qual a divindade completa do Verbo e do Espírito pudesse ser confessada.
O próprio Basílio foi o coração e a aima desse novo partido. Nascido em uma rdmília capadócia proeminente, em cerca de 330, Basílio foi educado em ionstantinopla e Arenas. Em Atenas, ele iniciou uma amizade que duraria a vida roda com Gregório de Nazianzo, cuja eloqiiência e erudiçáo eventualmente conquis:iriam o povo da capital imperial para a causa niceria. Após complerar sua instrugão, 3asílio afastou-se da carreira pública de orador, a qual ordinariamente teria seguido. 2ilrante um ano viajou entre os asceras do Egito e Palestina. Quando do retorno a i z a terra nativa, estabeleceu uma comunidade de monges em uma fazenda da farní:i.no
Ponto. Embora logo chamado a uma vida mais ativa, Basílio continuou a ser
i r s sua morte o guia e líder incansável do movimento monástico em sua pátria. Uma .. rr
eleito bispo de Cesaréia, ele trabalhou para reconciliar o Oriente com o Ociden-
r?. "velhos" com "~~ovos"~nicenos, na luta contra o arianisrno. Ao mesmo tempo, r:,:frontou
dois novos problemas teológicos. Entre aqueles ex-hornoiousianos que
~r'riraconfessavam a divindade completa do Filho, havia alguns que persistiam em .:?;ar
a divindade do Espírito Santo. Contra estes assim chamados pncumatômacos
-:ambatentes do Espírito") ou "macedonianos", Basílio escreveu seu clássico trata-
170
HISTORIA DA IGREJA CRISTÃ
do, Sobw o Eyz'yito Sanw. De importância ainda maior do que esse debate, entretanto, foi aquele com o mestre anomoiano Eunômio, um discípulo de Aécio, o qual argumentava que, uma vez que Deus t por definiçáo náo gerado e o Filho gerado, os dois têm que ser diferentes em natureza. Nessas bataIhas teológicas, Basílio teve a assistência de dois homens cujo ensino, juntamente com o seu próprio, desempenharia o mesmo papel seminal no pensamento cristão oriental que iria ter aquele de Agostinho de Hipona na teologia ocidental. O primeiro destes foi seu amigo Greg6rio de Naziailzo (329?-389?),que como o próprio Basílio, fora atraído pela vida contemplaciva mas diferentemente deste [inha pouco gosto pela (ou capacidade ara) a conduçáo dos negócios ou compromissos e ambigüidades da política. Orador de g a n d e disrinçáo e teólogo perspicaz e criativo, Gregório também foi um homem de sensibilidade quase excessiva, com uma tendência para se retirar das posiçóes de responsabilidade pública que os outros lhe confiavam. Seu monumento permanente é a coleção de sermões que deixou atrás de si, sermões cujo cuidado c eloquência mostram suficientemente bem o motivo pelo qual seus contemporâneos buscaram vez após outra violar seu retiro.
O segundo dos associados de Basílio foi seu irmão i~iaisjovem, Gregório de Nissa. Ele também náo possuía o instinto de Basílio para a liderança e administragáo, mas suplantava tanro Basílio como Gregório de Nazianzo em profundidade e penerraçáo ~ e o l ó ~ i cSeus a . ext-cnsos escritos, provenientes a maior parte deles do período após a morte de seu irmáo, quando Gregório vibrou sua pena para defender e desenvolver o ensino de Basílio, incluem sermões, tratados, panfletos e comenrários. Ele abordou náo apenas as questóes da controvérsia ariana (especialmente em suas obras contra Eunômio) mas também os problemas da antropologia teológica e da vida espiritual. No processo a1canc;ou uma importante revisão crírica da tradição origenista e plar6nica na reologia oriental. O ano de sua morte í: desconhecido, mas ele viveu até depois de 394.
A chave para a reconciliaçáo capadócia do partido "velhos nicenos" com a tradiçáo orienta1 representada pelos homoiousianos encontra-se em uma distingáo cuidadosa entre os sentidos das palavras o u s z ~e huportmzs. Começando com a pressuposikáo que Pai, Verbo e Espíriro sáo três hipóstases distintas (realidades subsistentrs, coricretas), os capadócios argumentaram que cada uma dessas hipóstases representa uma existência ou natureza (oztsia: "substância" em latim) idêntica, única (aquela,
~rnloonIII
O ESTA00 IMPERIAL DA tGREJA
171
isto é, da Deidade) e sáo por esta razáo adequadamente denominadas homooz~sioí. Portanto, as hipóstases ("pessoas" em latim) divinas sáo vistas como sendo três maneiras distintas nas quais o mesmo ser exisre. Os capadócios argumentaram ademais que a iiriidade do ser ou natureza de D e ~ i simplica a unidade da atividade ou opera~ á de o Deus. As três "pessoas", em outras palavras, não sáo distintas uma das outras porque sc engajam em diferences atividades. Todas estlio envolvidas, erribora em foimas distinguíveis, ern cada aqáo divina. A única coisa que esrabelece a separação das hipóscascs uma das outras é a maneira como se relacionani uma com as outras como Fonte, Geração e Processáo, respccrivaii~ente,da única Deidade. Ao desenvolver esta doutrina, os capadócios náo apenas levaram a cabo a lógica da confissáo de Nicéia de que Deus e seu Verbo sáo "o mesmo tipo de ser", mas eles também revisaram completamente a descriçáo tradicional helenico-cristã de Deus e da relaqáo de Deus com as criacuras. Se Verbo c Espírito sáo plcnamer-ite Deus e náo poderes "mediadores", entáo há, como Atanásio havia afirmado, uma presença direta r náomediada de Deus corn as criaturas. Se isto t verdade, aderziais, entáo a transcendkncia
de Deus tem que ser entendida de umri maneira bem diferente daquela ila qual a tradicional teologia do Logos a havia expressado. O s capadbcios náo conceberam a natureza ou ser de Deus como algo "oposto", e consequentcrne~iteoposta A das criaturas. Ao invts - contra Eunômio, que definiu o ser de Deus como "irigcrabilidade" contra a "gerabilidade" das criaturas - eles argumentaram que o ser (ou natureza) divino é no sentido mais estrito rodo-abrangcnte porque é infinito e indefiriível.
A obra teológica e política dos pais capadócios produziu seus frutos somente após a derrota e morte do imperador Valente nas mácis dos visigodos. Este evento, quc ocorreu em 378 perto de Adrianópolis, levou o imperador sobrevivente, Graciano
(367-383),que era sobrinho de Valente, a indicar um novo augusto para o Oriente. Para essa tarefa, ele selecionou um vigoroso soldado e administrador espanhol chaniado~lèodósio(379-395), que assumiu o ofício no ano da morte de Basílio Magno. Como ocidental, Teodósio I (também chamado "o Grande") era simpático à causa niccna. Gregório de Nazianzo foi chamado a Consrantinopla, onde, no oratório de Anastásia, pregou as famosas "Ora@tesTeoIógicas", rias quais cstabeIeceu a defesa clássica da causa nicena. Em 380, Teodósio e Graciano emitiram um edito decretando que "todas as pessoas" do império deveriam "praticar . . . a religiáo que é seguida pelo poiitífice Dâmaso [de Roma] e por Pedro, bispo de Alexandria" - aquele cristi-
anismo ortodoxo, isto é, que confessava 'a única Deidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo."* Este decreto, que marcou o triunfo do partido niceno sobre o arianismo, também assinalou um novo momento na história da relaçáo das igrejas com o estado romano. Claramente, na percepçáo de Graciano e Teodósio, o cristianismo era agora a religiáo oficial do império, e todas as outras foram proibidas, incluindo formas diferentes do próprio cristianismo. Em 38 1,Teodósio convocou um sínodo de bispos orientais para Constantinopla. Este concílio, reconhecido eventualmente como o segundo concílio ecumênico da igreja, teve como seu assunto primário a afirmacão da completa Deidade do Espírito Santo, contra o partido macedônico. Ele naturalmente confirmou
O
símbolo (i.e.,
"credo" ou "confissáo") do concílio de Nicéia. Ao mesmo tempo, seus membros parecem ter considerado também outra fórmula: um símbolo batismal declaratório, no qual as palavras e frases chaves nicenas haviam sido inseridas, e que também continha a declaraçáo anti-macedônica que o Espírito Santo "é adorado e glorificado juntamen~ecom o Pai e o Filho." Esra confissáo, embora náo adotada oficialmente pelo concílio de 38 1,continuou a ser associada com seu nome e foi posteriormente, no concílio de Calcedônia em 45 1, declarada como a "fé" dos cento e cinqüenta bispos reunidos sob Teodósio. Foi este símboio que, por motivo de sua utiliza~áo crescente como uma fórmula litúrgica e batismal, gradualmente alcançou aceiraçáo universal. Ele foi e é chamado "niceno" porque incorporou as frases anti-arianas (e portanto expressou a fé) do credo de Nicéia.
A teologia, entretanto, foi apenas uma parte da ccmática desse concílio. Um dos mais difíceis problemas dos últimos anos da controvérsia ariana foi o da reunificaçáo da igreja de Ancioquia. Lá o longo debate sobre Nicéia havia produzido cismas internos, não apenas entre arianos e ortodoxos mas também entre um pequeno grupo de "velhos nicenos" liderados por um certo Paulino, o qual desfrutava do apoio dos bispos de Roma e Alexandria, e o grupo majoritário liderado pelo bispo Melécio, um "novo niceno." O imperador, Teodósio, sinalizou seu próprio juízo sobre essa questáo apontando Melécio presidente do concilio (e portanto qualificando, a luz das realidades orientais, seu juízo anrerior de que a ortodoxia consistia simpiesmente na concordância dos bispos de Roma e de Alexandria). Melécio, entretanto, morreu no decorrer da reunião. Gregório de Nazianzo, por outro lado, que havia sido eleito na
' J . Srevcnson, Gtedi, Counciis, nnd Coiiirove~srcs(New York, i C)(;(,),
p. 160
~rnioioIII
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
173
do
abertura do concílio para substituir o ariano Demófilo como bispo de Constantinopla,
3re o
ficou frustrado com a má vonrade dos bispos em se reconciliarem com Roma (e o
:rejas
Ocidente em geral) reconhecendo Paulino. Correspondentemente, em um gesto de
Istia-
desgosto, ele renunciou a sua nova posição e retornou para casa, deixando ao concí-
iidas,
lio a tarefa de eleger um sucessor para ele próprio como também para 1Melécio. E o
?
concílio prosseguiu para assim fazer, nomeando dois defensores do partido "novos opla.
nicenos": um certo Flaviano como bispo de Antioquia e um oficial imperial leigo,
:o da
Nectário, como bispo de Constantinopla. Este curso de aqáo, que desconsiderou
,rito
completamente as perspectivas de Dâmaso de Roma (para não mencionar as de Ti-
I.e.,
móteo, o novo bispo de Alexandria), significou que o trabalho do concílio foi consi-
:bros
derado com uma certa hostilidade no Ocidenre; e esta rea~áofoi fortalecida pelo
orio,
terceiro cânone do sinodo, que declarava que o bispo de Constantinopla deveria ter
3ém
"a primazia de honra" após o bispo de Roma, baseado no fato de que Constantinopla
rrca-
era "a nova Roma." Tal ação violava o costume de ver Roma e Alexandria como as
rien-
igrejas "seniores", e também violava o compromisso da igreja romana com a perspec-
nen-
tiva que a "honra" de uma igreja dependia náo do status político de sua cidade mas
tnt3
de sua relação inicial com o apóstolo Pedro. O desfecho do concílio de Constantinopla,
;cá0
portanto, náo foi apenas um triunfo da teologia nicena, mas também uma nova
cao
fonte de atrito entre Ocidente e Oriente e, no próprio Oriente, de rensáo entre a
(e
primitiva sé de Alexandria e a da nova capital imperial, que o segundo cânone do
3
concílio havia constituído como uma sé patriarcal. dos
de
Capítulo 5
dos Jrn
As Invasões Germânicas
LLZSdas 5
na
I
no Rd
A batalha de Adrianópolis (378), na qual o imperador Valente perdeu a vida como também seu exército para os visigodos, marcou o início efetivo de uma nova crise na relaGóesdo império romano com as tribos germânicas além de suas frontei-
ras no Reno e no Danúbio. Esta batalha iniciou o processo - que levou dois séculos inteiros para sua realizacão - pelo ¶ual a metade ocidental do império foi invadida,
I 7.i
1ISTÓRIR DA IGREJA CRISTI
conquistada e dividida pelos godos, francos, vândalos e lombardos. Esras invasóes, que envolveram náo simplesmente exércitos mas povos inteiros, tornaram-se possíveis graças à combinaçáo de clás e tribos em confederaçóes e naçóes sob uma iiderança unificada. Elas foram praticamente inevitáveis devido ao movimento em direçáo ao Ocidente de povos hunos desde as estcpes da Ásia, um movimento que pressionou as tribos gernlânicas para mais pr6ximo dos limircs de Roma e em última instincia forçou-as a buscarem seguranp cruzando à forc;a para o território romaiio. Por volta do quarto siculo, os francos ocupavan~a margem direita do baixo Reno e de fato viviam parcialmente conio um povo "federado" dentro das fronreiras do inipério. A confederacão conhecida como visigodos ou "godos ocidentais" ocupava a margem do Danúbio ao norte da Trácia, e enfiieirados atrás deles, sob pressáo direta dos hunos, estavam seus parentes, os ostrogodos ou "godos orientais", cujo centro estava ao norte do mar Negro. Entre os godos no sul e os francos no norte esrava uma diversidade de grupos: vândalos, alanos, burgúndios. Ncssa época, havia frequente intercâmbio enrre romanos e geriilanos através das fronteiras. Os germanos serviam nos exércitos romanos em riúniero crescente. Negociariccs romanos traziam seus bens aos territórios germânicos. Muitos gcrmanos estavam esrabelecidos em províncias limítrofes, onde se tornaram acostumados aos modos ronianos. Era incvicável, em tais circunstâncias, que as tribos germânicas viessem a ter contato com o cristianismo. Prisioneiros de guerra da Capadócia - provavelmente romados durante a incursáo g6tica de 264 na Asia Menor - plantaram as sementes do criscianisrno entre os visigodos antes do final do terceiro século. Foi um tal de Ulfilas, entretanto, quem começou a evangelizacáo formal. Nascido por 17oita de 31 1, Ulfilas, descendente dos prisioneiros capadiicios, era ele próprio um gado. Quando jovem, provavelmente porque era um leitor na igreja, ele começou uma tradriçáo das Escrituras cristãs para o gótico. Após acompanhar uma embaixada gótica a Constantinopla, foi ordenado em 34 1 por Eusibio de Nicomédia (o qual por esta Cpoca era bispo de Constantinopla) para ser bispo dos godos. Um ariano, Ulfilas eventualmenre esposou as perspectivas do partido homoiano - a ortodoxia imperial de Constâncio 11. Ele rrabalhou por sete anos entre seu povo, até que a perseguição forçou-o e a seus companheiros crisráos a buscarem refúgio iio solo romano. A conversá0 final dos visigodos ocorreu apenas quando seu rei, Fritigerno, em 376, levou toda a sua naçáo à igreja, após eles próprios terem buscado refúgio dos hunos em território romano.
PERIO~Q 111
O ESTADO IMPERIAL DA I6REJA
175
Portanto, os godos - que derrotaram Valence em Adrianópolis em 378, em uma batalha decorrenre de uma disputa com as autoridades romanas - eram um povo que havia aceito a mesma fé de Valente: o cristianismo ariano. Náo foram apenas os 1-isigodos, entretanto, mas também seus vizinhos - os ostrogodos, os vândaIos em parte, e os burgúndios - que haviam abraçado o cristiariisrno em sua forma ariana antes de invadirem o império. Apenas os grupos bem distantes dos visigodos, os francos e os saxóes do norte, eram predominantemente pagáos na época de sua incursóes. As tribos germânicas, entáo, não chegaram em sua totalidade corno inimigas do cristianismo. Na reaiidade, elas não vieram como inimigas de Roma. Se elas haviam adotado o cristianismo, foi por que o cristianismo era a religião dos romanos; e o quc elas buscavam era obter uma parcela nos benefícios da civilizaçáo rornana. Após o desastre em Adrianópolis, Teodósio I conseg~iiuconter os visigodos, primeiramente arravés de concessóes e pagamentos ein dinheiro. Quando de sua morte =m 395, entretanto, o império estava dividido entre seus dois filhos, Arcádio (393-
408)no Oriente e Honório (393-423)no Ocidente. Com seus conselhos e interesses assim divididos, o império mostrou-se incapaz de resistir ao ataque gótico. Sob seu novo rei, Alarico, os visigodos voltaram-se para Consrantinopla e devastaram a Grécia 3ré pontos bem distantes como Esparta. Desviados para o Ocidente, em 401 eles estavam pressionando o norte da ItáIia, mas no início foram barrados com sucesso -c10 hábil general vândalo de Teodósio, Estilicáo, a quem ele havia confiado o bemm a r do jovem Honório. Em408, porém, Honório provocou o assassinaco de Estilicáo. Esre rito abriu o caminho para a própria Roma, e cm 410 Alarico c seus guerreiros zdpruraram a capital imperial - um evento que chocou o n~uiidoromano. Desejando rsçegurar a África romana, o celeiro da Itália, como um reino para si próprio, Alarico zontinuou para o suI, mas morreu à beira de atravessar para a Sicília. Seu sucessor, iraulfo, liderou os visigodos de volta para o norte. Em :por
12, invadiu o sul da Gália,
volta de 419 os godos já se haviam estabelecido ali. No decorrer do quinto
s:culo, eles passaram a dominar náo apenas o sul da Giília mas cambbm a Espanha, i.~ieirandoos habitantes romanos e apropriando-se de muitas de suas terras. Durante a longa e difícil viagem dos visigodos das províncias do Danúbio para a
Gáiia, as tribos germânicas além do Reno haviam reconhecido e assegurado uma , ~ ~ o r t u n i d a dNo e . final de 406, os vândalos arianos juntamente com os pagáos alanos t iii2~0s atravessaram
o Rerio, penetraram pela Gdia e desceram até a Espanha, onde
i 76
HISTORIA DA IGREJA ERISTÁ
chegaram antes dos visigodos. Quase na mesma época, os francos haviam pressionado o norte da Gália, enquanto os burgúndios ocuparam a região ao redor de Estrasburgo. A Grá-Bretanha, de onde as tropas romanas foram finalmente retiradas em 41 0, veio a ficar sob ataques cada vez mais frequentes dos saxóes, anglos e jutos, e os celtas rornanizados foram empurrados para o Oeste, para Cornwdl, Gales e Strathclyde. Os vândalos na Espanha, sob pressáo dos visigodos, atravessaram para a África em 429 com toda a forca. Seu rei, Genserico, Logo estabelecendo um poderoso estado germano ali, e seus navios rapidamente dominaram o Mediterrâneo ocidental. Uma incursáo vândala saqueou Roma em 455. Em um espaco de cerca de cinqüenta anos, entáo, o poder romano, senáo a influência do nome romano e a ordem que ele simbolizava, estava destruído na GráBretanha, Gália, Espanha e norte da África. 0 s reis das novas naçóes bárbaras eram, é verdade, tecnicamente funcionários do estado romano, cuja autoridade eles esta-
vam orgulhosos de representar. De tempos em tempos, eles ficavam contentes em cooperar com as autoridades imperiais na Itália. Foi ao comando dos romanos que os visigodos atacaram os vândalos na Espanha. Foi um exército unificado de romanos e gerrnânicos que lutou contra os hunos invasores liderados por Átila, barrandoos por algum tempo em uma batalha perto de Châlons em 45 1. Embora Átila tenha prosseguido para invadir a Itália, ele eventualmente se retirou para a sede de seu império, onde atualmente é a Hungria, e ali morreu antes de ter consolidado suas conquiscas. Mesmo na Itália, entretanto, o poder dos imperadores ocidentais declinou, e eles gradualmente se tornaram marionetes de seus generais. Quando da morte de Honório, o ofício imperial. passou para Vaientiniano I11 (423-455). Seu longo reinado foi marcado por uma disputa entre Boi~ifácio,conde da África, e Aécio, conde da Itália - uma disputa que permitiu a conquista vândala do norte
da África. Foi ACcio, líder
das forças romanas contra Átila em 451, quem obteve a última vitória militar do império. Entre a morte de Valentiniano e o ano 476, náo menos que nove imperadores foram estabelecidos e depostos no Ocidente, enquanto a Itália era efetivamente governada por uma série de líderes militares dominantes. O último imperador, chamado Rômulo Augústulo, foi deposco por um general gerrnano, Odoacro, um evento que é normalmente tido como o "fim" d o império romano no Ocidente. Na realidade, ele teve pouca ~i~riificância. Nem Odoacro nem seus contemporâneos cinhain qualquer nocão de que o governo romano estava no final, pois ele governava
~ ~ n i n a161o
O ESIADO IMPERIAL DA IGREJA
I77
>na-
na Itália, da mesma forma que os visigodos na Gália e Espanha, como um preposto
r de
do imperador em Constantinopla, ainda que este último tivesse pouca influência
-das
nos eventos.
A soberania de Odoacro na Itália terminou em 493 por uma nova onda de inva-
::os, e
sores germanos, os ostrogodos Liderados por seu rei, Teodorico. Sob este habilidoso
ira a
conquistador, foi feita uma tentativa de fundir as instituiçóes romanas e germânicas,
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uma tentativa que acabou fracassando porque as barreiras religiosas e sociais entre
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gados e romanos foram estritamente mantidas. Teodorico governou de Ravena até
5s
sua morte em 526. Foi pouco tempo depois disso que o imperador Jusriniano (527-
:ta-
565) lanqou-se ao empreendimento de reconquista do imptrio ocidental das mãos dos bárbaros. Em 533, seu general, Belisário, invadiu o norte da África e restabeleceu a autoridade imperial ali. Em 535, a reconquista da Itália foi iniciada, para ser completada, após anos de guerras e devastaçáo, duas dgcadas mais tarde. O triunfo de
sm
Jusriniano, porém, foi efêmero. Três anos após sua morte, mais um povo germânico,
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im,
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os lombardos, invadiram a península itálica. Em 572, eles controlavam a maior parte
na-
do norte da Itália, Roma, Raveria (que era a sede do governador imperial), e o sul
co-
permaneceram sob a autoridade de Constantinopla.
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Entrementes, estavam acontecendo na Gália eventos de grande significação para
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o futuro. A nacão franca há muito tempo havia estado pressionando o setor setentri-
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onal das antigas províncias romanas. A partir de cerca de 481, quando Clóvis tornou-se rei dos francos sálicos, essa pressão virou conquista. Clóvis rapidamente estendeu seu domínio até o sul na regiáo do rio 1,oire. Em 493 ele casou-se com Clotilde, uma princesa burgúndia que era, diferentemente da maioria de seu povo, cató-
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lica e náo ariana. Após a vitória em 496 sobre os alamanos, CIóvis deciarou-se cris-
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táo. Ele foi batizado, juntamente com três mil de seus seguidores, no dia de natal em
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Reims, aliás, batizado como católico. Os francos tornaram-se assim a primeira das
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naqóes germânicas a esposar o cristianismo ortodoxo do império - um fato que Ihes
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granjeou a simpatia, náo simplesmente de Constantinopia mas também do povo e
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cIero da populaGáo romana da Gália. Quando da morte de Clóvis, o reino franco
1-
esrendia-se até os Pirineus no s~rle altm do Reno no leste (ver IV:2). Havia agora,
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uma vez mais, um estado católico pocencialrnente poderoso no Ocidente: um fato
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que haveria de ter efeitos abrangentes no futuro, quando os bispos romanos foram
3s
coinpelidos a se voltarem para a Franca e náo para Constantinopla em busca de
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apoio.
A co~-iversáodos francos também influenciou os outros soberanos
e poiros
gcrtnâriicos, embora o exeriiplo das populações nativas entre as quais eles haviam-se estabelecido, operou ainda mais poderosamente. Os burgúndios abandonaram o arianismo em 517 e tornaram-se parte do reino franco em 532. As conquistas de Jusriniano puseram fim aos reinos arianos dos vândalos e dos ostrogodos. Na Espanha, o rei visigodo, Recaredo, renunciou ao arianismo em 587, um ato que foi confirmado no terceiro concílio de Toledo em 589. Cerca de 530, a conversão gradual dos Iombardos ao cristianismo católico havia começado, embora náo se tenha compretado até cerca de 660. Desta maneira, o arianismo finalmente desapareceu.
Capítulo 6
O Crescimento do Papado O quarto séci~loe a era das invasóes bárbaras viram umdesenvolvimento significativo, tanto na efetiva influência dos bispos de Roma como nas reivindicações efetuadas a Favor deles. As raizes dessa autoridade encontram-se originalmente tanto
na localizaçáo, riqueza e cornposiçáo da igreja rornatia coma também na associação
com os apóstolos Pedro c Paulo em seus anos ii-iiciais. Náo obstante, conforme o rempo passava, as rei~indica~óes da sé romana à primazia foram crescentemente (e no firial exclusivamente) baseadas no tàto aceiro que seus bispos eram os sucessores de Pedro. Isto náo foi nem pretendido nem entendido, entrecanto, como mera reivindicação sobre o passado. A igreja romana era de fato a guardiá das tumbas do apóstolo martirizado e de seu colega, Paulo. O imperador Constantii~oa havia honrado e a eles, construindo dois sanruários: de São Pedro, na colina do VaBcano, e dc
São Paulo fora das muralhas. O espíriro e presença destes ap6stolos, portanto, repousava sobre a igreja romana e, de uma maneira especial, defendia-a. Não é surpreendente, então, que essa igreja fosse vista como possuindo uma autoridade excepcional, não meramente entre as igrejas da Itália meridional, onde ela era reconhecida o direito, mas no Ocidenre em geral e mesmo, até como rendo uma j u r i ~ d i ~ ápor certo ponto, no Oriente.
PERIUUO 111
O EXTAOO IMPERIAL DA IGREJA
129
Quando o papa Dâmaso (366-384) iniciou o costume de nomear a igreja romana .implesmente como "a sé apostblica", ele estava sem dúvida em certo sentido inovanio-a, c ao mesmo tempo, tentando estabelecer u m ponto. Ele queria, por uni lado, risistir na primazia de Roma mesmo entre as igrejas patriarcais e, por outro, protes:ar contra a elevaçáo de Constantinopla, a qual não tinha nenhuma reivindicaçáo à
fu~idaçáoapostólica, sobre Alexandria e Antioquia, as quais tinham tal reivindica{do. Seu ponto náo estava sem justificativa precedente. O status do bispo romano iavia sido reconhecido por Constantino quando este se voltara para o papa Milcíades para julgar as reivindicaçóes donacistas na África; e nos dias de Júlio (337-352), havia sido [acicamenre reconhecido pelos bispos orienrais, os quais solicitaranl a tiprovacão romana das deposic;ões de Atanásio e Marcelo de Ancira. O sucessor de Dimaso, papa Sirício (384-399), embora obscurecido por seu
contemporâ-
neo, Ambrosio de Miláo, exercitou uma autoridade discipIinar náo apenas sobre igrejas na Itália mas ta~iibémsobre aquelas na Gália e Espanha. Quando do final do quarto século, Roma náo meramente reivindicava, mas possuía, um papel e aucoridade especial entrc as igrejas cm geral. Ela era a sé patriarcal senior. Sua palavra era influente mesmo no Oriente. No Ocidente, ela cstuva corrieçando a exercer uma autoridade quase legislativa erii caráter. O s papas do quinto séc~iloexpandiram essa autoridade. Inocêncio I (402-417), embora sua tentativa de interferir em negócios orientais em defesa de Joáo Crisóstomo (ver 111:s) tenha dado ein nada, afirmou coin sucesso o prestígio e autoridade do bispo romano no Ocidence. Ele referiu-se ao bispo romano como "cabeqa e ápice do episcopado",' e, baseando-se nos cânones do concílio de Sárdica, que ele atribuiu ao concílio dc Nicéia, reivindicori uma jurisdição universal.' O mesmo espírito animou o papa Leáo 1 (440-461),chamado "Magno." Ele insistiu na primazia de Pedro entre os apósrolos e ensinou que os papas, como herdeiros de Pedro eiii juízo, herdaram seu papel como governante e mestre supremo, de forma que poderia se dizer que Pedro se pronunciava em e através deles. Foi nesse espírito que ele interveio na controvérsia cutiquiana (ver III:9) com seu Tomo endereqado a Flaviano, bispo de Constantinopla. Este documento foi definitivamente aceito, no concílio de Calcedônia
(451), como dererminance da fé ortodoxa, com o brado, "Pedro falou através de 'Inocênci«, LpistiiZa 37.1. 'InocCiicio, Epístola 2.25.
Leáo." Embora parcialmente frustrado em suas tentativas de afirmar a autoridade romana no Oriente (o cânone 28 desse mesmo concílio de Calcedônia atribuía à sé de Constantinopla honra e autoridade igual à de Roma), Leáo viu sua posição vindicada no Ocidente. No norte da África, Espanha e Gália, ele estabeieceu sua autoridade como o juiz supremo de apelaçáo em questóes de ordem eclesiástica; e sua autoridade foi confirmada ~ e I oimperador Valentiniano 111, que decretou por "edito perpétuo que não será lícito aos bispos da Gália ou das outras províncias . . . fazer qualquer coisa sem a autoridade do venerável papa da cidade eterna."'
A pers-
pectiva popi~lare oficial de Leáo e de seii oficio é revelada ainda mais em um relato antigo da embaixada que ele foi solicitado a liderar até o huno Átila, quando este estava se aproximando de Roma com suas tropas. "O rei", foi registrado, ficou "tão encantado com a presença do principal sacerdote cristão, que deu ordens para desistir da g ~ e r r a . "O~ bispo romano estava se tornando náo apenas o mestre mas tam-
bém o líder e guardiáo do povo cristão no Ocidente. Mais tarde, na disputa com o monofisitismo (ver III:IO), os bispos de Roma regularmente afirmaram sua autoridade contra os esforços dos imperadores orientais, para aplacar os monofisitas da Siria e Egito através da qualifica~áoda doutrina calcedoniana segundo a qual existem "duas narurezas" em Cristo. Esta política levou,
de Félix I11 (483-492), à excomunháo por Roma do patriarca de Constantinopla, Acácio. O cisma resultante - o assim chamado "cisma acaciano" no
foi resolvido em 519 a favor da posiçáo papal. Esse triunfo, entretanto, enquanto demonstrava a importância da sé romana lios negócios eclesiásticos mesmo do império oriental, evidenciava ao mesmo tempo uma alienaçáo crescente entre a5 igrejas ocidental e oriental - uma alienação que foi ressaltada náo muitos anos mais tarde, quando o papa Vigília (537-555) foi conduzido para Constantinopla pelo imperador Justiniano e mantido em virtual encarceramento para forqar seu assentimento àquilo que parecia, aos ocidentais, mais uma tentativa imperial de concessáo aos inonofisiras. O Oriente reconhecia o scacus patriarcal (e o peso político) do bispo romano, mas náo a autoridade universal reivindicada para ele por Leão I e seus sucessores. No Ocidente crescentemente bárbaro, por outro lado, os papas permaneciam, mesmo quando seu poder real era severamente limitado, os símbolos tanto da autoridade apostólica como da tradiçáo romana.
rtiloiaiii
IESTADO IMPERIAL DA IPREJA
181
Capítulo 7
Monasticismo Comecando no final do terceiro século e desabrochando no decorrer do quarto, o movimento que a história rotulou "monástico" (do grego monachos, "soiitário") contribuiu com uma nova dimensáo, tanto institucional como espiritual, para a vida das igrejas. Em muitas maneiras, esse movimento foi uma conrinuaçáo de tendências
já escabelecidas nas comunidades cristás. O batismo, como já vimos, havia sido compreendido tradicionalmente como uma entrada na vida marcada pela renúncia a ordem presente de coisas e dedicaçáo completa à nova ordem manifesta na ressurreiçáo de Cristo. O modelo dessa nova vida, ademais, havia sido discernido no testemunho dos mártires, os quais, como o próprio Cristo, haviam lutado contra os poderes d o mal e triunfado sobre eles através da morte - considerando o mundo e seus valores coisas a serem rejeitadas por causa do reino de Deus. Desde o início, portanto, as igrejas tinha conhecido seus ascetas, os quais, se individualmente ou em grupos domésticos, buscavam, na imitafáo de Cristo e seus mártires, viver a vida cristá em sua plenitude através da sistemática renúncia a todas conexóes com o mundo. Abandonando a busca e posse de riquezas, comprometidos com a continência sexual e dedicados à oraçáo, ao jejum e ao estudo das Escrituras, tais pessoas buscavam viver na presente era como cidadáos da era vindoura. Nesse empreendimento, ademais, eles encontravam encorajamento no ideal helênico da "vida filosófica", uma vida que se afastava da dependência das coisas externas e, através da prárica da virtu-
de, buscava harmonia com a (e conhecimento contemplativo da) realidade última. Mas se o movimento monástico tinha raízes em um ascetismo cristão anterior, ele também diferia dele. Em primeiro lugar, o monasticismo surgiu originalmente entre o carnpesinato, uma classe de pessoas que o cristianismo, até então um movimenro essencialmente urbano, havia apenas começado a alcançar. Seu crescimento inicial acompanhou a conversá0 das popuiacóes náo-helenizadas do interior d o Egito e da Siria. Ao mesmo tempo, o monasticismo foi um movimento de afastamento e retirada. Ele instintivamente buscou o deserto: isto é, procurou separaçáo física e social das cidades e vilas, e portanro também da vida normal das igrejas. Tal afastamento (grego anachorêsis, daí o português "anacoreta") náo tinha um significado único ou
i R2
HISTORIA DA IGREJA CRISIfi
simples. Em parte, refletia uma busca pela solidáo; em parte, era um gesto que dramatizava a rejeiçáo da mundanidade e mesmo desprezo para com a civilizaçáo e a cultura. Mas ele também foi, pelo menos em algumas áreas, uma manifestaçáo da fuga permanente de um campesinato sobrecarregado pelas demandas dos capatazes dos latifúndios e dos colerores de impostos. Uma vez que, ao mesnio tempo, esse movimento de afastamento representava um impulso simultaneamente leigo c popular e persor-iificavaunia revolta irresistível de entusiasmo religioso, o monasticismo criava um problema para as igrejas e seus líderes, os bispos. Ele ameasara, de fato, criar uma organizaçáo separada e paralela da vida cristá. Esse problema foi resolvido somenre quando os próprios líderes das igrejas se tornaram patrocinadores, organizadores e, no final, produtos desse movimento.
O espírito do monasticismo primitivo 6 mais facilmenre estudado em um de seus primeiros e mais influentes líderes, Antônio d o Egito, cuja Kda, escrita por Atanásio de hlexandria, foi uma notável peça de propaganda par.&o rnoviiilento, amplamente lida tanto no Oriente como no Ocidente. Antonio, um homem de linguagem e ascendtncia egípcia tiativa (copta) nasceu por volta de 250. Quando tinha cerca de vinre anos, foi apanhado pelas palavras de C:risro ao jovem rico.' Ele vendeu a heran$a recebida dos pais e assumiu a vida de eremitu na fronteira de sua vila nativa, sob a tuteiagem de um asceta mais velho. Conforrne ele progredia nessa \+ida,gradunlmente embrenhava-se mais no deserto, eventualmenre passando vinte anos ria solidáo das ruínas de um forte perto da costa do mar Vermelho. Durante todo esse tempo, esteve eniajado em uma luta heróica, como aquela dos próprios mirtires, contra os poderes demoiiiacos, aos quais desafiava lios mesmos lugares Jesérticos onde eles habitavam. No nome de (:risco, através de constante esfori;o, jejum e vigília, e por meio de ininterrupcas oraçóes e recitaçóes das Escrituras, ele derrotou essas forças do mal. Quando, nos primeiros anos do quarto s&culo,Antônio emergiu de seu retiro, ele pareceu aos outros náo simplesmente um herói e um homem imbuído de santidade, mas algué~nque representava a natureza humana restaurada à sua glória apropriada. Ele curou os doentes, reconciliou inimigos, e por exemplo e palavra ensinou a sabedoria que havia aprendido. Outros se juntaram ao seu redor, e assim surgiu uma frouxa comunidade de eremitas, em rreinamento sob Antônio para a salvação de suas almas. Durante esses mesmos anos após a abertura do quarro século, outros lídcres e
~riionoIII
O ESIROO IMPERIAL DA t6REJR
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:ornunidades semelhantes apareceram, primeiro no deserto de Nítria, sudoeste de ilexandria e delta do Nilo, e depois, conforme seu número aumentava, mais para o interior do deserto de Cétis e na área conhecida como "as Celas." Na época em que .Inthnio morreu, em 356, havia provavelmente alguns milhares de ascetas praticando o evangelho de Cristo no deserto. Desse número, entretanto, uma proporcão significativa estava praticando uma forma nova, comunitária, de vida monástica que surgiu no alto (porgáo meridional) Egito sob a lideranca de Pacômio (ca. 230-346). Natural da vila de Chenoboskion, Pacômio, após breve scrviqo como recruta no exército rornano, apresentou-se para batismo e imediatamente assumiu a vida de eremica sob a supervisáo de um ascera mais velha cliamado Palarnon. Por volta de 320 ou pouco depois, obedecendo uma chamada divina, Pacômio estabeleceu uma comunidade monástica organizada na L-iiade Tabenísi. O s membros dessa comunidade viviam uma vida comum estrita
ikoinos bios, daí o português "cenobita"): isto é, eles seguiam um programa comum de trabalho, oraçáo e meditação (i.e., na prática, recitação de memória de passagens das Escrituras); eles comiam juntos e consideravam roda propriedade como comum; e praticavam obediência esrrira aos seus superiores, os quais governavam o mosteiro como um todo e suas nloradias conscituinces de acordo com a R e p que Pacômio, sem dúvida gradualmente, desenvolveu. Com o tempo, a koinoizlLr pacomiana, como ela era chamada, passou a incluir um número de tais centros monásticos (incluindo comunidades de mulheres) e assim constituíram a primeira "ordcm" monástica. EsIas comunidades sustentavam-se arravés de seu trabalho (agricultura e tecelagem, por exemplo) e eram dcdicadas a assistência e encorajamento mútuo na prática do caminho da salvaçáo. Qualquer que tenha sido a tensáo entre eles em princípio, canto o monasticismo eremita de Ailtônio como o cenobirismo de Pacômio persistiram conforme o movimento monástico se espalhava. Na Síria, onde o ideal ascético de vida cristá possuía profundas raízes hisróricas, o impulso eremita parece ter surgido tão espontaneamente como no Egito, mas com uma tendência característica para extremos de autonegacão e excei~tricidadena prática ascécica. Por exemplo, Simeáo o Anciáo (ca. 330-
459), o mais famoso exempIo de tal excenrricidade, foi chamado "Estilita" por que passou trinca anos de sua vida vivendo no topo de uma coluna, onde orava e pregava aos peregrinos que vinham visitá-lo. Tais homens sancos eram 0bjet.o de g a n d e reverência popular na Síria, e o próprio Simeáo foi procurado pelas autoridades imperi-
ais em busca de auxílio na resolu~áode controvérsias acerca dos concílios de Éfeso e Calcedônia (ver III:9). Ao mesmo tempo, o quarto século viu o desenvolvimento na Síria e na Palestina de uma forma nativa da vida cenobítica; o próprio Simeáo, de fato, havia começado sua carreira em um mosteiro em Teleda, norte de Antioquia. Na Capadócia c Ponto e mais tarde na Ásia Menor em geral, o cenobitismo tornou-se a regra. Introduzido por volta da metade do quarto século por Eustátio de Sebaste (ca. 300-ca. 377), a vida monástica nessa regiáo deveu sua disseminaçáo e sua organizaçáo aos esforços de Basílio de Cesaréia (ver X11:4) para promover e alimentar "a vida filosófica." Era convicção de Basílio que a vida cristã completa exigia tanto o amor a Deus como o amor ao próximo. Seus monges, portanto, deveriam imitar a vida da comunidade apostólica de Jerusalém, onde "todos os que criam estavam juntos e tinham todas as coisas em comum."' Desaprovando os extremos de ascerismo que ele havia restemunhado entre alguns solitários, Basílio, como Pacômio, adicionou a obediência às listas de virtudes monásticas. O monge deveria náo apenas viver em comunidade, praticando caridade para com o próximo, mas também renunciar à vontade própria submetendo-se ao governo da comunidade, representado na pessoa do abade. Em adiçáo, Basílio encorajou os mosteiros a se situarem nos limites das cidades, onde eles poderiam ser úteis à população, oferecendo exemplo e instrução como também hospitalidade aos viajantes e cuidado aos doentes e necessirados. Estes princípios e outros Basílio enunciava quando visitava grupos de ascetas para lidar com seus problemas e responder seus pedidos de aconselhamenro. Suas instruçóes receberam forma escrita e foram editadas ainda durante sua vida, e eventualmente foram distribuídas como suas R e p s Maioies e R e p s Menores - as bases do monasticismo grego e russo até o presente. Não foi apenas insticucionalmence, entretanto, que Basílio e sua escola (incluind o Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa) influenciaram o fucuro do monasticismo. Simultaneamente, adeptos e críticos da tradição da teologia platônica oriunda de Clemente de Alexandria e Orígenes, eles forneceram ao movimento asceta uma moldura de operaçáo teórica - uma base teológica e antropológica que poderia ser empregada para mapear o progresso da alma desde o início de sua vida em Cristo no baíismo até a fruiçáo daquela vida em conhecimento contemplativo de Deus. Urna versáo desse ascetismo helenizado e intelectualizado foi levada para o 'Atos 2:44
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O ESTAOO IMPERIAL 0 1 IEREJA
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Egito por Evágrio Pônrico (346-399), o quaI, após uma carreira em Constan[inopla, onde Gregório de Nazianzo o havia ordenado diácono, foi para o deserto de Nítria em 382. Seu ensino ali conquistou alguns discípulos mas gerou oposiçáo entre os monges coptas, os quais sem dúvida não gostaram de seu heienismo e certamente suspeitaram (náo sem razáo) de que ele estava perigosamente apegado às idéias de Orígenes. A "controvérsia origenista", que começou quando de sua morte e que finalmente figurou na disputa entre as sés de Alexandria e Constantinopla que levou ao exílio e morte de João Crisóstomo (ver III:8), teve o efeito de deixar Evágrio em permanente descrédito (ele foi condenado por origenismo pelo concílio ecumênico de 553); mas ela também espalhou seus discípulos e disseminou seus ensinos, com o resultado que sua compreensão da vida ascética, e do conhecimento contemplativo
de Deus ao qual ela almeja, influenciou significativamente tanto o monasticismo oriental como o ocidental. O ideal monástico foi comunicado ao Ocidente pela primeira vez pelo próprio t a n á s i o e sua Vida de Antiinio, a qual foi rapidamente traduzida para o latim (ca.
.;GO). A indicaçáo mais antiga de instituiçóes monásticas no Ocidente esti ligada ao nome de Martinho de Tours (ca. 335-397), um eremita ao redor do qual uma çotnunidade de anacoretas reuniu-se em Liguge e quem levou esse modo de vida coin ele quando se tornou bispo de Tours. Aproximadamente no mesmo tempo, Eusébio, 3ispo de Vercelli (340-371),introduziu uma nova forma de comunidade monástica ,,rganizando o clero de sua igreja sob uma regra ascética - uma prática posteriormenr- seguida por Agostinho de Hipona. Em
Milão, na década de 380, havia um mos-
rziro de homens bem no extremo da cidade, cuja comunidade era patrocinada e ~spcrvisioriadapelo bispo, Ambrósio; e a vida asceta, senão instituições monásticas :orno tais, foi basrante popularizada por Jerônimo durante sua permanência em
-xoma, 381-384. Quando das últimas décadas do quarto século, comunidades mo:;scicas
parecem estar se multiplicando na Irdia. Na Gália, o movimento monástico
r:;ebeu
encorajamento pelo crescimento gradual, depois de 4 I O, de uma coinunida-
i? na ilha de Lérins no litord dc Cannes, e então, após 4 15, de uma outr:i fundada :sr loáo Cassiano (ca. 360-435), um discípulo de Evágrio Pôntico, em mars se lha. As - .....: ; ; ~ ~ ~e tCon.rênrias as de Cassiano, projetada~para familiarizar os ascetas ociden=:L
com a tradiçáo de monasticismo egípcia, tornaram-se documentos fundamen-
.Lpara o monasticismo ocideiiral.
O estabelecimento contínuo de novas comunidades monásticas na Itália, Gália e
HISTbRIA DA IGREJA CRISTA
186
Espanha, e preocupaçáo pela regulamentaçáo interna de sua vida, levou iio quinto c sexto séculos à multiplicaçáo de regras formais para mosteiros individuais
- um de-
seilvolvimento sem dúvida encorajado pela tradução, por Jerônimo, para o latim, da
Regrtl de Pacômio. Destas regras, uma, a Regm de Bento, iria eventualmente se tornar a norma para o monasticismo ocidental. Ela é quase certamente para ser atribuída a
Benro de Núrsia (ca. 480-ca. 550), os esboços de cuja vida sáo conhecidos dos Dii-
logos do papa Gregório Magno. Originalmente um eremita que morava em uma gruta perto de Snbíaco, ele organizou os discípulos que se reuniram ao redor dele em pequenas comunidades. Eventualmeni-e, ele se mudou para Monte Cassino, entre Roma e Nápoles, onde fundou o mosteiro cenobítico para o qual sua Regra foi projetada. Na composiçáo dessa regra, a qual chama atengáo por sua simplicidade e clareza, Benro sem dúvida baseou-se em sua própria experiência. Ele canlbém conhecia, contudo, uma forma latina das regras de Basílio de Cesaréia e Pacômio, e utilizou um documento quase contemporâneo conhecido como A Regra do Mest~e.
A
concepçáo de Benro de um mosteiro era a de uma comunidade estável, auto-
sustentável, de pessoas dedicadas a seguir a Cristo. Seus membros eram solicitados a renunciar às possessóes pessoais, a praticar continência e a permanecer em sua comunidade para o resto da vida. O principal da comunidade era o abade, o qual deveria ser obedecido implicitamente mas que estava obrigado, por sua vez, a consultar todos os irmãos em questões importantes de interesse comum. As ocupações principais dos monges eram em número de três: adoraçáo a Deus, comunitária no ofício realizado diariamente sete vezes; trabalho manual no campo; e lectio divina - o estudo meditativo da Escritura. Como Basílio de Cesaréia antes dele, Bento era céptico quanto ao valor dos extremos no ascetismo e ainda mais céptico quanto ao individualismo e desarraigamento da tradiçáo anacoreta. Sua Regra era estrita mas náo severa, e insisria no caráter comunitário, mesmo familiar, do estabelecimento monástico, no qual o amor múruo deveria governar. Uma vez que todos os monges tinham que ler para poderem conduzir o oficio divino e estudar as Escrituras, o mosteiro de Bento, como muitos outros desde o tempo do próprio Pacômio, mantinha uma escola cujo propósito primário era ensinar os irmãos a ler; e essa instituiçáo da escola monástica (juntamente com a biblioteca que a prática da lectio divina exigia) iria eventualmcnte, conforme a Idade Média se aproximava, tornar os mosteiros os principais centros de apreridizado na Europa. Cassiodoro (ca. 485-ca. 580), contemporâneo de Bento. o qual foi por um tempo ministro de Teodorico, rei osrrogodo, retirou-se para sua
PERIOD~III
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
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propriedade no si11 da Itália para fundar, no mosrciro de Vivarium, aquilo que ele ssperava vir a ser náo apenas um centro para a vida ascética mas também um ccncro
de aprendizado bíblico e humanístico. Suas expecca[ivas não se realizaram, mas sua associação tipicamente romana e aristocrática da vida "retirada" com o cultivo das lemas foi na verdade profética de uma futura funcáo do n-ionasricismo no Ocidente.
A R e p beneditina disseminou-se muito lentamente, embora desfrutasse do parrocínio d o papa Gregório Magno, que progressivamente utilizou monges como missionários, bispos e embaixadores. No inicio do século scrc na Gália, nos reinados dos sucessores de Clóvis, o impulso inicial para um novo desenvolvimento do monasticismo veio dos mosteiros fundados pelo monge irlandês Colurnbano (ca.
543-61 51, cuja Reg~npdmMonges, introduzida para governar os mosteiros de Aniiegray, Fontaine e, o mais importante de todos, Luxeuil, refletia a vida de seu mosteiro de origem em Ba~igor(no Ulsrer), este mesmo de fundação recente. As raízes do monasticismo irlandês encontram-se na tradiqáo oriental introdiizida por Joáo Cassiano em Provença, daí tendo sido conduzido para a Grã-Bretanha. Tal tradiSáo, entretanto, passou por significativa modificação na Irlaiida, onde, em lima sociedade essencialmente tribal, o mosteiro e seu abadc (em vez de uma corigregaqáo urbana com seu bispo) tornou-se o centro d e rodo trabalho pastoral, e o bispo era frequeritemente o pr6prio abade ou, em alguns casos, um dos monges. Tais mosteiros rnantivcram sua preocupação com a vida ascética, mas também se tornaram centros de esforço missionário, de cuidado pelo pobre e dc aprendizado sagrado c secular, pelos quais o monasticismo irlandês do sétimo e oitavo séculos ficou famoso. Como um resultado do trabalho de Columbano, essa tradição floresceu na Gália e na Itália (oiidc ele fundou o mosteiro de Bobbio). Gradualmente, entretanto, a Regm
de Columbano foi modificada pelo coritato com a de Bento; e no período de Carlos ,Magno e do abade Bento de Aniane (ca. 750-821), quem sistemarizou a regra bencdirina e tornou-a a base para uma reforma mais abrangente da vida monástica, o p d r á o de Bento tornou-se a norma para todo o monasticisrno europeu (ver IV:G).
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AIST6RIA DA IGREJA CRISTA
Capítulo 8
Ambrósio e Crisóstomo As situaçóes e problemas contrastanres das igrejas no Ocidente e no Oriente quando do final do quarto século, estáo refletidas nas carreiras quase contemporâneas de Ambrósio de Miláo e João Crisóstomo. Estes dois homens foram pregadores e pensadores cujas idéias continuaram a ser influentes na igreja por muito tempo depois de sua morte. Cada um foi convocado, em um momento significativo, a servir como bispo em uma capital imperial. Ambos representaram, de maneiras diferentes, os ideais do crescente movimento ascético. Contudo as questões e circunstâncias que modelaram suas estórias foram significativamente diferentes. Nascido em Trier, provavelmente em 339, Ambrósio era fiiho de um prefeito pretoriano da Gália e foi educado nas escolas retóricas de Roma para uma carreira no serviço imperial. Ele exerceu por um período de tempo nos tribunais romanos, mas eventualmente (ca. 370) foi indicado governador civil da província de Emília-Ligúria, com sua capital em Miláo. IA, quando da morte do bispo ariano Auxêncio em 374, irrompeu uma controvlrsia amarga entre cristãos arianos e nicenos quanto à questáo do sucessor de AuxEncio. Compelido a intervir pessoalmente para manter a paz, Ambrósio encontrou-se aclamado fervorosamente como candidato do laicato niceno. Com alguma relutância, ele acedeu a essa eleicáo informal. Uma vez que naquele momento ele era apenas um catecúmeno, foi primeiramenre batizado, e entáo rapi-
dameme ordenado. Elc marcou essa mudança cm sua vida doando sua propriedade. adotando a disciplina pessoal de um asceta, e assumindo o estudo de teologia com
seu antigo tutor (c posreriormente seu succssor como bispo de Miláo), Simpliciano. Ambrósio deve ser visto em primeira instância como um homem de negócios. t e cuidado de seu rebanho mas tambEm ao bemque se dedicou iiáo s i ~ n ~ l e s m e nao estar da igreja etn geral. Persuasivo, prático, e liomem de autoridade pessoal direriva ele tornou-se o conselheiro e guia de uma sCric de imperadores ocidentais: Graciano
(367-38.1);o irmáo mais jovem de Graciano, colega júnior e sucessor, Valentinianc I1 (375-392); c a opçáo de Graciano para suceder Valente, Teodósio 1 (379-395). C3 objetivo que ele buscou é evidenre: a aliança do estado romano com o cristianismc ortodoxo contra o ariatiisrno, paganismo e judaismo. Foi sem dúvida sob a influéncia de Ambrósio que Graciano em 382 reinoveu o altar (mas 11áo a estátua) da deus:
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I) E S I A B U IMPERIAL
DA IGREJA
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Vitória do senado romano. Certamente foi sua influência que prevaleceu quando, após a morte de Graciano, os senadores pagáos sob a lideranca de Símaco solicitaram sem sucesso a Valentiniano 11 a resrauraçáo do altar. Foi Ambrósio quem resistiu ao esforço de Justina, mãe de Valentiniano, para obter edifícios eclesiástjcos em Miláo para o uso das tropas godas - e portanto arianas - do imperador. Acima de tudo, foi a percepçáo de Ambrósio que foi refletida na série de editos que Teodósio I publicou após 39 1, ~ r o i b i n d oo culto pagáo. Mas se Ambrósio foi assim um arquiteto principal da íntima aliança entre o estado romano e a igreja cristá no Ocidente, também foi ele quem deu àquela relaçáo o caráter de uma aliança e não de uma identidade. Na percepção de Ambrósio, o imperador era patrono e filho fiel da igreja, mas enfaticamente náo seu governante. N o que se refere aos assuntos internos da igreja - seu ensino e disciplina - a interferência imperial náo era bem vinda: "pois o imperador está na igreja, não acima da igreja."' Assim, quando as tropas de Teodósio I perpetraram um massacre de civis em Tessalônica, em retaliaçáo pelo assassinato de um oficial imperial, Ambrósio exigiu que o imperador imitasse o comportamento do rei Davi no caso de Urias o hitita2 e fizesse penitência pública nas ruas de Miláo. Igreja e estado eram autoridades separadas com esferas de competência separadas.
Náo é apenas como homem de negócios, todavia, que Ambrósio é lembrado. Em sua época e lugar, ele foi um teólogo de importância, não tanto por sua originalidade de pensamento como por sua introdu~áode idéias e idioma gregos no pensamento cristáo larino. Ele apropriou-se desavergonhadamente do labor exegético, reológico e fiiosófico do
assado grego para sua prega550 e reda~áo.Foi essa qualidade erudita
de sua pregação, bem como sua eloqüência, que atraiu o jovem Agostinho dr Hipona e fez com que ele comecasse a repensar sua jovem fé cris~á.A maior e mais influente obra de Ambrósio foi um tratado ético, Sobre as Deue~esdos 12lil-zistras, no qual ele imita uma obra clássica de Cícero no espírito do novo ascetismo cristão. Bem diferente foi a vida daqueIe Joáo a quem geracões posteriores deram o nome
"Crisóstomo", "boca de ouro." Nascido em família nobre (seu pai era um "i\/Zestrcde ioldados" imperial), Joáo foi educado em Antioquia sob a orientaqão do retórico ~ 2 g á oLibânio, e posceriormente, em reologia, sob Diodoro de Tarso. Quando de seu h r i s m o (ca. 370) ele, como muitos outros de seu tempo, assumiram a vida ascética
e até, por uin período de alguns anos, Tornou-se um eremita. Sua austeridade, entretanto, afetou sua saúde, e ele foi forçado a retornar para Antioquia, onde foi ordenado sucessivamente diácono (381) e presbítero (386) e ii-iiciou a carreira de pregacão regular que Ihc conferiu reputaçáo. Orador habilidoso, ele também era exegeta fiel, sinronizado nas ~~eçessidadçs e problemas de seus ouvintes. Ao mesmo tempo, criticava severamente, no espírito de um asceta, as circunsriincias sociais e econômicas da época; expunha os ricos ao ridículo por causa de sua cegueira para com as necessidades dos pobres; argumentava que a
privada fora introdrizida apenas
conlo conseqüência do pecado de Adáo; criticava a vaidade no vestir e o "duplo padrão" de moralidade sexual entre maridos e mulheres. Sua pregação era náo apenas edificante mas em frequentes ocasiões proférica e áspera ao ponto da indiscricão. Em 398, após a morte de Nectirio, um oficial complacente que se havia tornado bispo de Cotistantinopla em 38 1, Joáo foi mais ou menos forcosamenre importado de Antioquia para suceds-10. Em Constantinopla como em Aiitioquia, ele logo conquistou um amplo auditório popular. Náo obstante, teve inimigos nos altos escalões.
A corte imperial do iniperador Arcádio, sob o domínio do eunuco Eurrbpio, não tinha o hábito de ouvir críticas de seu comportamento ou de tolerar um bispo que não se comportasse como um capelão da corte. O ciero de Constantinopla, negligenre nos dias de Nectário, logo ficou inquieto diante da dura disciplina de João. Fora da cidade em si, ademais, hwia temor entre eclesiásticos proeminentes, de que iini bispo forre de Constantinopla tentaria reivindicar a autoridade patriarcal que havia sido atribuída à sé de Joáo pelo segundo concílio ecumênico. Particularmente era este o caso com Teófilo, bispo de Alexandria, n qual ressentiu-se da reduçáo de prestígio que ele e sua igreja sofreram conlo consequê~iciada decisão do concílio, que Constantinopla deveria ser a seguida após Roma. O ressentimento de Teófilo era parrilhado pelas igrejas da Ásia Menor, uma vez que era delas a área sobre a qual o bispo de Constantinopla buscaria natiiralmentc estender sua jurisdição. E, na realidade, Joáo intrometeu-se nos negócios dessas igrejas, depondo uma série de bispos que haviam pago dinheiro (ao bispo metropolitano de Éfeso) por suas ordenacócs episcopais. Enredado, então, nas querelas jurisdicionais das igrejas orientais e envolvido com uma corte que náo apreciava sua dedicaçáo radical à santidade de vida, o destino de Joáo foi selado quando ele interveio na controvdrsia que estava acontecendo sobre os ensinos de Orígenes. Tal controvérsia começara na Palestina com o esforço do bispo
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O tSTIIOD IMPERIAL DA IGREJh
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Epifânio de Salamis (ca. 3 15-403) para extirpar o origenismo da igreja de Jerusalém e dos mosteiros em sua vizinhança. O origenismo havia antes se disseminado para o Ocidente como conseqüência do envolvimento, em lados diferentes, de Jerônimo e Rufino de Aquiléia (ver II1:I 5 ) , ambos os quais haviam sido tradutores das obras de Orígenes para o latim. O bispo Teófrlo de Alcxandria, que havia iio início beneficiado a causa origenista, rendeu-se finalmente à pressão dos monges do deserco da Nítria e proibiu os ensinos de Orígenes, exilando seus defensores para o Egito. Quatro destes exilados, conhecidos como "os irrnáos altos", fugiram para Constantinopla c foram bem recebidos por Joáo Crisóstomo. Teófilo retaliou quase imediatamente, indo para a Ásia Menor e realizando um sinodo (403) em uma propriedade imperial perto de Constantinopla, conhecida como "o Carvalho." O sinodo, composto inteiramente de inimigos de Joáo, depuseram-no; e uma vez que a corte imperial 11áo gostava de Joáo e a imperacriz Eudóxia estava furiosa com a crítica de Joáo à sua ganância e injustica, a corte imperial c o n f i r n o ~oi veredicto. Quase iniediatainente a imperatriz, perturbada por um terremoto e pelo descontentamento da populaçáo, arrependeu-se de sua decisáo, e Joáo foi rapidamente reinstalado; mas a adversidade náo lhe havia ensinado discricáo. Ele logo estava censurando novamente o comportamento da corte e comparando a imperatriz, náo apenas com Jezabel mas até mesmo com Herodias. No final, ele foi exilado para a Armênia. A intervenção do papa Inocêncio I (402-417) náo resultou ern nada, exceto um cisma entre Roma e Alexandria. Crisóstomo morreu em 407, quando viajava para um local de exílio ainda mais distante, vítima não somente de uma corte imperial corrupta mas camb t m das querelas teológicas e jurisdicionais que estavam agitando as igrejas orientais.
Capitulo 9
As Controvérsias Cristológicas Estimulada pelo ensino de Ário e pela resposu do concílio de Nicéia, a controvérsia trinitária foi centrada em primeira instância no starus do LogosiFilho divino sua relacáo com Deus e seu papel na relação de Deus com a ordem criada. Inevitavelmente, entretanto, esse debate também suscitou questóes sobre a pessoa de Cristo,
pois o primeiro axioma da cristologia primitiva era a crença que Jesus o Cristo é o Logos divino "feito carne" - existindo, isto é, em uma maneira humana, ou unido à humanidade. Este axioma não foi questionado por nenhum partido na controvérsia ariana. Náo obstantc, ao levantar a questão da riatureza ou status do Logos, os arianos ao mesmo tempo compeliram as igrejas a refletir mais explicitamente sobre o significado da fórmula,
"Lagos feito carne." A exploração
desse problema suscirou
por sua vez debates sobre a divindade e humanidade de Cristo e o modo de sua relação, e no decorrer desses de'oa~essurgiram duas escolas cristológicas - as assim chamadas alexandrina e antioquena. O conflito entre estas escolas, teológico e político, exigiu três concílios ecumênicos para sua resolu~áoe ainda assim produziu dois cismas permanentes dentro do movimento cristáo. Essa questáo cristológica apareceu primeiramente em um argumento que os primeiros arianos aparentemente usarani para sustentar sua tese que o Logos é uma criatura. Apelando para os evangelhos, eles sublinharam que ali Jesus é uma pessoa que tem fome e sede, chora, exibe ignorância c sofre. A partir destes dados, eles concluíram que o Logos tem o tipo de natureza que está sujeito a todas as limitacóes de um ser humano comum: que, em uma palavra, ele é finito e humano. Atanásio eventualmente seguiu-os nesse argumento, pois acreditava que ele tocava em uma questáo básica. Atanásio insisriu, contra os arianos, em que o Logos tem que ser verdadeiramente, totalmente Deus, argumentando que é somente através da presença graciosa de alguém que seja ele mesmo Deus que a natureza humana pode ser divinizada - eIevada à comunh8o com seu criador e a semelhança dele. Atanásio julgava, resumindo, que a redençáo da humanidade requeria uma presença náo-mediada dc Deus com a humanidade e para com ela, através da qual a criatura poderia vir a participar na vida divina; e para ele, a encarnaqáo do Logos era o "momento" no qual exatamente tal união do verdadeiramente humano e totalmente divino ocorrera. Ao afirmar este princípio, Atanásio ecoava o traço central da totalidade da tiadic;áo alexandrina em cristologia. Ao mesmo tempo, entretanto, ao defender seu princípio ele demonsrrou partilhar com seus oponentes no mínimo duas pressuposiçóes sobre a pessoa de Cristo. Primeiramente, ambos os lados concordavam em que o Logos é o sujeito real, último, de tudo o que Cristo faz ou sofre. Certamente, Atanásio expôs essa convic~áode uma forma cuidadosamente qualificada. Se é verdade, insistiu, que o Logos tem sede ou sofre, isto só é verdade à medida que ele assumiu
~ ~ i l o rii no
O ESTADO IMPERIIL OA IGREJA
I %i
uma maneira humana de ser. Náo C em sua natureza divina peculiar, mas apenas eiri sua natureza humana, que ele é susceríve1 de tais caracteríscicas. Nao obstanre, Aranásio estava certo de que é o Filho divino, e náo alguni outro, a quem tais atributos forani concedidos. Mas entáo, em segundo lugar, ambos os lados habituaiinente referiam-se a essa Iiumanidade que pertence ao Logos de Deus através da encarnagáo como "corpo." Mesmo quando Arnilásio quis concer o ataque cl~ico Cristo - isto E, o Logos encarriado - poderia sofrer de ignorancia, ele parecr nunca rer pensado em atribuir tal ignorância à mente ou alma humana em (;risto, por mais narul.al que ta1 curso pudesse parecer. Parece que imporrantc para ele era a uniáo do Logos com a dimensáo corporal da natureza humana - aquele lado da natureza humana que mais obviamente requer redencão da mortalidade. Aeanásio certamente náo negou um centro de consciência l ~ u m a n oeIii Cristo, mas também ele náo mostrou m~ritoinceresse riisso.
O que estava meramente implícito no pensamento de Ara~iásio,entretanto, tornou-se explícito no primeiro pensador daquela época a desenvolver urna cristologia sistemática - Apolinário, o bispo de Laodictia na Síria (m. ca. 390). Vigoroso deferisor da R nicena, amigo de Atanásio, c a pessoa amplamente rcsponsável pela conversão de Basílio de Cesaréia à posição homoousiana, Apo1in:írio desfrutava do respeito de seus contemporâneos tanto por sua habilidadr como exegeta, quanw por seu modo de vida ascérico. Sua posicáo crisrológica, como aquela de Atanásio, era oriunda de um desejo em afirmar que em Cristo, o Filho divino esri imediatamente presente para transformar e divinizar a mortalidade pecan~inosada criatura humana. Para ele, entreunto, esta convicgáo da uniáo imediata do Logos com humanidade cm Cristo requeria a crença em que o verdadeiro "ego", o verdadeiro princípio-vida, =m Jesus era simplesmente o próprio Logos. Conseqüentemente, náo poderia haver questáo alguma, para ele, da uniáo do Filho divino com um ser humano normal, completo, pois naquela circunstância, insistiu, liaveria duas vontades concorrentes, duns mentes, duas personalidades c por coi~sequênciadois Filhos, humano e divino.
.A ~unidadcdo Cristo seria destruida
e, com sua unidade, a verdade essencial que ele
i. simplesniente, verdadeiramente, "Deus conosco."
A maneira de compreender e afirmar essa unidade, pensava Apolinário, era dizer que, da mesma forma que um ser humano comum é consrituído de espírito, aIma c corpo1 - ou, para usar aquilo que para hpolinirio era linguagem equivaience, inceleci Tessnloniccnses j:21.
194
HISIORII IIA IGREJA GRISTÁ
to, alma animal e corpo - também o Cristo é constituído dos mesmos elementos estruturais, mas com uma diferenqa crucial: "Cristo, tendo Deus como seu espírito isto é, seu inrelecto -juntamente com alma e corpo, é corretamente chamado o ser humano ~elestial."~ Em outras palavras, o Cristo conforme Apolinário o concebia é um organismo único - "uma natureza c~rnposta."~ - no qual "o corpo terreno está entretecido com o Deus supremon4e "o Logos contribui com uma energia especial para o todo",5 porque ele é a única fonte de vida nesse organismo humano-divino. Esta unidade de vida por sua vez significa, como Apolinário ressaltou frequentemente, que "tanto aquela que é corpórea como aquela que é divina sáo predicados do Cristo total."' O problema com este ensino era que ao insistir no deslocamento do espírito ou intelecto humano pelo Logos divino, ele apresentava a humanidade de Cristo como incompleta. Para Apolinário isso pode ter parecido irrepreensível, uma vez que era a "vivificaqáo" e "santifica5áon da carne que ele romou como a coisa essencial realizada pela encarnacáo. Uma vez que a carne humana, a qual ocasiona o pecado por seu domínio do intelecto finito, está em Cristo controlada e animada pelo Intelecto divino (o Logos), e uma vez que nossa carne é por sua vez santificada por sua uniáo com o corpo de Cristo, entáo o "auto-movido intelecto dentro de nós" pode partilhar na destruição do pecado assimiiando-se a Cristo.' Uma vez claramente exposta, todavia, aconteceu que essa perspectiva náo foi amplamente partilhada, e as idéias de Apolinário foram atacadas de diversos lugares. Gregório de Nissa compôs um tratado, Contra Apolinávio. Gregório de Nazianzo insistiu em que visto como náo é meramente a carne que peca, mas também a alma e a mente, fora necessário ao Logos divino assumir uma natureza humana completa, inrelecto como também um corpo com alma: "Pois aquilo que ele náo assumiu náo curou, mas aquilo que está unido ao seu Deus Supremo também está alvo."^ Conforme representado por seu discípulo Vitalis, o ensino de Apolinário foi condenado Fragincnro 25, e m R. A. Norris, Jr., ed. c trad., The Chriitolqicni C o n ~ o v r r(Ph~iadel~hia, j~ 1980), p. 108. Apoliiiário, Fragmento 111, em Lietrmann, H . , Apolliízarir won Laodicea urzdseine Schuie (Tubingen, 1904). ' De unzone 4 em Norris, ed., The Christulogic~lCunt~ueer~y, p 104. De uíiione 5 (ibid., p. 104). "e uiiz'r)~ze17 (ibid., p. 107). - Fragmcnro 74 (ibid., p. 108). Carra 10 1, em E. R. Hardv & C. C. Richardson, The Christology ojthe Later Fdthers (Philadclphia, 1954), p. 218.
~ ~ n i o oIIIo
U ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
195
rm 377 por um sínodo romano sob o papa Dâmaso, e depois, dois anos mais tarde,
-.or um sínodo em Antioquia sob Melécio, que concordou com a proposiqáo romana que o Filho de Deus nasceu como um ser humano completo. O concílio de Constantinopla em 381 incluiu o apolinarianismo em sua longa lista de condenaçáo de eilsinos erroneos (Cânone 1). O s principais oponentes de Apolinário, entretanto, foram os representantes da issim chamada escola antioquena, elementos de cuja tradição podem ser rastreados
aré o monarquiano Paulo de Samósata (ver II:8) no terceiro sécuio, passando por Eustátio de Antioquia (ver III:2). Favorecendo uma interpreta~áomais literal das Escrituras do que os seguidores de Orígenes e a tradiqáo alexai~drina,esses antioquenos :ncontravam-se cm uma tradiçáo que havia também regularmente enfatizado o papel do Cristo como "segundo Adão" - como alguém cuja obediência humana reve
um lugar central na obra de salvação. Ainda mais importante é o fato que, como defensores do dogma niçeno da deidade completa do I.ogos, eles estavam preocupados com qualquer linguagem que atribuísse características ou limitaçóes humanas ao Filho divino. Conseqüentemente, a perspectiva de Apolinário que o Cristo total
o
sujeito canro de características humanas co~ilodivinas pareceu-lhes blasfema. Como dguém poderia dizer do Verbo de Deus, se ele foi verdadeiramente Deus, que ele reve sede ou sofreu ou morreu?
Foi este ~roblerna,acima de tudo, que preocupou o presbítero anrioqueno Diodoro, mais tarde (378-394) bispo dc Tarso. Participante no concílio dc Constantinopla, Diodoro foi o ~rofessorde uma geraçáo inteira de pensadores antioqrienos, incluindo João Crisóstorno. Ele utilizava a mesma linguagem teológica dos arianos, de Atanásio e de Apolinário: isto é, falava habitualmente do Cristo como a união do Logos com carne e, pelo menos inicialmente, tinha pouco ou nada a dizer sobre a presenga de uma alma ou personalidade humana em Jesus. Apesar
disso, entreranto, Diodoro insistiu - e não simplesmente contra Apolinário - em que deve haver uma clara disrincáo entre "carnc" por um lado e "Logos" por outro. Eles não poderiam ser concebidos, como Apolinário havia argumentado, constituir uma natureza ou hipóstase ou ousiu. Para Diodoro carne e Logos não compunham uma íinica "coisa." Era apenas à carne, e náo ao Logos, que alguém poderia referir afirmagões como Lucas 2:52: "Jesus crescia em sabedoria e estatura, e no favor de Deus." De alguma forma deve ser o caso que no Cristo existem dois fatores distintos que, embora intimamente unidos, n2o obstanre não estáo fundidos ou identificados. De
HIITflRIA DA IGREJA GRIãTÃ
196
outra forma, parecia, o Logos cessalia de ser verdadeiramente Deus, e a carne, a ser carne. Foi, contudo, no pensamento de Teodoro, pupilo de Diodoro e monge de Antioquia, notável exegeta e eventualmente bispo de Mopsuéstia na Cilícia (392-
428), que a lógica da teologia antioquena tornou-se explícita. Efetivamente condenado no quinto concílio ecumênico (553) coii~oo originadoi- do nestorianismo, Teodoro se opôs 5 idéia apolinariana de que o Cristo é "uma natureza composta" com a noçáo que nele existem dois sujeitos de agáo e predicaçáo - duas "liaturezas" e duas "hipósrases" - as quais ele compreende como sendo o Logos divino e um scr humano completo, "o Homem." O problema, então, era dar um relato aceitável de como o Filho de Deus está verdadeiramente unido com a natureza humana. Para fazer isto, ele empregou a antiga imagem da habicacáo. Por "comprazimento" (eudokia; ver Salmo 147:11) ou graça, ensinava ele, o Logos habitou o Homem desde o exato momento da concepçáo deste - e de uma maneira tão especial e táo íncima de forn-ia a partilhar com o Homem seu próprio status, identidade e dignidade como Filho de
Deus. Desra maneira foi constituído de duas naturezas, umapros~pun- uma "pessoa" no senrido de uma identidade funcional, pública. Essa doutrina da assim chamada uniáo prosópica capacitou Teodoro náo apenas a afirmar que a humanidade de Cristo é completa, mas também a enfarizar o significado de sua obediência humana e sofrimento para a redençáo do restante da humanidade. Ao mesmo tempo a doutrina capacitou ieodoro a lidar claramente com a questão que havia arormentado Diodoro dc Tarso. Porque o Logos e a humanidade sáo duas naturezas, s~ijeitos,ou hipóstases, 1150 pode haver questáo de atribuir as características de um para o outro. Pelo contrário, insis~iuTeocloro,deve-se "dividir as frases" - i.c., em qualquer afiriiiaqáo escriturística por Cristo ou a seu respeito, deve-se referir ao Lngos o que é próprio da divindade c ao Homem o qiie é prcíprio da humanidade. Baseando-se nisso, Teodoro questionou a adcquabilidadc de charnar a Virgem Maria de "Máe de Deus"
(t/jeotokos), um escilo que era popular no Oriente desde no míriimo o início do quarto sCculo. Ter um nascimento humano, argumentou, náo é um atributo próprio do L.ogos cm si, mas somente do ser humano que o Lngos habitava. Se o título theotohos for utilizado, eiitáo, deve ser cnte~ididocm um sentido não literal. Portanto, ao monismo crisroltjgico da tradicáo que fluía de Atanásio e havia encontrado expressáo extrema e excêntrica no ensino de Apolinário, I r o d o r o opôs um dualismo
cristológico igualmente estrico.
v ~ ~ i n eiiro
ser
L
O ESTADO IMPERIAL O& IGREJA
19i
Com a elevacáo, em 428, do monge antioqueno Nestório ao patriarcado de Constantinopla, o debate entre estas duas tradicóes cristológicas entrou em uma
de
nova fase. Ele tornou-se o centro de outro palco na disputa política entre as s&sde
,392-
Alexandria e Constanrinopla. Tendo sido ou náo pupilo pessoal de Teodoro de
nde-
Mopsuéstia, Nesrório acatou e essencialmente reproduziu o ensino de Teodoro. Isso
.mo,
fica evidente mesmo a partir do recentemente descoberto Livro de Hrriiclides de Da-
ma''
masco, o tratamento mais completo de Nestório da questão cristoiógica, mas que foi
:as" e
escrito muito tempo depois de sua deposiçáo e exílio em 431. Naqueia obra, ele
II
ser
refina o senrido dos termos "natureza" e "hipóstase", que Teodoro havia utilizado
f1
de
como sinônimos virtuais, mas ele continua resolutamente a manter a doutrina da
Para
uniáo proçbpica conforme Teodoro a havia ensinado. Certamente, em qualquer caso,
I:
kia;
::,7
r-'aro
foi a cristologia de Teodoro que Nestório trouxe consigo quando, nas pegadas de João Crisóstomo, ele mudou-se de h t i o q u i a para Constanrinopla.
? r ma
Quando de sua chegada à capital imperial, Nesrório encontrou uma controvérsia
:o de
calorosa em progresso sobre o uso do título tbeotokos conforme aplicado à Virgem
i5Oa
Maria. Depois de ouvir os argumentos de ambos os lados, ele pregou um sermso no
riada
qual declarou ser o título inapropriado, pois "aquilo que é formado no útero náo é .
cr1s-
. . Deus." Ele complementou que "Deus estava dentro de quem foi assumido" ( ; . e . ,a
:na e
natureza humana) e que "aquele que foi assumido é formado Deus por causa dAquele
-.
1
~rri-
quc o assumiu"' - uma repetiçáo da dourrina de Teodoro da uniáo prosópica, e na
.
:ado
linguagem do próprio Teodoro. Por fim, Nestíirio disse que preferia o título
.. ou
C/~rzstotokos("mãe do Cristo"). Essas perspectivas foram de grande ofensa àqueles
;tro.
que sustentavam serem o Logos e sua humanidade cáo verdadeiramente unia que o
::na-
que é dito da humanidade tem o Filho divino como seu sujeito últiriio.
3ro-
Correspondei~te~nenre, as declarações de Nestório foram relatadas a Cirilo, o pntri-
::550, . ,,
arca de Alexandria c vigoroso defensor do zbeotokos c da tradiçiáo atanasiana em
_LlS
cristologia. Quando isto aconteceu, Cirilo já estava em conflito com seu colega em
:-ar-
Constantinopla sobre o cxso de alguns monges egípcios que haviam apelado a Kestório
:do
contra uma decisáo de Cirilo. Após analisar, enrreranro, ele resolveu travar sua baca-
;40s
lha com Nesrório sobre a qucstáo doutrinária, pois em sua mente, isso enirolvia um
. ao
problema cenrral da fé cristá e, ao mesmo tempo, oferecia base para urri ataque mais
.
-- -
sério à autoridade da sé de Consrantinopla.
Um sobrinho do mesmo Teófilo, que provocara o exílio de Joáo Crisóstomo, Cirilo sucedera seu rio como bispo em 412 e partilhava não apenas o ciúme de Teófilo pela igreja de Constantinopla, mas também a falta de escrúpulo na busca de poder, que havia marcado os patriarcas de Alexandria desde Atanásio. Ao mesmo tempo, Cirilo possuía uma mente teológica aguqada e uma dedicação sincera ao ideal religioso representado pela tradiçáo alexandrina em cristologia. Na história daquela tradiçáo ele desempenhou, de fato, o mesmo papel queTeodoro de Mopsuéstia desempenhara na formação da perspectiva antioquena. Ele deu-lhe uma forma acabada e praticamente definitiva. Para Cirilo, a pedra fundamental da ortodoxia, tanto em problemas cristológicos como e m outros, era o inspirado "símbolo dos 31 8 santos Pais" - o credo do concílio de Nickia. N o segundo parágrafo daquele credo - que quanto a isso, como Cirilo percebia, seguia Joáo 1:14 e Filipenses 2:G-11 - fora estabelecido que o "único Senhor Jesus Crisro" era idêncico com "o unigênito Filho de Deus" e que esse Filho divino "foi encarnado . . . e tornou-se um ser humano." O efeito dessa linguagem, pensava Cirilo, poderia ser resumida maravilhosamente na expressáo "uma natureza encarnada do Lngos divino" - frase que ele enconrrou em uma obra atribuída a Atanásio mas que na realidade (embora ele não soubesse disso) fora escrita por Apolinário.
O que Cirilo queria dizer com essa expressáo, entretanto, nada tinha a ver com a negacáo apolinariana da alma ou intelecro humano em Cristo. Para Cirilo, o que essa frase - para náo mencionar o credo de Nicéia - estava dizendo era que em Crisco
há um sujeito,uma natureza ou hipóstase, a do Logos divino; e que a humanidade de Cristo, corpo c alma, era um modo de existência que o Logos havia tornado sua própria, por meio de seu nascimento de uma mulher. A humanidade, em outras palavras, não poderia de maneira alguma ser separada do Logos como "outra" além dele. Eia era no sentido mais estrito sua humanidade, sua maneira de ser uma pessoa humana. Essa perspectiva Cirilo resumiu em expressões como "uniáo em hipóstase" ou "uniáo natural." Nestório e seus partidários, talvez compreensivelmente, tomaram tais frases para afirmar ou implicar que humanidade e divindade haviam de alguma forma sido fundidas em Crisco, algo que já não era mais nem divino nem humano. Cirilo, entretanto, náo teve tal incençáo. "Uma natureza" e "uma hipóstasen náo denotavam, em seu vocabulário,
"composta" de Apolinário. Elas denocavam o
próprio 1,ogos divino, mas o Logos quando ele havia tomado sobre si "as medidas da humanidade." Nessa perspectiva, fazia perfeito sentido falar de Maria como "Máe de
~tiionorii
O ESTADO IMPIRIA1 DA 16REJ1
199
Deus", da mesma forma que fazia sentido falar de Deus como "Pai" da humanidade de Jesus. Cirilo comeFou seu ataque a Nescório escrevendo aos monges cgípcios em defesa da
theotokos. Mas ele tiáo se limitou a cimentar as necessárias alianças locais.
Ele apelou ao imperador e à imperatriz, Teodósio I1 (408-450) e Eudóxia (ca. 401ca. 460), e a Pulquéria (399-453),irmã do imperador, mulher piedosa, capaz e influente. Ao mesmo tempo, ele correu em busca do apoio do papa romano, Celestino I
(422-432). Nestório também escreveu a Roma, mas conseguiu apenas ofender Celestino, o qual escava aborrecido, entre outras coisas, pelo fato de Nestório ter dado hospitalidade a certos líderes exilados do partido pelagiano (ver 111:17). Entrementes, Cirilo e Nestório haviam trocado dois conjuntos de cartas, Cirilo exigindo que Nestório "pense e ensine . . . em companhia c o n ~ s c o " ,Nestório '~ insistindo em que CiriIo havia compreendido equivocadamente o credo de Nicéia. Em um
sínodo em Roma, em 430, Celestino agiu contra Nestório. Ele decretou que o patriarca de Constantinopla devia retratar-se ou ser excoinurigado. Este ato liberou CiriIo para escrever uma terceira carca a Nestório, na qual exigia deste seu assentimento a uma série de anátemas afirmando a versáo mais extrema da posiçáo de Cirilo. Nestório respondeu com seus próprios anátemas. Nessa época, estava claro aos imperadores - Valentiniano 111no Ocidente e Teodósio
II no Oriente - que o problema exigiria um concílio imperial geral para sua resolucão. Desta forma, eles convocaram tal concílio para se reunir em Éfeso, em 431. Cirilo e seus aliados chegaram cedo, assim como Nestório. Contudo, os defensores Nestório, o patriarca Joáo de Antioquia com os bispos orientais, estavam atrasa-
LOS para a data de abertura do concílio. Cirilo, certo do apoio de seus próprios . .
~ I ~ P Oe S daqueles
da Ásia Menor (que sem dúvida ainda se ressentiam com as reivin-
jicaçóes jurisdicionais da sé de Constantinopla), insistiu em que o concílio deveria zomeçar. Diante de uma assembléia hostil, Nestório se recusou a participar, embora rznha sido peremptoriamente convocado a aparecer. Em uma sessáo de um único
Lia, este grupo, afirmando a única autoridade do credo de Nicéia e afirmando a i~cerpretaçáodeste por Cirilo, condenou e depôs Nestório. lilguns dias mais tarde, os defensores de Nestório chegaram, reuniram-se, e por i ;r
1-ezestabeleceram a condenação de Cirilo e de Memnon, o bispo de Éfeso. Final-
-'.;~.7
2 ii Nfitúrro, em Norris, Cj~ristulu~icul Còntrouerjy, p. 135.
HIST6RIA DA IGREJA CRI SI^
200
mente, os delegados do papa Celestino chegaram. Seguindo suas instruçóes, eles s r juntaram à assembléia de Cirilo, a qual eriráo prosseguiu adicionando Joáo di. A-itioquia à lista daqueles depostos e - como um gesto de amizade para com os ocidentais
-
condenando u pelagianismo. E m situaçáo táo confusa, o imperador
'reodósio ficou temporariaine~iteperdido. Ele co~~temporizou, internando os Líderzs
dc atribos os partidos, mas sua própria simpatia e a diplomacia agressiva de Cirilo e seus aliados levaram-no a restaurar o patriarca de Alexandria k sua sé. Nestório, por outro lado, foi dcposto e afastado para seu mosteiro perco de Antioquia. Ainda era necessário, entretanto, restaurar a comunháo entre as sés J c Alexandria e Antioquia. Náo seili pressáo iinperiiil, um arranjo foi alcançado. O s orientais cor-i-
sentiriam explicitaniente na condenaçáo e deposicáo de Nestório; em retorno, Cirilo concordaria c0111 uma fórmula confessional ajusrada (que provavelmente foi rcdigida pelo reólogo atitioqucno Tcodoreto, bispo de Cirro). Em 433, Joáo de Aritioquia enviou a Cirilo o testo dcsse documento (chamado Fórmula de Keztriiiío). Ele aprovuva o teriiio thcotokos mas ao mesmo teriipo explicava não apcnas que Cristo 6 "completo Deus c completo ser hutiiano", mas tambCm que "uma uniáo dc duas naturezas ocorrtu, como conseqüência disso, confessamos
. . . um Filho."" Na famosa carta
LnetCztzir cueli, Cirilo saudou essa confissão e a reunião que ela significava, com entusiasmo, embora alguns dc seus seguidores ficassem perturbados
iloqáo de
uma "uniáo de duas naturezas", que parecia contradizer a ptrsi<;áoanrerior de Cirilo.
A causa de Nestório estava agora p d i d a (embora haja pouca dúvida que ele também teria coilcordado com a fórmula ajustada, a qual, coilio muitos de tais documentos, não estava despi-ovida dc ambigiiidades). Ele foi finalmente banido para o ajro Egito, onde, pouco ances de sua morte por volta de 440, completou seu Liziro df
Heiúclides de Damasco, no qual justifica sua posição contrária à de Cirilo. ,4 reconciliação de 433 acabou sendo uma simples trégua. Em 438, com suas suspeitas da duplicidade antioquena incitadas, Cirilo entrou na arena ilovamcnte, desta vez com uma obra conrra Diodoro de 'Tarso e Teodoro de Mopsukstia, cujo cnsino, ainda respeicado entre os signatários antioquenos da Fórmzdu de Reuizido, ele estava determinado a extirpar. Na realidade, cada partido do ajusre sentia que o outro havia traído os termos do acordo. O vell-io debate foi renovado, embora agora o poder estivesse todo do lado do parcido alexandrino. Quando de sua morte em "
Norris,
C : l ~ i . i i t i / / i / ~ Conli.oue~sy, ic~/ p.
142.
r~~iono iir
O ES1100 IMPEAIRL OA IGREJA
201
444, Cirilo foi sucedido por Dióscoro (m. 454), homem sem princípios e arrogante, que não considerava a rcuniáo de 433 e buscas um triunfo complero para Aexandria sobre seus oponentes teológicos c políticos. Aproximadameni-e no mrsizio tempo, Proclus, sucessor de Nestório em Constantinopla (434-447) e partidário moderado de Cirilo, foi sucedido por Flaviano (447-449), o qual tendia para o ponto de vista antioqueno. O palco estava assim montado para uma renovaqáo total do embate. Logo apareceu ocasiáo para confliro. O principal defensor da campanha de Dióscoro em Constantinopla, conti-a os antioquenos, era o arquimandrita Euiiques. Esta figura popular era o superior de urn mosteiro na cidade e pessoa de infliiência na corte imperial, onde o ministro-chefe do imperador, o euri~icoCrisifio, era seu afilhado. Em uma reuniáo do "sínodo domPsrico" de Constantinopla sob a presidència de Flaviai~o,Eusébio, bispo de Doriliia, montou um contra-araque contra os alexandrinos. Ele acusou Eutiques de ensinar que a natureza humana de Cristo fora alterada ou absorvida por sua deidade. Convocado diaritc do sínodo, Eutiques recusou-se subsrancialmente a afirmar que a huma~iidadcde Cristo é homoousias com a nossa c manteve que Cristo era "de duas naturezas antes da união [i.e., a encarnaçáo], mas após a união, uma natureza." Esta afirmará0 obscura foi tomâda como queren-
do dizer que ele de fato ensinava uma absorcão do humano no divino. O sínodo correspondentemente o depôs e o declarou herético. Eritiques apelou imediatamente para a corte imperial. A corte respondeu - prenunciando mau-agouro - exigindo que Flaviano, e náo Eutiques, apresentasse uma coilfissáo de fé, cnquanto Dióscoro em Alexandria solicitou, e obteve, uma convocaqão iniperial para um concílio geral. Outro fator foi introduzido na situaçáo quando Eutiques e Fiaviano da iiiesma forma apelaram para Leáo I, bispo de Roma (440-461) - Flaviano transmitiiido as minutas da reunião na qual Euriques havia sido condenado. Após est-udar o assunto, suas
LeZo replicou a Flaviano em uma carta longa e criidadosamente argumentada, a qual
Ente,
rosnou-se conhecida como seu Somo. Ket.Crirido-sc a Eutiques como "uni homem
rujo
extremamente tolo e totalmente ignorante"," Leáo apelou para o credo batismal da
-.ele
igreja romana para substailciar a perspectiva ocidental tradicional. herdada de ,.
-;e o
lertuliano (ver I1:7), que o Cristo tem duas substâncias ou naturezas e que "as pro-
:cora
priedades características de arnbas as naturezas e substâncias s5o mantidas inracras e
em
juntam-se em unia pessoa."" Ademais, cada uma dessas naturezas "conduz duas ari-
t
HISTORIA DA IGREJA
202
CRISTA
vidades próprias em comuilháo com a outra. O Verbo faz o que lhe pertence e a carne efetua o que lhe pertence."'" Está evidente que com essa declaraçáo Leáo intencionava solucionar o debate cristológico de forma final, em concordância com a tradiçáo ocidental e romana. Sua forte doutrina das duas naturezas, contudo, a qual insistia em que elas eram princípios de atividade distintos, colocou Roma nessa questáo contra sua aliada normal, Alexandria. No final, defensores conservadores da posiçáo de Cirilo perceberiam o Tomo de Leáo como ensinando uma doutrina que era pouco melhor do que Nestorianisrno puro. Dióscoro, entrementes, estava agindo para eer Eutiques restaurado. Atendendo seu pedido, Teodósio I1 convocou um concílio geral para se reunir em Éfeso em agosto de 449. Quando o concílio se reuniu, Dióscoro não encontrou contradiçáo, no mínimo porque ele teve à sua disposiçiáo esquadrões de tropas imperiais e de monges de Constantinopla. Flaviano de Constantinopla e Eusébio de Doriléia foram condenados. Eutiques foi vindicado. Foi negada uma leitura do Tomo de Leáo.
O coricílio se posicionou baseando-se no princípio afirmado no sétimo cânone do prévio concílio de Éfeso (431): nada poderia ser adicionado ao credo niceno. Flaviano morreu, sob circunstâncias suspeitas, em seu caminho para o exílio. Dióscoro havia alcancado uma grande vithria, mas somente ao custo de uma ruptura final da antiga aliança entre AIexandria e Roma. Leão I táo logo ouviu o resultado do concílio denunciou-o como um "sínodo de ladrões" (iatrocinium). O papa assediou o imperador com demandas por um novo concílio a ser realizado na Itália, mas Teodósio I1 foi um firme defensor da causa alexandrina.
A situaçáo foi alterada quando a morte acidental de Teodósio, em julho de 450, colocou no trono sua irmá Pulquéria e o desconhecido soldado Marciano, a quem ela tomara como marido. Os novos soberanos negaram a solicitaçáo de Leáo por um novo concilio a ser realizado na Itália, mas náo obstante convocaram um, e este reuniu-se na cidade de Calcedônia, bem em frente de Constantinopla, no outono de
451. Esse concílio - o quarto a ser reconhecido como ecumênico - agiu prontamente para depor Dióscoro e reabilitar os defensores antioquenos da Fóymula de Reuniúo mais notavelmente dois críticos bem conhecidos de Cirilo de Atexandria, Teodoreto de Cirro e Ibas de Edessa. Os bispos presentes concordaram em que o credo do ' Tomo 4, ibid., p. 150.
PERIRBO 111
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
20-3
concílio de Nicéia e seu credo irmão, que eles atribuiram ao concilio de Constantinopla
(381) deveriam sob condigóes normais ter sido adequados para a definigáo da fé. Eles admitiram, contudo, que novas heresias haviam surgido em sua época. Por esta razáo, eles aceitaram - na realidade, canonizaram - a segunda carta de Cirilo de Alcxandria a Nestório e a carta Laetentz~rraeli, na qual Cirilo havia concordado com a Fúrmula de ReuniRo, como exposições adequadas do significado da fé nicena contra os erros de Nestório. Da mesma maneira, aceitaram o Tomo de Leão I como um documenro que, concordando com a doutrina de Ciriio, explicava a f t ortodoxa enquanto conrra Eutiques. Com estas decisões, os bispos ficaram essencialmenre satisfeitos. Eles náo desejalparn oferecer quaIquer substituro para a fé nicena ou adição formal ao seu texto. A corre imperial, entretanto, insistiu em que eles fossem adiante e fornecessem uma fíirmula composta em grande parre de frases e idéias
retiradas de docun~entosanteriores - cartas de Cirilo, Turno de Leáo, a Fórmzklu de ReuniRo, e a confissáo que o patriarca Flaviano havia submetido à corte in~perial após a condenaçáo de Eutiques. Esta fórmula, normalmente referida como a "Defiiiiqáo" do concílio de Calcedônia," insistia, em uma linha ciriliana, sobre a unidade do Cristo. Ele é "um e o mesmo Filho . . . completo em sua deidade e completo . . . em sua huinanidade." Cristo é, pois, "umaprosôpan e uma hipóstase"; mas ele existe "em duas naturezas", que estão simultaneamente inconfi~ndidase inalteradas (contra Euriques) e, por outro lado, individidas e inseparáveis (contra Ncstório). Esra linguagem reflete mais intimamentc a posição assumida por Leáo I em seu Torna. Ela pressupõe - o que de fato o debate até enráo nunca havia realmente concebido, ainda que a ~ioçãotenha sido prenunciada na Fórmula de Reuni20 e tenha sido fundamental para a resoiugáo rrinitátia de 381
-
uma distincáo de significado entre os termos "natureza" e
"hipóstase." A convicçáo central de Cirilo, de que a realidade ou sujeiro último em Cristo é o Logos divino, foi reafirmada, mas ao mesmo tempo o co~icílioinsistiu que, na encarnacáo, esse mesmo sujeito teve duas maneiras genuinamente distintas de ser. Cristo é de fato "Deus conosco", mas nele Deus está "conosco" como um ser hutnano ordinário, e nesse sentido, completo.
A vitória de Roma no conflito doutrinário não trouxe consigo, encreranto, uma vitória na esfera política. Através de seu cânone 28, o concílio de Calcedônia conce'
Ibid., p. 159
204
HISTORIA DA ICREJA CRISI%
deu à sé de Constantinopla privilégios iguais àqueles de Roma (argumentando que Constantinopla era a "nova Roma"). Ademais, a queda da sé de Alexandria ,enfatizada pela permanente aversão das igrejas egípcias para com a Definição Calcedoniana, significou que a igreja romana havia perdido seu aliado mais regular no Oriente e simultaneamente, sua habilidade para executar um jogo de "equilíbrio de poder" de Alexandria e Constantinopla. entre as reivindi~a~óes Na realidade, a viiória de Roma (e de Constai~tino~la) náo garantiu a unidade das igrejas. Unia segunda e náo menos importarite conseqüência do Concílio de Calcedônia foi a criakáo de uma igreja nestoriana separada, dentro dos limites do império persa. Muitos bispos orientais - Síria oriental c ocidental - haviam estado relutantes, na ipoca da Fónnz~laclr Reuni50, para condenar Ncstório, e alguns desses se estabeleceram, após 433, além das fronteiras do império romano na Pérsia, onde
já havia comunidades cristãs. As verdadeiras raizes do novo grupo encontram-se, rodwia, na
escola de Edessa, onde uma rradic20 crudita realizava labor reoló-
gico e exegético no espírito de Teodoro de Mopsuésria. O próprio Ibas de Edessa, antes de 435, havia sido o líder dessa escola, e quando ele retornou do concílio de Calcedônia, of-icialmente restaurado à sua sé como bispo, continuo11 a apoiar seu labor e do seu novo líder, Narses. Quando da niorte de Tbas em 457, ocasião em quc foi sucedido por um calçedoniano estrito, Narses mudou sua escola e muitos dc seus pupilos para Nisibis, na Ptrsia, onde gradualmente ela corrioii-se o cenrro de um crisriariiçrno renovado - e ilest-oriano. Essa igreja teve como sei1 Iíder um "catholikos", o qiraI veio a ser cognominado "Patriarca do Oriente" e teve sua sedc originalmente cm Szlê~içia-Cresífon(após 755 ela foi transferida para Bagdá). Missões nestorjanas
levaram o crisriailismo para a Arábia, Índia e atC rnesnio para o Turquime~listáo.A igreja sobreviveu c no geral floresceu sob o dominio islâmico, mas foi virtualmente destruída pelas invasões nlongóis do final da Idade Média.
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O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
205
Capítulo 10
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O Oriente Dividido
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A confissáo de Calcedônia era asora a norma doutrinária oficial do império. Para Roma e as igrejas ocideritais, pelas quais Leáo I havia falado em seu Tomo, ela representava uma ortodoxia inquestionável. N o Oriente, entretanto, a situacão era significativarneilce diferente. Não apenas havia lá um grupo de cristãos nestorianos corneCando a adquirir contornos ao redor de Edessa e n o império persa, mas os defensores conservadores do ensino de Cirilo de Alesandria podiam extrair pouco sentido de uma doucrina que falava de Cristo como um sujeito ou hipóstase "em duas naturezas." Eles poderiam tolerar uma linguagem como aquela da Fói.?nulri dc Reuniáo, que havia diro que Cristo era uma hipóstasc "a partir de duas t~aturezas",mas na opiniáo deles a crisrologia dc 1,eáo nao era melhor d o que o nestorianisrno. I'ara eles, "duas naturezas" significava dois sujeitos, duas realidades, "dois Filhos", c portasito negavam a unidade em Cristo tntrc o 1,ogos de Deus c a natureza humana - uma unidade que era a própria base da redenqáo.
A dissensáo criada por esse grupo de inonofisitas (i.e., defensores da fórinula "uma natureza") não era u m assunro que podia ser tratado suaveiiiente. A ampla
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maioria dos bispos orientais escava dedicada ao cnsino de Cirilo, náo obstante o pouco que
pensar de Euriq~iesou d o impopular Dióscoro. Mcsmo aqueles
que afirmavam e defendiam a doutrina calcedoriiana assim o faziam baseados no fato que "Leáo coricorda com CiriIo" - como, de fino, eIes haviam exclamado n o próprio concilio. Contudo o próprio Cirilo. como os nionofisitas insistiam, havia falado reguiarmenee dc uma natureza e uma hipóstase ern Crisro, e conscquenten~enccnão era Lima coisa fácil argumentar que o verdadeiro ensino de Cirilo - sua intenqáo, senáo sua linguagem - havia sido preservada pelo concílio de CalcedOnia. Adeniais, o movimenco monofisira possuía firmes raízes pop~ilarcs.Ele náo dependia mçramente da autoridade de bispos individuais, embora numerosos. T m t o sio Egito como na Síria setentrional ele desfrutava d o apoio incondicional e mesmo Fanático das comunidades monásticas e, exatamente por esse motivo, também d o apoio dos crentes e111 geral. No final, encáo, o fracasso dos imperadores em C o n ~ t a n t i n o ~em l a reconciliar os moriofisitas com a igreja imperial, criou náo apenas um cisma eclesiástico mas
HIST~RIRDA IGREJA CRISII
206
também dissidência política entre as populações do Egito e da Síria. A profundidade e a seriedade da reacáo monofisita pode ser vista no fato que, em Alexandria, as tropas imperiais foram solicitadas para controlar uma rurba violenta que se recusava a aceitar um certo Protério como sucessor de Dióscoro pelo simples motivo que ele havia sido ordenado por quatro bispos egípcios que haviam aprovado a obra de Calcedônia. Juvenal, patriarca de Jerusalém, foi expulso de sua sé por seu próprio povo e forçado a se retirar temporariamente para Consrantinopla. Quando da morte do imperador Marciano IIOVO
(457), Protério de Alexandria foi linchado, e um
patriarca - Timóteo, cognominado "o Gato" por seus inimigos - foi instalado
pelos líderes inonofisitas. Tirnbteo foi subsequei~remenre(459) exilado pelo novo imperador, Leáo (457-4741,mas apenas depois que o imperador havia se assegurado por meio de uma série de concílios provinciais de que os bispos orientais apoiariam Calcedônia e uma ação disciplinar contraTimóreo - uma garantia que eles lcaimente concederam, ainda que deixassem claro que compreendiam a posicáo de Calcedônia em termos cirilianos. Na Síria, a forca do movimento monofisita foi revelada quaiido, em 463, durante uma ausência temporária do pa~riarcaMartírio de Antioquia, um monofisita chamado l'edro, o Ferreiro, foi ordenado em seu lugar. Antes de sua destituição e exílio em 471, Pedro inseriu na liturgia antioquena uma expressão que se Tornou lema de seu partido. Ele adicionou à doxologia do Tvisugion ("Deus Santo, Santo e Poderoso, Santo Imorrai") a frase "que foi crucificado por nós" - um claro testemunho à f6 que de fato não existem dois sujeitos no Cristo. Após a morte do imperador Leão, uma revoluqáo palaciana temporariamente substituiu seu sucessor Zeiiáo pelo usurpador Basilisco
(475-476), o qual
pronta-
mente se colocou ao Iado do partido rnoilofisita. Ele náo apenas restaurou Timóteo, o Gato, à sé de Aiexandria, e Pedro, o Ferreiro, à de Antioquia, mas rambém publicou uma carta encíclica na qual anatematizou o Somo de Leáo e as decisóes do concílio de Calcedônia. Esta encíclica foi subscrita por uma maioria de bispos no Oriente e desperto~iextensa aprovacão popular. Ela riáo conquistou, entretanto, a concordância de Acácio, patriarca de Constantinopla (47 1-489), que rapidamente discei-niu que ela favorecia as reiviiidicaçóes de Alexandria e era portanto uma ameaça a autoridade de sua sé. Acácio chegou a chamar o papa Simplício (468-483) em sua ajuda, como também o reverenciado santo do pilar con~tanrino~olitano, Daniel Estilita. Basilisco, derrotado e humilhado, rendeu-se, e em 476 o imperador Zenáo (m. 491) foi restaurado.
PERlIItIU ri1
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
207
Basilisco, encretanco, havia revelado através de sua política, a f o r p do partido monofisita no Oriente. Zenáo, com o encorajamenco do patriarca Acácio decidiu-se por um processo de compromisso e reconciliaçáo religiosa. Em 452,ele publicou seu famoso Henôtikon, o qual assumia a posiçáo, popular entre os seguidores de Cirilo
de Alexandria, que o credo de Nicéia, conforme reiterado em Constantinopla (381) e Efeso (4311, era suficiente para definir a fé. O documento condenava Eutiques, mas quanto ao rema da defini+ calcedoniana permitia, de fato, diferença de opiiiiáo ao despojar o ensino do concílio de sratus oficial. Zenáo assim canonizou a cristologia de Cirilo mas deixou aberta a questáo de se a doutrina das "duas naturezas" do Tomo de Leão e d3 defrniçáo calcedoniana era consistente com ela, esperando por meio dessa política dcangar uma reconciliação entre os dois partidos. No início, essa politica alcançou um sucesso notável no Oriente, tanto a ponto de permanecer como a norma oficiai da ortodoxia imperial att bem no reinado do sucessor de Zenáo, Anastásio (491-518).No final, entretanto, o HenCitikon fracassou em seu objetivo. Primeiramente porque a sé de Roma, vendo sua honra e sua ortodoxia atacada por essa rejeição à Calcedônia, excomungou Acácio e rompeu reIaqóes com o Oriente. Este cisma "acaciano" continuou ate 5 19, quando o imperador Justino (m. 527) restaurou a autoridade da defini~áode fé calcedoniana. Mais importante, entretanto, o debate entre monofisitas e calcedonianos continuou e intensificou-se. O fato t que essa época - as décadas finais do quinto século e as iniciais do sexto - foi de gande fertilidade teológica no Oriente. Ela produziu as obras de um autor desconhecido que escreveu sob o pseudônimo de Dionisio O Areopagita, declaradamente um discípulo e portanto contemporâneo de São Paulo. Fortemente influenciado pelo neoplatonismo escoiástico tardio de escritores como Proclus (ca. 412-485), o líder pagão da academia plarônica de Atenas, este pensador, através de seus influentes tratados Sobue a hieuiírquid celeitial, Sobre n hic~a.rquiaeclesid~tica, ';obre os nomes divznos, e Teologia mtsticil, fortaleceu amplamente a tradição da assim chamada teologia negativa ou apofática no Oriente. Ao mesmo tempo, por meio de :raduçóes latinas bastante posteriores, ele familiarizou o Ocidente não apenas com a netafísica neoplatônica mas cambém com o estilo de misticismo que acompanhava i teologia negativa. De maior importância para as controvérsias cristof~gicasda época, entretanto, - . r z i o monge e presbítero Severo (ca. 465-538) - a quem, na verdade, alguns eruditos, :r?bora sem muira justificativa, têm atribuído as obras do pseudo-Dionísio. Adepto
HISTbRIA OA IGREJA CRISTA
208
dos escriros dos pais capadócios e de Cirilo, Severo forneceu liderança teológica ponderada e erudita à causa monofisita. Embora rejeitasse completamente as noçóes de Eutiques e de Apolinário, Severo náo obstante repudiou Calcedônia como sendo um concílio ncstoriano, que havia não apenas cnsiilado a doutrina das duas naturezas mas também reabiiitado os notbrios mestres antioquerios Tcodoreto de Cirro e Ibas de Edessa, ainbos os quais haviam atacado abercamente o ensino de Cirilo. Em sua defesa cuidadosamenre argumentada da doutrir-ia da natureza única, Severo teve a cooperacáo do feroz pregador, teólogo e agitador sírio, Filoxeno, bispo de Mabbouç
(485-5 19). Com tal liderança, a causa monofisita, lia última década do qrii~lroséculo, ficou mais uma vez próxima da conquista do império oriencd. Kesidente em Consrantinopla
após 508, Severo ganhou o ouvido do imperador h a s t á s i o e tornou-se, de fato, seu conselheiro eclesiástico. No final, Severo e Filoxeno, entre eles, conquistaram o imperador para uma política que explicitamente condenava a dcfiniçáo calcedoniana e o So7nn de Leáo. Em Antioquia, o patriarca pró-calcedoniatio foi substituído pelo próprio Severo ( 5 12) e o patriarca de Constantinopla, Macedonio, foi enviado para o exílio. Conforme se veria, porrrn, esse triunfo foi local e de pouco alcance. Na Palestina, Ásia hllenor, e nas províncias européias o calcedonianismo, legiti~nadopelo Henotikon que a nova política de Anastásio havia derrubado, possuía fortes defensores, que náo hesi~aramem apelar a Roma contra a nova política imperial. Quando, em 518, na ocasiáo da morte de Anastásio, Justino I, um calcedoniano de faia larina, ascendeu ao trono imperial, i-iáo apenas Severo foi deposto da sé de Antioquia como também foi permitido aos represcntaiites do papa Hormisdas (5 14-523) ditar os termos para a restauracão da comunhão com a s& romana. O tesulcado foi que os defensores orientais de Calccdônia conseguiram mais do que queriam. O próprio Henôtikon foi condenado, e com ele os sucessivos patriarcas de Constantinopla que o haviam dcfendido. Esta surpreendente vitória papal, todavia, mostrou-se superficial e temporiria. O Oriente náo havia trocado Cirilo por Idclio.A maioria dos líderes da igrcja estava querendo, sob comando imperial, aceitar a defiriiçáo calcedoniana e sua autoridade, mas apenas se o ensino desta pudesse ser demonstrado cocrente com a verdadeira ortodoxia do Oriente, o ensino de Cirilo de Alexandria. O calcedonianismo deles estava representado e resumido na famosa fórmula "teopasquitn" de Joáo Maxêncio e seus coinpanheiros "monges da Cítia", que apareceu elii Constantinopla
PERIO~O til
O ES'IADO IMPERIAL DA IGREJA
~ O Y
nos dias de Jusrino: "Um da Trindade sofreu na carne." Esta fórmula sem dúvida qualificou a aspereza inflexível da senha dos monofisitas, "Único Santo Imortal que foi crucificado por nós"; mas deixou pouca dúvida quanto à seriedade com a qual os fiéis orientais de modo geral assumiani a doucrina de que o Filho divino é o sujeito último de tudo que pode ser dito sobre o Cristo. O novo imperador havia simplesmente adicionado, à sua rarefa de reconciliar calcedoniarios c monofisitas no Oriente, a tarefa igualmente difícil de reconciliar compreensóes orientais e ocidentais de Calcedônia. Foi no reinado do sucessor e sobrinho dc Justino, Justiniano I (527-56j), que foi feita a tentativa dc executar essa política - reconciliar todos as facçóes ao redor do próprio concílio de Calcedônia, mas Calccd6riia interpretada e compreendida como uma reafirmaçáo, contra o eutiquiailismo, da c r i ~ t o l o ~ de i a Nicéia e de Cirilo de Alexandria. Essa tentativa estava inteiramente consoante com as políticas gerais de Justiniano. Sua ambicáo política era reunir o império por meio da reconquista do Ocidente - uina ambiçáo que, a cusco excessivo ao seu tesouro e à integridade de suas fronteiras orientais, ele rcalizou parcialmenre na restauracáo do norte da &ica e, eventualmente, da Itália ao império. Justiniano de fato buscou uiria confissáo de fi única, unificada, para os cinco gandes patriarcados cristáos - Roma, Constaiitinopla, Acxandria, Ailtioquia e Jerusalém. Ele preteildeu ademais - embora as fiiines simpatias monofisitas de sua esposa Teodora (ca. 508-548) frequentemcnre cegassem o gume de sua decisáo quanto a este assunto - que o concílio de Calcedônia, junramente com aqueles de Nicéia, Constantinopla e Efeso, deveria ser o fundamento dessa confissáo. Em busca dessa meta de um império toralmenee cristáo e totalmente uni-
do, ele baixou, lia abertura de seu reinado, decretos severos banindo o ~aganisrnoe exigindo o batismo de [odos incrbdulos remanescenres. Ele fechou a Academia Platônica dc Arenas (529), um centro de lealdade e aprendizado pagáo. Perseguiu violcntarnente os sarnaritanos e estabeleceu severas limitacóes aos direitos civis e religiosos dos judeus. Tornou proscritos o maniqucísmo, o arianismo e outras heresias. Eiltretanto, no final ele fracassou em suas tenrativas de unificar a igreja, apesar da autoridade absoluta com que conduziu seus negócios e apesar de sua capacidade para coi~ciliaçáoe compromisso, quando as circunst~nciaspareciam exigi-los.
O primeiro esforço de Jusririiano foi direcionado para persuadir os líderes monofisitas exilados de que a aceitação do concílio de Calcedônia náo implicava uma cristologia nestoriana dualista. Nessa tentariva, ele foi sem dúvida encorajado
pela imperatrizTeodora, mas também pelo fato de que o exilado Severo de Antioquia, vivendo em Alexandria, havia estado engajado em violenta controvérsia com o radicaJ rnonofisita Juliano de Halicarnasso, que ensinava a doutrina, aparentemente
apolinariana, de que o corpo de Cristo era incorruptível ("afiarrodocetismo"). A defesa apaixonada de Severo, da humanidade normal de Cristo, deu razáo para pensar que os monofisitas pudessem aceitar uma interpretação de Calcedônia que insistisse, em linguagem ciriliana, ein que a hipóstase única do Logos é o único sujeito ontológico de ambas as naturezas humana e divina - a verdadeira doutrina implicada na fórmula teopasquita: "Um da Trindade sofreu n a carne." Justiniano corresponden temen te conrridou alguns bispos rnonofisitas para uma conferência com urn grupo de caicedoriianos em Constaririnopla; c embora náo houvesse nenhuma indicação de que os monofisitas haviam mudado suas mentes sobre o concílio de
451, o imperador náo obstante prosseguiu para publicar um edito (533) estabelecendo sua própria definiçáo oficial de fé crisrológica, que declarava ser Cristo o Verbo divino que assumiu a natureza humana e ele mesmo suportou sofrimento naquela (embora obviamenre n5o em sua divina) Iiarureza. Esra teologia "neo-calcedoniana encontrou seu mais hábil proponente em Leôncio de lerusaldm
(jl.ca. 534), que
cuidadosamente distinguiu os sentidos de "hipóstase" e "natureza" e ensinou que 2 natureza humana de Cristo não possui hipóstase (i.e., princípio de existência concreta) de si mesma mas existe "na" hipóstase do Filho de Deus, que é portanto o verda-
deiro sujeito do ser de uma natureza humana completa. O ensino de Leôncio, algumas vezes referido como
3
doutrina da "naipostasia", justificava a linguagen:
reopasquita e, com ela, o ímpeto central da cristologia de Cirilo, e mancendo a r mesmo tempo a doutrina das duas narurezas.
O decreto de Justiniano, reiterado em cartas aos patriarcas de Roma
;
Constantinopla, trouxe com ele um breve momento de tolerância e reconciliagál-8. durante o qual o próprio Severo foi recebido na capital imperial e *Teodorafoi cap, de colocar defensores da posiçáo monofisita severiana nas sés de AJexandria
;
Constantinopla. Os temores e a oposiqáo criados por esta situação, entretanto, prc vocaram outra intervençáo de Roma, desta vez pelo papa Agapeto (535-5361, que quando de uma visita a Constantinopla no interesse dos governarires ostrogodos
i.
Itália, depôs o novo patriarca em Constantinopla e ordenou um sucessor calcedoniar..: Justiniano, em uma aparente reviravo1ta;concordou com o banirnento de Severo i. Antioquia e seus seguidores e, ademais, ordenou que os escritos de Severo foss::
ptnioon III
O ESTRDU IMPERIAL DA IGREJI
211
clueimados. Um calcedoniano foi colocado na sé de Alexandria. Embora Justiniano tenha continuado a tentar conquistar os líderes monofisitas para sua orcodoxia dos "Quatro Concílios", nunca mais houve um esforço para alcançar um acordo sobre a questão de Calcedônia. Foi, na verdade, para agradar os calcedonianos estritos que, em 543, após uma controvérsia amarga originada encre os monges da Palestina, Justiniano condenou os ensinos de Orígenes. Seu próximo passo - que em sua própria mente pode ter rido a inrençáo de abrandar os monofisitas - foi condenar, em 544, os "'Ii-ês Capítulos": os escriros deTeodoro de Mopsuéstia e certas obras dirigidas contra Cirilo de Alexandria por Ibas de Edessa e Teodoreto de Cirro. Uma vez que Ibas e Teodoreto, discípulos de Teodoro, haviam sido aceitos como ortodoxos pelo concílio de Calcedbnia, este gesto chegou perto de cluestionar a autoridade do próprio concílio, mas Jiistiniano foi cuidadoso, nesse ataque final contra a crisrologia anrioquena, em condenar apenas escritos específicos, e náo as pessoas, de Ibas e Teodoreto. A ortodoxia neo-calcedoniana dos "Quatro Concílios" iria permanecer.
A condenaçáo Jusciniaila dos "fiês Capítulos poiica coisa fez para rcconciliar os nionofisitas com Calcedônia, mas provou ser o estímulo que despertou a oposiçáo latina e ocidental às suas políticas neo-calcedonianas. O s bispos da África (agora livres d o domínio vândalo), grande número de bispos italianos e gauleses, e os representantes papais em Conscantinopla, recusaram-se a assinar ou concordar com a condenaqáo dos*liêsCapítulos. Justiniano teve sucesso em trazer para Constantinopla
o fraco e indeciso papa Vigílio (537-555). Ali, o papa foi induzido a emitir seu notório Judicatum ( 5 4 8 ) , que consentia com todos os termos essenciais da açáo de Justiniano. O Ocidente, todavia, neste caso não seguiu seu líder. Um sínodo de bispos africanos excomungou o próprio Vigílio, e o autor africano Facundo, bispo de Hermiane (m. após 571), já em Constantinopla, compôs o tratado Em ddesa dos
três capitulas. Ele argumentou que a aqáo de Justiniano era a mesma coisa que repudiar a cristologia calcedoniana. Eventualmente, Vigília, recebendo coragem temporária pela reação ocidental ao seu /udicdtum, 1150 apenas retirou seu assentimento à açáo imperial, mas também, apesar das tentarivas imperiais de arrancá-lo, com uso de violência, das igrejas nas quais ele se havia refugiado, excomungou o patriarca de Constantinopla como também o principal conselheiro teológico de Jus~iniano, Teodoro Askidas, que havia originado a política do imperador. No final, o assunto foi submetido a um concílio, que se reuniu em Constant.inopla em 553. Vigília, por
P E R ~ O ~[li U
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O ESTA00 IMPERIAL Oh IGREJA
2IS
rmperial"), e foi essa igreja rnonofisita, de fala copta que, por ter abraçado a vasra
maioria dos crisráos egípcios, sobreviveu taiito à conquista persa do Egico como à árabe para se tornar a forma característica e prevalecente de cristianismo no Egito até aos dias de hoje. Ademais, foi esse cristianismo rnonofisita que - novamente gracas em parte iirnperarrizTeodora - foi transmitido por missio~iáriosaos reinos da Núbia e delinearam o criscianismo na Etiópia (o reino de Axum), para o qual o próprio Atanásio havia consagrado um primeiro bispo, Frumêncio, por volca dc 348. Os monges sírios e egípcios do partido anti-calcedoniano foram responshveis pela expansáo do cristianismo na Etiópia no sexto século, e a igreja tem perrna~iecidolá, até hoje, formalme~iredependente do patriarca copra de Alexandria. Ao lado das igrejas monof sitas da Síria e Egito, uma terceira surgiu na Armênia, onde o cristianismo havia sido iiitroduzido no início do quarto século por Gregório o Iluminador, um missionário da Capadócia que (ca. 30 1) converteu o rei'liridates, c com ele sua n a ~ á o ao , criscianismo. Represeritada no concílio de Nicéia, a igreja armênia, liderada por seu próprio bispo supremo, o "cacólico", pertenceri à tradiçáo do cristianismo grego, recepcionando bem os mesrres e líderes provenientes da CapadGcia, atC a nacão cair sob domínio persa depois de 363. A ~ o n s e q u e ~ iintrote duçso da influência cristá siria expôs a igreja armênia às idéias antioquenas e nestorianas. Q~laridoestas foram desafiadas como resulrado da condenacão de Nestbrio em Efeso, os líderes da igreja armênia procuraram resolver o debate decorrente apelando ao arbítrio de Proclus, o patriarca de Constantinopla (434-446). Ele por sua vez enviou à igreja armênia seu Yòmo, uma carta que exibia em termos claros a posi-
çáo cristológica dc Cirilo de Alexandria. Como consequ2ncia, os cristiios armêriios, que não participaram do concílio de CaIcedíinia, eventualmente adotaram a ortodoxia imperial do Henorikon de Ze~iáoe rejeitaram o concílio de CaIcedonia como nestoriano. Assiiii, as controvérsias sobre os concilios de Éfeso e Calcedônia haviam, no final, dividido as igrejas por todo o mundo mediterrâneo. Elas não apenas exacerbaram as tensóes entre Ocidente e Oriente, Roma e Constantinopla. Elas rambém produziram uina igreja nestoriana independente na Pérsia e igrejas nacionais de confissáo monofisita na Etiópia, Egito, Síria e Armênia. Seus efeitos na vida do movimento crisráo têm continuado até o presente.
HlSTfiRIA DA IGREJA CRISTA
214
Capítulo 11
Controvérsia e Catástrofe no Oriente A restauragáo do poder romano por Justiniano não iria durar mais do que sua vida. Após 568, o poder bizantino na Itália começou a ruir diante da invasáo dos lombardos, os quais cventualmentc ocuparam o norte e muito da parte central da península, isolando por um tempo Ravena, a sede do exarca imperial, de Roma e dos territórios imperiais
remanescentes
no sul. O norte e o oeste de Constantinopla, a
península balcânica e a Grécia foram submetidas a frequen~esincursóes e invasões por parte dos ávaros e eslavos, que se estabeleceram em grandes trechos do território bizantino. A inabilidade das tropas imperiais em resistir a essa migra~áofoi devida, pelo menos em parte, ao faro de que do tempo de Justino I1 (565-578) os romanos estiveram engajados em guerra constante contra o império persa em sua fronteira oriental. No segundo ano do reinado do imperador Heráclio (61O-64I), que herdou um império fragilizado e desmoralizado pelos excessos de seu predecessor, os persas invadiram a Síria, capturando Antioquia e eventualmente Damasco. Em 61 8 eles já haviam conquistado a Palestina e o Egito, onde, como na Síria, a populaçáo moiiofisita, embora náo tenha recepcionado bem os invasores e tenha rapidamente aprendido a temê-los e odiá-los, deu pouco apoio às forças imperiais. Enquanto este desastre escava em progresso, incursões eslavas penetraram até as muralhas dc Constantinopla e as últimas forças romanas foram expulsas da Espanha pelos visigodos. Heráclio respondeu a esta situaçáo aparenremente sem esperanGa recrutalido e treinando um novo exército, que ele financiou em parte apropriando-se de valiosos tesouros de ouro e prata das igrejas; e em três brilhantes campanhas que conduziu nos anos de
622 a 628, ele deslocou a guerra para o terrirório persa. A paz resultante (630) reintegrou a Siria, Palestina e Egito ao império. Nesse momento de seu maior triunfo e prestígio, Heráclio procurou sarar a divisáo religiosa, que fendia c enfraquecia seu império. O meio para fazer isso, ademais. parecia estar à disposiçáo. Táo cedo como 622, Sérgio, patriarca de Constantinopla (610-638), havia sugerido que um caminho para o acordo poderia ser encontrado cedendo à poçiçáo monofisita quanto à controvertida questão da energeid ("opera-
QüiIOII1lU
O ESThOD IMPERIAL
DA IEREJA
215
ção", "atividade") de Cristo. Apolinário de Laodicéia havia falado de "uma energeiit" em Cristo para corresponder com sua natrireza única, e Severo de Antioquia havia neste assunto seguido Apolinário contra a tradicáo representada pelo Tomo de Leáo, que afirmava possuir cada nacureza sua própria operaçáo. A idéia de Sergio, com a .ua
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qual ele persuadiu Herádio, era qiie a fcírmula "uma ~ n ~ r g ~poderia ia" ser reconciliada com a doutrina calcedoniana das duas naturezas se fosse enrendido que erzergeiu pertence propriarnenre, náo a natureza de urna coisa, mas a seu sujeiro ontológico ou hipósrase. Uma vez que Cristo (de acordo com Caicedônia) é uma hjpósrase, ele reria necessariamente, nessa perspectiva, uma única "energia" ou operação. Quando da conclusáo bem sucedida das campanhas persas, Heráclio tentou conquistar os líderes rnonofisiras para essa fórmula, e sua tentativa desfrutou de sucesso inicial. No final, enrrerailro, ela falhou. Em primeiro lugar, ela suscitou a oposição de monges calcedonianos da Palestina, cujo líder jri anciáo, Sofriinio, fora eleito pacriar-
634. Esta oposiçáo forçou Hcráclio e Sérgio a buscarem o apoio de Roma. O papa Honório (625-638), porém, julgou que a introducão de novos ca de Jerusalém em
ensinos dogmáticos era atribuiçáo exclusiva de concílios ecumênicos, e ressaltou que o rermo ezaergeia não era escrirurísrico, e indicou que "duas naturezas" implica "duas operações." Em uma infeliz observaçáo tardia, entreranro, ele disse que estava preparada paIa falar de "uma vontade" em Cristo. Essa oposiqáo diplomárica e no todo amigável de Roma foi acompanhada, contudo, por eventos que pareceram tornar todo o empreendimento de Heráclio sem sentido. Proveiliente da península arábica, nos anos seguintes a morte de Maomé em
632, eclodiu a tempestade das invasóes islâmicas. Damasco caiu aos árabes em 635, Antioquia e Jerusalém em 638. Náo obstante, em 638 Heráciio publicou seu Ektheszi, que seguia o papa Honúrio na proibição de falar de "uma energia" ou "duas energias", mas ia adiante para tornar dogma sua sugestáo de que em Cristo há apenas uma vontade ("monotelismo"). Uma vez que a Síria j6 escava perdida para o impCrio, o único efeico que esse decreto teve foi estimular a oposiqáo entre calcedonianos e
ivi-
monofisitas no Egiro e assim enrregar aquela província mais pronramente para sua
ais,
conquista árabe em 641. Na época da morte de Heráclio em 642, as porçóes do
pl a do
pexmanentemente - em miios estrangeiras. O problema rnonofisi~aj3 náo era mais
ra-
seu para resolver. O Ekthesis de HerdcIio permaneceu, enrrecanto, como o padráo de
impkrio que ele havia recuperado dos persas haviam caído novamente - e desta vez
ortodoxia imperial, e a assim chamada controvérsia monotelira continuou. Máximo
216
HISTOAIA DA IGREJA E R I S T i
o Confessor (ca. 580-662), uma das mentes formativas por trás da reologia e espirirualidade Ortodoxa Oriental, entrou no debarc em defesa da doutrina capadócia, que vontade e "energian pertencem à natureza e não à hipóstase. A implica<;áodessa perspectiva era que se Cristo tem, de acordo com o ensino de Calcedônia, duas naturezas, entáo nele há duas vontades correspondendo às maneiras divina e humana de existir. Isso conduziu Máximo i aliança com o papa Marcinho I (649-655), que em 649 reuniu um sínodo em Roma que proclamou a existência de duas vontades, humana e divina, em Cristo e prosseguiu para condenar náo apenas o Ekthesis de Heráclio mas também o Qpos, no qual o Imperador da Epoca, Constante I1 (642-
668), havia proibido a discussão da questáo da vontade ou vontades de Cristo. Esse desafio ao imperador levou o papa Marrinho à prisáo em Constantinopla e, mais tarde, ao exílio na Criméia, onde elc morreu.
O sucessor de Coristante, entretanto, Constantiiio IV (668-685),esrava querendo entrar em acordo com a sé de Rolna, a qual nesse assunto havia permanecido inflexível. Entrando em negociaçóes com o papaÁçato (678-68 l ) , Constantino convocou aquele que seria conhecido como o sexto concílio ecumênico, q u e se reuniu em C o n ~ t a n t i n o ~em l a 680 e 681. Esta assembléia declarou que Cristo tetil "duas vontades ou propensões naturais . . . niio contrárias uma a outra . . . mas sua vontade humana segue, não coino se resistisse ou relutasse, mas antes, como sujeita a sua vontade divina e onipotente."' Ela também condeilou o patriarca Skrgio; Ciro, nomeado patriarca de Aiexandria por Heráclio; e o papa Honório. Com esta decisáo, o curso das grandes con~rovérsiascristológicas chegava ao fim. A tendência da o r ~ o d o xja neo-calcedoniana de Justiniano em deslizar na direção do monofisitismo - a exara
tendência que o inonenergismo e monotelismo de Heráclio haviam representado fora detida. Foi afirmado que a natureza humana de Cristo é um princípio de vontade r açáo humanas - vontade e açáo que, porque são de Fato iiatlirais e não pecaminosas, cstáo harmonizadas com a vontade divina, que as informa e guia. Como o de Calccdônia, o sexto concílio ecuinênico foi um triunfo para o Ocidente. Ele foi seguido, [odavia, por um outro sínodo que marcou a crescente alienação entre Roma e Constantinopla. Uma vez que nem o concílio dos "Três Capítulos" nem o concílio de 68 1 haviam formulado quaisquer cânones disciplinares, Justiniario
II (685-695, 704-71 1) convocou uma assembléia para se reunir em Constantinopla
~rnionoiii
O ESTADO IMPERIAL OA IEREJA
21';
em 692, para compietas seus rrabalhos. Denominado concílio Trulaxio (de t r z ~ l l ~ ~ x o u dependêíicia com abóbada na qual ele se reuniu) ou Quinisexrn (porque completou os trabalhos do quinto e do sexto concílios ecumênicos), esta asseinbléia foi completamence oriental em sua composiqáo. Coilquanco tenha renovado muitos cáilones antigos, algumas de suas decisões transgrediram diretamente a prática ocidental. Em concordâr-icia com Calcedôi~ia,ela decretou que "a s i de Constantinopla deve desfrutar de igual privilégio com a sé da Roma arlrip." Ela permitiu o casamcntn para diáconos e presbítrros e corideiiou a proibicio rurriana dc tais casarriericos. Proibiu o cosrurne romano de jejuar 110s sibados na quaresma. I'roibiu a represenracáo ociden131
Favorita de Crisro sob o símbolo dc um cordeiro, ordenando em seu lugar o
retrato dc uma figura humana para enfatizar a realidade da encarnaqáo.
As acóes
desse concílio nunca foram reconhecidas no Ocidente, e elai são símbolos da crcscente desavenqa em sentimento e prAtica entre Orienre e Ocidente - uma desa~rença quc a políricu dos imperadurrs icorroclasras do oitavo século iria, como vererncis,
agravar.
Capftiilo 12
O Desenvolvimento Constitucional da Igreja Como no segundo e terceiro séculos, a unidadc básica normal da igreja continuou, ap6s o reconhecimento da igreja por Constancino, a ser a assembléia de criscáos em umapolis específica - isto é, uma "cidade" particular com seu interior rural.
Ta1 igreja local, cuja extensáo geográfica variava amplamente de um setor do império para outro, continuava a ser comandada por iim único pastor chefe, o bispo. Sob n
bispo estavam os outros ofkiais da congregacSo, que eram chamados "dero." Estes vieram a ser divididos em duas categorias. Bispos, presbíreros e diáconos - conhecidos no direiso civil e eclesi6stico como clero "superior" - eram disrititos das categorias "iilferiores" pelo fato de que eles eram invariavelrnen~eordenados por bispos. 0 número de graus de clero "inferior" - oficiais como subdiiconos, acóiitos, leitores e exorcistas - variava dc localidade para localidade. Náo houve, então, nenhuma mu-
218
HIAÓRIA OA IGREJA GRISTÃ
dança fundamental na ordem estrutural da igreja local do terceiro para o quarto c quinto séculos. Não obstante, o reconhecimento da igreja por Constantino provocou alteraçóei; significativas na funçáo e status do clero local. Em prrmeiro lugar, eles ficaram progressivamente isentos de certos impostos e responsabilidades civis, de forma que sua atençáo completa pudesse ser prestada aos deveres de seus ofícios, especialmente ao trabalho do culto público. Ao mesmo tempo, o papel do bispo foi significativamente expandido. Durante a maior parte do quarco século, foi concedido aos bispos o privilégio de se assentarem como juízes em causas civis nas quais ambas as partes da causa consentiam em aceitar sua decisáo - uma extensáo de sua fünçáo existente há muito tempo de juízes, dentro dos limites da coinunidade cristã. Ademais, quando a igreja local passou a ser reconhecida como uma corporaçáo que poderia possuir propriedade, e quando seu trabalho passou a ser crescentemente sustentado por doaçóes de terras como também pelas ofertas pessoais regulares dos fiéis, o bispo e seus diáconos frequentemente se tornaram os administradores de extensas propriedades, cuja renda era utilizada para sustentar o clero, para suprir a construçáo e manutençáo de edifícios e mobílias eclesiásticos, e para sustentar a obra de caridade da igreja para com os pobres e destituídos. Por todas estas razoes, o prestígio do ofício clerical foi aumentado. Mais e mais, o bispo local passava a ser náo meramente o pastor de seu rebanho mas também um líder principal e benfeitor de sua comunidade. As isenções, privilégio e prestígio do oficio episcopal (e do ofício clerical em geral) é melhor atestado pela legislação imperial que, desde cedo no quarto século, procurou impedir que pessoas de propriedade - que poderiam de outra forma servir como oficiais seculares locais e serem responsáveis pelo pagamento de taxas - de escapar, por meio da ordenaqáo, de suas responsabilidades progressivamente difíceis e onerosas.
O fato de que o número de cristáos continuou a crescer durante o quarto, quinto e sexto séculos provocou mudanças na organizaçáo das igrejas e no desenvolvimento do clero. Não apenas foram criadas novas igrejas locais e equipadas com bispos, mas as igrejas existentes descobriram que precisavam de locais adicionais para reuniáo e culto, tanto em seus centros urbanos como nas áreas rurais circunvizinhas.
Frequentemente os edifícios exigidos para esses propósitos eram construídos e mantidos com os fundos comuns da igreja sob a supervisáo direta do bispo. Neste caso. eles eram servidos por presbíteros e diáconos delegados do corpo central do clero que havia sempre assistido ao bispo, e eles eram considerados como locais onde, em
P E R l O M 111
LI ESTA00 IMPERIAL DA IEREJA
219
princípio, o próprio bispo era o pastor imediato. Em outros casos, um edifício para culto poderia ser erigido c mantido por riqueza "privada" e equipado com clero que vivia daquela doaçáo e que, conquanro responsável diante do bispo, náo pertencia ao seu estatuto imediato. E em cencros como esses que buscamos os inícios do assim chamado sistema "paroquial." Em alguns casos, áreas rurais eram submetidas isupervisão imediata dc um "bispo rural" (châuepiscopos), o qual agia de fato como delegado e subordinado do bispo dentro de cuja cidade seu cerrirório se localizava. Para a maioria dos casos, entretanto, eram presbíteros - percebidos como partiihadores dc todos os poderes sacerdotais de um bispo exceto o da ordenaçáo - que agiam no lugar do bispo conforme o número de centros para reunião crescia. Desse modo, gradualmente cresceu a percepqáo, comuin nos tempos medievais e posteriores
-
de que o
pastor normal de uma congregação é um presbítero. Esse mesmo período assistiu ao surgimento graduaI de costumes e leis governando o celibato e o casamento clerical. A alta consideração na qual a continência era tida desde pelo menos o início do terceiro século - para náo mencionar a disseminaylio dos ideais monásticos durante o quarto s t c d o - lelrou à idéia d e quc o clero deveria ser encorajado a praticar o celibato. Se os clérigos se casassem, corno muitos faziam, esperava-se deles que em qualquer caso fossem "O marido de uma esposa",' o que significava que o recasamento estava descartado no caso de falecimento da esposa. Após a metade do quarto século, entrecanto, tanro a admoestação papal como decreto sinodal no Ocidence exigiram continência (mesmo para pessoas casadas) apds a ordenação como presbítero, diácono ou bispo. Embora a regra náo fosse de forma alguma observada universalmente, ela permanecia o ideal. No Oriente, toda-
via, desenvolveu-se um padrão diferente. Lá, uma regra em relacão ao celibato clerical demorou mais para se desenvolver e foi mais generosa quando formulada. Foi apcnas no concílio Quinessexto ou Trullano de 692 que a legislação definitiva sobre o tema foi disposta. Os câi~onesdeste concílio exigiram que todos os bispos fossem celibatários, mas permitiram que pessoas já casadas fossem ordenadas diáconos ou presbíteros (embora tais pessoas não pudessem casar apbs a ordenagáo). E devido a essa legislaPo que nas igrejas orientais os bispos têm sido pela maioria das vezes escolhidos das categorias dos monges. Um dos mais importantes desenvolvimentos desse período, entretanto, teve a ver
220
HISIORII OA IGREJI CRISTA
com as estrururas da igreja acima do nível local. O primeiro concílio de Nicéia, como já vimos (II1:2), pressupôs que os bispos de cada província civil (denominada "eparquia" no Oriente) reunir-se-iam conjuntamente em sínodos para a regulamentaçáo de questóes de interesse comum, e ordenou que tais sínodos devessem reunirse duas vezes por ano. Nicéia também conferiu ao bispo de cada capital provincial (o bispo "metropolitano") stacus e poderes especiais como o convocador e presidente dos sínodos provinciais. Este sistema provincial de administraçáo eclesiástica foi rapidamente estabelecido em todo o Oriente com exceçáo do Egito, onde todos os bispos parecem ter respondido mais ou menos diretamente ao papa de Alexandria.
No Ocidente, tal sistema desenvolveri-se mais vagarosamente. As regiões central e meridional da Itália sob a jurisdiçáo direta da igreja romana, náo tinham sínodos esrritamente "provinciais", embora seus bispos se reunissem regularmente sob a presidência do bispo de Roma. Na Itália setentrional, as igrejas de Miláo e Aquiléia também presidiram sobre áreas consideravelmente maiores do que uma única província - parcialmente, talvez, porque o número de cidades (e consequenremente de bispados) era muito menor do que no sul. Apenas na Gália um sistema estritamente provincial foi gradualmente estabelecido. Acima do nível provincial ou regional, duas instituiçóes vieram a ter significado especial: as sés patriarcais e os concilias ecumênicos ou imperiais. Quando da época do concílio de Calcedônia, o número de sés patriarcais havia sido fixado em cinco (Roma, Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém). Fora Jerusalém, cujo stntus como patriarcado foi tardio (45 1) e essencialmente honorário, estas eram igrejas que não apenas podiam reivindicar tradicionalmente fundaçáo aposrólica (com exceçáo de Constantinopla) mas tamhém igrejas localizadas em centros culturais, políticos e econômicos. De igual importância era o h t o que cada uma delas, de fato, presidiam sobre uma irca que represenKlva um significativo grau de coesáo linguística e cultural. Roma era o patriarcado do Ocidente larino, cuja única rival concebível, Cartago, fora climinada pelas sucessivas invasóes vândalas e árabes do norte da África. Antioquia e Alexatidria pertenciam aos setores do império romano, cuja vida eclesiásrica centralizavam, onde as línguas indígenas eram o siríaco e o copta. C o n ~ t a n t i n o ~ lconquanto a, suas reivindicacóes fossem duvidosas pelo padráo da teoria petrina da igreja dc Roma (ver II1:4), estabeleceu-se no quinto e sexto séculos como o ptriarcado do mundo de fala grega da Asia Menor e da própria GrCcia.
O sistema dos cinco patriarcados, entretanto, náo forneceu nenhuma autoridade
rcilooo i11
O ESTADO IMPERIAL DA ICREJA
22 1
;.ia,
única central para o conjunto de igrejas como um todo - especialmente uma vez que,
-da
após 381, as principais sés estiveram continuamente engajadas em disputas abertas
:cn-
ou dissimuladas sobre seu relativo prestígio e autoridade. Apesar da "primazia de
~ir-
honra" coricedida ao papa de Roma, e apesar das reivindicaçóes da sé romana a uma
.
(o
autoridade universal, a única auroridade central para as igrejas no periodo do irnpé-
frite
rio romano era o concílio ecumênico, e essa instituição dependia na prá~icada auto-
:
ra-
ridade secular do ofício imperial. Desde os dias de Constantino, tais reuniões eram
i
os
náo apenas realizadas com recursos e instalaçóes imperiais mas lia verdade convocadas
L
,
::ia.
pelos imperadores; e eram eles - assumidos universalmente como tendo uma respon-
-11 e
sabilidade
dos
mento (tanto quanto possível) das decisóes dos concíiios gerais. Era entendido, por
2re-
certo, que a doutrina e disciplina in~ernadas igrejas eram responsabilidade dos bis-
iliia
pos, e que esta era uma responsabilidade sobre a qual um imperador não poderia
310-
avançar. Este foi um princípio sobre o qual todos, incluindo os imperadores, nor-
pelo bem-estar religioso de seus povos - que obrigavam ao cumpri-
malmente insistiram, ainda que tenha sido por vezes violado na prática. Não obstantc, embora as políricas religiosas dos imperadores no final dependessem do consenso eclesiástico, eles náo escavam longe de tomar firmes iniciativas para estabelecer ral consenso, como Puiquéria e Marciano fizeram em Calcedônia, e como Zenáo fez com seu Henotikon. Na prática, entáo, ,a autoridade imperial era canto central como essencial na vida comum das igrejas; e no Orienre, onde o governo romano persistiu na forma do império bizantino, ela continuou a ser assim. No Ocidente, por ourro lado, a autoridade imperial foi gradualmente eclipsada após o reino de Justiniano, e a unidade c autoconsciência do cristianismo latino passou a depender da lideranqa e do papel simbólico do papado rornano.
>i\.el,
Ifr ii
ida
pra. 3
Capítulo 13
Culto e Piedade
da
:ulos
O quarto e quinro séculos assistiram a um florescimento significativo do culto cristáo e, com ele, da arte cristã. Liberadas para figurarem como instituiçóes públicas e para possuírem e disporem de propriedade, as igrejas expandiram e elaboraram seu
222
HISI6RIh OI IGREJA CRISTA
uso do tempo, espaço e cerimônias. Isto fica claro primeiramente no deseilvolvimento e arriculaçáo do calendário de culto. O ritmo temporal da vida criscá continuou a girar ao redor da semana, com sua celebraçáo regular do domingo, e ao redor do ciclo anual, cujo foco era a celebra~ á da o páscoa cristá durante o período de cinqüenta dias da páscoa ao pentecostes. Foi esta última celebraçáo que recebeu a primeira elaboracáo, como aprendemos dos relaros dados pela peregrina Egéria, da ceiebracão da páscoa em Jerusalém perto do final do quarto século. De seu testemunho, parece que a marcaçáo da semana santa como uma comemoraqáo de eventos levando à ressurreiçáo de Jesus, fora escabclecida ali jA há algum tempo. O domingo de Ramos, a quinta-feira santa e a sexta-feira da paixáo, como o dia da cruz, eram todos observados com cerimônias especiais, e de Jerusalém tais observâncias se espalharam gradualmente, durante e depois do quinto século, para igrejas em outros serores do mundo romano. Também foi durante o quarto século que, seguindo a cronologia de Atos 1 :3, surgiu o costume de marcar um fesrival especial no décimo quarto dia após a piscoa, para celebrar a ascensáo de Cristo. Muito anterior foi o crescimento da estacão da quaresma, que ií. mencionada no cânone 5 do concílio de Nicéia. Quaisquer que sejam suas origens últimas (no
que se refere às tais ainda há dispura entre os eruditos), a quaresma em sua forma desenvolvida servia a dois propósitos. Era um período de jejum em preparaçáo para a páscoa (eventualinente fixada em quarenta dias para comemorar o jejum de Jesus no deserto), e assinalava o tempo durante o qual os catecúmenos eram instruídos e aprontados para o batismo. Essas elaboraçóes do ciclo anual determinadas pela páscoa e pentecostes caminharam de rnáos dadas com o surgirnento dc um novo ciclo anual de cclebraçáo associado com a encarriaçáo e centralizado nas festas de Nacal (25 de dezembro) e Epifania (6 de janeiro). Estas datas também estavam associadas com celebracóes pagás do solstício de inverno. Em Roma, 25 dc dezembro tinha sido marcado, desde os tempos do imperador Aureliano, como o nascimento do Sol Invicto; e no Oriente, 6 de janeiro há muito havia estado associado com o nascimento do deus Dionísio. Influenciadas por estas circunst$ncias, e diante da necessidade de empresrar significado cristáo às festas populares estabelecidas, as igrejas adaptaram esses dias para a celebraçáo do nascimento e manifestacáo na história do Logos divino, o Sol da Justiça. A primeira das duas festas a se rornar estabelecida foi a da Epifania, que se originou em Alexandria e desde uma data antiga comeinorava não apenas o nasci-
~ t n l n III ~o
O ESTA00 IMPERIAL DA I6REJA
223
mento de Jesus mas também seu batismo e o milagre em Caná, no qual, como nos é contado pelo quarto evangelho, ele "manifestou sua glória."' A celebraçáo de Natal, por outro lado, originou-se em Roma no início do quarto século. Pela merade do quinto século, ambas as festas eram conhecidas e mantidas em quase todos os setores
da igreja. Foi no Ocidente que a Epifania adquiriu sua associa~ãocom a visita e adoraçáo dos reis magos. Esses desenvolvimentos no ano cristão se desenrolaram mais ou menos no mesmo período durante o qual os ritos iniciatórios das igrejas sofreram sua mais profunda elaboraçáo. Estes ritos incluíam náo apenas o ato do batismo em si e as numerosas cerimônias conectadas com ele (que diferiam um pouco em caráter e ordem, de lugar para lugar), mas também as açóes associadas pelas quais as pessoas eram primeiramente admitidas ao cacecumenato e entáo arroladas como candidatas de verdade para o batismo. O desenvolvimento desses estágios distintos no processo iniciatório deveu-se em g a n d e parte ao fato que no quarto sécuio - em concrasre, parece, com o
sem próximos da morte. Tais pessoas eram vistas como pertencendo ao movimento :ristão, quase como uma classe de "companheiros de viagem"; mas nas reunióes do~ i n i c a i da s igreja, elas eram despedidas após a liturgia da Palavra, não estando ainda 5iiaIificadas pelo batismo para a parcicipaçáo no mistério da eucaristia. Com esse prolongamento do processo iniciatório, desenvolveu-se, no quarto e cuinto séculos, uma observância estrita da discijlina arcani ("disciplina de segredo"), t s acordo com a qual não simplesmente náo-cristãos mas também catecúmenos eram
- ~ a n t i d oem s ignorância dos símbolos centrais da vida e fé cristá: as cerimônias do L~rismoe da eucaristia e seus significados, como também o credo e o Pai Nosso. Esta :rãrica em parte reflete a assimilaçáo dos ritos cristáos centrais e sua interpretaçáo :os reverentes mistirios secretos dos cultos pagáos. Os catecúmenos eram :~nscientizadosde que viviam na sombra de uma realidade santa, à qual eles poderi-
z.7 se achegar apenas com reverência e compromisso total.
HIST6RIA DA IGREJA ERISTR
22 e
Qilarido os carecúmenos determinavam que queriam ser batizados, eles se apresentavam para o distamenro como candidatos, normalmente no início da esta~áoda cluaresma (em alguns lugares no quarto século os batismos eram realizados tanto na Epifania como na Páscoa). Se aceitos corno candidatos, eles sofriam uin cxorcisrno preliminar e passavam os quarenta dias antes da páscoa sendo instruídos no significado da fé. Durante este período, eles rccebiam o credo de suas igrejas para memorizar e ouviam a explicaçáo de seu significado. Na vigília conduzida durarite as horas de trevas antes da páscoa, os candidatos iam para o batismo em si. Eles renunciavam a Satanás e suas obras. Eles eram despidos de suas roupas e Icvados nus para as águas do renascinicnro. Lá eles eram lavados quando (no Ocidente) confessavam sua fé no Deus trino, ou o bispo (como em Antioquia) pronunciava sobre cada um deles a fórmula
"N[nome da
pessoa] é batizado no nome do Pai e do Filho e do Espírito
Santo." Freqiieriremenre, mas não invariavelment.c, havia uma unyáo pré- ou pós-
barismaI feita peio bispo, qiíc estava espccialmenre associada com o dom do Espírito Santo. Quando essas ceriniônins terminavam, o candidato era vestido novamente. ciesta vez de branco, e levado para a corigrega)áo para participar ria eucaristia da
plenitude da vida cristá. A assenibléia normal da igreja em cada lugar cc~nrinuava,durante esse período, a
~ i s c o aO . candidaro havia agora ciltrado na
ser a reunião dos fiéis na manhá do domingo para
O L I V ~ Ta
leitura e exposiçáo d a .
Escriruras e para celebrar a eucaristia. A prárica geral na liturgia da Palavra, embor; houvessem variacóes, originalmente era a leitura de três liçóes (ou siries de lic6esi: u m a d o Antigo Testamei-ito, uma das Epístolas e uina dos Evangelhos.
Frequentemente, parcce, estas leiruras eram contínuas de domingo para domingo: i.e., uma única profecia, carta ou evangelho era lido através de sucessivas reuniós'
dominicais, sem dúvida de acordo com a escolha do bispo local. Gradualrnentc* entretatiro, leituras especiais eram atribuídas a domingos particulares, começandr com aqueles na estacão da páscoa, e por volta do sktimo sbculo poderiam ser corr:posros leçcionários compleros para os domingos e as grandes festas do ano cristáç Entre as leiruras, ou entre duas delas, era cantado responsivamente um salmo,
:
tambéni eram cantados salmos no ri~ualde entrada que precedia a liturgia da P a l ~ vra, na apresentaqáo do pão e do vinho, e na ccirnunháo. Um sermão, cujo objeriv; era explicar as Iiçóes que acabavam de ser lidas, seguia-se ao evangelho. Era dever c. bispo pregar, mas desde cedo no Oriente, e mais tarde no Ocidente, os prcsbíterc
tartibérn tiriharn essa respoiisahilidade. Náo foi senáo a parrir do quinto c sexro s é c ~
PER~UIIII
111
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
10s - a era das grandes coi-itro\+rsias cristológicas
-
225
q u e o credo niceno-
~ o n s t a n t i n o ~ o l i r a ncujo o , lugar original era na liturgiã d o batismo, passou a ser, em alguns lugares, recitado também na lit~irgiacricarística.
A celebraçáo eucarística proprinniente, que invariavelmenre sesuia-se à lirurgia da Palavra, era simples o suficiente em seu esboço b4sico. Ela começava com uIxia apresenta~ãodas ofcrtas das pessoas e a prcparaqáo da mesa-altar pelos diáconos, os quais dispunham o pão e o vinho, que era a parte central das cifcrtas. Enrán seguia-sc a oraçáo eucarístic:i eni si, que difcria de rcgiáo para regiáo mas ordinariamente continha certos i-leillentos invariáveis. Eia con1e)ava com u m diálogo entre o bispo e a congregaçáo, introduzindo o "yrcFácio" e - priniciro no Oricnte porci~imais tarde t ~ i n b é n110 ~ Ocidcnte - o hirio qiierubínico de Isaías 6:3. A oraçáo prosseguia para incluir náo apenas louvor a Deus recitação das
cria$áo c redeiicao
cIn
Cristo, rrias taiiibém
de instiruiqáo de Cristo, uina dcclai-a@o de que eate ato por
inteiro era realizado "em tncmória" do Cristo ein sua morre e ressiirreiçáo, uma oraqáo de oferta, e uma doxologia conclusiva, à qual o povo respondia 'XmGrn." Pios ritos orientais que se delinearain ao rcdor das sts de Aiitioquia c Alexandria, foi dado lugar de proeminência à iiivocaqáo d o Espírito Santo (a epihlesij). Esta oracáci ilivocava o Espírito sobre as ofertas de páo c vinho coin a finalidade de que eles pudessenl rornar-se o corpo e o sangue de Cristo. Ela também s o l i c i ~ ~ vaoa Espíriro que descessobre o próprio povo, de forma que recebencio o sacramento eles pudesscm tarn-
'i.
r'ém receber seus benefícios. Existerri vestígios de tal oracáo em algumas liturgias 83íidentais,mas ela permanece basicamente uma característica dos ritos orienrais, e essa diferença eventualmente provocou a coritrovérsia sohrs a cluestão d o "rnoiricnrci"
litúi-gico quando o Senhor ressurrecto se torna presente sacrame~italmeritepara
i
povo. A piedade ocideiital tendeu, em contraste corli aquela d o Oriente, a encon-
a
:;r
esse mornento na reciraçáo das palavras de instiruiqáo. Isso obviamente náo foi a
inica diferença de forma ou ênfase nas liturgias eucarísticas d o período patrístico r~rdioA . Iingiiagern, ordem, c proe~ninênciaigual dos elen~entosaos quais temos :haniado "invariáveis" difcriain de lugar para lugar. Esta é a época, de fato, quando r ~ d r u e sIitúrgicos regioriais estavam sendo estabelecidos ao redor das sés de Roma, .<:c.iandria e Antioquia (cuja tradicáo passou a ser a da igreja de Constantinopla, e
r; r:anto do cristianismo oriental ortodoxo). SLFo pode restar dúvida que, fora o ba~isrnoein si, a eucaristia continuou a ser o :f:rro
da piedade e devoqáo cristã. Celebrada náo apenas aos domingos mas tam-
226
HISTÓRIA DA fGREJA CRISIÃ
bém em todas grandes ocasiões do calendário eclesiástico, ela assinalava, para os cristáos dos séculos quatro e posteriores, o momento quando eles entravam mais
intimamente no mistério da redençáo em Cristo. Trazendo suas ofertas de louvor e oraçáo, de dinheiro, e de páo e vinho, eles recebiam ao próprio Cristo, sacramend mas verdadeiramente presente nos elementos consagrados. Desta maneira, eles eram reunidos para a nova vida da Vítima divina e Sumo Sacerdote, cuja auto-oferta tornava-se uma realidade presente em suas ações de graças e lembrança. O sacramenro era porranto visto como um modo derivado e secundário, mas inreiramente real, da "encarnaçáo" do Verbo de Deus. Embora fosse central, entretanto, a eucaristia, associada primariamente com as festas e domingos, não foi de forma alguma o único veículo do culto litúrgico da igreja a Deus. Desde um tempo bem cedo, há evidência de que os cristâos em muiros lugares observavam certas "horas" para oraçáo particular. Tertuliano menciona ama-
nhecer e anoitecer bem como as tradicionais terceira, sexta e nona horas. A Ilkdiç~?
Apostólicu de Hipóiito, ademais, fala de um culto público matutino de ensino e oraçáo ao qual todos eram encorajados a ir, diariamente. No decorrer do quarto século. desenvolveram-se os "ofícios" litúrgicos formais - cultos de louvor e adoração a serem oferecidos em horas específicas do dia. Uma influência importante nesse desenvolvimento Foi o padráo monástico de oraçáo e devoçáo, que encorajava a recitaçáo comum de todo o saltério em uma sequência de ofícios, obedecendo a um intervalo específico de dias ou semanas. O padráo básico de ofícios que emergiu também deveu algo à prática da igreja do bispo, onde os cultos públicos eram observados no padráo tradicional no início e encerramento do dia. A interaçáo destas duas tradiçóes, monástica e "secular", gradualmente produziu o sistema de sete ofícios por dia,' suplementados por um ofício n o t ~ r n o que , ~ veio a prevalecer, em formas levemente diferentes, t-anto no Oriente como no Ocidente. Em sua totalidade, entretanto, esse sistema era regularmente praticado apenas nas coinunidades monásticas. O culto diário disponível para a participacão de cristãos em geral continuou a ser nas horas matutinas (laudes) e vespert-inas (vespevas).
O culto aos mártires era, porém, de maior significância na piedade popular dos séculos quatro e seguintes. As raízes desse culto encontram-se nos séculos segundo e
Salrno 1 1 9 6 4 .
' Salino 11'1:62.
PEBI~BU 111
0 ESIADO IMPERIAL DA IGREJA
22'7
terceiro, quando uma reverência singular era concedida àqueles que davam testemunho de Crisro, sendo presos por sua fé (confessores) ou morrendo por ela (mártires).
Os primeiros, após serem libertados, recebiam honra e scatus especial na igreja. Os últimos, entretanto, eram viscos como já tendo recebido, por seu testemunho atk a morte, a herança que todos os fiéis esperam. Eles náo eram considerados cristãos mortos aguardando a ressurrei~áo,mas santos vivendo na presenca do Senhor. Mes-
mo seus restos físicos, portanto, eram santos e cheios dos poderes do reino de Deus; eles eram sepultados, sempre que possível, com o maior cuidado. Esre espírito de devo5áo foi maiiifesto mais ainda no costume de erigir memoriais especiais onde quer que um mártir esrivesse sepultado e de celebrar a eucaristia na tumba de um mártir no aniversário de sua morte. Apíis a conversão de Constant-ino, quando a igreja foi capaz de dar livre expressáo a essa reveri~~cia a seus heróis, grandes santuários foram erigidos sobre os locais de suas tumbas. Foram exemplos notáveis a basílica
de Sáo Pedro, na colina do Varicano perto de Roma e "o martírio da santa e triunfa11re mártir Eufêmia", onde o concílio de Calcedônia havia se reunido em 451. Para tais santuários, gandes e pequenos, yeregrjnos se dirigiani para orar e comer e beber (frecliienremenre ao excesso) 113 companhia dos saliros. Cada niárrir saiiriflcado era visto como um patrono real - uma pessoa viira a quem os fiéis poderiam pcrtencer, com quem eles ~ o d e r i a mser idenrificados, e de quem eles poderia111 esperar urna justiça mais generosa do que qualquer patrono humano ordit~áriopoderia ou iria
dispensar. Uma vez que a presença dos sanrus cstaí.rl associada com a presença de sem restos flsicus, o culro aos mártires tornou-se t a n i b f t ~u~m crrlto de suas relíquias (no qual, táo cedo quanto nos tempos de Agostinho, um coii~érciofraudulento era frequentemente realizado). Táo profunda e séria era a devacáo de todas as classes de cristãos a esws santos que os dias de suas festas rornararn-se parte permanente dos calendários litúrgicos das igrejas, e no Ocidente, sob qualquer medida, rodo edificio scíesiástico tornou-se santuário de um mártir, quando surgiu o costume de colocar uma relíquia santa dentro de cada mesa-altar. Basíaiire distinca do culto aos mártires era a venera~áoque veio a ser concedida à máe de Jesus. Desde pelo menos a época de Irineu para quem Maria era a Segunda
E\%, cuja obediência à chamada de Deus revertera os efeitos do pecado de sua corresnondcnte - os pensadores crisráos haviam atribuído à mãe de Jesus um lugar proemi.:?nre na história da salvacáo. Em escritores conio Atanásio e Apolinário, essa estima ?:!o
papel de Maria foi expresso pela aplicação a cla do título Máe de Deus (theotokos).
228
HISTÓRIA OR ICREJI GRISIR
Aproximadamente na mesma época, a virgindade de Maria - na realidade, sua virgindade perpdtua, como Sáo Jerônimo argumentou - fez dela um modelo para aqueles no Ocidente que advogavam a vida de continsncia monástica. Náo foi, entretanto, até o tempo das controvérsias cristológicas, quarido o título t/~eotokostornou-se um rema de debate no Oriente (ver IlX:9), que a comernoraçáo da Virgem passou a ser estabelecida na liturgia pública da igreja. Havia uma basílica dedicada à Máe de Deus em Éfeso, quando o concílio ecumênico de 431 reuniu-se ali. Uma basílica similar, construída no Getsêmane, no local onde se acreditava ser o d o sepultamento de Maria, celebrava o festival de sua dedicaçáo (15 de agosro) como uma comemora-
ção do 'íadorn-iecimçnto" (Dorrni~áo,e mais tarde Assun~áo)da Virgem. Outra igreja, em ]errisalém prapriarnenre, rernernorava o dia de sua dcdicaçáo (8 de setembro) como assinalando a natividade de Maria. A observância desses dias - como rainbém daqueles das festas da Anunciaqáo (25 de mar$o) e da Purificaçáo ( 2 de fevereiro), que pertencem ao ciclo de celebrações determinadas pelo Natal - disseminou-se gradualmente de Jerusalém para o restante do Oriente. Ela veio para o Ocidente somcnte após o final do sexto século, com uma onda de retúgiados das invasóes islâmicas. Parece haver pouca dúvida de que o culto da Virgem originalmente atraiu e substi-
tuiu a devoGáo que era oferecida às "deusas máss" do Egito, Síria e Ásia Menor; ao mesnio tempo, entretanto, foi seu papel como o veículo escolhido da Encarna~áo que a colocou, aos olhos cristáos, acima dos mártires ou apóstolos como a mais nobre e santa das pessoas. Nenhum desses desenvol\rirnenros c elaboraçóes do culto e piedade cristáos é inteiramente compreensível, à parte das rnudan~asque ocorreram no esrabelecimen-
ro da Iiturgia após o reconhecimento da igreja por Constantino. O senrimento de reverêricia c misrério que circundava tanto o Iiatisrno corrio a eucaristia, corl-io tani-
btm a devoção dedicada ao santos c rnjrtires do pxsado, dependia em parre considerável do caráter dos edifícios públicos da igreja e do uso sistemático da arte pictórica - em sua inaior parte pinturas e nlosaicos - para adorná-los. Libertos por Coi-istai-itino
das rcstri~óesimpostas sobre uma sociedade ilegal, as igrejas, após 313, construíram seus próprios locais especiais de reunião. Para este fim, rejeitando a forma arquitetônica
do templo pagão, elas adotaram o estilo da basíiica romana, que em essência nada mais era do que um edifício público retangular, capaz. de ser adaptado para usos rnúIriplos. Na utilizaçáo crisrá, a basílica tornou-se um edifício longitudinal, geralmente cotn três corredoi-es, iluminada na parte superior por janelas clarabóias sobrs
PERIUDO 111
O ESIA00 IMPERIAL O R IGREJA
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a nave central. Oposta à entrada esIava a abside, onde a cadeira do bispo e os assentos do presbitério eram dispostos contra a parede. O edifício era mobiliado com uma mesa-aIrar disposta diante da abside (frequentemente fixada por dormentes e por um dossel, este sobre quatro colunas), e com um púlpito ou bé'rna para a leitura das Escrituras. O batistério ficava localizado em uma estrutura adjacente. Enquanto geralmerite bastante simples no exterior, os interiores dessas basílicas eram decorados com pinturas e mosaicos que, juntamente com a perspectiva criada por sua combinaçáo de alcura e comprimento, conferiam-lhes, como também aos riros nelas realizados, solenidade e mesmo intimidacáo. Foi nesse tipo de conrexto que surgiu o coscume de venerar pinturas ou ícones de Cristo, da Virgem Maria e dos santos - um costume que se tornou comum no Oriente antes do que no Ocidente, onde, em todo caso, foi eventualmente feira uma utilizaLáo mais extensa de imagens em vulto. Tal veneraçáo foi encorajada pelo hábito estabelecido de oferecer reverência aos rctratos do imperador, um hábito que sem díwida fez parecer natural conceder o mesmo respeito a dignidades ainda maiores, sob o princípio de que "a honra dada à imagem passa para o protótipo."+
Capítulo 14
A Tradiçáo Cristã Latina As igrejas d o Ocidente latino participaram dos debates cristológicos e trinitários
do quarto stculo. Tal participa~áo,enrrcranto, náo foi nem criativa nem de lideran;a. Essas controvérsias surgirairi
110
Oriente, e os pensadores cujas idéias as geraram
r as resolveram, realizaram sua reflexáo e sua redacáo em grego. Até meados do qliin-
[ o século, quando o T0mo
CIO papa Leão, canonizado pelo concílio dc (:alcedônia,
demonstrou quc a teologia ocidental havia alcnnuado maturidade genuína, a contribuic;áo das igrejas latinas para a inquiricão e argumenraçáo doutrinária consistiu em grande medida no peso político que seus con~promissosconcediam a um ou outro parrido no Orierirç. Parecem ter sido duas as razóes para çsta situaçáo.
23 Li
HISTURIA DA IGREJA ERISTÃ
A primeira é que as questóes com as quais o cristianismo latino e ocidental tradicionalmente havia se preocupado tinham pouca relac;áocom a agenda do pensamento cristão grego. De Tertuliano e Cipriano - ambos nativos do norte da África, que foi o terreno de produgáo mais fértil da teologia latina na era romana - o Ocidente herdou uma quase obsessáo por questóes sobre a igreja: sua identidade, sua pureza, seu relacionamento com o mundo ao seu redor. Tertuliano, é verdade, em seu tratado Contra Praxeai' (ver I1:7) havia fornecido as igrejas latinas uma fórmula cristológica e trinitária que, ciiidadosamente interpretada, lhes deu direção útil nas controvérsias ariana e nesroriana. Não obstante, não foram esses debates que dividiram as igrejas ocidentais no quarto século. Sua preocupaçáo permanente era os problemas cclesioIógicos precipitados pclo cisma dona~israe as quesróes sobre a narureza da vida crisrá que escoraram o movimento priscilianista na Espanha e Aquitânia. Foi somente por meio de Hilário de Poitiers (m. 367), cujo exílio sob Constâncio 11 levou-o ao Oriente em um momento crucial de virada no debate rrinitário, que os ociden~aisaprenderam a não interpretar erroneamente a linguagem e idéias teológi05 Sinodos e Sobre a Gindade, escritos após seu retorno do exílio, Hilário possibilito~iaos líderes essencialmente ignorantes da igreja latina a aquisiqáo de certa apreciação das questóes e
cas de seus contemporâneos orientais. Em seus tratados Sobre
idiias que estavam perturbando os cristãos de fala grega. Uma segunda razáo deve ser encontrada no fato de que o cristianismo latino não produziu nenhuma liderança reolúgica de primeira categoria no século seguinte à morte de Cipriano. Náo surgiu no Ocidente nenhum mestre de distinqáo nem em exegese bíblica nem em qiicstóes de doutrina até a geração de Agostinho de Hipona. Ism náo significa, obviamente, que as igrejas do norte da África, da Itália, da Espanha e da Gália fossem destiiuídas de talento teológico. O donatistaTicônio (m. ca. 400) não apenas contribuiu ~i~nificativainente para o permanente debate norte africano sobre a igreja, mas em seu
Livro de Regras ele redigiu uma obra hermenêutica que
Agostinho admirou e utilizou em seu próprio rratamento dos métodos de exegesc. No eminente filósofo e retórico Mário Vitorino (outro africano), a igreja romana e111 meados do quarto século ganhou um convertido que escreveu com erudiçáo contra os arianos, no estilo de um filósofo neoplatônico. Mas de modo geral o cristianismo iarino desse período - como a cultura latina em geral em um período anterior permaneceu amplamente dependente de fontes gregas. Ambrósio de Milão fornece uma iiustragáo desse fato. Um mestre de grego, ele exibiu em seus sermões e tratados
P E R ~ U ~111O
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
231
tanto um gosto excessivo pela erudicáo grega como uma disposiçáo admirável para selecionar idéias - algumas vezes, na verdade, passagens inteiras - de exegetas e pensadores orientais. Foi, porranto, apenas com Jerônimo e Rufino de Aquiléia, e Agostinho de Hipona e Pelágio, que a teologia latina chegou a maturidade inrelectual e literária. A obra deles, de fato, coincide com um reavivamenro geral da literatura latina, tanto pagá como cristá, no final do quarto e início do quinto século. Ao mesmo tempo, ela assinala um retorno do pensamento Iatino cristáo a temas e preocupaçóes que eram nativas à tradição ocidental em teologia.
Capítulo 15
Jerônimo Um estiiista latino magnífico, um linguisra cuidadoso, e u m eloqiieilte e inescrupuloso polemista, São Jerônimo (Eusebius Hieronymus)) foi o maior erudito que a igreja ocidental antiga produziu. Nascido em 331 em uma próspera família latifundiária natural de Stridon na Dalmácia (atual Croácia), a vida inicial de Jerônimo seguiu o curso que era normal para um jovem habilidoso da classe alta. Ele foi instruído em Roma em gramática, em retórica e nos clássicos da literatura latina - três assuntos que ele não apenas dominou mas aos quais se enrregou completamente. Enquanto em Roma ele adquiriu um círculo de amigos, entre eles Tirânio Rufino (m. ca. 410) de Aquiléia, que mais tarde uniu-se a Jerônimo na confecção de traduçóes siscemáticas das obras de Orígenes e portanro no fornecimento dos únicos textos por meio dos quais muitos dos escritos daquele pensador sáo conhecidos. Rufino iria partilhar o entusiasmo de Jerônimo pela vida ascética mas no fina1 disputaria severamente com ele sobre a reputa~ãoe ensino de Orígenes. Após uma jornada à capital imperial de Trier na Alemanha, onde ele exprimiu seu primeiro interesse na literatura crisrá e na vida ascética, Jerônimo passou alguns anos na Dalmácia e na Aquiléia em um círculo de cristáos devotos e instruidos, onde seu gosto pela vida de auto-disciplina e isolamei~tofoi desenvol\~idoainda mais.
Em 372, afastado desse círculo por ataques sobre seu caráter, Jerônimo partiu
23.2
HISIORIA IIII IIREJA CRISTÁ
para o Oriente. Chegando por fim em Antioquia, lá ele, enquanto se recobrando c: uma enfermidade, assumiu çeriamentc o estudo de grego. Não muito tempo depois. ele resolveu dedicar-se co~npletamenteà vida ascftica. Ein 374, ele retirou-se (nzi sein sua biblioteca) pai-a o sertáo ao iiorrc de Ancioquia e viveu entre os inúmero; eremitas que habitavairi suas molitanhas. Como se viu depois, essa experiência n i i
foi um suci-ssn. Jerônin~o,ria melhor das hipóteses ulri hornem irritadip e convcilcido, descobriu que era impossível conviver com seus vizinhos, os quais não aperi;;
eram provenientes de um contexto social c cultural difereilte conio cambém n ã ~ tinliaiii paciència para com seu posicionamcnto latino e romailo, na controvérsir trinitária. Jeronimo correspondcnccniente retornou para hrltioqiiia cni 376 o u 37-.
12ácom toda a probabilidade eir ouviu Apoliriário de Laodicéia, um dos mais eininentes exrgecas da bpoca, ensinar sobre as Escrituras. E111 373, entrcranco, quando .: morte de I'alente c a ascensão de Teodósio I hairiarn virado a maré d a coi-itrovérsic trinitária, ler6nirno escava em Constanrinopla, onde Greçório de Nazianzo o i11.;criiiu nas Escrieuras c in~roduziu-oi s obras de Oríger-ies. Agora, pcla primeira vez. Jerôiiimo \-ol~ou-separa a traduqáo. Ele -verteu. editou e amplificou a Ci-ônicu át Eusébio de Cesariia (um esboço de história mundial, desde o nascimento de Ahraác até 325 d.C.) e çorneqou iim p r o j c ~ ode verrer as homilias de Orígencs crn latim. Foi eiii Roma, encrecanto, para onde ele retorriou em 382 c onde se tornou ~in: tipo de secrccário d o papa D9rnaso, que ele assumiri, com o ençorajainetiro d o papa. o maior de rodos os seus projetos de traducáo - unia revisáo da verszo Iarina anrig; incipicnte da bíblia. Por um periodo de vinre e dois anos, ele completou os evangelhos d o Novo Testamerico (em Roma) e d o Antigo Testamento (na Palestina). Estiúltimo ele traduziu d o original hebraico, tendo ficado persuadido de que o texto
i
cânorie hebraico, e náo aqueles da Scptuaginta grega, eram as autoridades apropria-
das para a igreja. Foi também em Roma que ele se tornou o mestre e conselheiro espiritual de u m grupo de muIheres aristocratas, ricas e asceticamente orieiltacias, erii particular as v i í ~ ~ Marcela as e Paula, e a filha desta, Eustóquia. Por meio desses relacionainenros, Jerônimo tornou-se notório coino um apóstolo do estilo oriental i-adi-
cal de ascetismo, que possuía muitos inimigos e críticos entre os cristaos de Roma. Atacado por sua pcrccp~áode que o esrado celibatário C superior ao d o matrimonio. jeronimo retrucoii a seus críticos nas obras Coizti.~~ Helvidio e Cóntiz/ouiniiano, defendendo o ideal de virgindade para as mulheres como cambém para os Iiornens
c
considerando a mãe de Jesus - quem, argumentou, fora virgem por roda a sua vida -
~ a i o o oIII
O ESTADO IMPERIAL DA IGREJA
25.3
como um modelo para ascetas. No processo de expor essas perspectivas, Jerônimo demonstrou uma tendéilcia para atacar o clero ordinário e os cristáos de Roma como indignos de sua vocacáo, assim cornaildo-se ráo impop~ilarque ap6s a morte de Dâmaso ele foi mais ou menos expulso da cidade.
O restante davida de Jerônimo (ele morreu em 420) foi passado em Belém, onde sua amiga Paula, com sua filha Eustbquia, construíra dois mosteiros, um para mulheres, que ela própria si~pervisioiiava,e um para homens, que Jerônimo comandava. Foi desse mosteiro que fluíram seus cornenrários bíblicos e sua versáo do Antigo Tesmmento. Enquanto lá, seguindo a direçáo do bispo Epifinio de Salamis, ele tomou uma posiçáo contrária a seu ancigo rnesrrc, Orígenes. Aliando-se com Teófilo
de Alexandria, e posicionando-se firmemente concra o mais proeminente defensor oficial de Orígenes, o bispo Joáo de Jerusalém, ele conseguiu amargar permanentemente suas relaçóes com seu velho amigo Rufiilo. C1 resulrado foi um longo debare literário entre eles que por fim fez da controvérsia origenista uma questáo em Roma c no Ocidente. Finalmente, foi de BeIém que Jerônimo tomou o lado de Agos~iriho no debate sobre as idéias de Pelágio. Os monumentos de Jcrônimo foram a Bíblia Vulgata, que até o stculo vinte permaiieceu a versáo normativa das Escrit~irris,para as ... .
irll
- ipa,
igrejas em comunhão com a sé de Roma, e seus comentários bíblicos (profundamence endividados para com os de Orígenes), que forani regularmente consultados pelos escolásticos inediexais e reformadores evangélicos.
Capítulo 16
:21ro :.
Agostinho de Hipona
rni
:ela:i&-
Um contemporâneo mais jovem de Jeronirno, Santo Agostinho de Hipona (Aurelius Augustinus) nasceu na cidade de Tagaste, ria Numídia, em 13 de novem-
ma.
bro de 354. Seus pais pertenciam a classe média de fala latina de uma cidade locali-
nio,
zada em uma irea do norte da África cuja linguagem predominante era o bcrbere.
. dc-
Enquanto que seu pai, Pacrício, era pagáo, sua mãe, i\/IÔnica,era uma cristã piedosa
rns e
no estilo norte-africano devoto e ral\rez levemcnte supersticioso. Seus ambiciosos pais enviaram-no com dezesseis anos para a cidadc próxima de Madaura, e depois
disso para Cartago, para ampliar sua imtruçáo e suas chances de progresso. Agostinho seguiu o curso de estudos que era comum em sua Ppoca: gramática, o estudo textual rigoroso dos principais clássicos latinos, e entáo, em Cartago, retórica. Esse treinamento acadêmico coIocou-o no caminho de diversas carreiras possíveis: advocacia, retórica profissional ou o alto servip público civil sob o governo imperial. Na realidade, seu primeiro trabalho, após a morre de seu pai, foi a de professor em sua cidade natal, mas ele logo retomou a Cartago para assumir um posto ali. Durante esse período, Agostinho, na moda de sua época, tomou para si uma concubina, com a qual viveria por catorze anos e quem lhe daria o filho, Adeodato, çuja inteligência ele gostava de celebrar e cuja morte prematura (com dezessete ou dezoito anos) ele pranteou sobremaneira. Sua jornada em Cartago também assinalou o início de sua busca religiosa c filosófica. Ai Agosciriho leu e esrudau o Hortensius,
de Cícero, um diálogo presenremente conhecido apenas em fragmentos. Por ele, con-io Agosrinho restifica, o jovem foi convertido à busca de sabedoria e a vida humana realizada. Foi essa busca que o levou, por volta de 373, a juntar-se ao movi-
mento maniqueísta, disseminado e na moda no norte da África, que o atraiu em diversas áreas. Utna delas era que, com seu duaiismo sistemático, o maniqueísmo oferecia uma atraente soluçáo para o problema do mal - um problema que, de uma forma ou outra, iria obcecar Agostinho por toda a sua vida. Outra encontra-se em seu repúdio do Antigo Testametlto, cuja crueza literária e moral havia perturbado o céptico jovem inrelectual. Uma terceira razão para seu apelo era o fato de que ele ridicularizava a exigência cristá por "fé" e p-ofessava ensinar apenas o que era racionalmenre dernonstrável. O apego de Agostinho ao maniqueísmo foi, entretanto, de duraçáo relativamente curta. Em um encontro com o respeitado e atraente líder maniqueu Fausro, de quem Agostinho esperava a resoluçáo de suas dúvidas e questionamentos, ele ficou perturbado e desiludido com a superficialidade e igno-
rância do homem. Conquanto ele continuasse a sç mover em círculos maniqueístas (e aparentemente náo visse nenhuma alternativa positiva à crença de que o mal "existe" do mesmo jeito que pode-se dizer que a prara ou a água exisrem - ou seja, como uma "substância" identificável), sua mente começou a se mover lia direçáo do ceticismo da Academia (ver LI), que ele aprendeu de certos escritos de Cícero. Foi nesse estado de menre que Agostinho mudou-se, com vinte e nove anos, de Cartago para Roma, onde novamente se estabeleceu como professor. A mudança fornece evidência da reputacão que ele havia adquirido no narre da África como um '
PERIUDU 111
O ESTAOII IMPERIAL OA IGREJA
235
iovem retórico capaz e promissor. Agostinho ficou aborrecido e incomodado, enrrecanto, com a reliitância dos estudantes em Roma em pagar suas taxas. Ele riáo ficou [riste, porcanco, ao receber a oferta de uma cadeira oficial de retórica em Miláo, a capital imperial, oferecida a ele pelo prefeito de Roma, Símaco, e obtida por meio do bom auxílio de seus amigos maniqueus. Dessa forma ele foi para Miláo, em 384, pronto para embarcar naquilo que ele sem dúvida esperava que seria uma carreira pública ilustre. Em Milfio, contudo, a ocupacáo de sua vida pessoal - sua busca por aquela verdade que traz a reaIizacão humana - sobrepujou aquela cie sua vida profissional. Em primeiro lugar, e111 Miláo se juritaram a ele náo apenas dois antigos amigos, Alípio e Nebridio, que em suas maneiras diferentes parrilhavam e reforçavam sua preocupac;ão em encontrar o caminho verdadeiro, mas também sua determinada máe, Mônica, que por sua paite buscava "estabelecer" seu filho - colocar siia vida em ordem e levá-lo de volta para a
fé cristã na qual ele havia sido criado. Por essa época, Agostinho havia finalmente se separado dos inaniqueus, mas seu ceticismo e desiIusão não haviam desaparecido, e os problemas que o haviam tornado maniqueu ainda o perseguiam. Ele havia, por certo, "decidido permanecer catecúmeno na igreja católica", mas someiite "até que algo claro pudesse mostrar-me em que diregáo guiar meu curso."' Outra coisa que aconteceu em Miláo foi que Agostiriho começou a oiivir a prega$50 do p n d e Ambrósio, que eventualmente o impressionou não apenas por seu estilo mas mais ainda por sua substância. O manuseio alegórico e tipológico do Antigo Testamento por Ambrósio dissolveu um dos problemas que o haviam afastado de sua fé materna. Da forma que Ambrósio lidava com o AntigoTestarnento, este perdia sua crueza e revelava surpreendenees profundidades de significado. Novamente, Ambrósio introduzili Agostinho à noçáo - revolucionária, no que se refere à preocupagáo deste - de uma realidade imaterial: uma maneira de ser náo-espacial, intangível, própria de Deus e da alma.
Ao mesmo tempo, por meio de outros concacos, o jovem retórico descobriu círculos cm Miláo onde um novo movimento intclectual havia se enraizado, com o q~ialo próprio Ambrósio estava associado e que, na tradiqáo de Mário Vitorino, o fildsofo e retórico romano da geração anterior, conjugava o cristianismo com o neoplatonismo. Chegaram às maos de Agostinho "certos livros dos platônicos tradu-
PEB~OBOIII
O ESIAOO IMPERIAL OA IGREJA
23 7
alguns dos problemas que o haviam por tanto tempo perturbado. Em uma forma que mostra quáo compietamente sua mente havia sido imbuída com a perspectiva platônica, ele prendeu-se
3 questóes
sobre a possibilidade do conhecimento correco,
o problema do mal, c a natureza da vida humana realizada. Quando o inverno chegou, Agostinho retornou para Miiáo e alistou-se como candidato para o batismo.
Após seu batismo na páscoa em 387 ele, Mônica e Adeodaro iniciara111 uma jornada em retorno para a &rica, onde ele haveria de passar o restante da vida. Mônica morreu em Óstia. Após um intervalo, Agostinho continuou seu caminho, tendo já começado a escrever a longa série de obras nas quais volta sua pena contra o mariiqueísmo que havia anteriormente esposado. De volta a Tagaste, ele estabeleceu uma pequena comunidade de ascetas e claramente considerou passar o resto de sua vida em afastamento contemplativo e filosófico. Em 39 1, cnrrctanro, em uma visita à cidade portuária de Hipona, na Numídia, ele foi tomado pelo povo e, concra suas prbprias Iligrimas e protestos, ordenado presbítero pelo bispo, Valério, que, sendo grego, ri50 falava liem o latim e precisava de um associado para ajudá-lo na tarefa de pregaqáo. Pouco depois dc 395, Valéria ~ ~ l c c c uAgostinho o sucedeu. Ele peimaneccu bispo de Hipoiia att sua morte em
430. As oordenacóes sucessivas de Agostinho assinalara~iiu111 ponto de virada em sua \-ida. Ele j i náo era mais simplesmente o cristáo-filbsofo, preocupado c0111a dialttica da busca interior por Deus. Agora ele era ta~iibirnum pastor, que tinha que voltar Tua crescente atencáo para as Escrituras e sua exposicáo, e para os problenias prríticos
t a s igrejas no norte da África. Essa junqáo crucial em sua vida foi marcada pela rcdaçao de suas ConJZssórz (ca. 397), nas quais ele trata retrospcctivamcntc de sua >rópria pcregrina~áoespiritual e conversáo, como uma indicação e ilustraqáo da
iiruaqáo universal dos scrcs humanos em relaqáo a Deus. Nessa obra notável, conforele resume seu passado e se volta para o futuro, Agostinho ressoa
ii11-i
tema que
:,rmeará seu pensamento sobre cada problema importante que eIe erifrenraria. Em:'ra o ser humano seja criado para o conhccimen~oe amor de Deus e está "inquieto" L:Z
~icanqiardescanso eni Deus,%el earilbkin está desviado de Deus e perdido em um
z o r falsamente dirccionado. Conquanto essa perversão possa ser descrita, não sc - . ..
t s prestar contas dela. Suas origens na vontade liumana encontram-se mais pro-
738
HISTIRIA DA IGREJA CRIBTI
fundas do que o nível da escolha consciente; da mesma forma, sua retificaçáo depende de um impulso que a escolha humana náo pode de si mesma fornecer. Somente a graqa e amor de Deus, operando em maneiras que nem sempre podem ser discernidas ou compreendidas, podem redirecionar o amor humano e focalizá-lo na fonte última de sua realização - Deus. Este tema, ressoado na estrutura mesma das Gnzssóes,
aparece rainbtm nos estudos mais ou menos contemporâneos que Agostinho faz de Paulo. Tal tema assinala o grau ao qual a atençáo de Agostinho às Escrituras e tradiçáo magisterial da igreja estava levando-o a modificar e qualificar seu neoplatonismo, e sobe à superfície em seu tratamento do problema que iria dominar sua vida e obra pelos quinze anos que se seguiram isua ordenaçáo como bispo - o prohlerna do cisma donarista. Na época de Agostinho, o donatismo (ver III:]) havia estado arjvo n o norte da África por oirenra anos. Sob Donaco o Grande (m. ca. 355) e Parrncniano (ní. ca.
391), o donatismo, apesar da perseguiqáo intermitenrc pelas autoridades imperiais (e de fato parcialmente como resultado dela), floresceu no norre da Afi-ica a ponto dc, quando da época da ordenaçáo de Agosrinho, provavelmente abranger a maioria dos cristãos norte-afi-icanos e ser inquestionavelmente dominante nas cidades e viras dos
dripla~iosda Numíclia. UIII grupo purirario e exclusivisca em espírito, a igreja doriatisca permanecia na rradiçáo de Tertuliano e Cipriano e considerava-se como o único griipo de cristáos no mundo romano que havia mantido o espírito e a tradiçáo da igreja-mártir de anrigamenre. O donatismo via a comunháo católica das igrejas como "envenenada" - nso apenas pelo fato de que ela provinha (como era alegado) de bispos que haviam traído a f6 ao entregar seus livros sagrados na perseguiçgo sob Diocleciano, mas também (e de fato acima de tudo) pelo faro de que ela agora era sustenrada pelas autoridades rorririnas, "o mundo." Dessa forma, para os doriaristas, o grupo carblico simplesmen~enão era "igreja." Ele estam desriruído do Espírito de Deus por causa da impureza e compromissos de seus bispos e clero e portanto estava fora do domínio da salvaçáo. Por esta razão, os donatistas se recusavam a reconhecer os barisinos realizados na comunháo católica, e os católicos que se juntavam ao grupo donatista (e não eram poucos) eram reharizados. Corriam para os donaristas não apenas as pessoas que aderiam à tradicional concepção africana da igreja como um posto avançado moralmente e ritualmente "puro" do reino de Deus, mas também
aqueles, como o campesinato da Numídia, cuja oposiçáo ao 'Lmundo"se originava parcialmente do descontentamento social e econômico. Na época de Agostinho, a
P E R ~ U D O111
O ESTADO IMPIRIAL DA IGREJA
239
oposiçáo entre donaristas e católicos estava náo só estabelecida como amargurada. Nucrido pelas membrias bem cuidadas de ambos os partidos da violência do outro e reforçado por uma recusa mútua de intercurso social ordinário, o cisma permanecia como um dos fatos estabelecidos da vida norre-africana. Como bispo de Hipona, perto de cuja igreja fora erigida a basílica de uma congregaçáo donatista, Agostinho recusou-se a aceitar esta situa~áo.Em parte, sua atitude originou-se de uma profunda antipatia a compreensao donatista de igreja. Conforme sua compreensão, era simplesmente incorreto assumir que a igreja pudesse ser
um corpo "puro." Na rradiçáo dos bispos romanos do terceiro século - e portanto do próprio Cipriano de Cartago - Agostinho via a igreja como um "corpo misto" no
qual o joio e o trigo crescem juntos até o juízo. Mais do que isso, todavia, eIe acreditava que a santidade da igreja - a presença na igreja e para ela, do Espírito de Deus dependia náo (como os donatistas argumentavam) da santidade ou pureza do rninistro que batizava, ceIebrava a eucaristia, oii ordenava, mas simplesmente do gracioso amor do próprio Deus. Portanto, ele insistia em que o verdadeiro e efetivo minisero dos sacramentos através dos quais Deus tocava e reformava vidas liurnanas náo cra o sacerdote humano, o bispo ou presbítero, mas o próprio Cristo, de cujo ministério o do agente humano era meramente um símbolo e canal. A igreja vivia, argumentou Agostinho, náo em virtude de sua própria santidade ou da de seus bispos, mas simplesmente em virtude da graqa de Deus em Cristo. Como os teólogos medievais colocariam isso mriiro mais tarde, os sacramentos eram "válidos" (i.e., objetivamente realizavam o que eles "diziam") não por causa daquilo que o ministro humano era ou fazia (ex opere operantis) mas por causa da execujáo pela igreja da própria ação (ex opere opemto) em dependência da graça pactuada de Deus. Esta crenqa, contudo, de que a igreja vive na graça e pela graça levou Agostinho à convicçáo de que mesmo o grupo donatista era "igreja" em um sentido verdadeiro. Seus batismos e eucaristias não eram sem significado ("inválidos"). Antes, eles eram
incompletos ou ineficicntes. Executados em separaçáo hostil da igreja católica, faltava-Ihes o solo de caridade no quai poderiam gerar o fruro que intcncionavam produzir. O que era necessário, portanto, era a reconciliacáo dos donatistas com o restante da igreja, e Agostinho dedicou-se a esta finalidade. Em cooperação com seu amigo e colega Aurélio, bispo de Carcago, ele procurou primeiro de tudo reformar, fortalecer e unificar as igrejas católicas na África de forma que o mérito da causa destas pudesse ficar mais evidente. Ao mesmo cempo, ele tornou-se um propagandista, compondo
240
HIRÓRIA DA IKREJII CRIXlÃ
panfletos populares (nenhum deles muito impressivo) nos quais partiu para conrestar a versáo donatista das origens e natureza do cisma. Ele tambim buscou ocaçióes públicas e privadas para conduzir discussáo e debate com líderes donatistas, e replicou aos argumentos desres em urna série de longos tratados. Em tudo isso seu objetivo foi tornar a causa cat6lica atraente e persuasiva e assim dissuadir os donatistas de seu separatismo. Entretanto, tais mbtodos náo foram bem sucedidos e a violência donacista contra os católicos t-iáo diminuiu. Gradualmenre, Agostinho foi levado - em parte por seus companheiros bispos e em parte por seu próprio eventual reconhecimento de que uma política de conciiiaçáo era desanimadora - a reconhecer que para o cisma acabar seria necessdrio o uso da pressão da lei romana e do poder policial romano. Portanto, ele juntou-sc àqueles que encorajavam a corte imperial (a qual de forma alguma estava relutante) a legislar contra os donatistas: confiscar propriedades donatistas e impor penalidades legais severas sobre pessoas que persistissem leais ao grupo cismático. Essa polírica foi finalmente colocada ein prática em 41 1, após uma convocacáo em Cartago à qual os bispos donatistas foram chamados a aprcsentar sua causa ou sofrcr as consequências. Agostinho justificou esse apelo ao poder do estado de diversas ii-ianciras.Por um lado, citou L ~ ~ c 14:23 as ("obriga as pessoas a entrar"). Por outro, observou em um viés pragmático que estas penalidades legais ila prática induziram muitos donatistas a retornar ao rebanho católico e qiie, contrariamente à sua expecrativa origirial, eles rapidamente tornaram-se membros bastante normais de suas congregagóes. Conquanto recusasse c prorestasse contra qualquer aplicaçáo da pena de morte aos donatistas, Agostinho náo obstante acreditava que o imperador tinha o direito e, como crisráo católico, o dever de inrervir no interesse da saIvaçáo dos cismáticos africanos. Ao fii-ial, entretanto, a política de perscguiçáo a que ele n o princípio ae opôs mas depois sustentou firme~iiente,náo foi hem sucedida. O movimenro donatista foi mutilado, e muitos de seus
seguidores foram restaurados ao
corpo católico, mas náo olistnnte ele sobrevjveu, desaparecendo apenas
o
Islã conquistou as antigas províncias romanas d o norte da África.
Após 41 I , a questáo donatista saiu do centro da atenção de Agostinho, e sua mente volrou-sc para outros problemas. Uni desces - mais iiiiportantc para o prdprio Agostiiilio c111 seu papel como um aspirante religioso do quc qualquer candente cluestáo pública
- era o término de seu grande trarado Sobre n 7i.indade, o qual ele
havia iiljciado há mais de uma década atrás mas deixado de lado após ter completado
~tciaaaili
O ESTAOU IMPERlAl RA IGREJA
247
uma ifersaodos primeiros quatro livros e do presente Livro 8. Mesmo nestas seqóes,
onde náo há nenhuma indicaçáo de sua posteriormente assim chamada "anaiogia psicológica", está evidente que a quesráo da Trindade havia se rornndn para ele nem tanIo um problema sobre como o teólogo deve descrever Deus mas um problema sobre como a rnenee humana pode se elevar para uma apreriisáo de Deus em sua tríylice forriia. A idéia de Agosririho era que Deus é corihecido e provado niais cerra-
mente no ato de amor, do qual Ele é a Fonte, o Objeto e o Poder. Ao escolher e desejar amor, o ser humano entra na estrutura rii-pessoal do ser e agir de Deus e assim, por um tipo de consciência reflexa, conhece e ama a Deus. Quando ele rerornou,
todavia, após 414, .?I obra que havia deixado inacabada, Agostinho havia Iido (pela primeira vez) as obras de Gregório de Nazianzo e alguns outros tedlogos gregos e havia ruminado a idéia de Gregório que as "pessoas" rrinitárias (hipósrases) sáo definidas e consriruídas por suas relacóes uma para com as outras (ver III:4). Elc então
desenvolveu mais ainda a id6ia de que "Pai", "Filha" e "Espírito" sáo iiomes a50 de seres diferentes mas de inter-relaç6t-S. Era sua convicçso de que as hipósrases divinas náo eram atualizacóes distintas de unia única ousiu (ser, essência) mas antes simples-
mente as maneiras substaritivas rias quais o único Deus está eternamente relacionado consigo mesmo.
Foi nesta conexzo que a "analogia psico16gica" entrou ein cena. Apelando para a doutrina de que os seres humanos sáo criados "segundo a imagem de Deus", e insis:indo em que isso tem que significar c r i a g o segundo a imagem da toralidade da
-. iriridade, Agostinho desenvolveii uma no@o de ser humano como subsistindo em e
;rrav6s de sua própria auto-relacionalidade. Assim. ele pôde argumentar que as pesinas sáo ou se toriiam elas mesmas quando, em cada ação, elas se lembram, conhe-
;eni e descjarn a si mesrnns; e urna vez que essas relacóes de le~nbransa,coriheci~i~eri-
dcsejo sáo maneiras nas qrrais o úilico e mesmo ser é relacionado consigo mes-
ro
-7113.O
relacionamento tripla e a unidade da pessoa náo sáo inconciliáveis mas prcssu-
rsirii um ao 011tr0. Conseqiienterneilte, há uma "indicacáo" (vestigzzim)da maneira
de Deus na manaia h u m ~ n ade ser. Mais imparranre, entretanro, a busca 7. :.?i:!ia por auro-compreensári no final se expressava, conforme Agosrinho a perce:.i. eni toda pessoa referindo-se "acima" de si para o ser de Deus, o original de todo -:: :rirdo 2 porranco o objetivo de roda busca humana. - . . : : i . c15nieilro central nessa idtia de que as 'Pessoas" da Ttiildadc szo relac;óes -.:.,...:. i> nz.; u ~ 1 ~Drus ii e s ~para i si niesnio era urna compreensão parricular do
:i r
+
242
HISIORIA DA 16RUA ERISTÃ
Espírito Sa~ito.Para Agostinho, o Espirito é a expressáo da natureza de Deus como amor - é, de fãto, a relaçáo de amor mútuo na qual o Pai e o Verbo estão um para com o outro. Ele pois falou regularmente do Espírito como procedçndo "do Pai e do Filho": a assim chamada doutrina da "dupla processão." Seu uso dessa linguagem levou eventualmente h inserçáo nas versões latinas d o credo niceno~onsrantino~olitano da expressáoJilioqzte ("e do Filho") - uma mudança ~extualque no final se tornaria uma das principais fontes de conflito entre as igrejas latina e grega nos tempos medievais e modernos. No exato momento em que estava escrevendo seu tratado Sobrea Tn'ndade, entretanto, a queda de Roma diante dos visigodos (4 10) e o consequente fluxo de refugiados da Itália para o norre da África compeliu Agostinho a voltar sua arencáo para uma quesdo pública mais candente. Desde os tempos de Constantiiio, os cristãos tenderam a assumir a perspectiva de que se o império fosse fiel a Cristo e sua causa, Deus iria protegê-lo e salvá-lo - uma perspectiva que o prtprio Consrantino parece ter abra~ado(ver 111:1). Agora, entretanto, com o colapso das defesas de Roma diante dos visigodos, muitos pagáos estavam argumentando que Roma estaria melhor se retomasse para seus aiitigos deuses, sob cuja direFáo ela fora mantida segura. Foi ern
resposta a esse p-oblema que Agostinho assumiu a redação de seu vasto tratado A
Cidade& D~ZLS. Sua resposta, entretanto, foi muito além da abrangência imediata da questão que a provocou. A Ciddde de Deus é menos uma apologia do cristiariisrric, (embora seja isto) do que uma análise da natureza das sociedades humanas e sua reraGáo com Deus na história.
A obra começa com uma crítica da filosofia e religiáo pagás e de sua reivindicaçáo de levar a humanidade 5 sua realizaçáo. A meta apropriada do esforço humano. argumenta Agostinho, é o próprio Deus e a sociedade de seres humanos em comunháo com Deus ("a Cidade de Deus") que será atualizada apenas alem da história. Não há meio, portanto, no qual a ordem estabelecida por qualquer governo humanc possa receber um valor maior do que provisional e passageiro. Roma náo é, e nácm
pode ser, eterna. Mais do que isso: Agostinho está convencido de que os governo; terrenos sáo produtos de um amor faisamenre direcionado; uma ambiçáo egoista por bens visíveis, efêmeros e materiais. Exatamente por esta razão, eles têm sua raiz e r .
um impulso intrinsecamente competitivo e portanto edificados sobre uma base df violência e injustiça. Isto não significa, contudo, que eles náo possam realizar um:
justi~ae uma paz que, embora relativas, parciais e temporárias, são reais: mesn~í
PIRIODO III
O ESThDO LMPERIAL OR IGREJA
243
uma sociedade de ladróes requer e busca algum tipo de ordem. C:oncluailto, entáo, o estado romano e todos os ourros estados, como também as instituições da escravidáo e da propriedade privada, existam somente por causa do pecado, eles são capazes de servir, em sua própl-ia maneira, os propósitos de Deus, 5 medida em que buscareni restringir e controlar os efeitos do próprio pecado do qual emergem. Na providência de Deus, entáo, "a cidade do homem" rem um papel a desempenhar, e os cristãos têm o direito e o dever de cooperar para efetuar, o tanto quanro possível, a paz e a ordem relativas que o amor egoísta e competitivo pode produzir. Entremeados nessa sociedade que busca bens terrenos, entretanto, estáo aqueles que são governados por um amor superior - o amor por Deus, o bem que todos podem partilhar igualmente. 'Tais pessoas compõem a forma preliminar e histtírica da Cidade de Deus, da qual a igreja náo é canto a ~ o r ~ o r i f i c a como ~ á o a antecipaçáo ambígua. Agosrinho náo havia esquecido a posi~áoque assumira na controirérsia donarista. A igreja não t uma sociedade perfeita, mas um corpo no qual sanros e estáo "misturados" (covpz~spernzixtum). Ao mesmo tempo, ela é a sociedade na qual a graça de Deus é visível e çertainenre operando para converter homens e mulheres, de um amor falsamelite direcionado para bens criados e efêmeros, para um amor direcionado para o próprio Deus. E por esra razão a igreja pressagia e
simboliza a sociedade humana redimida, a Cidade "cujo promoror e conseruror é Deus." O renia de A Cidade de Deus, entáo, é o tema dos "dois amores", um dos quais 5 direcionado para o bem efêmern e finito, e outro para o bem eterno e infinito. Esres dois amores produzem dois tipos de sociedades humanas. Ademais, cada um em sua própria maneira alcanqa o bem que almeja. Se a "cidade do homem" - da qual o império romano era o síinbolo, para Agoseinho - náo alcailca uma paz e uma ordem indestrutheis e ereriias; se ela é vulnerável à conquista e destruiçáo, C porque conquisra e desrruiçáo sáo os meios pelos quais seu bem é alcançado e porque esse próprio bem é passageiro. O único valor úlcimo, porque úiiico e duradouro, é Deus mesmo, em quem todos os bens criados esráo eminenremencc contidos e preservados. Portanto, Agostinho relariviza e, de fato, seculariza o estado, negando ambas as idolatrias (pagá e cristá), de sua ordem. Ao mesmo tempo, ele afirma a significância dos bens relativos que o estado alcan~a.Paz e justiça terrenas náo são valores sem importância, ainda que náo sejam, e r i o possam ser, as corporif;caqóes da paz e da justiça da Cidade de Deus.
Capítulo 17
A Controvérsia Pelagiana A afluência de refugiados no norte daÁfrica após a invasáo dos visigodos na Itália trouxe para Agostinho, juntamente com seu quadro de aristocra~asromanos, mais d o que apenas um desviarrim
3
Suas discussóes sobre o significado da queda de Roma
a t e ~ ~ q ádeo Agostinho dos problemas domésticos das igrejas africanas
para os da igreja como pane da história mundial e o estimularam, como já vimos, a compor A
C'iddde de Deus. Ao mesmo tempo, foi a chegada deles que o compeliu a
avaliar, corisiderar c ao final atacar um movimento de reforma religiosa que se estava espalliarido de Rorna atravis da Itália iiicridiorial e Sicília, e que evei~tualine~ite receberia o nome de seu líder, Peligio. Uin asceta hretáo (embora não fosse do clero nem membro de nenhuma çomunidade rnonistica), PeIágio havia se mudado para Rorna por volta de 390. Ali ele circuIou e ensinou nos mesmos círci~losarisrocráticos nos quais Jeroriimo havia procla-
mado as virtudes da vjda ascitica, e n o processo ele conseguiu um grupo cntusiStico c dedicado cie seguidores. Sua mensagem, que parece ter atraído especialmente jo-
veris intelectuais de nascimento nobre, conclamava para um padrso estrito de pei-fci$0
moral para todos cristáos. Angustiado com a lassidáo e indiferença dos fiéis em
Roma, crítico de suas desculpas, e incrkdulo qulinto à rioqáo de que o batisirio gar-:intia a salvacáo, Pelágio declarou que era dever dc todo cristáo alcancar a perfciçáo guardando rodos os mandamentos de Dcus. Esta mensagem dura, reniiiliscêilcia de um rigorisino mais antigo, veio a ser, para muiros de seus ouvintes, também inspirativa, uma vez que Pelágio tamhem insistia e111 que Deus nao reria dado seus mandamentos se náa tivesse fornecido a todas as pessoas a capacidade de cumpri-los. A pcrfei$50 estava verdadeiramente dentro do alcance de ~ o d o s ,pois todos eram dotados
pela cria~ãode Deus - isto é, como um assunto de capacidade natural - com Iiberdade de escolha. Ademais, ha~riafornecido, rias Escrituras e, supremamente, na pessoa
de jes~rs,tanro instrucso na diferenca entre o bem c o mal como exemplos da v-ida vireuosa. Ecluipados, entáo, com o çoriliecimento do bem e com liberdade de cscolha, e atraídos pela promessa de vida ererna para aqueles que obedecessem à voiitade de Deus, ninguém - uma vez em paz com Deus pelo perdão dos pecados - poderia
~ ~ n i o i11 oo
O ESTADO IMPERIAL 0 1 IGREJI
24-7
deixar de ter tanto a induçáo necessária como a necessária capacidade para a perfei$20. Pelágio esperava por um dia quando as virtudes d o asceta - contintncia, castidade e pobreza - pertenceriam a todos os cristãos, e a igreja seria revelada como a sociedade pura e imacuiada que deveria ser. Pelágio encontrou em u m jovem advogado chamado Celtstio um discípulo c compa~lheirovigoroso e inteligente. Fugindo da invasáo dos visigodos, esces dois chegaram em Hipona em 41 O, procurando conhecer Agostinho, outro notAvel defeiisor da vida ascérica, embora alguém cujas atitudcs já haviam perturbado e confúndido Pelágio. O bispo estava ausente da cidade, entretanto, e seus visitantes prosseguiram para Cartago, de onde, um ano mais rarde, Pelágio parriu para a Palestina.
O início da controvérsia pelagiaila, porcanto, foi provocado náo pelo próprio Peligio mas por certos ensinos de Celéstio. Este último permanecera ein Cartago e solicitara a ordenagáo ali, como presbícero. Entrementes, aiém disso, ele envolvera-se em debates sobre batismo e pecado e também sobre a queda de Adáo, e afirmara nocóes sobre estes assunros que sem dúvida presumira serem aquelas idéias de Pelágio o u pressupostas por seu posicionamento. Nós sabemos quais foram elas a partir das acusaçóes que rapidamente foram feitas contra ele por um diácoi-io milanês, I'aulino: ( I ) Adáo havia sido criado mortal e teria rnorrido, quer houvesse pecado ou de AdZo prejudicara apenas a si mesmo, e náo a toda a raga náo. (2)O humana, ( 3 ) 0 s rccCm-nascidos estão naquele cstado no cjual Adáo ssta1.a antes de sua queda. (4) Nem pela rnorce c pecado de ridáo a roralidade da raça perece, ilenl pela ressurreicáo de Cristo a rúraIidade da rasa ressurge. ( 5 ) A Lei Icva ao reino dos céus da mcsnia fúrtna que o Evangelho. (6) Mesmo antes da vinda do Senhor existiram homens sem pecado.' Celéstio nao ne;ou que estas afirrna~óesrepresentavam um relato correco d c suas perspectivas; e não pode haver dúvidas sobre que elas conrradizirim uma rradicáo contínua d o ensino cristáo africano, que jtistificava o batismo infanril, afirmando
que desde a concepçáo as crianças esravam alienadas de Deus por causa de seu envolvimento com o pecado original de Adão. Correspondentemente, um sínodo local condenou seu posicionatnento (41 I ) e recusou-lhe a ordenaçáo. Açostitiho náo esreve preserire ncste sinodo, e conhecia o ensino de Celésrio apenas por relato. Foi gradual e cautelosamenre que ele ericrou nesse debate. Em seus tratados Sobre a Recü~r~prnsa e Remiss2-o dos Pecador (412 ) e Sobre o Espívitü c iz Letra .\yer,
Siiziuc~Rook. p.
46 1.
246
HISTÓRIA DA IGREJA
CRISTA
(412) ele deixou claro o que percebia ser a questáo subjacente. Ele concordou com seus colegas bispos africanos em que o batismo de infantes pressupunha sua participacáo no pecado - pecado "original" de Adáo - mas também indicou que para ele o rema central da quesrão era o da necessidade de graqa. Ele acreditava que tanto o ensino moral de Peligio como as seis proposicóes de Celbtio colocavrim em quescáo a verdade de que é pela graca de Cristo que os seres humaiios sáo salvos - isto 6, pelo Espírito Santo, que irradia o amor de Deus amplamente ein nossos coraqóes.' Para Agostinho, a s a l ~ a ~ ádependia o não da obedihcia externa a modos de comportamento prescritos mas da evocayáo do amor por Deus na alma humana, e tal amor humano somente poderia ser evocado como urna resposta ao amor de Deus. A liberdade da pessoa humana em voltar-se sincerament-e para Deus dependia, entáo, da acáo redentora de Deus. Isso lhe fora ensinado
cxperiêi7cia de toda sua vida.
para náo mencionar siias mediraçóes nas cartas de Paulo e de João. Por trás desta convicçáo encontra-se a consciência de Agostinho do mistkrio do pecado humano, o
quai para ele não era simplesmente ou primordialmente uina questão de desobediência aos mandamentos mas antes de um amor desorientado e erroneamente dirigido. Foi para explicar esse mistério que ele apelou, juntamente com seus colegas africanos, para a idéia da inipIicaçáo de todos os seres humanos no pecado e na culpa dc Adáo - uma culpa que, mesmo no caso das crianças, somente poderia ser removidz pelo batismo.
Em 415, Agostinho tinha perfeitamente claro em sua mente que as pressuposiçóes subjacentes às nocóes de Pelágio e Celéstio consrituíam um "sistema" que negava a própria base da salvaçáo que o Evangelho cristão proclamava. Se Pelágio expiici-
Iamerite sustentava ou não as doutrinas que Agostinho atribuía a ele - ou via ai questóes queAgostinho via - 6 outra questáo. Cedo riaquele ano, portanto, Agosrinho enviou seu discípulo Orósio a Jerôniilio na Palestina (onde Pelágio estava agorr
residindo) para eiicoraj2-lo em sua oposiçáo
ri
Pe'elágio. Jer61iimo náo prccisrirra d~
muito encorajarnento, uma vez que Felágio havia se tornado um protegido do bispc origenist-aJoáo de Jerusaltm (ver III:7). Em Jerusal6n1, contudo, e mais tarde em u r sínodo reunido em Dióspalis (Lida, na Palestina), Pelágio repudiou as ensinos d; Celéstio c assegurou aos bispos reunidos que suas próprias perspecrivas náo possu: am nenhuma das irnplicacões que os africanos haviam visto nelas. O sínodo, face . 'Cf. Romanos 5:5,e Sobre o k$irito r a Letra, 5
vaiono iii
D ESIA00 IMPERIAL OL IGREJA
247
isto recebeu-o na plena cornunháo da igreja.
Agostinho e seus colegas responderam a esse malogro reunindo dois concílios, um em Cartago para a província da África e um em Mileve para a província da Numídia. Ambos unanimemente condenaram a posiçáo pelagiana e apelaram para o papa Inocência 1 (402-417)para a confirmaçáo de suas perspecrirras. O papa concordou eni tern~osvagos e gerais. Seu sucessor, Zósinio (417-418), todavia, pensava diferente. Tendo recebido uina confissáo de fé da próprio Pelágio e um apelo pessoalmente de Celéstio, Zósimo declarou que não encontrava falta alguma neles. Mas dois desenvolvimentos entáo conspiraram para l e ~ ~oa papa r a alterar sua posigáo. O ensino de Celésrio em Roma gerou ali sérios distúrbios públicos entre os cristãos, e náo sem pressáo dos líderes da igreja africana, incluindo Agostinho - o imperador Honório emitiu um documento oficial condenando o peiagianistno e ordenando o exílio de seus seguidores. ZSsimo entáo mudou. de idéia e emiti11uma carta circular, a assim chamada Epistula tractdtovicl, em que ele aprovava a posiçáo africana, a qual
havia sido reafirmada por um concílio em Carrago (418). Desse momento em diante, Roma permaneceu firme contra o partido pelagiano e de fato buscou sua conde-
nacáo, sem discussáo, pelo concílio ecuniênico dc Efeso (43I). Estas decisões náo significaram, contudo, que a controvErsia teológica chegara ao
fim. Em primeiro lugar, Agostinho em seus escritos sobre o assunto havia se movido para uma posii;áo que preocupava muitos que de outra forma apoiaram seu posicionamento contra o pelagianisrno. Agosiinho, ao acreditar que todo ser humano está tão enredado no pecado e culpa de Adáo que a própria natureza humana é corrupta e incapaz de se volrar, por seu próprio esforço, do amor próprio e "concupiscência" para o amor a Deus, passara a enfatizar a eficácia exclusiva da graça divina. Correspondentemente, ele desenvolveu uma forre douerina da predesrinaçáo, conforme a qual C a acáo e escolha de Deus, tomadas sem consideração para com o mérito humano pressuposto, que simultaneament-e iniciam as pessoas no caminho da salvação e as capacitam para nele perseverarem. Ademais, ao mesmo tempo em que ele estava tentando dirimir as dúvidas de alguns de seus amigos sobre as implicacóes desse eiisino {em rratados como aqueie de 427, Sobre n Gmçn r o Livre Arbitvio), Agostinho foi atacado pelo novo líder da causa pelagiana - o brilhante e áspero Juliano, bispo de Eclana, na Itália meridional, cuja maneira de combinar argumentos com ridicularizacóes e ataques pessoais perturbou profuridamente os úlrimos anos de
z%gostinhoe suscitou nele - fugindo de suas características - réplicas amargas. Juliano,
.?-i8
iilsrb~inDA IGREJA GRISIÁ
u m dos dezoito bispos italianos exilados em 4 17 por recusarem-se a condenar PeIágio e Celéstio, riáo era asceca no estilo de seu mestre. Ele se imaginava estar defendendo a bondade da natureza humana e do casamento contra o perverso dualisrno maniqueísta da resrrita posicáo africana representada por Agostinho. O debate entre esses dois protagonistas foi interrompido peIa morte de Agostinho e pela conquista vjndala das províncias romanas d o norte da África.
Capitulo 1s
O q u e a morre de Apsrinho n5o interrompeu foi a continuaçáo da controvkrsia sobre sua doutrina da eficácia exclusiva da graca divina. Nem todos aqueles que defenderam seu posicionaniento curitra Pelágio escavam preparados para aceitar suas idéias predcstinacioniç~asou sua aparente declasaçáo de que a graça é irresisrlvel. Com a conquista vâiidala da Nurnídia e da África, entretanto, a conrrovkrsia sobre as perspectivas de Agostinho foi transferida para o sul da Gália. Lá Joáo Cassiano (ver
IIJ:?), o f~indadore guia de dois mosteiros perto de Marselha e o principal interprete para o Ocidence do espírito do monasticismo egipcio, assumiu a posi~áo- tradiciunalrnente descrita como "semi-pelagiana" -.de que a graça de Deus vem como un-ir: resposta ao "início de urna boa vo~irade"iia pessoa huniaria.] Erri sua perspectiva,
"2
voi-irade sempre permanece livre no homem, e pode taliro negligenciar ou cornprazerse na graca de Deus."' Cassiano acreditava náo que a salvaçáo vinha para as pessoafora da graça, mas que "há sementes de bondade implantadas em cada alma pcl.: hondade do Criador" e que estas sementes, que capacitam os seres hunianos a preterirem Deus acima dos u~rtrosbens, chegam -à sua fiuiqão somente quando "esrimule-
das pela assistência de Deus."WHá na natureza humana, portanto, uina capacidazi para voltar-se para Deus, inas esca capacidade E reaiizada somente pela própria acii
de Deus.
PER~OBO111
O ESTA00 IMPERIAL OA IEREJR
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Quatro anos após a morte de Agostinho, Vicente, u m monge de Lérins, i-io suI d a Gália, escreveu seu Cornrnonito~i~~m, no qual, sem atacar Agostinho non~inalrncntc, sugeriu que os ensinos deste sobre graça c predcstinacáo eram inova~óesque n5o tinham sustentaçáo na tradicáo católica. "Ademais, na própria igreja carólica", escreveu, "deve-se ter todo cuidado possívei para manterinos aquilo que terri sido crido crn tocia parte, sempre e por todos (qzdnd libiqz~e,~
I ~ O ~ S P I Ygz~odab ~ Y , umizib~~)." E
evidentemente para Vicence, a p o s i ~ á ode Agostinho não seguia tal critério.- C:erca de quarenta anos mais tarde, essa posicáo foi expressa de forma ainda mais explicita por Fausto, abade de Lérins c postcriormente bispo de Riez. Ern seu crarado Sob7.e n
Graça de Dells e o Livre Arbitiio (ca. 474),Fausto iilsistiu cm que o inicio da fé (initiu~z jidei) teni sua raiz n o livrc arbícrio humano, o qual, apesar da realidade do pecado original, tem "a possibiIidade de se esforFar para a salvaçáo." A gra5a é a promessa e advertência divina que inclina o debilitado, nias ainda livrt: arbítrio para escolher o correto. Ela náo é, como queria Agostinho, u m poder interior e rransfor-
mador, que opera ern uni nível mais p r o f ~ ~ n dd o que aquele da escolha consciente. Apesar de sua rcjcicáo de Peligio, então, Fausto em alguns aspectos permaneceu n-iais perco dele d o que de Agosriiiho.
No outro lado d a controvérsia estava l'róspero de Aquirânia (ca. 390-cã. 463), que cedo em sua carreira (pro\~avelmentecomo monge leigo em Marselha) escreveu para Agostinho para riorificá-lo d a oposicáo que suas nocóes estairam suscitando em círculos monásticos na Gália. Autor de obras contra Joáo Cassiano e Vicente de Lérins, Próspero eventualmcntc tornou-se secretário d o papa Leáo I (440-461) e durante seu período nesse oficio compilou um série de resumos das obras de Agosti-
nho. Estes resumos evencualmentc foram utilizados por Cesário (ca. 469-542), um :r-iongc de Lérins que em 502 tornou-se bispo de Arles. E m 529, Ccsário reuniu um ?eqiieno sínodo em Orange, cujos cânoncs assumiram uma significaqáo maior quando Gram aprovados pelo papa Bonifácio TI (530-532). Esre sínodo afirmou uma forma diluída da posicáo agostiniana, qire o próprio Cesirio apoiava. A humanidade está
7.20 apenas implicada n o pecado original de Adão como também perdeu rodo o :ocier de volrar-se para Deus de sua própiia vonrade. "Só desejamos ser libertos ;raças à infusão d o Espírito Santo e sua operação cm nós." É, ademais, "pelo d o m zratuito da graqa, isto é, pela inspiracão d o Espírito Santo", q ~ i cas pessoas t?m "o
250
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTd
desejo de crer" e "chegam ao nascimento do santo batismo." Toda bondade humar entáo, é obra de Deus. Por outro lado, o sínodo de Orange em lugar algum afirmc a irresistibilidade da graqa. Pelo contrário, ele afirmou que as pessoas
"resisr
ao mesmo Espírito Santo." A noção de predestinaçáo para a condenaçáo foi cond nada. Mais importante de tudo, entretanto, o sínodo vinculou a recepçâo da gra, ao batisino e insistiu em que o fruto natural desta graca sáo as boas obras. "Crem, também estar de acordo com a fé católica a afirmaçáo de que, uma vez recebida graça no batismo, todos os que foram barizados podem e devem, com o auxílio s ajuda de Crisro, praticar dqLLelas coisas concernentes h salvação da alma, se labur rem fielmente."5 Em outras palavras, a idéia agostiniana de que a graça de De; muda e transforma a vontade do fiel fora afirmada, mesmo enquanto que a forrí estrita das doutrinas agostinianas da predestinaçáo e da graça fora severamente mi dificada. Esras questões n5o foram resolvidas de forma final em Orange. Elas perrn neceram centrais na agenda da teologia latina náo apenas durante a Idade Médi mas também durante a Reforma Protestante e seus desdobramentos.
Capitulo 19
Gregório Magno O período da controvérsia sernipeiagiana (430-529) correspondeu mais ou rn nos ao das controvérsias nestoriana e eutiquiana no Oriente e suas conseqüências r cisma acaciano entre Roma e Constantinopla (ver 1II:lO). No Ocidente, esse perii do foi uma época de deslocamento e colapso tanto para o império como para igreja. As migraçóes bárbaras e o declínio do poder imperial significou que em algmas áreas mais remotas, como a Grá-Bretanha e a Panônia, o cristianismo foi e todos os sentidos e propósitos expulso. Reinos bárbaros foram estabelecidosem gran\ parte da Gilia e Espanha como também no norte da Africa, e a guerra permaner. que acompar-ihou os movimentos destas naçóes devastou cidades e áreas rurais, rc tringiu o comércio e a comunicaçáo, e portanto erodiu ainda mais as bases s o c i i
' Ayer, Source Book, p. 472-474
PER1000 111
O ESTA00 IMPERIAL OR IGREJA
2 71
.mana,
econômica do mundo romano. Os godos, vândalos e burgúndios, ademais, eram
.:rmou
uniformemente arianos, e isto significava que uma barreira religiosa, alem da cultu-
rzsistir
ral e lingüística, os separava da sociedade provincial romana que eles governavam e
:onde-
que, precisamente porque era romana, era dedicada icausa do cristianismo católico.
graca :cmos
O destino político da Gália e Espanha tambtm foi aquele das províncias romanas quando, com o advento (490) dos ostrogodos sob a lideranca de seu rei, Teodorico,
riida a
a totalidade da península foi ocupada e subjugada por uma naçáo bárbara, aos mem-
i
.. .
ea
bros da qual foi atribuído um terço de toda a terra. Teodorico, entretanto - que
kbuta-
governava formalmente como um go\~ernadorsob o iinperador em Constantinopla e
Deus
intituIado "Patrício dos Romanos" - não perseguiu nem peiializou os cristãos cacóli-
Iorrna
cos. E s ~ apolítica era parte de sua continuaçáo do sistema sob o qual a administração
mo-
civil ficava exclusivamente nas máos dos cidadáos romanos, enquanto os negócios
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srrna-
milirares ficavam nas mãos dos godos. Assim, Cassiodoro (ver III:7) serviu sob
.iédia,
'leodorico como chefe do serviço civil (m~giste~.oitfcio~u-um) e o filósofo cristáo Boécio
1
(m. ca.
524),membro
do clá aniciano e autor da famosa Consolaçd'o da Filosoja,
tornou-se conselheiro de 'Seodorico e foi elevado à categoria de cônsul em 514.Como rei que governava sob dois povos legalmente divididos (os rgodos náo eram cidadáos romanos), Teodorico parece ter almejado uma romanizaçáo gradual e civilizaqáo de seu próprio povo e para esse fim buscou sua coexistência pacífica com os proviiiciais italianos do império. Ao mesmo tempo, para assegurar sua posi~áomilitar e política, ele construiu aliancas cuidadosas com os reis dos visigodos e dos burgúndios nas fronteiras setenrrionais, procurando criar uma aliança bárbara (e 11
me-
ariana) estável. Não obstante, existiam tensões e hostilidades inevitcíveis, náo apenas entre os
:as no
~erío-
invasores ostragodos e a pop~ilaçáode fala latina da Itália, mas também entreTeodorico
:ara a
e a corte imperial. em Constantinopla. Estas se revelaram na alienaqáo gradual entre
dgu-
o rei osrrogodo e a aristocracia senatorial romana. Tal desenvolvimento foi ocasiona-
.>i em
do em parte pelo menos devido ao fracasso do sistema de alianças de Teodorico. A
:ande
conversão dos francos ao cristianismo católico, sua conquista da Aquitânia aos
.nsnte i.
res-
-;ia1 e
N.T. Boicio, cujo nome latino r r a Anicius Manlius Srveririus, cscrevcu a Consolaçáo da Filosofia quando csrava na prisáo. acusado de r r a i ~ á o Em . sua obra BoCcio argumçnra que a aIina pode alcangar a felicidade Dor meio da ailicào, ao compreender o valor da bondade e meditar sohrc a realidade de Deus. Devedor ranro ao esroicismo como a o neopiatonismt>. Bogcio tarnbCm crnÍriu sentimentos cristãos. Sua obra r r r r c r u rrande influência durante todo o período mçdicval. ^
visigodos, e, finalmenre, a a1ianç.a dos burgúndios com Constantinopla, colocara~n Teodorico c seus sucessores em uma posição de isolamento político. Com razgo, portanto, Teodorico ficou inquiero com a lealdade de muitos de seus funcionários carólicos com mentalidade independente. O próprio Boécio morreu na prisáo sob a acusaçáo de traição, e Cassiodoro por fim afastou-se do serviço público para fundar uma escola e mosteiro. Mais importante ainda, tais tensóes se manifestaram com a determinaqáo do imperador Justiniano em reconquistar a Itália para o império, um empreendimento que foi iniciado dez aiios após a morte de Teodorico (526). Como conseqüência, a Itália foi submetida a uma série de campanhas militares destrutivas que deixaram em seu rastro
fome, doenças e diminuicão da populaçáo. A
própria Roma - que no decurso destas guerras uma vez teve a totalidade de sua deportada - torilou-se uma cidade cheia de ruínas, seu povo táo reduzido em número que muitas partes da cidade foram abandonadas e o mato tomou conta.
A reconquista bizantina, ademais, foi seguida quase imediatamente pela igualmente debilitadora invasão dos pagáos lombardos (568), cujos líderes,
110 final
do sexto
século, controlavam a maior parte da Itália cencral e setentrional, isolando Roma de Ravena, a sede do exarca imperial, como tambdm dos rerritórios bizantinos ao sul. Estes eventos náo poderiam deixar de afetar a vida da igreja na Itália. O papado, como a populaçáo de fala latina em geral, esteve, durante a primeira metade do sexto século, envolvido na luta entre Coilstantinopla e os ostrogodos e tornou-se por um período instrumento de lealdades e partidos políticos conflicantes, perdendo no processo muito de sua aueoridade moral. A sicuaçáo foi modificada, enrretanto, com o advento dos Iornbardos. Com Roma separada da sede do exarca imperial, que crn todo caso estava sem recursos militares suficientes para desafiar o domínio lombardo, O
bispo romano foi forçado a se rorriar o Iíder tanto espiritual como político dos
cristãos em Roma e circunvizinhança, mesmo enquanto mantinha, ou procurava manter, sua supervisáo
geral das igrejas no Ocidcnie.
Exatamente ncsse pon[o na história, chegou ao trono papal um homem que náo apenas aceitou os desafios de sua própria Cpoca, mas também forneceu às igrejas ocidenrais um corpo de escritos que ~iiuitofizeram para modelar o pensamento, piedade e ideal da cristandade medieval: Gregório I, corretamente cngnominado "Magno" e tradicionalmente coilsiderado um dos quatro "dourores da igreja" latinos. Gregório nasceu (ca. 540) em Roma, filho de uma proeminente família senarori-
Paiono III
U ESTADO IMPERIAL OA IGREJA
al. Alcançando a eminência civil ainda jovem, ele tornou-se prefeito (governador) de Roma antes de 573. Atraído para a vida monástica, entretanto, ele se desfez de sua vasta herança, dedicando-a ao cuidado dos pobres c à fundagáo de mosteiros - seis na Sicília e um em Roma, que ocupava o antigo palácio de sua família na colina Ctlia. Gregório entrou nesse mosteiro como um simples monge. Após três anos, contudo, o papa da época fez de Gregório um dos sete diáconos de Roma, responsável pela ad~ninistra~áo de uma regiáo da cidade. O papa Pelágio 11 (579-590) então enviouo a Constantinopla como seu embaixador residente (aporrisa~ixs),onde Gregório serviu com habilidade, embora, curiosamente, sem adquirir um conhecimento do grego. Por volta de 586, ele estava novamente em Roma, agora agindo como abade de seu mosteiro de Santo AndrC. Em 590, ele foi escolhido papa, aceitando a responsabilidade com grande relutância, em um momento quando uma praga estam devastando a cidade. Ele morreu catorze anos depois, em 12 de marco de 604.
Com um sentimento de dever e uma atençáo para detalhes próprios de um magisrrado romano, Gregório buscou cumprir as obrigacóes de seu ofício. Ele cumpriu-as, todavia, no espírito de um fiel cristáo que nos eventos de sua época percebia a evidência de que a era presente estava aproximando-se de seu fim e sabia que havia
sido chamado para cuidar do povo do Senhor em vista do juízo, que esrava chegando em breve para eles como também para ele. Consciente de sua dignidade e das prerrogativas de seu ofício, ele náo obstante coiisiderou-se como "servo dos servos de Deus", em cadeias de amor para admoestar, proteger, e assistir a todos que estivessem sob
sua responsabilidade. Foi em vista de sua missáo pastorai que ele imediatamente passou a reformar a administraçáo das vastas propriedades da igreja romana na Sicília, Itália e Provença Gzendas cuja renda na maioria das vezes era apropriada por bispos locais ou sovernantcs seculares. N o que se refere a Gregório, essas propriedades pertenciam de direito aos pobres, que deveriam ser alimeniados, vestidos e assistidos com a renda delas. Correspondeiitemente, ele indicou representantes pessoais para supervisionar 2
administracáo delas e dedicou muito de seu próprio tenipo, dando instru~óesprc-
~ i s a sobre s assuntos que variavam desde a plariraçáo de lavouras até a alimentaG~o de ;ado. Dessa maneira, ele recuperou parri a igreja romana a renda do "patrirnonio de d o Pedro" e foi capaz de prosseguir e111 sua política de sustencar os desriruídos, os ~i;cluídose oucras vitimas da "insegurança de ilossos tempos."
Ao mesmo tempo, Gregório achou-se compelido a lidar com os lombardos, os
HISTORII DA IGREJA CRISTi
254
quais no exato momento em que ele chegara ao trono papal estavam ameacando a cidade de Roma. Sem consultar o !governador imperial em Ravena, em 592 Gregório efetuou, através do pagamento de tributo, uma trégua com os duques lombardos de Espolero e Benevento e continuou, por todo seu ponrificado, a lidar com as autoridades lombardas nesse estilo independente, pressionando todo o tempo o relutante imperador Maurício a realizar uma trégua geral entre Constantinopla e o reino lombardo - uma resoluçáo que cle percebia ser necessária, náo apenas por causa da debilidade militar do império na Irália, mas também por causa da necessidade de paz para a Itália e seu povo. Da mesma maneira, sua preocupaçáo com o estado corrupto da igreja e seu ministério sob as políticas exploradoras dos governantes riierovíngios (francos) da Gália (ver IV:2), levou-o tanto a se corresponder com os reis merovíngios como advogar um matado de paz permanente entre eles e o imperador. Somente assim, julgava, poderia ser mantido o bem-escar da igreja e de seu povo. Gregcírio assim estabeleceu-se, na busca do cumprimento de suas preocupaçóes pastorais, como um governante virtualmente independente na Itália central e o principal benfeitor do povo comum da Itália. Suas políricas também forneceram um precedente para a decisáo de seus sucessores do oitavo século para renuilciarem k dependência ao império oriental e entrarem em alianp com uma monarquia franca reconstituída. Nem estes empreendimenros políticos nem sua preocupaçáo com a administra-
çiáo das propriedades da igreja romana exauriram as energias de Gregório. Foi ele quem,
Joáo, o Jejuador, patriarca de Constantinopla (582-595), começou a
utiIizar o título "parriarca ecurnfnico", protestou em defcsa tanto do sistema dos cinco patriarcados independentes como das prerrogativas de sua própria sé. Em sua perspectiva, náo havia nenhum bispo que pudesse reivindicar tal título. Novamente, foi Gregório quem, ao saber do casamento do rei saxáo Etelberto de Kent com uma princesa cristá e católica, prontamente despachou missionários para a Inglaterra (ver
IV: I), ganhando assim a Inglaterra não apenas para o cristianismo mas tambCm para a fidelidade ao papado e para seu próprio projeto de uma igreja reformada por meio
da purificaçáo de seu ministério. Nada, na realidade, estava mais perto do c o n ~ á odc Gregório do que a regulamenra~áoc reforma do ofício rninisrerial, a náo ser o aumento e melhoria das instituiçóes monásticas. Naquilo que talvez tenha sido sua maior - e certamente uma de suas mais influentes - obra, a Regi-a Pdsmrdl, o papa expressou seu ideal elevado do bispo cristáo como pastor de almas. Esta obra, traduzida para o grego antes da morte
1 1I 1' 1
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I
PIAIOIIII
O kPIADD IMPERIAL DA IliIIEJR
275
de Gregório e em angio-saxôilico pelo rei Alfredo, o Grande, na século nono, tornou-se, no Ocidente medieval, o traramento padráo de seu rema. A extensa correspondência de Gregório (da qual restam cerca de 850 cartas) mosrra como ele tornou suas idéias em prática quando dirigia os negócios das igrejas itaiianas imediammente sob sua autoridade. Ele náo limitou seu inreresse, todavia, apenas às igrejas da Itália.
Ao limite que a condiçáo das comunicaçóes permitia, Crtgório fez sua autoridade sentida em correspondência com os bispos metropolitanos em outros setores do
Ocidente - Espanka (onde o rei visigodo, Recaredo, renunciou ao arianismo em
5 S 7 ) , Gália (oride ele reest-dbeleceu uni vicariato papal eiri Arlesj, Áhica e ar&mesmo na Ilíria.
Se a Regm Paxtorui foi a contribuiçáo de Gregório à compreensáo ocidental do ofício pastoral, sua Moralem]b (escrita, pelo menos em forma preliminar, enquanto ele residia em Constantinopla) foi seu legado a espiritualidade monástica. Nesta obra, um tratamento alegórico de seu texto, ele lida não apenas com a vida ativa de moraIidade mas também com a vida contemplativa do reino vindouro de Deus, que para ele como para Agosrinho era a meta do esforço humano. De náo menor importância do que a Moral, entretanto, foram os quatro livros de Gregório sobre os Diú-
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22.
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de do rte
logo$ sobw u Vidu e Milagres dos Pais Italiu~zox,uma obra que nos séculos após a morte de seu autor circulavam náo apenas enrre clérigos e monges mas também entre o Iaicato e assim muito fez para formar a picdade medieval popular. Este livro, repleto de estórias de sonhos, visiies e maravilhas que demonstram o poder da sanridade, é uma indicacão admirdvel da forma na qual a fé e vida cristá fizeram seu apelo em uma época de viol9ncia, deslocaciio e declínio cultural. Ele também contém digressóes teológicas nas quais, quando Gregório na realidade interpre~ae funde sua heranqa teológica agosriniana com a fé prárica de sua tradição romana, podem ser discernidas os contornos da piedade e do pensamento medieval posterior. Pode haver pouca dúvida que o pensamento teológico de Gregório revela as 1Emi[ações impostas por sua siruaçáo cultural e histhrica. Pot um lado, seus recursos e equipamento eram insuficientes. Ele pouco conhecia as obras de seus predecessores, ranto gregos como latinos, fora os ensinos de Agostinho (cujos escriros elr havia diligentemente resumido em um momento de sua vida). Por outr-o lado, as circunsrancias dr sua época forneciam pouco encorajamento para grandes empreendimenros especulativos ou críticos. A preocupação de Gregório era com o formato prático da vida cristá e do caminho do ser humano para a nova era do reino de Deus, cuja luz
L 56
HISTORIA DA IGREJA CRISTR
mesino em seus dias estava comecando a manifestar-se. Seu pensamento portanto voltou-se para os remas do pecado, juízo e o sacrificio expiatório de Cristo; e nesses tópicos ele desenvoiveu as conclusóes de Agostinho (senáo as idéias c pcrcepçóes nas quais essas conclusfies estavam enraizadas) de uma maneira essencialmente consoan[c conl a posiqao do síriodo de Orange (ver 1lT;lS). A raça humana está algemada
pelo pecado de Xdáo, coino C evidenciado pelo fato de que coda pessoa é concebida por meio da concupisc?ncia. O indivíduo C resgatado dessa condiçáo pela obra de Cristo, cujos benefícios sáo conferidos no batismo por meio do perdáo dc pecados e do dom do Espírito Santo. Não obstante, deve ser feira satisfaçáo pelos pecados corneridos depois do batismo: nenhum p a d o pode prosseguir sem uma expiaçáo. Os meios essenciais de satishqáo sáo as boas obras realizadas c111 amor, que sáo pos-
sibilitadas
ela g r a p prevenience
de Deus e pela coopera~joda vontade iiumana
com aquela graca. Tal satisfacáo é uni dos tres momentos essenciais de poe~zitfntia (arrependimento, ~enitência),sendo os outros confissáo (reconhecimento de pecado) e contricáo. O pecador que busca reconciliacão com Deus arravés de Cristo C ademais assistido ~ c l eucaristia, a que possui poder expiatório porque nela os beneficios da auto-oferta de Cristo a Deus são aplicados a rodos seres humanos, canto morcos como os vivos.
H;ítambém
cis
o auxílio dos sanros mártires, cujas oraçhes sáo
ouvidas por Dcus. Os ~ e c a d o selos quais náo foi feira satisfaçáo tiesta vida presente seráo purgados nas chamas do purgatório após a morte. Esra idéia da purgaçáo de pecado aphs a morte, táo central na piedade mcdieval posterior, náo foi ino~raçáode Gregório. Cipriano e Agostinho a haviam considerado. Para Cesrírio de Arles isso era um fato certo. Gregório, portanto, ao propor a doutrina do purgatório como iim elcmcnto essencial da f6, estava simplesmente tomando seu lugar em uma tradicáo que se desenrolava e que tinha suas raízes nas antigas discussóes cristás sobre a possibilidade e necessidade de um "segundo arrcpendirnento" (ver 11:1 5 ) . Gregório, cntáo, foi uin teólogo de pouca originalidade. Suas idéias, 1150obstante, foram cruciais em cada ponro para o formara do pensamenro e das instiruiçóes medievais. Nesse aspecto, ele se posiciona ao lado de outros dc sua época que transmiriram, embora de uma forma limirada e restrita, a sabedoria da igreja antiga para as igrejas do Ocidenrc latino medieval. Encre estes deve ser mencionado náo apenas Cassiodoro e Bobçio (cujas traduçóes de Aristóteles esiimuiarain os primórdios da filosofia medieval), mas também Isidoro de Sevilha (ca. 560-636), um quase exato
~ r ~ i o aIIIo
O E S I A 0 0 IMPERIAL DA IGREJA
25;
contemporâneo de Gregório. O Livro dar Seenten~as,de Isidoro - breves declarações doutrinárias - foi o livro-texto da igreja ocidental acé o século doze. Sua obra irititulada
Origens ou Etirnologir*.s abrangia o âmbito quase completo dos conhecin~entosda época, ranto eclesiásticos como seculares, [ornando-se para a Idade média uma das principais fontes de iilformacáo a respeico da Antiguidade. Não obsrante, Gregório Magno se projeta como alguém cuja obra formacou não simplesmente as idéias mas rarnbim a vida e as instituiqões da igreja em uma época de grandes problemas e portanto contribuiu em muito para assegurar sua sobrevivência como uma forca significativa no novo mundo bárbaro. N30 sem justiga Gresório foi descrito para a posteridade como "cônsul de Deus."
Periodo IV A Idade Média e o Encerramento da Controvérsia da Investidura
Capítulo 1
Missões nas Ilhas Britânicas Náo há nenhuma indicação mais marcante da vitalidade das igrejas ocidentais durance os sécuios, quando a autoridade romana estava sendo substituída pela dos reinos bárbaros, do que a força e persistência dos esforços feitos para cristianizar as tribos pagãs que haviam ocupado territórios anteriormente romanos ou territórios imediatamente adjuntos às antigas fronteiras do império. Em nenhum lugar esses esforços foram mais bem sucedidos do que nas ilhas britânicas, cuja conversáo final ao cristianismo romano e carólico redundou para o benefício não apenas do papado mas das igrejas continentais de modo geral.
O cristianisino havia existido na Grã-Bretanha mesmo antes da conversáo de Constantino. Parece ter havido no oeste da Inglaterra um cristianismo céltico, intimamente aparentado com aquele da Gáiia romana, desde um período razoavelmente cedo. Glastonbury, em particuIar, que - como sua IocaIizaçáo perto da desembocadura do rio Severno atesta - era um porto antigo engajado no comércio com a Gália e o Medirerrâneo, aparentemente era um primirivo local sagrado cristão. O cristianismo também existia nas cidades e vilas da ocupação romana. Três bispos bretóes de fala farina estiveram presentes ao concílio de Arles (314). Perto do final do quarto século, as tropas romanas foram gradualmente removidas da Grá-Bretanha (na maioria das vezes por usurpadores imperiais procurando fazer suas fortunas na Gália), com o resultado que os habitant-es da anriga província tiveram que se arranjar sozinhos para rechaçarem as incursóes dos saxóes pagáos na costa oriental da Inglaterra e, no norte, a pressão dos pictos da Escócia. Diferentemente d a Gália e da Espanha, a Grã-Bretanha nunca havia sido completamen[e
PERIO~B IY
A IDADE MEDIA E U ENCERAMEFITO DA EONiRUYERSIA DA INVESTIDURA
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romanizada, e a partida dos oficiais e das tropas imperiais significou que, no decorrer do quinto século, o país gradualmente reverteu para Litiia organizaçán tribal e as cidades foram lentamente despovoadas, mesmo quando as incursóes dos saxões, anglos e jutos se tornaram em invasão tord e ocupação.
O cristianismo, entretanto, sobreviveu. No livro Histúu'riu Eclesirística da NQ@U Inglesa, de Beda, o Venerável, encorirra~nosque o bispo Germano de Auxerre fez duas visitas à Grã-Bretanha a pedido de seus colegas dali (429 e 444-4451, A primeira dessas teve como objetivo uma acáo contra a propagaçáo do pelagianismo, ernbciIa, como veio a acontecer, ele também fora convocado, como um antigo dux (i.e., general) na Gália, a liderar uma força bretá contra uma in~rasáoconjunta de saxões e pictos no norte. Na época de sua segunda visita, os adversários da Grá-Breranha provenientes do outro lado do niar do Norte haviam começado a ocupar as costas orienta1 e meridional da Grá-Bretanha. No decorrer do século seguinte, os bretóes, e com eles o cristianismo, foram expulsos mais e mais para o oeste, ate evenrualmentc serem confinados a Cornwall, Gales e, no norte, Strathclyde. Mesmo na época de Gerniano, entretanto, os laborcs missionários que iriam resultar na cor-iversáo das ilhas já estavam a caminho. Ncssa obra, n nome mais notável
é o de Patrício (ca. 389-ca. 461), "o apóstolo da Irlanda." Um bretáo cujo local de nascimento permanece tbpico de especulaqáo, Patrício era filho de um certo Calpúrnio, diácono cristáo e homem de categoria curiai em sua cidade nativa. Sequestrado por corsários irlandeses quando jovem e transformado cm escravo, o futuro missionário escapou depois de seis anos e chegou à Gália (raIvez apcís uma visita a sua casa na Grã-Bretanha). Pouco é conhecido de sua carreira nesse período, embora parece que eIe passou alg~imtempo como membro dafarnilin episcopal de Germano
de Arixerre. Em 43 1, o papa Celestino (422-432) enviou um certo Paládio para ser bispo para "os escoceses [i.e., irlandeses] que criam em Cristo", mas Paládio morreu dentro de um ano, e Patrício, agora ordenado bispo, foi enviado L Irlanda em seu lugar. Trabalhando no norte da ilha, em uma sociedade organizada de acordo com territórios tribais, Patricio parece ter conquistado conversas significantcs entre as realezas locais. Ele aparentemente estabeleceu bispados territoriais (mas sobre uma base tribal, uma vez que as "cidades" da sociedade galo-romana náo existiam na Irlanda) e estabeleceu sua própria sé em Armagh. Não há razão para duvidar de que Patrício inrroduziu alguma forma de vida asceta comunitária na Irlanda, mas foi somente após sua morte - e na realidade no
século seguinte - que as comunidades monásticas se tornaram os centros pastorais da igreja irlandesa. Este desenvolvimento pode ser datado de modo grosseiro a partir da fundacáo do mosteiro de Clo~iard,em Meath, por São Finiano (ca. 540), que foi rapidamente seguida por outras fundações tais como Bangor (uma palavra que significa simplesmente "mosteiro"), estabelecido no Ulster por Sáo Congall, e Moville, criaçáo do outro São Fjniano (m. 579). Os abades que governavam tais comunidades normalmente pertenciam às famílias reais de suas tribos e frequenrement.e também eram bispos. Dessa maneira, o episcopado territorial do império romano foi substituído por um episcopado monasticamente baseado, e essencialmente tribal. As comunidades monásticas se tornaram não apenas o foco da obra missionária e pasrorai mas tambtm centros de aprendizagem, das artes e da educacáo. De certa forma contemporâneo do florescimento do monasticismo irlandês, e possivelmenre mesmo uma fonte dele, houve um desenvolvimento paralelo do monasticismo em Gales.
A origem de tal movimento costumeiramerite é atribuída à obra de Santo Iltide (m. ca. 5 3 5 ) , o fundador do mosteiro posteriormente denominado Laniltide ("igreja de Iltide"), que pode ter estado localizado na ilha de Caldey. O sucessor de Iltide como ca. 560), fundador da abadia em líder do monasticismo galês foi São David (j. Menévia (presentemente de Sáo David) e o santo patrono de Gales. Mesmo antes desse crescimento do monasticismo irlandês e galês, entretanto, e na realidade durante os anos da missáo de Patrício à Irlanda, o cristianismo bretáo também se estendeu para o norte em direcáo à Escócia. O líder dessa missáo foi Sáo Niniano. Sobre ele, a Híjtória Eclesiá~ticade Beda, relata que ele era um bretáo nativo que havia sido instruido na fé em Roma. Ele era, como Patrício, bispo ( o que sugere
que já havia cristãos na área para a qual ele foi enviado). Niniano estabeleceu sua se2 em Whithorn (Candida Casa) e trabalhou no território ao norte da muralha de Adriano, onde sem dúvida havia tribos celtas parcialmente romanizadas e parcialmente cristianizadas.
A conversáo da Escócia propriamente dita, porém - ou seja, a área ao norte dos estuários do Llyde e d o Forth - foi obra de monásticos da Irlanda. Desde o seu inicio, o moriasticismo irlandês foi um movimento missionário expansivo. Nós já vimos (111:7) como, caminhando para o final do sexto século, Columbano, um rnonge da abadia de Bangor, em urna longa peregrii~ayáo,estabeleceu casas monásticas (que por sua vez se corliaram centros missionários) na Borgonlia, onde atualmente é a Suiça, e mesmo no norte da Itália. Semelhantemente, São Kiliano (m. ca. 689), de
ptiloeo i v
A IDADE MÉOIA E O ENCERAMENIO DA EONTRIIV~RSIADA INUESTIOURA
261
uma geração posterior, trabalhou na Francônia e Turíngia, estabelecendo a sé de Wurzburg. O primeiro e mais notável desses peregrinos inonásricos irlandeses, enIretanto, foi Columba (521-597). Um produco da abadia em Clonard e membro da família real dos O'Neill de Connaught, Columba esrabeleceu uma comunidade monástica na ilha de Iona, sob o patrocínio e proteçáo do rei de Dalríada (mais ou menos o atual Argyleshire), que era ele próprio, com seu povo, de origem irlandesa.
De Iona, Columba executou trabalho missionário entre os povos pictos da Caledônia, conquistando seus chefes para a nova fé e organizando a igreja lá nas mesmas bases monásiicas que ela possuía na Irlanda.
A obra missionária da comunidade de Iona continuou depois da morte de Columba, e no início do segundo terço do sétimo século ela foi estendida aos colonizadores anglo-saxóes pagáos do nordeste da Inglaterra. A oportunidade para esse desenvoivimenco foi a solicitação do rei Osvaldo da Bernícia (Nortúmbria), que durante sua juventude havia sido criado em exílio entre os escoceses e pictos da Caledônia cristá. Recuperando seu trono em 633, Osvaldo solicitou o auxílio de Iona para a cristianizaçáo de seu povo. A resposta foi a missáo de Santo Aidano (m.
651), que sob o patrocínio de Osvaldo estabeleceu um mosteiro na "Ilha Santa" de Lindisfarne (634),e dali, durante os reinados de Osvaldo (m. 641) e seu irmáo Oswy
(641-670), enraizou o cristianismo na Nortúmbria. Aidano também treinou um grupo de jovens para continuar sua obra, entre eles os irmãos Chad (m. 672),que por fim se tornou parte da missáo, iniciada em 654, ao reino de Mércia e esrabeleceu a sé de I,ichfield, e Cedd, que trabalhou entre os saxóes orientais, para os quais fora zonsagrado bispo em 654. Na época em que a missáo de Aidano e seus sucessores havia sido iniciada, uma missáo enviada pelo papa Gregório Magno já havia chegado no sudeste da Inglaterra 2
sc cstabelecido em Kent e Anglia Orienral. A iniciativa do papa foi calculada para
romar vantagem do casamento de Etelberto, rei de Kent e Bretwalda (rei supremo) Aos territcírios saxóes ao sul do Hu~ribcr,com uma princesa franca cristã, Berta. A xissáo originalmente consistiu de Agostinho, o prior do mosteiro de Santo A~ldré -m Roma, o próprio mosreiro de Gregório, e um pequeno grupo de monges. Che-
:ando em Kenc em 597, Agostinho - um missionário algo relutante, cujo zelo foi 2lantido cm grande parte por um fluxo de correspondência com o papa Gregório conseguiu converter Etelberto, que foi batizado na Páscoa de 601. De acordo com o ,'ano de Gregório, Agostinho deveria estabelecer uma sé metropolitana para si em
L62
HlSTOBlA DA IGREJA E R ~ X T Ã
Londres, com doze bispados sob sua jurisdiçáo. Ainda segundo o plano concebido pelo papa, Agostinho teria jurisdiqáo sobre as igrejas célticas do oeste e, conforme a oportunidade surgisse, estabeleceria uma segunda sé metropolitana em York (no reino de Deira) para o norte da Inglarerra. Estes planos entusiásticos do papa, contudo, náo foram tocalmente realizados. Agosrinho estabeleceu sua própria si náo em Londres mas em Cantuária, onde ele construiu uma igreja e, nas proximidades, um mosteiro. Em 604 ele já havia fundado bispados em Rochester (em Kent) e Londrcs (em Essex). Após sua morte (cm 604 ou 605), entretanto, e depois da morte do rci Etelberto ( G l G ) , uma reaçiáo pagã revelou a falta de profundidade das raízes que a igreja possuía fora de Kent. A missão enviada (625) sob Paulino para York e o reino
de Deira extinguiu-se em 632, quando Edwin de Deira foi morto em combare. Não foi senão até a segunda metade do sétimo século, portanto, e entáo em grande medi-
da por causa do ímpeto missionário oriundo de Ihdisfarne e de uma missáo papal independente para os saxóes ocidentais iniciada por um cei-to Birino (ca. 6351, que a Inglaterra foi conquistada substancialrnence para o cristianismo. Mesmo naquele rnomenro, contudo,
restava
um
problema significativo. Havia
permanente atrito entre os cristáos do norte e do oeste de tradicáo cdirica e irlandesa por um lado c, pelo outro, os novos cristáos saxóes do sul, cujas igrejas náo apenas
:
forani organizadas segundo o padrão continental sob bispos rerritoriais mas também
i
eram conscientemente Ieais a Roma e ao papado. Em parte, esse atrito tinha suas origens na lutri militar mais antiga, e muito Ionga, entre cristáos bretóes e invasores pagáos. Para os brecóes do Ocidente, náo era fácil co~iceberos anglos e saxóes, seus inimigos tradicionais, como companheiros cristáos. Mas o conflito também possuía raízes eclesiásticas. Bastance separados das questócs óbvias e definíveis, como uma diferença sobre a data da páscoa, o caráter e organiza550 peculiares do cristianismo célrico eram diferentes daquele da missáo romana. Felizmente para o futuro do cristianismo nas ilhas britânicas, esse atrito foi fonte de grande irritaçáo para o rei Oswy da Nortúrnbria. Correspondentemente, cle convocou uma conferência ou concílio pata resolver a questão para seu reino. O concílio reuniu-se em 664, em Whitby, no litoral do mar do Norte, onde recentemente (659) havia sido estabelecido sob a orientaçáo da nobre abadessa Sanra Hilda (m. 680) um magnífico mosreiro duplo, com casas para homens e casas para mulheres. Wilfrido, abade de Ripon e mais tarde bispo de York (ele próprio um produto da comunidade céltica em Lindisfarne), defendeu o caso pela lealdade a Roma, enquanto Colman, abade de Lindisfarne, advo-
. . .. .... .
-
--
PERIOIO IY
h IOABE MEDIA E 0 ENEERhMENTil DA CI1NIROYfRSIA DA INYESTIDUAA
263
gou a tradiçáo céltica. A questão foi resolvida quando o rei Oswy ouviu que o bispo de Roma era o sucessor e representante do apóstolo Pedro, a quem o próprio Senhor
havia dado as chaves do reino dos céus.' A decisão que resultou dessa descoberta eventualmente trouxe a totalidade da Inglaterra sob a obediência romana, e o cristianismo inglês eventualmente provou ser um aliado principal do papado tanto no estabelecimento como na reforma das igrejas no continente europeu.
O vigor e disciplina desse novo cristianismo célrico-inglês deveu muito à feliz circunsrância que, cm 668, o papa Vitalino indicou Teodoro (ca. 602-690), nativo deTarso, na Ásia Menor, como arcebispo de Cantuária - o primeiro ocupante daquela sé cuja autoridade era reconhecida por toda a Ingiarerra. Teodoro comecou sua incumbência conduzindo visitaçáo sistemática a todas as igrejas sob sua jurisdi~áo. Como resultado dessas viagens de inspecáo, ele se dispôs a reorganizar as dioceses mais antigas e a estabelecer novas dioceses. Ele presidiu o sínodo de Hertford (673), que promulgou leis básicas para o governo das igrejas e constituiu-as em um corpo nacional em uma época onde a soberania política ainda estava dividida. Foi sua política que encorajou a adoção da prática monástica céltica de confissão privada e absolviçáo, que, seguindo o cosrume irlandês, d e impôs sobre pessoas leigas náomonásticas como uma obrigaGáo anual. A capacidade pastoral e organizacional de Teodoro foi revelada acima de tudo no fato de que ele náo favoreceu nem os saxóes nem os celtas, mas reconciliou todos em um único corpo no
as duas rradiçóes se
complementavam e alimentavam uma à outra. O s frutos da decisáo do rei Osmy e da habilidade de Teodoro como governante logo se manifesraram na vida das igrejas inglesas. Elas tinham uma reputaçáo de Iealdade à sé dc Roma e aos padróes que estabeleceram para doutrina e disciplina: um fato atestado pela freqüência de peregrinos anglo-saxóes aos santuários dos apóstolos Pedro e Paulo em Roma, como também pela introduqáo da Regra de São Bento na vida monástica inglesa na época de Teodoro e seus sucessores imediatos. Ao mesmo tempo, o amor pelo estudo que havia caracterizado a tradiçáo irlandesa foi preservado e desenvolvido em uma série de escolas monásticas, das quais talvez a mais brilhante tenha sido a do mosteiro conjunto de Wearmouth elarrow naNortúmbria.
Lá Beda, o Venerável (672-735),estudou e escreveu nos campos da cronologia, grarnstica, exegese bíblica e história. Lembrado acima de tudo por sua História Ecleszás-
ticn dn Naido Iiiglcsa, ele e seus contemporiIneor provocaram um pcqucno
renascimenro de erudi~áoque iria, no final, produzir frurus no ienaçimenro carolingio do século nove no continente.
Capítulo 2
O Cristiaiiismo e o Reino Franco A conversáo de Clóvis ao cristianismo católico em 496 (ver ITI:5) foi um evento decisivo tanto para o futuro reiigioso como político da Europa continental. Sob a lideranca de Clóvis e de seus filhos, os francos conquisraram os antigos terri~órios romanos na Gália c na Aiemanha e criaram o que veio a ser chamado de repuin
F~a!ncorum("rcino dos francos"). Deslocando-se de suas cerras originais entre os rios Reno e Somme, eles primeiramente invadiram e ocuparam a regiáo anreriormente governada pelo dtcc romano Siágrio, aproximadamente a área entre o Somme e o Loire. Depois Clóvis liderou seus seguidores contra os alamanos, cujo reino abarcava o sul e o oeste do Rcno. Finalmente, ele atravessou o Loire na Aquitânia, onde, em Vouillé (Vogladensis) em 507, derrotou os visigodos e assumiu o controle do sudoeste da Gáiia art a linha dos Pirineus. O s sucessores imediatos de Clóvis continuaram a expansão da hegemonia franca. Eles incorporaram a Turingia aos seus territórios e eventualmente, após 532, o reino da Burgúndia, que controlava o vale do Ródano e o oesce da Suiça. Na metade do sexto século, entáo, a dinastia franca ou "merovíngia" dominava a totalidade do que havia sido território romano na Gália e Alemanha. Este domínio era frequentemente dividido entre diversos reis, pois o costume franco ditava que a propriedade d o pai fosse dividida entre todos os seus filhos vivos. Parcialmer-ite em conscquência desse fato, surgiram divisões regionais dentro do império, que tinhain caráter quase político, quase étnico. A primeira destas, Austrásia, englobava a pátria franca ao redor do baixo Reno e cambém a Turíngia e os antigos territórios dos alamanos. A segunda, chamada Nêuscria, tinha seu centro em Paris, onde Clóvis havia feito sua capital, e se estendia ao sul até o Loire e ao norte até o Somme. D e
1 I
importância central menor na histbria política dos francos esravam as regiões meridionais da Aquitânia e Rurgúndia. Apesar destas divisões, entretanto, o reino franco era entendido como sendo um único patrimônio, e de fato, nos últimos anos de Lotaro I (m. 56lj, filho de Clóvis, e durante grande parte do reinado de Dagoberto
1 (623-639), ele teve um único soberano.
Os habitanres galo-romaiios desras áreas náo ficaram descontentes com seus novos conquistadores. Como eles mesmos eram católicos, ficaram felizes em Ter um soberario católico; e de qualquer modo, os imperadores romanos em Coiistanti~io~la deram aos líderes francos reconhecimenro, assistência financeira ocasional c, no caso do próprio Clbvis, o tírulo, ca~egoriae insígnia de cbnsul. Este gesro náo foi um mero símbolo. Clóvis e seus sucessores assumiram o que restava da a d m i n i ~ t r a ~ á o financeira e civil romana na Gália. O r e p z m Fi-dncorum era, e em cerro sentido permaneceu, o representante formal da autoridade e tradição romana. Os francos, adeniais, diferrntemence de seus predecessores, os
náo se mantiveram como
uma casta governante separada, mas se misturaram e se casaram com os povos que eles conquistaram, criando assim o f~ndamenrode iima c~ilr~ira misra para a qnal o latirri vulgar permaneceu, na maioria das antigas províncias roirianas, a língua comum. Eni sua próliria maneira, também, eles fomenraram a disseminação do cristi-
anismo. Valendo-se iiiiciaimence da vitalidade e da liderança cicrical das igrejas gaioromanas n o sul e no ocsre de seus rerrirários, eles apoiaram miss6cs para aquelas áreas do norre e do Icstc onde o paganismo persistia e onde igrejas cristás previamcnrr estabelecidas rinllam sido expulsas ou grandenirnte enfraquecidas pelas rnigracóes
Dárbaras. EIes encorajaram ainda mais o movimento mondsrico, o qual - talvez espe:ialmenre depois da missáo de Culumbano (ver III:7) - rendeu a se rnrnar, como
>;i\.ia sido na Grá-Bretanha, o principal veículo para a disserninacáo do cristianismo. Isto não quer dizer, entreranto, que igreja e soçiedaclc 1130 continuaran, nesse
ri'ino merovíngio, a mostrar sinais de declínio e mesmo desintegracão. A decadência i3S
cidades antigas, como também do çoinércio e da cornunica~áo,coririnuou crn
?asso acelerado. 0 s cencros dc vida verdadeiros tornaram-se propriedadcs rurais rizendas que reiitavani ser, e na prcírics eram, auto-suficienres no que se refere às xccessidades da vida cotidiana. Governadas direta ou indiretamente por um senhor GJS
poderia ser algum magnata ou o próprio rei, tais fazendas proporcionavanl scgu-
:inça tanto para o proprietário como para seus ç ~ r \ ~ ou o s locatários. Ao mesmo temi':).
esse sisteniti senhoria1 encorajava a desccnrrali~a~áo de autaridade e garantia que
HISTORIII DA IGREJA CRISTi
266
poder, assim como riqueza, acompanhariam a posse da terra, uma vez que era a fazenda que produzia nLo apenas ayimento e vestimenta mas também os homens e equipamentos necessários para a guerra quase permanente que marcou a sociedade franca.
Ià1 descentralizaçáo foi encorajada ainda mais pelo fato de que os francos, como todos os povos germânicos, não concebiam o estado como algo que, em suas leis e estruturas, durava independeiiternente de pessoas individuais. Para eles, a ordem política era uma questáo de lealdade pessoal de guerreiros para com seu líder; uma lealdade que tradicionalmente dependia da habilidade do rei para recompensar seus seguidores com os espólios de guerras vitoriosas. Essa comprcensáo da natureza dos laqos políticos teve aigumas conseqiiências no reino merovíngio. Primeiramente, isto significava que os recursos econômicos do "estado" eram identificados como propriedade pessoal ou riqueza do rei - uma situagáo na qual a própria nocão de propriedade "pública", c portanto de taxacáo, era totalmente inconcebível. Isso também significou, portanto, que para assegurar lealdade, os reis merovíngios - uma vez que as oportunidades para novas conquistas se exauriram - tiveram que "beneficiar" seus seguidores com E~zendasde seu domínio real. Esta prática teve o efeito inevitável de enfraquecer o monarca, ainda que tais benefícios fossem tecnicamente garantidos apenas durante o tempo de vida do recipiente. Em tal sociedade - violenta, descentralizada, insegura - as estruturas e maneiras da igreja estavam destinadas a ser afetadas de alguma forma. Um dos desenvolvimentos mais importante, talvez, e conectado com o surgimento do sistema senhorial, foi o aparecimento rnuiro mais frequente de igrejas "proprietárias": i.e., edifícios eclesiásticos construídos ein uma fazenda às custas privadas de um senhor e sustentados por ele com uma dotaçáo para os servicos de um sacerdote. Nesse desenvolvimento, podem ser viscos os inícios d o sistcma paroquial posterior, assim como de muitos debates posteriores sobre o conrrole laico de i n d i ~ a ~ ó clericais. es Os bispos do novo reino continuaram seu hábito antigo de se reunir em concílio para regulamentarem assuntos comuns, embora cais concílios náo testemunhem nem freqüência nem regularidade. Os bispos reagiram a questóes externas como a luta sobre osTrês Capítulos (ver 111:10) e a controvérsia monotelita (ver III: 1I). Crescentemente, porém, as igrejas francas parecem ter-se tornado isoladas, até mesmo da liderança do p p a d o , embora o respeito aos sucessores de Pedro e a prática da peregrinaçáo às tumbas dos apósrolos em Roma náo tenham acabado de forma alguma.
Nos assuntos do reino franco em si, entreranto, a igreja desempenhou um papel cencral e essencial. Para os reis, magnatas, e campesinato igualmente, a proteçáo e ajuda de Deus e dos sancos eram essenciais para a ordem e a jusriqa em um mundo desordenado. O bispo cristão, ademais., ocupava um lugar especial. Defendendo simultaneamente as tradi5óes da ordem romana antiga e as propensóes singulares do
Deus cristáo por jusriya e misericórdia, o bispo era aiternarivarnence magnata político, homem santo, e profeta. Alfabetizaçâo e erndiqáo estavam em grande medida confhados ao clero, pois eram apenas nas casas monásticas, e nos lares episcopais onde os jovens eram educados para o servico como clérigos, que exís~iaqualquer coisa sernelllante a escolas. Progressivamente, portantci, as igrejas e comunidades monásticas eram recompensadas com concessáo de terras pelos ser\'$os inconresrá-
veis que presravam. Isto significou, todavia, conforme o Tempo passava, que os bispos dispunham de recursos que poderiam ser de grande uso para os reis merovingios. Estes, em decorrência, deixaram de lado o anrigo costume da elciçáo dos bispos pelo povo e pelo clero e assumiram para si o direito da iiidicaçáo de bispos, urilizando esse direito, na reaIidade, como uma marieira de conferir benefícios para servidores Ieais. Com frequ2ncia, um govcrnante iria além e permitiria que uma sé permanecesse vaga enquailto ele se apropriava dos I-endimentos dela. Tais práticas - uma expressso natiiral senão inevitável da época - foram uma fonte de pavor para sucessivos papas; mas do tempo de Gregório Magno em diante, os bispos de Roma náo eiveram suces50
em seus esfor<;ospara rrazer a casa merovíngia para uma melhor disposiçáo de
n-ienre. Por fim, a rebrma e renascimento da igreja franca aconteceu apenas por meio da subsr-ituiçáo da dinastia merovíngia. Isto ocorreu gradualmente por um período le-
:.emente superior a um século depois da morte de Dagoberto 1 (639). Depois de sua +oca, a d e g ~ n e r a ~ ãda o linhagem merovíngia c a elevacáo ao poder na Nêusrria, iiistrásia e Burgúndia dos assim chamados "prefeitos do palácio" (i.e., os principais -.~nsellieirasc miriistros do rei) leval-arli evrntualiriente a unia nova siruaçáo política.
Ji prefeitos
austrasianos, descende~iresdo bispo Arnulfo de Metz (m. 641) e de
3 s ~ i n ode Landen (m. 633), triunfaram sobre seus rivais e, nas pessoas de Pepino II :-i
Herisral (m. 715) e seu filho ilegitimo, Carlos (cognominado "Martelo"), gover-
~--iran-i o reino franco através de uma série de obscuros reis merovíngios. Tanto Pepiir
;amo Carlos, conio n s reis em cujos nomes eles governavam, foram cristãos fiéis
:: csrilo de sua época, dotando igrejas e mas~eiros.A grande preocupação deles,
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ISTURIA UI IGREJA CRISTÃ
entretanto, foi a reunificaçáo de seu domínio e a defesa de suas fronreiras, que esravam ameaçadas do norte e do Leste por tribos germânicas pagás e, nos dias de CarIos, por saqueadores árabes e berbcres da Espanha, onde o reino visigodo havia sido finalmenre derrotado pelas forças do Islã. Nestes empreendimentos eles foram, em grande medida, bem sucedidos. Carlos em particular tornou-se famoso na história e na lenda da mesma forma por sua vitória perto de Poitiers sobre os sarracenos (732) - uma vicdria que náo meramente preservou o reirio fi-anca mas também assegurou o
futuro daquilo que logo seria chamado Europa, para o que o domínio franco forneceu o fundartierito. Estas preoçupac;Ues milicarcs, etitretanto, colocaram a casa de Arnolfo em seus primeiros dias em uma rejacão arnbigua para com a igreja. Por um Iado, Pepino e, em uma medida muito maior, Carlos regularmente, confiscavam propriedades eclesjásticas para financiar suas guerras. E.sra polírica foi virtualmente imposta sobre eles pela erosáo do domínio real nierovíngio devido i s doaqóes c bene-
fícios. Por outro lado, como parre de seus esforqos pata a pacificaçáo dc suas fronteiras, ambos os líderes encorajaram e apoiaram empreendimentos missionários ingleses em suas fronteiras setenrrional c oriental - empreendimentos que os mantiveram em ínrima relação com o papado, com conseqüências significativas para o futuro.
Assim, Pepino TI, e Carlos depois dele, apoiaram os labores evangtilísticos de SZo Willibrordo (658-739), um monge i n g k educado em Ripon e na Irlanda, que em
690, com doze associados, iniciou sua obra entre os Erísios onde é hoje a Holanda. Ordrnado bispo cm 695 pelo papa Sérgio I, Willibrordo esraheleceu a sé de Utrecht, embora teilha sido somenrc quando da conquista franca dos vizinhos saxóes nas Gltimas décadas do oitavo século, que os frísios foram finalmenre convertidos. A obra de WiIiibrordo foi conrinuada por uni dos mais notáveis homens dessa era: VE')~tifrith, ou, como ele passou a ser chamado, Bonifácio (680-754). Nascido ein Crediton, Devonshire, esse monge foi para a Frísia em 716, onde trabalhou na missáo de %'illibrordo. Deseniiorajado par sua hlta de sucesso, ele retornou à Inglaterra mas foi para Roma em 718. Lá o papa Gregório 11comissionou-o como missionário a Alemanha, e ele assumiu o nome de Bonifácio, mártir romano. Seu sucesso na
Turíngia e Hesse foi tamanho que em 722 ele foi convacado de volta a Roma, onde fez uin voto ao apóstolo Pedro e foi ordenado bispo para a Alemanha. Durante os dez anos seguinrrs, com o apoio direro de CarJos Martelo, a rnjssáo de Bonifácio desfrutou sucesso ainda maior em Hesse e na Fríngia. Eventualmente, ele estabeleceu bispados para as igrejas náo apenas de Hesse e da liiríngia inas também d;
PERIODU IY
A IDADE M i D I I I E O EBCERAMFNID DA CORIROUERSIA DA INVESIIDURA
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Baviera, introduzindo a regra beneditina para os monges e estabelecendo, sob a autoridade papal, sua própria sé arquiepiscopal em Mainz (ca. 747). Em 744, ele auxiLiou seu discípulo, Sturm, lia fundação d o grande centro monástico de Fulda, que recebeu doaçáo de terras de Carlomano, filho de Carlos Marrelo, e tornou-se u m centro de e r u d i ~ á oe de educação sacerdotal para o cenrro-oeste da Alemanha. Em todos esses empreendimentos, Bonifácio agiu, n o espírito d o novo cristianismo inglês, como servidor d o bispo romano e importou para o mundo franco idéias romanas de ordem e disciplina ec!esiási.ica. Pouco depois de 747, Bonifácio abdicou de sua se em Mainz e retornou para a Frísia como missionário, e lá, após alguns anos dc labor, foi martirizado. Esta obra rnissionária náo traduz a rotalidade das contribuiÇ6es de Bonifácio ao cristianisino d o mundo fraiico. Em 741, Carlos h4arrelo morreu. Sua autoridade como
d o palácio foi herdada, seguindo a t r a d i ~ á ofranca, por seus dois fi-
lhos, o mais velho, Carlomano
(741-747) da Austrásia, e o mais jovem, Pepino 111
(741-768) da Neusrria. Desde o início d o govertio deles, ambos os irmáos aproximaram-se mais de Bonifácio e, através dele, d o papado. O espírito no qual eles lidaram com os assuntos cclesiásticos está refletido no cânonc número rim de um sínodo convocacio por Carlomano em 742 (conhecido c01110 o Coriciliuwí gerermatzicurn): Pelo conselho de meu clero e de grandes homens, cu [i.e., Carlomano] rcnho fornecido o sustento para bispos nas cidades e tenho colocado sobre eles Bonifácio, como arcebispo - ele qilc é o enuiado de Sáo Pedro. E tcnho orderiado a convocaqáo anual de uni concílio no qual, na minha presenca, possani ser restaurados os decreros canônicos c as leis da igreja e a religião cristã retificada. Ademais, reriho restaurado t. devolvida às igrejas rendirnen~oscoinados delas incievidaniciire; e tenho removido, degredado c forcado penitência sobre falsos sacerdotes e diáconos c clérigos iidúlrrros. ' E111 rima série de tais sínodos, realizados sob a liderança de Bonifácio, a mundanidade de muicos clérigos foi repreendida, bispos perambulantes foram ceiisurados, o celibato sacerdotal foi defendido, e, rio geral, foi imposta uma disciplina clerical mais estrita. Assiin, através da coopera~áoentre o inglês Bonifiicio e os filhos
de Carlos Martelo, a igreja franca foi trazida a uma aliança moral com o papado - e, de fato, os bispos francos, reunidos em sfilodo em 747, explicitamente reconheceram a jurisdifáo d o bispo romano sobrc seus assuntos. Dessa maneira, foi payimenJ . hl. 1VaIlace-Hadrill, Tbe 13itrbiz~ianM,sr, 400-IOOO (Londres, 1952). pp. 35-96 (Ieverni'nw alccradn).
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HISTDRIA DA IGREJA CRISTA
tado o caminho para uma aliança do reino franco com a autoridade papa! que transcendeu em muito o nível da preocupaqáo comum com a reforma da igreja.
Capítulo 3
Oriente e Ocidente na Controvérsia Iconoclasta O governo de Carlos Martelo e Pepino 111, rio reino franco - e portanto também a carreira de São Bonifácio - foi praticait-iente contempor9neo com os reinados do
~ r n ~ e r a d oLeão r i11 (717-740) e seu filho Conscantino V (741-775) no O~ieiite. ApGs o quase col~psodo império romano-bizaiitino no sétimo século sob o ataque furioso do Isiá, esses fundadores da dinastia isáuria restauraram as fronteiras de seus domínios e suas fortunds. Repelindo as for5as do callfa Ornar I1 (71 7-720) dos próprios portóes de Constantinopla, Leáo e seu filho depois dele rnfirniaram o controle romano da Ásia Menor. Ao mesmo tempo, eles instituíram e impuseram uma politica religiosa que demandava a aboliGáoda veneraciIo de icones - retratos pintados ou entalhados de Cristo, da Virgem Maria, dos anjos e dos santos. O s conflitos teológicos e políticos, intensos e extensos, que essa política ocasionou riveram coiisequênci-
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as duradouras para avida das igrejas tanto no Oriente como no Ocidente. No Orieiite, eles resultaram náo apenas em unia restauracáo das imagens, mas também no consenso teológico que via na vcneraqáo dos ícones uma afirma~áoda doutrina calcedoniana da completa c disrinra natureza humana de Cristo. N o Ocidente, a disputa entre os imperadores iconoclastas e os sucessivos bispos de Roma levou a uma ruprura política fina! entre o papado e o império, e assim a uma nova alianca dos papas com os herdeiros de Carlos Martelo e a um passo crucial na crescenre separação entre as igrejas latina e grega. Foi no ano 726 que Leão I11 - cujos motivos, embora náo seus compromissos, permanecem um rema de debate - tornou sua oposiçáo aos ícones conhecida publicamente e notificou os líderes eclesiásticos de sua política. Ele prosseguiu com essa açáo, com o gesto simbólico de destruir uma imagem de Cristo que havia estado sobre uma das encradas do palácio imperial de Constantinopla. Tais atos náo apenas
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A IDADE MEDIA E O ENCERAMENTO DA COFITROYÉRSIA DA INYESIIOURI
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provocaram distúrbios na capital mas também despertaram a condenação do patriarca Germano de Constantinopla, para não mencionar uma reaçáo hostil e algumas vczcs violenta entre a populaçáo do império e, acima de tudo, dos monges. Sem abrandar sua política em nenhum momento, e fortalecido devido ao apoio enrusiásrico de suas tropas, Leáo prosseguiu em 730 convocando um concílio que reiterou a proibição de imagens sagradas e result-ou na deposicáo e exílio de Germano e sua suhstituiçáo por Aiiastásio, um patriarca mais complacente. Na Itália, a oposiçáo às açóes de Leáo foi igualmente forte, porém o imperador era menos poderoso. Certamente, pedacos significativos do território italiano ainda eram governados pelas autoridades bizantinas. No sul, havia a Sicília e a Calábria. No norte, o império controlava uma faixa de território alcançando o sul e o oeste de Ravena (a sede do exarca imperial) no Adriático até a região ao redor de Roma (o assim chamado "patrimônio de Pedro"), que estava sob o comando militar de um dux romano. Tanto ao norte como ao sul, entretanto, essa faixa escava sitiada por
estados lombardos. Em cais circunstâncias, os imperadores orientais, cujo poderio militar estava necessariamente concentrado na Ásia Menor, faziam tudo o que podiam para manter suas possessóes italianas. Ademais, era no bispo romano, e náo nos governadores algo ineficazes enviados de Constantinopla a Ravena, que o povo da Itália via o verdadeiro representante da tradiqão romana. Quando, portanto, o patrocinador de São Bonifácio, o papa Gregório I1 (715-731), resistiu e condenou a política iconoclasra do imperador
-
canto mediante o fundamento de que ela excedia a
autoridade de um govcrnante leigo como sob a alegação de que o iconoclasmo representava na verdade uma negação da realidade da encarnaçáo - Leáo foi incapaz de se livrar do papa, como tinha feito com o patriarca Gerrnano. As tentativas para subsrituir e mesmo assassinar Gregório foram frustradas por causa do apoio náo apenas do povo comum de Roma e Ravena mas também dos exércitos bizantinos e até mesmo dos duques lombardos de Spoleto e Beneventum. Outra voz crítica que Leáo não conseguia silenciar vinha do próprio coração do império islâmico. Esta era a voz de Joáo de Damasco (ca. 675-ca. 749),que quando jovem herdara de seu pai cristáo uma alta posição no serviço civil dos califas. Compelido subseqüentemente a desistir de seu cargo, Joáo passou a maior parte de sua vida adulta como monge do mosteiro de Sáo Sabas, nos arredores de Jerusalém. Ali
ele eventualmente escreveu a grande obra tripartite, A Fonte do Conhecimento, cuja última divisão, intitulada "Sobre a Fé Ortodoxa", é uma apresentaçáo geral e siste-
mática da crenca cristá sobre Deus e a 'Trindade, a criação, c a cncarnacáo. Nesta obra, ele se vale da totalidade da rradiçáo grega, mas especialmente dos pais capadócios, d o pseudo-Dionísio o areopagita (ver III:10), e, para sua cristologia, do neocalcedonianismo de Leôncio de JerusalCm (ver 111:10). Joáo influenciou a teologia escolástica ocidental 2travcí.s de uma traduçáo latina medieval de sua principal obra. Etii 1890 o papa Leáo XIII declarou-o "Doutor da Igreja." Ademais, os teólogos ortodoxos orientais tem apelado regularmente à sua autoridade. Sua contribuição à controv6rsia iconoclasta foi feita nos anos de 726-730 em uma série de discursos que respondiam à acusaçáo de idolarria em diversas áreas. Em primeiro lugar, João insistiu em que deve ser feita uma distinçáo entre a veneraqáo (proskunesis) oferecida h imagens e a adoraçáo (latreiii) que t oferecida propriame~itea Deus, unicamente. Ao mesmo tempo, ele defendeu que um ícone náo pretende ser um equivalente, e portanto um substituto, para aquilo que retrata, mas é unia semelhança que eleva a mente para seu original. Tanto elc como - em um estágio posterior da controvirsia o reformador monástico Tcodoro de Studios (759-826) identificaram a quest-áofundamental na controvérsia iconoclasta como sendo cristológica. Se a humanidade de Cristo, que em princípio pode ser retrarada, é real, concreta, e histórica; e se, ao mesmo tempo, ela é verdadeiramente uma com a hipóstase do 1,ogos divino, entáo a veneraçáo de uma imagem de Cristo é análoga à veneraçáo dos evai~gell~os, que "retratam" Cristo ein palavras. Tanto o ícone como o evangelho sáo eesremunhos do ingresso do divino no niundo da natureza e da história, e ambos sáo meios de acesso a Deus.
No reinado de Constantino V, sucessor de Lcáo, a política iconoclasta tomou a forma de uma tentativa sistemática de destruir imageris e uma pcrseguiçáo sistemática daqueles - os monges em particular, mas rambém amplos setores da populacáo em geral - que apoiax-am sua veneraçáo. Em 754, Constantino reuniu um concílio que náo apenas reafirinou a condenaçáo cie Leáo das obras dos pintores, mas também rorriou aqueles quc violavam esse decreto sujeitos i puniçao sob as leis do estado. E i ~ i conforniidade corii esse decreto, os ícones nas igrejas foram desfigurados, repintados c substituídos com retratos de temas tiáo sacros. O destino de muitos cultuaíiores de imagens foi a prisáo, a tortura e o exílio. Estas medidas foram acompanhadas por críticas severas aos monges, que eram ridicularizados e em aiauns casos forcados a se casarem contra sua vontade, como tainbém com aqóes contra os mosteirns, que eram frequentemente desapropriados e dispostos para o uso secular e suas propriedades
confiscadas. Houve em consequéncia uma grande ernigraçáo de refugiados monásricos dos territórios controlados pelo império no Oriente, muitos dos quais foram
para o sul da Itália. Foi somente no reinado da imperatriz Irene que a mari se voltou contra o iconoclasrno. Irene primeiramente governou como regente de seu filho Consiantino
VI (780-797) e depois como única soberana (737-8021, após destituí-10, cegá-la e matá-lo. Burlando a oposi$io do exército, que havia sempre favorecido a política de Leáo 111, Irerie reuriiu um concílio trn Nicéia em 787, para o qual foram convidados representanres do papa Adriano 1 (772-795). Esre concílio, o sétimo e ÚIrirna dos cornumence denominados "ecum&%m", restaurou a veneraçáo de imagens c negou que os ícones eram ídolos ou que os freis os adoravam como a Deus. Ele tambem decrerou a restituicão das rerras c edifícios monásticos quê haviam sido expropriados sob as políticas de Constantino V. No início do século no110, entretanto, sob o imperador LeZu V (5 13-S20), as políticas iconociastas foram reacendidas. Um concílio realizado em Santa Sofia em Constanrinopla (8 15) reiterou a postura do concílio de
754 promovido por Constantino V, e a repressáo ao culto de imagens continuou pelos reinados de &ligue1 11 (820-829) e Eófilo (829-842). A imperatriz Teodora, reinando durante a nienoridade de seu filho X4iguelIlI (842-867),conduziu o movimento icorioclasra a um résmino em 843, quai~doconvocou um sínodo para reviver os c3nones do concílio de Nicéia e restaurar a rTener;iqáode ícones. A interpretação dessa "controvérsia iconoclasta" rem sido ocasião de muito debare entre os historiadores, em parte porque muitas das fontes originais para sua biçiória foram suprimidas na época. Qtunto à iinpordiicia de seus efeitos pode haver poiica dúvida; a questáo, cntretanro, do significado e motiva~áodo movimento
icorioclasta na vida das igrejas orientais C mais dificil. Náo pode haver nenhuma
dí'vida de que a veneraqáo de retratos sagrados havia-se rornado uma parte vital c ~urriclueirada piedade crisrz duranre e após o quarto sPculo. Nem há qualquer dúvii a dç que a prática havia regularmente encnntrado oposiçso de muit-os pensadores e ::ilc.rts cristáos proeminentes, e ia1 oposiçáo ha~ciapersistido em cercas áreas do Orir,[?, ondc muitos percebiam essa prárica como uma reversão ao pasanismo. O .cL>noclssmo,portanto, tinha raízes tia rradiqáo criscá e pode ser enrendido, pelo :?-os ds uin ponto de vista, como uma reaqáo religiosamente motivada a uma di piedade popular dominante. Os hisroriadorcs têm ressaltado, ademais, que --' -,, - . - . A
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1.:; .\:;.rior do qual os imperadores isáurios - e o grosso de seus exércitos
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HISTÓRIA DA IGREJA CRISTI
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- eram provenientes, eram áreas onde atitudes iconoclastas podem ter sido esrimula-
das pela presença de judeus e muculmanos, para quem a veneraçáo de imagens era simples idolatria. Infelizmente, quase náo há dados para apoiar esta hipótese, ainda que ela seja piausível. Pode ser, também, que o movimento tenha sido influenciado por correntes de pensamento gnósticas ou maniqueístas; os icoi~oclastasparecem às vezes ter estado à beira de uma espécie de dualismo, opondo "adoraçao em espírito e em verdade" ao uso de representações materiais de Crisco e dos santos. Os monofisitas, também, evidentemente tendiam para o ponto de vista iconoclasta, uma vez que para eles qualquer retrato de Cristo era na realidade uma rentativa, simultaneamente impossível e idólatra, de retrarar a segunda pessoa da Trindade. Tais atitudes e motivaçóes religiosas, entretanto, têm sido rninimizadas por alguns inrérpretes das políticas iconoclastas dos imperadores isáurios. Muitos eruditos têm visto no iconoclasmo uma atitude política disfarçada. Como evidência para esse ponto de visca, eles apontam para o faro de que as principais vítimas do iconoclasmo eram as institui~óesmonásticas, cujo número, tamanho e indeperidência faziam delas um fardo na vida do estado e um obstáculo para a autoridade imperial absolura. Ao mesmo tempo, é evidente que os iconoclastas defendiam uma visão do papel do imperador em uma sociedade cristã que fazia deie a autoridade religiosa suprema, e um elemento na polêmica dos defensores de imagens era um protesro contra a ii~terferência indevida do imperador em assuntos que deveriam ficar reservados aos líderes eclesiásticos. Certamente, esse era um elemento proeminente na atitude do papa Gregório 11, para quem o iconoclasmo, como temos visto, represenrava um duplo
mal: uma nega~áoteológica do ingresso de Deus na ordem natural e histórica, e uma falsa percepgo da autoridade do chefe-de-estado em questões religiosas.
Capítulo 4 -~
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Os Francos e o Papado A oposifáo de Gregório II às políticas iconoclastas de Leão 111 e Constaritino V foi concinuada por seus sucessores na sé romana, com conseqüências que dificilmenre alguém poderia prever. Foi o destino de Gregório 111 (731-741), em um concílio
reunido em Roma apenas oito meses após sua asce~isão,proclamar a excomunh,Lo de qualquer que profanasse imagens sagradas. Esta atitude, uma reaçáo ao concílio de
730
por Leáo 111, produziu uma resposta imperial imediata. O impera-
dor confiscou as propriedades da igreja romana no sul da Itália e na Sicília e removeu da jurisdição eclesiástica papal as igrejas daquelas regiões, como também dos Bálcás. Contudo, ele não poderia ir, e não foi, além disso. Náo foi feira nenhuma tentativa para impor políticas iconoclastas sobre a própria igreja de Roma, presumivelmente porque Leáo tinha sido convencido por eventos anteriores que ele náo poderia impor sua vontade conrra os papas nos territórios bizantinos na Itália central. Assim, as regióes de Rairená, a Pentápolis, e Roma foram deixadas ria prática a seus próprios dispositivos, embora os papas concinuassern, até 772, a reconhecer formalmente a soberania dos imperadores orientais.
A independência desses territórios, entreranto, era esseilcial para o papado. Somente se garanrissem sua integridade os bispos de R o m poderiam evirar a possibilidade de trocar a dominação do imperador em Constancinopla pela dos reis lombardos
739, aprís alguns anos jogando com o balanço de poder entre os duques lombardos ao sul e o reino lonibardo ao norte, Gregório I11 buscou o auxílio de CarIos hlartelo contra seus inimigos. Ademais, por v o l r ~da em Pavia. Coilseqtienremence, em
rnetade do século, o secretariado papal produziu uma das mais influenres falsifica-
çórs na história: a assim chamada Doaç2o de Cunstmtino. Este docuinento, utilizando a lenda bem conhecida de que o papa Silvescre havia curado o imperador Conscantino de lepra,' pretendia ser uma carta de agradecimento do próprio imperador. Ele atribuía aos bispos de Roma jurisdição sobre os quacro patriarcados de Antioquia, Aícxandria, Consrantinopla e Jerusalém e - ainda mais do que isso - decretava que "a sagrada Sé do bem-avenrurado Pedro deve ser gloriosamente exaltada sobre todo o nosso império e trono terreno."' De interesse mais específico, alegavase que Constantino havia Icgado aos papas "todas as províncias, palácios e distritos da cidade dc Roma e da Itália e das regióes do Ocidente."' Em outras palavras, esse documento (cujo coiiteúdo não fazia mais d o que declarar o que a corte -papal da
época honestamente acreditava ser verdade) não apenas reiterava a reivindicação pa-
pal tradicional a uma autoridade universai na igreja e a crenGa p p a l tradicional de \ i r Gregório deTours, Histúrzu do^ Praizcos 2.3 1, para uma alusáo à est<íria. H . Betcenson, cd., Dor.umel~iord4Ignja C:rjsiá, 3* cd. (Sáo Paulo, 1998), p. 171 Ibid., p. 172.
HIS16AIA OA IGREJA CRlSTÃ
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que a autoridade do sacerdote é superior àquela dos governantes seculares, mas cambérn lidava com a qucstáo particular e corrente do direito dos papas de governar e dispor de Roma e de outros territórios bizantinos na Itália.
O apelo de Gregório I11 a Carlos Martelo náo foi bem sucedido, mas nos dias de Pepino I11 a siruac;iio havia-se modificado significativamente, e Pepino tinha tanto a ganhar de uma aliança com os papas quanto estes tinham a ganhar de sua protegáo contra os lombardos. Em 743, ele e seu irmão Carlomano, para legirimarem seus governos como prefeitos d o palácio, haviam elevado o último dos merovíngios, Childerico 111, ao trono de seus antepassados. Quatro anos mais tarde, entretanto, Carlomano voluntariamente retirou-se de seu ofício para se tornar (em 750) monge em Monte Cassino na Itália. Assim, Pepino ficou o único soberano efetivo do reino franco e buscou desfrutar do título real bem como da substância do poder. Para depor o último da linhagem merovíngia, entretanto, ele necessitava da poderosa sangáo do papado. Ele portanro apelou para o papa Zacariaç (741-752),que deu pronto consentimento a deposiçáo de Childerico e à coroacáo de Pepino como rei dos francos. A coroagáo ocorreu em 751 em Soissoils e foi conduzida pelo príiprio São Bonifácio, que ungiu Pcpino para sua nova vocaçáo e assim concedeu satiçáo divina i mudança de govcrnantes. Cerca de três anos mais tarde, em 754, quando os lombardos, que sob o rei Astolfo (743-756)já haviam ocupado os terriiórios bizantinos ao redor dc Ravena, estavam pressionarido a própria Roma, o papa Estêvão (752-
757) viajou para a Franqa, onde coroou e ungiu novamente Pepino e seus filhos na igreja de São Dioiiísio em Paris. Pepino saudou o papa a pé c conduziu seu cavalo, enquanto Estêvko conferiu ao rei franco o tírulo de "Patrício dos Romanos" - tudo isso indica que Pepino tinha sido informado, e pelo menos aceito em algurri sentido vago,
3
doutrina da Dodçáo de C,ònstantino. Estêváo carnbdm conseguiu de Pepino
um pacto para a protc~áodo papado na possessáo dos territórios bizantinos na Itália central, e na realidade ele deixou evidente que ao ungir o novo rei franco ele o havia
constituído, e a seus sucessores, como guardiáes dos direitos d o apóstolo Pedro. Correspondentemerite, em 754 ou 755, Pepino conduziu seu exército à Itália e forçou A~tolfoa devolver suas conquistas ao papa. Assim começou a história dos "Estados da Igreja" - aquela soberania tcmporal do papado que iria durar até 1870 e então ser renovada, embora em uma escala bem menor, pela criaçáo do estado da Cidadc do Vaticano. Essa ttansagáo sem dúvida pareceu inteiramente normal e natural na época. Ela
PEAIOIO IY
A IDADE MEDIA E O EICERAMEWTO DA CONTROYERS~ADA INYESTIDURR
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reconhecia uma situaçáo de coisas que os eventos dos séculos sete e oito haviam silenciosa mas inexoravelmente produzido. A casa de Pepino I1 e Carlos Martelo, através de suas negociaçóes com Bonifácio e o papado, havia-se estabelecido como líder secular de uma cristandade latina renovada e vigorosa. Ao mesmo tempo, os papas, não sem as pressões da controvérsia iconoclasta e das ambi~óeslombardas na Itália, haviam reconhecido que sria esfera de autoridade real e efetiva era a nova Europa cristã e católica, que as missões inglesas e o poder n~erovíngiohaviam criado. Contudo, os dois
dessa combinacáo inevitavelmente a viam sob luzes difc-
rentes. Para Estêváo e seus sucessores, ela significava, sem dúvida, a realização visível dos priricípios da Doriçáo de constdntino. Para Pepino e os seus, entretanto, ela significava que eles Iiaviam assuinido, com a bencáo papal, o fardo d o bem-estar da cristandade ocidental. Nessa siruaçáo houve um aniincio, ainda que tênue, da disputa posterior no Ocidenre medieval entre as autoridades papais e seculares pela liderança da cristandade iatina.
Capitulo 5
Carlos Magno Pepino, o Breve, morreu cm 768. Seguindo a tradiçáo franca, ele dividiu seu reino entre seus dois filhos, Carlos e Carlomano. Os dois irmãos (que, como seu pai, haviam sido ungidos reis pelo papa Es~êváoem 754) eram propensos a disputas, mas o conflito entre eles terminou em
771 com a morre de Carlomano. Dessa data até
sua morte em 814, Carlos - cujo título "Magnon ficou eventualmente tecido no próprio nome pelo qual a história o tem mais frequenccmente denominado, "Carlos 'i,lagnon - governou, reformou c expandiu o reino crisráo dos francos, sobre o qual, corno ele assim compreendia, graça e vocação divinas haviam-no estabelecido.
Carlos era um homem de muitas facetas. Um grande guerreiro, nn tradição franca, suas campanhas militares anuais mais do que duplicaram sua herança, e quando sIe morreu era o único soberano de tudo o que sáo hoje Franca, Bélgica, Holanda e .íustria, e p n d e parte da Alemanha e da Itália, e um peciap do nordesrc da Espanha.
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HSToR1A LIA IGREJA CRISTÃ
Sua destreza militar, porém, 1-150 representava nada mais do que parte de suas habilidades. Governando sobre um mundo escassarnenee povoado, pobre e semibárbaro, no qual as comunicaçóes eram lentas, o comércio quase inexistente e as lealdades tênues, Carlos instalou uin sistema administrativo que o possibilitou - e mesmo, por certo tempo, a seus sucessores - dar coesáo religiosa e uma certa medida de unidade política a uma sociedade que ainda não havia atingido seu potencial para desintegracão. Ao mesmo tempo, ele considerava-se o rei ungido de um povo cristáo, como o guardião da igreja, cujo bem-estar, material e espiritual, ele procurou fortalecer. Firialmeiite, Carlos era, evideiitemente, um homem que gostava de erudiqáo. Embora só com muita dificuldade eie conseguia formar as letras de seu nome (escrever náo era coisa para reis), ele falava latim e mesmo um pouco de grego, cercou-se de conselheiros eruditos, e fez tudo o que pôde para esiender os benefícios da educação a rodas as partes de seu reino. Uma das primeiras campanhas militares de Carlos foi eferuada para forçar o novo rei Iombardo, Desidério, a respeitar a ii-idependência dos territórios papais na Itália.
A pedido do papa Adriano I (772-7951, que, diante da tremenda prcssáo exercida pelas tropas de Desidtrio já estava preparando Roma para um possível cerco, Carlos conduziu duas campailhas na Itália, que resultaram na exrinçáo da independência lombarda. Em 774, portanto, Carios assumiu um novo título: "pela graça de Deus rei dos francos e dos lombardos e pacrício dos ro~ilanos."Este último título mencionado havia sido conferido pelo agradecido papa Adriano em Roma, quando Carlos renovara a promessa de Pepino de garantir aos papas a posse de seus territórios na Itália central. Na realidade, enrretanto, com o desaparecimcneo do estado tanipRo lonibardo, o papado achou-se, de fato, um cliente político do reino franco, çuja reverência pelo sucessor de Pedro era iilteiramenre verdadeira mas náo suplantava a sensaçáo de considerar-se em última instância responsável, como rei "pela graça de Deus", pelo bem-estar espiritual do povo cristáo sob sua responsabilidade. A tendência de Carlos, conseqiiência naturai de seu ideal herdado de realeza sagrada, era ver o papa como o principal sacerdote de seu reino
- uma percepçáo
que, ironicamente,
era mais afinada com os princípios dos imperadores bizanti~iosdo que com os da
Doação de Constantino.
A conquista dos saxóes, que ocupavam o que hoje é o noroeste da Alemanha, entre o Elba e a desembocadura do Reno, por Carlos foi de importância crucial tanto para a integridade de seu próprio reino como para a extensáo do cristianismo. Este
PERIUDO IY
A IOROF. MEOlA f O ENCIRIIMENTO DR CONTROVERSIR OA INUESIIOURA
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resultado foi alcançado somente após uma série de campanhas sangrentas que dura-
ram de 772 att 804, durante as q~iaisos francos impuseram forçosamente o cristianismo sobre seus inimigos e confirmaram essa conversáo implantando mosteiros e bispados por todo o rerritório. Essas campanhas entre os saxóes [arnbém alcançaram a crisrianizaçáo final d3 Frísia, onde Santo Wiillibrordo havia trabalhado no início do século. Carlos também subjugou o rebelde duque da Baviera, Tassiio, e esse cmpreedimento conduziu náo apenas à absorcáo das igrejas da Baviera no sistema franco, mas também i guerras bem sucedidas contra os ávaros e à expansáo do cristianismo à Áusrria, a "Fronreira Lesce" do rcino de Carlos. Desta maneira, o reino franco foi posto em contato com os povos halc$nicos, predominantemente eslavos, cujos territórios se limitavam com a fronteira se~entrionaldo império bizantino. Além de líder militar e conquistador, Carlos tambtm foi reformador da igreja e da sociedade, empregando conscientemente as melhores e mais eruditas mentes de sua época, para promaver ordem e cuItura em um mundo cuja imaginação coletiva somence com muita dificuldade poderia ter uma pequena noção do que isso representava. O mais proeminente entre seus assisrentes foi Alcuíno, monge e diácono inglês, que se juntou à corte de Carlos Magno em 781, apbs servir como mestre da escola da catedral em sua cidade nativa, York. Um honiem er~idiroe inquiridor, embora de forma alguma um pensador original ou profundo, Alcuíno era produto da tradiçáo de Beda, o Venerável, e do mosteiro em Jarrow. Na corte dc Carlos ele encontrou uma companhia de eruditos com a mesma inclinaçáo de mente. Lá estava Paulo, o Diácono (m. 799), um monge de Monre Cassino e autor de A História da Nqáo dos Lombardos, a quem Carlos mais tarde comissionou para escrever um grupo de hoinilias para serem lidas nas igrejas por todo ser[ rcixio. Lá tambtni csravari~o erudito clássico Pedro de Pisa, e Paulino, posreriormente arcebispo de Aquiléia e principai agente e representanre de Caslos no norre da Itália. Tais clérigos, que estavam familiarizados com as tradições da lei canôniça e romana como também com as Escrituras e os escritos de Agosrinho, Gregório Magno, Cassiodoro e Isidoro de Sevilha, auxiliaram Carlos em uma rn~lti~licidade de funções. Alcuíno dirigiu uma escola informal das artes liberais no palácio, a qual o próprio Carlos frequentava. Nomeado abade do mosteiro de Sáo Marrinho em Tours, ele começou um processo de fùndaçáo e expansáo de escolas monásticas, bibliotecas e scriptouirr por rodo o reino de Carlos. Seu objetivo náo era meramente difundir a alfaberização e a educa$50, mas também coletar e copiar os documentos que continham a herança do pas-
sado; é aos mosteiros dos reinados de Carlos e seus sucessores que dei-emoi 2 przscr-
va<;áo de grande número de textos ciássicos e patristicos, rodos escritos na elepr.;t g a f i a chamada rninúscuja carolingia. Ademais, Alcuíno e seus associados orienraram Carlos em suas relaçóes com o papado e o império bizantino e em seus esforces sistemáticos para reformar a administração de seu reino e a vida da igreja. Foram eles, ainda mais, e Alcuíno em particular, quem ensinaram Carlos a imaginar seu reirio como a verdadeir:a "Cidade de Deus", a comunidade crist5, da qual Agoszinho de Hipona havia hlado (segundo a inrerpretaçáo deles) quase quatro séculos atris.
O iiltercsse de Carlos nas igrejas, e sua autoridade sobre elas, estenderam-se a cada área da vida das igrejas. Carlos indicava os bispos das igrejas e convocava seus concílios, cuja funyáa na prática passou
d
ser aquela dc oferecel--lhe coilsellios. Sob
seu comando, Alcuíno reformou e unificou as confusas e diversas prjticas litúrgicas
de seu reino, após estudo cuidadoso de modelos romanos rradicionais - portanco tornando-se respoilsável, entre outras coisas, pelo emprego ui~iversaldo assim chamado Credo dos Apóst.olos no Ocidente. Foi a ação firme de Carlos que assegurou aos bispos seu direiro de ordenar, supervisionar e disciplinar o clero empregado em igrejas nus vilas ou nas fazendas, mesmo naqueles casos frequentes, onde eram os patrões leigos quem tinham o poder de indicar cais sacerdotes para seus deveres pastorais. Dessa maneira, o crescente sistema paroquial foi integrado nas estruturas governamentais da igreja. Ao mesmo renipo, Carlos reinsrituiu o antigo sistema de sés metropolitanas, cujos ocupantes, agora iienominados arcebispos, exerciam jurisdi-
çáo sobre os ourros bispos denrro de suas "províncias." Ademais, cle se inreressou pela vida daquele clero - diáconos e presbiteros - que constituíam a equipe imediata
oufnmília do bispo. No caso deles, Carios favoreceu e eilcorajou a adocáo de um sisrema q u e tinha sido projetado por Crodrgango, bispo de Metz, n o dias de Pepino, o Breve. Crodegango havia imposto sobre seu ciero uma disciplina semimonástica, a
assim chamada uita com?zica ("vida de acordo com uma regra"}, que os iririculava a uma vida comum e à recitaçáo comum dos ofícios di:írios (s~et1II:13), mas que também Ihes permitia possuir propriedades e enecurar deveres inçompatívcis com
uma vocacáo monásrica cstrira. Foi a disseminação desse sistema que levou ao costu111cde se referir ao clero da catcdral e de igrcjas colegiadas como "cbnegos." Acima dc tudo, entretanto, Carlos estava preocupado com o rrabalho do clero em estabelecimentos Iocais. Era seu ideal, que ele estava longe de aringir, ter urn presbítero educa-
do em cada localidade - al&m que pudesse náo apenas instruir 0 povo no crisrianis-
PtR1000 IY
A IDADE MÉItlll E O ENCERAMENTO DA GORTROYERSIA DA INVESIIDUUA
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mo mas também agir, efetivamente, como mestre-escola, trazendo os benefícios da alfabecizaçáo a todos sob sua responsabilidade.
É desnecessário dizer que essa preocupação pela igreja se estendeu ao próprio papado, o qual sob Adriano I (772-795) finalmente ericerrou com o reconhecimento apenas forrnal da soberania do imperador dc C o ~ i s t a n t i n o ~el aefetivamente tratou o próprio Carlos como o líder leigo da criseandade, um papel que suas conquistas e seu zelo pela extensão e reforma da igreja pareciam justificar para ele. O sucessor de Adriaiio, Leáo 111 (795-8 16),teve motivos tanto para
como para desânimo,
diante da autoridade que Carlos assim c.xregava. LeZo, eleito papa acima das objeções da voraz nobreza romana, que aspirava a controlar o cargo papal, em 25 de abril de 799 foi atacado, sequestrado e agredido por bandidos de aluguel. Resgatado por dois clérigos franceses, ele fugiu ao encontro de Carlos em Paderborn, onde foi rccebido com honra. Pouco tempo após sua chegada, entretanto, o rei recebeu cartas das próprias pessoas que haviam tramado o ataque - acusando Leáo de imoralidade e crimes sérios. Conuei~cidode que nenhum sucessor do apóstolo Pedro poderia manter seu ofício sagrado com tais acusações pendendo contra si, Carlos, com um grupo de bispos francos, viajou a Roma, onde, ein uma assembléia na basílica de São Pedro, exigiu que Leáo se livrasse das acusações jurando sua inocência diante de Deus. Dois dias mais tarde, no dia de natal do ano 800, quando Carlos, após assistir ao papa celebrar a missa da natividade de Cristo, estava orando diante d o sarituário de Sáo Pedro, Leáo colocou um diadema em sua cabeça e o povo reunido aclamou-o como "Carlos Augusto, coroado por Deus como o grande e pacífico imperador." Pela ação do papa, Carlos náo era mais simplesmente rei dos francos e lombardos mas também o sucessor de Constaitcino, o imperador cristáo dos romanos.
A interpretação deste evento tem ocasionado um amplc debate entre os historiadores. Einhard, um bidgrafo de Carlos Magno, escreveu que o novo imperador proclamou sua insatisfacão com esse gesto papal c insistiu em que ele jamais teria ido à cacedraI de São Pedro se soubesse que o papa iria fazer aquilo. Esta afirmacáo rem Icvado muitos historiadores a ver no gesto de Leáo uma tentativa de reafirmar o
~ OConstantino. Ao criar Carlos imperador, assim C argumentaprincípio da D O Q Çde Uo,Leáo - humilhado diante de sua necessidade d o apoio de Carlos e pela exigência
30 rei de um juramento de inocência - estava na verdade reafirmando sua própria irroridade superior ao dar a Carlos aquilo que, pelo testamento do próprio 7
,onstantino, apenas o papa poderia conceder: o status e autoridade de imperador
dos romanos. Ourros historiadores se opóem a esta interpretafáo do assunto. Eles vêem na açao de Leáo nada mais do que uma cantinuaçáo da política de Adriano I que, ao rejeitar abertamente a soberania dos imperadores bizantinos, parece ter pretendido uma transferência do ofício imperial para o Ocidente - e ao mesmo tempo uma confirmacáo da ideologia daqueles intelectuais francos que, como Alcuíiio, vinham já por alguns anos saudando Carlos como um novo Davi e como imperador da cristandade latina, que eles agora deilarninavam Europa. O fato de Leáo ter aproveitado aquela ocasiáo específica para a coroaqáo de Caxlos seria, na perspectiva deles, suficie~iterrienteexplicada pela intervenqáo do rei fraiico eIri favor do papa r pelo fato de que o "imperador" oriental era não apenas uma mulher, Irene, mas uma mulher que havia chocado até mesmo os francos com o assassinato de seu filho, o monarca legítimo. A escolha entre essas interpretacóes do assunto é difícil à medida que requer um juízo dos morivos de Leáo, para os quais há pouca evidência explícita e que em
qualquer caso pode muico bem ter sido corrompida. O que parece evidente, entrecanEo, e que Carlos náo esperava o gesto de Lego; de fato, o imperador pode muito bem ter achado seu novo status ernbaraqador, uma vez que isso o envolveu imediata-
mente em conflito diplomático e militar com o império bizantino. Os líderes daquele estado, apesar de tudo, em ~rincípio(por mais que fossem pressionados pelas circunstâncias à concederam na prática) nunca poderiam desisrir de sua crença de que o mundo criscáo tinha, e pderia ter, apenas um líder, o imperador romano
entronizado em Constantinopla. Ademais, Carlos e seus assistentes parecem ter tido uma percepçáo do ofício imperial diferente, t a n ~ oda do papa como daquela das autoridades bizantinas. Carlos via a si mesmo náo como imperador dos romanos mas como imperador daquela cristandade latina (i.e., franca e lombarda) que constituía a Europa. O fato 6, portanto, que a coroação provavelmente teve diferentes significados para as diferentes partes nda envolvidas. De qualquer forma, ela atesta o surgimento de uma nova unidade religiosa e cultural cristã e latina sob a responsabilidade conjunta dos papas como guardiães do crisrianismo apostólico e da monarquia franca - esca última agora transmutada, teinporariamente, em uma pálida imagem do império constanciniano.
Capítulo 6
O Cristianismo Europeu no Nono Século Qiialq~ierum que observar a crisrandade latiria no séciilo seguinre à morre de Carlos Magno (8 14) ficará impressionado sobretudo com a acelerada desintegraçáo política do império carolíngio. Em parte, talvez, esse desenvolvimen~opossa ser atri-
buído A inapridáo de muitos dos sucessores de Carlos, como também ao cosrume franco de dividir o patrimônio entre os herdeiros masculinos sobreviventes. Tais fatores, entretanto, náo oferecem uma explanacão completa. Mais irnpori-ante é o localisrrio que foi encorajado, e na iralidade necessirado, pela ausêrrcia de comdrcio significativo e comunicaçóes confiáveis. Esta era uma sociedade cuja atividade fundamental era a agriculrura de subsistência, c sua unidade social básica coilrinriava a ser a fazenda ou g a n d e propriedade auto-suficiente, e náo a cidade e nem mesmo a
vila. A tendência para o locaiismo foi reforçada pela inabilidade do desajeitado sistema militar real em responder 3s técnicas de aracar-e-firgir dos ini~asoresviquingues e sarracenos, que nessa época arormentavain a Europa e a Grá-Bretanha a partir do mai-.
O sucessor de Carlos, Luís (814-84O), cognorniriado "o Piedoso", na realidade, como único filho legírimo sobrevivenre de seu pai, herdou e governou o império carolíngio como um todo. Porém, Luís náo era soldado e nunca conqujstou o respeiro completo da verdadeira fonte de ~ o d e de r seu pai, a aristocracia militar da pátria franca na Austrásia. Náo obstan~e,ele manteve seu reino unido (embora com dificuldade) e partilhou - talvez de Lima forma muito ingênua - o entusiasmo dos eclesiSscicos eruditos pela ideologia do império cristáa latino. Luís via seu ofício real e imperial como uina chamada de Deus para defender, expandir e governar o povo cristáo, uma chamada efetuada por Deus quando de sua unqáo e na qual seus únicos iuízes eram os bispos de seu reino, que eram rambérn seus principais ministros e ;onselheiros. Dessa forma Luís continuou a prática de seu pai de agir, efetivamente, como o pastor supremo das igrejas, refòrmando e regulamentando cada aspecto da
-.-idadelas. Apesar de sua lealdade para com a ideal. do império cristáu, porém, foi Luís quem 7:ciizrou sua partilha entre seus filhos. Ademais, ele manejou essa questáo Mo gros-
seiramente que acabou por envenenar permanentemente suas relaçóes com c i i ~: entre eles mesmos. Eles continuaram a disputar após a sua morte, e foi somcnre ;;ri.
843, pelo tratado de Verdun, que foi alcançada uma resoluçáo final. Por esse acorcic. que assinala o início das histórias separadas da Fran~ae da Alemanha, o inipério h. dividido em tr2s partes. Pxra Luís (843-875) coube a área ao leste do Reno, daí ele ts; recebido o cognome "o Gerniano." Para Carlos (843-877),chamado "o Calvo", coube muito do que t4 a Fraliça atual. Lotário 1 (843-S55),o mais velho, recebeu, juntaniericc c0111 o título iriiperial, unia aliomala faixa celirral de território, que se estendia da desembocadura do Rerio ao norte atC u reino lonibardo l i a Itália setentrio~ial.Essa di~~isáo inicial, entretanto, foi apenas o anúncio do que viria mais tarde. Após a morte de Lotário I, seu território foi novamente dividido em três, e eventualmente tornou-se nada mais do que uma sequência de pequenos principados. Na Alemanha e na França, a monarquia sobreviveu farmalmente, mas a autoridade central não. Quando Luís, o Menino, o último dos reis carolíngios dademanha morreu em 9 1 1, a substância do poder havia caído nas maos dos chefes tribais da %aviera,Francânia,
Suábia e Saxônia, aos quais os carolíngios haviam concedido categoria oficial conferindo-lhes o primitivo rítulo romano de dux - "duque." Semelhantemente, os últimos reis carolíngios da Fran~a,dos quais o último foi Luis V (986-987), exerceram menos poder real do que muitos dos outros magnatas de seu reino. A desintegraçáa da unidade política alcangada por Carlos Magno era praticamente totai.
Na Itália e na França, essa fragmentacáo de poder foi
uma resposta
aos araques exrernos que, procedentes de quase ~ o d o sos lados, ameagavain esmagar a Europa nos séculos nove e dez. As incursóes do povos marítimos da Dinamarca e
da Noruega na Inglaterra e na França se iniciasam juntamenre com
a abertura do
século nono. Enquanto seus primos suecos estavam abrindo seu caminho através do BAltico e descendo o sistema fluvial russo até o mar Negro, os dinamarqueses c noruegueses faziam incursóes pelos rios da costa anglo-saxá c franca, incendiando as cidades existerires, saqueando mosteiros c desaparecendo anres que as tropas ieais pudessem ser recruradas, inspecionadas e colocadas em marcha para enfrentá-los.
Na Inglaterra, essas incursóes colocaram um termo à vida cultiiral e intelecrual dos mosteiros que haviam produzido cruditos corno Bcda e Alcuíno e também missionários que, sob os auspícios carolíngios, haviani realizado a conversáo da Alemanha. Lindisfarne foi pilhado iáo cedo quanto 793; pela merade do século nove, muiros dos centros da vida inglesa h;nriam sido saqueados, e os dinamarqueses ocupavam
~ a i o o oiv
A IDADE MtOlA E O ENCERAMENIO DA CONTROYERSIA DA INVESTIDURA
28.5
e controlavam a maior parte da Inglaterra. A situação foi salva somente pelo valor desesperado de Alfredo, o Grande, rei de Wcssex (871-899), que em 878, após urna grande baralha em Edington, forçou os dinamarqueses sob Guthrum a aceitarem uma divisão de território e assim criarem a "jurisdi~áodinamarquesa", que abrangia muito do nordeste e centro da Inglaterra.
A relativa paz na Inglaterra, entretanto, meramente aumentou o ritmo e seriedade dos ataques viquingues na França e na Holanda. Enquanto o imperador Luís 11, filho de Lotário I, juntamente com toda uma geratáo de papas, estava buscando, algumas vezes com a cooperaqáo bizailtina, conter os ataques sarracenos na metade meridional da Itália, as incursóes viquingues no norte atacavam centros como Ghent, Colônia e Reims. No final, os povos do norte se estabeleceram ao redor da desembo, cadura do rio Sena, e o rei francês Carlos, o Simples (898-9291, foi f o r ~ a d osegundo a maneira de Aifredo, a criar sua própria jurisdicáo dinamarquesa negociando com o líder deles, Rollo. Este concordou em aceitar o cristianismo em troca dos territórios que seriam conhecidos como o ducado da Normandia, com seu centro em Rouen. Na F r a n p - mas não nessa época, e nunca com a mesma intensidade, na Alemanha - a desintegraçáo do poder carolíngio foi acompanhada pelo surgimento daquilo que o sCculo dezoito denominou "sistema feudal." Isso era essencialmente um padráo de organizaçáo política e social. Suas raízes encontram-se basicamente no vínculo pessoal de serviço e lealdade recíprocos que havia classicamente estruturado as relaqócs do líder de guerra germânico e seu grupo de guerreiros. Suas características distintivas, enrretanto, eram a associa~ãodesse vínculo com a posse da terra e seu uso para definir as obrigaçóes que vinculavam governantes subordinados à autoridade central do rei ou outro senhor. Em retorno por seus serviqos leais, o vassdo era dotado com aquilo que era (tecnicamenrc ) apenas uma posse para roda a vida de ~ertaspropriedades fündiárias, como meio para seu sustento. Os duques (duces) e zondes (comites),que originariamente eram, como no império romano, oficiais reais nomeados, normalmente eram recompensados e sustentados dessa forma com as 7osscs reais tanto dos merovíngios como de seus sucessores. Uma vez que, entretan:,I),
as propriedades fundiárias eram a base tanto do poder econômico como do poder
~iilitar,e uma vez que a posse de um benefício ou "fcudo" rapidamente na prática Zsrneçou a passar de pai para filho, esses oficiais gradualmente sc tornaram uma .-zobreza estabelecida e hereditária. Ademais, sua riqueza privada e poder, que :r=scentemente os tornava independente do rei, também fez deles a verdadeira fonte,
286
HIST&iIA DA IGREJA CRISTÁ
em suas regióes, da ordem pública, da justica e da proteçáo de inimigos externos. Assim eles, também - em um mundo onde a identidade social, direitos legais, e segurança dependiam de relasóes pessoais, quase familiares com um senhor - come$aram a adquirir vassalos e a se tornarem pequenos reis em seus próprios territórios, com direitos de jurisdiçáo náo apenas sobre o campesinato vinculado às suas propriedades mas também sobre os homens livres que eram seus vassalos. Tudo isso, é desnecessário dizer, ocorreu às custas daquelc próprio poder real que havia criado o sistema como uma maneira de retribuir e controlar seus senridores; e uma consequência do declinio da autoridade real foi que tanto os mosreiros como os bispados de forma crescente caíram sob o controle de magnatas feudais locais. Entretanto, enquanto que a unidade política que Carlos Magno havia estabelecido dissolvia-se rapidamente sob o impacto simultâneo J a invasáo e da descentralizaçáo de poder, a unidade religiosa criada pelos çarolíngios iiáo sofreu a mesma sorre. O cristianismo romano e católico continuou o mesmo fator unificador na sociedade e culrura inglesa e européia. Suas ii~stituiçóescentrais - o papado, o episcopado, e as comunidades monrisricas - mantiveram seu vigor, apesar de frequentemente corrompidas e alteradai pelos alentos e condiçóes de sua época. Acima de rudo, o ideal carolíngio de uma aliança de auroridade real e eclesiástica para a nutrição de uma sociedade cristã continuou a prender a imaginaçáo das pessoas.
Em suas origens, o movimento monástico havia sido inspirado por um espíriro de afastamenco do mundo, e mesmo de hostilidade para com ele, para o bem de uma imitação resoluta de Cristo. O moiiasticismo céltico, e depois dele o inglês, de forma alguma perdera esse espírito ascético. Não obstante, ele havia também se engajado em atividade rnissionária e pastoral e no cultivo da crudiçáo, e rinha-se tornado, com a apoio e a proreçáo de Pepino TI e seus sucessores, o principal instrumento para a conversá0 e cristianizaçáo da Europa pagá. No nono séçuio, portanto, as instituições monásticas, construídas e dotadas com extensas terras pela generosidade dos reis e outros magnatas, podiam ser encontradas náo apenas espalhadas pelas zonas rurais mas também perto de todo centro de podei; secular e eclesiástico. O padrão dc vida monástica, ademais, estava-se tornando mais estável e uniforme, conforme a regra de São Bento gradualmente alcançava aceitaçáo universal. Luís, o Piedoso, acelerou em muito esse processo ao trazer com ele para a corte imperial, em 814, o monge burgúndio Bento de Aniane (751-821), que recebeu uma declaraçáo aucorizando-o a impor sobre rodos os mosteiros
do reino a mesma observância escrita da regra
beneditina que ele havia imposto sobre sua prcípria casa em h i a n e . Equipado com uma comuilidade monástica recentemente fundada perto da corre de Luís, Bento, em um concílio de abades convocado pelo imperador em 8 17, em Aix-la-Chapelle, promulgou seu Cdpitzlhue mondcLicum e o complernentou compondo, para a edificaqáo dos monges em todos os lugares, seu Conco~diareguldrum e Codex regdaram. A resposta a esse esforce de reforma náo foi de maneira alguma universalmenre entusiástica, e a dissolução gradual do sistema carolíngio trouxe desordem e corrupçáo para muiros cencros de vida monástica. Não obstante, Bento foi bem sucedido na promoçáo de um novo espírito de disciplina, que iria eventualmente produzir frutos por roda a Europa em uma vida monástica mais regular e mais estrita. Porém, as casas beneditinas dos séculos nove e posteriores não eram o tipo de comunidades que seu fundador do sexto século havia contemplado. Primeiro, seus membros náo eram mais pessoas leigas mas, na sua maior parte, clérigos. Segundo, estes .clérigos náo estavam engajados na agricultura. Suas propriedades fundiárias, na grande maioria, eram ~rabalhadas,como todas as fazendas da época, por servos ou locatários, enquanto que os monges ficavam engajados na adoraqáo e em outras formas de trabalho. Ademais, embora fossem comunidades retiradas, elas estavam de muitas formas perto de seu mundo, e executavam funções essenciais, simbólicas e práticas, na sociedade medieval inicial e para ela. Sua execuçáo do Ofício Divino, crescentemente elaborado e extenso, era visto ser náo apenas um serviço vicário a Deus mas também uma luta perpétua contra os poderes do mal e da desordem em favor de toda a sociedade que elas representavam. As terras com as quais elas eram dotadas as capacitava a suprir seus patrões reais ou nobres, não apenas com recursos materiais e, quando necessário, soldados, mas também com um ambiente onde crianças bem nascidas, cujo futuro poderia de outra forma ser incerto poderiam ser educadas e formadas para um serviço essencial e nobre. Os mosteiros eram tambbm os principais centros de aprendizado e de artes. Acima de tudo, eles eram símbolos, por sua vida ordenada, regular e pacífica ao seu serviço de Deus, da realidade e presença do Sagrado em um mundo perturbado e desordenado. Esta simbiose entre o mosteiro e sua sociedade foi igualada na instituiçáo do episcopado. Na sociedade criada pelos primeiros carolíngios, o bispo era acima de tudo um pastor, ainda que um pastor crescentemente distante. Era de sua responsabilidade a populaçáo inteira dentro de sua jurisdiqão, e seu apoio último no emprcendimento pastoral era o próprio rei, que náo apenas o nomeava e dotava sua igreja
mas também o convocava para concílios e via o trabalho do bispo como um aspecto de sua própria vocação para garantir o bem-estar do povo cristáo. Foi o prestígio e a
responsabilidade dos bispos, encáo, e não simplesmenre ou mesmo principalmente do papa, que fora111 fortalecidos pela aliaiiqa da igreja e da coroa na Europa cristã. Foi suficientemente natural, portanto, que era ao rei divinamente ungido que os bispos procuravam em primeiro lugar, colocando ao seu serviço náo apenas os recursos das propriedades que pertenciam às suas igrejas, mas seus talenros pessoais como adiniilistradores e conselheiros. Os bispos, como já vimos, eram assim tratados efetivamente como ministros e vassaios reais - e vassalos muico úceis, uma vez que suas posses nunca poderiam se tornar hereditárias e portanto estavam sempre à disposi5áo do senhor. Em troca, os bispos recebiam, como os vassalos deveriam receber,
á
protege e o sustento material do rei para seu trabalho. Isto náo era uma combinaqáo cínica. Os reis carolíngios - e, como veremos, seus sucessores na Alemanha - aceitavam a proteção das igrejas como um dever sagrado. Por sua vez, eles ficavam - e de
forma crescente, conforme o poder real diminuía em uma sociedade feudalizada
-
dependentes dos recursos da igreja. Uma (e de forma alguma a menor) contribuiçáo dos estabelecimentos episcopais e monásticos naquela era de descentralizaçáo política foi a perpetuacão da tradição de erudiqáo iniciada por Alcuíno e seus colegas na corte de Carlos Magno. Depois da época de illcuino, a maioria dos mosteiros e muitas "famílias" episcopais (esta forma inicial das "escolas de catedral" posteriores) tinham um professor de maior ou menor erudição que instruía nas sete artes liberais. Algumas das mais erninent-es casas monásticas tinham inscalaçóes elaboradas para a cópia de manuscritos, sem mencionar as escolas onde nestres ilustres desenvolviam pesquisas não apenas na tradição teológica e exegética da igreja antiga mas também em temas como aritmética, cronografia e astronomia. O espírito dessa "renascença carolíngia" era saudosista (e algumas vezes jocoso); mas também produziu o início de uma poesia empregando rima e cadência métrica, o início da reflexão racional sobre problemas sociais e teoria política, e o início de inquiriçáo teológica original.
O pensador teológico mais original dessa época foi o líder da escola do palácio de Carlos, o Calvo. Este era o irlandês Joáo Escoto Erigena (m. ca. 877),que traduziu para o latim as obras do pseudo-Dionísio, o Areopagira (ver 111:10) e adicionou-lhes suas próprias idéias, concebidas em um espírito totalmente neoplatônico, em um
tratado intitulado Sobre u Divisáo da Natureza. Joáo Escoto, entretanto, náo teve
PERIODO IY
A IDADE M€OIA E O ENCERAMENTO DA EOITROYERSIA OA IIYVESIIDURA
289
riinguém para continuar sua obra e, exceto através de suas traducóes, ele exerceu miiiro pouca influência no futuro. De maior interesse para os historiadores da dou:rina sáo dois debates que surgiram nas escolas monásticas. O primeiro desses foi 'niciado por Pascásio Radberto (m. ca. 860), abade do mosreiro em Corbie, cujo ~ratadoSobw o Corpo e Sangue do Senhor pareceu a alguns de seus leitores manter Lima noçáo muito literal e "físicn" da presença sacramental de Cristo rios elenlentos sucarísticos. Sua obra chamou a a[enc;áo do rei Carlos, o Calvo, e recebeu réplicas de Jiversos pensadores. A mais notável destas veio da pena de Ratrarnrio, um monge do 7róprio mosteiro de Pascásio. A resposta de Ratramno, que foi muito admirada por xrtos reformadores protestantes do stculo dezesseis, retornava à tradicáo de Santo 4gostinho e enfatizava que a presença de Cristo nos elementos eucarísricos, coniluanto inteiramente real, era espiritual e "figura~iva"(i-e., náo disçernível pelos seiiridos mas conhecida pela fé in mysterio). Outra riplica veio de Rabano Mauro (m.
356), abade de Fulda e mais larde arcebispo de Mairiz. Educado pelo próprio hlcuíno, 1
%abano náo apenas replicou a Pascásio mas foi um cornen~aristaprolífico das Escririiras e também autor de uma "enciclopédia" popular baseada rias Etimohgias de -. lsidoro dc Sevilha e intitulada De universo. Tanto Rabano como Erigena participaram da segunda coritrovérsia dessa época, a t e foi ocasionada pela obra do monge Gottschalk (m. ca. 868). Este pensador, x j o s e ~ f o r ~ para o s deixar a vida monástica c voltar para o mundo tinham sido frus-
rrados por Rabano Mauro, havia sido cransferido de Fulda para a abadia de Orbais
na França. Lá ele mergulhou
no estudo de Agostinho de Hipona e
z\.encualrnente montou uma teoria extrema da dupla p r e d e ~ t i n a ~ á(ao doutrina se5undo a qual Deus decreta salvaçáo para alguns e reprovaqáo para ou~ros).Isto criou maior tempestade teológica de seu tempo, reabrindo todas as questões que tinham
Ceado para trás da controvtrsia semipelagiana do quinto século. Vieram réplicas náo ;penas de Erígena e Rabano Mauro mas também de Hincinar (m. 882), o eminente rrcebispo de Reims e antigo monge da abadia de Sáo Dionísio, que era talvez mais notável como político, administrador e estudioso da lei canônica do que como teólogo. Como resultado desse debare
-
no qual Gottschalk teve muitos defensores,
incluindo Katramno - ele foi condenado por um sínodo em Mainz, em 848, e afas:&dopara o resto da vida para o mosteiro de Haurrvillers, onde continuou a escrever fruditamente conrra seus oponentes. Nenhuma das duas controvérsias, talvez, tenha rido conduzida com grande sofisticaçáo teológica, mas juntos os dois debates servem
não apenas para demonstrar o renascimento de preocupação séria com problemas teológicos no Ocidente mas também para anunciar os tipos de questóes que seriam centrais para muito da teologia ocidental posterior, incluindo a protestante.
E o que aconteceu com o papado em tudo isso? A igreja de Roma e seu bispo náo perderam de maneira alguma seu caráter central no cristianismo ocidenval. Como vigário e representante do apóstolo Pedro, o papa desfrutava de honra e prestígio sem ~aralelos,e o bem-estar da sé romana era objeto de no mínimo preocupacáo formal dos últimos governantes carolíngios, embora eles pouco pudessem fazer, quer seja para protegê-la ou para controlá-la. Os papas, ademais, cujos arquivos de registros forneciam-lhes uma memória maior do que a de muitas instituicóes de sua época, não haviam esquecido ou abandonado os princípios resumidos na Doação dc
Constantino. Eles se viam exercendo jurisdicáo universal sobre todos os bispos, sendo a principal fonte de autoridade de ensino na igreja, e exercendo um poder espiritual que os co~ocavaacima de todos os governantes seculares na cristandade. Entretanto, uma coisa era reivindicar tal autoridade e outra exercê-la na tocalidade. Náo obstante, essa autoridade era exercida à medida em que as circunstâncias e atitudes do momento permitiam. Há plena evidência para mostrar que os papas do comeco do século nono procuraram salvaguardar, com sucesso, seus direitos em seus próprios territórios, prescrever princípios gerais para o governo das igrejas e, onde apropriado, interferir em apoio de tais princípios. Contudo, as condições do nono século impediam qualquer administração papal direta de assuntos políticos locais. Elas também impunham que os papas dessa época, dado a !gradual desintegraqáo do império carolíngio, ficassem mais e mais absorvidos nas disputas locais de poder, na Itália, e eventualmente dominados por elas. Entretanto, o pontificado de Nicolau I (858-867) demonstra que o papa ainda era capaz de fazer sentir sua autoridade, ainda que ocasioilalmente. O papa Leão IV
(847-855), que antecedeu ao predecessor imediaro de Nicolau I, chegara ao sólio papal um ano depois que as incursóes sarracenas haviam penetrado em Roma e até mesmo nas basílicas de Pedro e Paulo. O reinado de Leão, portanto, foi em grande parte absorvido pelos problemas de defesa física, e sua grande realizaqáo foi fortificar, na margem direita do Tibre, a assim chamada "cidade leoiiina" - um passo que o capacitou a derrotar novas incursóes sarracenas. Nicolau não podia ignorar, e náo ignorou, o problema criado pelo ataque islâmico, mas a coopera~áoentre o papado, o imperador Luís I1 (855-875), e as forças bizanrinas no sul da Ieália temporaria-
mente estancaram a onda do w a n p sarraceno, e Nicolau, um líder e diplomata persistente, foi capaz ern dois noráveis (e muitos menos notáveis) casos afirmar a autoridade do papa no norte dos Alpes, e no processo demonstrar que nem as reivindicações nem o prestigio do papado haviam-se abatido. O primeiro desses casos envolveu-o com Lotáiio 11, rei de Lorena, que - por causa de preocupações dinásticas qtre tornaram seu problema um ponto focal na política franca divorciou-se de sua -
esposa sem filhos, Teurberga, para se casar com sua concubina, Waidrada. Quando Teutbrrgia apelou ao papa, Nicolau reverteu a decisão de um sinodo realizado em hdetz (863),que havia sancionado o divórcio, e ao mesmo tempo destituiu os arcebispos de Trier e Colônia de suas sés. Dessa forma, ele afirmou a autoridade papal rarito sobre o clçro franco como sobre um monarca reinante.
De maior significado, talvez, para o futuro foi a intcrvrnqáo de Nicolau nos Lssunros da igreja francesa, quando ele forçou o arcebispo Hiiicmar de Reims a res; a r a r o bispo deposto de Soissons, que çstava na jurisdiç50 metropolitana de Hiilcmar. c? significado mais amplo desse ato, que estabeleceu o princípio de que o papa ririha rutoridade de interferir 110s negócios internos de uma provílicin arquiepiscopal, enxntra-se em duas circunstâncias náo relacionadas. A primcira era a convic~áode 3incmar - que ele anunciara em sua Kda de S. Reemlgio (o bispo de Reirns que 7arizara C16vis) e depois drarnarizara com sua aç5o unilateral de uiigir Carlos, o LaI~ro,como imperador em Met-z (869) - que a sé de Reirns tinha virtualmente ; ;toridade
suprema nos assuntos eclesiásticos dos francos. A segunda circunst3ncia
<:i a i~isatisfa~ão que era então sentida pelos bispos franceses de modo geral diante i r frequente viulaçáo 'ia ordcm e disciplina canônica em suas igitjas - uma situa$io
zajionada acima de rudo pela crescente alienaçáo das terras e propriedades da igreja i ::os
:.i
magnatas locais leigos. Esse ~roblema,uma manifcsra~áoda conf~~sáo c violêil-
da época, levou os bispos, em Épernay em 846, a exigirem que o rei interferisse e
:-rabelecesse os direitos da igreja. Carlos, o Calvo, entretanto, estava sem vontade, :.-:-..ai-eimente porque era incapaz, de fazer isso, e nessa posciira foi apoiado por -.
. ...,crnai.
Diante dessa ameaça à ordem tradicional e do fracasso da autoridade real
manter seu papel como protetor das igrejas, as mentes de prIo menos alguns ::Ic:iájricos voltaram-se para o papado. Em algum lugar do reino francês, um grupo :.-
i:
erudiros dissidentes compuseram as Decretgis Pseudo-lsidu~ianas, uma coleçáo de
:ri r: :cócs conciliares e papais, algumas gznuínas e algumas claramente forjadas, que - -.......Li:ax-am --
ruem sido coligidas por Isidoro de Sevilha h-er 111:19'1. O obieti~.o
292
HIST6RI4 li1IGREJA CRISTA
dessa coleçáo (na qual estava incluída a Dodçdo de Constantzno) era evidente. Para proteger os direitos dos bispos contra as usurpaçóes da nobreza leiga e alguns outros abusos, ela centrava coda autoridade eclesiástica no papado, as custas náo apenas da autoridade real, da nobreza leiga e das cortes seculares, mas também dos arcebispos provinciais. Para a época, essa doutrina era revolucionária. Nicolau I pode ter ficado familiarizado com essas decrecais, c sua açáo disciplinadora contra Hincmar de Reirns pode ser interpretada como uma resposta simpática ao apelo nelas implícito por uma afirmação do poder papal. Porém, foi apenas após dois séculos que os papas apelaram explicitamente a essa coleção ou foram capazes de provocar algo semelhante ao estado de coisas que ela imaginava. Estes gestos em direçáo ao estabeiecimento da autoridade do papado no reino franco foram acompanhados por uma intervencáo significativa da parte de Nicolau nos assuntos da igreja b~zantina.Em 858, o patriarca de ConstantinopIa, Inácio, foi deposto de sua sé pela solicitação de Bardas, tio e principal conselheiro do imperador Miguel 111. A oportunidade para esta açáo foi a recusa sistemática de Inácio, um conservador rígido, a se compromerer com as políticas do novo governo que tinha surgido após o afastamento forçado da imperatriz Seodora como regente (ver IV3). Para o lugar de Inácio, Bardas indicou uin leigo, Fócio, um dos eruditos mais capazes dentre os teólogos sérios da igreja oriental. Quando Inácio se recusou a afasrar-se e levantou questóes sobre a legitimidade de sua deposiçáo, o imperador e Fócio convidaram Nicolau a enviar representantes para um sínodo que lidaria tanto com certas questões sobre o iconoclasmo e com o problema do patriarcado. Os representantes de Nicolau, entretanto, parecem ter ido além de suas instru~óes.A principal preocupaç.áo do papa era utilizar essa ocasiáo para negociar com as autoridades orientais a restauraçáo da jurisdiqáo eclesiástica papal no sul da Itália e nos Bákás, onde ele estava em correspondência com o czar búlgaro, Bóris, sobre a possibilidade de enviar missionários romanos para cristianizarem a nação de Róris. Seus representantes, entretanto, foram superados nessa questão e, contrariamente aos desejos do papa, participaram de um sínodo que registrou a aprovação papal da deposiçáo de Inácio sem ganhar concessões de Constantinopla. Nicolau, quando ouviu isto, reclamou que sua carta a Constantinopla fora falsificada e recusou-se a reconhecer os atos do sínodo, declarando que Inácio ainda era o patriarca. Em 863, ele excomungou Fócio. Não houve nenhuma réplica de Fócio durante quatro anos. Mas em 867 - em uma carta que pela primeira vez levanrava a questáo da c l á u s ~ l a j l i o ~ ujáe ,então embuti-
PERIOUO [v
h IDADE MEDIA E O ENCERAMENIO 0 A EONTROYERSIA DA IHYEITIDURA
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da na versáo latiria do credo niceno, como um ponro de discórdia entre o Oriente e o Ocidente - Fócio declarou Nicolau anátema e o excomungou. No mesmo ano, porém, um novo imperador, Basílio I (867-886),que havia assassinado tanto a Bardas como a Miguel 111, restaurou Inácio ao trono patriarcal, e o assim chamado "cisma fociano" terminou. É verdade que em 878, quando da morte de Inácio, Fócio foi novamente elevado ao patriarcado, mas parece que o papa Jo5o VI11 (872-882), contrariamente a uma visáo anterior corrente entre os estudiosos, aceitou essa eleição como legítima. Nicolau obtivera êxito ao fazer sua autoridade sentida como o único bispo, com uma reivindicacáo à autoridade universal, mas no processo, as relações entre as igrejas oriental e ocidental haviam dado mais um passo na diregáo do cisma permanente.
Capítulo 7
O Papado e o Império Otônida Dificilmente as relações com as igrejas orientais eram a preocupaçáo principal do papa Joáo VI11 quando ele chegou ao poder em 870. A morte do imperador Luís em
875 levou a uma renovação do ataque sarraceno na Itália. Sem nem mesmo a imagem de uma autoridade central para liderá-los, os príncipes menores da Lombardia e da Itália meridional, em suas escaIadas competitivas em busca de seguranca e poder frequentemente preferiam lidar individualmente com os incursores sarracenos a se unirem contra eles. Nesta situaçáo, os invasores obtiveram uma base de operacões permanente perto da desembocadura do rio Garigliano, ao sul de Roma, de onde eles devastavam o litoral e as áreas rurais. A abadia de São Bento no Monte Cassino foi saqueada, entre muitas outras. O s invasores chegaram até as muralhas de Roma.
O papa Joáo passou muito de seu pontificado em uma tentativa de reunir ajuda do norte para a Itália e unir os príncipes italianos contra o seu inimigo comum. No primeiro desses empreendimencos ele fracassou; no segundo, obeteve sucesso razoável. Não obstante, quando ele morreu - envenenado por metnbros de sua própria família, assim foi dito, que desejavam sua riqueza - Roma estava sob ataque.
A morte de Joáo em 882 assinala o ponto após o qual o papado, por quase um século, ficou submerso na discórdia c violência da política italiana e tornou-se um joguete nas máos dos príncipes locais e da aristocracia romana. Os historiadores têm cendido a enfatizar a degradaçáo, tanto moral como insritucional, do papado nessa época: a frequente desonra daqueles que ocuparam o ofício e o uso do práprio ofício como uma peca 110s conflitos dinásticos e familiares. Essas críticas severas sáo sem dúvida suficienternentc aturadas, mas duas outras circunstâncias devem ser mantidas em mente em qualquer tentativa para compreender essa época. Primeiro, o que aconteceu com o papado nesse período foi simplesmente uma instância da situa5áo que veio a existir quase universalmente na Europa - o mesmo tipo de siruacão da qual os bispos franceses haviam reclaniado junto a Carlos, o Ca1i.0, em Épernay em 846. Com o desaparecimento vir~ualda autoridade central no esrado, as propriedades e instiruiçóes eclesiásticas de todos os tipos caíram sob o controle feudal de magnatas leigos locais, que as utilizavam tanco para expandir a base de seu poder como para beneficiar parridários e familiares. O resultado dessa siruagáo foi uma frouxidão disciplinar e moral algumas vezes cscat-idalosa por parte dos monges e do clero em
pai, que foi encorajada mais ainda pela confusáo e des-
truifáo iiiaterial que se seguiu na esteira das incursões nórdicas e sarracenas. Segundo, essa mcsnia era de confusão e desordem quase em rodos os lugares fez nascer movimentos significarivos para restauração: movimentos que almejavani ao mesmo rempo a purificaçáo e reforma das i~istituiqóesreligiosas e o reavivainento de algo semelhante ao ideal carolíngio de uma sociedade na qwal sacerdote e governante trabalhassem conjuiltamcnte para a cria~áode uma comunidade cristá. O que é interessante sobre a história do papado nesse período náo é o fato de que elc tamb6m sentiu os efeitos da desintegraçáo da sociedade européia, mas que o movimento para resrauraqáo e reforma (como mais tarde, no início do século dezesseis) teve suas raízes em outro local que não o próprio papado e apenas
conquistou a
instituição papal.
O período mais escandaloso para o papado foi sem dúvida o meio s k u l o entre a ascensáo de Sérgio 111 (904-911) e a de Joáo X I I (965-972). Durante essa era, tradicionalmente conhecida entre os historiadores como a "pornocracia", Roma e o papado esravam sob o controle da família de Teofiiato, "senador dos romanos" e o mais alto oficial leigo na cúria papal. Foi Teofilato -juntamente com seu nomeado como papa, Joáo X (9 14-928) - que reuniu a aristocracia romana para se juntar a uma força ítalo-
bizantina que finalmente expulsou os sarracenos de seu campo fortificado na desembocadura do rio Garigliano. O próprio papa lutou na batalha à frente do contingente romano.
A morre de Teofilato (9 15?)deixou os negócios de sua família e do ducado romano nas máos de sua ambiciosa filha Marrízia, que era casada com Alberico de Spoleto. A morte deste (depois de 917) levou Marózia a procurar consolidar sua posição por meio de um novo casamento, desta vez com Guy de Toscana. Joáo X foi contrário a esse casamento, mas sua opasiçáo eventualmente se deu mal quando soldados toscanos apareceram em Roma, enrraram
i10
Latráo, mataram o irmáo do papa, e depois
prenderam e asfixiaram o prbprio papa. Marózia nomeou os pr6ximos três papas, o
último destes, Joáo XI (931-9361, era seu filho (o qual, alguns diziam, era filho ilegítimo do papa Sérgio 111). Quando o seu segundo marido também morreu,
Marózia, almejando, ao que parece, a fu~idaçáode uma dinastia imperial que fosse verdadeiramente romana, ofereceu sua máo a Hugo de Provenca, meio-irmáo de Guy, que era chamado rei da Itália. Nas festividades do casamento, porém, Hugo insultou Alberico, filho de Marózia, o qual incitou o povo de Roma contra sua mãe e seu pretendente marido, acusando-o de incesto. Hugo de Provença fugiu de Ronia, Marózia foi confinada (e morreu pouco tempo depois) e o prbprio Alberico assumiu os negócios da igreja e ducado roinanos, com o título "Príncipe e Senador de Todos
os Romanos." O governo de Alberico (932-954) foi sem dúvida arbitrário. Mas também foi imparcial e obviamente direcionado para a resrauraçáo da ordem e da relativa prosperidade da cidade e de seus territórios circunvizinhos. Ele dedicou muita arençao, ademais, à reforma dos estabelecimentos monásticos, cuja vida havia sido perturbada e corrompida pelos eventos da época. Neste neto de Teofilaco, que rejeitou todas as tentativas de submeter Roma i s forças externas, triunfou o espírito de integridade loca1 e auro-suficiência. Eic corití-olava o papado, mas os papas que nomeou - e que lhe permaneceram fiéis - foram pessoas que náo desonraram o cargo papal, as funcóes do qual nesse tempo eram em todo caso amplamente simbólicas. Ele parece, na realidade, ter buscado precisamente aquilo que os próprios papas anteriores rinham tentado alcançar: a independência de Roma e de seu bispo, com a diferença de que
aos seus olhos o bispo pertencia a Roma e náo o contrário.
AS
vésperas de sua morte,
ele tentou unir seu próprio ofício com aquele do papado, extraindo um juramento de que seu filho Otaviano, que aparentemente era um farrista, sucederia o papa do
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R IDADE MÉOIA E O ENCERAMENTO DA GOITROUERSIA
OA INUEXIIDURA
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seu crescerice esplendor serviam para difundir um elevado padrão de moralidade e piedade entre o clero Iaico e das catedrais como também entre os monges.
A Ingiaterra foi um lugar onde, na segunda metade do décimo século, a influencia do ideal cluniaceilse foi sentido, ainda que apenas indiretainencc. Lá, sob Eduardo, o Anciáo (899-925) e Atelestano (925-939), sucessores d o rei Alfredo, foi reestabelecida a autoridade dos reis ingleses sobre a jurisdi~áodinamarquesa e iniciou-se a conversão dos dinamarqueses ao cristianismo. Apesar dos esforços de Alfredo para provocar um renascimento de aprendizagem e zelo pastoral, entretanto, a restauração da vida c propriedade da igreja teve que aguardar o desaparecimento da crise militar, uma vez que os reis continuaram a necessitar dos recursos das terras eclesiásticas para criar uma nova e equipada força militar. O Iídcr eclesiástico do movimento de reforma inglês, que procedeu sob auspícios reais, foi Sanco Dunsrano (ca. 909-988), que foi nomeado abade de Glastonbur~pelo rei Edmundo (939-946) e depois arcebispo de Cantuária
rei Edgar (960-975). Em Glastonbury, Dunstano
- um asceta decidido que era ao incsmo tempo um teólogo erudito, um músico
notável, um ilumir-iador de manuscritos bem sucedido, e um trabalhador em metais -
aparentemente de quase nada, uma co~nunidadebeneditina estrita, que se
tornou o modelo para fundagóes e refornias posteriores realizadas por seu pupilo e colega Etevoldo, bispo de Winchestcr. Quando arcebispo de Cantujria, Dunstailo esteve preocupado iguaimente com a reforma e doragáo das "famílias" de bispos e com os c6negos "seculares" das igrejas oficianres. Em tais lugares, ele procurou impor a vida beneditina sobre os cônegos, que não poderiam ter propriedade privada e deveriam viver vidas celibatárias. Estas reformas conduziram Dunstano e seus companheiros ao conflito com muitos da nobreza, que eram forcados a entregar seu ;ontrole das terras monásticas. O arcebispo, entretanto, teve o apoio do rei. Edgar
até mesmo dcsignou renda da coroa para o sustento desse grande esforço para uma reconstrução completa das institiiiçóes eclesiásticas inglesas.
Ein última análise, cntretanco, o veículo mais poderoso do movimeiito para res:auraqáo acabou sendo a dinasria saxônica de reis alemães, crija linhagem conlqou com Henrique I (910-936), cognorninado "o Passariiiheiro." A situacáa na Alema-
ril-ia era bastante peculiar. O feudalismo náo se havia enraízado di, mas o reino ~arolíngiomostrava todos os sinais, 110 início do décimo século, de estar i beira da tissolução em seus ducados tribais constituenres: Baviera, Suábia, Saxhriia, Francônia, r I apDs 929) Lorena. Tal dissoluçáo náo ocorreu por causa de duas circunstâncias. A
primeira destas é o fenômeno dos ataques húngaros (magiares) à Europa, que se iniciaram perto do final do nono século e criaram, na fronteira orienral do império de Carlos Magno, uma crise r50 grave quanto aquela ocasionada pelos nórdicos e pelos sarracenos no oeste e na sul. Um povo nômade oriundo das estepes da Ásia, os húngaros incursionaram em uma ocasião a locais táo distantes quanto a Itália e a França, saqueando e devasrando onde quer que aparecessein. Foi nos ducados alemães, porém, que a pressão e o terror de suas hordas foram sentidos mais imediatamente. Em segurido lugar - e parcialmente sem dúvida por causa desse perigo - os grandes eclesiásticos alerriács e os lídercs dos assitti chamados ducados "de proa" decidiram eleger para si outro rei: Henrique, o Passarinheiro, duque da Saxônia; e embora o ciúme deles em relação ao seu poder
tenha-o forpdo a confiar
amplamente em seus próprias recursos, Henrique provou ser um líder digno de sua comissáo. Ele fez os dinamarqueses recuar no norre, subjugou os povus eslavos ao Oriente do Elba e, em uma batalha no campo de h s t r u t r , em 933, impôs uma derrota sinalizadora aos húngaros. Ele foi sucedido como rei pelo seu filho ainda mais capaz, Oro I (936-973), o arquiteto do império alernáo.
A primeira tarefa de Oro foi a exrensáo de sua auroridade e a cotisolidaçáo de seu reino. Sua concep~áoa respeiro de seu papel parece rer estado clara desde o início:ele se fe~ ungido e coroado rei na antiga sede de Carlos Magno, Aachen (ilix-la-Chapclle), pela arcebispo dc Mainz, a sé primaz da Alemanha. Ele se via, entáo, como rei sagrado, em cujas mãos Deus havia confiado a protesáo e a nutricão de u m povo crisráo. Ademais, Oro era um daqueles príncipes, como Alfredo ou Edgar na Inglaterra, que era ele próprio
u111 cristão
genuinamente devoro (em sua família imediata havia dois
santos canonizados) e um homem a quem a boa situaçáo das igrejas era uma questão de preocupação direta e pessoal. Ao mesmo tempo, Oco foi sábio o suficien~epara ver que os recursos dos estabelecimentos episcopais e monásticos alemáes poderiam supri-lo com uma base de poder militar e econhmico que o habilitaria a dominar os líderes obstinados dos graiides ducados. Desde o início, esse novo rei certificou-se de que ele controlava as cerras das abadias e bispados alemáes, obtendo direitos de propriedade sobre scus rerritbrios e insistindo sobre o direito de investidura
- isto i, o direito de investir
bispos e abades com os símbolos do ofício deles em seu caráter, como um rei sacro. Isto significava que ele podia extrcer controle sobre a indicaqáo do clero superior por rodo o seu reino, uma vez que nenhum bispo ou abade poderia assumir os deveres de
Ptaiono iv
A IOAOE MIOIA I O ENGFRAMEITO OA CONTBOVERSIII OA INULSIIOUBA
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seu oficio sem investidura. O sistema proprietirio, e na realidade o costume de investidura por magnatas leigos, existia em outros lugares na Europa (a abadia de
Cluny era uma igreja de propriedade do papa), e de modo geial ele riso era visto como inconsistente com o bem-esear da igreja se os direitos e obrigações das partes fossem cuidadosamente definidos. Oto, ericretanto, fez uma política deliberada de manter o controle das igrejas alemás em suas próprias mãos, e preenchia os ofícios superiores das igrejas, bem como os bispados e abadias, com pessoas nas quais ele pudesse confiar, não apenas que fossem fiiis aos seus deveres pastorais mas também que f~incionassemcomo representantes da auroridade real em assuntos civis. Náo demorou muito para Oro se ver envolvido rios assuntos da Itália setentrional. Em parte, isso foi resultado de suas próprias ambi~õesimperiais, mas em igual medida foi resultado de o '"reino" da Irália ter sido herdado por unía mulher, Adelaidc. Tal evento precipitou intervenções na It%liapelos duques da Baviera e da Suábia. Isso tambEm impeliu Berengário a se clcclarar rei dos lornbardos, capturar Adelaide, e exigir-Ihe quc se casasse com seu filho. Ein tais circunstâncias, O t o teve que afirmar a autoridade do rei alemáo, e em 351 ele invadiu a Itália, tomou Adelaide como esposa, c - novamente conio Carlos Magno - fez-se rei dos lombardos. Ele rambém surgiu às porpas de Roma, requerendo do papa Agaysto I1 coroacáo como imperador; mas o papa - sem dúvida sob as ordens de Alberico, que estava de posse tocd de sua pr6pris igreja proprietária e rláo queria intromissócs alernás sobre ela - recusou. Durante a próxima década O t o esteve ocupado com uma revolta por parte de alguns i~ohresalernács e pela pressáo renovada dos húngaros. Ele foi bem sucedido na rnanutenção de sua causa, porém, e ao final reuniu aré mesmo os rebeldes para a bataiha campal de Lech (perto de Augsburgo), onde os Iiúngaros foram finalmente, completamente derrotados (955). O t o foi aclamado imperador por suas tropas e reconheci-
do iiniversaImente como o salvador da cristandade. Entretanto, ainda havia apenas uma forma de se tornar imperador,
e esta era
através da coroaqáo papal. Correspondentemente, O t o teve que esperar pela realiza-
ção de sua arnbiçáo. Em 962, ele foi convocado pelo filho de Alberico, papa Joáo
XII, a agir, da mesma forma que fpino 111 e Carlos Magno, como a braco direico forte da igreja romana, nessa ocasião, para defender os territórios papais conrra os ataques de Berengário, que não ficou parado enquanto Otn esreve preocupado com os assuntos alemães. Em troca, ele foi coroado por Joáo. Oto logo deixou claro o que significava para ele sua "protetoria" da igreja romana. Ele confirmou a posse do
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HISTDRIA DA IGREJA CRISTi
papado de suas propriedades italianas, mas fez o povo fazer um juramento de fidelidade a si e náo à igreja romana. Ele também decretou que nenhum papa poderia ser instaiado daí em diante sem um juramento de fidelidade ao imperador pessoalmente ou a seus deIegados. A essa indicação que O t o via Roma e seu bispado como uma igreja sobre a qual o imperador tinha direitos propriedrios, João arrependeu-se de sua barganha com o rei alemáo e voltou-se para seus antigos inimigos em busca de ajuda contra Oto. O resultado dcsta açáo - traiçáo, do ponto de vista de O t o - foi que o imperador reuniu um sínodo em Roma e em 6 de dezembro de 963, declarou Joáo deposto. Ele o substituiu por Leáo VI11 (um ex-leigo c alto oficial na administração da igreja romana); mas nem bem O t o havia saído de Roma a população expulsou
Leáo, restaurou João, e entáo, quando Joáo morreu em 964, elegeu Bento V para sucedê-10, sem o consentimento do imperador. Oco retornou a Roma, baniu Bento para a Alemanha, e restaurou Leáo VIII, cujo sucessor, João XIII (965-972), também foi uma nomeaçáo impcrid.
O sonho de um império romano e cristão no Ocidente foi assim reavivado em Oro I, que foi táo longe quanco negociar o casamento de seu filho mais velho com uma princesa hizanrina, Teofano. Este sonho, contudo, provou ser a ruína da casa otônica, quando, um século mais tarde, ele iria evidenciar a queda do reino alemáo que O t o havia criado. Seu fillio, O t o TI (973-9831, morreu em campanha na Itália contra os sarracenos. Seu neto, Oro 111 (983-1002), que chegou ao trono com três anos e reinou efetivamente por apenas oito anos, foi algo de uin prodígio de aprendizagem, piedade e idealismo. Como seu pai, entretanto, ele abandonou a Alemanha pela Itália e montou sua residência em um palácio na colina Avenrina, em Roma, na
expectativa de urna verdadeira renovação do império romano, do qual, para ele, Carlos Magno era o símbolo. O t o novamente retirou o papado das rnáos da nobreza romana local, agora liderada pela casa dos Crescênzio, e na pessoa do papa Silvestre
I1 (999-1003), seu antigo tutor (e um homem de erudição r50 variada que o povo cornum às vezes suspeitava que ele praticava magia negra), deu a Roma seu bispo mais nocável em muitas gerações - e certamctice o único a reconhecer que a Donçáo
de Constantinn era uma fraude. Porém, a fundaçáo do império de O t o estava na AIemanha, e sua negligência para com os assuntos aIemáes significou quc seus sucessores, o bivaro Henrique 11 (100 1-1 024) e o ex-conde fraiiconiano Conrado 11 (1024-
1039), tiveram que gastar suas energias recotistruindo as bases do poder real na Aíemanha. Eles, correspondentemente, deixaram a Irália e o papado amplamente aos
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A IOAOE MEDIA E O ENCERAMENTO 011 CIINIROUÉRSIA DA INVESIIOUBA
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seus prbprios cuidados, e os negócios da igreja romana caíram sob o controle dos condes de Tuscuium, que em 1033 colocarain no sólio papal um jovem simples, Bento IX.
O império otônica havia restaurado o ideal caralíngio de urna sociedade na qual, sob a supervisão suprema de um govername divinamente ungido, os eclesiásticos e as instiniiqóes cslesi~sticastinham um papel orgânico a desempenhar. Ele cambém tinha, intermitente e dolorosamentel elevado o papado novamente para um nível de
uma instituiçáo de influência e significação mais do que Iocal. Ao final, entretanto, a verdade que ficaria snanifesto era que o império alemão na realidade wáo era romano ou (mesmo no Ocidente) universai e que o foco de uma sociedade cristã latina se er-icontrava em outro lugar. Antes que isso pudesse se tornar evidente, porém, o império teve que revivificar o papado.
Capitulo 8
A Igreja Grega após a Controversa lconoclasta As divisóes provocadas pela controvérçia iconoclasca no império oriental náo foram facilmente curadas, e seus efeitos políticos, militares e religiosos, perrnailecsran~ por muico cempci. LJm destes efeitos esrá demonserado na antipatia de amplos setores do exército - uma fortaleza do icoiioclasmo desde os csmpos de Leáo III - para com Sovernantes que 6~vorrcesserna veneraqáo de imageils. Essa antipatia, combinada com a frequente inépcia por parte dos generais e comandantes imperiais, implicou que sob Irçne (ver IV:3) e seus sucessores Nicéforo I (802-81 1) c Miguel 1 (81 1 -
8 131, o império bizantino foi humilhado em quase todas as frentes: pelos sarracenos na Sicília, Creta e Ásia Menor, e nos Bálcás pelos búlgaros sob seu líder guerreiro
&um (m. 814). Um segundo efeito pode ser visto no conflito, que persistiu mesmo após o repúdio final ao iconoclasmo, entre uin partido liberal e um partido rigorista na igreja. Este último represeiirava os valores e atitudes dos monges que haviam formado o cerne da oposição ao iconoclasmo. Eles viam a igreja e o seu Iíder, o patriarca de Constantinopla, como uma autoridade conx~rriientement~ indeyenden-
te do poder (e na prática frequenremente hostil a ele) e políticas do imperador. Os liberais, cujos representanres no trono patriarcal tendiam a ser ex-leigos e servidores p i c o se
n o r n n d e o o s ou r t d o s em s u a c o n v c s m a a pática
assumiam a perspectiva de que o imperador era a autoridade suprcma na cristandade e que a igreja era um ramo ou braco da sociedade cristá que o imperador, como representante de Crisro, encabeçava. Foi no reinado do imperador Miguel 111 (842-867),cognominado "o Bêbado",
que o império bizantino finalmente repudiou o iconoclasmo e iniciou mais de um século e meio de expansáo e renovaçáo, que culminou nos brilhantes sucessos militares dos imperadores Joáo Tzimiskes (969-976) e Basílio I1 (976-1025). Miguel por si mesmo era urna pessoa sem impordncia e dissoluta, mas sob a tutela (e dominaçáo) de sua mãe, Teodora, e depois de seu capaz mas infame cio, o cisar Bardas, seu reino assistiu à reconstruçáo do poderio militar e naval bizantino. Náo apenas as forcas sarracenas do cmir Melicene foram sinalizadoramentc derrotas em 863, mas no mesmo ano, tendo ouvido que o czar búIgaro Bóris estava negociando com o imperador franco Luís TI por missionários cristãos de persuas2o ro~naria,Miguel marchou sobre a Bulgária, forcou a conversão e batismo de Bóris (que bascante convcriienternente assumiu o nome batiçmal de Miguel), e assim adicionou outra naçáo ao império oricnrai. E desnecessário dizer que esse evento náo encerrou com os conflitos políricos e militares no BáIcás, da mesma forma que os sucessos militares na fronteira oriental náo trouxeram paz definitiva àquela região. Bizâncio cinha que lutar incessantemente em anibas as frentes para preservar sua existência. Sob a dinastia macedônia, entretanto, que comeGou com o sucessor de Miguei, RasíIio 11 (867-
886), as forças que estavam promovendo a recuperaçáo e gradual expansáo, embora com frequentes reveses, triunfaram, até que por volta de 1025 o império tinha resrabelecido seçóes sig~iificacivasda Síria e da Armênia, recuperado o controle da Itália meridional, Creta e o Egeu, e afirmado sua hegemonia sobre os Bálcás.
A era que se iniciou com o reinado de Migucl I11 rambém assistiu a um reilascimento significativo de erudicão e arce no Oriente, graqas em parte considerável a iniciativa do imperador Teófilo (829-842),que restaurou a universidade secular de Conscancinopla, colocando-a sob a liderança de um erudito notável, Leáo, o Matemático. Enrrc os estudantes que se reuniam ali estavam Fócio, mais tarde patriarca de Constantinopla, o mais notAvei erudito e pensador de sua época; e Constantino, que sucedeu Fócio como professor de Filosofia e posteriormente, com seu irmão
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Mctódio, dedicou sua vida à cristianizaçáo dos povos eslavos da Morávia (ver IV9). Essa universidade, que o próprio Fócio reorganizou novamente em 863, tornou-se náo apenas um local de treinamento para os servidores públicos civis do império mas também um centro para a diftisáo da fé e cultura bizanrinas.
A parte a questáo do iconoclasmo, o pincipal problema religioso de Bizâncio no nono século foi aquele criado pelos assim chamados paulicianos (assim denominados por causa de sua reverência especial ao apóstolo Paulo). Esse grupo, o qual na época de Leão TI1 estava firmemente enraizado na Armênia, seu loca1 de origem, e no sul da Ásia Menor, pregava e praticava uma forma de cristianismo remanescente do dualismo rnaniqueísta, gnóstico ou marcionita. Defendendo que o cosmo visível, material, é uma criaçáo do poder do mal, enquanto que as almas derivam do Deus bom, os paulicianos rejeitavam o Antigo Testamento, negavam a realidade física da encarnaçáo, portanto diminuindo a devoçáo a Maria como a Mãe de Deus, e condenavam veementemente a urilizacáo de quaisquer coisas materiais na devoi.áo cristã ícones acima dc tudo. A persegui~áoaos paulicianos comec;ou cm 813, sob hliguel I. Ela foi motivada náo simplesmente por uma aversáo k hcresia, mas também pelo fato de que os paulicianos, em sua maioria tipos fronteiriços e soldados bastante robustos, estavam táo frequentemente quanto náo aliados com os sarracenos, na perrnariente luta ao longo das fronteiras meridionais do império. A persegui~áo,é claro, que se intensificou após a rejeiqáo do iconoclasmo em 843, simplesmente conduziuos ainda mais para os braqos dos inimigos do império; um exército pauliciano constituía uma divisão da força árabe derrocada por Miguel 111, em 863. Não obstante, Bizâncio náo estava destinada a se ver livre dos paulicianos. Em
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imperador Constantino V havia deslocado colonizadores armênios e sírios
para fortalezas na Srácia, com o intuito de fortalecer suas defesas contra os búlgaros ao norte. Entre estes colonizadores estavam alguns paulicianos, que aparentemente disseminaram seu ensino na Trácia, de onde ele alcançou a Bulgária. Assim, no segundo terco do décimo século, o czar Pedro da Bulgária (927-969) estava perguntando ao parriarca de Constanrinopla como Iidar com um grupo de heréticos que derivavam seu ensino do sacerdote Bogomilo (Teófilo) e que claramente reproduziam elementos significativos do dualjsmo que os pauiicianos esposavam. Como os gnósticos antes deles, esses bogornilos, como eram chamados, estavam convencidos
de que o mundo visível estava sob o domínio do mal c, de fato, que a matéria em si mesma é má. Em nome dessa doutrina, e pregando uma mensagem que demandava
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HISTORIA DA IGREJA G R ~ S I A
retidão pessoal e protestava contra as iniqüidades das ordens eclesiástica e social, os bogomilos proibiam ao círculo mais interior de seus iniciados náo apenas o intercurso sexual, mas rambém carne e vinho. O movimento deles não foi extirpado, e por fim espalhou-se dentro do império bizantino como também para o norte na península balcânica. Ele influenciou, ou foi uma fonte dos movimentos patário e cátaro na Itália e Languedoc, 110 século doze (ver V3). Na igreja orrodoxa em si, a era da dinastia macedônia assistiu ao início de um movimento teológico que derivava sua inspiraçáo das tradi$óes e práticas da espiritualidade monástica. Este movimento - denominado, em sua forma desenvolvida, hesiquasmo (do grego hêsuchos, "quieto") - conipreendia a teologia em seu sentido mais estreito e apropriado, como uma disciplina preocupada com o conhecimenco de Deus. Tal corihecimento, entretanto, ele considerava ser essencialmente uma qiies~áode prática em vez de mera teoria: a prárica do amor por Deus, que era guiado peia fé ortodoxa, adora~áosacramental, e observância exata dos mandamentos do Senhor. O primeiro líder mais notável desse movimento foi Simeáo (949-
1022), abade do niosteiro conssanrinopolitano de Sáo Mamas, que estava na tradição mística de mestres como Máximo, o Confessor (ver. 1II:ll) e Joáo Clímaco (m.
G49),abade do mosteiro de Monte Sinai e autor da influente obra Escirdd do Pa~aiso. Para Simeáo, a teologia significava acima de tudo o conhecimento dc Deus, que os monges obtêm quando sáo transformados e djvinizados através da contemplaçáo da luz divina que brillia no Jesus transfigurado. Tal conhecimento, entretanto, transcende toda coisa verbal ou conceitual, da mesma forma que é alcanpda, náo pela razáo, mas pela prática moral e devocional. Para Simeáo, portalito, Deus náo é tanto conhecido como contemplado, sentido e experimentado atravks da vivência da fé ortodoxa. Dessa forma apreendido, porém, Deus C considerado estando, em si mesmo, além da compreensão - infinita e intrinsecamente incognoscível em sua essência, confornie os pais capadócios ensinaram (ver I11:4). O que o místico apreendia, conforme a compreensão de Simeáo, não era a essência divina mas a "luz", a arividade divina de auro-cornunicaqão, que fluía imediatamente do ser de Deus e que era ela mesma náo criada, O desenvolvirnenro deste ensino (que foi refinado ainda mais nos escritos de Gregório l'álamas no stculo carorze) conquistou para Sirneáo o rírulo de "o Novo Teblogo", que efetivamente o posicio~iavaatrás apenas daquele que era chamado "teólogo" por excelência, Gregório de Nazianzo (ver III:4). Por fim, essa teologia "apofiítica" ou "negariva", que se desenvolveu da experiência mística e
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A IOAOE MEDIA E O ENGERAMENTO DA CQNIROYERSIA DA IWUESTIDURA
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devocional e que diferenciava radicalmente enrre o ser divino e as energias ("luz") divinas, permaneceria como a marca distintiva de uma teologia oriental e grega enquanto oposta i teologia ocidental e Iatina.
A Expansão Cristã na Alta Idade Média O s séculos nove, dez e onze foram a era durante a q u d o cristianismo da GráBrctanha, do reino franco e de Bizâncio espalhou-se para abrangcr náo apenas os nórdicos da Escandiriávia mas tambim os povos predominanremente eslavos da Europa central e da península balcânica. Em alguns casos, essa expansão foi o resultado de conquista militar. Etn quase rodos os casos, ela foi de máos dadas com a reconstituiçáo cul~urale política de sociedades que haviam no passado sido tribais em estrutura e, ocasionalmencc, de estio de vida nômade. Quse inv~riavelmerite,ela dependeu da conversáo e cooperaçáo de govemantes que apoiavam - atgunias vezes com o uso da força - o trabalho dos missionários cristãos entrc seus povos. Assim, a cri~tianiza~áo subsrantiva de Lim povo tendia a seguir ao invés de preceder sua "conversá~."
A difusáo do cristianismo entre os povos dos Bálcás e nos territórios ao longo do rio Danúbio para o leste e sul da Baviera foi complicado pela rivalidade entre os interesses papal, alemão c bizantino. A ortodoxia oriental prevaieceu na Grécia, Macedônia e Trácia. Estas regiões haviam sido colonizadas intensamente por pagãos eslavos como conseqüência das migragóes e invasóes do sexto e sitimo séculos ( u m período que também assistiu ao surgimento do reino búlgaro que abarcava o Daníibio ao iiorre de Constantinopia). Sua çristianizaçáo gradual ocorreu como resultado da reafirniaçáo do controle político bizantino, que comcç-ou, aparentemente, sob o imperador Nicéforo 1 (802-81 1). Quando, no reinado do fundador da dinastia macedônia, Basílio I (867-8861, a Sérvia também ficou sob domínio bizantino, seu governante aceitou missionários gregos e cooperou na cristiariizagáo de seu povo. A expailsáo do cristianismo grego a parrir de Bizâncio foi acompanhado ao norte pela
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HISTORIA 0 1 IGREJA LRISTÁ
disseminação do cristianismo latino a partir da Baviera sob a tgide do poder franco. Esse esforFo tinha seus centros nas sés arquiepiscopais de Salzburgo e Aquiléia e se estendia na Caríntia e Croácia, que pelo início do décimo século, apesar da forte influência bizantina, lançou sua sorte com o cristianismo latino.
A grande realizaçáo missionária do 110110 século, todavia, foi a conversá0 ao cristianismo dos reinos da Bulgária e da Morávia - este último com seu centro ao norte do Danúbio, ao longo do curso do rio Morava, onde atualmente é a RepúblicaTcheca e a Eslováquia. Ambos esses reinos originalmente accicaram o cristianismo como resultado da pressáo de um poder externo. No caso da Bulgária, como já vimos, essa pressáo assumiu a forma de uma invasáo bizantina e o batismo mais ou menos forçado do czar Bóris (ver IV:8). No caso da Morávia, a pressáo veio do reino franco de Luís, o Germano (ver IV:6), que em 846 invadiu a Morivia e estabeleceu sobre ela como "duque" o príncipe Rastislau, que era, ori tornou-se pouco depois, cristáo. Como Bóris (que enviou seu filho Simeáo para Constantinopla para ser educado e terminou sua vida como monge), RastisIau estava totalmente frme em sua aceitaçáo do cristianismo e cooperou com missionários da Alemanha e ralvez da Itália na conv e r s á ~de seu povo. Também como Bóris, porém, Rastislau queria que seu reino crisráo fosse independente do domínio eclesiástico e político estrangeiro
- sobretii-
do, uma vez que, durante muito de seu reinado, esteve em guerra com seus benfeitores alemáes. Para atingir esse objetivo, ambos os monarcas utilizaram-se da rivalidade entre as auroridades romanas, alemás e bizantinas.
O desfecho dessa situaçáo foi que Bóris iniciou negociacóes com o papa Nicolau I (ver IV:6) para obter um líder independente da igreja búlgara, um curso de açáo que levou os bizantinos a consagrarem (em 870) um arcebispo para a Bulgária como uma forma de manter aquela iiaçáo dentro da esfera da ortodoxia orientd. Quase ao mesmo tempo, Rastislau, temeroso do domínio alemáo, escreveu ao imperador Miguel
111pedindo missionários de Bizâncio. O patriarca Fócio, ligeiro para náo perder essa oportunidade, enviou os dois irmãos Constantino (ou Cirilo, para utilizar o nome que ele assumiu quando, em 868, tornou-se monge em Roma) e Metódio - ambos representanres eruditos da fé e cultura grega, e ambos, como nativos de Tessalônica, eslavófonos. Esta foi a contribuição especial desses dois missionários q u e iniciaram o processo de traducáo das Escrituras e livros litúrgicos cristáos em eslavo, para o Constantino, de fato, projexou o primeiro alfabeto daquele idioma - um empreendimento que lançou as fundaçóes de uma c~ilturacristã eslava nos Bálcás como tam-
~ ~ i t o oiun
A 1010E MEOlA E O ENGERAMENTO DA COBTROVERSIA OA INVESTIOURA
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bém na Rússia. O projeto de desenvolver uma versáo vernacular das Escrituras e da liturgia encontrou uma forte e persisrente oposiqáo dos inissionários aleniáes na Morávia, que náo escavam acostumados com nenhuma linguagem litúrgica excero o latim. Constantino e Metódio, portanto, apelaram ao papa contra seus colegas alemáes, c receberam uma calorosa reccpqáo em Roma. Ali Constanrino morreu (8691, mas Metódio retornou
à_
Morávia como arcebispo, com permissão para continuar a
utilizar o eslavo (embora sem excluir o latim). O uso Iitúrgico do eslavo eventualmencc foi proibido pelo papado, embora somente apbs a morte de Merrídio (885?), e muiro da obra dos irmáos desapareceu quando, após 895, as ilivas6es Iiúngaras ou magiares estabeIeceram um novo reino pagáo na EsIováquia, Panônia e Transilvânia. Náo obstante, o cristianismo morávio penccrou a Boêmia até seu norte imediato, e os discípulos de Cirilo e Metódio conduziram suas Escrituras e lirurgia em eslavo para a Bulgária e outras regiões dos Bálcás.
A coniplcmentaqáo da obra de Cirilo e Metódio, que trouxe a área cenrral da Huilgria e também da Morávia para dentro da cristandade latina, tiveram assim que esperar até bem depois da derrota definitiva dos magiares diante de O t o I, em 955.
O trabalho dos missionários na Hungria comeqou no últiino quartel do decimo século, sob o primeiro monarca da nagáo, Geisa. Foi, entretatito, apenas sob seu filho, Santo Estêvão (997- 1038), que se tornou o santo parrono da Hungria e quem pregou ele próprio
entre
seu povo, que a fé cristá foi estabelecida na Hungria, com a
assisrência de missionários eslavos da Polônia e da Boêmia como também de alemáes do império de O t o III. O s cristianismos boêmio e polonês foram estabelecidos durante aproximadamente o mesmo ~ e r i o d oque o húngaro. A Boêmia, pátria dos tchecos, era a área irrigada pelo rio Moldau entre o Elba e o Danúbio e separada da Alemanha tanto ao oeste como ao norte por pequenas cadeias de montanhas. Ela fora parte do grande reino morávio no nono século e portanto sentira a influência da missão eslavófona de Constantino e Metódio, mas o paganismo, sem dúvida crescentemente associado com o sentimento anti-alemáo, permanecia forte. O rei Venceslau (ca. 924-929), um aliado d o rei saxáo Henrique I e um líder na causa da criscianizaçáo, foi assassinado após um breve reinado. Foi somente após Oro I ter trazido a Boêmia para dentro da esfera de influência do poder alemão que o duque Bolesiau I1 (967-999) foi capaz de estabelecer o cristianismo efetivamente e fundar a sé de Praga, cujo segundo bispo, Addberto (Vojtech) era ele mesmo um tcheco e eventualmente trabaihou como mis-
sionário entre os poloneses. A Polônia - aproximadamente a área ao sul da Pomerânia entre os rios Oder e o Vístula - também tornou-se, após 965, um tributário do império saxáo de O t o I, e com esse evento começou o processo de sua conversáo. Sob Boleslau 1 (992-1025), que expandiu os territórios poloneses As custas da Rússia, Alemanha e Hungria e assumiu o titulo de rei, a cristianizaqáo progrediu e a Polônia recebeu uma sé arquiepiscopal (Gniezno), que a assinalou como uma província eclesiástica independcncc, sob Roma.
A extensão mais novável do cristiailismo bizantino durante o século dez e início do onze aconteceu com a conversão da nação russa, çentrada no principado de Kiev. Predominatemente estavo em sua coilstituiçáo, o principado era ndo obstante governado por descendentes de viquingues succos (chamados varângios e rus), que no nono século haviam tomado o controle do sistema fluvial que corria do Báltico'para o mar Negro. Engajados em comércio regular (e hostilidades frequentes) com Constantinopla após meados do nono século, os varângios estavam em contato constante com Bizâncio e na realidade, após 91 1, um contingente de elite da imperial foi ex~raídode seus quadros. É possível que missionários gregos estivessem ativos no ~rincipadorusso desde os tempos do patriarca Fócio, de forma que em meados do século décimo havia cristáos, bem como náo-crisráos em Kiev; Olga, esposa do príncipe governante, Igor (913-945), cra ela mesma uma crente. O neto deia, Vladimir 1 (980-1 01 5), tendo-se decidido a ser batizado, tomou a iniciativa de
estabelecer igrejas e mosteiros estendendo o cristianismo ortodoxo de Kiev para o setor norte de seu principado, c ~ ~centro jo estava em Novgorod. Durante seu tempo e o de seu filho IarosIau, foram firinernenre estabelecidas as fundac;óes da igreja e cpiscopado russos. Náo foi aré o início do século onze que o cristiailismo foi adotado pelos povos nórdicos nos reinos de sua pátria escandinava. Seguramente, Alfredo, o Grande, na Inglaterra, havia exigido a conversáo e batismo do rci dinamarqu?~Guthrum como condiqáo para a çriajáo da jurisdição dinamarquesa, e o ducado da Normandia na França foi semelhancernente cristianizado como conseqiiência do tratado do duque Rollo com Carlos, o Simples (91 1). Os processos de conversáo assim iniciados, rodavia, tiveram pouca influêiicia na Escandinávia, embora náo tenha liavido Calta de esforco missionário naquela região. Táo cedo quanto o reinado de Luís, o Piedoso, foram feitos esforços para levar o cristianismo à Dinamarca e iSukcia - particularmente a esta última, onde Haroldo, um pretendente ao trono dinamarquês, buscou
PIRIODO IY A IOAOE MEDIA E O ENCERAMENTO DA CONTR0YERS111Dk INYESIIOURA
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apoio carolíngio para suas reivindicaçóes e assim aceitou batismo, em 826. Diante da perspectiva assiin aberta, Anscário (Ansgarius, m. 865), um monge Bamengo originalmente do mosteiro em Corbie, foi indicado para acompanhar Haroldo aos territórios na base da península da Jutlândia a qual ele posteriormente passou a controlar. Pouco tempo depois, Anscário foi também enviado para responder a uma convocaçáo da Suécia por missionários, e em 83 1 o imperador Luís estabeleceu para ele uma sé arquiepiscopal em Hamburgo, onde ele e seus sucessores teriam uma responsabilidade especial como represenrantes papais para os povos da Escandinávia e do norte da Alemanha.
A missáo de Anscário náo foi infrutífera. Na época de sua morre, havia sacerdotes e fiéis cristãos tanto na Dinamarca como na SuPcia. Durante a era do declínio do poder carolíngio, contudo, e dos araques mais pesados dos viquingues na Europa e nas ilhas britânicas, a missáo definhou. Por volta do início do décimo século, ela havia desaparecido na Suécia. Só os primeiros imperadores saxóes, porém - Henrique, o I'assarinheiro, e Oro I - o novo poder e prestígio da cristandade franca serviu para reJrerter a maré. O rei Haroldo Dente Azul da Dinamarca (rn. ca. 986) foi batizado, trabalhou para a conversáo de seu povo, e admitiu bispos cristãos em seu reino. Seu filho Sven (m. 1014), que gastou muito de siia energia em uma nova tentativa para conquisrar a Iilglaterra, foi e permaneceu pagáo, mas o filho dele, Canuro - rei tanto da Dinamarca como da Inglaterra, de 10 14 att sua morte em 1035 - estabeleceu o cristianismo em sua pátria nativa, utilizando missioriários tanro da Alemanha como da Inglaterra. Se a conversáo da Dinamarca deveu muito à infI uência dos reinos franco e saxáo e aos esforços missionários dos arcebispos de Hamburgo, a conversáo da Noruega,
que ocorreu praticamente durante o mesmo período, foi conduzida à sombra da igreja inglesa. O segundo rei da Noruega unida, Haakon, o Bom (935-961), fora educado quando criança na corte inglesa, e foi ele quem introduziu o cristianismo, juntamente com o clero inglês, no seu reino. O esforço missioliário foi continuado, com alguma assistência de Haroldo Dente Azul, que governou a Noruega por um período; mas a nobreza pagã, que sem dúvida associava a causa do cristianismo com a de unia autoridade real central, consistentemente opôs-se à nova religiáo. O sucesso final da igreja na Noruega veio no reinado de Olaf TVggvesson (Olavo I), um viquingue típico que foi criado na Rússia e convertido por um asceta cristáo nas ilhas Scilly, enquanto engajado em uma de suas numerosas incursóes na Inglaterra. Feito
HIST~RIA DA IGREJA
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CRISTI
rei da Noruega em 995, ele ii~icioua conversá0 de seu povo vigorosamente, firmemente,
e na realidade, violentamente. Sua morte em batalha, em 1000, foi seguida
por uma reacáo pagá, mas sua obra foi efetivamente completada por Olaf Haraldsson (Santo Olavo da Noruega, 1015-1028), novamente com a assistência do clero inglês, e com o uso da forca. Não foi senáo no século doze, porém, que a Noruega tornouse uma província independente da igreja sob o papa, com sim sé arquiepiscopal ein Lund. A cristianizaçáo da Suécia costumeiramente é atrihuida ao rei Olaf Skotkonurig (994-1024), um contemporâneo de Olavo I da Noruega e seus sucessores. Antes de sua época, o cristianismo havia reaparecido na Suécia, e missionários despachados tanto do norte da Alemanha como da Inglaterra (acravés da Noruega) haviam trabaIhado lá. Olaf, enrretanto, conquanto impedindo a destruicão do grande santuário pngáo em Uppsala, estabeleceu a fé no sudoeste de seu reino. Náo obsrante, o paganismo permaneceu force, e o trabalho missioriirio, eiirrer~ieadopor persegui<;óes ocasionais aos cristãos, teve que continuar. A Suécia mrnou-se to tdmence cristianizada apenas n o stc~ilodoze, a última n a ~ á oa ser trazida para a cristandade franco-bizantina da Europa.
Capitulo 10
O Papado Reformador O s sucessores imperiais de Oto 111 - Henrique I1 e o fiindador da assim chamada linhagem saliana, Conrado 11- de forma alguma haviam esquecido seu papel como governantes divinamente ungidos do mundo cristáo latino e portanto como protetores da igreja. Eles rambt'm não deixaram de se ver como tendo o direito e a responsabilidade de indicar e investir os bispos e abades, visando a assegurar tanto o bemestar espiritual do povo como a estabilidade política de seu reino, que continuou a
depender da popriedade real das terras eclesiásticas. O imperador Henrique I1 definiu-se como "servo dos servos de Cristo e imperador dos romanos, de acordo com a vontade de Deus e de nosso Salvador e Libertador." Ele foi um homem náo apenas
~ ~ n l o nivo
A IOAOE MEOIA E O ENCERAMENTO D A CONTROUERSIA DA INYESTIOURA
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devoto, mas tambbim, como alguém apropriado para um papel quase sacerdotal tanto quanto real, um homem dedicado à reforma das instituiçóes eclesiásticas e monásricas. Na realidade, a reforma estava no ar, na virada do século onze, apesar do fato de que os escândalos óbvios e chocantes do final da era carolíngia tinham sido em grande parte corrigidos. Os ideais de Cluny continuavam a se espalhar. Na Inglaterra, as reformas de Dunstano haviam sido iniciadas. Em Lorena, a obra de homens como o canonista Burchard, bispo de Worms (1000-102í), demonstrava uma preocupaçáo esmagadora com a ordem correra da igreja e das vidas de seus pastores. Na Itália, esta foi a era de Sáo Romualdo 6950-1027), natural de Ravena, que ali mesmo encrou para a vida monástica mas abdicou de sua abadia para assumir a vida de eremita e eventualmente tornou-se o fundador de uma ordem - denomiriada Carnaldolese, segundo seu principal centro perto de Arezzo - que enfatizava o afastamento do mundo e a vida solicária. Em todo canto havia um despertamento para a necessidade de disciplina, simplicidade de vida, e um espírito de dedicaçáo resoluta ao sacerdócio; eram repreendidas a muridailidade do clero c a cscravizaqáo aos interesses seculares. Dois males sistemáticos foram particularmente identificados como as raízes da corrupçáo da ordem sacerdotal. Um era a simonia, que, definida de forma estreita, significava a prática de oferecer ou requerer pagamento por alguma forma de ofício pastoral e eclesiástico.' O outro era o costume de casamento ou concubinagem clerical, que há muiro havia sido proibido pelos cânones da igreja ocidental, pois náo apenas parecia incoerente com o caráter sacro da vocacáo clerical mas também parecia amarrar aqueles que o praticavam aos interesses e necessidades inconsistentes com um espírito de Jedicaçáo resoluta.
Se havia uma inseituiçáo que ainda niío tinha sido visivelmente tocada pelo espírito de reforma, era o papado. A razáo fundamental para isto é que na prática, senão em princípio, o papado no inicio d o século onze era um insrrumento das facqóes locais, cm competiqáo na politica romana e italiana - e nenhuma das facqóes parecia partilhar o compromisso dos imperadores alemáes em nutrir e sustentar a missão espiritual do sacerdócio. Após os dias de Oro I , é verdade, nenhum papa assumiu seu ofício sem o consentimento do imperador e nenhum papa esteve em condiçóes de se opor ao interesse ou à
imperial. Por outro lado, nem Henrique I1 nem Conrado
I1 empregaram com muita freqüência o esforço exigido para exercer controle direto sobre seus rebeldes domínios italianos; e de qualquer forma, sua autoridade, percebida como alemã e 1150 romana, era impopular na Itália. Assim, os papas Bento VIII
(1012-1024) e Joáo XIX (1024-1032) foram ambos filhos de Gregório, conde de Tusculum c, conquanto buscando políticas que náo desagradassem os imperadores, eles se esforçaram para consolidar o controle de sua família sobre Roma e no processo enfraquecer a facção dos Crescênzio, seus oponentes locais. No reinado do imperador Henrique 111 (1039-1056) - um homem notável por sua piedade, seu elevado setiso da vocaqáo espiritual e sua dedicaçáo ao programa de reforma ila igreja - surgiu uma crise decisiva para o papado. Bento IX, sobriiiho dos dois papas predecessores, fora eleito bispo de Roma em 1031 quando ainda bastanre jovem. No decurso de seu pontificado ele não cresceu nem em graça nem crn sabedoria, e sua lascívia e crueldade arbitrária eventualmente produziram, em 1044, uma rebelião em Roma que conseguiu, por um pouco de tempo, colocar Silvestre I11
(1045) no sólio papal. Restaurado por seus irmáos, Bento náo obstante decidiu que o papado náo cra para ele. Pela promessa de uma agradável pensáo, porwnto, e com a perspectiva dc casamento, ele coiicordou em abdicar em favor de seu padrinho, Graciano, pastor da igreja de São Joáo, ances do portPo do Latráo, que o sucedeu como papa com o título de Gregório VI (1045-1046). Porém, iiáo obstantc as virtudes de Gregório - e sua ascensáo foi saudada com entusiasmo pelo clero de tendência reformada - faltava-lhe o imprimatur imperial. Quando Henrique 111 foi para a Itilia, no outono de 1046, para sua coroacão imperial c descobriu a complexidade da sitnaçáo em Roma, ordenou que fosse corivocado um sínodo em Sutri para que o caso pudesse ser julgado. O que Henrique fez foi imitar a acáo de Oto I em 963. Ele declarou a deposiqáo náo apenas de Bento IX e Silvestre 111 mas também de Gregório VI, e após essa limpeza nomeou uin alemáo, o bispo dc Bamberg, como papa Clemente TI (1046-1047). Clemence por sua vez
coroou Henrique como imperador. Juntamente com o imperador, ele iniciou urn esforço para barrar a onda de simonia na igreja - mas morreu após apcnas nove meses. Na ausência de Henrique, a casa ~usculana,provavelmente com a assistência
de outros magnacas italianos, procurou restaurar Bento 1X; a autoridade iinpcrial, porém, impôs outro papa alernáo, Uâmaso I1 (1048),que morreu apenas vinte e três dias depois de assumir o cargo.
Ao final, entretanto, Henrique 111 triunfou. Diante da morte de Dâmaso, em u m
Ptulnnn~u
A IDADE MEOIA E O ENCERIMENIO DA CONTROUERSIA DA INUESTIIIURA
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sinodo em Worrns, o imperador nomeou um terceiro alemáo como papa: Bruno, bispo deToul, um administrador e diplomata notável e um firme advogado do novo espírito de reforma, que se tornou papa Leáo IX (1049-1054). Com o pontificado de Leáo, emerge uni novo papado no palco da hisrcíria européia. A razáo imediata para essa mudança encontra-se na dedicaçáo ~ o t a de l Leáo em reformar a igreja por meio da disciplina e purifica~áode seu sacerdócio, no que ele teve a cooperação cordial de Henrique 11. Para executar seu projeto, contudo, Leáo teve que afirmar e aplicar a~ivamencea autoridade do ofício
e isso por sua vez significava duas
coisas: primeiro, teria que haver uma reapropriaqáo séria da ideologia que tradicionalmente havia sustentado a autoridade papal e, segu~ido,os papas teriam que se tornar indepeiidentes dos interesses partidjrios em Roma e na Itália, recuperando o controle polícico dos esrados da Igreja. Náo é surpresa nenhuma, portanto, que uma compilaqáo da lei canônica feita em Roma, na época de I,eáo, rcvelc um interesse notável na primazia romana e ateste a contemporaneidade dos tipos de idéias originariamente dispostas nas Decretais Pseudo-hidoriarzus. Também não é estranho encontrar o próprio Leão aceitando do imperador suserania política sobre Benevento (em croca pela abdicação dos direiios temporais do papado sobre o bispado de Bamberg) e depois unindo-se em uma guerra contra os aventureiros normandos que estavam estendendo seu domínio no sul da Itália. A questão central em cada caso era aquela da autoridade e independência da sé romana, que eram pré-condi~óesnecessárias da capacidade do papa em perseguir a causa da reforma. Um dos priiz-ieiros passos que Leáo tomou e, em seus efeitos, o mais abrailgente, foi trazer para a categoria do clero "cardeal" da igreja de Roma certas pessoas que, embora pertencessem originariamente a jurisdições eclesiásticas estrangeiras, compartilhavam de seus objetivos gerais e poderiam auxiliá-lo com distinçáo como conselheiros e assistentes. Os "cardeais" eram os clérigos da diocese romana que pertenciam à equipe imediara do bispo: os sacerdotes que eram pastores das igrejas papais ou "titulares"; os sere diáconos que estavam responsáveis pelas regiões administrativas da diocese; e (desde o oitavo século) os assim chamados bispos "suburbicários" os assistentes episcopais do papa. Entre aqueles que Leáo introduziu na categoria de cardeal esravam homens crijo trabalho, como teóricos, administradores e representantes era dererminar o curso e caráter da instituiqáo papal para os sécuIos vindouros. Havia em primeiro lugar Humberco, monge, erudito e rude argumentador, do mosteiro de Moyenmoutier, em Lorena. Em 1050, Leáo nomeou-o bispo cardeal de
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HISTÓRIA DA [&REJA CIISTÁ
Silva Cândida, e nele o novo papado encontrou seu mais extremo adversário daquilc que, para ele, era a "heresia" da simonia. Outros eram Hugo Cândido ("o Branco" I . nomeado sacerdote cardeal de São Clemente, que se tornou o mais eferivo dos representantes do papa eín missões delegadas; o chanceler papa[, Udo de Toul; e, não dc menor importância, o antigo capeláo do papa Gregório VI, um toscano chamado Hildebrando, a quem Leáo fez administrador das propriedades papais e que mais tarde se tornaria no revolucionário papa Gregório VII. E na obscuridade do pontificado de Leáo - embora ele náo se renha associado com a administraçáo da igreja romana senão em 1057, quando foi feito bispo cardeal de Ostia - estava a figura profética de Sáo Pedro Damiáo (1007-1072), superior da casa monástica em Ponte Avella, teólogo e asceta na tradicáo camaldolese, cuja oposiçáo eloqüente ao matrimônio clerical, à simonia e, no geral, à conformidade da igreja ao mundo forneceu um ímpeto permanente ao zelo reformador. Com tais assistentes, Leáo IX começou a tarefa de conduzir sua mensagem às igrejas além de Roma. Em um sínodo realizado no Latrão, em abril de 1049, Leáo deixou claro seu programa. Sob pena de anátema papal, o clero, seja os bispos ou os demais, foi poibido de aceitar dinheiro para ordenagóes, instalaçóes em cargos, consagrações de igrejas, e outras coisas iguais a estas. A qualquer pessoa que tivesse aceitado a ordenaçáo de um bispo que ela soubesse que praticava simonia, era exigida a realização de extensa penitência, e o próprio bispo simoníaco sofreria deposiçáo do car-
go. Leáo não formulou tais regras simplesmente; ele apiicou-as - com freqüência, pessoalmente. Em oucubro de 1049 ele convocou um sínodo em Reims, onde, na presença das relíquias de Sáo Remígio e de mulridóes do povo comum que haviam vindo ver o sucessor de Pedro, ele exigiu um relaco dos bispos presentes e, sem rodçios, depôs (ou aceitou as abdicaçóes) aqueles que praticavam simonia. Um sínodo similar foi realizado no mesmo ano em Mainz, na presença de Henrique 111, onde, tanto a simonia como o casamento clerical, foram condenados. Nos anos posreriores foram feitas viagens semelhanres a outras parces da Alemanha e a Itália meridional e setentrional. Muita coisa foi conseguida com essas viagens de Leão e também pelas de seus represenrantes. Náo foi só o programa de reforma que avancou; náo foi só a liderança na causa da reforma de fato tirada das máos do imperador; náo foi o fato de Leáo mostrar-se, ao lidar com questóes doutrinárias (e em especial com o ensino eucarístico de Berengário de Tours, que se haviaposicionado na tradigáo de Ratramno), ser um mestre e juiz da fé como também da moral. De igual importância foi o fato de
~tnloooiv
A IDADE MÉOIA E O ENCERIMENTO 0 A EORlROYEASIA UA IWYESTIOURA
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que o papa foi percebido como o líder efetivo e administrador das igrejas, em vez de um símbolo algo distante do poder e da tradição apostólica. Foi essa preocupagáo com a autoridade da sé romana, porém, que por fim provoiou um final trágico na carreira de Leáo c conduziu Aquilo que frequentemente tem sido considerado como o passo final e irrevogável na separaqão entre o cristianismo latino e o grego. As relagóes entre Roma e Constaiitinopla estavam sensíveis desde pelo menos a tpoca de Nicolau I e Fócio. Bem mais além do ciúme que há muito tempo existia entre os dois
as diferenças de costume religioso, cultura e
lealdade política rendiam a scpará-ias. Nos dias de Leáo, ademais, o patriarca de Constantinopla era h4iguel Cerulário (1043-1048), um homem determinado n5o apenas a afirmar a autoridade de sua sé sobre os outros patriarcados orientais mas também estabelecer sua igualdade e independência em relação a Roma. Esse projeto
foi ameaçado, eiltretanto, pelo rato fcnômeno de uma aliança encre Henrique I11 e o papa por um lado, e o imperador Constantino IX (1042-1055) por outro - uma aliança militar ocasionada
ameaça dos invasores normandos no sul da Itilia,
tanto aos rerritórios papais como aos bizantinos. Diante dessa reconciiia~áo, Constantino exigiu que Cerulário reconhecesse a autoridade de Roma cscrevcndo uma vez que ele deliberadamente deixara de fazê-lo em sua asçensáo - a tradicional "carta sinodal" ao papa, uma carta que, segundo um costume muito antigo, informava o bispo de Roma, o patriarca sênior, de uma eleicáo para a sé de Constanrinopla
= garantia-lhe a fi! ortodoxa do novo incumbente. Cerulário náo estava preparado para dar ral passo. Em vez disso, sua primeira resposta foi fechar todas as igrejas de rito latino em C o n ~ t a n t i n o ~ l sem a , dúvida esperando que tal ação esvaziaria a nova aliança. Depois, cm 1053, ele persuadiu Leáo de Ochrida, o rnetropolita búlgaro, a enviar uma carta às igrejas ocidentais, que
zra pouco menos do que uma denúncia do cristianismo "franco" por unia série de práticas ilíciras que, afirmava Leão, impedia clualcluer iiniáo das duas igrejas - encre :Ias o uso de páo ázirno na eucaristia e o costume de jejilar aos sábados. A réplica papal original, escrita com algum calor por Humberto de Silva Cândida, expunha nos termos mais explícitos as reivindicaçóes tradicionais da igreja romana conforme rlas haviam sido definidas há muito tempo atrás na Dodgdo de Constdntino, mas sua zhegada parece ter sido posrergada por muito tempo. O papa Leáo IX, entrementes, roi derrotado e caprurado pelos normandos na Civitate, em 1053. Como çonseqüência desse triunfo normando, que colocou os territórios bizantinos na Itália em
perigo ainda maior, as autoridades em Constantinopla náo ficaram inclinadas a abandonar sua aliança com os "francos." Tanto Constantino como Cerulário escreveram ao papa em um Tom muito menos estridente do que aquele que havia marcado o manifesto de Leáo de Ochrida. O papa Leáo correspondentemente enviou uma delega+~ a Constantinopla - Humberto, Frederico de Lorena e Pedro, o arcebispo de Amalfi - para abrir conversaçóes que levariam à união. Humberto, entretanto, que liderava a delegago, pouco tinha de diplomata em si, e mesmo a missiva papal que ele portava (e que ele havia escrito) era de com inflexível. Cerulário, portanto, apesar do desejo do imperador por rec~ncilia~áo, optou efetivamente em ignorar os delegados e questionar suas credenciais - um curso que pareceu bastante plausível diante do súbito anúncio da morte de Leáo IX. Humberto e seus colegas deixaram Con~tantino~la, mas náo sem antes, em 16 de julho de 1054, irem à Igreja da Santa Sofia, fazer um protesto público contra o comportamento de Cerulário, e eiltáo depositarem sobre o altar uma sentenca de excomunháo contra ele, que o classificava "com O demônio e seus anjos" e terminava com um tríplice "améin." Essa atitude dos delegados foi recebida com satisfaçáo no Ocidente, e Cerulário parece ter pensado que havia conseguido o que queria.
O cisma assim formalmente iniciado ainda não
foi sarado até os dias de hoje.
Capítulo 1 I
Da Reforma à Revoluçáo A morte de Leão IX em 1054 não criou nenlium problema para o novo programa papal. O imperador Henrique 111 prontamente nomeou outro alemáo e reformados para o sólio papal: Gebhardt, bispo de Eichstadt, que assumiu o titulo de Vítor I1 (1055-1057). Parecia que as políticas de Leáo XX seriam continuadas sem questionamento iiem interrupcáo. O que criou uma crise, porém, foi a morte inesperada do próprio Henrique 111 (1056), que colocou no trono alemáo seu filho de seis anos de idade, Henrique IV, sob a regência de sua mãe, a imperatriz Agnes. Este evenro, que inevitavelrnenre significava um relaxamento da liderança imperial nos
negócios romanos e itaiianos, foi em breve seguido pela morte do papa; e a questáo claramente era a de quem, nessa situação de incerteza, iria controlar a indicaçáo do próximo papa.
O que aconteceu é que os reformadores na cúria papal foram capazes de realizar a eleiçáo de um dentre eles, Frederico de Lorena, como papa Estêváo IX (10571058). Frederico, como que pelo destino, era irmão do duque Godofredo de Lorena, quem, devido a seu casamento com a condessa Beatriz de Toscana, tornara-se o poder dominante no norre da Itália. Esse arranjo, que conquistou aprovação imperial, ainda que a eleição fora conduzida sem a costumeira consulta ao rei alemáo, satisfazia tanto aos interesses locais e italianos como também aqueles do parrido reformador, entre os cardeais. Ele também chamava a atenção, entretanto, para os problemas práticos criados pela dependência da igreja em relação às autoridades laicas para a provisão de sua liderança - uma dependência que em todo caso náo era consoatite em princípio com a liberdade e autonomia que o sacerdócio requeria para a execuçáo de seus deveres. Foi sob Estêváo IX que Humberto de Silva Cândida publicou uma obra cujo ensino iria alterar a rotalidade da ênfase e caráter do movimento de reforma: seus Três
Livros contra os Simoniacos. Em parte, esta obra era um desenvolvimento lógico da polêmica tradicional (por aquela época) contra a simonia, que por muito tempo havia estado associada nas mentes dos reformadores com suas preocupaçóes com o celibato clerical e a primazia romana. Em seu rerceiro livro, porém, Humberto fez uma ataque sistemático ao papel das autoridades laicas nos negócios do sacerdócio, um araque que não parou diante do papel do rei ori imperador. Para ele, não havia questáo solire o caráter sagrado e quase sacerdoral perrencente ao monarca ungido.
O rei era (como Ambrósio, séculos antes, havia insistido com Teodósio, o Grande) simplesmente uma pessoa leiga cuja autoridade estava limitada aos assuntos seculares. Quando, portanto, os magnatas leigos de qualquer categoria cransformavarn os
sinodos eclesiásticos em instrumentos de sua vonrade; ou, ao nomear bispos por sua prbpria autoridade, violavam o priricípio antigo da "eleiqáo canônica" dos bispos pelo clero e pelo povo; ou presumiam, ao investir um bispo com os símbolos do anel c do biculo, que verdadeiramente conferiam categoria episcopal na igreja - tais pes-
soas estavam violando os direitos do sacerdócio, agindo além de sua competência, e Lnfringindo a ordem divinamente concedida à igreja (a qual, no mundo da alta Idade LIédia, simplesmente sigriificava a ordem da sociedade como um todo). Humbcrto
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HISTÓRII DA IGREJA CRISTA
foi tão longe a ponto de argumentar que os bispos que receberam seus cargos por esses meios "náo devem ser considerados como bispos, pois a maneira de sua nomeacáo está invertida."' Nessa polêmica contra a "investidura laica", Humberto náo estava simplesmente levando à sua conclusáo lógica o ideal da purificação do sacerdócio de seu envolvimento nos interesses seculares, ou dominacáo sobre eles, interesses seculares, e nesse sentido sua idéia de que a investidura laica é uma forma de simonia é compreensível. Ademais, tinha havido antecipacóes anteriores de sua posição (enibora ele não pareceu estar consciente delas). Tomando-a tão seriamente como Humberto fez, entretanto, essa posição implicava em um ataque a totalidade da ordem política e sociaI da alta Idade Média - sobretudo, aos fundamentos do poder imperial na Alemanha. Um programa para a reforma moral c espiritual da igrcja havia-se tornado em uma demanda por mudança revoiucionária nas próprias estruturas da sociedade medieval.
Nem todo mundo concordava com as idéias de Humberro. Pedro Damiáo, em particular, pensava que o programa de reforma poderia ser executado sem o ataque sistemático j. investidura laica. A opiniáo preponderante nos círculos papais, contudo, estava a favor de Humberro, e esse fato logo se tornou evidente. Em 1058, Estêvão IX morreu. A nobreza romana rapidamente se mobilizou e, dentro de uma semana, havia realizado a eleição de seu próprio candidato, Bento X. O s cardeais do partido reformador foram compelidos a fugir de Roma. Sua situaçáo foi salva, pordm, pela lideranqa de Hildebrando, que uniu uma parte da populacáo romana e o poder de Godofredo de Toscana 9 causa de Gerhard, bispo de Florenqa. Foi obtido o conseiitimento da itnperarriz Agnes para a indicaçáo de Gerhard, e ele foi assim eleito papa em Siena. Com o título de Nicoiau 11 (1058-1061), ele foi instalado em Roma, com o apoio das tropas do duque Godofredo. A eleição de Bento X foi declarada não canônica. Ele foi confinado na igreja de Santa Agnes, cm Roma, onde morreu algum rempo depois de 1073. Sob Nicolau, o programa implicado no ataque de Humberto sobre a investidura laica foi rapidamente colocado na lei, e o papado procurou consolidar sua independência dos governantes alemães, italianos e romanos igualmente. O primeiro c mais notável passo veio no sínodo romano de 1059, que baixou um decreto sobre as eleiçóes papais - um decreto que, embora com modificaçóes significativas, governa a 'B. 'Tirrnev, cd., The Crisis of Clirrrcll nndStatr, 1050-1300 (Engleivood Cliffs, N.J., l 9 6 4 ) , p. 40.
PERlOnU iv
A IBAOf ME011 E O ENCERAMENTO D A CONTROYERSIA DA INYESTIOURA
.?I9
i-ieçáo de papas até os dias de hoje. Efetivamente, o que essa nova consticuiqáo fez
foi colocar a eleição de um papa nas mãos do clero cardinaIício. O s bispos jlrburbicários deveriam selecionar um candidato e cntáo buscar o conselho dos carJsais. Quando um nomc fosse acordado dessa maneira, era submetido aos outros ;Iérigos e ao povo, mas apenas para sua aclama~áo.Náo foi feito nada alCm de pro;-isáo retórica para nenhum papel imperial, apesar de precedentes datando da época
de Carlos Magno. Tendo dessa forma se posicionado contra a interferência laica na :leiSáo do bispo romano, o mesmo sínodo prosse~uiupara não permitir qualquer :nvestidura sob nenhuma circunstância. Embora nenhuma tentativa tenha sido de tito feita para aplicar ou impor esse cânone durante o pontificado de Nicolau, a postura do papado agora estava clara. Como, porém, os papas iriam garantir que o novo processo para eleições papais seria executado sem interferência externa?Aqui Nicolau apareceu com uma solução engenhosa para um problema difícil. O papado entrou em alianca com o líder normando, Roberto Guiscard, que estava de posse de partes significativas da Itália meridional e estava ansioso para ganhar reconhecimento papal de seu status. Guiscard aceitou suas possessóes como um feudo da igreja de Roma e do papa, garantindo, em troca por seu título como duque da Apúlia e da Calábria, proteger o papa "na posse e aquisicão das temporalidades e possessóes de Sáo Pedro em todo
O
lugar e contra
todos os homens", e acima de tudo, "assistir na eleiçáo e consagraçáo de um papa para a honra de São Pedro de acordo com o conselho dos cardeais líderes e do clero e povo romano."' Haveria, em outras palavras, um exército norrnando para garantir qiie o decreto de eleicáo de 1059 fosse executado, e este seria o exército, não de um poder externo, mas de um vassalo do papa. Esre arranjo foi forralecido pela duradoura alianca de Nicolau com os governantes da Toscana, como também por sua conexáo íntima e simpática - estabelecida através da mediacão de Sáo Pedro Damiáo e do bispo Anselmo de Luca - com o partido popuiar na Lombardia, conhecido como "os patários", um movimento de dissidência democrática que se opunha ao clero superior conservador da regiáo e da institui~áoalemá que ele representava.
A morte de NicoIau I1 em 1061 (ano que também assistiu à morte de Humberto de Silva Cândida) colocou em perigo tanto seu decreto constitucional como seus arranjos políticos. Sob a liderança de Hildebrando, o bispo Anselmo de Luca foi 'Ibid., p. 44
eleito corno papa Alexandre I1 (106 1-1073). O s oponentes da nova ordem papal, entrctanco, particularmente os bispos lombardos e alemáes, planejaram um coilcílio em Basiléia, em 1061, onde Agnes, a imperatriz regente, foi persuadida a nomear Cadalo de Parma como papa, com o rítulo de Honório 11. O que salvou a siruaçáo de Alexandre foi uma revolução na AIemanlia, que colocou Ano, arcebispo de Colônia, como pardiáo do jovem rei Henrique. Procurando agradar ao partido reformador, A110 tomou o lado de Alexandre, que foi finalmente confirmado em seu cargo por um sínodo cm Mânrua, em 1064. Uriia lidetan~afraca e dividida na Alemanha havia riovarncnte mantido os reformadores romanos no cargo. Alexandre 11, sem dúvida sob a orientação de Hildebrando, seguindo nas peçadas de Leão IX, fez seiitir a autoridade papa1 na Europa. O próprio Ano de Colônia, e Siegfi.ied de hlainz, dois dos mais poderosos prelados na Alemanha, foram forçados a sc penitenciar pela prática de simonia. Alexandre autorizou
3
expedicáo de Gui-
lherme, o Conquistador, que resultou na conquista ilormanda da Inglaterra, em 1066, e auxiliou ainda mais os planos de Guilherme, estabelecendo bispos normaiidos nas principais sés inglesas. O favor papal em benefício dos normandos foi novamente manifesto na sanqzo de Alexandre aos esforços dos lideres normandos na Irália meridional para recapturar a Sicília dos sarracenos. Eritrerneiltes, Meririque IV, rei da Alemanha, atingiu a maioridade (1065) e logo revelou ser um dos governantes alemáes mais capazes. Que ele teve a oportunidade de agir assim, porém, foi devido em g a n d e parte à lealdade dos bispos alemáes, CUJOS
recursos foram, durante os nove anos de sua menoridade, a força principal que
se opôs às ambições divisórias da nobreza leiga. Uma vez entronizado por seu próprio direiro, Henrique náo perdeu tempo para estabelecer seu poder, tanto sobre a nobreza como sobre o campesinato livre do ducado da Saxônia, controle dos quais ele considerava essencial para a estabiIidade da monarquia. Esse poder continuava, como para todos os imperadores a1emáes desde Oro I, a repousar sobre o concrolc das nomeações e terras eclesiásticas.
Era inevitável, então, que a política papal em relaçáo à investidura laica se chocasse com os interesses essenciais e as políricas estabelecidas do rei alemáo - e, nesse assunto, da maioria dos governarites leigos na Europa. A ocasião reai para conflito acabou sendo a disputa sobre a sucessáo do arcebispado de Milão, que náo era apenas uma sé de eminência histórica na igreja mas também, naquele tempo, uma cx[ensa possessáo feudal que controlava o acesso às principais passagens pelos Alpes.
P E R ~ ~ DIYO
A IDADE MEDIA £ I)ENELRAMEMIO Dh EONTRDY~RSIADA IRY€âTIDURA
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Henrique IV nomeou para essa sé Godofredn de Castigliane, um homem quc o papa Alexandre já havia acusado de simonia. O papa recusou-se a reconhecer Godofredo e em vez disso reconheceu o candidato dos parários miianeses, Aro, como o arcebis-
po legitimo. O rei Henrique não obçtante assegurou a consagracão de Godofredo para o posto em 2073, e bem pouco tempa depois Aiexandrre 11 morreu, de~xandoo problema para seu sucessor, Hildebrando, que foi entroiiizado, quase que apesar de si mesmo, peia aclamasão popular e assumiu o título de Grzgório VII, çm memória de seu patrono falecido já há algum tempo, Gregório VI.
CapítuIo 12
Hildebrando e Henrique. IV Um dos últimos cardeais-reformadores de Leão ZX sobreviventes, Hildzbranda havia sido, desde pelo menos o tempo do papa Nicolsu II, a figura central entre os conselheiros papais. Eie náo apenas era resoluto em sua dedicaçáo à causa da reforma, mas como um romano por criacão, senáo por nascimento, era igualmente dedi-
cado à honra & cidade e da igreja que yertensia ao apóscolo Pedro, e portanto 5 autoridade do oficio papai. De Pedro Damiáo, ademais, e talvez das cartas de Gregóiio Ilagno, Hiidebrando aprendera que a consriruiçáo adequada da sé apostólica não cra os governantes e os poderosos desce rnundo (Santo Agostinho, afinal, havia traqa-
do a genealogia do poder real até Lairn, o assassino), mas o s pardperer C'jristi,"os o b r e s de Cristo", os oprimidos. Sua simpatia pelos parários, os despriviIegiados, nas com aspiraçóes, das crescentes cidades lombadas, sem dúvida era gerada por essa coi~vic<;áo. Seu programa, portanto, era radical c revol~icianáriodesde o inicio, :como muitas pessoas t.20 resolutas como ele, par-a náo dizer fanáricas, ele inspirava ranto desconfiança quanto admiracáo. I'edro Daniiáo, que se havia oposto às limica{óes do cardeal Wuinberro sobre as ii~vesriduraslaicas, diz-se ter descri~oHildebrando :orno um "Saranás santo", enquanto o abade Hugo Magno de Ciuny o considerava a l a pessoa arrogante i. extrernamen te ambiciosa. Mas Hildebrar~doacreditava esrar :::ando pela honra de Cristo e de Sáo Pedro e pela cria~ãode uma sociedade verdaítiramente crisrá.
Não há dúvida alguma de que o fundamento de tal sociedade, em sua mente, tinha que ser: aquela soberania universal que pertencia unicamenre ao ofício papal.
O papa, e náo o imperador, era o verdadeiro vicário de Cristo. No Dictatus Papae, uma coleçáo de breves proposiçóes que resumiam os resultados das recentes pesquisas romanas sobre a tradiçáo da lei canônica, os princípios de Gregório sobre este assunto sáo deixados claros: "A Igreja Romana foi fundada unicamente por Deus." "Somente o pontífice romano pode por direito ser chamado universal." "Apenas ele pode depor ou reinstalar bispos." "Ele, unicamente, pode utilizar a insígnia imperi-
al" (uma vez que somente ele é o verdadeiro sucessor de Conscantino). "Deve ser-lhe permitido depor imperadores." "Ele não pode ser julgado por ninguém." "Ele pode libertar os súditos da fidelidade destes a homens ímpios."' É desnecessário dizer, tais proposiçóes não foram invençóes de Gregório: a substância do Dictatux P ' d e pode ser encontrada na Dod~dade Constantino e nas Decretais Aeudo-Lidorianas. O que era novo aqui era a insistência do papa sobre esses princípios como um programa prático que Gregório e seus sucessores iriam efetivar.
O confronto inevitável entre o novo papa e Henrique IV foi postergado ar6 1075, pois náo foi senáo até junho daquele ano que Henrique havja consolidado as bases de seu poder na Alemanha. O papa, entretanto, já havia deixado sua posi~áoclara ao renovar, em um sínodo reunido na páscoa em 1075,a proibição absoluta da investidura laica. Quando, portanto, o imperador uma vez mais fez uma indicação para o ârcebispado de Miláo, Gregório respondeu imediatamente com uma dura carta de repreensão. A resposca de Henrique IV a esta carta foi convocar um concílio crn Worms (janeiro de 1076), onde uma grande porçáo dos bispos aíemáes uniram-se em denúncia de Hildebrando e em rejeição de sua autoridade como papa. Nesta ação, eles foram logo apoiados pelos bispos lombardos.
A réplica de Gregório VI1 foi um reiâmpago. No sínodo romano de 22 de fevereiro de 1076 ele excomungou Henrique, proibiu-o de exercer autoridade real na Memanha e na Itália e libertou todos os súditos de Henrique de seus votos de lealdade.
O rei respondeu com provocaçáo, em uma cartaveemente que chamava Hildebrando "agora náo mais papa, mas um falso monge" e exigia que ele abandonasse seu cargo, para dar lugar a "outro que náo irá mascarar violência com religiáo" ou desonrar aquele que foi "ungido à realeza" por Deus.2 ' T i c r n e ~Crifzs ofCburch and State, pp. 49s. 'Ibid., pp. j9s.
QERiBia i~
A IOAOE MÉOlA E O ENCERIMENTD 0 1 CONIRDUERSIA DA INUESTIIURA
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Ao final, contudo, Henrique náo pôde sustentar sua oposiçáo, pois o decreto do papa havia simultaneamente envergonhado os bispos alemáes e dado licença aos inimigos do rei na Alemanha, para rebeliáo. Uma assembléia da nobreza laica realizada em outubro de 1076 declarou que a menos que liberto da excomunháo dentro de um ano, Henrique seria deposto. Ela rambtm convidou o papa para uma assemblé~a em Augsburgo em fevereiro de 1077, onde seria considerada toda a situacáo política e religiosa aiemi. Para livrar-se da excomunháo, Henrique entáo tomou um passou dramático e astuto. Atravessando os Alpes no inverno, enquanto Gregório V11 estava viajando para o norte, para a Alemanha, o rei cruzou o caminho do papa no castelo de Macilda de Toscana, em Canossa. Por três dias sucessivos, ele apresentou-se descaiço, como penitente, diante do portáo do castelo. Os companheiros de Gregór~o,particularmente o piedoso abade Hugo de Cluny, pleitearam pelo rei, assim como, sem dúvida, à consciência sacerdotal de Gregório. Assim, em 28 de janeiro de 1077, Henrique
XV foi liberto de sua excomunháo. De muitas maneiras, este resultado representou um triunfo político para o rei. Ele havia atirado seus oponcnres ein confusão. Ele havia impedido uma assembléia em Augsburgo sob a liderança papal. Náo obstante, Canossa tem sempre permanecido como um símbolo da hurnilhaqáo do império diante do poder da igreja. Entretanro, o restante da história de Henrique IV e Gregório VI1 registra, ou parece registrar, o fracasso da causa de Gregório. A guerra civil irrompeu na Alemanha quando os oponenres de Henrique ali declararam Rodolfo da Suábia como rei. Apesar de urn segundo decreto papal de excomunháo e deposiçáo direcionado contra ele (logo), Henrique prevaleceu, e no sínodo de Brrxen (junho de 1080) o rei por sua vez depôs o papa e nomeou o arcebispo de Ravena, Wiberto, em seu lugar como Clemente 111 (m. 1100). Invadindo a Itália em 108 1, Henrique obteve controle de Roma após três anos de campanha e combate, entronizou Wiberto como papa, e fezse coroar imperador. Gregório VII, ainda em posse do castelo de Sanro Ângelo, continuou a recusar qualquer acordo. Em maio de 1084 ele foi resgatado por um exército normando, mas passou o último ano de sua vida no exílio. "Eu amei a justiça", disse ele em seu leito de morte, "e odiei a iniqüidade, e portanco morro no exílio. "3 'Cf. Salmo 45:8.
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HISTbRIA Oh IGREJA ERISIh
Não obstailte, como o futuro iria demonstrar, Gregório VI1 havia realizado um grande negócio. Sua posiçáo quanto 2 investidura laica iria eventualmente ser abrandada. Mas a liderança do papado nos negócios europeus não poderia ser perdida, e muito menos o controle administrativo e jurídico dos assuntos eclesiásticos, que os papas reformadores haviam adquirido. Depois da controvérsia das investiduras, foi o papado, e não o império alemáo, que assumiu a liderança da cristandade latina, embora tenham sido necessários anos de controvérsia antes que este fato se tornasse aparente.
O Fim da Controvérsia sobre as Investiduras Quando da morre de Hildebrando, os cardeais fiéis a ele (cerca de treze haviam desertado para a causa de Wiherto de Ravena) escolheram o abade de Monte Cassino, que assumiu o nome deVítor I11 (1086-1087), como seu sucessor. Mesmo diante do predomínio militar de Henrique IV, os reformadores se recusaram a abandonar sua causa. Quando da morte de Vítor, e apesar do fato de Wiberto e das forqas imperiais ainda coiltrolarem a cidade dc Roma, eles persistiram em sua resistência ao imperador e elegeram como papa Urbano II (1088-1099), o sucessor de Sáo Pedro Damiáo, como bispo cardeal de Ostia e um pupilo leal de Gregbrio VII. Coilquaiito dedicado aos princípios de Gregório, Urbano, um ex-monge de C:lun):
era politica-
mente mais habilidoso do que Hildcbrando, talvez porque tivesse mais inclinaçáo para a obliqiiidade. Ex-representante papal na Alemanha, ele reuniu apoio para a causa gregoriana não apenas entre os bispos alemáes mas çambém enue o clero cardeai de Roma que havia abandonado Gregório VI1 em seus últimos dias. Restaurado i cidade de Roma em 1093, Crbano rriunfou assuiliindo a idéia dc Hildebrando de uma cruzada para recuperar Jerusaléni dos seguidores do Islá. Foi em um síriodo cm Piaci'nza cm 1095 que Urbano anunciou pela primeira vez seu propósito. Mas foi em Clerrnont na F r a ~ q a em , um sínodo similar naquele mesmo ano, que ele trouxe a cruzada à existêriçia - e est-esínodo, não exararnente por acaso, reiterou a postura do
raioso rv
IIOAOE MEDIA E O ENEERAMENlO LIA EONIRDYERSII DA IWYESTIIURII
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papado reformador contra a simonia, a investidura laica e a concubinagem clerical. Ao poclamar a Primeira Cruzada, da qual ele próprio, por meio de um representante papal, seria o líder, Urbano fez do papado, efetivamente, a cabeça visível e real do povo cristáo, reforçando a autoridade judicial e administrativa que ele havia adquirido progressivamente desde os dias de Leáo IX. Isso náo significou, contudo, que a controvérsia sobre as investiduras esrava resolvida. A morte de Urbano em 1099 trouxe ao trono papal o último dos verdadeiros radicais gregorianos, Pascoal I1 (1099-1 118), uin antigo monge e representante papal na Espanha. Foi o destino de Pascoal ter que lidar com Henrique V (1106-1125), o filho rebelde de Henrique IV, que forçara seu pai a abdicar em 1105. O novo rei alemáo náo estava menos decidido do que seu pai a preservar o controle real sobre os bispados e mosreiros alemáes; mas foi um indício dos sentimeiitos reforrniscas e radicais do papa Pascoal que ele estivesse preparado, quando Henrique V marchou sobre Roma em 1110, a conceder ao rei a substância daquilo que ele queria. Se, declarou Pascoal, a monarquia desistisse de toda interiçáo de invesrir bispos com os símbolos de sua autoridade espirimal, a igreja por sua vez en~regariatodos os seus direitos em temporalidades - as terras feudais e poderes que pertenciam aos abades e bispos - ao rei. Esta proposra, uma vez anunciada, fez estremecer a maioria dos eclesiásticos tanto em Roma como na Alemanha. Pascoal havia decidido, de maneira ~erdadeiramenceradical, que a liberdade do sacerdócio que os reformadores havia111 almejado implicava s u a pobreza aposrblicn - um juízo que poderia ser esperado de um homem cujas idéias hnviarn sido forrnadas em um mosteiro de uin novo estilo, o mosteiro de Vallombrosa, perto de Floren~a.A proposta náo agradou a ninguém, porém, e teve que ser repudiada. Contudo, a disrinçáo cacitamei-ite delineada ncsse caso entre iilvestidura tempo-
ral e espiritual significou que uma base para acordo já estava i vista. Dois bispos franceses, Ivo de Chartres e Wugo de Fleury, escrevendo entre 1099 e 1106, argumentaram que tanro a igreja como a coroa riilhatn seus direitos distintos de investidura: a primeira çorn autoridade espirirual e a segunda coin temporal. Exatamente essa
. i ~ l u ç ápara ~ o prciblema, ademais, já havia sido aleancada na lnglarerra. hli o contli;o sobre investidura - no qual os protagonistas foram o arcebispo hilselmo de
Cantuária (1093-1 109) e o rei Henrique 1 (1 100-1 1 3 j ) - i%ra resolvido sob o principio de que a coroa retinha o direito de investir um liovo bispo com sua autoridade ~fmporal,enqua~-itoq u e o arcebispo metropolitano o investiria com anel e báculo, os
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HISTÓRIA 0 1 IEREJA CRISTÃ
simbolos de autoridade sacerdotal. Esta soluçáo foi efetivamente adotada na Concordata de Worms em 1122, acordada entre Henrique V e o papa Calixto 11
(1119-1124). Por este acordo, as eleiçóes de bispos e abades na Alemanha deveriam ser de forma livre e canônica. Entretanto, era permitida a presença do rei na eleiçáo, e no caso de um resultado contestável, ele consultaria o arcebispo metropolitano e os outros bispos da província. Em outras partes do império, como a Borgonha e a Itália, náo foi feita nenhuma menqáo à presença do rei na eIeiçáo. Este renunciava à invescidura com anel e báculo, mas retinha o direito de investir com as temporalidades da sé mediante um toque d o cetro teai.
O resultado desse acordo foi, em princípio, que um bispo ou abade tinha que ser aceitável tanro à igreja como ao governante civil. A concessão sem dúvida teria desapontado Hiidebrando, mas era a condiçáo para um novo papel do papado na vida da cristandade européia.
Período V A Idade Média Posterior
Capítulo 1
As Cruzadas As cruzadas estáo entre os fenômenos mais notáveis da Idade Média. Suas causas foram muitas e complexas. Os historiadores que enfatizam as influências econômicas apontam para o aumento rápido na populaçao da Europa desde o século dez, juntamente com uma seqüência de melhoramentos técnicos nos implementos agrícolas e técnicas de cultivo mais eficientes, que aumentaram grandemente a produtividade da terra. O excedente populacional e de alimentos possibilitou o crescimento das cidades e do comércio. No final do século onze, a sociedade européia estava pulsando com um novo dinamismo, e em todo canto as fronteiras da cristandade estavam gradualmente sendo ampliadas. As cruzadas, alongando-se por dois séculos, podem ser consideradas uma manifestação desse avanco geral europeu, evidência do grande poder de expansáo do Ocidente. A coloniza~áointerna de regióes antes desabitadas dentro da Europa foi acompanhada pela colonizacáo externa de terras habitadas por "infiéis" muculrnanos ou por gregos "cisrnáticos".
As causas espirituais, porém, náo foram menos influentes do que as materiais. Todo o século onze foi um período de aprofundamento do sentimento religioso, que encontrou expressáo nas formas ascética e monástica de piedade, náo menor entre os leigos. Este crescente zelo religioso, animado pelo movimenro de Cluny, foi a força que reformou a igreja no geral e fortaleceu o papado em sua longa disputa com o império. Aquelas regióes que mais se aproximaram do papado reformador - França, Lorena, Itália meridional - tornaram-se nas áreas de recrutamento dos principais exércitos de cruzados. O cruzado, ao "tomar a cruz", sua vida de auto-sacrifício como vassalo de Cristo, era visto como uma imita~áoda vida monástica e como uma aproximaçáo da perfeição espiritual superior do monge.
A piedade da época também dava grande valor às peregrinações ao locais sagrados, acima de tudo à terra santificada pela vida, morte e ressurreicáo de Cristo. A Terra Santa era objeto de peregrinaçáo desde os dias de Constantino. As peregrina-
ções eram efetuadas não apenas como atos de devoção; desde o sétimo século, elas eram também impostas como parte da penitência de pecadores confessas. Ernhora Jerusalém estivesse nas máos dos muçulmanos desde 638, as peregrina~úespraticamente não tinham sido interrompidas, exceto por breves intervalos, diante do governo relativamente tolerante dos árabes. Em meados do século onze, o número de peregrinos, como também da freqüência das peregrinaçóes, havia-se elevado. Entretanto, a situação mudou quando os turcos seljúcidas, começando em 1071, conquistaram g a n d e parte da Ásia Menor. Em 1079 ganharam o controle de Jerusalém, e daí em diante as peregrinaçóes tornaram-se virtualmente impossíveis. Portanto, foi para uma época profundamente impressionada com as vantagens espirituais das peregrinações que chegaram as noticias desses evenros. Esta época, ademais, estava testemunhando sucessos cristãos em disputas com o Islá, pelo menos no Ocidente. Entre 1060 e 1090, os normandos da Itália meridional hax'riam arrancado a Sicília do controle muçulmano. Sob Fcrnando I de Castela (1035-1065), iniciara-se a reconquista cristã da Espanha dos muculmanos. O sencimenro era geral que o cristianismo agora poderia desalojar o Islã. O amor pela aventura, a esperança por pilhagens, o desejo de aquisicóes territoriais e o ódio religioso sem dúvida moveram os cruzados com impulsos bastante mundanos. Nós os julgaremos erroneamente, porém, se não reconhecermos com igual clareza que eles pensavanl estar fazendo algo da mais alva i~riportânciapara suas almas e para Cristo.
O primeiro impulso para os cruzados veio de um apelo do imperador oriental, Migucl VI1 (1071-107S), ao papa Gregório VII, por ajuda contra os seljúcidas. Gregório, a quem isso parecia prometer a reunião da cristandade grega e latina e o esrabclccimenro dos direitos primaciais dc Roma sobre Constantinopla, lançou os planos para uma expedição ein 1074. A eclosáo da disputa sobre investidura frustrou seus desígnios, porEm mais tarde seriam reacendidos por Urbano II (1088-1099), o herdeiro de Gregório VII, sob muitos aspectos. Aleixo I (1081-1 11X), um governante mais forte do que seus predecessores imediatos em Constantinopla, vjslumbrou nas brigas separatistas entre os chefes seljúcidas uma oporrunidade para tomar a ofensiva. Ele, portanto, apelou para Urbano I1 por assistência na preparacáo de um corpo de cavaleiros ocidentais para ajudá-lo a recu-
rrirorn v
A IDADE MEDIA POSTERIOR
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perar suas províncias asiáticas perdidas. Urbano recebeu os mensageiros imperiais no concílio de Piacenza, no norte da Itália, em marco de 1095, e prometeu sua ajuda. Em um concílio realizado em novembro seguinte em Clermonr, no leste da França, Urbano proclamou a cruzada em um apelo de resultado quase sem paralelos. O empreendimento havia aumentado em sua concepção, daquele de ajuda limitada ao pressionado Aleixo para um resgate geral dos lugares santos das máos dos muçulmanos. Ele convocou toda a cristandade a tomar parte nessa obra, prometendo a complera remissão de pecados àqueIes que participassem da árdua jornada. Urbano assim combinou a antiga idkia de peregrinação à Terra Santa com a idéia mais recente de guerra santa contra os infiéis.
O cruzado era simultaneamente peregrino e soldado, ligado por um voto solene de visitar o Santo Sepulcro nos quadros de uma expedicáo organizada, armada. Este voto, comprovado pela costura de uma cruz na roupa, era uma obrigacáo permanente que poderia ser cumprida mediante sanções legais. Ele servia para impedir que as Tropas dos exércitos cruzados minguassem quando fossem encontrados obs~ácuios sérios no caminho. O cruzado, por sua vez, era o beneficiário de muitos privilégios sspeciais, ranto espirituais como temporais, sobretudo a "indulgência" do cruzado, quc era habitualmente entendida corno a lavagem de todos pecados passados c a restauração a um estado de inocência espiritual. O voto, status, obrigações e privilégios dos cruzados foram
gradualmente
formalizados
elos legisladores
canônicos
medievais.
A mensagem de Urbano encontrou resposta imediata e entusiástica. Os cronistas relatam que seu anúncio da cruzada ao povo reunido fora de Clermont foi saudado iom um grande brado de Dexs L0 volt, "Deus quer isso!" Entre os pregadores popu: ~ S Sque
assumiram a causa, nenhum foi mais famoso do que Pedro, o Eremita, um
monge de Amiens ou de seus arredores, a quem a lenda primitiva falsamente atribuiu i
origem J a cruzada. O irnpeeo para todas as cruzadas encontra-se no papado, da
z s m a forma que a sua complexa organização dependia em última instância do iysrima papal unitário de administracáo. Tal foi o entusiasmo engendrado, especialTtnrz na Franca, que grandes bandos de camponeses, com alguns cavaleiros entre ';:ti.
partiram na primavera de 1096, sob a liderança, entre outros, do cavaleiro franYi:iálrer, o Sem Tostáo, e do próprio Pedro, o Eremita. Passando pela Alemanha,
i.z:m= desras companhias selvagens massacraram muitos judeus nas cidades do ?,c:o. crendo que os judeus de Terusalém haviam ajudado a entregar aquela cidade
aos turcos (tais pogroms também desfiguraram cruzadas posteriores). Esses saqueadores frequentemente enfrentaram represálias cruéis na Hungria e nos Bálcás quando recorreram à pilhagem. Os dois bandos relativamente pacíficos sob Walter e Pedro conseguiram chegar a Constantinopla, e logo foram transportados para a Ásia Menor. Embora avisados por Aleixo para náo precipitarem um conflito, eles centaram alcançar Nicéia, a antiga capital seljúcida, e foram quase completamente destruídos pelos turcos em outubro de 1096. Esta assim chamada Cruzada Popular, notável por seu fervor religioso, terminou em fiasco.
A verdadeira obra da Primeira Cruzada (1096-1099) foi realizada pela nobreza feudal européia. Foram montados quatro exércitos de tamanho considerável. Um foi comandado por Godofredo de Bulhóes, duque da baixa Lorena, e seus irmáos Balduíno e Estáquio de Flandres. Outros exércitos do norte e do leste da França foram liderados por Roberto, conde de Flandres, e pelos irmáos do reis da Inglaterra e da França - Roberto, duque da Normandia, e Hugo, conde de Vermandois. Do sul da França veio uma grande força sob o conde Raimundo de Toulouse, e da Itália normanda um exército bem equipado liderado por um homem capaz, ambicioso e sem princípios, Boemundo de Taranto, e seu sobrinho, Tancredo. Náo havia um comandante único para todas as tropas. Urbano 11 nomeara o bispo Ademar de Le Puy como seu representante; e Ademar indicara Constantinopla como o local de agrupamento. Tomando três rotas diferentes, as forças lá chegaram no inverno e na primavera de 1096-1097. Náo foi pequena a dificuldade que causaram a Aleixo com sua desordem e pela recusa inicial de seus líderes em lhe jurar fidelidade. Em maio de 1097 os exércitos cruzados começaram o cerco a Nicéia, que se rendeu em junho. Em primeiro de julho uma vitória decisiva sobre os turcos perto de Doriiéia abriu caminho através da Ásia Menor, de forma que Icônio foi alcançada, após perdas severas por fome e sede, em meados de agosto. Em outubro, o exército cruzado estava diante das muralhas de Antioquia. A cidade foi capturada, somente após um cerco exaustivo, em 3 de junho de 1098. Três dias mais tarde, os cruzados foram sitiados na cidade pelo governante turco Kerboga de Mosul. Esse momento de perigo e desânimo foi crítico para a cruzada; mas em 28 de junho Kerboga foi compleramente derrotado. Contudo, náo foi senão em junho de 1099 que JerusaIém foi alcangada e capturada somente em 15 de julho. Seus habitantes, muçulmanos e judeus, foram passados ao fio da espada. A derrota completa de um exército de socorro egípcio perto de Ascalon em 12 de agosto de 1099, coroou o sucesso da cruzada.
P~RIOBO Y
h IOAOE M ~ o I RPOSTERIOR
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Ao terminar a obra, Godofredo de Bulhóes foi nomeado Protetor do Santo Sepulcro. Ele morreu em julho de 1100 e foi sucedido por seu irmáo Balduíno, mais capaz, que havia anteriormente estabelecido um condado larino em Edessa e que agora tornava o título de rei Balduíno 1 (1100-1118). O território conquistado foi dividido e organizado segundo o feudalismo ocidental. Além do reino de Jerusalém, ele incluía o principado de Antioquia (estabeiecido por Boemundo e Tancredo) e os condados de Edessa e Tripoli (este úlcimo esrabelecido por Raimundo de Toulouse e seu filho Bertramo). Estes feudos eram praticamente independentes do rei de Jerusa-
lém. Os cavaleiros, em sua maioria, eram franceses, mas os estados cruzados tambCm recebiam irnensurável apoio naval das frotas de Gênova, Veneza e Pisa, e nas cidades surgiram importantes estabelecimentos comerciais iraiianos. O terrirório inteiro foi
dividido em oito arcebispados e dezesseis bispados, sob patriarcas do rito latino em Jerusalém e Antioquia, e foram estabelecidos numerosos mosteiros.
As ordens militares Iogo passaram a ser o maior apoio do reino Iatino. Uma delas, os Cavaieiros do Templo, ou Templários, foi fundada por Hugo de Payens em 1 119 e foi-lhe asseprado aquartelamento perto do local do templo - daí seu nome - pelo
rei BaIduíno 11 (I 118-1131}. Por meio do caioroso apoio de Bernardo de Claravai,
que preparou uma regra para ela baseada na dos cistercienses (ver V:2), a ordem recebeu aprovaçáo papal em 1128 e logo conquistou ampla ~opularidadeno Ocidente. Seus membros, embora tecnicamente pessoas leigas, faziam os voros monásticos costumeiros e também se comprometiam a lutar contra os infigis, defender a Terra Santa e proteger os peregrinos. Eles eram, portanto, uma ordem de monges em armas, simbolizando aquela fusão de ideais crisráos e guerreiros que as cruzadas engendraram. Aqueles que apoiavam esta primeira cruzada, mas eram impedidos por causa da idade ou sexo de uma participaçáo pessoal na obra, poderiam assegurar represenração lia ordem por meio de doações em dinheiro ou em terras. Assim ricamente dotada, os Templários logo se cornaram grandes latifundiários no Ocidente. Sua independência e riqueza fizeram deles objeto de ciúme da realeza, especialmente depois que seu propósito original desapareceu com o final das cruzadas, e levou à sua supressáo brutal na Franqa, em 1307, pelo rei Filipe IV (1285-13 14). Mas enquanto
durara ti^ as cruzadas, os Templários foram um dos priricipais baluartes do reino de jerusalérn. Quase o mesmo pode ser dito dos grandes rivais dos Ternplários, os Hospiralários
ou Cavaleiros de Sáo Joáo. Cerca de 1070, os mercadores de Amalfi, na Itália, funda-
332
HISTIRIA DA IGREJA
c~isrÃ
ram em Jerusalém um hospital que levou o nome da igreja mais próxima, que era a igreja de Sáo João Batista. Essa instituiçáo foi transformada em uma ordem militar por seu grão-mestre, Raimundo de Puy (1 120-1 160?), sem contudo negligenciar seus deveres para com os enfermos. Depois da época das cruzadas, esses Cavaleiros lutaram contra os turcos e mouros, a partir de sua sede em Rodes (1310-1523) e depois a partir de Malta (1530-1798). Uma terceira ordem, posterior, foi a dos Cavaleiros Teutônicos, fundada por alemães em 1190. Sua obra principal, portnl, náo seria na Palestina mas, de 1226 em diante, na Prússia, onde ela se engajou na cristianizaçáo forçada dos eslavos pagáos e na colonizaçáo alemá. Apesar da desorganiza~áofeudal, o reino de Jerusalém foi reiativamente bem sucedido até que a captura de Edessa pelos muçulmanos em 1 144 retirou-lhe seu baluarte a nordeste. Em 1145, o papa Eugênio 111 (1 145-1 153) proclamou uma nova cruzada. Bernardo de Claraval, enráo no apogeu de sua fama, pregou essa cruzada e alisrou Luís VI1 da França (1 137-1180) e o imperador Conrado 111 (1 138-1152) da Alemanha em 1146. Em 1147 partiu a Segunda Cruzada (1 147-1 149); mas ela mostrou pouco do ardente entusiasmo de sua predecessora, a maior parte de seus combatentes pereceu na Ásia Menor, e aqueles que alcançaram a Palestina náo obtiveram nenhum sucesso ao tentar tomar Damasco em 1148. A expediqáo foi um desastre fragoroso. Seu fracasso deixou um ressentimento no Ocidente contra o império oriental, pois a responsabilidade da derrota foi atribuída, correta ou incorretamente, aos príncipes orientais. Bernardo, por sua vez, atribuiu o colapso aos pecados da cristandadc. Uma razáo para o êxito inicial do reino latino foram as disputas intestinas entre os governantes muçulmanos. Em 1169, o famoso general curdo, Saladino (I 137-
1193), fez-se senhor do Egito; ein 1174 ele já se havia apoderado de Damasco e em 1186 seus territórios cercavam o reino latino ao norte, leste e sul. Agora havia um poder muçulmano unificado para ser enfrentado. Ao riáo conseguir termos de paz satisfatórios por meios diplomáticos, Saladino derrorou todo o exérciro larino em Hattin, entre Tiberíades e Jerusalém, em julho de 1187. A perda de Jerusalém e da maior parte da Terra Santa veio rapidamente em seguida. Os cruzados tinham assim dominado a Cidade Santa de 1099 a 1187. As tentativas posteriores para retomá-la pela força das armas náo tiveram êxito.
As notícias dessa catástrofe estimularam a Europa para aTerceira Cruzada (11891192), pregada pelo papa Gregório VI11 (1 188). Nenhuma das cruzadas foi mais
PERIOOO
Y
I( IDADE MÉUIA POSTEAIDR
311
cuidadosamenre preparada do que esta. Três grandes exércitos foram liderados pelo imperador Frederico Barba Ruiva (1152-1 190), o maior soldado de sua época, pelo rei Filipe Augusto da França (1 180-1223), e pelo rei Ricardo Coraçáo de Leão da Inglaterra (1 189-1 199). Frederico morreu afogado acidentalmente na Cilícia. Seu exército, sem sua vigorosa lideranFa, tornou-se inteiramente ineficaz. As constantes disputas entre os reis da França e da Inglaterra e o retorno de Filipe para a França para promover seus próprios planos políticos, quase abortaram toda a expediçáo. O porto vital de Acre foi recuperado, mas Jerusalém permaneceu nas máos dos muçulmanos. Antes de partir para a Europa em 1192, Ricardo conseguiu uma trégua de três anos com Saladino, por meio da qual os latinos se apossaram do litoral, de h c a l o m até Acre, com direitos de acesso ao Santo Sepulcro. ATerceira Cruzada reve pouco o que mostrar para táo enorme esforço.
A Quarta Cruzada (1202-1204) foi de pequena importância em termos do número de efetivos, mas reve grandes conseqiiências políricas e religiosas. Conclamada
em 1 199 por um novo papa, Inocência I11 (1 198-1216), suas forcas vieram dos disrriros de Champagne e Blois, no norte da Franca, e de Flandres. Os cruzados, agora convencidos de que a chave para a reconquista de Jerusalém seria a conquista preliminar do Egito, ilegociarain coin os venezianos o seu transporte para lá. Náo podendo, porém, pagar o custo total, eles aceitaram uma proposta veneziana que, no lugar do restante devido, eles parassem em seu caminho e conquistassem para Veneza a cidade cristã de Zara, pertencente iHungria, no litoral da Dalmácia. EJes assim o
fizeram, para o assombro do papa. Entáo, foi apresentada aos cruzados uma proposta muito maior. Aleixo Ângelo,
io comércio do Oriente para o Ocidente. Na verdade, já por algum tempo, Veneza -.-inhaacalentando um forte interesse na destruiçáo da autoridade imperial. A aver; o ocidental pelos gregos também contribuiu. Embora Xnocêncio III tenha proibiia esse desvio de propósito, muitos dos cruzados foram persuadidos. Aleixo I11 foi
~ i l r n e n t deposto, e mas o outro Aleixo foi incapaz de cumprir o qrie havia promeri-2
aos cruzados, que entáo com os venezianos, em 1204, capturaram Constantinopla
3.34
AIST6Rlh DA IGREJA CRISTh
e, saqueando a cidade por três dias, pilharam seus tesouros. Balduíno de Flandres foi feito imperador latino de Constantinopla, e uma grande parte do império oriental foi dividida, no modo feudal, entre os cavaleiros ocidentais. Veneza ficou com a parce do leão, como também com o ansiado monopólio do comércio. Foi nomeado um patriarca latino para Constantinopla, e a igreja grega ficou sujeita ao papa. O mutilado império orienrd ainda continuou, embora náo recuperasse C o n ~ t a n t i n o ~ l a senáo em 1261. Essa conquista latina foi desastrosa para o império oriental, enfraquecendo-o gravemente e tornando-o vulnerável aos avanços dos turcos otomanos em meados do século catorze. Ela também exacerbou a aversão enrre os cristãos gregos e latinos.
Em 1212 deu-se um doloroso episódio com a assim chamada Cruzada das Crian$as. No veráo daquele ano, milhares de crian~as,com alguns adulros entre elas, provenientes da Holanda, do norte da Franga e do vale do Reno, reuniram-se em e ao redor de Colônia. O líder delas parece ter sido um jovem de Colônia chamado Nicolau, e aparentemente elas estavam dirigindo-se para a Terra Santa, persuadidas de que seu enrusiasmo ilimitado e a "mão de Deus" iriam levá-las até lá. O propósi~oostensivo delas era resgatar a causa que, acreditavam, seus pais haviam traído. Em seu caminho subiram o Reno e entraram na Itália pelos passos alpinos, onde muitas delas morreram de fome e doencas. O remanescente, não encontrando nenhuma oferta de transporte para o Levante, foi forçado a vagar envergonhado de volta para casa. Um grupo, tomando um caminho diferente, pode ter chegado a Marselha, perto da desembocadura do Ródario, onde foi assegurada passagem marítima. Narrativas posteriores relatam que alguns do grupo se afogaram em uma tempestade, enquanto a maioria foi vendida como escravos no Egito por marinheiros inescrupulosos. A historicidade dessa "cruzada marselhesa" ainda é debatida. O verão de 12 12 também testemunhou as marchas de bandos de crianças francesas para o mosteiro de Sáo Dionísio e para Paris, sob a lideranca de um pequeno pastor visionário, Esteváo de Cloyes. Náo existe nenhuma evidência concreta de que estas crianças estavam de fato dirigindo-se para a Terra Santa, embora no caminho elas cantassem a oraçáo, "Senhor Deus, restaura-nos a verdadeira cruz". Todos esses fenômenos mostram a firmeza tenaz da idéia de cruzada na mentalidade popular, não importando idade nem lugar social. Também foram feicas outras tentativas de cruzadas. Urna expedição contra o Egito, de 1217 a 122 1, teve algum sucesso inicial, mas no final terminou em fracasso.
u
PER~UBJ
A IDhU£ MEDIA POSTERIOR
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Ela é normalmente denominada Quinta Cruzada. A mais curiosa foi a Sexta (12281229), que foi mais uma "visita de estado" do que uma cruzada verdadeira. O imperador livre-pensador Frederico I1 (12 12-1250) havia "tomado a cruz" em 1215, mas ele náo demonstrou nenhuma pressa em cumprir seu voto. Por fim, em 1227, ele começou, mas logo desistiu. Parece que esteve bem doente, mas o papa Gregório IX (1227-1241), acreditando que ele desertara, e tendo outros motivos para hostilidade, excomungou-o. Não obstante, Frederico foi adiante em 1228, e no ano seguinte assegurou, através de um tratado com o sultão al-Karnil do Egito, a posse de JerusaICm, Belém, Nazaré e uma estrada para a costa. Uma vez mais JerusaIém estava em mãos cristás, até 1244, quando foi perdida definitivamente.
O espírito de cruzada agora estava quase desaparecido, embora Luís IX da Franqa (São Luís, 1226-1270) renha liderado uma expediçáo desastrosa contra o Egito, de
1248 a 1250, na qual ele foi feito prisioneiro, e um ataque contra Túnis em 1270, no qual perdeu sua vida. Quando o filho mais velho de Luís, rei Filipe 111 (1270-1285), retornou para a Franga em 1271, trouxe consigo os restos mortais de seu pai, de sua esposa, de seu filho natimorto, de seu irmão e de seu cunhado - todos eles haviam perecido ou na Tunísia ou na dificil jornada de volta para casa. Esse alto custo compreensivelmente desanimou o espírito cruzado francês, e ilustra bem os verdadeiros perigos de "tomar a cruz". A última expediçáo considerável foi aquela do príncipe Eduardo da Inglaterra, que logo seria rei Eduardo (1272-1307), de 1271 a 1272. Ela não realizou nada de valor militar, mas conquistou para Eduardo uma reputaçáo de zelo piedoso. Acre, a última possessão latina na Palestiila, foi perdida em 129 1. As cruzadas haviam acabado. O antigo ideal de cruzada tinha morrido reaImenre com São Luís, ainda que se renha continuado a falar bravamente de novas expedições por aproximadamente mais dois séculos. Consideradas à luz de seu propósito original, as cruzadas foram um fracasso. Eias náo reaIizaram nenhuma conquista permanente na Terra Santa; não retardaram o avanço do Islá. Longe de auxiliarem o império do Oriente, elas apressaram sua desintegraçáo; revelaram também a permanente incapacidade dos cristáos latinos para entenderem os cristãos gregos, e endureceram o cisma entre eles; fomentaram uma ácida intolerância entre muZulmanos e cristáos, onde antes tinha havido uma medida de respeito mútuo; afinal, elas foram marcadas, e manchadas, por uma recrudescência de anti-semitismo. Embora iniciadas em um espírito de elevada devoção e notabilizada por inumeráveis atos de coragem, sua conduta foi totalmente desonra-
da por disputas, desunióes e baixos padróes de conduta pessoal. No passado, os historiadores estavam acostumados a aliviar esse retrato desanimador atribuindo "resulrados indiretos" importantes para as cruzadas, considerando-as como o faror singular mais influente para o progresso econômico e o despertamento intelectual da Europa de 1100 em diante. Esta perspectiva dificilmente
pôde ser sustentada. A erudição do mundo muculmano, incluindo seu co-
nhecimento de Aristóteles, tão importante para o desenvolvimento do escolasticismo, veio para o Ocidente em g a n d e pane por meio da Espanha e da Sicília, náo pelos estados dos cruzados. O comércio entre Oriente e Ocidente, embora aumentado pelas cruzadas, não dependeu deias para sua existência e, na realidade, as precedeu. Da mesma forma, o surgimenro das cidades - a criaçáo de um "terceiro estarnento" foi o resultado das revoluções agrícola e demográfica já em andamento antes da Primeira Cruzada. As cruzadas náo criaram cidades ou combrcio nem um excedente de alimentos ou de pessoas; elas pressupunham tais coisas. Contudo, em nível mais modesto, as cruzadas forneceram um escape para a energia turbulenta da nobreza
feudal européia e deu a populacáo algum alívio de seu estado de guerra permanente. A rernogáo de um número considerável desses baróes rebeldes para o Oriente também auxiliou o crescimento do poder monárquico no Ocidente.
O principal beneficiado das cruzadas foi o papado medieval, cuja autoridade e prestigio foram grandemente fortalecidos por essas expedições. Os papas se projetaram como defensores da cristandade, proponentes de uma cristandade unida contra
os infiéis, inspiradores da idéia de cruzada, protetores dos cruzados, e organizadores dos recursos militares do Ocidente.
cruzadas também assinalaram um estágio
importante na teoria e prática das indulgências e na elaboraFáo da iei canônica da igreja. Náo de menor importância, a realização de guerra santa contra os muculmanos infiéis ajudou a legitimar a idéia da cruzada como uma resposta apropriada, no Ocidente, para os cismáticos, heréticos e oponentes polí~icosdo papado. A estratdgia militar adorada no Oriente também poderia ser aplicada aos problemas internos da igreja ocidental.
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Capítulo 2
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Novos Movimentos Religiosos O século de 1050 a 1150, a era da Primeira e da Segunda Cruzada, foi uma era de ouro para o monasticismo, mas de um novo tipo de monasticismo. O monasticismo benedirino tradicional era percebido por muita gente como estando submetido a um fardo pesado de costumes inúteis, e passou a ficar, cada vez mais, sob ataque. Os reformadores enfatizavam simplicidade e recolhimento, ascetismo estrito e pobreza, e fidelidade absoluta à letra da regra monástica.
O século doze inteiro, ademais, estimulado pelo acaque gregoriano à corrupçáo eclesiástica, testemunhou um notável "despertamento evangélico" no seio da sociedade como um todo. Muitas pessoas, tanto entre o clero paroquial como entre o laicato, foram movidas pela perspectiva de renovaçáo religiosa por meio de um retorno à igreja primitiva e seu evangelho pristino - acima de tudo, a perfeiçáo e dignidade da vida apostólica. Essa vita dpostoliCd era igualada com seguir a Cristo, em sua auto-negacão e pobreza total e com o dever de pregar o arrependimento a uma igreja mundana, e selar essa mensagem com santidade pessoaI. Este modo de vida estava aberto, em princípio, a todos os fiéis, tanto homens como mulheres, náo apenas aos monges e clérigos. A pobreza aqui prescrita não era a pobreza "institucionalizada" do claustro, nem a pobreza "natural" dos miseráveis rurais e urbanos, mas a pobreza voluntária de imitadores de Cristo e dos apóstolos. A chamada para a "pobreza apostálica" como o fundamento e prova da verdadeira vida cristá iria ressoar por toda a Baixa Idade Média. Como será visto, ela confrontava a igreja institucional e a liderança papal, com os mais sérios dos desafios, como também com oportunidades para reforma dos abusos.
Em 1100, Cluny havia, em grande medida, gasto sua força para a renovação da igreja. O próprio sucesso de Clun): sua absorçáo nas esrruriiras da sociedade feudal, havia levado - assim acusavam seus críticos - a um abrandamento do ideal monástico de renúncia do mundo. Surgiram novas comunidades monásticas em protesto contra esta secuíarizaçáo. Elas enfatizavam a observância literal da regra beneditina ori-
ginal, sem acomodaçáo Bs formas e costumes feudais. Essas comunidades também atendiam h busca que muiios monges empreendiam por uma religião mais pessoal,
uma espiritualidade mais intensa, vivida em isolamento da sociedade e mesmo, em alguns casos, dos outros companheiros monges. Sem quebrar com a tradiçáo ocidental do monasticismo cenobítico e da vida comunitária, essas novas associaçóes reacenderam o antigo ideal da vida eremita, a solidáo e o duro ascetismo dos pais do deserro (ver IIL7). Este novo espírito está evidente na fundaçáo da ordem cartuxa por Bruno de Colônia (1032?-1101). Ein 1080, ele se afastou de seu posro como chanceler da escola da catedrai em Reims para associar-se a um grupo de eremitas em uma área desolada perto de Grenoble, na Borgonha. O bispo de Grenoble logo o estabeieceu, com diversos companheiros, em um Local remoto em um vaie enrre altas montanhas.
Lá, em 1084, ele fundou o mosteiro de La Grande Chartreuse, assim chamado por causa da vila vizinha de St.-Pierre-de-Chartreuse. Os cartuxos faziam voto de silêncio e viviam como eremitas, ajuntando-se apenas em poucos momentos prescritos para culto e refeitóes, Eles assim procuravam combinar a vida cenobítica e a eremita, mantendo uma forma modificada da regra beneditina. Em 1127, o prior Guigo I compilou seus costumes em uma regra aprovada em 1133
elo papa Inocêncio I1
(1 130-1143). "Casas-carruxas" foram gradualmente f~~ndadas por toda a Europa, embora os cartuxos náo desejassem tornar-se numerosos e influentes. Seu apego estrito ao espírito e aos costumes originais do mosteiro de Chartreuse foi tal que a ordem foi considerada por muita gente como estando 'além de reforma" precisamente porque nunca fora "dcformada" (nunquam refirmata guia nunquam de@rmata). Entre os cartuxos mais conhecidos encontram-se Sáo Hugo (1140?-1200),que fez votos em Grande Chartreuse em 1160 e, em 1186, tornou-se bispo de Lincoln, na Inglaterra; e Ludoffo da Saxônia (1300?-1378), cuja Vzda de CrZsto foi bastanre popular na Baixa Idade Média e também modelou a piedade de Inácio de Loyola. Um eremita de um eipo e propósito bastante diferente de Bruno de Colônia foi Roberto de Arbrissel (1060?-1117?).Ex-sacerdote no círculo doméstico do bispo de Rennes, Roberto tornou-se um anacoreta nas florestas da Bretanha e depois um pregador irinerante nas vilas e cidades do vale do Loire. Caminhando descal~o,pobre e maltrapilho, com barba e cabelos longos, ele pregava ascetismo e a "vida apostólica". Embora ele tivesse sido licenciado para pregar pelo papa Urbano I1 em 1096, seus frequentes ataques aos vícios do clero náo o recomendavam, para muitos do alto clero, que o consideravam um agitador. A pregacão de Roberto atraiu inúmeros
vtnia~au
1IDADE MEDIA POSTIRIOR
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i:guidores de ambos os sexos, e ele foi visivelmente bem sucedido na colheita de 5sguidoras femininas, especialmente dentre a nobreza rural da Bretanha, Maine e .'injou. Abandonando suas casas e posses e chamando-se "pobres de Cristo", seus Jiscípulos viviam a vida ascérica sob sua direqáo. Sua política inovadora de náo separar seus seguidores masculinos e femininos suscitou a oposição dos bispos de Rennes c h g e r s e depois de um concílio local realizado em Poitiers em 1 100. Como resulrado, Roberto foi forçado a dispor as mulheres em clausura estrita, e por volta de 1 100 ele estabeleceu um convento em Fontevrault. Assim, no espaço de quatro anos, esse pregador itineratite do ascetismo tornara-se um fundador monástico. Fontevrault era na realidade um "mosteiro misto" - isto é, um convento que jncluía homens e mulheres vivendo em estrira separacáo. Na Alta Idade Média os mosteiros mistos eram comuns, mas por volta do décimo século quase desapareceram, para serem revividos novamente apenas na primeira metade do século doze. Eles capacitaram as autoridades eclesiásticas a incorporar dentro das estruturas monásticas o grande número de mulheres, como também de homens, que atendiam aos pregadores populares da vitcr ~~portoiicrr. O mosreiro misto de Roberto era singular e inovador, no sentido de que era dirigido pelas mulheres, especificamente por uma abadessa, que exercia jurisdição sobre todo o estabelecimenco, enquanto que os homens cuidavam principalmente das necessidades litúrgicas e econômicas das mulheres. Porém, Fontevrault não continuou como mosteiro misto. Dentro de uma gera-
çáo, ele havia-se tornado o mais famoso convento de freiras do noroeste da França, ~ r i n c i ~ a l m e ncomo te refúgio para as mulheres das mais nobres familias da regiáo.
A congregaçáo em Fontevrault, diferentemente daquela em Grande Chartreuse, não se desenvolveu em uma ordem monástica. Das novas ordens, a de maior fama, número e influência foi a dos cistercienses, que dominou o século doze, como Cluny dominara o século anrerior. Como os cluniacenses e os cartuxos, os cistercienses eram da Borgonha. Em 1098, Roberto, abade do mosteiro de Molesme, em companhia de um pequeno grupo de monges, deixou Molesme para estabelecer um mosteiro de grande rigor em Citeaux (Cistercium), perto de Dijon. Desde o início, o propósito desse esrabelecimento foi cultivar uma vida de rigor e abnegaçáo, na qual a regra beneditii~aseria seguida literalmente. Seus edifícios e utensílios, mesmo os rituais e acessórios de culto, eram de simplicidade extrema. Havia p n d e austerida-
de em relagáo à comida e vestes, com a adoçáo de um hábito feito de lá branca barata (daí a designaç20 dos cistercienses como "monges brancos", diferenciando-os dos
"monges negros" da antiga observância beneditina). O s cistercienses não eram eremitas, mas o impulso eremita é visto tanto em seu "puritanismo" como em seu afastamento para as regióes desabitadas. Sob seu terceiro abade, o inglês Estêvão Harding (1109-1134), a influência de Citeaux cresceu rapidamente. Por volta de 1115 haviam sido fiindados quatro mosteiros filiados em outras partes da Borgonha, incluindo Claraval. Daí em diante, seu progresso foi rápido por todo o Ocidente. Quando Bernardo de Claraval morreu em 1153, havia 339 mosteiros; pelo final do século treze esse número tinha mais que duplicado. Esce crescimento fenomenal ocorreu apesar d o rompimento dos cistercienses com a antiga prática de aceitar crianças como oblatos, para serem treinados no mosteiro e depois aceitos como monges, e náo obstante uma tentativa oficial, em 1155, de brecar sua expansão. Conquanto a disciplina e costumes de Citeaux tenham permanecido como o modelo obrigatório para todos os mosteiros
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da ordem, a organização cisterciense rompeu com o sistema altamente centralizado de Cluny. Os mosteiros afiliados estavam sujeitos à supervisáo dos abades de seus mosteiros matrizes; assim a autoridade repousava sobre muitos abades em vez de encontrar-se em um único abade, como no sistema de Cluny. Todos os abades cistercienses, por sua vez, reuniam-se em um cabido anual em Citeaux, cujo próprio abade era apenas "o primeiro enrre iguais", e náo um "abade geral" da ordem. Em resumo, os cistercienses eram uma f e d e ~ a ~ ádeo mosteiros igualmente autônonios, com cada abade tendo igual voz com todos os outros abades na concepçáo da legislacáo vinculando a ordem como um todo. O sistema de organização retrocede até a famosa "Carta de Caridade" (Carta Cd~itatis)formulada por Estêváo Harding, que é justamente considerado o "segundo fundador" da ordem. Quase desde o início, também brotaram conventos cistercienses de freiras, pretendendo seguir os costumes de Citeaux. Contudo, a primitiva legislação cis[erciense ignorou a existência de suas residentes, e elas náo ocuparam nenhum lugar oficial na ordem. O primeiro cabido a notá-las foi em 1 191, e de 1213 em diante foram feitos repetidos esforqos nos cabidos anuais para limitar o número de freiras e sujeirá-las à supervisáo estrita de abades cistercienses. Em 1228 foi proibida a admissáo de qualquer convento de freiras à ordem. Entretanto, cal legislaçáo foi inúcil. No final da Idade Média, havia quase o mesmo tanto de convenros de freiras como de mosteiros para monges - um testemunho marcante do amplo apelo da vida ascitica e do vigor dos movimentos de mulheres na igreja ocidental, de 1100 em diante. As freiras
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A IDADE MEDI11 POSIERIOR
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cistercienses, porém, não tinham voz nas deliberaçóes da ordem e, como as beguinas de um periodo posterior (ver V:4),elas existiam na periferia da organizaçáo religiosa oficial. Os monges cistercienses dedicavam relativamente pouca atencáo ao ensino ou ao trabalho pastoral. Sua principal contribuiçáo à sociedade, além de seu papel como modelo de piedade ascética, foi seu cultivo permanente de amplas seções de terras improdutivas. Seus mosteiros estavam localizados, planejadamente, em áreas remotas desérricas e nas fronteiras em expansáo da crisvandade. Tendo renunciado a ter servos, e inicialmente muito pobres para contratarem trabalhadores, os cistercienses utilizavam irmãos leigos (os assim chamados conuersi) para trabalharem a terra. Estes irmáos leigos assumiam votos e seguiam um regime monástico simplificado, mas, sendo analfabetos, permaneciam como monges de segunda categoria. Este sistema náo se originou com os cistercienses, mas eles o utilizaram da maneira mais compieta. Parece ter suscitado pouco descontentamento durante o século doze, o período de maior expansáo da ordem. A história posterior dos cistercienscs é familiar nas crônicas monásticas: a atividade ascética gerou prosperidade marerial, que cntáo conduziu ao declínio espiritual. Muito d o êxito inicial dos cistercienses foi devido à Rernardo de Claraval (1090-
1153), a maior força religiosa de sua época e, por consenso !geral, um dos principais santos medievais. Nascido em uma família de cavaleiros, em Fontaines, nas proximidades de Dijon, ele entrou no mosteiro de Citeaux em 11 13, com cerca de ~ r i n t a companhçiros, incluindo quatro de seus cinco irmáos, frutos de seu poder de persuasáo. Em I 115 ele partiu de Greaux com doze monges companheiros para fundar o mosteiro afiliado de Claraval, do qual ele ficou como abade atP a morte, apesar de esplêndidas ofertas de promoçáo eclesiástica. Veemente, inflexível, mesmo de conduta violenta, e dado A extrema auto-mortificaçáo, sua causa primeira era um amor por Cristo, que enconcrou uma expressáo tão evangélica que conquistou a aprovaqáo de Lutero e Calvino. A contemplação mística de Cristo era seu mais elevado deleite espiritual, e recebeu expressáo clássica em seus Sermones in Cantica Cdnticorzm (oitenta e seis sermóes sobre o Cântico de Salomáo) e em seu tratado De dzlzgendo Deo (Sobre Amar a Deus). Seu misticismo não era do tipo "intelectualista" do pseudoDionísio, mas era "prático" ou "voluntarista", uma vez que para Bernardo o que era fundamenral era a experiência, pela alma, do amor divino, e i ~ á oa compreensáo de Deus pela mente. O retorno da alma para Deus era sempre uma operaçáo davontade
didade, assim diziam eles, voltavam acé a própria Bíblia. Originalmente ativos na L
.L,açáo ->o e ensino, como também no estabelecimen~ode hospitais e asilos para doen-
r,.
pobres e idosos, eles gadualmente tomaram todas as feiçóes de uma ordem
2onástica. Muitos de seus maiores mosteiros náo se diferenciavam dos estabelecix n t o s moriásricos mais antigos. Concudo sua regra era suficienremente flexível para rnantê-10s em contato som as necessidades práticas da sociedade medieval. Muiras Lomunidadesde conegos regulares brotaram na Europa ocidental entre 1075 e 1125. \ o século treze havia milhares dessas comunidades, muitas delas, obviamente, bem
xquenas. Duas fundaç6es dos cônsgos regulares do século doze merecem ateiição specid.
A primeira é a dos premonstratenses (ou norbertinos), fundada por Norberto de Santen (1080?-11.34).Ex-clérigo nas igrejas de Xanten e Colônia, na Renânia alemá, 2
s ~ b s e ~ i e n t e m e nao t e serviço do imperador Henrique V (1 106-11251, Norberto
no início se distinguiu apenas por sua lassidáo moral e ambiçóes mundanas. Em
1 1 15, ele experimentou uma convers50 religiosa e resolveu entrar em um minisrério
icinerante de pregaçáo ao povo comum. Em 1118 ele obteve do papa Gelásio 11 ( i 1 18-11 19) uma Iicença para pregar, e passou os anos segumtes pregando no norre
da França. Como Roberto de Arbrissel, ele conquistou muitos seguidores de ambos os sexos, mas as autoridades eclesiásticas, como também no caso de Roberto, nzo olhavam favoravelmente para um grupo "misturado" de seguidores itinerantes. Em 1120, portanto, com a ajuda dos bispos de Laon e Cambrai, Norberto estabeleceu um convento em uma floresta perto de Laon. Acredirando que o local havia sido divinamente indicado, ele o denominou P~amonrtratum(Prdmontré, "o lugar mosrrado de antemão"). Em 1121, o mosteiro adorou a regra agostiniana, com dgimas adiçóes de caráter cisterciense - produto da amizade de Norberto com Bernardo. Os premonstratenses, na realidade, estavam para os conegos regulares como um todo o que os cistescicnses estavam para o monasticismo beneditina - ou seja, o parrido de rigoristas e purisras. Em 1126, eles foram aprovados como uma ordem pelo papa Honório 11 (1124-1130). Um sécula mais tarde, seus mosteiros já contavam com bem mais de seiscentas unidades. Origi~ialrnente,Norberto havia deixado espaço para suas seguidoras femininas, no sentido de que a fundação de Prémontré, como aquela de Fontevrault, era um
mosteiro misto. Aqui, entretanto, as mulheres não exerciam autoridade preeminen-
te, como fizeram em Fontevtault. Elas estavam sujeitas ao governo do abade, realiza-
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HISTORIA DA IGREJA CRISTÃ
vam tarefas domésticas para os irmãos e tinham apenas um papel limitado na atividade pastoral e litúrgica da insticuiçáo. O estabelecimento de mosteiros mistos, ademais, logo suscirou crescente criticismo, tanto de dentro como de fora da ordem. Embora os papas do século doze tenham-se esforçado para proteger os direitos das mulheres, uma vez que muito da propriedade da ordem era mantido como doações dos membros femininos ou em seu favor, a opinião religiosa geral continuou a olhar para as mulheres como tentadoras e como ameaças constantes a castidade masculina, especialmenre castidade monástica. Consequentemente, não obstante as bulas papais, a ordem comeGou a suprimir seus mosteiros mistos, e antes do final do século doze, por decreto do cabido geral em Prémontré, náo foi admitida niais nenhuma mulher na ordem. Uma abadia igualmente famosa de cônegos agostinianos foi a do mosteiro de Sáo Vítor, em Paris, fundado algum tempo depois de 1 108 por Guilherme de Champeaux (1070?-1121), um ex-professor muito aclamado na escola da catedral de Paris. Embora nunca em p n d e número, os vitorinos obriveram grande prestigio como teólogos cspeculativos, místicos e poetas. Os mais proeminentes entre eles foram Hugo de São Vítor (1096i-1142) e seu discípulo Ricardo de Sáo Vítor (1123?-1 173), ambos os quais utilizaram o novo método dialético (ver V:5)ao serviço da teologia mística.
A congregaçáo vitorina no fina! do sécuIo doze também incluía Adáo de Sáo Vítor, um notável composiror de hinos, e Walter de São Vítor, um oponente feroz de Abelardo e dos "dialéticos". Um traço marcante desses movimentos religiosos cnrrc 1050 c 1150 é que a "vida apostólica" foi rapidamente assimilada à vida monástica. Os pregadores populares da época, tais como Roberto de Arbrissel e Norberto de Xanten, tenderam a se retirar para conventos e mesmo se tornarem fundadores de n~osteiros,e os cânones regulares logo se desenvolveram ao equivalente de uma ordem monáscica. A autoridade eclesiástica favoreceu e promoveu claramente essa "regularizaçáo" da vida religiosa. Entretanto, não C surpreendente que alguns indivíduos desistiram de seguir o caminho da assimilaçáo. Eles insistiram, em lugar disto, que a verdadeira vita apostolica deve ser aquela da pregação itinerante às massas, uma vida de pobreza e simplicidade semelhanre a Crisro, vivida "no mundo", não atrás das muralhas dos conventos, e consequeiltemente também uma vida de constante oposiçáo a riqueza, luxúria e lassidão entre os monges, como também entre os clérigos. Comeqando como reformadores e reavivalistas, frequenremente de crença ortodoxa, alguns desses pre-
PERIOBOY
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gadores itinerantes passaram do criticismo da moralidade à rejei~áoda autoridade disciplinar e da doutrina aprovada pela igreja. Em uma só palavra, eles se tornaram hereges. Parece que antes do surgimento e do reconhecimento oficial dos frades mendicantes no início do século rreze, a igreja podia aproveitar o poder explosivo do rnovimenro da "vida apostólica" apenas dentro de um contexto monástico ou semimonástico. A ortodoxia teológica estava assim inseparável das rradiçóes institucionais. Esta limitaçáo foi de conseqüência terrível para a igreja medieval. Dois
populares que escorregaram para a heresia foram Pedro de Bruys
e Henrique, o Monge. Ambos eram ativos na França na primeira metade do século doze. Pouco é conhecido sobre a vida inicial e as origens de Pedro, e muito daquilo que é conhecido sobre seu ensino e seus seguidores vem de um tratado hostil, Contra
Petrobrusianos, escrifo por Pedro, o Venerável, abade de Cluny de 1122 a 1 156. Pedro de Bruys originariamente era um sacerdote na pequena vila de Bruys, nas montanhas dos Alpes franceses, perto da desenlbocadura do Rodano (ou Bruys pode ter sido seu local de nascimento). Depois de ter sido expulso de sua paróquia, Pedro tornou-se um herege agirador na regiáo junto ao Ródano e depois deslocou-se para o oeste, para as áreas densamente povoadas ao redor de Narbonne e Toulouse. Ele esteve ativo por volta de vinte anos, de cerca de 11 19 até sua morte em 1139 ou
1140. Graças em parte à sua extraordinária oratória, ele conquistou um grande número de seguidores, que ficaram conhecidos como petrobrusianos. Sua premissa cenrral era que o indivíduo tem total responsabilidade por sua própria salvaçáo. Conseqüentemente, o clero, o batismo infantil, a missa, as oraçóes pelos mortos, o cerimonial eclesiástico e os edifícios eclesiásticos são supérfluos.
A verdadeira
reli-
giáo náo requer tais coisas "materiais". Ele também rejeitava qualquer veneracáo da cruz (que devia ser odiada, ao invés, como um instrumento de tortura). Pedro praticava o que pregava, e isso provou ser seu equívoco: quando queimava cruzes em Saint Gilles, uma cidade de peregrinos perto de Nimes, ele próprio foi lanqado nas chamas por especradores 6uriosos. Henrique, o Monge, frequentemente chamado "de Lausanne" (onde pregou por algum tempo, embora seja improvável que tenha nascido ali), era um monge bcncditino que sc tornara pregador itinerante no norte e especialmente no sul da França, de I1 16 até sua morte algum tempo depois de 1145. Em 11 16, ele pregou sermóes da quaresma em Le Maris e provocou um rebuli50 com seus araques ao clero avarento e impuro. Depois que foi expulso pelo bispo da cidade, o erudito Hildeberto
de Lavardin, Henrique seguiu caminho em direçáo ao sul, pregando em Poitiers e Bordeaux. Eventualmente, foi preso por ordem do arcebispo de Aries, que o conduziu a presença do papa Inocêncio 11, no concílio de Pisa, em 1 135. Ali foram condenadas diversas das dourrinas de Henrique, e ele foi obrigado a abandonar sua pregação itinerarirc e reingressar ern um niosteiro. O u ele nunca obedeceu ou logo escapou do convento e retomou sua pregaçáo náo autorizada na regiáo ao redor de Toulouse, onde desapareceu de cena depois de 1145. Naquele ano, Bernardo de Claravai havia conduzido uma missáo de pregação contra os seguidores de Henrique
em Toulouse. Em algum momento, Henrique entrou em contato com Pedro de Bruys no sul da França - se antes ou depois do concílio de Pisa C incerto - e parece ter adotado dele idéias mais radicais. Ele não era um mera imitador, porém, e conquistou seu próprio conjunto considerável de seguidores, conhecidos corno henriquenses. Como Pedro, ele rejeitou o batismo infantil e as oracóes pelos mortos. Diferentemente de Pedro e dos petrobrusianos, ele continuou a venerar a cruz, mas foi além deles na negação da doutrina do pecado original. Da maneira dos antigos donatistas, ele também negou a validade dos sacramentos administrados por sacerdotes indignos. Averdadeira igreja é a espiritual, baseada na vida sanrificada e na simplicidade apostólica; por
esse padrão Henrique rejeitou a autoridade da igreja visível, hierárquica, de Roma. Conio Pedro, ele insisùu sobre a corilplt.ra responsabilidade rndividual para a salva~ á o um ; clero com funçóes sacramentais especiais é supérfluo. A verdadeira igreja não requer nada além de pregadores itinerantes pobres para exortarem os fiéis a seguirem o Cristo pobre. Tanto a ensino de Henrique, o Monge, como o de Pedro de Bruys lembram o ensino dos cátaros em diversos aspectos (ver V:3), mas lhes falra aquele dualismo teológico que é a marca da doutrina cátara desen-
volvida. Outro reformador pregador da "pobreza apostoiica" durante esse período, e talvez n mais conhecido, foi Arnoldo de Brescia. Nascido em uma data imprecisa na
cidade de Brescia ou perto dela, no norte da Itália, ele começou um período de estudo na Françapor volta de I Z 15, possivelmente sob a orienraçáo de Abelardo. Em i 123 retornou para sua cidade natal, onde se tornou cônego agostiniano e abade. De
austeridade severa, ensinava que os clérigos, para serem verdadeiros discípulos de Cristo, deveriam abandonar toda propriedade e poder mundano e viver apenas das conrribuições volunrárias dos fiéis. O ensino de Arnoldo antecipava assim o de Valdo
~ t n i i i ov
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e dos vafdenses. Em Brescia, ele logo incitou a populaçáo dissidente contra seu bispo, Manfredo, ele próprio um reformador moderado. Q~iando,em 1138, o povo considerou uma comuna, como uma maneira de controlar o poder econômico e politico do clero, Arnoldo invocou a autoridade da comuna para apoiar seu programa religioso de reforma "apostólica". Manfredo, entretanto, prevaleceu sobre Inocêncio
TI para condenar Arnoldo no Segundo Concílio de Latráo, em 1139, e bani-lo da Itália. Arnoldo então buscou refúgio na Franca, onde estudou com Abelardo em Paris e atacou Bernardo de Ciaraval audaciosamente. Bernardo, por sua vez, cuidou para que Arnoído fosse condenado junramente com Abelardo pelo concílio de Sens
(1 l 4 1 ) , e também conseguiu a expulsáo de Arnoldo da Franca pelo rei Luís VII. Em
1146, depois de encontrar refíigio em Zurique e na Boêmia, Arnoldo submeteu-se ao novo papa, Eugênio 111, que o convocou a Roma para que ele pudesse ser mantido sob vigilância cerrada. Uma vez em Roma, Arnoldo tornou-se ainda mais violento em seus ataques aos abusos do clero e ao ~ o d e temporal r da igreja. Logo ele tornou-se o líder da comuna romana que, em nome da restauraçáo da antiga república, havia expulso Eugênio 111 da cidade, em janeiro de 1146. Apesar de sua excomunháo em 1148, Arnoldo permaneceu influente até que o vigoroso Adriano IV (1154-1 159) - o único inglês que ocupou o trono papal até hoje - forcou os romanos a expulsá-lo, em 1155, mediante um interdito sobre a própria Cidade Santa. Adriano também barganhou com o novo soberano alemáo, Frederico Barba Ruiva (1 152-1190),a destruiçáo de Arnoldo como preço pela coroaçáo imperial. Arnoldo foi executado em 1155, seu corpo e as cinzas espalhadas no Tibre. Arnoldo nunca foi formalmente acusado de heresia; sua verdadeira ofensa foi seu ataque ao poder temporal da igreja, bem como à riqueza des~a,combinado com uma disposiçáo em utilizar a força política para alcançar seus fins reformadores. Pedro de Bruys, Henrique o Monge e Arnoldo de Brescia ocasionalmente têm sido proclamados "protestantes ances da Reforma". Fazer isso é considerar toda manifestaçáo de oposiqáo 5 igreja medieval como "protestante" - eviden~ementeum erro. Como foi observado, eles apontam náo para os reformadores do século dezesseis mas para os cátaros e valdenses da última metade do século doze, para os quais sua pregacão preparou o caminho.
Capitulo 3
Heresia Medieval a Inquisiçáo
- Os
Cátaros e Valdenses;
O século doze náo foi apenas uma grande kpoca para os movimentos de revitalizaçáo religiosa entre o clero monástico, entre o clero secular e entre o laicato. Foi também uma grande era para a heresia. X reforma gregoriana dos abusos eclesiásticos e renovaçáo da piedade, com sua advertência solene de que os fiéis não deveriam aceitar as ministraçóes de sacerdotes indignos, produziu tanto hereges e cismáticos como santos. Embora ela renha feito surgir movimentos ortodoxos de reforma da igreja, criou também um cIima hospiraleiro no qual a heresia pode brotar e, por pelo menos um tempo, florescer. Durante a última metade do século doze, surgiram dois grupos formidáveis de hereges, os cátaros e os valdenses, que juntos ameacaram conduzir toda a regiáo desde os Alpes até os Pirineus para fora da comunháo com a igreja Carólica Romana. Eles eram "hereges" no sentido de que a hierarquia da igreja os julgou oponentes empedernidos da f i cristã cIássica, segundo definido pela Sagrada Escritura, pelos pais da igreja, pelos credos e decretos dos concílios eclesiásticos e pelos pronunciamentos autorizados individuais dos papas. Nem todo desvio da tradi~áo,porém, podia ser denominado herético, e nem todo ensino eciesiiscico j5 havia recebido definiqáo dogmárica clara e s[arus claro. Na prática, portanto, a identificacão do que era classificado como heresia era urna questáo de decreto papal. Por esta razão, a heresia msdie17al era da mesma forma
iIilla
questáo de desobediência, de rejeiqáo
voluntariosa da correcão eçlesiásrica, como uma questáo de falsa doutrina.
h heresia dos cátaros náo podç ser çspIicada sem a admissáo da influência externa dos hercgcs orientais - espccificamcnte as bogomilos dualistas (ver IVS) - sobre os católicos ocidentais. Contaros crescentes com o Oriente, por meio das peregrinaqócs, comércio e as cruzadas, haviam posro os europeus ocidentais em contato com os centros da heresia bogoniila rios BLílcás, na ,&ia Menor r na própria Constanrinopla. Missionários hogoiiiilos, por sua vez, estavam em atividade em partes da Europa ocidental em meados do século doze. É possível que o dualisrno bogomilo já houves-
~talnnnu
A IDAOF MEDIA POS1ERIOR
143
se penetrado no Ocidente na primeira metade do çkculo onze e que Pedro de Bruys e os petrobrusianos estivessem sob influência bogomila nas primeiras décadas do século doze. 0 s historiadores da heresia medieval encontram prova inequívoca de tal Influência, contudo, apenas na década de 1140, na Rensnia (Colbnia). Também é fora de questão que existiram relacionamentos intirnos entre os bogomilos e os citaros depois da metade do século doze.
O termo "cátaros" (ratbaros)é de origem grega e significa "puros". O nome rornou-se genérico para a seita como um todo, rr~as,estritan~entefalando, ele deveria ser aplicado apenas a seus membros ou adeptos líderes: aqueles homens e mulheres que haviam recebido o consolnmentum ("c~nsola~áo") - o rito central da seita do batismo
"no Espírito" mediante a imposicáo de mãos, núo
água, através do qual o indiví-
duo cornava-se "cristão verdadeiro". Seus oponentes catóIicos os chama\.am hereges "perfeitos" ou "consolados", também hereges "togados", devido à sua costumeira roga preta, mas esres eram nomes que os cátaros náo utilizavam para si. Eles preferiam se chamar simplesmenre "cristáos" ou "bons cristáos", enquanto que seus seguidores na Franfa geralmente se referiam a eles como "bons homens" (bonshomrnes). Eles também eram chamados albigenses, por causa da cidade de Albi, uma de suas principais sedes no sul da França. Nas fonres históricas, os cátaros são sempre
apontados como "maniqueus" ou
como "inaniqueístas". Náo há evidência, porém, de que o rnaniqueísmo do fim do império romano (ver 11:18), do qiial Agostinho fora prosélito, tenha sobrevivido nu Ocidente alim do sexto século. Permanece verdadeiro, não obstante, que os cataros, como os antigos discípulos de Mani, era dualisras teológicos, ensinando uma doutrina de dois princípios divinos oposros ou mesmo dç dois deuses coexistindo em guer-
ra aberta desde a eternidade. Nesre senrido, os cáraros pociem ser denominados "rnaniqueus medievais". Einbora originando-se na Europa setentrional, em cidades como Colóilia - onde o primeiro aparecimento regisrrado tc1.e lugar no início da década de 1 140 - 2 l,iPge, a heresia dualista espalhou-se para o sul entre cerca de 1140 e 1 l(í0. Suas áreas de maior penetração e vitalidade foram o norce da Itália (Lombardia, Toscana) e, sobretudo, sul da Franqa (Languedoc'}, mas rambérn continuou a se espalhar pela Alemanha atC o início do século treze. Em 1 167 os cátaros já eram suficientemente numerosos para realizar iim concílio bastante concorrido em São Félix de Cararnan, perto deToulousc. E antes du final do século eles haviam ganho no mínimo a tolerância de
uma g a n d e parte, possivelmente a maioria, da população do sul da França, a protecão de seus principais nobres e o apoio ativo da nobreza rural menor. As fontes náo permitem nenhuma estimativa segura do número total de cátaros. Afora algumas áreas rurais, é improvável que mais do que uma minoria da populaçáo tenha realmente adotado doutrinas heréticas ou abandonado a igreja romana. Um número muito maior de pessoas, porém, conquanto não abandonando a ortodoxia tradicional, provavelmenre não via razáo para hostilizar homens e mulheres de vida exemplar e pode muito bem os haver admirado como cristãos "apostólicos". O que é certo C que, em 1200, os cátaros do sul da Franca e do norte da Irália já eram uma séria ameaça a igreja estabelecida.
O dualismo cátaro, como aquele dos bogomilos, era de dois tipos. Os bogomilos originais do décimo século, nos Bálcás e no império oriental, eram dualistas "relari-
vos" ou "mitigados". Eles defendiam que o Deus bom tivera dois filhos, Saranel (o sufixo "ei" indicava divindade) e Cristo, dos quais o mais velho rebelara-se e se tornara o líder do mal. Satanás rerirara-se do reino celestial com seus muitos anjos (ralvez um terço de seus quadros), criara o mundo visível, e seduzira os anjos caídos para habitarem os corpos que eie havia criado. Esse dualismo é do tipo "mitigado" pois ensina que Satanás não é coeterno com o bom Deus. Em algum momento mais tarde - a data exata é desconhecida - os bogomilos adotaram um dualismo "radical" ou
"absoluro", ensinando que há dois poderes coeternos, coiguais, um bom e o outro maligno. Nesta versão o poder do mal, Satanás, invadiu os céus, capturou os anjos bons e aprisionou-os pela força em corpos de sua criacáo má. Eventualmente, ambas estas perspectivas foram trazidas para o Ocidente, onde competiram com a doutrina cristã ortodoxa da criaçáo e queda da humanidade, como meios para explicar a presença e aparenre governo do mal no mundo.
Os primeiros cátaros, como os primeiros bogomilos, eram dualistas mitigados. No final da década de I. 160, entretanto, Nicetas, o sacerdote (ou "papa") bogomilo, levou de Constantinopla para o Ocidente a posiçáo dualista absoluta. Esse, que era o mais influente dos missionários dualistas medievais, esteve presenre no concílio de líderes cátaros em Sáo Félix de Caraman, em 1 167, e persuadiu-os a serem rebatizados (reconsolados) na tradição dualisra absohta. Conquanto a maioria dos cátaros do Lanpedoc fossem dualistas absolutos, tanto os dualistas absolutos como os mitigados se manriveram na Itália, e suas divisóes doutrinárias enfraqueceram seriamente as igrejas cátaras italianas no decorrer do século treze.
rotsia v
A 1010E MEDIA POSTERIOR
3.51
Não obstante suas perspectivas divergentes sobre a origem última do mal, todos os cáraros concordavam em que o mundo visíx~lé obra do poder do mal, no qual as almas angélicas - sejam caídas ou capturadas do domínio celestial do Deus bom estão encarceradas em corpos criados por Satanás. O maior dos pecados, portanto o ~ e c a d ooriginal de Adáo e Eva - é a reproducáo humana, por meio da
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aumenta
o número de prisóes. A salvaçáo vem unicamente através do consolamentum, que opera remissão de pecados, rescauraçáo da alma ao reino do bom Deus, entrada no estado de perfeiGáo religiosa (que deve ser mantido pelo mais severo ascetismo), e admissáo aos q,uadros do clero cátaro.
O consolamentum era ordinariamente conferido apenas depois de um ano probatório de jejum e inscrucáo, sob a orientacão de um "perfeito" (isto é, alguém que já havia recebido o consolamentum).A cerimônia estava dividida em duas partes. Na primeira, o "crente" (um discípulo que ainda náo havia sido "consolado") recebia a autoridade para recitar a Oraçáo do Senhor, pois até aqueIe momento permanecia no reino de Satanás e portanto não cinha o direito de chamar o Deus bom de "Pai". Na segunda parte, o crente fazia uma solicitaçáo formal de batismo e ouvia um longo sermáo detalhando as exigências para a nova vida, baseadas principalmente nos preceitos do Sermáo do Monte.' O crente prometia solenemente abster-se de casamento (ou dissolver um matrimônio existente) em benefício de um celibato por toda a vida, evitar juramentos, guerra e propriedades, e nunca comer carne, leite, queijo ou ovos, uma vez que tudo isso é produto do pecado da reproduçáo (comer peixe era perrnitido por causa da suposiçáo medieval que os peixes não eram gerados por copulaçáo mas pela própria água). O ministro presidente então segurava uma cópia dos Evangelhos sobre a cabeca do crente e todos os cátaros colocavam suas mãos sobre o corpo dele, enquanto o rninisrro lia os dezessete primeiros versos do Evangelho de João e recitavam uma litania por misericórdia, intercalada com repeti~óesda Oraçáo do Senhor. Por meio desta cerimônia, o crente tornava-se um "bom cristáo", com a alma saindo do poder de Satanás mediance o recebimenro do perdáo de pecados diante do céu. Aqueles que dessa forma recebiam o consohmentum tornavam-se membros dos eleitos e podiam estar cercos da salvação, desde que não desobedecessem aos seus votos severos e assim perdessem a "consolaçáo". Devido aos rigores e perigos da vida
3 52
HISTORIA DA ICAEJA ERISII
perfeica, a grande maioria dos crentes postergavam o consolumentum até perco da morte. Se a pessoa moribunda mais tarde se recuperasse, esperava-se que ela passaria por um segundo barismo. Há também relatos, na maioria de observadores hostis, que alguns dos perfeitos cometiam suicídio jejuando, para evitar o perigo de pecar. Esta suposta prática, conhecida como endzoa, pode ter sido realizada por poucas pessoas, quando a religião dos cátaros estava em declínio e sob intensa perseguição, mas certamente náo era uma prática típica quando a seita escava florescendo. Os perfeitos, estando na verdadeira sucessáo apostólica, eram os clérigos dos cátaros. Eles eram prontamente identificáveis por sua toga preta (pelo menos até quando a pcrseguicáo tor11ou essa veste desaconselhável), por sua aparência esquelética (por causa de seus jejuns semanais c anuais regulares, como também devido à sua dieta estrita), e por s u a repeticão incessa~lteda Oração do Senhor como uma correnie de oraçáo ou rito de encantamento. Cada membro dessa classe tinha o dever, e
privilégio, de pregar, instruir os crentes e administrar a consolação, sobretudo aos moribundos. Todos também estavam habilitados a receber dos crentes uma saudaçáo especiaI, conhecida como melioi-urnentrrm, tomando a forma de três genuflexõcs e um triplo pedido peia miserichrdia e bêncáo do perfeito. Os escrirores católicos, pensando que os perfeitos eram adorados nessa aritude, chamavam-na "adoracão". Embora todos os perfeiros piidessem realizar funções clericais, a seita também cinha sua hierarquia. Os bispos eram eleitos peia comunidade dos perfeitos e confirmados em seu ofício por uma repeti@ especial do ca~zsol~mentum. Nenhum bispo era superior aos demais. E infundado o relato, circulado por seus oponentes do século treze, que os cátaros tinham um papa rios Bálcás. Todo bispo tinha dois assistentes eleitos, conhecidos como o "filho mais velho" e o "filho mais novo" - títulos indicando não a idade, mas a ordem de sucessão episcopal. A tarefa principal dos bispos e de seus "filhos" era ser pregadores icinerantes e batizadores; em épocas de seguranca relativa, eles normalmente admitiistra\~ama consolacáo. Todo bispo também tinha vários diáconos como assistentes subordinados, cuja tarefa principal era supervisionar os albergues ou asilos para outras pessoas, homens e mulheres, perfeitas.
O consolamentum, como foi observado, era administrado tanto para homens como para mulheres. As mulheres, portanto, náo menos que os homens, eram admitidas à casta superior dos perfeitos e podiam executar ritos sacerdorais. Esra circunstância ajuda a explicar a grande atraqao que a religião dos cáraros exercia sobre as mulheres de inclinagáo espirirual, especialmente entre as famílias nobre do Lailguedoc. Esse
PERIODO Y
A IDADE MEDIA POSTERIOR
3 5.3
.::o da
sratus privilegiado era concedido as mulheres na suposiçáo de que as diferencas físi-
issar~a
cas entre os sexos eram insignificantes, uma vez que a sexualidade era criaqáo de
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Satanás e náo tinha nenhum papel significativo a desempenhar no plano das coisas
car.
do Deus bom. As perfeiras estavam habilitadas a receber o melior-amcntuín, tinham
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precedência sobre todos os crentes, homens e mulheres, nas reuniões comunitárias,
-.
73 L
e, se nenhum perfeito estivesse presente, dirigiam as oracóes em cais reunióes. Contudo, elas eram impedidas de ser bispas ou diaconisas (presumivelmentc por motivos dos
práticos e não por motivos estritamente teóricos). Na prárica, portanto, as mulheres
até ... r-znca
adeptas ordinariamente viviam uma vida serni-retirada nas casas estabelecidas para
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2 5113
elas, frequentemente por senhoras da nobreza, onde elas instruíam as candida~as para o consolumentzím, pregavam para quaisquer ouvintes desejosos na área, e realiza-
'::cn-
vam as refeiçóes comunirárias. Ali, também, era demonstrada a hospitalidade para
-.-:r, e
com os oficiais da seita, que utilizavam essas casas como bases para seus ministérios
aos
itinerantes. Resumindo, as perfeitas eram normalmente scdenrárias, enquanto que
11
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e
os
eram os missionários móveis da seira. Dado às suas perspectivas sobre sexualidade, casamento e reprodução, parece 1ó-
..;os,
gico concluir que os cátaros reriarn considerado as rela~óessexuais casuais preferíveis
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ao casamento, uma vez que esta instituiçáo apenas regularizava a concepqáo pecarni-
. I,m
nosri de criancas. O que era logicamente possível, porém, ainda não foi demonstrado historicamente verdadeiro, embora os cátaros iossem rotineiramente acusados de todos os tipos de aberra$óes sexuais por seus oponentes ortodoxos. O julgamento mais imparcial parece ser que, no que se refsre as suas práticas sexuais, a maioria dos cátaros não eram pior do que seus opositores católicos. O s perfeiros cátaros, por outro lado, claramente impressionavam seus contemporáncos por sua probidade, quando comparados com um d t o clero carólico no Languedoc, que era notório por sua lassidáo. Este contraste evidente entre os dois sacerdócios concorrentes era uma dos cáraros de poderosa fonte do apelo cácaro às massas, e apoiava as reivii~dica~óes
que eles apenas eram "crisráos verdadeiros" vi\rendo uma "vida apostólica". O s líderes cátaros reconheciam que poucas pessoas poderiam esperar imitar os perfeitos em sua total negação da criação materid. A verdadeira forca do movimento, portanto, encontra-se com os assim chamados credentes, ou "crentes", que rex7erenciavam os perfeitos e os sustenIavam com suas doaçóes e beneficência. Parece que os crences eram seguidores "comuns" a quem era permitido casar, manrer propriedade, comer carne e outros alimentos proibidos aos perfeitos, e mesmo se conforma-
354
HISTORIA DA IGREJA CRISTA
rem exterriamente à igreja romana. Afinal, faltando-lhes o batismo espiritual que 6 o único que salva, eles permaneciam no reino de Satanás sob seu governo. Contudo, era-lhes garantido que se recebessem o consokrrnentum antes da morte, seriam salvos juntamente com os perfeitos vitalícios. As almas daqueles que morressem sem consolaçáo iriam, na opiniáo de muitos cátaros, reencarnar em corpos humanos, ou mesmo de animais, até que por fim elas, também, após progressiva purificaçáo de todos os traços materiais, reascei~dessemao mundo celestial de onde vieram. Em cal esquema, a doutrina orcodoxa do céu e do inferno náo tinha sentido, enquanto que o próprio mundo tornava-se um grande purgatório. O s cátaros utilizavam bastante a Bíblia latina, a Vulgata. Eles traduziam para o vernáculo aquelas porcóes onde eles afirmavam encontrar seus ensinos. Alguns rejeitavam o Antigo Testamento por inteiro como sendo obra do poder do mal, idencificando Yahweh com Sa~anás.Todos acreditavam que o NovoTestamento era proveniente do Deus bom, mas nem todos aceitavam todos os santos tradicionais do Novo Testamento; por exemplo, era rejeitada a santidade de João Batista, uma vez que ele batizara simplesmente com água e náo com o Espírito. Uma vez que todas as coisas materiais sáo más, Crisro não pode ter tido um corpo real ou morrido uma morte real ou experimentado uma ressurreição corporal red: o dualismo cátaro exigia um docetismo decidido, A redençáo vem não pelo sangue de Cristo, mas pela submissáo ao seu ensino. A cruz nada mais é do que u m instrumento de tortura, para ser abominado. O Deus bom é desonrado pela constru~áode igrejas edifrcadas e ornamentadas com criações materiais do poder do mal. O s sacramentos, com seus elementos materiais, sáo maus e, crn [odo caso, somente poderiam ser úteis para os espiritualmente maduros. Embora profundamente herético pelos padróes cristãos ortodoxos, o dualismo cátaro não escava muito disrante da linguagem de alguns escritores ascetas ortodoxos, quando estes passavam a discutir sexualidade humana, matrimônio, o sratus d o sexo feminino e a natureza do mundo caido. Certamente a maioria dos cristáos medievais, sem orientacáo quanto as sutilezas do dogma ortodoxo, náo estavam em posição de distinguir entre esses dualismos concorrentes. O s pregadores cátaros, ademais, re~relavamas doutrinas mais heréticas da seita apenas para o círculo íntimo dos adeptos. A principal atração da religião dos cátaros, em todo caso, era moral e ética em vez de doutrinária e intelectual. Quanto à eficácia dos perfeitos cátaros em conquistar a fidelidade de milhares, especialmente das classes mais humildes da socieda-
de medieval, não pode haver dúvida alguma. Diferentemente dos cátaros, os valdenses náo se originaram em hostilidade consciente para com a igreja e, se eles tivessem sido tratados com habilidade, provavelmente nunca se reriam separado dela. O fundador d o movimento foi Valdès (ou Waldes), um abastado mercador de Lyon. (O nome ainda utilizado por alguns historiadores, Pedro Valdo, tem pouca justificativa histórica ou fonética. "Pedro" foi aliciado por seguidores no final do siculo catorze, como forma de ligar Vddès ao primeiro apóstolo c assim legitimar sua missáo e igreja.) Em algum momento enrre 1 L73 e 1176, impressionado pela cançáo de um menestrel ambulante relatando os sacrifícios de Sáo fleixo, VaIdès perguntou a um mestre em teologia qual era "o melhor caminho para Deus". O teólogo citou aquele texto áureo do monasticismo: "Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem, e segue-me."' V~ldPs,como Francisco de Assis uma geracáo mais tarde, colocou esse conselho em prática literalmenre. Separando uma quantia para sua esposa e colocando suas filhas no convento de freiras de Fontevrault -juntamente com uma doaçáo suficiente para toda avida delas - ele deu o restante de seus bens para os pobres e comeqou a pregar a vida de arrepen-
dimento nas ruas. Ele almejava cumprir absolutamenre as orientaçóes de Cristo aos apóstolos.z Ele usaria as vestes ali prescritas. Ele viveria apenas daquilo que lhe dessem. Para conhecer melhor seu dever ele procurou traducóes vernaculares de partes das Escrituras e dos escritos dos pais da igreja. Algumas pessoas, é claro, achavam que ele ficara doido. Outros ficaram profundamente tocados: ali, julgavam, estavam as verdadeiras marcas da vita uposmlica, a vida de pobreza voluntária e pregacão penitencial. Logo se formou um grupo de seguidores ao redor de Valdès, despertando a desconfianp e hostilidade do arcebispo e do clero de Lyon. A lei canônica, com poucas excecóes, restringia a pregagáo ao clero. Encontrando oposicáo locaI, Valdès e seus seguidores apelaram para o Terceiro Concílio de Larráo, em 1179, buscando aprovaçáo papal para suas vidas de pobreza
e pregaçáo. O concílio náo os julgou heréticos, embora alguns de seus membros tenham rido deles considerando-os leigos ignorantes. O papa Alexandre I11 (1 159-
118 1) aplaudiu a devoção deles k pobreza mas negou-lhes o direito de pregarem sem
'Mareus 13:21. 'Mateus 10:5-23
RMõRiA OR IGRCdA CRISTÁ,
3í6
primeiro conseguir perrnissáo de seu bispo. A aprovaçáo episcopal, como era esperado, náo foi concedida. Por Lim tempo, os primeiros valdenses parecem ter observado a restrição papal. Abandonar a pregaçáo, porém, era impensável, pois os valdenses viam na recusa de seu direito para pregar, a voz do homem contra a de Deus.4 Eles logo retomaram a pregação, portanra, e cerca de 1182 foram excomungados por sua desobediência pelo arcebispo de Lyon e expulsos da cidade. Alguns deles chamando a si mesmos de de Lyon"
- dirigiram-se
-
agora
obres de espíriton, e também conhecidos como "pobres
para o nordeste da França e para as áreas de faia alemá, no
Reno e além. A maioria deles deslocou-se para o sul para o La~ig~ledoc e a Lombardia.
Ein 1184, os valdenses, juntamente com oucras seitas, sobretudo os cátaros, foram excomungados no concílio de Verona pelo papa Lúcio I11 (1 181- 1 185) em sua bula
Ad dbolendam, uma condenacão coletiva das heresias. Estas ações do papado e das autoridades eclesiásticas locais náo apenas forçaram os valdençes para fora da igreja conrra sua vontade, mas também garanciu-lhes um consideráveI crescimento. Os h~imiliarido norte da Icália eram um grupo de trabalhadores piedosos, principalmente na indústria de lá em Miláo e nas cidades lombardas, que se haviam associado em busca de uma vida de penitência em comum. Também eles foram proibidos de realizar reunióes separadas, ou de pregar, por
Alexandre 111, e também foram excon~ungadospor desobediência por Lúcio 111, em 1184, Uma parte considerável desses hurniiiati Lombardos juntaram-se entáo aos valdenses, como fizeram também alguns dos ex-seguidores de Arnoldo de Bresçia, e
ficaram sob a direçáo de Valdès. Náo é surpreendente que os valdenses, depois de sua condenaçáo e excomunháo, alargassem sua ruptura com a igreja romana, passarido da desobediência para a heterodosia, especialmente na I.ombardia, onde havia amplo anticlericalismo. O papel de I h l d e ~riesse deseni7oIvimznto é incerto. Ele parece ter sido mais moderado do que inuitos de seus seguidores e nunca rer abandonado a --..-
possibilidade de uma reconciliacáo com Roma.
As caracterísricas iniciais dos valdenses se desenvolveram rapidamente no perío-
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do enrre 1 184 e a morte de Valdès, logo após 1205. h prii~cipaldelas era o princípio
. - . - . ~.-.:
de que a Ribiia, c especialmenre o Novo 'Testan~enro,1í. a única regra de f i e prática:
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o que náo tenha garantia nas Escrit-riras náo é justificado na igreja. Ademais, roda prcscricáii da Bíblia devc ser seguida ao pé da letra. Grandes porcóes das Escrituras ".Aros 5 2 9 .
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r~fileiov
II IDADE MÉOIA POSTERIBR
357
eram memorizadas nas escolas estabelecidas para o ~reinamentodos pregadores valdenses, que eram os líderes do movimento (o equivalente aos perfeitos entre os cátaros). Para cumprir as instruções de Cristo ao enviar os setenta,' esses pregadores iam de dois em dois, vestidos com uma simples túnica de lá, descalços ou calçando sandálias cortadas de uma forma especial para demonstrar sua profissão apostólica, prescrevendo arrependimento, ouvindo confissóes e rejeitando juramentos e todo derramamento de sangue. Como Valdès, eles renunciavam ao casamento e a todos os bens mundanos, mantendo-se com as contribuiqóes de seus seguidores. Eles náo consideravam necessária a ordenacão episcopal, e tanto os homens como as mulheres tinham o direico de pregar. Também era permitida a celebracáo laica da Eucaristia, em regiões onde o sacramento náo estivesse pronramente disponível por um sacerdote católico.
Além desse circulo i~iterior,a sociedade propriamente, os valdenses logo desenvolveram um grupo de simpatizantes, "amigos" (dmici) ou "crentes" (crede~ztes).Era dentre estes, que permaneciam exteriormente em comunhão com a igreja romana,
que a sociedade recrutava seus novos membros. 'i'ais amigos sustentavam os pregadores coin suas esmolas, agregavam-se no estudo das Escrituras ~ernaculares,e rnantinham as escolas de treinamento. Eles rejeitavam as missas c as oracóes pelos mortos como náo bibiicas, e negwrarn o purgatório. Ordinariamente não uriIizavam nenhuma oraçáo exceto o Pai Nosso, e rejeiravam absolutamente juraiiiencos, rlientiras e a pena de morte por crime ou heresia. Muito desse deserivoIviiriento foi devido ao exemplo cátaro, porém os spaldenses se opuseram fortemente aos c;it.aros c corrctamente, se consideravam como basrantc diferentes deles. Valdts e os valdenses franceses náo rejeitavam as minisrraqões de sacerdores honrados dentre o clero católico. Eles percebiam a dispensaçáo dos sacran~encoscomo válida apenas se o celebrante fosse uni sacerdore, e consideravam a ad~riinisrraçáo valdense dos sacrarncntos apenas como uma necessidade temporiiria, um arranjo ad hoc.
0 grupo lombardo mais radical, entretanto, adotou a postura donatisra de que
a validade sacramental deperide do "mérito" ciu dignidade pessoal, náo do "oficio". Os lombardos, portanto, selecionavam seus próprios ministros para dispensarem os sacramenros, nomeando-os vitaliciamente e perrnirindo que eles se sustentassem mediante trabalho manual, ronlpendo dessa forma com o princípio de Valdès, que
os pregadores devem depender exclusivamenre de doações voluntárias. Estes conflitos internos, e um sentimento de que o governo de Vddès era arbirrário, mesmo despótico, conduziu à separação do ramo Lombardo (conhecido como "pobres lombardos"), em 1205. Tenrarivas de reuniáo em 1218, em uma conferência realizada em Bkrgamo, iláo conseguiram sanar a fratura. Os dois grupos continuaram distanciados. O hábil papa Inocêncio 111 (1 198-1216), que lançou o primeiro contra-ataque eficaz conrra a heresia, tirou vantagem dessa divisáo encorajando, em
1208, a organizaçáo dos assim chamados "pobres católicos" (pauperes catbolicz], que eram autorizados a realizar algumas das práticas dos valdenses, principalmente a pregação itincrante, sob estrira supervisão eclesiástica. Um número considerável de pessoas foi assim reconquistado pela igreja, incluindo Durando de Huesca e Bernardo
Prim, ambos ex-líderes dos valdenses no Languedoc. Não obstante, o grupo valdense se expandia, especialmente entre camponeses e artesáos. Os valdenses podiam ser encontrados no norte da E s p n h a , Áustria, Boêmia e leste da Alemanha, como tam-
bém em seus locais de origem. Eles foram gradualmente reprimidos e forçados a viver Lima existência secreta, até que sua sede central passou a ser os vales alpinos ao sudoeste de Turim. Na Reforma, muitos dos valdenses aceitaram seus princípios e tornaram-se inreiramente protestantes. Sua história é de heróica resistência à perseguição, e eles sáo a única seita medieval que sobreviveu, embora com modificaçáo considerável em seus ideais e métodos originais. Na abertura do stculo treze, a situaçáo da igreja romana no sul da França, norte da Itália e norce da Espanha era séria, mesmo precária. 0 s esforços para a conversáo dos cátaros e valdenses haviam fracassado amplamente. Logo no início, em 1181, o papa Alexandre I1 havia ordenado uma cruzada contra o visconde de Béziers, que apoiava os cátaros, mas teve pouco êxito. Sob Inocêncio 111, caiu a tempescade. Após ter tentado sem sucesso missóes de pregaçáo por membros da ordem cisterciense, e furioso com o assassinato, em 1208, de seu representante, Pedro de Castelnau, Inocêncio proclainou uma cruzada contra os hereges do sul da França em 1209, oferecendo a mesma indulgência plena que poderia ser conseguida por uma cruzada à Terra Santa. Essa estratégia agradou ao monarca francês, Filipe Augusto (1 180-
1223), que achava serem os nobres sulistas vassaios muito independentes, embora ele estivesse relutante para atacá-los - uma clara ruptura dos costumes feudais - a menos que a heresia deles fosse definitivamente comprovada. O verdadeiro trabalho da assim chamada Cruzada Albigense foi execurada pelos nobres do norte da Franqa,
vtnlooo
u
A [DADE MÉOIA POSTERIOR
359
que receberam muito bem essa oportunidade sem precedentes para trinchar novos feudos no sul. Eles foram liderados por Simão de Montfort, um nobre menor de iIede-France e, por casamento, conde titular de teicester, na Inglaterra. Os interesses conjugados d o papa, do rei e da nobreza nortista conduziu a vinte anos de guerra destruidora (1209-1229), na qual o poder da nobreza sulista foi despeda~adoe as cidades e províncias devastadas. Os defensores dos cátaros foram seduzidos à impotência ou forçados a se unirem para exterminá-los, embora a resistência náo cessasse até após 1243, quando foi capturado o bastiáo cátaro em Monrségur. Na Aita Idade Média a quesráo da puniçáo dos hereges havia sido indererrninada, pois a heresia ainda era esporádica. Tinha havido niuitas mortes, normalmente na fogueira, pelas mãos de governanres, eclesiásticos ou turbas, mas os eclesiásticos de posicáo superior haviam-se oposto a elas. A investigacão (inquisitzo) da heresia ainda não estava sistematizada. Essa tarefa tinha por muito tempo sido deixada aos bispos locais e cortes eclesiásticas, mas o controle episcopal era ineficiente quando os hereges eram numerosos. Inocêncio I11 centralizou r d inquisiçáo no papado, mediante a nomeação de representantes legais para caçarem os hereges e apresentá-10s diante dos tribunais da igreja. Ficou para o papa Gregbrio IX (1227-1241) estabelecer uma instituição permanente regular para a repressão à heresia
- a Inquisicáo
papal ou
Santo Ofício. Em 1233, no lugar de representanres especiais, ele co~ifioua descoberta de heresia a inquisidores escolhidos das ordens mendicantes, principalmente os dominicanos - um grupo formado com objetivos muito diferentes. Estes inquisidores estabeleceram seus próprios tribunais especiais e estavam praticamente isentos da autoridade eclesiástica local.
A Inquisiçáo papal-dominicana rapidamente se desenvolveu em um órgão dos mais formidáveis e terríveis. Seus procedimentos eram secrçtos, e os nomes dos acusadores não eram fornecidos aos acusados, os quais, mediance uma bula de Inocêncio IV de 1252, eram passíveis de tortura. Aqueles que não conseguiam explicar satisfatoriamente as acusaçóes contra si - uma proeza das mais difíceis - e que confessavam sua culpa, estavam sujeitos à penitência. Aqueles que se recusavam confessar, seja voluntariamente ou sob tortura, eram passados para as autoridades seculares para puniqáo, com um pedido de clemência mas com o entendimento tácito de que eles seriam queimados na estaca. A lógica para essa puniçáo cruel era familiar e, no geral, aceitável para as pessoas medievais: a heresia, uma traiçáo contra Deus, é muito mais infame do que traiçáo contra o rei, e punível com a morte. A heresia, ademais, é uma
doenqa contagiosa dentro do corpus cl~r-istianz~m, destruindo muitas almas, e assim exigindo as contramedidas mais excrernas. A Inquisiqáo, entretanto, envolvia mais do que considera~óesespirituais. O confisco da propriedade de um herege confesso era um de seus traços mais detestáveis. Umavez que os despojos eram divididos entre as auroridades laicas e eclesiásticas, essa prática sem díivida manteve as chamas da pcrseguiçáo ardendo onde de outra forma ter-se-iam apagado. Em todo caso, por
ri@; L .
meio da Inquisiçáo, e mediance outros meios menos questionáveis que serão descri-
CK
tos em breve, em meados do século catorze os cácaros estavam totalmente erradicados
jc.2: --
e os valdenses amplamente reprimidos. Os historiadores continuam a debater se a igreja medieval efetivamente enfrentou os profundos anseios religiosos que vertiam nos movimentos asctricos da Idade Média, canto ortodoxos como heterodoxos. Fogueira e espada, Inquisiqáo e Cruzada, rararnence trataram de tais necessiiiades. Todavia a igreja não se contentou com a coer-
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çáo, apenas; ela também buscou o caminho da persuasão mediante a prcgaçáo e
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exemplo - o caminho dos frades ( ' a t r e s , irmãos).
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Capítulo 4
Os Dorninicanos, os Franciscanos e outras Orderis Mendicantes rc;
7-
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Os cátaros e os vaidenses afetaram profundamente a igreja medieval. A ordem dos dominicanos surgiu de uma tentativa de contê-los com pregadores de igual dev o ~ á o ascetismo , e zelo, e com maior preparo. Na mesma atmosfera de "pobreza apostólica" e cumprimen[o lireral dos mandamentos de Crisco, na qual floresceram os valdenses, nasceram os franciscanos. Nestas duas ordens o monasticisino medieval teve sua expressáo mais nobre. Em Francisco de Assis a piedade medieval encontrou seu maior e mais inspirador represet-itailte. Domingos de Gusrnáo nasceu em Caraloga, em Castela, entre 1171 e 1173. Em
1 194,após anos de estudo em Palência, ele tornou-se cônego agostiniano na catedral
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A IDADE MEU11 POSIERIOR
361
comunicária de Osma, sua diocese naral, situada cerca de cento e cinqüenta quilômetros ao nordeste de Madrid. Ali ele desfrutou da amizade de Diego de Acevedo, o bispo de Osma, com quem viajou bastanre ao serviço do rei de Castela. Em 1206, retornando de uma viagem a Roma, os dois chegaram ao Languedoc, onde os cátaros e valdenses esravam entáo no apogeu de seu poder. Lá eles encontraram os missionários cistercienses tratados com desdém. Em uma reuniáo com os líderes missionários em Montpellier, Diego argumentou que eles precisavam de uma reforma total em seus métodos. Somente por meio de missionários táo abnegados, tão estudiosos da "pohreza apostólica" e táo ansiosos para pregar como eram os pregadores valdenses e os perfeitos dos cátaros é que esses hereges poderiam ser trazidos de volta para o aprisco. Os pregadores cistercienses se empenharam em pôr em prárica os conselhos do bispo e desfrutaram de certo êxito, embora o progresso fosse muito 1ent.o. Um convento de freiras, principalmente para mulheres cátaras convertidas, foi estabelecido em 1207 em Prouille, não disrante de Toulouse. Até esse ponto, Diego parece ter sido o líder, mas ele teve que rerornar para sua diocese, onde faleceu no final de 1207. Daí em diante, Domingos conduziu a obra.
A tormenta da guerra anci-cátara tornou a missão de Domingos árdua e desencorajadora. Gradualmence, porém, auxiliado por um ex-cisterciense, Fulk, bispo de Toulouse, e com o patrocínio do capitáo cruzado Simáo de Montfort, ele reuniu ao seu redor home~iscom a mesma idéia. Em 1213 juntou-se a ele Pedro Seila, um cidadáo rico de Toulouse, que deu a Domingos e seus companheiros três casas para eles utilizarem, enquanto que o bispo Fulk os estabeleceu como pregadores na cidade. Naquele mesmo ano, Domingos visirou o Quarro Concílio de Latráo, em Roma, buscando aprovação papal para uma ordem de pregadores. Ela foi recusada, embora seus esforcos tenham sido aplaudidos. O concílio h a 'ia ~ . recentemente proibido a criaçáo de novas ordens religiosas. Domingos foi orientado a adotar uma regra existente, e ele escolheu a que já observava, a de Sanro Agostinho, que era
suficientemente flexivel para acomodar seus propósiros. O reconhecimento equivalente ao estabelecimento prático da ordem foi obtido do papa Honório I11 (1216-1227), em 1216. Em janeiro de 1217 Honório confirmou oficialmente a Ordem dos Frades Pregadores (fitresp~dediciltores,ou irmãos pregadores, um nome sugerido pelo próprio papa).
Tão cedo quanto 1217, quando a nova associaçáo contava com apenas uns paucos, Domingos, sem consultar seus colegas ou as autoridades eclesiásticas, decidiu
362
HISTÓRIA DA IGREJA
CRISTA
dispersar amplamente seus companheiros. Sete foram enviados para Paris e quatro
menr.:
para a Espanha, para estudar, pregar e fundar novos mosteiros; quatro permanece-
conr :r
ram em Toulouse, e o próprio Domingos foi para Roma. Esta decisáo abrupta
ou la:.
equivaleu a uma revolução: uma ordem de cônegos agosrinianos, com permissão
Bolo:.:
especial para pregar principalmence aos hereges do sul da França, tornou-se uma
para
ordem de irmáos pregadores dedicados à missão mundial de evange1i~a~á.o e a cura
sobrs r.
de almas. As grandes cidades universitíirias de Paris e Bolonha logo tornaram-se os
à adr.:
centros da ordem, substituindo Toulouse. Domingos queria que seus frades fossem
men I;
teólogos instruídos; eles adotaram a mendicância e a pobreza corporativa para o bem
pror:.
da pregaçáo efeciva a uma sociedade que agora incluía um número sempre crescente
reuni:,
de pobres urbanos.
com c:
Os primeiros cabidos gerais da ordem foram realizados em Bolonha, em 1220 e
-
r:
Essa
122 1, onde foram desenvolvidas as constiruiqóes dos "dominicanos", como eles eram
dianr;.
popularmente chamados. Como líder da ordem havia um mestre geral, escolhido
onali.
vitaliciamente pelo cabido geral e sujeito 2 sua correçáo e, se necessário, remoção. O
sas, cr:
campo era dividido em províncias, cada uma sob a responsabilidade de um superior
interi,: :
provincial, eleito pelo cabido provincial. Cada convento elegia seu próprio superior.
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Todo convento enviava seu superior e um irmão, escolhido por eleiçáo, para o cabi-
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do provincial anual. O cabido geral também se reunia anualmente, alternando entre Bolonha e Paris. Ele era composto, por dois anos consecutivos, por delegados eleitos
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(conhecidos como "definidotes"), um de cada província, enquanto que em cada ter-
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ceiro ano era composto por todos os superiores ~rovinciais.Muicas provisões nas
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constituiçóes poderiam ser modificadas, ou novas serem adicionadas, apenas com a
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concordância de três cabidos gerais consecutivos. O sistema assim combinava enge-
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nhosamente autoridade cenrrd e governo representativo. Este foi o sistema constitu-
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cional mais altamente desenvolvido conhecido no século treze.
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Domingos morreu em Bolonha, em 1221 e foi sucedido por Jordáo da Saxônia
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seu r.'
(1 222- 1237), um notável organizador e primeiro biógrafo de Domingos. A ordem
quaicir
contava entáo com cerca de vinte e cinco estabelecimentos, divididos entre as oito
se dirig
províncias da Espanha, França, Provenqa, Lombardia, Roma com a Itália rneridional, Alemanha, Hungria e Inglaterra, às quais foram adicionadas, por volta de 1230,
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mais quatro províncias: Polônia, Dinamarca, Grécia e a Terra Santa. A ordem cres-
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ceu com espantosa rapidez, e por voita do início do século catorze contava com cerca
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de seiscentos estabelecimentos. Deste número, cerca de um quarto eram estabeleci-
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A IDADE MEDIA POSTERIOR
-363
mentos para mulheres. A primeira fundaçáo "dominicana", em 1207, tinha sido o convento de freiras em Prouille, e antes de sua morte Domingos havia ou fundado ou lançado os planos para fundação de mais [rês conventos de freiras, em Madrid, Bolonha e Roma. Contudo ele náo imaginava a prolifera~áode estabelecimentos para mulheres, e parece que ao final da vida estava rendo segundos pensamentos sobre tais estabelecimentos. Já em 1223, havia forte oposicáo dentro da ordem, quanto
à admissáo de mais algum convenco de freiras, principalmente baseando-se no argumento de que o cuidado espiritual desses estabelecimentos por frades residentes comprometia a vocacáo dos irmáos como pregadores e confessores itinerantes. Em 1228, reunindo-se em cabido geral especial em Paris, a ordem proibiu a admissáo de mais conventos de freiras. ( 0 s cistercienses adotaram Iegislacáo similar no mesmo ano). Essa proibi~áo(como também no caso dos cistercienscs) foi inútil. De 1245 em diante, bulas papais permitiram a incorporacão de muitos convenros de freiras adicionais, especialmente na Alemanha. As freiras dominicanas eram estritamente reclusas, sendo proibidas de pregar ou pedir esmolas. Em vez disto, elas cultivavam a vida interior de "humildade pobre"; a pobreza tornou-se uma virtude interior, uma circunstância que ajuda a explicar o florescimento de modos de piedade místicos nos conventos de freiras dominicanas na Alemanha, no final da Idade Média (ver V:!)). Sempre zelosa no preparo, a Ordem dos Frades Pregadores procurou trabalhar especialmente nas cidades universitárias, onde muitas pessoas foram recrutadas e logo ficou amplamente representada nos corpos docentes das universidades. O s teólogos Alberto Magno e Tom& de Aquino; os místicos "Mestre" Eckhart e Joáo Tauler; o reformador Girolamo Savonarola, sáo apenas alguns dos grandes nomes que adornam o catálogo dos dominicanos. Seu preparo os levou ao seu emprego como inquisidores - um papel que não fazia parte d o ideal de Domingos. As lendas que o apresentam como inquisidor náo têm fundamento. Ele coiiquisraria almas, como fez seu modelo, Sáo Paulo, pela pregaçáo. Para atingir este resultado, ele se submeteria a qualquer sacrifício ou humilhação, que recomendasse seus pregadores àqueles a quem se dirigiam. Contudo, iS. evidente que embora os objetivos e a conduta pessoal de Domingos fossem humildes e auto-sacrificiais, o elevado intelectualismo de sua ordem tendeu a dar-lhe um sabor relativamente aristocrático. Ela representava, todavia, uma ênfase no trabalho evangélico prático, tai como havia aparecido nos valdenses. Seu ideal não era uma vida de contempla~áofora do mundo mas de serviço às pessoas em suas necessidades. Em 1234, Domingos foi canonizado por seu antigo amigo
364
HISTOIII DA IGREJA CRIXIÃ
e patrono, o ex-cardeal Hugolino de Ostia, agora papa Gregório IX (1227-1241). Por grande que tenha sido a honra tributada a Domingos e aos dominicanos, ela foi excedida pela homenagem popular dada aos franciscanos e especialmente ao seu fiindador, Francisco de Assis. Domingos, pregador austero, de mocidade imaculada, planejando na meia-idade qual a melhor maneira para alcançar as pessoas, e adotan-
do a pobreza como um meio para aquele fim, não foi uma figura tao atraente como a do jovem alegre que sacrificou tudo por Cristo e seus semelhantes e que adotou a pobreza não como uma maneira de tornar sua mensagem aceitável mas como o único meio de ser como seu Mestre. Em Francisco de Assis será visto náo apenas o maior de todos os santos medievais mas alguém que, através de sua absoluta sinceridade de desejo de imicar Cristo em todas as coisas humanamente possíveis, pertence a todas as épocas e à igreja universal. João Bernadone nasceu em Assis, na Itália central, em 118 1 ou 1182, filho de um rico negociante de produtos têxteis, Pedro Bernadone, e sua esposa, Pica. O pai francófilo do menino deu-lhe o apelido de Francesco (Francisco, "francês"), e este logo suplantou o nome de batismo. Quando jovem, Francisco gostava de luxúria, era exuavagante em suas roupas e excessivamente generoso. A seu pai, homem sério, pouco agradava ver o filho chefiando as diabruras e rebeldias de seus companheiros. Francisco tinha sonhos de se tornar cavaleiro e alcancar glória militar. Um ano de experiência como prisioneiro de guerra na Perúgia (1 202-1203) provocou uma mudanqa em seu espírito, como também o fez, em seguida, um período de enfermidade.
Ele passou a achar os antigos divertimentos insípidos, e ficou acabrunhado e cheio de questionamentos. Então, em 1204-1205, ele uniu-se a uma expediçáo militar direcionada à Apúlia, no calcanhar da Irália, mas subitamente, em Spoleto, ele retirou-se e retornou para Assis. Sua conversá0 à vida religiosa foi gradual. "Quando eu estava em pecado, parecia-me coisa horrível olhar os leprosos; o Senhor, porém, me levou para o meio deles, e deles me compadeci. Quando os deixei, aquilo que antes me parecera horrível fora transformado em doçura de corpo e alma."'
Foi esta a primeira nora de compaixáo cristã que a natureza renovada de Francisco emitiu. Um dia, quando estava orando nas ruínas da igreja de São Damiáo, bem
Tertam~nrode Süo Francisco, em Rosalind Brooke, ed., The Coming ofzhe Fria78 (Londres e Nova Iorque, 1975), pp. 1 17-1 19. Composto em abril de 1226, seis meses antes de sua morte, esse documento foi o ponto dc para as conrrovirsias posteriores sobre o verdadeiro ideal frailciscaiio.
PERIOOO Y
A IDADE MEDIA POSTERIOR
365
ao lado das muralhas de Assis, ele julgou que o crucifixo pintado sobre o altar falava para ele: "Vá, Francisco, e restaure minha casa, que como você vê, está em ruínas." Tomando as palavras literalmente, ele vendeu roupas do armazém de seu pai para comprar pedras e reconstruir a igreja. Seu pai ficou furioso e levou-o diante dos
magistrados da cidade e depois dianre do bispo, procurando obrigar seu filho a restaurar os bens e o dinheiro davenda deles; mas Fraricisco, entregando o dinheiro que tinha, bem como suas roupas, aos pés do bispo, declarou que doravante ele não iinha
pai senão o Pai nos céus. Este evento ocorreu provavelmente em 1206 ou 1207. (A cronologia da vida inicial de Francisco é obscura.) Durante os dois anos seguintes Francisco vagou por Assis e seus arredores, auxiliando os desafortunados e rescaurando igrejas, das quais sua predileta era a de Porciúncula, na planície arborizada fora da cidade. Ali, em 24 de fevereiro de 1208, as palavras de Cristo e dos apóstolo^,^ lidas no culto, soaram-lhe, como haviam soado a Valdès, como urn clarim chamando iação. Ele iria pregar arrependimento e o reino de Deus, sem dinheiro, nas roupas mais humildes, alimentando-se do que lhe dessem os fiéis. Ele imitaria Cristo e obedeceria seus mandamentos, em pobreza
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absoluta, no amor semelhante ao de Cristo, e em humilde deferência aos sacerdotes e ao papa como representantes de Cristo. "O hltíssimo mesnio me revelou que eu deveria viver de acordo com o padráo do Santo Evai~gelho."~ Associados com idéias semelhantes agruparam-se ao seu redor. Para eles, em 1209, ele rascunhou uma regra simples, composta de pequenas adiçóes a se1c)óes dos evangelhos, e com ela, acompanhado por onze companheiros, foi em busca da aprova~ãodo papa Inocência 111,
em 1210. Era praticamente a mesma solicitação que Valdès apresentara em vão a Alexandre 111, em 1179. Embora impressionado com Francisco, o papa náo aceitou imediatamente sua regra. Movido por um sonho, entretanto, no qual eIe via um homem pobre, a quem depois reconheceu como sendo Francisco, escorando a grande basílica de São João de Latráo, em Roma, quando ela estava para ir ao cháo, Inocente deu sua aprovaçáo verbal. Ele licenciou os irmáos para pregarem e arranjou para que todos os doze recebessem eonsura clerical antes de partirem de Roma. O nome da ordem, que Francisco pode ter escrito na regra original de 1209, era o de Frades Menores ( f i t e s
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Mateus 10:7-14.
' Brooke, The C o m i q ofti?e F'inrs, y. 117.
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minores - isto é, os irmáos menores, ou mais humildes). Mais tarde, em 1215, Inocêncio formalmente anunciou ao Quarto Concílio Laterano quc os Frades Menores deveriam ser considerados uma das ordens existentes da igreja e portanto náo sujeita à
proibicáo pelo concilio de novas ordens religiosas.
A associação de Francisco era uma união voluntária de imitadores de Cristo, vinculados pelo amor e praticando extrema pobreza, simplicidade e humildade, uma vez que apenas assim, cria ele, o mundo poderia ser negado e Cristo seguido verdadeiramenre. Fazendo de Porciúncula sua base, eles saíam, dois cm dois, pregando arrependimento, canrando bastante, auxiliando os camponeses em seu trabalho, cuidando dos leprosos e excluídos. Logo, foram traçados planos de alcance missionário mais amplo, agora possíveis devido ao rápido crescimento da ordem. O próprio Francisco queria ir à Síria converter os muçulmanos e, se fosse necessário, sofrer o martírio. Em 1212, ele embarcou em um navia em Ancona que partiria para o Levante, mas ventos contrários frustraram a jornada e ele retornou à ItáIia. Em 1213-
1214, ele esteve na Espa~iha,mas uma enfermidade impediu-o de passar para o Marrocos; em vez disto, ele implantou pequenas comunidades de frades em diversas cidades espanholas. Finalmente, em 1219, depois que o cabido geral da ordem realizado em Porciúncufa decidiu enviar expedições globais, Francisco teve êxito em sua tentativa de chegar h Siria pelo mar e dali para o Egito. Embora a Quinta Cruzada
(12 18-1221) estivesse enráo em progresso, ele de alguma forma conseguiu alcançar a corte do sultáo al-Karnii e manter longas conversaçóes com ele, implorando-lhe em vão para que ele se convertesse e se submetesse ao batismo. Diferentemente de Domingos, Francisco nada tinha de organizador. Mas a associação aumentou muito, c o quc eram regras adequadas para um punhado de irmãos com as mesmas idéias logo ficaram insuficientes para um grupo contando com centenas e depois milhares. As mudanças viriam de qualquer forma. Elas foram apressadas, porém, pelo talento organizacional do cardeal Hugolino, sobrinho de Inocêncio
111 e ele próprio mais tarde papa Gregório IX (1227-1241). Hugoljno ficou amigo de Francisco, como ficara antes de Domingos, e em 1217 Francisco conseguiu sua nomeação como "protetor" da sociedade. Sob a influência de HugoIino, e do irmão Elias de Cortona, a quem Francisco nomeara seu vigário em 122 1, a transformaçáo da associaçáo em uma ordem monástica completa avançou rapidamente. Onze províncias já haviam sido escabelecidas no cabido geral, em 1217, cada uma sob a responsabilidade de um "ministro". A liderança de Francisco diminuíra desde a época
PEA~OIO V
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3 67
de sua ausência na Síria e Egito, e de 122 1 em diante ele retirou-se mais e mais do cenário. Uma nova regra (a assim chamada Regula PIima) foi preparada em 1221, e outra em 1223 (conhecida como a Regula Bullntd porque foi confirmada por uma bula de Honório I11 naquele mesmo ano). O espírito da regra original (Regula Primitiva), de 1209, ainda animou esta última regra, que o próprio Francisco rascunhara, mas havia modificaqóes consideráveis. Francisco foi forçado a abandonar a exigência de que um frade, em suas viagens, devesse "não levar nada consigo no caminho", e a exigência básica de que os postulances devessem renunciar a todas as posses, foi sujeita à restricáo que, se isso se mostrasse impossível, seria suficiente uma "boa intenção". Provavelmente, muicas dessas mudanças eram inevitáveis. Elas foram, inquestionavelmente, dolorosas a Francisco, pois ele temia qualquer forma de segurança e privilégio institucional como uma ameaça à pobreza absoluta. Ele afastou-se mais e mais do mundo, e dedicou-se intensamente a oraçáo, louvor e rneditaçáo. Em
r 4 de setembro de 1224, ao término de uma longa vigília - de oraçáo no eremitério da
..
ordem no monte La Verna, Francisco recebeu as marcas - feridas nas mãos, pés e lado, como aquelas do Cristo crucificado cuja paixáo ele ansrava compartilhar. Seu amor pela natureza, sempre uma fonte de paz, nunca fora manifesto mais do que
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nesses últimos anos e está expresso em seu LaIrdes C~edtura~um, composto em 1225. Este hino de louvor, popularmente conhecido como o Cdntico do Sol, era uma refutaçáo vívida da rejeição cátara da criação material. Por fim, com o corpo debilitado,
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totalmente cego e sofrendo enormemente com suas feridas, Francisco morreu em uma pequena cabana perto de Porc~úncula,em 3 de outubro de 1226. Dois anos mais tarde o papa Gregório IX - seu velho amigo Hugolino - proclamou-o santo da igreja. Poucas pessoas na história do cristianismo mereceram mais o título.
A organização dos franciscanos era semelhante a dos dominicanos, embora nos
primeiros anos ela desse mais espaço para tendências autocráticas do que o sistema relativamente "democrático" de Domingos. Havia um ministro geral como líder, a quem os irmãos tinham de obedecer. Ele era eleito pelo cabido geral e poderia ser substituído por este cabido se sua lideran~ase mostrasse "insuficiente". A regra de
1223 requeria a realizaçáo de um cabido geral a cada três anos, ou "a algum outro termo, maior ou menor", conforme a convocacáo do minis~rogeral. Somente após
1239 o cabido geral triend passou a ser obrigatório. Sobre cada província havia um ministro provincial, originalmente nomeado pelo ministro geral mas, após 1239,
1
368
HISTbRII DA IGREJA CRISTI
eleito pelo cabido provincial. Diferente dos dominicanos, os franciscanos no início náo possuíam mosteiros ou conventos regulares, mas viviam em eremitérios, nas fendas das rochas, cabanas de madeiras e igrejas abandonadas. Uma vez que os conventos foram estabelecidos, as províncias foram'divididas em "custódias", cada uma sob a responsabilidade de um "custos" ou oficial administrativo, Cada convento, por sua vez, estava sob a dirc5áo de um "guardiáo". Originalmente, os custódios e guardiáes eram nomeados pelo ministro !geral; depois de 1239, eles eram nomeados pelo ministro provincial, dependendo de uma consulta ao cabido provincial. Gradualmente, porranto, o sistema franciscano se aproximou mais e mais do doininicano, embora investisse maior autoridade Iegislativa nos ministros, e não fosse totalmente "represenrarivo" como aquele. O s franciscanos, como os dominicanos, também tiveram quase desde o início seu ramo feminino - a assim chamada Segunda Ordem. A dos franciscanos, eventualmente conhecida como as Senhoras Pobres ou Clarissas Pobres, foi instituída em
1212 pelo próprio Francisco, por meio de sua amiga e discípula, Santa Clara de Assis (1 194-1253). Francisco es~abeleceuClara e suas associadas na igreja de Sáo Damiáo, em Assis, mas este foi o único convento de freiras que poder-ilos dizer que Francisco mesmo "fundou", e por toda a suavida ele se opôs fortemente à admissão à ordem de ourros conventos de freiras e à fuildacáo e cuidado de tais estabelecimentos por seus frades. Logo, entretanto, outros conventos de freiras, especialmente na Itália central, vincularam-se ao convenco de Sáo Dainiáo e surgiu uma "ordem de Sáo Damiáo". Em 12 19 o cardeal Hugolino forneceu uma regra às Senhoras Pobres que era praticamente aquela das freiras beneditinas, com pouca coisa que era especificamente franciscana, embora as freiras em São Damiáo continuassem a observar afirmula:
vitae, ou modo de vida, que incorporava o ideal franciscano original. A história ulterior da ordem franciscana segue paralelamente a dos dominicanos: a oposição no interior da ordem à incorporaçáo de conventos de freiras adicionais foi inútil diante das acóes papais que permitiam tal incorporagáo e, aliando-se aos anseios expressos das mulheres, providenciavam para que frades servissem como capeláes às freiras. As mulheres, como já em Assis em 1212, eram esrriramente reclusas e assim não podiam se engajar cm um ministtrio irineranre aos pobres. Elas tambtm, náo menos que suas contrapartes dominicanas, perseguiam aquela "religião interior" - aquela interiorizaçáo
da pobreza e renúncia ao mundo - que era um campo fértil do misticismo. O crescimento de roda a ordem franciscana foi extremamente rápido. No início
P E R I ~ R Uv
I IDAIE MEDIA POSTERIOR
369
do stculo catorze havia cerca de mil e quarrocelitos esrabelecimentos (um quinto do quais era conventos de freiras, localizados principalmente nas cerras mediterrâneas). Embora Francisco mesmo não fosse amigo da teologia erudi~a,os franciscanos rapidamente se estabeleceram em cidades universitárias e a ordem passou a incluir muitos eruditos noráveis, entre eles Alexandre de Hales, Rogério Bacon, Sáo Boaventura, Joáo Duns Scotus e Guilherme de Occam. Mais do que os dominicanos, todavia, os franciscanos mantiveram a ordem dos pobres. Os dominicanos e franciscanos logo exerceram uma influência
quase
ilimicada. Diferentemente das ordens anteriores, eles trabalhavam primeiro nas cidades e vilas, principalmente porque era somente nelas que a mendicância era pratica-
da. Não pode haver dúvida alguma de que o trabalho deles resulcou em um g a n d e fortalecimento da religiáo entre o laicato. Ao mesmo tempo, eles diminuíram a influência dos bispos e clero ordinário, uma vez que, devido às isenqóes papais do controle diocesano, eles eram privilegiados para pregar e absolver em qualquer lugar. Uma grande influência no laicato foi o dese~ivolvimentodos terciários ou "Terceira Ordem", um fenômeno que no início surgiu em conexão com os franciscanos. A Terceira Ordem, ou Ordem de Penitência, como ela foi originariamenre conhecida, permitia que homens e mulheres, ainda engajados nas ocupaçóes ordinárias, vivessem uma vida semi-monástica de jejum, oraqáo, adoração e beneficência; eles também deveriam se abster de juramentos e de porrar armas (uma fonte constante de atrito com as autoridades civis). Entre os terciários franciscanos mais conhecidos estão Sanca Isabel da Turíngia (1207-1231) e Raimundo Lulo (1232?-13157);Santa Catarina de Siena (1347-1380) também foi uma famosa terciária dominicana. Por fim, todas as ordens mendicantes desenvolveram terciários. Conforme o tempo passava, o sisrema rendia a se tornar um monasticismo quase completo, do qual os casados eram excluídos. Isso deve ser considerado como uma tentativa bem sucedida de enfrentar os ideais religiosos de uma época que era movida pela busca da uitu
upostolici*-e que ainda considerava o regime inonástico como a vida de perfeiçáo cristá. No século treze foram criadas inúmeras outras ordens mendicantes, além dos dominicanos e franciscanos. Muiras delas tiveram vida curta, em parte porque o A
A
concílio de Lyon (1274) procurou desencorajá-Ias. Duas f ~ n d a ~ ó eentretanto, s, provaram possuir imporcâricia duradoura. Urna foi a Ordem dos Frades da Bem Aventurada Virgem Maria d o Monte Carmelo, ou os carmelitas. Por volta de 1154, um
370
HISTBRIA OA IGREJA CRISTA
cruzado piedoso, Bertoldo da Calábria (m. 1195), assumiu a vida eremita no monre Carmelo, na Palestina, e em 1185 ele já havia estabelecido ali uma comunidade de eremitas. Em 1209 ou 1210, o patriarca latino de Jerusalém forneceu aos carmelitas uma regra de ascetismo estrito, prescrevendo abstinência perpétua de carne, jejuns regulares e longos períodos de silêncio. Esta regra foi confirmada pelo papa Honório 111, em 1226. Em 1229, uma bula de Gregório LX adicionou a
de pobreza
corporativa e a vida mendicante. Por volta de 1238, após o fracasso dos cruzados, os carrnelitas migraram da Palestina para Chipre, Sicília, sul da França e Inglaterra.
Ihcr
Uma vez na Europa, eles deixaram de ser eremitas, começaram a viver em conventos
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em áreas urbanas e assumiram o cuidado pastoral das almas. Estas mudanças, que
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precipitaram uma crise na ordem, foram regularizadas sob a liderança de um carmelita
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inglês, Simáo Stock (1 165?-1265),que em 1247, já bem idoso, tornou-se o ministro
r1c.i
gerd da ordem. Naquele mesmo ano, o papa Inocêncio IV aprovou a transformaçáo
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da ordem à semelhança das linhas dos dominicanos. Os frades carmelitas procura-
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ram unir a vida contemplativa à pregação, ao ensino e ao serviço pastoral, e desde o
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começo ficaram caracterizados pela sua ardence devogáo à Virgem Maria. Uma or-
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dem de freiras carrnelitas, estritamente reclusas e devotadas aos ideais de conternplaçáo, foi instituída oficialmente pelo papa Nicolau V, em 1452.
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n-,2:
A última das quatro principais ordens mendicantes - a Ordem dos Frades Eremi-
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tas de Santo Agostinho, também conhecidos como frades agostinhos - foi uma com-
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binaçáo de diversos grupos de eremitas italianos dos séculos doze e treze. Em 1243, aparentemenre agindo a pedido deles, Inocêncio TV prescreveu a "regra" de Santo Agostinho para os eremitas daToscana e deu ao cardeal Ricardo Anibaldi a responsabilidade da tarefa de unificaçáo, que foi alcancada em 1244 (a "pequena uniáo"). Sob a orientaçáo de Alexandre IV, em 1255, outras comunidades eremitas na Itália foram submetidas à regra agosriniana e, em 1256, todos esres grupos estavam consolidados em uma Ordem de Eremitas de Santo Agostinho (a "grande uniáo"), com uma constituicáo baseada naquela dos dominicanos. Eles deixaram de ser eremitas (não obstante seu nome, que aponra apenas para suas origens históricas) e em vez disso se tornaram frades mendicantes. Como as outras ordens mendicantes, os frades agostinianos receberam isenção da jurisdição episcopal, e passaram a ser uma ordem pregadora devotada à vida ativa ou "apostólica" de serviço ao mundo. Como os dominicanos em particular, eles se dedicaram ao estudo teológico, sobretudo ao escudo da Bíblia e dos escritos de Santo Agostinho, e logo se estabeleceram nas cidades, principalmente
P~RIOIO Y
A IDAOE MEDIA POSTERIOR
371
as universitárias. Gregório de Rimini (m. 1358), que tanto estudou quanto ensinou em Paris e foi eleito ministro geral da ordem em 1357, foi considerado o melhor erudito agostiniano da Idade Média. As obras de Gregório foram aitamente valorizadas e louvadas por um membro ulrerior dessa ordem, Martinho Lurero, que se tornou um eremita agostiniano em 1505.
A piedade da época encontrou muitas outras expressões que náo as ordens mendicantes. Uma manifestacáo importante foi a das Begu~nas:um movimento de mulheres, de proporcões consideráveis que emergiu, por volta de 1210, nas cidades do norte da França, na Holanda e na Renânia alemã. As beguinas eram mulheres leigas piedosas que viviam juntas em pequenos conventos ou sozinhas com suas famílias, sustentando-se com trabalho manual e praticando pobreza, castidade e obras de caridade. Elas náo pertenciam a nenhuma ordem monástica, náo observavam nenhuma regra fixa e náo faziam nenhum voto irrevogável. Devido ao fato de elas nunca terem tido nem proculado autorização eclesiástica oficial, frequentemenre elas eram suspeitas de heresia ou tendênuas heterodoxas. O nome "beguina" fol provavelmen-
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te derivado de "albigense", o nome utilizado para o herege cátaro do sul da França. Algumas das beguinas parecem ter s~icumbidoaos ensinos dos valdenses e cátaros, mas a grande maioria era ortodoxa, dedicadas à vida sacramental da igreja, e receptivas à supervisáo eclesiástica. Suas casas normalmente estavam encroscadas ao redor dos conventos dos frades, nos quais elas encontravam seu principal amparo.
O movimento era espontâneo e local, e ilustra bem a poderosa atração da vida apostólica sobre as mulheres e os homens medievais. Nas vilas e cidades, ademais, parece que o número de mulheres era agora consideravelmente maior que o de homens. As beguinas forneceram assim um escape para as energias físicas e espirituais de grande número de mulheres devotas, especialmente aquelas que náo poderiam esperar encontrar maridos e que, em rodo caso, eram numerosas dernars para serem atendidas pelas ordens religiosas existentes. Também havia uma associacão de homens paralela, mas menos numerosa, conhecida como os "begardos", cujo sustento em grande parte era proveniente de esmolas. O concílio de Lyon, em 1274, incluiu as beguinas e os begardos entre as associacóes religiosas náo autorizadas e repetiu a proibiçáo do Quarto Concílio de Lacráo (1215) contra as novas ordens. O concílio de Viena, em 1312, rejeitou explicitamente a maneira de vida deles e até mesmo excluiu-os da igreja. Estas medidas duras podem ser explicadas, em parte, pela implicação deles na assim chamada heresia Espírito Livre (ver V:9). Em 1400, a maioria
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das beguinas e dos begardos havia sido absorvida nas ordens estabelecidas. Já havia aparecido dissensão na ordem franciscana, enquanto Francisco ainda vivia, entre aqueles que defendiam o ideai original de simplicidade, auto-sacrificio e pobreza pessoal e corporativa completa, e aqueles que valorizavam um grau relativo de estabilidade, segurança e influência, semelhante àquele desfrutado pelas ordens [radicionais. O partido mais rigoroso, posteriormente conhecido como "observantes", buscou a lideranca do irmão Leão (m. 1271), que havia sido confessor de Francisco e seu amigo mais ínrimo. O partido mais flexível, posteriormente conhecido como "conventuais", apoiou Elias de Cortona (m. 1253), vicário de Francisco depois de 1221 e ministro geral da ordem de 1232 a 1239. A política papal favoreceu os conventuais, uma vez que as necessidades da igreja seriam melhor atendidas com o crescimento e a conso1idac;áo da ordem segundo as iinhas do monasticismo anrerior. Em 1230, Gregórjo IX declarou que o Testamento de Francisco de 1226 era um documento puramente privado e portanto náo tinha efeito vinculador sobre a ordem em sua totalidade. Ele também permitiu ao frades o "uso" (usur rerum) simples de casas, móveis e livros, como também doaçóes em dinheiro, conquanto entregassem a "possessáo" (dominium) ou propriedade legal destas coisas a "amigos espirituais" da ordem, tais como seu cardeal-~rotetore o papa. Em 1245, o papa Inocêncio
IV (1243-1254) recebeu a propriedade de bens legados aos frades na própria Sanca S t , mas permitiu que dinheiro e propriedade fossem usados náo apenas para as "necessidades" deles mas também para a sua "conveniência", abrindo assim a porta para futuros relaxamentos da regra de 1223. Os observantes se opuseram vigorosamente a esses desenvolvimentos e encontraram um líder capaz e popular em Joáo de Parma (1209-1289), ministro geral de
1247 a 1257. Os convenruais, por outro lado, que se posicionaram segundo as inrerpretaçóes papais da regra, reuniram-se ao redor de Boavenrura, sucessor de Joáo de Parma como ministro geral de 1257 a 1274. Um dos maiores teólogos escolásticos, Boavenrura sustentou a co11struçáo de
mosteiros, apelando para a "teoria do
uso" de Gregório IX, argumentando que o estudo teológico - a busca da verdade divina - é melhor do que o trabalho manual, e defendeu a atividade dos frades como pregadores e confessores como uma correçáo necessária das deficiências do clero secular. Ele defendeu o ideal de pobreza absoluta de Francisco, mas considerou-o apenas um meio para a perfeiçáo cristá, náo um fim em si mesmo. Seu período como ministro geral marcou um ponto de virada na história da ordem franciscana, e ele
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VERIODO Y
A IDADE MEDIA POSTERIOR
.373
tem sido chamado corretamente de "segundo fundador" da ordem. Alguns membros da ala observante logo caíram em uma ortodoxia dúbia, ou em direta heresia, mediante sua associacáo com o "joaquimismo". Joaquim de Fiore
(11322-1202), um ex-monge cistercieiise e abade na Calábria, no extremo sul da Itália, era considerado por muitos ter sido o profeta de uma "nova era". Em uma seqüência de obras conhecidas coletivamente como "O Evangelho Eterno", Joaquim dividiu a história do mundo em três eras, correspondendo às Três Pessoas da Trindade. A do Pai, que foi de Adão até o nascimento de Cristo - o
do Antigo
Testamento e da cultura "patriarcal". A do Filho, que ia de Crisco até os dias de Joaquim - o período do Novo Testamento e da igreja cristá, com uma cultura "clerical-sacerdotal". Joaquim acreditava que a nova era do Espírito estava iminente - uma era igualitária de liberdade e amor que ele rotulou "monástica", pois seria formada pelos valores comunitários dos mosteiros. Seria a era, de fato, quando o "evangelho eterno"' seria por fim revelado totalmente. Joaquim era mais um poeta e simbolista do que teólogo ou exegeta, e seus escritos têm estado sujeitos às mais diversas interpretações. É improvável que ele percebesse o evangelho da nova era como um Terceiro Testamento, substituindo o Antigo e o Novo Testamento, ou aguardasse a emergência de uma nova "igreja espiritual" para suplantar a velha igreja de papa, sacerdotes, sacramentos, Bíblia e preparo teológico. Porém, sua filosofia da história poderia ser, e de fato foi, lida como uma afirmacáo radical do caráter puramente contingente e temporário da igreja medieval - isto é, a igreja da Segunda Era. Nesse ponto encontra-se o ~ o d e ideológico r explosivo do joaquimismo, a fonte de sua permanenre atração sobre os oponentes da igreja hierárquica e a base para hostilidade eclesiástica aos devotos de Joaquim na Baixa Idade Média. Na década de 1250, muitos dos rigoristas franciscanos, incluindo João de Parma, estavam usando a profecia de Joaquim como uma estrutura para interpretar a significação hisrórico-mundial de sua ordem e do ideal frãnciscano original de pobreza pessoal e corporativa completa. Estes frades de fé profética foram apelidados "espirituais". Um deIes, Gerardo de Borgo San Donnino, escreveu um livro, em 1254, intitulado introduçdo do Evangelho Eterno, no qual identificava São Francisco com o "anjo do sexto selo" no Apocalipse5
' Apocaiipse 14:6. j
Apocalipse 7:2.
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isto é, com o anunciador ou precursor da
Terceira Era predita por Joaquim. Geraldo também saudou os franciscanos rigorosos
Cr
como os monges espiriruais que pregavam verdadeiramente o "evangelho eterno" e
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que desse modo introduziriam a nova dispensaçáo (cujo advento Geraldo datou para
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1260). O papa Alexandre IV (1254-1261) condenou o livro de Geraldo em 1255, e
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Boaventura iniciou seu termo como ministro geral em 1257 sentenciando Geraldo à
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prisáo perpétua (enquanto que Joáo de Parma escapou por pouco de condenacão e
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retirou-se para um eremitério pelo restante de sua vida).
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Os espiriruais mantiveram vigorosa resistência por toda a última metade do século treze e nas primeiras décadas do catorze, encontrando seu principal porta-voz em Pedro Joáo Olivi (1248-12981, um frade do convento em Narbonne. Olivi admitiu
que os franciscanos poderiam "usar" propriedade, mas insistiu em que fosse um "uso pobre" (ususpuper) genuíno - um uso marcado pela austeridade e simplicidade tocal na vida do dia-a-dia de um frade. Em seu Comentdrio sobre o Apoculipse, publicado por volta de 1297, Olivi uniu o franciscanismo espiritual com a profecia de Joaquim. Ele imaginou uma luta cósmica aproximando-se, na qual a "igreja carnal", oposta ao ususpauper, seria destruída por Deus e subscituida pela verdadeira "igreja espiritualn. Embora Olivi mesmo nunca tenha comparado a igreja carnal com a igreja romana, ele demonstrou profunda hostilidade para com a igreja hierárquica de sua época. Seus discípulos menos cautelosos dentre os franciscanos radicais no sul da França, para quem ele tornou-se uma figura de veneracáo, logo tornaram suas idéias
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em uma doutrina revolucionária.
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A espinha dorsal destes movimenros de oposiçáo foi quebrada durante o pontificado de Joáo XXII (1 3 16-1334), a quem os espirituais mais extremados consideravam o anticrisro predito no Apocalipse.%m uma seqüência de bulas emitidas entre 1317 e 1329, Joáo XXII declarou que a obediência é uma virtude maior do que a pobreza; acusou os espirituais de abracar a antiga heresia donatista; rejeitou a validade legal da distin~áoentre "uso" e "posse" que havia sido primeiramente reconhccida por Gregório IX em 1230 e posteriormente havia sido afirmada por Nicolau I11 (1277-1280) em 1279; e condenou como herético o ensino de que Cristo e os apósto1os náo possuíram nenhuma propriedade seja individual ou comunitária. Tem sido argumentado que a doutrina da infalibilidade papal em questóes de fé e moral proclamada pela primeira vez como dogma da igreja Católica Romana no Primeiro
" Apocalipse 17:l-14.
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h 1DhOE MEMIA POSTERIOR
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Concílio Vaticano em 1870 - na verdade originou-se com Olivi e o círculo de franciscanos radicais, que defendiam, em oposicão a Joáo XXII, que os decreros de Gregório IX e Nicolau 111 eram inerrantes e incontesráveis e portanto náo poderiam ser descartados por papas posteriores. De qualquer forma, os decrecos de Joáo XXII foram fatídicos à medida que colocaram em questão os fundamentos
teológicos de
todo o "movimento de pobreza" da Baixa Idade Média e afasraram da lideranga papai as correntes de "reforma" dentro da igreja. Rapidamente formou-se oposição a Joáo XXII ao redor de Miguel de Cesena (m.
1342), ministro geral franciscano de 1316 atb sua deposiFáo . . .
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papa em 1328.
Cesena fora uma voz moderada dentro da ordem e no início se opusera aos espirituais, mas os decretos do papa o radicdizaram. Em 1328, ele escapou da corte papal
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em Avinháo, onde havia sido derido, em companhia de outro derento, o grande filósofo franciscano inglês Guilherme de Occam. Ambos se refugiaram na corte do imperador Luís da Baviera. Foi ali que Occam escreveu quatro tratados acusando o papa de heresia. Cesena e Occam enconrraram seguidores nos assim chamados Fraricelli italianos, mas os quadros dos espirituais foram reduzidos severamente pela Inquisiçáo e sua causa foi perdida. As divisóes mais amigas entre franciscanos observantes e conventuais continuaram através dos séculos carorze e quinze. Não obstante as muitas tenrarivas de reforma para manter as duas partes unidas sob a jurisdição de um único ministro !geral, a Ordem dos Frades Menores por fim foi dividida em duas ordens disrintas, os observantes e os convencuais, pelo papa Leáo X em 15 17, cada uma com seus próprios oficiais e cabidos gerais.
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Capitulo Ç .. ...
Escolascticisrno Inicial; Anselmo de Cantuária e Pedro Abelardo O mesmo espírito dinâmico na igreja e sociedade européia que encontrou expres-
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sáo nas cruzadas e em novos movimentos leigos, clericais e monásticos estava também em aç5o no domínio das idéias. Dessa forma, os historiadores do pensamento medieval falam da "renascenqa" dos séculos onze e doze - um renascimento dos estu-
dos humanísticos e do pensamento especulativo realizado nas escolas medievais.
O trabalho educacional das escolas monásticas e das catedrais durante a Alta Idade Média já foi assinalado em coiiexáo com Alcuíno e os principais representantes da "renascença carolíngia" do século nove (ver IV:5, 6). A erudicáo do início do período medieval em grande parte reproduziu o ensino dos pais da igreja, especialmente de Agostinho e Gregório Magno. Exceto no caso notável de Joáo Escoto Erígena, quase náo houve originalidade. Ademais, de 800 até bem depois de 1000, a educacáo ao norte dos Alpes foi primariamente de carárer lirerário, baseada no estudo da gramática e retórica. Durante esses dois séculos, também, a Europa esteve assediada por invasões do norte, sul e Ieste - pelos riquingues, muçulmanos e húngaros (rnagiares). Assim, no domínio do pensamento, houve pouco ímpeto ou oportunidade para atividade filosófica e especulaçáo teológica. N o decorrer do século onze, entretanto, quando a Europa ociden~alficou por fim Iivre de invasóes externas, au-
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mentou o número de escolas, especialmente na França. Com sua multiplicaçáo veio um rcnascimento marcante de interesse na Iógica, ou diaIética, e na aplicaçáo do método lógico aos problemas filosóficos e reológicos. O resultado foi um novo e fértil desenvolvimenro intelectual, que culminou nas impressionantes sínteses teoló-
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gicas (summde) do século treze. Uma vez que esse movimento originou-se nas esco-
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las, há m ~ i i t otem sido conhecido como "escolasticismo".
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As escolas medievais diferiam amplamente em seu caráter e influência. Por todo o século onze, as antigas escolas monásticas ou conventuais, cujo objetivo era o preparo de oblaras c jovens monges, ainda eram consideráveis. Frequentemente, como no caso das grandes abadias beneditinas de Bec, na Normandia, e Monce Cassino, na Itália central, elas estavam na vanguarda do despertamento intelectual. Mas por volta de 1100, pelo menos ao norce dos Alpes, a liderança havia passado para as escolas das catedrais urbanas sob a direçáo de mestres seculares. As mais famosas dessas escolas das catedrais se locaiizavani no norte da França e ao longo da fronteira da Bélgica moderna: Orléans, Chartres, Paris, Reims, Laon, Liége e Tournai. Ao sul dos Alpes, a educação superior floresceu nas escolas urbanas do norte da Itália. Estas eram escolas laicas, independentes do controle eclesiástico direto, nas quais a medicina e o direito, em vez de teologia, eram os principais objetos de estudo. Começando no sCçulo onze, também havia surgido uma nova classe de professor profissional: o mestre peripatético ou itinerante (scholasticus vagans), que se deslocava de lugar em lugar e atraía estudantes por seu magnetismo pessoal e argúcia dialética.
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A 10ADE MEDIA POSTERIBR
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O mais expressivo representante dessa classe de erudiro foi Pedro Abelardo, mas o tipo já é visto em Anselrno de Besate (ca. 1050). Os peripatéticos desempenharam um papel de lideranp na vida intelectual dos séculos onze e doze. Sua própria mobilidade - um fenômeno novo, contrastando com a "estabilidade" dos teólogos monásticos tradicionais - espeIhava a vitalidade e inquietacão intelectual da primeira grande época do escolaseicismo. Conquanto o escolasricismo, porranro, fosse o tipo de pensamento típico das escolas e mestres medievais, tal definicão é muito abrangente para ser de bastante utilidade. É também enganosa, uma vez que nem todas as escolas e nem todos os mestres eram "escolásticos" no sentido estrito. A teologia ensinada nas escolas monásticas, sob a tutela de um abade ou outro diretor espiritual, era dedicada ao escudo da Bíblia e dos pais da igreja, dentro do contexto do ciclo diário da adora~áomonástica. Ela era de inclinacão predominantemente conternplat.iva ou "mística' e seu objetivo era "sabedoria" (sapirntilz) - uma experiência prática das realidades do mundo celestial e compromisso pessoal em relacáo a elas. O monge estudava um livro, sobretudo a Bíblia ou "página sagrada" (sacrapagiiza), lendo-o em voz alra, uma vez que se compreende apenas o que se ouve, e meditando ou refletindo sobre ele, e desse modo fixando-o na mente e no coraçáo de forma a colocar seu ensino em pritica. Bernardo de Claraval foi um típico teologo monástico (um fato que explica parcialmente sua hostilidade para com Abelardo).
A teoiogia escolásrica, por outro lado, era ensinada principalmente nas escolas das catedrais urbanas, onde os clérigos que já haviam sido preparados nas artes liberais eram preparados para uma vida pastoral ativa no mundo, sob a diresáo de um
scholasticz~,ou professor. Tal estudo era em grande parte de inclinacão especulativa ou "teórica" e tinha como propósito a obcençáo de "conhecimento" (scientia), ou verdade logicamente defensável. Estudava-se a Bíblia, e as autoridades aprovadas, pelo uso do método dialético ou "questionador". Pedro Abelardo e Pedro Lombardo foram eminentes teólogos escolásricos no século doze. Certamente, não havia separaçáo absoluta entre a teologia monástica e a escolásrica. h s e l m o de Cantuária combinou algo de ambos os modos de fazer teologia, conduzindo uma rigorosa investigacáo dialética dos ensinos cristãos básicos dentro de uma estrutura de meditacão sobre a Escritura Sagrada e oração por ilurninaçáo divina. A mesma combinacão t a m b h pode ser vista nos escritos de Hugo.
A marca distintiva do cscolast~cismo,em ÚItima análise, foi sua adocáo de um
378
HiSTbUlA DA IGREJA C R ~ S T A
método de inquiriçáo comum: o mécodo de descobrir e defender a verdade teológica
esii
e filosófica por meio da dialética ou lógica aristotélica. O método dialético envolvia
no-
três passos básicos: a apresentaçáo de uma questão (qz~aestio),seguida pela argumen-
ter..
taçáo a favor e contra as resposras propostas por autoridades anteriores (diputatio
res
p1.0 et contra), terminando em uma conclusáo que é logicamente justificada (sententia).
nir.
Até o reaparecimento do conjunto compleco das obras de Aristóteles, começando em
mz
meados do século doze, o conhecimento do método dialético era derivado de tradu-
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çóes de porçóes dos escritos lógicos de Aristóteles - seu Categorias e Sobre a lizterpre-
do.
ta@o (De Inteipretatione) - e da Introduçúo (Isagoge) de Porfírio a esta última obra. Essas traduções, com importantes comentários nelas incluídos, eram todas da pena
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de Boécio (4802-524),um dos verdadeiros iniciadores da Idade Média.
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No domínio da teologia cristá, onde a resrelação bíblica era percebida como algo
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concedido de uma vez por todas a mentes maculadas pelo pecado, o método dialético
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náo presumia gerar novas verdades. Seu propósiro expresso, em lugar disso, era ana-
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lisar, explicar e defender a fé cristá como um corpo de verdades divinamente revela-
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das (corpus dactrinae) depositado na Sagrada Escritura e transmirido pelos mestres
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autorizados da igreja. A teologia escolástica, portanto, movia-se dentro da estrutura
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da revelatáo e da traditáo de interpretação da igreja. Neste aspecto, o escoiasricismo
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pode ser definido como uma tentativa racional para penetrar, por meio de um aparato lógico, nos dados de fé revelados. A fé cristá, segundo os escoIásticos, não é um convite ao obscurantismo intelectual; os crentes estão obrigados a compreender aquilo que já crêem ser verdadeiro. Os teólogos escolásticos, porém, diferiam entre si quanto ao grau ao qual eles sustentavam ser a revelaçáo cristá susceptível a tal verificaçáo e discussáo racional, bem como em sua avaliaçáo da capacidade da razáo em penetrar as verdades reveladas. Eles também diferiam quanto ao grau ao qual concediam a razáo, ou a filosofia, autonomia relativa em face da fé ou da teologia.
O desenvolvimento do escolasticismo foi acompanhado por uma discussáo sobre a natureza dos "universais" - isto é, sobre a existência de gêneros e espécies - um debate ocasionado pela Isdgoge de Porfírio. Eram tomadas três posiçóes principais. Os "realistas" extremados, seguindo influências platônicas, afirmavam que os universais existem iparte dos objetos particuiares e antes destes - ante em; i.e., o gênero "homem" é anterior ao homem particular e determinante deste. Os "realistas" moderados, sob a orientaçáo de Aristóteles, ensinavam que os universais existem apenas em conexão com objetos particuIares - in Te. O S L ' n ~ m i n a l i ~ t adefendendo ~", que
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~ ~ n r o au o
A IDADE MEDIA POSTERIOR
379
existem apenas coisas articulares, diziam que os universais sáo simples palavras ou nomes abstratos (nomina)para as semelhancas dos particulares, e náo possuem existência senão no pensamento - post rem. Costumava-se pensar que essa querela entre realismo e nominalismo dominara o pensamento medieval e cra virtualmente sinônima de escolasticismo. Na realidade, esse debate foi agudo por apenas meio século, mais ou menos, de cerca de 1080 a 1130. Mais tarde, emergiram novos problemas filosóficos, quando o campo da especulacão se ampliou, estimulado pela redescoberta do Aristóteles "complero".
A primeira controvérsia escolásrica de importância foi o despertamento da questão que outrora existira entre Pascásio Radberto e Ratramno sobre a natureza da presença de Cristo na Eucaristia (ver IV:6). Berengário (998?-1088), diretor da escola da catedral de Tours, por volta de 1049, atacou a concepçáo predominante de que os elementos páo e vinho sáo transformados no verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Ele argumentou que de acordo com as normas da lógica, uma "substância" (pão, vinho) deve permanecer inalrerada enquanto os "acidences" (a aparência exrerna dos elementos) permanecerem inalterados. Ele foi imediatamente refutado por Lanfranc (1010?-1089),que na época era o superior do famoso mosteiro de Bec, na Normandia e posteriormente (1070) o aclamado arcebispo de Cantuária nos dias de Guilherme, o Conquistador. Lanfranc, o teólogo mais influente de sua época, dcfendeu um uso
moderado da dialética na teologia, enquanto advogando a autoridade primeira da Escritura e tradicão. Concílios em Roma (1050) e Tours (1054), devendo muito aos esforços de Lanfranc, condenaram as perspectivas de Berengário. O debare mostrou que a perspectiva posteriormente (ca. 1140) conhecida como "rransubsranciacáo" tornara-se a opiniáo dominante na crisrandade latina. Ela receberia total aprovaçáo no Quarto Concílio de Latráo em 1215, onde foi proclamada como dogma.
O método dialérico também foi empregado, com resultados bascante diferentes dos de Berengário, por Anselrno de Cantuária, frequenremente chamado de pai do escolasticismo. Nascido de uma família nobre em Aosta, no norce da Itália, em 1033, Anselrno tornou-se monge em Bec, em 1060 sob a lideranca de Lanfranc, a quem sucedeu como prior, em 1063, tornando-se abade em 1078. Sob Anseimo, a escola
de Bec alcançou grande distinçáo. Em 1093 ele tornou-se arcebispo de Cantuária, durante o reinado de Guilherme I1 (1087-1 100), e teve um episcopado tempestuoso devido a seus princípios hildebrandianos. Ele morreu no cargo, em 1109. Anselmo, um dos mais originais de todos os pensadores medievais, estava con-
vencido da plena capacidade de uma dialética apropriada para provar as verdades da teologia. Para ele, de fato, nenhuma parte da fé cristã estava além da província da dernonstracáo racional. Não apenas a existência de Deus, mas mesmo tais 'Tnistérios" como a Trindade, a Encarnaçáo, e a redençáo, poderiam ser demonstrados como sendo verdades "necessárias" - isto é, doutrinas que sáo congruentes com os cânones da lógica. Diferentemente dos escolásticos posteriores, tais como Tomás de Aquino, Anselrno não fez nenhuma distinção clara entre verdades naturais da razáo e verdades superriaturais conhecidas apenas pela fé. Ainda faltavam os termos técnicos para tal distinção. Fé e razão eram vistas como fluindo juncas para formar um corpo harmonioso da sabedoria cristã. Contudo, como um discípulo principal de Agostinho, Anselmo defendia que a compreensáo racional pressupõe fé. "Creio para poder compreender" (c~edout intelLigum) é um moto que expressa bem sua atitude e a de todos os agostinianos medievais.
A famosa prova de h s e l r n o para a exisrência de Deus, expressa em seu Proslogion, era tipicamente agostiniana, e nesse âmbito ~ieo~latônica, no sentido de que ela moviase inteiramente dentro da mente c seus concciros, não levando em consicieraçáo a experiência dos sentidos. Alinhando-se com o novo método diaIético, Anselrno começou com uma definição da palavra "Deus", e então analisou logicamente essa dcfinicáo. "Deus" é "o ser em relacáo ao qual não é possível conceber nenhum outro maior." Ele tem portanto que existir na realidade ( i n re), como tambCm em pensamento (in intellectz.~), pois se ele exisrisse apenas no pensamento, poderia ser concebido um ser ainda maior, existindo na realidade como também em pensamento, o que é impossí.r.el por definicáo. Esta prova, que já durante os dias de Anselrno suscitara a
oposição de Gauniio, inonge de Marmourier, cem parecido a muitos uin jogo cie palavras, embora não tenha faltado eminentes defensores de sua validade, entre eles Descartes, Leibniz e Hegel. Em seguida Anselmo dirigiu sua atencáo para o cônego dc Compiègne, Roscelino
(1050-1 125), que afirmara, sob a irifluência nominalista, que oii o Pai, o Filho e o Espírito Santo são idênticos ou cncáo sáo rrês deuses. No concílio de Soisstins, em
1092, ele foi forcado a abjurar esse crireísmo. De acordo com Anselmo, que C a priilcipal fonte de informaçáo sobre as perspectivas de Roscelino, a raiz de sua heresia era sua falha em reconhecer universais, tratando-os simplesmerire como "sol-is vocais"
( j d t z ~ svocis).
Conseqüentemente, disse Anselmo, da mesma forma que
Roscelino náo poderia expIicar como diversos indivíduos sáo, em substância, um
r~ninnov
A IDADE MfDlh POSTERIOR
381
homem, ele náo pode explicar como três pessoas divinas sáo substancialmente um Deus. Como um realista extremado, Anselmo situava toda a realidade em universais atemporais em vez de situá-la em seres individuais, transitórios. A controvérsia mostra que o debate sobre universais assumiu importância especial devido à sua implicação direta sobre o dogma cristáo.
A contribuiçáo mais influeme de Anselmo à teologia foi sua discussáo da expiaçáo em seu Cur Deus homo (Porque Deus se tornou homem), o mais hábil estudo aparecido até então. Ele se propôs a tratar essa quaestzo sem recorrer a qualquer autoridade e demonstrar apenas por argumenro racional, que a Encarnacáo e a redencão mediante Cristo eram necessárias, ou logicamente adequadas. Seu tratamento foi não menos revoiucionário no sentido de que rejeicava totalmente qualquer pensamento, tal como a igreja primitiva havia entretido, de um resgate pago ao diabo. O homem, por seu pecado, desonrara Deus e perrurbara a ordem divinamente desejada (uertirudo) do universo. Seu débito de justica, portanro, é para com Deus somente;
ao diabo nada é devido senáo desprezo. Mas a justiça, ou retidão, de Deus é tal que ele tem de punir o pecado se náo for feita adequada satisfaqáo à sua honra ferida (aut
poena nut satisfdctio). Para que seu propósito original em criar o homem náo fosse frustrado, Deus, em sua misericórdia, escolheu o caminho da satisfação. O homem, entretanto, que deve obediência a Deus sempre, nada tem com que compensar a desobediência passada, muito menos suprir a satisfacão infinita que irá sanar a injúria à honra infinita de Deus. Daí, se deve haver a l ~ u m asatisfat;áo, ela só pode ser realizada por alguém que participe da natureza humana, que seja ele mesmo homem, e, contudo, tenha algo de valor infinito para oferecer. Tal ser singular é o Deushomem puro, sem pecado. C ~ n s e ~ u e n t e r n e n tae Encarnaçáo , é necessária. Será visto adiante que a tcoria de Anselmo depende da conviccáo "rcalism." de que existe um universal tal como humanidade existindo objetivamente, de forma que Cristo pudesse assumir. O auto-sacrifício volunrário de Cristo, ademais, náo apenas é uma ~ a t i s f a ~ ámas o tambtm merece uma recompensa. Esta recompensa 6 a bem-
aventuranca crcrna de seus discípulos, por quem ele inrcrcede perpetuamente e que sáo unidos a ele, em uma morte semelhante a sua, mediante os prbprios atos repetidos de penitência deles e pela participacáo fiel deles no sacramento de seu corpo e sangue. Assim, a reoria da expiaçáo altamente influente de Anselmo também repousava sobrc um raciocínio ecológico desrinado à prática penirencial-eucarísrica em desenvolvimenro da igreia medieval.
Não obstante sua radicalidade em 'Lprovar"as doutrinas cristãs, Anselmo permaneceu um eclesiástico fiel e defensor da autoridade primeira da Escritura e da tradição da igreja. Ele estava persuadido de que a explicação dialética poderia apenas apoiar as doutrinas da igreja. Sua corajosa confiança na razáo era decorrência de sua firme confianqa na razáo do Criador e na racionalidade inerente da criação. O título origina1 de seu Pvoslogian - Fides quaerens intellectum (Fé em busca de compreensão), com sua ênfase na busca ativa da mente pelas bases racionais da crenca cristá - resume os impulsos cenrrais do escolasricismo e evidencia a excitação intelectual que acompanhou o reavivamento da dialérica. Outro defensor do uso "igrejeiro" da dialética foi Guilherme de Champeaux
(10702-1121), que levou a escola monástica de São Vítor, perto de Paris, a grande fama e morreu como bispo de Chalons. Como Anselmo, ele era um realista extrema-
do na questão dos universais, até que foi forpdo a modificar sua posiçáo devido às pesadas objeçóes de seu ex-aluno, Pedro Abelardo. Abelardo ( I 079-1 142), o mais hábil dialético do século doze, era um homem de charme, eloqüência, vaidade e espírico hipercrítico, mas de forma alguma um irreligioso. Nascido em PalIet (Palais), na Breranha, ele estudou com Roscelino e Guilherme de Champeaux, aos quais se opôs e sem dúvida superou bastante em capacidade. Quanto à mriito debatida questáo dos universais, ele assumiu a posição intermediária entre o nominalismo de um mestre e o realismo do outro. O universal não 6 uma simples palavra (uox),mas uma palavra ou termo ( s e ~ m o que ) pode ser predicado de coisas. Ele próprio náo é uma coisa, mas existe em conexáo com coisas (cumfikndamento in re). O conhecimento de um universal vem através da atividade da mente, por meio da qual, trabalhando com as evidências apresentadas pelos sentidos, ela "abstrai" de coisas particulares certas características partilhadas. Conquanto náo possuindo existência independente, portanto, o univei-sal denota algo real náo uma essência separada ([a1 como "homem"), mas uma condiqáo ou estado (stdtus) que um grupo de particulares tem em comum (tal como "ser um homem"). Tal perspectiva tem sido frequentemente chamada "realismo moderado", mas a designação é imprecisa, uma vez que Abelardo não tratou os universais metafisicarnente, sob a categoria de ser, mas apcnas logicamente, como predicados de coisas. Assim Abelardo permaneceu antes de tudo um lógico, e neste sentido demonsrrou mais afinidade com o nominalismo que com o realismo. A vida de Abelardo, relatada em sua Historia calamitatum (História de calamida-
" .
PERIODO Y
R IDADE MEDIA POSTERIOR
383
des), foi rempesruosa. Já em 1103, eIc estava ensinando as artes liberais com muitos seguidores em Melun, perco de Paris. Mais tarde, almejando a eminência teológica, montou uma escola para si em Laon, para rivalizar com a de Anselmo de Laon (I-
1117)) o mais aclamado erudito bíblico de sua época, a quem Abelardo rejeitou desdenhosamente como "fumaça sem fogo". Aí por 1 115 era cônego de Norre Dame, com tantos seguidores como jamais um mestre conseguira ter. Entzo, no auge de sua fama, apaixonou-se por Heloisa, sobrinha de seu colega cônego Fulberto, com quem ele morava. Heloísa teve um filho, ao qual deu o nome de Astrolábio, e o casal contraiu matrimônio secreto, apesar da vigorosa objeção de Heloísa, que náo queria comprometer as brilhantes perspectivas de Abelardo como professor de teologia. O furioso Fulberco, acreditando que sua sobrinha fora enganada e ele próprio desonrado, vingou-se mandando cmascular Abelardo. S~bse~iicntemente, a pedido de Abelardo, Heloísa tornou-se freira em Argenteuil, e ele Tornou-se monge em São Dionísio. Ensinar era, no entanto, sua vida, e ele logo retomou as conferências, com a permissão do abade. Seu primeiro cratado teológico publicado, uma réplica ao triteísmo de Roscelino, pendeu por demais para a direcáo conrrária, de forma que seus inimigos acusaram-no de sabelianismo, e suas idéias foram condenadas no Concílio de Soissons. Entrementes, a negação de Abelardo de que o fundador de São Dionísio fora o famoso Dionísio, o Areopagita, provocou sua expulsão daquele mosteiro, e ele passou a viver como eremita em um Iocal desolado fora de Paris. Novamente os estudantes acorreram em grande número atrás dele e ele fundou um pequeno estabelecimento ao qual chamou Paracleto. Por seu próprio relato, porém, suas críticas haviam suscitado a hostilidade daquele que era o líder religioso mais poderoso da época, Bernardo de Claraval, e ele então procurou refúgio, como abade do desordeiro e indisciplinado mosteiro de Sáo Gildas, na distante Bretanha. Incapaz de reformar os intratáveis monges, após muitos anos miseráveis de contenda, Abeiardo rerornou sua carreira de ensino por volta de 1133, primeiramente em Reims e depois uma vez mais em Paris, no Monte Santa Genoveva. Entrementes, Heloísa havia se tornado a abadessa de um pequeno convento de freiras no Paracleto, e Abelardo havia iniciado sua correspondência com ela. A autenticidade das cartas de Heloísa ainda é debatida (alguns eruditos atribuem toda a coleçáo ao próprio Abelardo), mas a correspondên-
cia permanece como uma evidência notável do novo "humanismo" do século doze.
O período de intensa arividade literária de Abelardo foi entre os anos de 1135 a
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ
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1 140, quando ele escreveu, e revisou constantemente, sua Tbealagia christidna (Teologia Cristá), por~óesde sua Intvoductio ad tbeolagiam (Introduçáo à Teologia), seu tratado ético Scita te zpsunz (Conhece-te a Ti Mesmo), e seu Szc et non (Sim e Náo). Versóes destas obras foram logo levadas à atençáo do temívd Bernardo, que procurou uma segunda condenaçáo de Abelardo no concílio de Sens, em 1i41,e a rejeiqáo de seu apelo ao papa Inocêncio 11. Abelardo agora era um homem submisso. Ele submeteu-se e encontrou um amigo magnânimo em Pedro, o Venerável, abade de Cluny, que relata haverem Abelardo e Bernardo por fim se reconciliado. Em 1142, Abelardo morreu em um dos mosteiros sob a jurisdiçáo de Cluny. Abelardo náo era nem racionalista nem cético. Ele náo reverteu o moto de Anselmo e declarou: "Compreendo para que possa crer" (intelIigo ut credam). Seu espírito era essencialmente crítico e, à medida em que procurou testar a doutrina da igreja pela dialética, inovador. Sem rejeitar as Escrituras, os pais ou os credos, ele defendeu que todos
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dogmas de fé devem ser submetidos ao exame lógico e náo crido leviana-
mente. Mas ele não pensava ser possivel compreender (comprehendere)totalmente as verdades divinas; quando muito, alguém poderia apenas entendê-las (intelLigeere) a
um grau consoante com a fé. Esta condiçáo levou-o a definir a crença cristã como uma "exis~imaçáo"(existimatio) ou "estimaçáo" (aestirnatio),pela qual ele queria dizer, náo uma simples "opinião", como Bcrnardo erroneamente avaliou, mas uma da verdade completa, ainda a ser revelada no apreensáo mental, ou "apr~xima~áo", Último Dia, quando a fé dará lugar à visáo. Diferentemente de Anselmo, portanto, ele não procurou dcmonscrar as doutrinas cristãs cardeais como verdades "necessárias". Como Anselmo, porém, ele tinha grande confiança no poder da dialética para explicar a doutrina, exceto que suas explicações fossem julgadas como sendo menos ortodoxas, e mais ofensivas às sensibilidades do momento, do que as de Anselmo. Em seu Sim e Náo, por exemplo, Abelardo expôs uma série de textos aparentemente conrraditórios das Escrituras e dos pais sobre os principais tópicos teológicos, sem nenhuma tentativa explícita de harmonia ou explicaçao. Esse procedimento não era original de Abclardo; já havia sido utilizado pelos Iegisladores canônicos conio um método de reconciliar autoridades legais contraditórias. Todavia, isso poderia muito bem desper~arum sentimento d r que ele era um semeador de dúvidas, particularmente quando anunciara no prólogo de sua obra, "Pela dúvida chegamos à inquiriçáo, e pela inquiriqáo percebemos a verdade." Sua doutrina da Trindade, condenada em 1121, era quase sabeliana. Seu ensino de que a natureza humana herdara
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de Adáo náo culpa mas castigo, e que a graça assiste em vez de capacitar, era contrário a tradiçáo agostiniana. Abelardo também náo foi menos inovador em sua concep+o da expiaqáo. Como Anselmo, ele rejeitou todo pensamento de um resgate pago ao diabo, mas ele repudiou náo menos energicamenre a idiia de Anselmo de uma ~ a t i s f a ~ áretribuída o a Deus. Na visão de Abelardo, a Encarnaçáo e morte de Cristo sáo a mais alta expressáo do amor de Deus a um povo desmerecedor. O efeito delas é despertar, em retorno, o amor desse povo - uma postura conhecida como "exemplarismo" ou como a "teoria da influência moral" da expiação. Sua teoria ética de que bem e mal pertencem à intencáo e não à açáo, pareceu para muitos comprometer a "objetividade" da lei de Deus e terminar no subjetivismo. Assim carnbém, sua crença de que os filósofos da antiguidade foram cristáos antes de Cristo, embora consoante com a opinião cristá antiga, náo a de sua época, que via nela uma ameaça à singularidade da revelaGáobíblica.
Abelardo, embora talvez mais filosoficamente sucil do que espiritualmente profundo, era um espírito imensamente estimulador. Eram poucos seus seguidores diretos, fato devido sem dúvida à sua dupla condenaçáo e ao antagonismo de homens famosos, mas sua influência direta foi grande. O impulso que ele deu ao método dialético de inquirição teológica, avancando a obra de Anselmo, foi de amplas conseqüências. Mais do que qualquer outro mestre parisiense do século doze, ele foi responsável por fazer daquela cidade e sua posterior universidade a mestra da Europa em Ibgica e teologia. Seus esforcos preliminares para examinar a extensáo total da doutrina cristá, e seu esboço de uma teologia "sistemática", formam uma ponte importante entre as discussões escolásticas anteriores de quaestiones individuais e as grandes summae, ou inspeções compreensivas, do século treze. O u t r o que merece crédito por ter combinado a razáo filosófica com a espiritualidade tradicional, como em Anselmo, é Hugo de São Vítor (1096?-1142). Sua obra exibe um uso moderado do método dialético ao serviço de temas místicos extraídos da tradiçáo neoplatônica transmitida por Agostinho e o pseudo-Dionísio, o Areopagita. Hugo parece ter nascido em família humilde no norte da França, ou em Flandres, não de pais nobres na Saxônia, como se acreditava antes, embora ele tenha sido preparado em um mosteiro alemão. Ele tornou-se cônego agostiniano bem jovem, e por volta de I. 1i 5 , ingressou no recém-fundado mosteiro de Sáo Vítor, perto de Paris, onde obteve eminência como diretor de sua escola. Conhecido por seus contemporâneos como "segundo Agostinhon, ele era um homem sossegado,
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modesto, de profunda erudiçáo e piedade. Seus principais escritos foram o Diddscalion, um tratado sobre educaçáo bastante influenre, no qual enalreceu toda erudiçáo humana como introdução à teologia, e De sacrarnentis chr+zstzanaefidez(Os sacramentos da fé cnstá), um exame de todos os ramos da teoIogia, multo mais compieto do que aquele enconrrado nas obras de Abelardo, e assim o precursor direto das szlmmde postei iores. Hugo não era um mísrico no sentido estrito, pois ele náo reivindicava descrever a união de sua alma com Deus, co~itudoele pode ser chamado de ceólogo místico à medida em que traçou os três estágios da ascensão da alma para a verdade em Deus. Primeiro, o "olho da carne" conhece o mundo das coisas sensíveis; segundo, o "olho da razáo", voltado para o interior, conhece a si mesmo, finalmente, o "olho da contempla@~"repousa sobre Deus e compreende todas as coisas nele. O terceiro olho, entreranto, cem estado fechado pelo pecado e cem de ser aberto pela revelaqáo divina. A fé é necessária, portanto, para que o Deus invisível seja crido e experimentado. Tal
fé é mais certa que mera opinião, mas menos cerra do que conhecimento d~retouma caracterizaçáo que se tornaria clássica. Para Hugo, não menos do que para Agostinho e Bernardo, a meta da teologia é a experiência e o deleite pessoal de Deus, não o domínio intelectual do conteúdo dos credos. Merece menqáo um quarto pensador, que embora não fosse um gênio original como Anselmo, Abelardo e Hugo, no entanto prestou enorme serviço intelectual à sua época e foi honrado até a Reforma e depois dela. Este foi Pedro Lombardo, o "Mestre das Sentenqas" (1 100?-1160)).Nascido perto de Novara, na Lombardia, ele estudou em Bolonha, Reims e Paris, conjugando assim a erudiçáo legal do norte da Itália com a erudiçáo teológica e d~aléticado norte da França. Amigo de Bernardo, que o ajudou em seu desenvolvimento, Pedro tornou-se em 1140 professor de teologia na escola de Notre Dame e, em 1159, bispo de Paris. Ele certamente estudou sob Hugo em Sáo Vítor, e possiveimente foi também pupilo de Abelardo. Entre 1150 e
1152 ele escreveu a obra que o deixou famoso, Senten~arumhbri qudtzor (Quatro livros de sentenças). Para estudar o cicIo completo da teologia, ele dividiu-o em quatro partes: Deus, os seres criados (criação e hisrória mundial antes de Cr~sto),a salvação (encarnação e redenqáo), e os sacramentos e as últimas coisas (morte, juizo, céu e inferno). Semelhantemente ao Sic et non de Abelardo, ele propôs uma tese ou questáo doutrinária para cada tópico; apresentou autoridades das Escrituras, dos pais, dos decreros dos concílios eclesiásticos e dos pronunciamentos papais a favor e
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contra a tese; e enráo ofereceu um juízo (rentrntia) sobre a quesdo. Ele deveu seu método dialético a Abelardo, sua reverência pela tradicáo e autoridade magisterial da igreja a Hugo. Dernonsrrando sempre moderaqáo e bom senso, ele produziu um manual que preencheu táo completamente as necessidades de sua época que permaneceu aré a Reforma como a principal base de instrucáo teológica. Uma compilaçáo feira por um monge de Bolonha, Graciano (m. 1159?), conseguiu semelhante fama e influência na área de cânone ou direito eclesiástico. Por volta de 1140, utilizando o método dialético aperfeiqoado por Abelardo e construindo sobre o trabalho de canonistas anreriores como Burchard de Worms (965)-1025) e Ivo de Chartres (1040?-I 115), Graciano ordenou a massa discrepante e frequentemente conflitmte de pronunciamentos eclesiásticos oficiais em sua Cozcordilt
discordantium canonum (Concordância de câilones discordantes), normalmente conhecida como o Decretum. Como as Serztenps dc Lombardo, o Decretum de Graciano logo se tornou um texto aucoritativo, formando o cerne do corpo oficial de direito cailônico da igreja, ao redor do qual se agregaram coleçóes posteriores. Pedro e Graciano demonstraram assim a fertilidade do método dialético sistematizando a doutrina e direito da igrcja sem sacrificar a ortodoxia. Em uma época cheia de dissensáo e heresia, eles demonstraram que se poderia "quesrionar" o magistério eclesiástico e ainda permanecer autêntico com a tradicáo eclesiástica, que "razáo" e "fé" não eram inimigas. Assim, náo é surpreendente que Darite, em sua Divina Comédia, colocou Pedro e Graciano um ao lado do outro no paraíso.
Capitulo 6
A Redescoberta de Aristóteles; o Surgimento das Universidades Pode-se dizer que o primeiro período do escoiasticismo encerrou-se em meados do século doze. As escolas, certamente, continuaram em atividade crescente, mas não apareceu nenhum gênio criativo durante a ÚItima metade do século doze ou no início do século treze, que foi em g a n d e parte um período de avânco na codificaçáo
e compilaçáo. Esse período, porém, testemunhou dois desenvolvimentos de profun-
da importância para a história religiosa e inrelectud medieval: a reintroduçáo g a d u -
a1 no Ocidente do corpo completo das obras de Aristóteles e o surgimento das universidades. Ambos os desenvolvimentos, juntamente com o surgimento das ordens mendicantes e seu dramático impacto sobre as universidades, resultou em uma nova explosáo da atividade escolástica no século treze.
Até cerca de 1130, os ~ensadoresmedievais tiveram à sua disposiçáo apenas um fragmento das obras de Aristóteles - a "lógica velha" (logica vetus), como era conhecida, abarcando as Categorias e Sobre interpretaçáo de Aristóteles mesmo mais a Intro-
dufúude Porfírio, todas traduzidas e comentadas por Boécio (ver V:5). Entre 1130 e 1170, o restante das obras lógicas de Arisróteles foram introduzidas no Ocidente - a "lógica nova" (logicu nova), abarcando a Analitica Anterior e a Analitica Posterzor, os
Tópicos e as Re&tnç5es SoJirtas. Durante o decorrer dos cem anos seguintes, ademais, apareceram traducóes dos escritos de Aristóteles sobre ciência naturai (a Fzíica e DOS Céus), e de suas importantíssimas obras filosóficas ( D aAlma, a Metajrira, a Ética), e de seus tratados políticos e lirerários (a Política e a Retóvica), de forma que por volta de 1270 a cristandade latina possuía a colecáo aristotélica complera, e a posiçáo de Aristóteles como "o Filósofo" estava totdmente estabelecida. Ao mesmo cernpo, tam-
bém apareceram traducóes de muitos outros escritos antigos, incluindo as obras médicas de Hipócrates e Galeno, as obras científicas e matemátjcas de Eucfides e Arquimedes, e diversos dos diálogos platônicos. Havia quatro centros principais de atividade de traducáo: Anrioquia na Síria, Constantinopla, Sicília e, sobretudo, Espanha. O vasto império rnuculmano, estendendo-se da Índia à Espanha, havia preservado rnuico do tesouro do pensamento antigo, incluindo Aristóteles em craduçóes árabes (estas últimas frequentemente baseadas, por sua vez, em tradu4óes siríacas anteriores feitas por cristáos nestorianos). Assim, aconi-eceu que os árabes da Espanha serviram como a fonte principal para a infusáo da nova erudição na Europa ocidental. A cidade dc Toledo, em seguida à sua reconquista pelas forcas cristãs em 1085, tornou-se um local de ajuntamento de eruditos nortistas em busca de manuscritos antigos e erudiçáo grega. Ali trabalharam dois dos mais importantes entre os primeiros tradutores, Domingos Gundissalvi e Gerardo de Cremona. Ambos traduziram do árabe para o latim (algumas vezes por meio de uma cradugáo intermediária em espanhol). Posteriormente, foram feitas traducóes acuradas e revisóes de traduçóes anteriores diretamente do grego, muitas
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delas pelo maior de todos os tradutores medievais, o dominicano flamengo Guilherme de Moerbeke (12 15)-1286), que por um período foi membro da corte papal em Viterbo, próximo a Roma, onde conheceu Tomás de Aquino. As obras de Aristóteles, deve ser ressaltado, alcançaram o Ocidente náo apenas esporadicamente e em pedaços mas também em estado "impuro". Fora as corrupqóes textuais inevitáveis concomitantes às tradqóes dos originais árabes (ou siríacos), diversas obras também passaram como se fossem de Aristóteles mas que eram na verdade de origem neoplatônica, a saber, a assim chamada Zologii2 de Aristóteles (constituída de passagens das Eneiades de Plotino) e o Liber de Causis (Livro das Causas, excertos dos Elementos de Teologia de Proclo, um discípulo de Piotino). Esta circunstância permitiu que muitos escolásticos do século treze combinassem aristotelismo com o neoplatonismo cristáo de Agostinho e do pse~ldo-Dionísioe assim suavizar o impacto do "naturalismo" de Aristóceles e representá-lo mais aceitável para propósitos teológicos tradicionais.
A coleçáo aristotélica também veio para o Ocidente, via Espanha, acompanhada por uma série de comentários altamente influentes que haviam sido produzidos, do nono século em diante pelos principais pensadores judeus e islâmicos.
O maior dos filósofos judeus medievais, a quem Tomás de Aquino trataria com o mais alto respeito, foi Moisés ben Maimon ou Maimônides (nasceu em Córdoba em 1135, morreu no exílio no Cairo, em 1204), autor do famoso Guia pura os perplexos, uma obra que buscava reconciliar a religiáo revelada com a nova filosofia aristotélica. Os mais celebrados e influentes "comentariscas" de Aristóteles foram dois filósofos islâmicos, ibn-Sina (latinizado como Avicena, 980-1037, que viveu e morreu na Pérsia) e ibn-Rushd (Averróis, nasceu em Córdoba em 1 126, morreu em Marrakech, em 1 198). Enquanto Avicena procurou estabelecer a religiáo revelada do Coráo sobre uma base da religião natural derivada de Aristóteles e certas fontes neoplatônicas, Averrójs considerou o ensino de Aristóteles a verdade suprema e final e procurou purificá-la de rodas "contaminações" neoplatônicas. Deve-se em grande medida a Averróis o desenvolvimento no final do século treze de um aristotelismo radical, o assim chamado averroísrno latino, que considerava Aristóteles supremo entre os mestres da verdade e que ficou embaracado, portanto, com o problema de reconciliar a revelação cristã com uma razáo aristotélica purificada de seus acréscimos neoplatônicos (reístas e místicos). Os mais famosos desses aristotélicos radicais foram dois
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mestres na faculdade de artes de Paris, nas décadas de 1260 e 1270: Sigério de Brabante e Boécio de Dácia. É evidenre, entáo, que o "aristotelisino" medieval era uma mistura complexa das obras verdadeiramente de Aristóteles e de componentes neopIatônicos, árabes e judeus. A introduçáo gradual no Ocidente desta grande massa de material heterogêneo transformou a totalidade de pensamento medieval posterior. Pela primeira vez desde a época de Agostinho, os pensadores cristáos se corifrontaram com uma visao abrangenre da realidade que náo devia nada a fontes de inspiragáo especificamente cristás - uma Weltansch~uun~ [visáo de mundo], ademais, que em sua forina aristotélica estrita era secular e racionalista. Através de rodo o século treze e depois,
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teólogos
lutaram com as exigentes questóes apresentadas pelo "naturalismo" de Aristóteles ensinos como a eternidade do mundo, a mortalidade da alma, a dependência da virtude sobre o "hábito" (fazer o bem), a primazia do conhecimento sensorial na cogniçáo humana, e a idéia do estado como um fenômeno puramente "naturai". As duas primeiras destas dourrinas aristotélicas estavam em conflito direto com a revelacáo cristã; as três últimas rompiam decisivamente com o agostinianisrno tradicional. Não é surpreendente, portanto, que desde o século treze até o fim do período da Reforma, os xeólogos debatessem os limites de um "aristotelismo cristáo" e concestassem sua própria legitimidade.
0advento de "Aiistóteles" no Ocidente coincidiu com uma revoluçáo no sistema medieval de educaçáo superior: o surgimento das universidades. As primeiras universidades medievais surgiram durante os anos finais do sií.culo doze. Por volta de
1500, cerca de oitenta universidades haviam sido fundadas por toda a Europa. O desenvolvimento histórico das primeiras universidades permanece muito obscuro para ser datado com precisáo. De clualquer forma, devido ilocalizaçáo geográfica favorável e à reputaçáo dos mestres que se reuniam ali, cerras vilas e cidades tornaram-se famosos centros educacionais: Paris e Oxford para a teologia, Bolonha para o direito civil e eclesiástico, Salerno e Montpellier para a medicina. As mudanças educacionais de amplo alcance que estas instituiçóes provocaram foram a padronizacão de mérodos de ensino, livros-textos, graus, etc., e a associaçáo de estudantes e professores em corpos coletivos, ou "universidades", seguindo o padrão das corporagóes comerciais. Tais associa~óessurgiram principalmente para proreger, restringir a interferência externa e manter a boa ordem, e também para regulamentar a admissão à profissáo de professor. O sentido original do rermo "universida-
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de" escá exposto nos nomes zrniuer~itasrbolariz~m,a universidade de escolares ou estudantes, e uni ver si ta^ mugzstrarum, a universidade de mestres ou professores. O início de tal organizagáo pode ser situado por volta de 1200. Pelo final d o século doze, havia em Bolonha duas "universidades" ou associacóes de proteção mútua de estudantes de direito. No início do siculo treze, estas duas grandes corporagóes fundiram-se para formar uma única universitas scholarium, com seu próprio reitor eleito. Gradualmenre, os estudantes nas outras faculdades - artes, medicina e teologia - formaram também suas próprias universidades. No início, os professores estavam excluídos da organizaqáo; com o tempo, eles formaram seus próprios colégios de doutores, mas o núcleo da organizaçáo universitária na Itália, e por todo o sul da Europa, permaneceu uma corporaçáo de estudantes, modelada segundo o sistema bolonhês. O sisrema que prevaleceu no norte da Europa, entretanto, foi aquele estabelecido originariamente em Paris - isto é, uma corporacáo de mestres (universitas magi~trorum)organizada com o propósito de controlar a admissáo a seus quadros. A universidade de Paris desenvolveu-se a partir da escola da catedral de Notre Dame e desde o início buscou assegurar sua independência do chanceler do bispo, o único que poderia conceder licença para ensinar, e que procurava impor suas próprias ordenanças sobre os mestres e escolares. O papa Inocência ITI (1 198-1216), ele próprio ex-mestre de Paris, interferiu em favor da nascente universidade. Os estatutos mais antigos da corporacáo datam de cerca de 1208 ou 1209, foram formalizados em 1215 por Roberto de Courcon, o representante papal, e foram subseqüentemente confirmados por bulas papais. Por volta de 1250 a universidade de Paris era composta por quatro corpos distintos de mesrre, ou "faculdades": os mesrres de artes, de direito canônico (direito civil foi proibido em Paris após 12 19), de medicina e de teologia. A grande faculdade de artes, incluindo professores e estudantes, era dividida ainda em quatro grupos nacionais ou "naçóes" (outro tipo de organizacáo corporariva que parece ter-se originado em Bolonha): os franceses (i.e., aqueles da ile-de-~rancce os países latinos); os picardos
(incluindo os Países Baixos); os normandos; e os ingleses (abarcando Inglaterra, Alemanha, e Europa serencrional e oriental). Cada nagáo era presidida por um procurador, e cada faculdade por um deáo, exceto a de arres, a única que tinha um reitor. Através de esrágios graduais, esse reitor tornou-se o cabega da universidade. Na faculdade de artes, pelo menos em teoria, eram ensinadas as sere artes liberais tradicionais: o trzvium (gramática, retórica e lógica ou dialética) e o qwadrivizm
(astronomia, aritmética, geometria e música). Na realidade, o curso de artes em Paris consistia quase inteiramente de filosofia e lógica aristotélica, mais instruçáo rudimentar nas ciências naturais. Oxford, entretanto, há muito mantinha mais interesse no quadrivium do que Paris, e a Inglaterra no século treze podia gabar-se de uma seqüência de mestres de Oxford noráveis por seu trabalho em matemática e nas ciências naturais. Entre eles incluiam-se Roberto Grosseteste (1 1683-1253, bispo de Lincoln a partir de 12351, que combinou física e metafísica aristotélica com neoplatonisrno agostiniano em uma síntese criativa que percebia a luz como o constituinte básico de toda realidade (e assim deu um lugar central à astronomia e à ótica); e o principal pupilo de Grosseteste, Rogério Bacon (12 14?-1292?),famoso por séculos como nccromante mas nos tempos modernos considerado por sua insistência no primado do experimento na ciência e da experiência na vida humana. No que se refere à organização universitária, a idade de entrada normal era catorze ou quinze anos e pressupunha apenas um educaçáo prévia em composiçáo e gramática latina. O ensino em todas as faculdades era principalmente arravés de prcleçáo ou "leitura" (lectio),&aqual o mestre glosava ou fornecia um comentário cursivo sobre os rextos prescritos, enquanto os estudantes deviam tomar notas copiosas. Os pontos difíceis em um texto, como também os tópicos de interesse perene, há muito \
eram tratados nas escolas pelo quaestio, ou método simples de pergunta e resposta, que nas universidades desenvolveu-se no disputatia, ou debace, de acordo com o método dialético totalmente desenvolvido. O debate poderia ser tanto oral como escrito. O debate literário era a forma~característicaassumida pelas grandes obras teológicas, as gandes sumrnae, do século treze; a S U W ~ theologiae B de Tomás de Aquino, por exemplo, "argumenta" cada tópico acompanhando as exigências do silogismo aristotéiico. O debate oral, entretanto, era de maior importância prática, uma vez que era o segundo principal componente da pedagogia universitária. Era um evento público, realizado em épocas definidas e frequentemente durando vários dias, nos quais um estudante e um mestre procuravam chegar a uma resolucáo lógica ("determi~~a~áo") de duas proposiçóes contraditórias, ambas as quais eram sustentadas por argumentos aparentemente válidos. Normalmente, o estudante apresentava os argumentos contra e a favor, enquanto o mestre era responsável pela determinação final. Os métodos educacionais de lectio e diputdtio, embora inclinados ao forrnalismo e pedantismo, capacitavam os estudantes a dominarem os corpos distintos do conhecimento, agucavam seus poderes analíticos e craziam talento à luz.
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O primeiro grau acadêmico, o de bacharel, era semelhante à admissáo ao aprendizado em uma guilda. O segundo grau, de mestre ou doutor (originalmente termos sinônimos), lembrando o mestre artesáo em uma guilda, dava a autorizaçáo para ensinar na universidade que o conferira (a licentzu doce~dz)e, por fim, o direito de ensinar em qualquer lugar (a ius ubique dorendi). Em Paris, em 1215, o curso de artes durava sels anos, e ninguém poderia se tornar mestre em artes antes de completar vinte anos de idade. (O bacharelado em arces era recebido em algum ponto do caminho). Tanco em Paris como em Oxford, a idade mínima para o magistério ou doutorado em teologia era no início trinta e qudtro anos; mais tarde porém foi esrendida para cerca de quarenta. Para obter esse grau, primeiro era necessário obter o mestrado em artes e ensinar por um certo período de anos na faculdade de artes. O candidato então avançava pelos graus intermediários de bacharel em Bíblia
(bdccalaureus biblicusj e bachaiel das Sentenpzs de Pedro Lombardo (baccalaureus sententiarius), em cuja conexão ele palescrava sobre esses textos por vários anos. Relativamente poucos estudantes, é claro, poderiam pagar os custos em tempo e dinheiro ex~gidospara a promoçáo ao grau de doutor.
O uso do latim como a única língua da sala de aula tornava possível a reuniáo de estudantes de todas as partes da Europa, e eles afluíam em grande número para as universidades mals famosas. As necessidades desses estudantes (muitos dos quais eram de extrema pobreza) logo despertaram o interesse de benfeitores. Um dos mais influentes e antigos resuItados desse interesse foi o Coliège de Ia Sorbonne, fundado para estudantes de teologia em Paris, por volta de 1257, por Roberto de Sorbon
(120 1-1 2741, capeláo de Sáo Luís. Muitos de tais "colégios" foram também estabelecidos em outras universidades continentais. Embora eles tenham-se originado como abrigos ou salóes residenciais com dotacáo para estudantes indigentes, com o tempo se tornaram centros de ensino e vida social e assim absorveram muicas das funções da universidade. Eles sobreviveram na França até a Revoluqáo, mas seu último lar foi a Inglaterra, em Oxford e Cambridge, onde se tornaram no traço mais característico da organizacáo universitária.
A universidade medievaI foi a principal beneficiada com a redescoberta de Aristóteles, e permanece como uma das contribuições mais importantes e originais da Idade Média à civilização e ao mundo moderno.
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HISTÓR~A DA IGREJII CRISTÁ
Capitulo 7
O Alto Escolasticismo e sua Teologia; Tomás de Aquino A descoberta da totalidade dos escritos de Arisróteles, o surgimento das universidades e a dedicagáo das ordens mendicanres à e r u d i ~ á ointroduziram o período do "alto escolasticismo", no século treze. Uma época de grande fermencaçáo intelectual e notável criatividade, ela foi notabilizada por uma série de pensadores brilhantes, incluindo diversos de gênio incontestáve1, que produziram pesquisas abrangentes (summae) de teologia, que faziam uso Iivre e completo da filosofia e do método
dialécico para estabelecer suas conclusóes. Embora a Iógica empregada fosse invariavelmente aristotélica, a filosofia era normalmente uma conjugação eclética de aristotelisrno e neoplatonismo; e conquanto um aristotelismo cristáo tenha eventualmente prevalecido dentro da ordem dorninicana, ele náo passou sem oposiçáo, canto por parte dos tradicionalistas conservadores, como por parte dos principais representantes da ordem franciscana. De qualquer modo, quaisquer que fossem suas aticudes para com Arisróreles e a nova erudição, virtualmente todos os grandes teólogos entre 1250 e 1350 foram membros das ordens mendicantes, e a maioria eram nativos ou da Itália ou da Inglaterra, ainda que Paris continuasse a ser a capital intelec~ualda Europa. O s franciscanos haviam ido para Paris já em 1219. O fundador da escola deles ali foi o mais famoso mestre parisiense de sua época, o inglês Alexandre de Hales (1 186)-
1245), que se Iornou frade em 1236. Sua cácedra universitária em [eologia, que ele ocupava desde cerca de 1220, caiu assim em posse da ordem franciscana. A rnassiva Surnma de Alexandre, o manancial da escola franciscana, náo era tanto um "sistema"
genuíno de teologia mas um enfileirado de douerinas, e devia ranto a Agostinho e ao neoplatonismo, e aos vitorinos e Anselmo, como a Aristóteles. (Esta Summd é acribuída a Alexandre, mas conquanto ele possa muito bem ter planejado e organizado a obra, ela foi provavelmente escrita por um grupo de seus discípulos.)
O mais eminente dos doutores franciscai~osdo século treze, um teólogo que t considerado corretamente um inteleceuai à altura de Tomás de Aquino, foi João Fidanza (1217?-1274),normalmente conhecido como Boaventura. Ele nasceu em
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Bagnorea, naToscana, e estudou em Paris com Alexandre de Hales e o sucessor deste, Joáo de I,a Rochelle, e eventualmenre ocupou a cátedra franciscana em teologia ali, de 1254 a 1257. (Não foi senáo até 1257, entretanto, que ele, juntamente com Tomás de Aquino, foi formalmente admitido no quadro dos mestres da universidade.) Tendo ingressado na ordem franciscana em 1243, ele sucedeu a Joáo de Parma como ministro geral da ordem, em 1257. Em 1273 foi nomeado bispo cardeal de Albano pelo papa Gregório X; morreu enquanto atendia ao concílio de Lyon em 1274. Professor afamado em Paris, especialmente por seu brilhante Comentário sobre as Senten-
Gas (ca. 1250), ele se notabilizou ainda mais por sua sábia lideranqa dos Frades Menores durante épocas difíceis (ver V:4)e por sua pureza de vida. Ele também escreveu alEm das obras acadêmicas a biografia "oficial" de Francisco de Assis (a Legenda
maior, 1263) e compôs um comentário autorizado sobre a regra franciscana. Foi canonizado pelo papa Sisro IV, em 1482 e declarado "doutor da igreja" por Sisto V, em 1587. Filho espiritual de São Francisco, intelectualmente Boaventura era discípulo de Santo Agostinho. Como este, ele desejava conhecer apenas duas coisas: Deus, a realidade suprema, e o progresso da alma para a uniáo com Deus. A filosofia e todo conhecimento secular eram, na melhor das hipóteses, apenas um meio para o fim de "ver" Deus (a visio Dei). Conseqüentemente, conquanto ele reconhecesse e utilizasse Aristóteles como o mestre da dialética, Boaventura era muito menos aristotélico do que Tomás de Aquino e, diferente de Tomás, não arriculou um sistema de filosofia pura para sustentar sua teologia. De igual modo, e em oposiçáo explícita iteoria do conhecimento de Aristóteles, ele apegou-se firmemente ao dogma agostiniano básico de que a certeza moral e intelectual exige a iluminaqáo sobrenatural, divina, da mente e consciência. Boavencura foi essencialmente um reólogo místico, profundamente em débito com Dionísio o Areopagita e Ricardo de São Vítor como também com Agostinho e Francisco. Suas preocupacóes centrais estão eloqüentemente resumidas em seu opúsculo Itinerarium mentis in Deunt ( Ajornada da mente para Deus), um texto clássico de espiritualidade franciscana e uma obra-prima da literatura mística. Mediante oração e meditaçáo, e auxiliada por todo o caminho pela graça divina, a mente viaja para Deus, primeiro por meio da atenqáo aos seus vestígios no mundo em geral, depois por vislumbrá-lo na profundidade de si mesma, e finalmente por meio da elevação acima de si mesma para contemplar a Deus, a Santíssima Trindade, que é a origem e meta de rudo o que existe. Nesse estágio mais elevado, cessam todas
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HISTdRIA 0 1 IEREJA CRISIÃ
as operaçóes intelectuais; a alma (não a mente) inconscientemente une-se com Deus no êxtase de amor e afeiçáo.
É evidente que o pensamento de Boaventura estava em gande medida alheio ao espírito e substância da filosofia arisrotélica. Neste sentido, ele permaneceu tradicionalista e um teólogo menos inovador do que Aquino. Mas é necessário lembrar que ele afasrou-se do labor acadêmico regular em um momento (1275) que antecedeu exatamente o grande influxo do aristotelismo cristão, devido ao iabor e escritos de Alberto Magno, Tomás de Aquino e Sigério de Brabante, e que sua hostilidade para com "Aristóteles" foi principalmente direcionada contra os aristot-élicos radicais ("averroístas latinos") na faculdade de artes em Paris. Ademais, Boaventura era em muitos aspectos um teólogo mais especularivo do que Aquino, como está demonstrado, por exemplo, em seu uso da dourrina orrodoxa (agostiniana) da Trindade para explicar a estrutura fundamental da ordem criada, e em sua elaboração de um método de "especulação introspectiva" por meio da qual a mente, mediante sua descida para dentro de seu próprio mundo interior, sob a condução da graça, é capacitada a ascender à contempla~áode Deus que transcende o intelecto. Boaventura foi também um pensador genuinamente sistemático, e suas obras exibem um poder de síntese digno de comparacão com o de Aquino. Os dominicanos haviam chegado em Paris em 1217, apenas dois anos após a fundaçáo da ordem, e eies logo asseguraram duas das doze cátedras em teologia da universidade, começando com Rolando de Cremona (em 1229) e Joáo de SaintGilles (em 1231). O mais famoso dos primeiros mestres dominicanos em Paris, antes de Aquino, foi AIberto da Alemanha, conhecido de seus contemporâneos como "Magnon (Aibertus Magnus, 1200?-1280). Nascido em família nobre em Lauingen, perto de Ulm, em alguma data entre 1193 e 1206, Alberto estudou as artes em Pádua, onde se tornou dominicano em 1223, e teologia em Paris, onde mais tarde ele palestrou como mesrre de 1245 a 1248. Naquele ano ele foi enviado a Colônia para estabelecer o primeiro centro dominicano de estudos avançados na Alemanha. Por um período ele também serviu como superior provincial de sua ordem (12531256) e como bispo de Regensburg (1260-1262), mas a maior parte de sua carreira foi gasta ensinando e escrevendo em Colônia. Um prodígio de produtividade, Aberto dedicou a maior parte de sua longa carreira para escrever uma série de comentários sobre a coleção aristotélica. Esse vasto projeto, iniciado no início da década de 1250, tomou cerca de vlnte anos para ser
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completado. Alberto era um compJador e comentarista infatigável mais do que um pensador original, e seu arisrotelismo foi modificado por sua aceitaçáo de muitas perspectivas neoplatônicas expressas por Agostinho, o pseudo-Dionísio, Avicena e o
Liber de Causzs (ver V:G). Não obstante sua falta de originalidade, sua obra marca uma época na história do pensamento cristáo, no senrido de que Alberto seguiu os principais pensadores judeus e islâmicos na aceitaçáo da filosofia pagã, sobretudo Aristóteles, enquanto fornecedora de verdadeiro conhecimenro da ordem nacurai. A filosofia assim projera-se como uma disciplina autônorna digna de crédito em seus próprios termos, porquanto expõe o plano-mestre divino da criaçáo. As idéias de Alberto logo receberam de seu principal pupilo, Tomás de Aquino, o príncipe dos escolásticos, uma expressão mais clara e mais consistente. Tomás de Aquino (1224 ou 1225-1274) era filho de Landolfo e Teodora &Aquino, membros da baixa nobreza no reino Hohenstaufen, da Sicília. Ele nasceu no castelo
da família em Roccasecca, perco da primitiva cidade de Aquino, situada mais ou menos na metade do caminho entre Roma e Nápoles. Com cinco anos de rdade foi levado como oblara para a abadia de Monte Cassino, a abadia mãe do monasticismo beneditino, com a expectativa de que com o tempo ele se tornasse seu abade. (Mais tarde em sua vida o governo da abadia Ihe foi oferecido mas ele recusou.) Em seguida a um período de estudo (1239-1244)na faculdade de artes na universidade "secular"
de Nápoles (fundada
elo imperador Frederico I1 em
1224), Tomás ingressou na
ordem dominicana em Nápoles em 1244, causando grande descontentamento à sua família, que o raptou e o deteve por mais de um ano em Roccasecca. Após sua soltura, ele juntou-se novamente aos dominicanos e foi enviado para Paris para seu noviciado e estudo teológico sob Alberto Magno (1245-1248).Em 1248 ele acompanhou Alberto a Colônia para estudo adicional e para preleçóes superficiais da Bíblia como bacharel em teologia. Foi ali que seus confrades supostamente o apelidaram "boi mudo" (bovem mutum) - uma referência à sua corpulência e por ser uma pessoa reservada. Tomás permaneceu em Colônia até 1252, quando foi enviado de volta a Paris para preparar-se para o mestrado em reologia. De 1252 a 1256 ele fez preleções sobre as Sentenqds de Pedro Lombardo. Na prrmavera de 1256 ele principiou como mestre de teologia em Paris, ocupando a segunda das cátedras dominicanas ali; mas sua recepção formal na associaçáo dos mestres universitários foi postergada por dezesseis meses, até o outono de 1257, devido a uma cáustica disputa entre as ordens rnendi-
cantes e os mestres seculares de teoiogia (que desejavam restringir os privilégios dos mendicantes e limitar a uma o número de cátedras dominicanas). De 1259 a 1268, Tomás esteve na Itália, ensinando e escrevendo em Nápoles, Orvieto, Roma e Viterbo.
Em 1269 ele retornou a Paris para sua segunda permanência como mescre em teologia; em 1272 foi chamado a Nápoles, onde estabeleceu um centro de estudos dorninicano. Ele morreu em
7 de
março de 1274, no mosteiro cisterciense de
Fossanuova, em seu caminho para o concílio de Lyons. Em I323 foi canonizado ern Avinháo pelo papa Joáo XXII. Embora por séculos após sua morte Tomás tenha sido amplamente aclamado como doutor universal da igreja (doctor communis), náo foi senáo em 1879 que o papa Leáo XIII declarou oficialmente que o pensamento dele era o critério para a teologia católica romana. Durante seus anos repletos de ensino e pregação, Tomás era constantememe consultado sobre importantes questões civis e eclesiásticas, e frequentemente amargas controvérsias o assolaram, especialmente durante seus anos em Paris. Contudo, apesar dessas perturbações ele permaneceu um espírito sereno e fértil e incansável escricor. Os mais importantes de seus escritos, que chegam a cerca de uma centena, são suas duas grandes sínteses teológicas: a Summa cunDí gentiles, escrita entre 1259 e 1264 para uso dos missionários dominicanos pregando contra os muçulmanos, judeus e cristáos heréticos na Espanha; e a Summa theolugzae, a coroa de seu gênio, iniciada em 1265 como livro texto para iniciantes em teologia e deixada iricompleta quando de sua morte. (Tomás havia deixado de escrever totalmente após 6 de dezembro de 1273, quando teve uma experiência mística enquanto celebrava missa. A Summn: theologiae foi completada sob a dire~áode seu secretário, frade Reginaldo de
Piperno). Pessoalmente, Tomás era um homem profutldamente religioso e humilde, como evidenciado na liturgia que ele compôs para a festa de Corpus Chrisci e em seus hinos, orações e sermóes. Inrelectualmente, sua obra foi marcada por uma clareza, uma consistência lógica e uma amplitude de apresentação que o situam entre os maiores mestres da igreja.
O objetivo de toda investigação teológica, de acordo com Tomás, é alcanqar verdadeiro conhecimento de Deus e da origem e destino sobrenatural da humanidade. Tal conhecimento vem em parte pela razão humana naturai, que pode apreender os "preâmbulos de fé" (praembulaf;dez] racionais - a saber, a existência de um Deus onisciente e onipotente e a imortalidade da alma. A insistência de Tomás em que estas verdades podem ser obtidas fora da iluminaçáo divina da mente, apenas medi-
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ante raciocínio dedutivo do caráter observado do mundo, foi uma ruptura revolucionária com a tradição agostiniano-franciscana (platônica). Tomás também defendeu a premissa aristotélica básica de que todo conhecimento natural - incluindo o conhecimento de Deus - inicia-se com a experiência dos sentidos. A existência de Deus, portanto, não é auto-evidente: ela é conhecida mediatamente pela reflexão sobre os dados da experiência, não imediatamente pela sondagem da alma em suas próprias profundidades (Agostinho-Boaventura) ou sua posse pela mente da idéia mesma de Deus (Anselmo). A razáo natural, certamente, náo conhece nada daqueles "n~istériosda fé" (articzdli
jdei) que são necessários para a bem-aventurança eterna; tais verdades, ou seja, a existência de Deus como a Santíssima Trindade, a encarnacáo de Deus o Filho em Jesus Cristo e a redenção do mundo por meio dele, a ressurreiçáo do corpo e o juízo final, erc. A razão, portanto, deve ser aperfeiçoada pela revelaqáo divina (sacuu divi-
na) contida nas Escrituras canônicas. As Escrituras são a autoridade final e única
(regulajdei),embora elas devam sempre ser cnecndidas a luz das interpretaçóes dos pais da igreja, dos decretos dos concílios eclesiásticos, e das definiçóes papais da fé em resumo, conforme compreendidas pela autoridade magisterial da igreja. Conquanto essas verdades reveladas encontrem-se além da capacidade da razáo, elas náo sáo opostas à razáo, e a razáo, iluminada pela fé, pode demonstrar a inadequaçáo de objeções a elas. Tomás portanto estava longe de partilhar a convicçáo de AnseImo de que todas as verdades do cristianismo são demonstráveis filosoficamente; mas ele defendia que não pode haver contradição entre filosofia e
teologia, uma vez que
ambas provêm de Deus e a verdade é uma só. Entretanto, Tomás distinguia cuidadosamente entre filosofia e teologia, sem separáIas. Elas sáo duas "ciências" independentes, argumentou, dois modos disrintos de conhecer, mas são congruentes, visto que o conhecimenro de Deus - teologia natural
- é comum a ambas as disciplinas. Aqui, entáo, encontra-se a famosa síntese tomista de fé e razáo, na qual é garantida a razáo - especificamente, filosofia aristotélica - sua própria integridade e autoridade. Contudo, Tomás também prendeu-as juntas como desiguais, visto que a razão natural deve ser completddd pela revelação divina, concordando assim com o axioma tomista fundamental de que a "graqa náo destrói mas aperfeiçoa a natureza" (gratia nun tullit sedperjcit naturum). Assim, a síntese náo impede a subordinação, eTomás permaneceu o tempo todo um teólogo cristão comprometido que percebia a funçáo da filosofia à luz do destino sobrenatural da huma-
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nidade para "ver" e "desfrutar" a Deus no céu.
Ao tratar de Deus, em sua teologia propriamente, Tomás utilizou livremente coricepçóes bíblicas, arisrotélicas e neoplat6nicas (agosriniano-dionisíacas). Deus é Ato Puro, sem qualquer limitação ou potencialidades irrealizadas, e portanto somente Deus é imutável. Deus é a Causa Primeira, eIe mesmo sem causa, e portanto somente Deus existe em se e por meio de si (ens a se). Da mesma maneira, é verdade em reiaçáo a Deus apenas, que neIe esstncia (quob est, o que uma coisa é) é idêntica a exis~ência(esse, o fato de existir, o ato de ser). Conseqüentemente, Deus náo é meramente "um ser", ou alguém que "tem" existência, mas Aquele que simplesmente e necessariamente "é", sendo em si mesmo (ipsum esse). Deus, portanto, é o ser mais real e perfeito, origem e fim de tudo que existe, a plenirude absoluta de ser.
A doutrina tomista de Deus, embora enraizada na tradiçáo, não era um simples amálgama de elementos tradicionais. Era uma criaçáo original no sentido de que Tomás foi além de Aristóreles e da filosofia grega ao emoidurar uma nova metafísica do ser. Enquanto Arisróreles (e os gregos) haviam lutado com o problema de "vir a ser" (o que as coisas sáo e como elas vêm a ser?),Tomás fez da "exisrência" o problema central da merafisica (por que exisce alguma coisa, afinal? Por que alguma coisa ao invés de nada?). A existência de seres que iiáo são em si mesmos, auro-causados,
pode ser explicada somente pela existência necessária de uma Primeira Causa Náocausada, e portanto Tomas ofereceu cinco provas para a existência de Deus fundamentadas no argumento da causalidade ou origem. Ele estava seguro, ademais, de que sua linguagem filosófica sobre Deus correspondia (e interpretava) ao nome bíblico para Deus revelado a Moisés: Qui ert, Aquele Que É.' Nosso conhecimento de Deus, entretanro, permanece severamente limitado. Uma vez que Deus é infinito, e nossas mentes finitas,
t possível saber apenas que Deus é, mas náo o que ele C, além
do que saber o que Deus náo é (o caminho da negaçáo) e tentar conhecer a natureza divina segundo as analogias válidas entre Deus o criador e suas criaturas (o caminho da pregaçáo analógica). Mesmo o conhecimento de Deus dado a fé por meio de revelaçáo permanece and6gic0, e Tomás náo hesitou em concluir que "conhece a Deus melhor quem reconhece que o que pense e diga é menos do que Deus realmente é."'
'Êrodo 3;14.
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Deus, ser perfeito, não necessita de nada, e portanto a criação do mundo foi uma expressão da bondade divina que Deus Livremente conferiu às existências que ele assim chamou a ser. A providência de Deus estende-se a todos os eventos, e é manifesta na predestinaçáo de alguns à vida eterna e no abandono de outros às consequências de seu pecado autodesejado, na condenaçáo eterna. Os seres humanos têm, na realidade, livre arbítrio, mas isso não impede a providência determinante ou permissiva de Deus. A permissáo divina do mal resulta no bem maior de todos. Em sua antropologia, como em sua epistemologia, Tomás efetuou uma ruptura radical com a tradição agosriniano-platônica e logo foi acusado de inrroduzir uma doutrina "nova" e "perniciosa". Os agostinianos estavam concentrados na defesa da espirirualidade e status singular da alma, sua proximidade de Deus e sua diferença categórica do corpo. Eles defendiam que a alma é uma substância por si própria, e que a "forma" (princípio determinante imanente) do corpo não é a alma imortal mas uma "forma de corporeidade" (firma corporeitatis) distinta,
enquanto a própria alma possui uma multiplicidade de formas (formas de suas vidas, vegetativa, sensiciva e intelectual). Tomás ensinava, em conrraste, que a alma humana, por mais que possa ser imaterial e imortal, náo é uma substância separada, independente, que simplesmente "usa" ou "governa" um corpo. Cada alma individual, em vez disso, tem sido criada por Deus para ser a forma única do corpo humano, de maneira que alma e corpo conjuntamente sáo uma substância, e a pessoa é uma unidade psicofísica. A alma portanto adquire suas características naturais do corpo, embora ela não dependa do corpo para sua existência e sobreviva a morte deste. Contudo a alma requer o corpo para consrituir um ser humano no sentido apropriado, e para Tomás esta condiçáo explica a necessidade da ressurreiqáo do corpo no Último Dia. Quando originalmente criado, Adáo possuía, em adição aos seus poderes narurais, um dom ~ u ~ e r a d i c i o n a d(donum o supei-additum) que o capacitava a buscar o bem mais elevado e a praticar as três virtudes cristãs - fé, esperança e amor. Este dom Adáo perdeu por causa do pecado, o qual também corrompeu seus poderes naturais, de forma que seu estado passou a ser náo simplesmente uma falta da jusciça original, mas uma conversão positiva para alvos mais baixos. Nesse estado decaído, era impossível a Adáo agradar a Deus, e essa corrupçáo foi transmitida a todos seus descendentes. Estes ainda possuem o poder de alcançar as quatro virtudes naturais da prudência, jusriça, coragem e autocontrole; mas es-
tas, embora proporcionando uma certa medida de honra e felicidade temporal, náo sáo suficientes para capacitar seus possuidores a obterem a visáo de Deus. A restauração da humanidade decaída é possível somente através da livre e imerecida graça de Deus, pela qual o dom superadicionado é restaurado à natureza humana, os pecados são perdoados e lhe é infundido o poder de praticar as três virtudes cristás. Esta graça infusa (gratia infisa) náo é a posse da alma por Deus o Espírito Santo, ou "graga não criada" (gmtia increata), como Pedro Lombardo ensinara. Ela é, em lugar disso, um amor criado dentro da alma pelos sacramentos da igreja (gratia
creata) - uma disposição ou "hábito" (habitus)verdadeiramente humano de caridade por meio do qual o pecador é tornado aceitável diante de Deus e é capacitado a viver em obediência à sua vontade. Nenhum ato humano pode conquistar esta mraç a, mas
a salvaçáo é impossível sem o livre exercício deste hábito de amor divinamente concedido, ele próprio o fruto do auto-sacrifício de Cristo. Conquanto seja concebivel que Deus poderia ter perdoado pecados e concedido graça sem este sacrifício - aqui Tomás diferia de Anselmo - a obra de Cristo era o meio mais sábio e mais eficiente que Deus poderia escolher, e a redengáo total do mundo está baseada nele. Tal obra envolveu satisfação para com o pecado, e Cristo conquistou um mérito que lhe proporciona uma recompensa. A obra de Cristo também move as pessoas ao amor a Deus e ao próximo. Assim Tomás desenvolveu e combinou perspectivas apresentadas por Anselmo e Abelardo. A satisfaqáo de Cristo excede o pecado do mundo, e a recompensa que Cristo não pode possivelmente receber, uma vez que coino Deus ele náo necessita de nada, passa para o benefício da raça humana, da qual Cristo é o cabeça e o exemplo da "nova humanidade." Uma vez redimido por Cristo e capacitado pela graça sacramental, exercendo ativamente o hábito da caridade, o fiel realiza obras que são verdadeiramente agradáveis a Deus e totalmente meritórias (merita de condigno, méritos de dignidade), elas próprias merecendo a recompensa da vida eterna. A fé que em última instância justifica algutm diante de Deus, porranto, é uma fé "formada" pelas obras de amor
(jdes caritatefirmutu); sem estas a fé permanece "náo formada" (jdes inj%rmis) e portanto náo é uma fé viva e salvífica. Contudo, toda boa obra somente é possível mediante a graça preveniente e cooperativa de Deus. Dessa forma Aquino concedeu espaço completo para os dois componentes dominantes da piedade medieval - graça e mérito. Os veículos divinamente ordenados da graça sáo os sacramentos, que foram da-
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dos à igreja para administrar e são necessários para a salvaçáo. Aqui, na área da teologia sacramental, o escolasticismo alcancou ordenaçáo sistemática e precisáo muito maior do que existia anteriormente. Mas na maioria das vezes os teólogos escolásricos, como também o magistério eclesiásrico oficial, estavam apenas fornecendo articulaçáo f o r ~ n da práticas de piedade e adoração de longa data entre os fiéis. O desenvolvimento da teologia sacramental na Idade Média exibe assim a mais conipleta aplicação do princípio antigo, lex o~andilex credendi - "a regra de oraqáo deve prescrever a regra de fé."
O antigo sentimento de que todas as ações sagradas, incluindo os votos monásticos, eram sacramentos, ainda estava vivo no século doze, mas Pcdro Lombardo definiu como sete os sacramentos e a influência de suas S e n t e n p eventualmente prevaleceu. (Quando e onde se originou o número sete é incerto; e este número exclusivo só foi reconhecido oficialmente no concílio de Florenqa em 1439.) Conforme enumerados por Lombardo, os sacramentos sáo o batismo, a confirmaçáo, a eucaristia, a penitência, a extrema unçáo, a ordenaçáo e o matrimônio. Todos foram instituídos por Crisco, seja diretamente ou mediante os apóstolos, e todos, de acordo com Tomás, náo apenas simbolizam graça mas causam (conferem) graça. Sem eles, não há verdadeira uniáo entre Cristo, o cabeça, e os membros de seu corpo místico, a igreja. Todo sacramento consiste de dois elementos definidos em termos aristotélicos como "matéria" e "forma" - uma açáo ou meio externo (páo, água, vinho, erc.) e uma forrnula (palavras de instituicáo) carregando seu propósito e efeito ("Te batizo", "Te absolvo", etc.). O administrador tem que ter a intençáo de fazer aquilo que Cristo e a igreja indicaram, e o recipiente, pelo menos no caso daqueles que já atingiram a maioridade, Tem de ter um desejo sincero de receber o benefício do sacramento. Estas condiFóes sendo cumpridas, o sacramento conduz graça ex opere operato - isto é, mediante o ato executado devidamente. Deus é a causa principaI dessa graça; o
sacramento em si é a causa insrrumental. Ele é o meio pelo qual a virtude da paixáo de Cristo é aplicada a seus membros. Consequentemente, Tomás denomina os sacramentos "relíquias da paixáo de Cristo". Por meio do batismo o recipiente C regenerado, e o pecado original e os pecados pessoais anccriores, como também os castigos devidos a estes pecados, sáo perdoados, embora a tendência a pecar náo seja destruida. É concedida g r a p para resistir ao pecado, e o poder perdido para alcançar as virtudes crisrás é restaurado. O batismo, como a confirmaçáo e a ordenaçáo, imprime na alma um "selo indelével" (characte~
indelibilis), uma disposição espiritual indestrutível para reverenciar a Deus. (Conseqüentemente, estes crês sacramentos náo sáo repetidos para a mesma pessoa.) Por volta de 1200, a linguagem reconhecida para definir a presença real de Cristo nos elementos eucarísticos era o termo filosófico "transubstanciacáo" - uma palavra que já havia aparecido em meados do século doze (embora Pedro Lombardo em
1150 ainda utilizasse a antiga linguagem de "conversáo"). Este conceito recebeu do Quarto Concilio de Latráo em 1215 completa autoridade dogmática. Tomás de Aquino apenas adicionou clareza e precisão de definiçáo. Nas palavras de consagracão pelo sacerdote - através do poder divino existente nas próprias palavras e também conferido ao sacerdote pela ordenacá0 - a mudança rniraculosa é efetuada, de maneira que, conquanto os "acidentes" do páo e do vinho (forma, sabor, e os assemelhados) permaneçam inalterados, sua "substância" é transformada no verdadeiro corpo e sangue de Cristo. Tomás também aceitou e elaborou a noção (conhecida como "concomitiincia") de que o corpo e sangue de Cristo estão presentes integralmente em ambos os elementos consagrados. Este ensino náo foi originado por ele mas desenvolvera-se com O
crescente costume do laicato de participar apenas do pão. O afastamento d o cálice
pelo laicato não ocorreu devido a instigaçáo do clero, como se pensa frequentemente, mas começou como uma prática leiga devido principalmente ao temor de desonrar o sacramento caso fosse entornado o vinho consagrado, i.e., o precioso sangue de Cristo. Tal ansiedade já havia se manifestado no sétimo século no costume bastan~ecomum de molhar o pão no vinho - uma prática (conhecida como "intinçáo") que fora proibida por sínodos ecfesiásticos em 675 e 1175 mas era apoiada pelo sentimento leigo. Na tpoca de Aquino, a comunhão leiga apenas no pão tornara-se quase universal, e a doutrina da concomitância tanto explicava quanto justificava esta prática. A comunhão leiga sob apenas uma "espécie" ou "tipo" (communiusub una sperie) foi estabelecida oficialmente em 1415 por decreto do concílio de Constança.
A piedade e a adoraçáo medieval alcançaram seu ponto mais elevado na eucaristia ou missa, que já no século onze estava começando a deslocar o batismo como o sacramento central. A eucaristia não apenas confere graça, mas também contém o verdadeiro autor da graça, o próprio Cristo. Era considerado totalmente apropriado, portanto, "adorar a hóstia", isto é, fazer orac6es e cumprir votos ao páo consagrado o próprio Cristo - reservado no cabernáculo sobre o dtar ou conduzido em procissão na festa de Corpus Christi (para a qual Tomás de Aquino delineou os cultos). A
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mlssa é a continuaçáo da Encarnaçáo, a repetiçáo (ou "re-presenta~áo")sem sangue da paixão, a fonte de e d i f i ~ a ~ áesplr~tual o do recipiente, a evidência da u n ~ á odo fiel com Cnsto, e um sacrifício propiciatório agradável a Deus, inclinando-o a ser gracioso para aqueles em necessidade na terra e no purgatório.
O sacramento da penitência, conquanro ndo contado como de igual dignidade com o batismo ou a eucaristia, era na verdade de grande, se náo de primeira importância para o fiel individual, dado à sua centralidade na vida disciplinar e pastoral da igreja. O batismo efetua o perdão de pcados anteriores, mas para aqueles cometidos depois do batismo é necessária a penitência. Os pecados em vista aqui são os assim chamados pecados "mortais" - aqueles, segundo Tomás, que envolvem um afastamento de Deus, do hem imutável
- enquanto distintos dos pecados "veniais", que
envolvem apenas uma aproximaçáo imoderada para com o bem mutável. A "matéria" da penitência, para Tomás, consiste dos três atos penltenciais: contriçáo, confissão e satisfação. A contriçáo é a tristeza sincera por causa da ofensa contra Deus e uma determinação a náo repeti-la. Todavia Tomás também defende que uma penitência iniciada em "atrlçáo", em desconforto diante de pecados cometidos e em temor de puniçáo, possa mediante graça infusa tornar-se uma contriçzo verdadeira.
A confissáo particular (auricular) ao sacerdote tornara-se cada vez mais disseminada desde sua defesa no Ocidente pelos monges-missionár~oscélcicos e anglo-saxóes (ver 1V:l). Abelardo e Pedro Lombardo eram da opiniáo de que uma verdadeira contri~áoera seguida imediatamente pelo perdáo divlno, mesmo sem confissáo sacerdotal, embora eles achassem que tal confissão fosse desejável. O Quarto Concílio de Latráo, em 1215 , requereu a confissáo leiga a um sacerdote pelo menos uma vez por ano de toda pessoa que tlvesse chegado à maioridade, ta! confissáo anual, deste modo, tornou-se lei eclesiástica. Tomás explicou que a confissáo e a absolviçáo sacerdotal sáo necessárias porque somenre através da infusão sacramental de graga uma penitência in~ciadaem incerteza, quanto ao grau de tnsteza pelos pecados do penitente, ou uma penitência rnrciada em temor servil (atriçáo), poderia se tornar uma penitência de contriçáo verdadeira. Embora Deus, mediante a absolviçáo sacerdotal, perdoe a culpa do penitente e a puniçáo eterna que são devidas pelo pecado, certas puniçóes temporais ou "satisfacóes" permanecem como uma conseqüência do pecado. Estas penalidades temporais satisfazem a ofensa do pecador contra Deus e restabeiecem a honra divina, até onde esteja sob o poder humano a possibilidade de assim fazê-lo. Elas também capacitam
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a pessoa absolvida a evitar o pecado no futuro. Elas são os "frutos do arrependimento".
O sacerdoce, como representante de Cristo, diance da evidência da contriçáo (ou atriçáo), confissão e vontade de dar satisfaçáo por parte do penitente, pronuncia a absolvicáo (que é a "forma" do sacramento). Sem o perdáo sacerdotal, ninguim culpado de um pecado 'mortal", após o batismo, tem garantia de salvação. Em seguida
à absolviçáo, o sacerdote impóe obras apropriadas de sarisfaçáo, as quais, se não realizadas completamente nesta vida, serão completadas no purgatório.
O século e meio antes de Aquino testemunhara o rápido crescimento do sistema de "indulgências", o qual estava integralmente vinculado hs satisfaqóes penitenciais. Uma "indulgência" era a rernissáo de uma parte ou da totalidade das penalidades temporais. Há muiro rempo os bispos vinham exercendo o direito de amenizar as satisfaçóes em casos nos quais as circunstâncias indicavam contricáo incomum. Tal consideracáo tarnbCm era oferecida àqueles que prestavam grandes serviços à igreja.
O sistema completo de indulgências, porém, náo parece ter operado inregralmente antes do século onze. Seu primeiro uso notável foi pelo papa Urbano 11, que em 1095 prometeu indulgência plena a todos que se engajassem na Primeira Cruzada, embora o papa Alexandre I1 houvesse concedido privilégios similares em uma escala menor para aqueles que combateram contra os muçulmanos na Espanha, por volta de 1063. Uma vez iniciado, o siscema disseminou-se com
rapidez. Náo ape-
nas os papas mas também os bispos concediam indulgências, em termos constantemente mais fáceis. Peregrinações aos lugares santos ou em épocas especiais, e contribuições a uma boa obra, tal como a construçáo de uma igreja ou mesmo uma ponte ou estrada, eram consideradas merecedoras de tal recompensa. As possibilidades financeiras do sistema foram logo percebidas e exploradas. Uma vez que as penas
"temporais" incluíam as do purgatório, o valor de uma indulgência era enorme, embora indefinido, e a cendência de substituí-lo por uma penitência real foi prontamente atendida pela natureza humana. Esta era a prática a que Aquino agora fornecia a interpretaçáo clássica. Seguindo Alexandre de Haies, ele ensinou que os méritos superabundantes de Cristo e dos santos constituem um tesouro de boas obras, parte do qual pode ser transferida para o pecador necessi~adomediante a autoridade da igreja na pessoa do papa (que pode, se desejar, partilhar sua aucoridade com os bispos). Uma indulgência, na verdade, somente pode estar disponível para aqueles que estejam verdadeiramente contritos, e
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para tais ela remove, no todo ou em parte, as penas temporais na terra e no purgatório. As indulgências nunca foram, no ensino da igreja, uma licença para cometer pecados. Elas eram uma remissão das penas corretamente devidas por causa de pecados já cometidos, arrependidos e perdoados. O s fiéis comuns, entretanto, raramente traçavam a cuidadosa distinçáo teológica entre remissáo de penas temporais e perdáo de pecados; o ensino oficial da igreja sobre as indulgências permanecia incipiente; e os prelados da igreja usavam o sistema de indulgências rotineiramente como uma soluçá0 parcial de seus prementes problemas fiscais. Assim, o sisrema proporcionou o surgimento de abusos e escândalos durante a Baixa Idade Média e dessa maneira deu oportunidade ao ataque em massa dos reformadores protestantes sobre o sacramento da penitência. No momento da morte, segundo Tomás, as almas dos ímpios passavam imediatamente para o inferno, o qual é eterno e de onde náo há libertacáo. As almas daqueles que se utilizaram fie1 e integralmente das graças sacramentais da igreja vão prontamente para o céu. As almas da massa de cristáos que se apropriaram apenas irnperfeitamente dos meios de graça têm que passar por um período maior ou menor de sofrimento e p u r i f i ~ a ~ áno o purgatório. A igreja é uma, seja no céu, ou na terra, ou no purgatório. Quando um membro sofre, todos sofrem; quando um vai bem, [odos partilham dessa boa obra. Tomás fundamenta sobre esta unidade as oraqócs aos santos e para os que estão no purgatório. A igreja visível, ademais, requer uma cabeça visível, ou seja, o pontífice romano, sendo a sujeição ao mesmo, necessária para a salvaçáo. O papa, como vigário de Cristo e sucessor de Sáo Pedro, possui uma plenitude de poder (plenitudopotestatis) sobre assuntos eclesiásticos, tem jurisdição direta sobre todas as almas, e pode exercer seus direitos episcopais em todo território. Ao papa cambém pertence a autoridade para determinar o que é doutrina correta, convocar concílios gerais, e emirir, se necessário, novas definições de fé. Estes são os principais tracos da teologia tomista. A história do escolasricismo depois deTomás de Aquino é, em grande medida, a narrativa de reaçóes críticas à sua realizaçáo monumental e ao desenvoIvirnento de abordagens alternativas ao antigo problema de "razáo e revelaçáo."
Capítulo 8
Escolasticismo Posterior; Duns Scotus e
Guilherme de Ockham A imposiçáo da síntese tomista da filosofia aristotélica e da teologia cristã, longe de varrer tudo diante de si, suscitou forte oposiçáo de uma frente ampla, desde conservadores entre os companheiros dominicanos de Tomás, até os principais pensadores franciscanos. Já observamos queTomás, em sua episternologia e psicologia, parecia um perigoso inovador diante da mais antiga rradiçáo agostiniano-platônica. Alguns críticos também associaram seu ensino com o dos aristotélicos radicais ativos na faculdade de artes de Paris, entre 1265 e 1275, dos quais o mais notável foi Sigério de Brabante (1240?-1284)).Náo poucos eclesiásticos nas altas posicóes estavam convencidos de que a universidade em Paris era um campo fértil para a heresia e que o naturalismo e o racionalismo pagão estavam ali solapando as verdades anti-
gas e haviam até contaminado o aristotelismo cristão de Tomás de Aquino. Assim, em 1277, exatamente três anos após a morte de Tomás, o bispo de Paris, Étienne Tempier, agindo com o encorajarnento do papa Joáo XXI, emitiu uma lista de 219 proposições condenadas, incluindo um número de teses tomistas, embora Tomás náo tenha sido citado. Poucos dias mais tarde, o arcebispo de Cantuária, Roberto Kilwardby (?-1279),ele próprio dominicano e ex-mestre em Paris, "visitou" Oxford e censurou um número de proposições tomistas que estavam sendo cnsinadas ali. Esta última censura foi confirmada, em 1284, e novamente em 1286, pelo sucessor de Kilwardby na sé de Cantuária, o franciscano Joáo Peckham (1225?-1292). Mas Tomás rambérn tinha defensores poderosos, entre eles seu velho amigo e mestre, Alberto Magno, e logo o "tornisrno" tornou-se a doutrina oficial da ordem dominicana. Os ataques hostis cessaram, e as condenações iniciais foram removidas, quando Tomás foi canonizado pelo papa Joáo XXII em 1323. Uma conseqüência das condenaçóes de 1277, e do clima de suspeiçáo que as produzira, foi a formacão de "escolas" de pensamento disrintas e frequentemenre amargas concorrentes, geralmente identificadas com as ordens mendicantes e seus principais teólogos. Ao passo que os dominicanos endossavam o aristoí-elismocristáo de Aquino, os franciscanos tomavam seus esteios do neo-agostinianisrno de Ale-
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xandre de Hales e Boaventura. Estas escolas, entretanto, não estavam de forma alguma opostas em todos os pontos; todas eram eciéticas em sua utilização dos recursos filosóficos e teológicos tradicionais, e mesmo dentro da mesma escola frequentemente havia conflitos de opiniáo e de ensino.
O principal pilar da escola franciscana através de toda a Baixa Idade Média, e o mais formidável dos críticos de Tomás, foi Joáo Duns Scotus ("o escocês", 1265?1308), um pensador de notável sutileza e acuidade e um dos maiores dentre os escolásticos. Pouco se sabe da primeira parte de sua vida, mas é possível que ele tenha nascido em Maxton, no R ~ x b u r ~ h s h i rEscócia, e, em 1265 ou 1266. Ele uniu-se aos frades menores em 128 1, foi ordenado sacerdote em 129 1, e estudou em Oxford e Paris. l'alestrou sobre as S e n t e n ~ aem Oxford (ca. 1300) e depois em Paris (13021303). Após um breve período de ausência forçada, retornou para Paris em 1304, tornando-se mestre de teologia em 1305 e lá ensinando até 1307, quando foi enviado para a casa de estudos franciscana em Colônia, onde fdeceu no ano seguinte. Conquarito tenha criticado certas doutrinas de Aquino com a mais extrema sagacidade, Scorus não era um conservador empedernido como João Peckharn. Ele rejeitou a doutrina agostiniana da iluminaçáo divina do intelecto, adotando em seu lugar a teoria do conhecimento dehistóteles, e foi muito influenciado peIo filósofo islâmico Avicena. Com Scotus pode-se observar o início de uma mudança dramática da era de Aquino e do "alto escolasticismo". O s escolásticos dos séculos catorze e quinze não mais produziram !grandes sistemas de teologia especulativa, mas escreveram esmerados comentários sobre as Sentenças ou exposiçóes crícicas de um único rópico. A análise lógica das proposições substituiu a análise metafísica das essências. Foram impostos cada vez mais limites ao alcance da razáo natural; por outro lado, foi alirgado o escopo da revelação divina. 0 s teólogos não mais procuraram, como Tomás havia feito, integrar as ordens natural e supernaturai, mediante a noçáo de Deus como Ato Puro e Primeiro Motor Imóvel; em vez disto, enfatizaram tanto a incapacidade da razão nacural de conhecer a Deus como a liberdade absoluta de Deus em relação ao mundo que ele criou. Embora o próprio Duns tenha sido o último dos grandes escolásticos que buscou unir o estudo metafísico do ser com o estudo teológico de Deus, ele também surge no retrospecto como o precursor de uma nova fase do pensamento escolástico - a era do "escolasticismo tardio", com seus conflitos entre os partidários da via moderna de Occam e os defensores da via antiqua de
Aquino. Como será visto, Duns e seus seguidores também vieram a ser contados entre os teólogos da via antiqzta, visto que eles ainda deixaram espaço para a teoíogia natural (metafísica). Não obstante, o pensamento de Scocus diferiu amplamente do de Aquino e iniciou uma nova época do escoIasticismo. Scotus argumentou que as provas tomistas da existência de Deus (os "Cinco Caminhos"), todos baseados no princípio da causalidade, demonstram apenas a existência de um motor supremo dentro de uma hierarquia de motores, não de um Deus singular, transcendente: estas provas "c~srnoló~icas", em resumo, não váo além do mundo físico. Ele ofereceu, por seu turno, uma série de provas "ontológicas", similar em alguns pontos ao famoso argumento de Anselmo, mas ele insistiu em que a filosofia (metafísica) pode demonstrar a existência apenas de um ser que é infinito, não de alguém que é oniporente, justo e misericordioso. O que os cristáos entendem por "Deus", como a verdade da imortalidade da alma, pertence estritamente ao domínio da revelaçáo e da fé. Assim, comparado a Aquino, Scotus reduziu amplamente a área de "sobreposiqáo" entre filosofia e teologia e estabeleceu Iimites estritos à capacidade da razáo natural em penetrar nos dados da fé. Em sua antropologia, Scotus também se opôs fortemente a Aquino. Para Tomás (e os aristotélicos) o intelecto é a faculdade real - o ser humano é um "animal racional" - e a vontade, sendo "cega", tem que ser guiada pelo intelecto. Para Scotus (e os agostinianos), porém, a vontade é a faculdade mais nobre, pois dirige o intelecto para seus objetos e, sobretudo, porque ela é o trono do amor
-
e o amor a Deus é
maior do que o conhecimento dele. A vontade humana, ademais, é essencialmente um poder livre enquanto o intelecto não é, uma vez que a mente tem necessariamente que concordar com uma proposiçáo verdadeira, uma vez que ela percebe sua verdade, ao passo que a vontade permanece livre para agir ou para náo agir. Assim, o "voluntarismo" de Scorus se opóe ao "incelecrualismo" tomisra. Uma disputa que ocasionou intensa controvérsia entre romistas (dominicanos) e os partidários de Scotus (franciscanos) referiu-se a "imacuiada conceição" da Virgem Maria. Aquino, preocupado em manter e sublinhar a perspectiva de que Jesus Cristo era o Salvador de todas as pessoas, ensinava que ela partilhava do pecado original da raça humana, enquanto concedia que ela fora santificada no momento após a criação de sua alma. Scotus defendia que Maria fora preservada da mácula do pecado original devido aos méritos previstos de Cristo - um ensino que seria declarado como dogma da igreja romana peio papa Pio IX em 1854.
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O centro da teologia de Scotus é a liberdade incondicional de um Deris onipoI
tente em desejar o que náo seja contradir:'rio à sua natureza enquanto bondade su-
?
prema. Ao passo que Aquino defendia que Deus deseja alguma coisa porque ela é boa, Scotus mantinha que alguma coisa+ boa exclusivamente porque Deus a deseja, e a única coisa que Deus não pode deseiar é ódio a si mesmo. Uma vez que a liberdade infinita de Deus e seu poder absoiuro não podem ser constrangidos por nada criado e finito, mesmo o sacrifício de Cristo na cruz possui apenas o valor que Deus lhe atribui. Qualquer outro aro teria sido suficiente para a redençáo do mundo se Deus assim o considerasse. Nem se pode dizer, como Aquino, que a morte de Cristo fora a maneira mais sábia de salva~áo:isto seria limitar a vontade de Deus. Tudo o que se pode afirmar é que esta foi a maneira escoll-iidapor Deus. Os sacramentos, da mesma forma, náo contêm e carregam graça intrinsecamente, como Aquino ensinara, mas sáo as condições indicadas por Deus mediante as quais, se cumpridas, C concedido graça. Porranto a graça reside náo nos sacramentos ("símbolos") como causas instrrimentais, mas apenas no "pacto" (pactum) divino presente quando eles sáo executados fielmeiite.
A totalidade da dourrina da graga e da salvação de Scotus diverge pontualmente da dourrina tomista. A salvação, insistia Scotus, depende apenas da livre aceitaçáo (acceptatio) das pessoas e sua obras meritórias, náo em algunia qualidade de suas
almas, mesmo uma qualidade divinamente criada. Conseqiientemente, Tomás errara ao situar uma conexáo intrínseca entre salvação e o hábito de caridade criado na alma
ela
infusáo sacramental de graça. Ademais, Deus tem determinado desde a
eternidade quem será e quem náo será salvo. Tudo depende, portanto, da vontade absolura de Deus, a qual ultrapassa a compreensão humana. Duns reco~ihecia,é cerco, que segundo a vontade "ordenada" ou "pactual" de Deus manifesta mediante a r e ~ e l a ~ áas o , pessoas que serão salvas são aquelas que se valem da vida sacramental da igreja e cooperam integralmente na sua própria salvaçáo. Nesse conrcxto, Duns defendia, também contra Tomás, que é possível para
alguim por meio de suas próprias capacidades naturais (ex szis ~zatz~ralibus) amar a Deus sobre todas as coisas, e assim mediante um ato moralmente bom, livremente desejado, "merecer" a graca que torna alguém aceitável diante de Deus. Estritamente falando, entretanto, esse ato naturalmente bom náo é um genuíno "mérito de dignidade" (meriram de condigno) que mereGa a concessáo da graca santificadora. Ele é, mais apropriadamente, apenas um "mérito de conveniê~icia"(rneritum de congruo),
um "semi-mérito" que Deus em sua liberalidade escolh~recompensar com o dom da graça. Uma vez equipado com a graça sanrificadora, o fiei prossegue para executar boas obras que sáo verdadeira e integralmente meritórias e assim merecedoras de salvaçáo eterna como justa recompensa. Aqui Scotus concordava com Aquino, embora novamente defendesse que Deus não está obrigado a recompensar méritos condignos com salvação mas aceita-os livremente para tal fim. Conquanto Duns, portanto, tivesse sua doutrina distintiva da ordem "estabeIecida" de salvaçáo, a qual ele assumia como o caminho normal para a bem-aventurança, ele consistentemente defendia que essa ordem não tinha necessidade ontológica. Deus está em liberdade para salvar as pessoas de outras maneiras e, de qualquer forma, o destino humano depende em última instância da eleição e reprovaçáo eterna de Deus, como Agostinho ensinara. Scotus acreditava que náo havia nada "pelagiano" ou antiagostiniano sobre seu ensino de que os homens caídos podem ganhar a primeira concessáo de graca como um mérito congruente. Conforme ele percebia isso, sua ênfase dupla na livre "aceitaqáo" por parte de Deus de um ato moralmente bom executado fora de um estado de graça, e na predestinaçáo eterna por parte de Deus dos eleitos sem qualquer consideracão a seus méritos previstos (untepraevisa merita), salvaguardavam adequadamente a doutrina agastiniana da soberania de Deus. Será visro que o polito cardeal da diferença teológica entre Tomás de Aquino e Duns Scotus é a insistência deste último na liberdade incondicional de Deus e seu constante recurso a ela. T ~ i d ofora de Deus, tudo que percence ao domínio criado c à vontade ordenada de Deus, é inteiramente contingente à vontade absoluta de Deus e de rnancira alguma necessário. Esta contingência se esrende à igreja e seus sacramentos e sacerdócio - resumindo, a todos os meios de salvaçáo. Tomás, ao conrrário, conquanto náo menos defensor da soberania divina, náo opôs dessa forma o poder absoluto (p~tentinnbsolutu) de Deus ao seu poder ordenado (potentia ordindta), e assim ele não fez uma distinção radical entre a liberdade de Deus na eternidade e a execuçáo de sua vontade no tempo, mediante a agência de "causas secundárias". I'ara Tomás, mais propriamente, a liberdade de Deus revela-se precisamente na criaçáo e preservacão do mundo que conhecemos - um universo hierarquicamente ordenado no qual a igreja e suas agências de graca encontram seu lugar "necessário". No pensamento de Scorus, porém, "contingência" substituiu a "necessidade" romisra.
E necessário adicionar que Duns não foi um rebelde conrra a autoridade da igreja. Ele náo questioriou a legitimidade das "ordenancas" de Deus, incluindo o sacer-
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dócio e o sistema sacramental. Na realidade, devido à sua grande ênfase nos limites da razáo, ele exaltou a autoridade da igreja como a condutora e intérprete da revela-
çáo. Sua preocupaçáo fundamental, mantendo-se no espírito das condenações de 1277, foi salvaguardar a liberdade incondicional de Deus contra qualquer forma de "necessitarianismo grego", isro é, contra os traços determinisras do pensamento aristotélico e árabe e mesmo tomista, os quais, ao seu ver, limitavam Deus ao incluílo dentro de uma série de causas e portanto dentro da ordem criada.
O pensamento de Duns Scotus, e de dois outros teólogos notáveis do início do século catorze - o franciscano Pedro Auriole (1280?-1322)e o dominicano Durando de Saint-Pourçain (1275-1335) - tornou-se o ponto de partida para a obra do eminente filósofo e teólogo franciscano Guilherme de Occam (1285?-1349?).Occam, como Scotus, influenciou prohndamente o curso histórico do escolasticismo tardio. Ele foi o líder autorizado da "via moderna" - o pensador que foi o principal responsável pela divisáo das vias entre o "velho" e o "novo" escolasticismo. Guilherme nasceu em algum ano entre 1280 e 1290 na vila inglesa de Ockham, em Surrey, perto de Londres, e ingressou na ordem franciscana ainda jovem. Ele iniciou seus estudos teológicos em Oxford em 1309 ou 1310, e em 1 319 ou 1320 havia completado as exigências formais para o grau de mestre de teologia, com palestras sobre as S e n t e n l de Pedro Lombardo. Sua licenqa para ensinar foi retida, entreranro, pois ele havia sido acusado de erros doutrinários pelo chancela da universida-
de, Joáo Lutterell, o qual em 1323 dirigiu-se à corte papal em Avinháo para apresentar acusagóes contra ele. Em 1324, Occam foi convocado a Avinháo para defender-
se, e uma comissão de inquériro foi indicada. As acusaçóes eram relativamente suaves e parece que náo foi tomada nenhuma açáo formal, mas Occam nunca recebeu sua licença de doutor. Daí ele ter ficado conhecido como "o venerávei doutorando"
(uenerabilis inceptor) - isto é, uma pessoa que havia completado as exigências para o doutorado (um "doutorando") mas que nunca havia-se tornado efetivamenre um professor (um "mestre regente"). Esse título foi posteriormente interpretado erroneamente, recebendo o sentido de que ele fora "o fundador da escola nominalista"
(inceptor srbolae nominalium). Enq~iantoein Avinháo, de 1324 a 1328, Occarn ficou profundamente envolvido na disputa que se desenvolvia então sobre a questão da pobreza fi-anciscana(ver V:4), e lá ele conjugou forças com o superior geral da ordem franciscana, Miguel de Cesena, que havia sido intimado a Avinháo para responder por sua oposiçáo ao papa Joáo
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HISIORIA DA IGREJA GRISTÃ
XXII (1316-1334). Em 1328, quando se tornou claro que o papa estava para condenar a posiçáo deles e a da maioria dos franciscanos, Cesena e Oçcam fugiram de Avinhão para Munique, para buscar a proteçáo do imperador Luís da Baviera (1314-
1347). Occam e Cesena e seus cotnpanheiros foram imediatamente excomungados. Existe evidência de que Occarn buscou reconciliaçáo com Roma em 1349, mas o resultado é incerto, e ele morreu, da Peste Negra, em 1349 ou 1350. Embora Occam fosse um pensador independente original e encarnicado, e um crítico determinado de Scotus, náo menos do que de Aquino, eIe também ~artiihava muitas ênfases com seu grande predecessor franciscano. Ele assumiu a distincáo de Scotus entre o poder absoluto e o ~ o d e ordenado r de Deus, fazendo disto a pedra de toque de sua teologia e forncccndo-lhe uma aplicaçáo ainda mais radical. Assim, eie defendeu que Deus, mediante seu poder absoluto, poderia ter feito a salvação depender do ódio ao invés do amor a ele. Contudo Occam, náo menos do que Scotus, ensinava que aquilo que Deus tem ordenado no tempo, incluindo o sacerdócio e o sistema sacramental, iiáo deve ser desprezado, uma vez que constitui o caminho normal para a salvação. A preocupação central, canto de Occam como de Scotus, era liberrar a reologia e a ética cristás de qualquer traqo de necessitarianismo grecoislâmico - a idéia de um Deus que está obrigado a agir de acordo com os dirames da "razão correta". Occam também assumiu os trac;os principais da doutrina de Scotris sobre o plano "ordenado" de salvaçáo de Deus. Segundo esse esquema, é possível para um indivíduo, mediante sua própria capacidade natural ou livre arbitrio, executar um ato moralmente bom que provoca a infusão de graça como um "mérito de conveniência", i.e., como um semi-mérito que Deus escolhe recompensar com o dom da graça sancificadora. (Lembremos que Tomás de Aquino, em suas obras maduras, negou expressamente que alguém poderia, em um estado de natureza, merecer a concessáo da primeira graça - em qualquer sentido da palavra "mérito".) Equipado com a graça santificadora, o fiel executa obras de amor que, como verdadeiros "méritos de dignidade", ganham a salvaçáo como uma recompensa merecida, visto que Deus escolhe aceitar méritos condignos como o fiindamenco para a concessáo da salvação eterna.
A doutrina occamista da salvaçáo exibe assim este padráo básico: Deus, de acordo com sua vontade ordenada, intenciona salvar as pessoas que fazem o seu melhor
(facere yuod in se est), primeiro mediante a aquisição da grasa como um semi-mérito
(de cong~uo)dentro de um estado de natureza, e depois por ganhar a salvaçáo como
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um mérito completo (de condigno) dentro de um estado de graça. Este é o significado do axioma occamista de que "Deus não nega graça àqueles que fazem o que está neles" (facientibus quod in se est Deus non denegat gvatiam). Conquanto ambos, Occam e Scotus, como rarnbtm seus seguidores, defendessem o princípio de "fazer o meihor de si" com as capacidades naturais e em coopera-
cão com a graGa, Occam modificou significaciramenre a doutrina da salvação de Scotus, rejeitando o ensino deste de que Deus predestina eternamente os eleitos sem qualquer consideraçáo aos seus méritos previstos (antepi-uevim merita). Para Occam, e os teólogos occamistas, a predestinaçáo eterna dos eleitos está, segundo a vontade ordenada de Deus, condicionada ao conhecimento prévio por Deus de seus méritos
(postpraevzsa merita), exatamente como a predestinaçáo eterna dos condenados está fundamentada em seus deméritos previstos (post-pmevisudemerita). Em resumo, a predestinaçáo é equivalente ao conhecimento prévio divino do comportamento humano - uma doutrina que os occamistas consideravam necessária para defender a liberdade e a dignidade humana. Vinculando desta forma a salvação eterna ao conhecimento prévio de Deus das obras meritórias, os occamistas removeram uma das principais "salvaguardas" escoristas-agoscinianas contra o pelagianismo. Mas eles acreditavam que sua doucrina da livre aceitaqão por parte de Deus de ambos os méritos, congruentes e condignos, era por si suficiente para defender a dourrina agosriniana de que Deus não é devedor a ninguém. Posteriormente, no século dezesseis, Lutero e seus companheiros reformadores iriam argumentar que a totalidade da doutrina da salvação escolásrica - principalmente a de Occam, mas também a de Aquino e Scotus - atemorizava mais do que consolava as consciências ansiosas, porque ela tornava a salvagáo dependente pelo menos parcialmente das obras meritórias (um princípio de incerteza) em vez de dependente somente na misericórdia (a única base de confiança). Contudo Lutero, que fora instruído na tradiçáo occamista, também se apropriou de traços da "teologia pactuaIn escotista-occamista, que negava qualquer conexão intrínseca entre a salvaçáo e os hábitos infusos de graça e fazia a "aceiração" por Deus o fundamento último da salva~áo.
A verdadeira radicalidade de Occam em rela~áoa seus predecessores escolásticos, incluindo Scotus, revelou-se em dois pontos fundamentais: em sua teoria do conhecimento e em sua postura sobre a teologia natural. Sua epistemologia rompeu com virtualmente a totalidade da tradição medieval que o precedeu. Todos os grandes
pensadores cristãos, desde Agostinho até Aquino, defenderam que o conhecimento dos particulares é mediado por universais: a mente conhece a coisa particular (Sócrates) somente por meio do conceito universal (homem). Estes pensadores diferiam, obviamente, em suas perspectivas em relação à maneira em que a mente realmente vem a conhecer os universais; mas se o universai é conhecido diretamente por meio de iluminaçáo sobrenatural (os agostinianos) ou indiretamente por meio de abstraFáo da experiência dos sentidos (os aristotélicos), todos concordavam em que o universal é o objeto primário e próprio do intelecto. Todos concordavam, da mesma forma,
em que os universais possuem uma realidade extra-mental, seja como essências autosubsistentes à parte das coisas particulares (realismo extremo) ou como essências abstratas inerentes nas coisas (realismo moderado). Mesmo Duns Scotus, que ensinara que a merite náo possui conhecimento direto dos particulares, ainda defendia a realidade das essências, pois em conhecendo coisas particulares a mente realmente conhece as "naturezas comuns" formalmente distintas que constituem todo ser. Daí, para Scotus, o objeto próprio da mente é o "ser" em seu sentido mais universal e abs trato. Foi nesse conrexto que Occam empunhou sua famosa "navalha' ou princípio de economia de explanaçáo: "Pluraiidade não deve ser postulada sem necessidade", ou
"O quer que possa ser feito com poucas suposiçóes é feito em vão com mais." A verdade é, defendia Occam, que somenre a coisa que existe particularmenre é real, e
o conhecimento direto, não mediado, de particulares (aquilo que Occam chamava "cogniçáo intuitiva") é possível. Conseqüentemente, não há necessidade de explicar a cogniçáo de coisas singulares postulando tais entidades como essências autosubsistentes (Agostinho, Anselmo, Boaventura), espécies inteligentes (Aquino) ou naturezas comuns (Scotus). A cogniçáo intuitiva é o fundamento de rodo conhecimenro, pois apenas a apreensáo imediata de um objeto particular capacita o intelecto a julgar se tal objeto existe ou náo. Portanto, a coisa particular, não o universal, vem primeiro ranto na realidade (existência) como no pensamento (conhecimento). Quanto aos conceitos universais, ou essências, não podem ser apreendidos diretamente, e assim nâo possuem realidade fora da mente e dos atos de juizo da mesma (aquilo que Occam denominou "conhecimento abstrativo"). Para Occam, portanto, o universal existe apenas como um conteúdo da mente como o aro por meio do q u d o intelecto compreende muitos particulares que sáo similares (onde "similaridade" ndo significa uma "natureza comum") - e funciona
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dentro da linguagem humana como um símbolo convencional cuja intençáo é significar muitas coisas. Por Occam e seus seguidores terem assim falado dos conceitos universais como fenômenos lingiiísticos e mentais, eles foram chamados "termistas" ou "nominalistas". Porém eles náo consideravam os universais como simples construçóes subjetivas, uma vez que esses conceitos surgem somente em conexáo com o encontro da mente com coisas que realmente existem fora da mente, isto é, as similaridades demonstradas por muitos seres particulares.
A teoria do conhecimento revoIucionária de Occam estabeleceu a base filosófica para a divisáo entre a "via antiga" e a "via nova" no escolasticismo. Os "antigos" entre os quais Scotus deve ser contado, bem como Aquino - preocuparam-se com a análise metafisica das essências, na convicçáo de que os conceitos universais sáo os portadores últimos da realidade, sobretudo da realidade rranscendente. Os "modernos", porém, liderados por Occam, preocuparam-se com a experiência imediata
ela
mente dos seres parriculares e com a inferência logicamente válida de tal experiência, na convicção de que a realidade é irreduzivelmenre particular e que conceitos universais são apenas construçóes mentais e símbolos lingiiísticos. Uma vez que os universais náo possuem existência fora da mente e das convenções da linguagem, e assim não são "janelas" sobre a realidade transcendente, a teologia natural ou metafísica é, para todos os propósiros práticos, impossível. Simplesmente náo há evidência empi'rica, fornecida pela experiência direta, dos objetos da teologia. O antigo empreendimenro da teologia "natural" deve ceder lugar, portanto, a uma nova teologia "positiva" baseada inteiramente na revelação e na fé. Frequentemente tem sido dito que Occam provocou a destruicão do p n d e es-
force escolástico, desde o século onze, para posicionar
a fé cristá sobre um funda-
mento racional. E verdade que Occam virtualmenre eliminou a teologia natural (depois que Scotus a havia reduzido a um mínimo), contudo ele náo baniu a razáo da tarefa teológica; mais propriamenre, ele situou-a dentro dos limites da revelaçáo. O escolasticismo, para Occam e seus seguidores, agora tomava a forma da investigação racional (lógica) de primeiros princípios revelados. E conquanto os escolásricos medievais tardios exibissem pouco entusiasmo pela metafisica especulativa, eles se deliciavam na especulacáo filosófica livre sobre problemas teológicos, tais como a questão do conhecimento de Deus de atos e eventos futuros ("contingentes futuros"). No que diz respeito a isso, eles continuaram o programa escolástico tradicional de "fé em busca de entendimento", exceto que agora eles atribuíam à revelaçáo ape-
nas muito daquilo que os escolásticos anteriores haviam considerado racionalmente demonstrável.
O pensamento occamista, o u norninalismo, desfrutou de amplo suporte por toda a Baixa Idade Média, entre representantes de todas as ordens religiosas, mas não se pode falar de uma "escola" fixa de discípuios de Occam, pois seu pensamento nem sempre era assumido integralmente. O occamismo, ademais, não ficou sem oposição. A "via antiga" tinha seus defensores capazes, enrre eles Joáo Capreolus (1380!-
1444), um dominicano francês conhecido como o "príncipe dos tomistas", que escreveu um magnífico comentário sobre a Szrmma tbeologiae e em sua defesa. O pensamento tomista também encontrou abrigo na ordem dos frades agostinianos, devido a obra de Giles de Roma (12472-1316), que defendeu resolutamente o tomismo contra o agosrinianismo tradicional na esteira das condenaçóes de 1277. Giles ocupou a primeira cátedra de teologia agostiniana em Paris em 1285; em 1287, seus ensinos foram adotados como a doucrina oficial da ordem agostiniana; e em 1292 ele tornou-se o superior geral da ordem. Como será visto, foram também manridas linhas diretas de conexão com o pensamenro de Alberto Magno e Tomás de Aquino, por um importante grupo de teólogos e escritores místicos dorninicanos ativos em Colônia e na Renânia durante o século catorze (ver V:9).
Em meados do século catorze, idéias e atitudes occamistas se afirmaram tanto em Oxford como em Paris. A "via moderna" foi representada em Oxford pelo franciscano Adão Woodham (!-I 349) e pelo dominicano Roberto Holcoc (1285?-1349). A influência de Occam foi
forte em Paris na década de 1340, como fica
evidenciado nos ensinos de Joáo de Mirecourr, um monge cisterciense, e Nicolau de hutrecourt. Esres dois homens, porém, fizeram um uso táo radical dos princípios occamisras que algumas de suas proposiqóes foram condenadas oficialmente. Um seguidor muito mais moderado de Occam foi Joáo Bur~dan(1295?-1358?),que foi por duas vezes reitor da universidade de Paris. Buridan empregou a lógica e a epistemologia de Occam para desenvolver uma filosofia natural de um tipo empírico -
isto é, ele fez da física uma ciência de fenômenos observáveis. A doutrina de Occam
de que a "cogniqáo intuiriva" é a única base do conhecimento natural ajudou a fornecer a ciência medieval tardia um caráter mais empírico, como está evidenciado ainda mais na obra de dois dos principais discípulos de Buridan, Alberto da Saxônia (l316?1390) e Marsílio de Inghen (?-1396), ambos os quais primeiramente ensinaram em Paris e depois disseminaram o pensamento occamisra para a Áustria e Alemanha.
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As avaliações do escolasticismo iardio continuam a variar amplamente. A via
moderna, particularmente, frequeiltemente tem sido vista como o ponto mais inferi~ 3 d d
or da teologia medieval, principalmente por aqueles que consideram asíntese tornista
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o ponto mais elevado do pensameilco escolástico. Porém seria errôneo pensar que a
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teologia simplesmente murchou na videira depois de Occam. O s escolásticos medi-
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evais tardios exibiram muita engenhosidade e criarividade ao trarar de problemas
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como o esraruto "científico" da teologia; a onipotência de Deus e a relaçáo da vonta-
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de humana com o livre arbítrio humano em questões de pecado, graça e mérito; o
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conhecimento de Deus de contingentes futuros; prcdestinacáo, a natureza da igreja e
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sua relação com o estado; Escritura e tradiqáo; e os sacramentos, especialmente a
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natureza da "transformacáon nos eIernentos eucarís~icos. Uma conscquência muito importante dessa preocupaqão com questões teológicas internas foi a busca renovada pela verdadeira interpreta~áodos escritos de Santo Agostinho, particularmente sobre os tópicos de predestinacáo, graça preveniente e a
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servidão do arbítrio. Esta busca, que gerou debates inrensos, contiiiuou por toda a Baixa Idade Média e ila era da Reforma. O esquema de saIvacáo occamista, com sua ênfase característica em "fazer o melhor" como base tanto do mérito coilgruente corno do condigno, encontrou um primeiro e hábil defensor no teólogo dominicano acima mencionado, Roberto Holcot. Esta doutrina logo foi atacada como uma espécie de "pelagianismo moderno" por outro teólogo de Oxford, e um dos principais matemáticos da época, Tomás Bradwardine (1230'-1349). Sua obra principal, De causa Dei contra Pelagiz~m(A causa de Deus contra os pelagianos, completa por volta
de 1344), foi uma extensão e reafirmacáo inflexível de remas agostinianos (e alguns tomisras): a servidáo do arbítrio humano caído; a necessidade absoluta da graça preveniente para libertar o arbítrio; a irresistibilidade de tal graca; o hábito de graca infusa como a única base de um ato meritório; e, sustentando tudo, a predestinaçáo eterna de Deus, que elege aqueles que receberão graqa prcveniente sem qualquer consideraçáo a seu mérito previsto. Pouco depois de ter sido consagrado arcebispo de Cantuária, Bradwardine tombou vítima da praga bubônica, ou Pesre Negra, juntamente com Occam, Holcot e toda uma geração dos principais pensadores ingleses. Outro corajoso oponente da dourrina da salsraqáo occamista foi Gregória de Rimini
(1300?-1358),considerado como o melhor erudito de Agostinho da Idade Média. Ativo por muito tempo em Paris como estudante e depois como professor, ele tornou-se superior geral dos frades agostinianos em 1357, e seu líder mais influente
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AISTÓRIA DA IGREJA C R I S T ~
desde Giles de Roma. Embora seguidor de Occam e da via rnodtrna na epistemologia e na doutrina dos "dois poderes" de Deus, seu agostinianismo radical pô-lo em conflito com o todo do esquema de salvação occamista. Ele defendeu a doutrina agostiniana estrita da predestinacáo incondicional por Deus dos eleitos e dos reprovados - um decreto absoluto no qual o conhecimento prévio de Deus dos méritos ou deméritos humanos náo desempenha papel algum. Náo obstante os ataques de Bradwardine e Rimini, os principais teólogos occamistas continuaram apegados aos detalhes essenciais da doutrina da salvaçáo de seu mestre, sempre na convicçáo de que eles, também, eram "agostinianos" devido h sua ênfase na livre "aceitaçáo" por Deus de obras meritórias. Os mais proeminentes dentre estes últimos representantes da via moderna foram três teólogos seculares: os franceses Pedro de Ailly (1350-1420) e Joáo de Gerson (1363-1429), e o alemáo Gabriel Biei (1420)-1495). Pedro de Ally e seu pupilo Gerson foram líderes do "movimento conciliar", que procurava resolver o grande cisma (ver V: 12) mediante a sujeicão da autoridade papal à autoridade de um concílio geral da igreja. Gerson, que se tornou chanceler da universidade de Paris em 1395, procurou vencer o notório par~idarismodos escolásticos conclamando uma reunificaçáo da teologia com a espiritualidade segundo o modelo de Bernardo de Claraval e Boaventura. Sua obra clássica sobre teologia mística, De mystica theologia (1402), demonstra que os teólogos occarnistas, contrariamente &quiloque é frequentemente suposto, náo eram opostos em princípio, ao misticismo. Biel, conhecido como "o último dos escolásticos", foi um discipulo fiel de Occam e defendeu-o contra o ataque de Rimini. Sua exposiçáo equilibrada do pensamenro occamista tornou-se uma oportunidade, por suavez, para o ataque de Lu~erocontra os "teólogos modernos" como "piores que Peligio", enquanro que os primeiros oponentes de Lucero, mais tarde engrossados pelos teólogos do concílio de Trento, responderam citando Biel como uma autoridade católica. Julgada em seus próprios termos, e náo meramente como um "poslúdio" ao d t o escolasticismo ou um "prelúdio" ao pensamento da Reforma, percebe-se que a teoiogia escolástica dos st.culos catorze e quinze possui importância intrínseca. As melhores mentes da época propuseram novas soluçóes para velhos problemas referentes a temas como "natureza e graqa", "razáo e revelaçáo", "Deus e o mundo". Suas soluçóes necessariamente diferiram daqueles de seus grandes predecessores, uma vez que eles acreditavam que o escolasticismo anterior, sobretudo o aristotelismo cristão de Tomás de Aquino, tinha bases filosóficas e teológicas vulneráveis à crítica séria. Houve
p t n i i ~vi
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muita controvérsia, proporcionando por vezes puro pedantismo e logomaquia, mas não se ~ o d dizer e que a esterilidade intelectual tenha sido a ordem do dia ou que o pensamento escolástico cardio cenha assinalado a "bancarrota" do escolasticismo. Ele foi, antes, uma nova forma de escolasticismo.
Capítulo 9
O Misticismo, a Devoção Moderna e a Heresia A Baixa Idade Média notabilizou-se não apenas por desenvolvimenros importantes na teologia escolástica. O século catorze também testemunhou um g a n d e florescimento do misticismo, como também a emergência de uma nova forma de piedade popular que buscava conjugar uma vida de devoção interior com uma vida de servi~oativo em e para o mundo. A busca por contato pessoal direto com Deus foi comum a esses fenômenos espirituais, seja através da união mística da alma com Deus ou através do cultivo da vida interior - uma prática da presenqa de Deus - que náo envolvia a experiência mística real. Também foi comum a convicçáo subjacenre de que a regeneraçáo da igreja e da sociedade exigiam uma renovacão religiosa pessoal: uma reiigiáo de verdadeira incerioridade em vez de mera conformidade aos ritos e cerimônias exteriores. Tanto os místicos como os "novos devocionalistas", juntamenre com grupos a eles relacionados, suscitaram amplas e disseminadas suspeitas de heterodoxia e em alguns casos se depararam com condenações oficiais. Tais reacóes foram em parte mot~vadaspelo cemor de que o "caminho experiencial" para Deus inevitavelmente nutriria indiferença e hostilidade para com a igreja ins~itucionale suas ministra~óes sacramentais. Esse temor, como acabou acontecendo, em grande parte náo tinha base alguma, exceto no caso dos "Irmáos e irrnás do Espírico Livre" - uma heresia fundamentada na piedade mística, mas que nunca alcancou a expressáo de um movimento organizado de dissidência e logo foi contido. Certamente, surgiram novos e poderosos movimentos hertticos no final do século catorze e início do quinze - náo, entretanto, entre místicos e devociondisras, mas entre os seguidores de dois eruditos -João Wyclif na Inglaterra e João Hus na Boêmia (ver V: 13).
HISIORIA DA IGREJA ERISTfi
O mais famoso, embora náo o maior representante, dos místicos medievais tardios foi Joáo "Mestre" Eckhart (1260)-1327 ou 1328), um dominicano demáo que estudou em Colônia e Paris, ocupou uma série de ofícios superiores na ordem dominicana na Alemanha, e de 131I até sua morre serviu como professor e pregador em Paris, E s ~ r a s b u r ~e oColônia. Já perto do final de sua vida, ele caiu sob suspeiçáo de heresia, e em 1329 o papa Joáo XXII coildenou vinte e oiro proposiçiies extraídas de seus escritos. Eckhart absonrcra o ensino de Alberto Magno e Tomás de Aquino, mais em seu lado platônico do que em seu lado aristotélico. E o que o conduziu à condenação foi, principalmente, uma série de afirmaçóes descuidadas de origem neoplatônica.
A preocupaçáo central de Eckhart foi a relacáo da alma com Deus. A alma, ensinava, possuía dentro de si uma estrutura especial - aquilo que ele chamava diversamente de "fagulha" (srintilliz, Funklein) ou "base" (Grund) da alma - que é a própria semelhança de Deus e onde Deus habita integralmenre. Algumas das
afirmações de Eckhart indicam que ele considerava tal essência mais interior da alma como alguma coisa não criada, não apenas "semelhante" a Deus em uma semelhanca humana, mas verdadeiramente "uma" com Deus pois existia com Deus antes da criaçáo do mundo e d o tempo. Somente mediante o afastamento
de todos objetos do sentido, pensamenro e vontade, mediante o retiro para sua "base", pode a alma experimenrar o nascimento da Palavra (Filho) de Deus dentro de si mesma e alcanFar a uniáo mística com Deus. Esta uniáo envolve muito mais d o que uma conformacão perfeira da voncade humana à vontade de Deus no êxtase de amor e afeição. Ela náo é nada menos do que uma transformação total da alma em Deus, um rerorno da alma à sua pré-existência eterna em Deus - de falo, uma uniáo inefável da alma náo com Deus (Gott) mas com a profundi-
dade da pura Deidade (Gottheit).Esse misticismo "essencialista" o u "transformador" - táo diferente do misticismo "volunrarista" ou "afetivo" de Bernardo de CLaraval - ofendeu as sensibilidades ortodoxas como sendo panteísta, como fundindo roda existência em Deus ao eliminar a distância ontoiógica entre ser criado e não criado. Posteriormente Eckharr adrniciu que era culpado de exagero, e defendeu suas teses polêmicas oferecendo explicacóes ortodoxas fundamentadas na doutrina agostiniana e conlista.
O principal discípulo de Eckhart foi um companheiro dominicano, Joáo Tauler (1300)-1361?),que pode ter estudado sob Eckhart em Colônia e que alcançou
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fama como pregador e diretor espirirual em Esrrasburgo e Basiléia. Tauler, como Eckhart, identificava dentro da alma uma "fagulha" ou "base" que é a imagem de Deus e local de morada perpétua de Deus, mas foi cuidadoso em afirmar que tal
Grund é uma concessão de Deus, não uma propriedade intrínseca da alma. O retorno da alma para sua Fonte é uma operação de graça e eilvolve uma uniáo das vontades humana e divina, não uma a b s o r ~ á odo ser finito no ser infinito (embora parte da linguagem de Tauler admita esta última interpretação). Lurero, mais tarde, saudaria os serrnóes de Tauler como fonte de "teologia pura", um juízo que frequentemente tem levado os erudicos protestantes a considerarem Tauler um precursor da Reforma - embora o que tenha suscitado a admiração de Lutero náo tenha sido seus ensinos distintivamente místicos, mas sua ênfase na religião interior de sofrimento, auto-negação e dependência da graça.
O terceiro dos grandes místicos dominicanos alemães do sécuIo catorze foi Henrique Suso (1 295?-1360). Nasural de Constança, ele ingressou na ordem dominicana ainda bem jovem e estudou em Colônia, onde entrou em conrato com Tauler e foi bastante influenciado por Eckhart, a que ele habilmente defendeu na esteira da condenação de 1329. Após um período de reclusão ascética, ele passou a uma vida de pregaçáo e ministério pascoral em Cons~ançae Ulm. Suso, como Tauler, falava mais cautelosamente d o que Eckhart, normalmente descrevendo a uniáo mística como uma uniáo de vontades em vez de substância, e insistindo na diferença inerradicável entre ser criado e náo criado. Suso escreveu uma meditaçáo sobre a paixáo de Cristo intitulada Opequeno livro da verdade que alcançou uma ~ o ~ u l a r i d a dquase e tão grande quanto aquela atingida mais tarde pelo A i r n i t a ~ d ode Cristo, de Tomás de Kempis. Todos os três dos grandes místicos alemães exerceram o cuidado pastoral das freiras dominicanas e beguinas (ver V:4)na Renânia e frequencernente dirigiram seus tratados e sermões vernaculares para essas comunidades de mulheres reiigiosas. As freiras reclusas e beguinas haviam há muito "espirituaiizado" o antigo ideal de pobreza absoluta enfatizando o auto-sacrifício interior sobre a renúncia física exterior. O fenômeno conhecido como "misticismo alernáo" pode ser visto como surgindo nesse encontro entre piedade feminina e teologia dominicana, cuidado pelas almas e pregaçáo vernacular. Eckhart, Tauler e Suso também foram as principais fontes de inspiração para Lim grupo de místicos do século catorze, tanto clérigos como leigos, na Renânia
e na Suíqa, que se chamavam "Amigos de Deus" (Gottesfieundel).Deste círculo emergiu um tratado místico anônimo do find do século catorze, Theologid Deutsch (Teologia alemá), o qual teve um profundo impacto no jovem Lutero, que o publicou, com seus próprios prefácios, em 1516 e 1518. Ele também foi amplamente utilizado como um documento básico de "reforma" pelos anabatistas e espiritualistas do século dezesseis.
O crescimento da piedade mística foi ampliado nos Paises Baixos pelo maior dos místicos flamengos, Joáo Ruysbroeck (1293-1381), que por muitos anos foi pároco em Bruxelas até se retirar, em 1343, para um eremitério em Groenendael. Lá, em 1349, ele e um grupo de amigos e discípulos estabeleceram uma comunidade contemplativa de cônegos agostinianos, dos quais ele tornou-se o primeiro superior. Algumas expressóes descuidadas em um de seus primeiros tratados místicos, As bo-
d a espirituats, suscitariam acusaçóes de panteísmo por parte de Joáo de Gerson; entretanto, em seus escritos posteriores, cal como Apedríz cintilnnte, Ruysbroeck foi cuidadoso em afirmar que a uniáo mística com Deus náo envolve a perda da contemplação por pane do ser criado. Ele também insistiu em que a vida contemplativa de "deleites inativos" deve fluir na "vida comum" de boas obras. Conquanto a Renânia alemã e os Países Baixos fossem os principais centros de espiritualidade mística, também houve um florescimento notável de misticismo na Inglaterra, no século catorze. Diferentemente de seus correspondentes continentais, entretanto, os místicos ingleses normalmente eram eremitas e reclusos, não mernbros ativos das comunidades monásticas. Tanto Ricardo Rolle (1300)-1349), autor de Fogo de amor, e Walter Hilton (?-1396),autor de A escala dapefeiçdo, eram eremitas na época em que escreveram suas obras famosas, embora Rolle tenha terminado sua vida como diretor espiritual de freiras cistercienses em Hampole, e Hilton posteriormenre Tornou-se cônego agosciniano. O autor anônimo de A nuvem de inconsciência,que esteve ativo de cerca de 1350 a 1380, parece ter sido um solitário, e Juliana de Norwich (1342?-1416),autora de Revelucóes do amor divino e uma das maiores místicas da Idade Média, foi uma reclusa por toda a vida. 0 s místicos ingleses vari; aram consideravelmente no grau ao qual foram influenciados pelo neoplatonisrno o autor de A nuvem, por exemplo, operava na rradiçáo do pseudo-Dionisio - mas todos eram inteiramente ortodoxos em sua piedade. 'Cf. João 15:14-15: Tiago 2 2 3 .
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A principal mística italiana durante esse período foi a terciária dominicana, Santa Catarina de Siena (1347-1380), que conjugou o arrebatamento místico com um "apostolado" bastante ativo para a igreja e o mundo. Dirigindo-se aos papas e cardeais e à cristandade como tudo, eIa pressionou por um final ao "cativeiro" do papado em Avinháo (ver V: 12). Por vezes o misticismo ocasionou excessos heterodoxos. Em 1312, o concílio de Viena, convocado pelo papa Clemente V (1305-1314), emitiu um decreto condenando oito erros da "seita abominável" de beguinas e begardos (ver V:4). As doutrinas heréticas atribuídas à esta "seita" eram principalmei~tetrês: que é possível atingir nesta vida um estado de perfeiçáo espiritual (impecabilidade) mediante a união total com Deus; que é permissível a esta pessoa "deificada" dispensar todas as externalidades da religiáo, incluindo graGas sacramentais e boas obras; e que tal pessoa não está mais sujeita às leis da igreja ou mesmo a iei moral de Deus. A heresia, resumindo, envolvia "autodeísmo" (a identificação da alma com Deus), "antinomianismo" (o repúdio da lei divina), e um "espiritualismo" radical (a eliminação de todas as ajudas exteriores para a religião). Em 1310, uma beguina de Hainault, Margarida Porete, foi queimada por presumivelmente advogar tais noções heréticas em seu livro, O espelho dxs
almas simples. As autoridades da igreja acreditavam que essa heresia denominada Espírito Livre era obra de uma seita organizada de abrangência internaciond.
A pesquisa moderna tem demonstrado que não existiu tal seita coesa, embora Espíritos Livres, dos quais a maioria eram mulheres, pudessem ser encontrados em muitas áreas urbanas do norte e do sul da Europa. Alguns eram beguinas e begardos, alguns estavam em ordens clericais, e alguns eram independentes, náo tendo vínculo direto com comunidades religiosas. Parece que esses Espíritos Livres eram, no geral, represencanres tardios dos antigos movimentos de "vida apostólica' e "pobreza voluntária", aos quais eles agora haviam adicionado uma grande medida de piedade míscica - a mesma combinaçáo que podia ser encontrada em muitas casas de beguinas e conventos de freiras desde meados do século treze. Todos os grandes místicos do norte da Europa se opuseram aos Espíritos Livres. Estes certamente eram mais radicais do que os místicos ortodoxos; incluindo Eckhart, em seu autoteísmo e em sua frequente negaçáo explícita da necessidade, por parte da alma libertada, dos meios tradicionais de salvação. Longe de serem libertinos, porém, eles normalmente ensinavam que o caminho para a perfeição requer ascetismo extremo e rota1 autonegaçáo, e há pouca evidência de que os "perfeitos" tenham-se engajado em conduta licencio-
sa. Frequentemente é difícil distinguir claramente entre os Espíritos Livres heterodoxos e os místicos ortodoxos, como fica evidenciado no caso de Margarida Porete. O livro dela, O espelho das almas simples,foi copiado e traduzido em muitos mosteiros no final do período medieval, foi aprovado no século quinze pelo papa Eugênio IV, e em 1927 foi publicado em inglês moderno sob a égide dos beneditinos ingleses tudo isso antes que fosse identificado corretamente como obra de uma herege condenada.
O mais disseminado e influente movimento religioso orrodoxo da Baixa Idade Média foi aquele lançado no leste dos Países Baixos - em Deventer e nas cidades vizinhas de Kempen, Z~vollee Windesheim - por Gerardo Groote (1340- 1384) e seu discípulo, Florêncio Radewijns (1350-1400). O movimento logo passou a ser conhecido como a "Devo~áoModerna" (Devotzo moderna), abrangendo três instituicóes que podem ser traçadas até a obra de Groote e Radewijns nas décadas de 1370 e 1380: as Irmás e os Irrnáos davida Comum, esrabelecidas em Deventer, e a comunidade dos cônegos agosrinianos estabelecidos em Windesheim. Os conventos das Irrnás, dos Irmáos e dos Windesheirneres rapidamente se espalharam pelos Países Baixos, Renânia e Vestfália, e dali para o sul e o centro da Alemanha. Groote, nativo de Deventer, rra mestre de artes da universidade de Paris, onde também havia estudado direito, medicina e teologia. Após um período de autoindulgência quando jovem, encorajado por possuir um número de benefícios eclesiásticos (embora eíe náo estivesse em nenhuma ordem sacerdotal), ele experimentou uma conversáo algum tempo após 1370, retirou-se para o mosreiro cartuxo em Monnikhuizen para um período de reflexão, e lá esrudou os escritos dos místicos da Renânia e especialmente de Rqsbroeck, de quem se tornou amigo. Como náo estava inclinado nem para uma vida inteiramente monástica nem para uma vida inteiramente mística, aceitou ordenação como diácono e passou seus anos remanescentes como pregador missionário na diocese de Utrecht. Seus ataques aos abusos contemporâneos, especialmente a imoraIidade clerical e monástica, provocou a revogação, em 1383, de sua licença para pregar. Ele apelou da sentenca ao papa mas morreu antes que seu apelo fosse respondido. Antes de sua morre, Groote havia estabelecido em sua casa de família em Deventer
uma comunidade de mulheres religiosas que formou o núcleo das Irmás da Vida Comum. Estas mulheres leigas irabalhavam para viver, não assumiam votos monásticos, não adotavam hábito, mas buscavam alcançar comunitariamente uma vida de
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serviço a Deus e à sociedade. Elas atraíram muitas jovens para seus quadros, e proliferaram conventos de Irmás por roda a parte ocidenral da Alemanha e nos Países Baixos. As Irmãs, entretanto, aspiravam crescentemente à vida monástica, e no início do século quinze muitas delas haviam se tornado terciárias franciscanas, com seus convenros organizados no "capítulo" de Utrccht. Algumas destas comunidades também adoraram a regra de Santo Agostinho e rorriaram-se estritamente reclusas.
A idéia original de Groote era uma vida de observância religiosa comum sem separaçáo da sociedade secular. Aqueles que permaneceram mais próximos desse ideal foram os leigos Irn-iáos da Vida Comum, a quem Radewijns havia organizado em seu vicariato em Deventer, onde ele era padre paroquial. O s Irmãos passavam muito de seu tempo copiando iivros c trabalhando para a distribuicão de literatura religiosa. O principal trabalho deles era o cuidado pastoral de meninos nas escolas municipais da Holanda e da Alemanha. Com este objetivo eles estabeleceram abrigos onde esses esrudantes podiam encontrar alojamento e alimen~acáoe onde os Irmáos podiam oferecer inszrução religiosa, par~icularmentepara aqueles a quem considerassem vocacionados para a vida monástica ou para o sacerddcio. Os irmáos, com poucas exceções notáveis, não tinham nem forrnaqáo universitária nem 1eoIógica; e foi apenas no final do século quinze, quando a imprensa tornou a cópia de livros antieconômica, que efes passaram a ser professores nas escolas municipais o u esrabeleceram algumas escolas deles mesmos. Tanto Erasmo, em Deventer, como Lutero, em Magdeburg, frequentaram escolas onde os Irn~áoseram dirigentes espirituais, mas não se pode dizer que os Irmãos foram "pioneiros" do humanismo cristão ou da Reforma.
Em 1387, agindo segundo a orientaçáo de Groote, Radewijns havia fur-idado uma comunidade de cônegos agostinianos em Windesheim, criando desse modo condições para pelo menos alguns dos Irmáos buscarem uma vida monástica incegrd. Essa insrituiçáo logo compreendia um grande número de casas espalhadas por um amplo território. A "congregacáo" de Windesheim se disringuiu por sua adesáo estrita à regra agosriniana, e desempenhou um importante papel no rnovimenco ('Observantino" da reforma monástica no final do período medieval.
A "nova devoção" praticada pelos Irmãos e Irmãs da Vida Comum, e pelos Windesheimeres, estava baseada na consciência de uma profunda relacáo com Deus; enfatizava meditaçáo constante na vida e paixão de Cristo; e era nutrida pelas práticas espirituais e ritos tradicionais da igreja. Os Devocionalistas Moder~los,embora
fossem "personalistas" religiosos, náo eram anti-sacramentais ou anti-institucionais, Eles objetivavam apenas derrotar o formalismo na religião e os abusos na vida da igreja mediante a inculcaçáo de uma piedade de "fervor interior". Tal piedade, ademais, era meditativa, não mística. Os devocionalistas raramente abraçaram um misticismo total, e ignoraram em grande medida os escritos dos místicos Bamengos e da Rensnia. O fruto mais nobre dessa piedade conservadora foi um livro cuja circula-
de Cristo,escrito por Tomás de Kernpis (1380)-1471), que passou a maior parte de sua longa vida em $áÓ excedeu a de qualquer outra obra da Idade Média: A imitaçáa
Mounr St. Agnes, um mosteiro da congregação de Winesheim perto de Zwolle.
Capítulo 10
Missóes e Derrotas O período entre as Cruzadas e a Reforma foi de ganhos e perdas para a cristandade. Na Espanha, as forças cristãs lutaram com crescente sucesso contra os muçulmanos. Gradualmente, quatro estados cristáos dominaram a península. Castela conquistou Toledo em 1085, derrotou os muçulmanos em Las Navas de Tolosa em 12 12, e unindo-se com Leão em 1230 formou um estado vigoroso. A pequena Navarra expandiu-se por ambos os lados dos Pirineus. Entrementes, Aragáo no leste e Portugal no oeste estavam conquistando sua independência, de forma que em 1250 o poder islâmico na península estava confinado ao reino de Granada, de onde seria expulso em 1492. Os reinos cristáos espanhóis eram fracos e estavam constantemente em guerra entre si mesmos. O verdadeiro poder de Espanha náo se manifestaria até o reino unido de Fernando e Isabel conjugando Castela e Aragáo em 1479. No Oriente, o !grande império rnongol, que se iniciara com a conquista da China setentrional em 1208, estendeu-se pelo norte daÁsia, conquistando grande parte da Rússia meridional entre 1238 e 1241 e alcançando as fronteiras da Palestina em 1258. Esta conquista quase aniquilou a florescente igreja nescoriana na &ia central (ver III:9). Contudo, logo que o primeiro ímpeto da conquista terminou, a Ásia central sob controle mongol ficou acessível como nunca estivera antes e como tal náo ficaria novamente senáo no século dezenove. Por volta de 1260, dois mercadores
venezianos, Nicolau e Maffeo Polo, fizeram uma longa jornada terrestre até Pequim, onde foram bem recebidos pelo cá mongol, Cublai. Eles retomaram para a Itália em 1269 e dois anos depois foram novamente para a China, desta vez levando consigo Marco, o filho mais famoso de Nicolau, o qual ingressou no serviço do cá. Os Polos voltaram para Veneza somente em 1295. Mesmo antes do retorno deles, um franciscano italiano, Joáo de Monte Corvino, havia partido em 1291 para Pequim, onde estabeleceu uma igreja por volta de 1300. O cristianismo floresceu ali por um período. O papa Clemente V (1305-1 3 14) nomeou João como arcebispo, com seis bispos sob sua jurisdição. A obra terminou, porém, em 1368 quando os mongóis e outros estrangeiros foram expulsos da China pela vitoriosa dinastia Ming nativa. Foram realizados esforços para alcançar os muçulmanos, mas com pouco sucesso.
O próprio Francisco de Assis pregou para o sultão no Egito em 1219. Mais famoso como missionário foi o terciário franciscano, Raimundo Lu10 (1232?-1315?),natural da ilha Maiorca. Em 1263 se converteu de uma vida totalmente mundana, e assumiu o estudo do árabe como preparacão missionária, escrevendo também sua
Ars Mdgna (ca. 1274),a qual ele considerava uma dernonstraçáo irrefirtável da verdade do cristianismo para os muçulmanos filosoficamente preparados. Em 1293 ele iniciou seu trabalho missionário em Tíinis, apenas para ser expulso no final de um ano. Esforçou-se para induzir o papa a estabelecer escolas para o preparo missionário. Ele foi uma vez mais para a África em 1307 e foi novamente expulso. Sua eloqüência persuadiu o concílio deViena em 131 1 a ordenar o ensino de grego, hebraico, "caldeu" e árabe, em Avinháo, Paris, Salamanca, Bolonha e Oxford, embora isso náo tenha passado de piedosa intençáo. Ele foi novamente a Túnis em 1314, e a tradiçáo diz que lá morreu como mártir, apedrejado, no ano seguinte. Ele teve pouco para mostrar como redizaçáo missionária, mas muito como inspiração missionária.
A característica dominante nesse período foi a perda de territórios outrora cristáos. A última das conquistas dos cruzados na Palestina saiu de seu poder em 1291. Surgia um novo poder islâmico, os turcos otomanos. Oriundos da Asia central, por volta de 1300 alcansaram sua independência na Ásia Menor. Em 1354 invadiram a parte européia do império oriental, conquistando Adrianópolis em 1361 e expandindo pouco a pouco seu domínio sobre os Bálcás. Um fragmento do império perdurou até 1453, quando Constantinopla caiu e desapareceu o império bizantino. O avanço vitorioso dos turcos os conduziria, lia época da Reforma, aos portóes de Viena. Os cristãos governados por eles foram privados de seus direitos políticos,
43 O
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÁ
embora a organizaçáo e o culto cristão continuassem, mas sob condiçóes de muita opressáo. O cristianismo bizan[ino, entretanto, não sofreu um declínio abrupco após a queda de Constantinopla. Durante os séculos dezesseis e dezessete os teólogos ori-
enrais, em parte respondendo as definiFóes doutrinárias protestantes e católicas romanas, expuseram os ensinos distintivos do cristianismo oriental em formulaqóes sistemáticas e confissóes de fé abrangentes. A primitiva tradição bizantina também experimeneou uma revitalizaqáo mediante seu estabelecimento na Rússia e em outros territórios eslavos.
O Papado em seu Apogeu e Declinio O conflito entre o papado c o império não terminou de forma alguma com a concordata de Worms em 1 122 (ver IV: 13), mas dali em dianre o interesse religioso na disputa foi muito menor. ,4 querela que marcou época entre Gregório VI1 e Henrique IV havia envolvido a grande questáo da purificaçáo e "desfeudaiizaçáo" da igreja. As disputas posteriores foram simplesmente lutas pela supremacia. Frederico I, o Barba Ruiva (1152-1 190), da casa dos Hohenstaufen, foi um dos mais hábeis imperadores do Santo Império Romano. Seu modelo foi Carlos Magno, e Frederico aspirava a semelhante controle dos assuntos eclesiásticos. A despeito da concordata de Worms, ele praticamen~edeterminava a nomeaçáo dos bispos alemães. Por outro lado, suas pretensóes encontraram resistência enérgica por parte das cidades autônomas da Itália setentrional. No início ele venceu com sucesso essa hostilidade. Com AIexandre I11 (1 159-1 181), ascendeu ao trono papal o inimigo mais capaz de Frederico. Durante a elei~áode Alexandre os cardeais ficaram divididos e uma minoria favorável ao império elegeu um papa rival, que escolheu o nome de Vítor IV, tendo este recebido apoio imediato dos bispos alernáes e de Frederico. Alexandre ficou em posiçáo difícil por muito tempo. Porém, em 1 176, Frederico foi derrotado em Legnano pela liga lombarda de cidades italianas, e forçado a reconhecer Alexandre. A tentativa de Frederico para controlar o papado foi anulada, mas sua
PERIDBO Y
A IORBE MEUIA POSTERIOR
431
autoridade sobre os bispos alemáes pouco diminuiu. Em 1186, ele ~ b r e v egrande êxito com o casamento de seu filho Henrique com a herdeira da Sicília e da Itália meridional, ameaçando assim os estados papais pelo norre e pelo sul. Alexandre também obteve uma vitória no mínimo aparente sobre Henrique 111 (1 154-1189), um dos mais hábeis reis ingleses, quc em 1162 conseguira a eleição de --? 2-m
seu aparentemente complacente chanceler, Tomás Becket (11 18?-1170), para arce-
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bispo de Cantuária. Uma vez no cargo, Becket revelou-se defensor obstinado das
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reivindicações eclesiásticas. Em 1164, entáo, Henrique conseguiu a aprovação das Consciruições de Clarendon, limitando o direito de apelo a Roma em casos eclesiásricos, restringindo o poder de excomunhão, sujeitando o clero às cortes civis e colocando a eleiçáo dos bispos sob o controle do rei, a quem eles deviam homenagem. Nesse momento Becket rompeu abertamente com Henrique. Em 1170 alcançaram uma trégua, mas ela foi de pequena duracáo, e uma fúria repentina da parre de Hcnrique cuiminou com o assassinato de Becket pelas mãos de cavaleiros normandos no final do ano. Alexandre utilizou-se desse crime com maestria. Becket foi canonizado pelo papa em 1173 e atb a Reforma foi um dos mais populares santos ingleses. Henrique foi forcado a abandonar as Consrituiçóes de Clarendon e a fazer penitência pública na sepultura de Becket. No entanto, mesmo com esse aparente rriunfo papal, Henrique manteve seu controle dos assuntos eclesiásticos ingleses tanto quanto antes. Frederico Barba Ruiva morreu em 1190 na Terceira Cruzada. Ele foi sucedido por seu filho, Henrique VI (1 190-1 197), que em 1 194 obteve plena posse da heranca de sua esposa na Sicília e na Icália meridional e desenvolveu planos ambiciosos de alargar amplamente seu domínio imperial. O papado, com os dois extremos da Itália nas máos do soberano alemáo, ficou em grave perigo político, mas a situacáo foi aliviada com a morte prematura de Henrique VI em 1197 e a ascensão ao papado em
1198 do maior de todos os papas medievais, Inocêncio I11 (1 198-1216), sob quem o papado atingiu seu mais elevado grau de poder nos assuntos temporais.
A morte de Henrique VI deixou a Alemanha dividida. Um partido apoiava as pretensóes de Filipe da Suábia, irmão de Henrique, outro as de Oto de Brunswick, da casa rival de Welf (Guelfo). Inocêncio esforçou-se com maestria para obter vantagem dessa situaçáo para o papado. Ele conseguiu de Oto grandes concessóes na Itália e na Alemanha, e quando Filipe gradualmente conquisrou o controle político, Xnocêncio conseguiu um acordo pelo qual as pretensóes do rival seriam submetidas a
uma corte controlada pelo papa. O assassinato de Filipe em 1208 frustrou esse plano e colocou Oro uma vez mais na dianteira- Inocêncio então conseguiu de Oro a ambicionada garantia da extensão dos estados papais e uma promessa de desistir do controle das eleições episcopais alemás, e na força dessas concessóes ele coroou Oto imperador em 1209. Oto imediatamente esqueceu de todas as suas promessas. O --
papa furioso apoiou Frederico I1 (1212-1250), o jovem filho de Henrique VI. Em
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1212 Frederico foi nomeado para o trono alemáo pelos opositores de Oto, e ele
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restabeleceu rodas as promessas quebradas por @to. Em 1214 Oto foi derrotado pelo rei francês, Filipe I (1 179-1223), no campo de Bouvines, e Frederico foi confirmado no trono imperial. Assim, Inocêncio I11 pareceu ter defendido integralmente as pretensões papais e ter ditado a sucessão imperial. A supremacia jurisdicional do papado parecia concretizada. Inocêncio I11 não foi menos feliz na humilhação de soberanos de outras terras.
Ele obrigou o poderoso Filipe TI, por meio de um interdito, a receber novamente sua rainha, Ingeborga, de quem Filipe havia injustamente se divorciado. Ele separou o rei Afonso IX de Leão da esposa de quem era parente mui próximo. O rei Pedro de Aragão recebeu seu reino do papa como feudo. A maior vitória aparente de Inocêncio, porém, ocorreu na Inglaterra. O cruel e impopular rei Joáo (1199-1216), logo após uma eleifáo dividida ao arcebispado de Cantuária, procurou impor seu candidato. A disputa foi levada a Roma. O candidato do rei foi preterido e um amigo de Inocêncio, Estêváo Langton (?-1228),foi nomeado em 1207. Joáo resistiu. Inocêncio submeteu a Inglaterra a um interdito. O rei expulsou seus oponentes clericais. O papa o excomungou, declarou seu trono vago e prociamou uma cruzada contra ele. O rei derrotado náo apenas submeteu-se humilhantemente ao papa, em 1213, como também reconheceu seu reino como um feudo do papado, concordando em pagar uma taxa feudal anual ao papa. Nos assuntos internos da igreja a política de Inocêncio foi altamente centralizadora. Ele reivindicou para o papado o direito de decisão em todas as eleifóes episcopais contestáveis. Afirmou sua autoridade exclusiva para sancionar a transferência de bispos de uma sé para outra. Sua cruzada contra os cátaros já foi citada (ver V:3). O Quarto Concílio de Latrso de 1215, no qual a tran~ubstancia~áo foi declarada artigo de fé e se exigiu confissáo e comunhão pelo menos uma vez por ano. A conquista de Consrantinopla pela Quarta Cruzada (ver V: l ) , mesmo náo aprovada por Inocêncio, parecia prometer a sujeiçáo da igreja grega à autoridade papal.
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O papado alcançou o apogeu de seu poder temporal com Inocêncio 111. Os papas que o sucederam prosseguiram na mesma luta, mas com sucesso sempre menor. O imperador Frederico 11, soberano da Alemanha como também do norte e do sul da Itália e da Sicilia, homem de notável habilidade política mas de nenhuma piedade medieval, embora ocupando o posto devido em grande parte ao apoio de Inocêncio 111, logo revelou-se o principal oponente das pretensóes políticas do papado. Sob Gregório IX (1227-1241), o organizador da Inquisiçáo e patrono dos franciscanos, e Inocêncio IV (1243-1254), a luta papal foi arremetida contra Frederico I1 com a mais profunda amargura e com armas bastante mundanas. Frederico foi excomungado, e seus adversários na Alemanha atiçados contra ele devido à influência papal. O papado parecia convencido de que somente a d e s t r u i ~ á oda linhagem dos Hohenstaufen asseguraria sua vitória. Depois da morte de Frederico em 1250, o papado perseguiu seu filho, Conrado IV (1250-1254), com a mesma hostilidade, e deu sua herança na Itália meridional e na Sicília a Edmundo da Inglaterra, filho do rei Henrique 111. Mas uma nova influência, a da Franca, estava se fazendo sentir nos conselhos papais. Urbano IV (1261 -1264) era francês e nomeou cardeais franceses. Em 1263 ele concedeu a Itália meridional e a Sicília a Carlos de Anjou, irmão do rei Luís IX da França (1226-1270). Este foi um ponto de mudança na política papal, pois com ele iniciou-se a dependência do papado em relação à França. O próximo papa, Clemente IV (1265-1268), também era francês. Duranre seu papado, Conradino, o jovem
filho de Conrado IV, confirmou suas reivindicaçóes hereditárias em relação a Irália meridional e à Sicília pela força das armas. Ele foi excomungado por Clemente IV e derrotado por Carlos de Anjou, por ordem de quem foi decapitado em Nápoles em
1268. Com ele encerrou-se a linhagem dos imperadores Hohenstaufen, a quem os papas haviam-se oposto táo vigorosamenre. Porém, não há razão para se crer que o papa tenha sido responsável pela execuçáo de Conradino. Estas longas querelas e a consequente coniúsáo haviam debilitado grandemente o poder do Santo Império Romano. E desde então até a Reforma ele foi mais um grupo de débeis estados do que uma efetiva monarquia. E assim náo foi capaz de resistir às exigências papais. Estavam surgindo outras forças, no entanto, que inevitavelmente tornariam impossível uma soberania como a que fora exercida por Inocêncio 111. Uma dessas forças foi um novo sentimento de identidade nacional, o qual fez as pessoas sentirem que, como franceses ou ingleses, tinham interesses comuns contra
todos os estrangeiros, inclusive o próprio papa. Um segundo fator foi o aumento da influência econômica e política da classe média urbana, bem como de seus quadros in~electuais.As cidades estavam irritadas com a interferência eclesiástica nos assuntos temporais. Estreitamente relacionado com esse desenvolvimento estava o crescimento de um corpo de advogados leigos e a renovaçáo do estudo do direito romano. Estes leigos, que estavam pouco a pouco substituindo os eclesiásticos como conselheiros dos reis, gadualmente consolidaram o poder real fundamentando-o em um corpo de leis - o romano
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que desconhecia totalmente as condi~óeseclesiásticas
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medievais. Havia também, entre as pessoas observadoras e piedosas, a crescente con-
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viccáo de que objetivos mundanos tais como aqueles perseguidos pelos papados re-
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ccnces eram incomparíveis com os verdadeiros interesses da igreja. De um ponto de vista político, o papado estava debilirado, uma vez que náo dispunha de forças mate-
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riais adequadas. Ele poderia apenas lançar um competidor concra outro. O desastre
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ocorrido na Alemanha abrira a porta para que a França se tornasse o principal opo-
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nente, e praticamente não encontrando muita resistência do papado na política eu-
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ropéia.
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A interferência papal na Alemanha prosseguia. O papa Gregório X (1271-1276) ordenou que os eleitores alemáes, em 1273, escolhessem um rei, sob a ameaça de que
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o próprio papa faria a indicacão se eles falhassem. Eles escolheram RodoIfo I de
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Habsburgo (1 273-1 291), que prontamente renovou as concessões que haviam sido
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feitas ao papado anteriormente por Oto IV e Frederico 11.
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A situacão era bastante diferente na França. O poder da monarquia dos Capetos vinha crescendo rapidamente, e em Filipe
[V,conhecido como
"o Belo", a França
encontrou um rei inescrupuloso, obstinado e imbuido dos mais arrogantes conceitos
de autoridade real. O papado era então ocupado por Bonifácio VI11 (1294-1303), um papa que náo perdia para ninguém em suas aspiraçóes à autoridade suprema nos assuntos temporais. Em 1295 a França e sua aliada, a Escócia, entraram em guerra com a Inglaterra, o que obrigou o rei inglês, Eduardo 1 (1272-1307), a buscar o apoio de todos os seus súditos convidando os representantes dos Comuns a tomarem assento no Parlamento, concedendo-lhes assim uma parcela. permanente nos conselhos nacionais ingleses. A guerra também induziu os reis francês e inglês a taxarem seus cleros para poderem pagar suas despesas. Os clérigos reclamaram ao papa Bonifácio, que em 1296 publicou a bula Clericis laicos, lançando a excomunháo sobre rodos que exigissem ou pagassem tais tributos sobre a propriedade clerical sem
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A IDAOE MEDIA POSTERIOR
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permissáo papal. Filipe replicou proibindo a saída de dinheiro da Franca, golpeando assim as rendas do papa e dos banqueiros italianos. Estes úlcimos convenceram Bonifácio a modificar sua posição de forma que o cIero pudesse fazer coi~tribuiçóes voluntárias. Ele chegou até mesmo a permitir que, em casos de necessidade urgente, o rei poderia criar um imposto. Foi uma vitória da realeza. Uma paz relativa reinou entre Filipe e Bonifácio por alguns anos, mas em 1301 a luta recornefou. Filipe acusou de alta traicáo e mandou prender a Bernardo Saisset, bispo de Pamiers, a quem o papa havia recentemente enviado à coroa francesa como núncio papal. Bonifácio ordenou a Iibertaçáo de Bernardo e intimou os bispos franceses, e por fim o próprio rei, a comparecerem a Roma. Filipe replicou convocando a primeira reuniáo conjunta do clero, nobreza e comuns na Franca, denominada Estados Gerais. Em 1302 esse corpo apoiou o rei em sua postura de resistência. O papa respondeu com a famosa bula Unanz sanctam, o ponto culminante das reivindicações papais ?L autoridade jurisdicional suprema sobre os poderes civis. Ela afirmava que os poderes temporais estáo sujeitos à autoridade espiritual, a qual, na pessoa do papa, somente pode ser julgada por Deus. Ela declarava, seguindo a opiniáo de Tomás de Aquino, "que é absolutamente necessário para a salvagáo de cada criatura humana que ela esteja sujeita ao pontífice romano"' - uma afirmacão cujo exato significado tem gerado muita discussão. Filipe respondeu com uma nova assembléia, na qual o papa foi acusado de uma série absurda de crimes, envolvendo heresia e depravaçáo mord, e foi publicado um apelo por um concílio geral d i a n ~ edo qual o papa pudesse ser julgado. Filipe estava determinado a não deixar que isso permanecesse uma mera ameaça. Portanto ele enviou para a Irália Guilherme de Nogaret, seu vice-chanceler, que era um jurista hábil e que havia feito uma aliança com os Sciarra Colonna, uma antiga família inimiga de Bonifácio. Juntos eles reuniram uma força militar e aprisionaram Bonifácio em Anagni, na hora em que ele iria anunciar a excomunháo de Filipe, em 1303. O corajoso Bonifácio náo faria concessáo alguma. Seus amigos logo o libertaram, mas um mês mais tarde ele faleceu. Estes eventos representaram um rude golpe nas reivindicações temporais do papado. Náo porque os partidários de Fiiipe houvessem, ainda que por pouco tempo, aprisionado o papa. Surgira uma nova força - o sentimento nacional - e para ela apelou o rei, rendo obtido êxito, pois contra ela as armas espirituais do papado fo'H. Retrensoii, ed., D O C K ~ dz ~ &qa ~ ~ OCrirtá, J 3" çd. (São Paulo, 1998), p. 194.
43 6
R~ITÓRI
I A IGREJA C R I X T ~
ram de pouca serventia. A realização permanente da esperança papal de governar os
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negócios temporais mostrou-se impossível.
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Mas a seguir viriam coisas piores ao papado. Depois da morte do sucessor de
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Bonifácio, o excelente Bento XT (1303-1304), os cardeais escolheram um francês, Bertrando de Got, que assumiu o nome de CJemente V (1305-1314). Homem de caráter fraco, pouca experiência e saúde debilitada, Clemente não foi páreo para o implacivel Filipe. Eventualmente ele declarou Filipe inocente do ataque sobre
Capi
Bonifácio VIII, cancelou os interditos e excomunhóes e modificou a bula Unam
-
sanctam para agradar o rei. Filipe também forcou o infeliz papa a participar na cruel destruiçáo dos Templários (ver V:l). Em 1309, ademais, após quatro anos de perambulaçáo pelo sul da Franca, Clemente V decidiu residir ern Avinháo - às margens do Rbdano. Avinháo náo pertencia ao reino francês, mas na avaliaçáo popular a acáo de Clemente equivaleu ao estabelecimento do papado na França. A situaçáo complicada cta política italiana teve, sem dúvida, algo a ver com essa transferência, embora não tenha sido senáo no pontificado de Bento XII (1334-1342) que houve uma clara sinalização de que os papas pretendiam permanecer em Avinháo. E assim o papado permaneceu ali de 1309 até 1377, um período de tempo táo semelhance àquele do exílio tradicional dos judeus, que acabou por receber o nome de "cativeiro babilônico" - uma designação empregada pela primeira vez pelo poeta italiano Petrarca (ver V: 15), que partilhava da avaliação concernporânea de que o papado estava encáo cativo da coroa francesa. O tormentoso pontificado de Clemente V também é interessante por assinalar a conclusáo das coleções medievais oficiais de direito canônico. Este conjunto de legislação foi o produto da história da igreja desde os prrmeiros conciIios, abarcando suas decisóes como também os decretos dos sínodos e dos papas. A Idade Média havia vlsto muitas coleçóes, das quais a mais famosa fora o assim chamado Decretum de Graciano de Bolonha, realizada por volta de 1140 (ver V:5). O papa Gregório IX determinara a formação de uma colecáo oficial, em 1234, incluindo os decretos recentes, atualizando-a até a sua época. Bonifácio VI11 publicara uma atudizaqao semelhante em 1298, e Clemente V aumentou-a em 1314, embora sua obra não tenha sido publicada senáo em 1317, sob seu sucessor, Joáo XXII. Esta grande estrucura de jurisprudência eclesiástica, conhecida como o Covpw iuris canonici, abrangia todos os domínios da vida eciesiástica. Embora náo tenha havido mais nenhuma coleçáo oficial até o século vinte, continuou a criação de direito eclesiástico. Final-
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A IDADE MEDIA POSTERIOR
43 7
mente, em 1904, o papa Pio X ordenou a uma comissáo a codificacáo e simplificação de todo o conjunto de direito canônico. Em 1927, seu sucessor, Bento XV, Ir de
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promulgou o Codex iuris canonici (cinco "livros" contendo 2.414 cânones).
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Capítulo 12
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O Papado em Avinháo; Defensores e Críticos do Papado; o Grande Cisma
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Todos os papas no período em que o papado esteve em Avinháo (1309-1377) foram franceses, e a grande maioria dos cardeais ocupavam sés episcopais francesas.
O mais capaz dos papas de Avinháo foi inquestionavelmente Joáo XXII (1316-1334). A dupla eleicáo imperial na Alemanha, em 13 14, dividira aquele país entre os defensores de Luís, o Bávaro (13 14- 1347) e aqueles de Frederico da Áustria (13 14- 1326). Joáo XXII, apoiado pelo rei Filipe V da França (13 16-1322),julgou que havia chegado o momento para diminuir a influência alem5 na Itália em benefício dos estados papais. Ele negou-se a reconhecer ambos os contendores e declarou, ademais, que o papa tinha o direito de administrar o império durante a vacância. Quando Luís interferiu nos assuntos italianos, o papa excomungou-o, iniciando-se assim uma disputa entre ele e o papado, que durou até sua morte. No decorrer dessa disputa, os eleitores aiemáes publicaram a declaração de 1338, em Rense (confirmada pelo Reichstag em Frankfurt no mesmo ano), que dizia que o chefe eleiro do império náo precisava de nenhuma aprovação do papada para assumir integralmente ou continuar no exercício de seu cargo. Na prática, o império estava totalmente divorciado do papado. Dois frades agostinianos, Giles de Roma (1245)-1316) - cujas idéias constituíram a bula papal Unam sanctam (1 302) - e Jaime de Viterbo (1255?-1308),propuseram durante o pontificado de Bonifácio VI11 afirmaçóes extremadas da plenitude papal de poder em assuntos temporais. Mais tarde juntou-se a eles outro monge agostiniano, Augustinus Triumphus (1243-1 328), que defendia que todos os príncipes governam sujeitos ao papa, o qual pode depô-los quando quiser, enquanto que o
43 8
HISI!jRIA DA IGREJA CRISTÁ
papa não pode ser julgado por ninguém, "pois a decisáo e o tribunal de Deus e do papa são um." Estas reivindicações papalistas ou "hierocráticas" foram refutadas por, entre outros, Joáo de Paris (?-1306), um dominicano francês que argumenrou que a igreja e o estado não estáo relacionadas como superior a inferior, mas como dois poderes autônomos, cada um soberano em sua própria esfera. Outro defensor desse "paralelismo" entre os dois poderes foi o maior de todos os poetas medievais, Dante hlighieri (1265-1321). Em seu tratado em latim, De mo~znrrhia,escrito entre 1308 e
131 1, Danre defendeu que apenas um império universal, especificamente aquele de um imperador romano, poderia produzir o estado de paz essencial para a atividade civilizada. Este poder do império é táo necessário para a felicidade temporal da humanidade como o governo papal para sua bem-aventuran~aeterna. Cada uma destas autoridades é proveniente direramente de Deus, e uma náo deve interferir na esfera própria da outra. Muito mais radical do que Joáo de Paris e Dante foi o principal "apologista real"
t2
da época, Marcílio de Pádua (1280?-13431), que fora educado primariamente em
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medicina, náo em teologia. Em 1313, ele tornou-se reitor da universidade de Paris, e
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lá, em 1324, completou o mais notável dos [rarados políticos medievais, Definsor
1
pacis. Suas idéias extremadas levaram ~Marcílio,juntamente com seu assistente, Joáo de Jandun (1275?-1328),a se refugiar na corte do imperador Luís, o Bávaro, cuja proteçáo eles desfrutaram pelo resto de suas vidas. Eles foram excomungados pelo papa Joáo XXII em 1327, e Clemente VI declarou em 1343 que Dejnsor dapaz era
o livro mais herético que ele jamais lera, Marcílio, que era deveras versado em Aristóteles e bom conhecedor de direito canônico, defendeu que a base de todo poder é "o povo",
OU
seja, o conjunto total de
cidadáos (uniriersitasciuium) no estado, e o conjunto total de fiéis (univeisitasjdeli~m) na igreja. Eles são o poder Iegislativo; os govcrnantes políticos e eclesiásticos sáo nomeados por eles e sáo responsáveis para com eles. Os clérigos náo possuem nenhuma jurisdiçáo coercitiva sobre os assuntos temporais. O único dever deles é ensinar, admoestar, reprovar e desse modo conduzir as pessoas à salvaçáo, que é totalmente espiritual. O Novo Testamenro ensina que "bispo" e "sacerdote" são designaçóes equivalentes, embora seja adequado, como um arranjo puramente humano, indicar alguns clérigos superintendentes sobre outros. Essa indicacão náo concede poder espirituaI superior, nem um bispo tem autoridade espiricud sobre outro, nem o papa sobre rodos, exceto como uma primazia de honra tradicional. O Novo Testamento
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5L. L
PERIOBO Y
A IDADE MEDIA PISTERIOR
4.39
do
náo fornece nenhum fundamento nem para os clérigos possuírem propriedades e
30i,
senhorios terrenos nem para ficarem isentos da lei civil. Nenhum sacerdote ou prela-
zue a
do tem autoridade para definir a verdade cristá normativa, promulgar leis eclesiásti-
: dois
cas obrigatórias ou impor interditos e excomunhóes sobre governantes e províncias.
case
Estas ações somenre podem ser feitas pelo conjunto dos fiéis, representados em um
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concílio geral. Tal concílio é a autoridade suprema na igreja, e seus juízos são infalí-
3118 e
veis. Uma vez que o estado cristáo e a igreja cristá sáo coincidentes - Marcílio náo
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imaginava um estado totalmente secular ou uma divisão
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execucivo do estado pode convocar concílios, nomear bispos e controlar proprieda-
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des eclesiásticas. Ali encontravam-se idéias que iriam produzir frutos na época da
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entre
religião e política - o
Reforma, mas eram muito radicais para serem amplamente aceitas em sua própria época. As rei~indica~ões dos papalistas extremados, porém, também iiáo eram tão acei-
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tas. Elas estavam longe de ser partilhadas pelos alemáes engajados na disputa com o
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papado pela autonomia política do império, ou pelos ingleses em guerra com a Fran-
e
ça, que consideravam o papado em Avinháo uma toIice do soberano francês. Já em
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1265, o papa Clernen~eIV afirmara o direito do papa de nomear
cargo
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eclesiástico em qualquer lugar da cristandade; este novo princípio foi utilizado quase
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ilimitadamente por Clemente V e os papas que o sucederam em Avinháo. Tais nomeados eram chamados 'provisores", e a intrusáo de protegidos papais na Inglaterra provocou o rei e o Parlamento a promulgarem em 1351 o Estatuto dos Provisores,
que proibiu todas as provisões papais. Esca lei inevita~~elmence suscitou dispuras entre a autoridade real e a papal, e um outro estatuto de 1353, conhecido como Prilemunire, proibiu apelos para fora do reino sob pena de banimento. Na prática, estes estatutos acabaram sendo letra morta, mas demonstram o crescimento de um espírito na Inglaterra que seria ilustrado ainda mais em 1366, quando o Parlamento revogou a açáo tomada pelo rei Joáo em 1213, por meio da qual ele havia tornado a Inglaterra um feudo papal. Nenhum rraço do papado em Avinháo contribuiu ranto para sua crítica, ou para a oposicáo política e religiosa, como sua tributação opressiva da vida eclesiástica. Tal tributacáo já alcançara proporçóes escandalosas no século treze, mas a situaçáo agravou-se muito quando a transferência do papado para Avinháo diminuiu bastante as rendas provenientes dos estados papais na Itália central, sem diminuir a luxúria ou os elevados custos da corte papal. O s papas de Avinháo desenvolveram um siscema de
administração centralizada que foi o mais sofisticado da Idade Média, e essa poderosa máquina burocrática naquele momento dedicou-se a aumentar as rendas papais. Um meio principal para este fim foi a introduçáo dos "anaces", um imposto de aproximadamente a renda de um ano de cada nova nomeação. Uma vez que a "reserva" de postos para exclusiva nomeação papal foi simultaneamente aumentada imensamente, isso tornou-se uma grande fonte de renda, da mesma forma que o retorno resultante para o papado dos benefícios que ficavam vagos. As taxas para bulas e oucros documentos papais também aumentaram rapidamente em valor e em quantidade. Estas eram apenas uma parte dos impostos papais, e o efeito cumulativo foi a profunda convicção de que a adminisrração papal estava ficando cada vez mais pesada para o clero, e por meio deste, para o todo da populaqáo. Este sentimento foi intensificado pela maneira implacável na qual as censuras eclesiásticas, como as excomunhóes, eram impostas sobre contribuintes delinqüentes. O papado parecia extravagante em seus gastos e agressivo na tributaçáo. Sua reputaçáo em ambos os aspectos pioraria ainda mais até a Reforma. Muitos dos papas em Avinháo, é preciso adicionar, foram homens de bom caráter, e alguns tentaram valentemente administrar os arranjos existentes sem abusar; mas nenhum rompeu rotalmenre com o deletério "sistema de benefícios" que tratava os cargos eclesiásticos (benejctn) como peças de propriedade para serem vendidas, compradas, trotadas, penhoradas e, sobretudo, tributadas. Este sistema era em gran-
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de parte uma operaqáo de captaçáo de recursos e portanto tinha pouca preocupaçáo
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intrínseca para com a atividade pastoral da igreja. A centralizacão papal, ademais,
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diminuiu crescentemente a autoridade dos bispos sobre suas dioceses e dessa forma
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esvaziou a diocese local de sua importância [radicional como a unidade básica da
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vida eclesiástica. Logo, a igreja em sua totalidade iria sofrer choques ainda maiores
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devido à sua divisáo em duas, e depois em três, "obediências" papais concorrentes. Em 1367 o papa Urbano V (1362-1370) retornou a Roma, mas em 1370 ele e sua corte estavam novamente em Avinháo. Ele foi sucedido por Gregório XI (13701378), a quem Santa Catarina de Siena (1347-1380) e Santa Brígida da Suécia (1300?1373) rogaram em nome de Deus que retomasse a Roma. O estado anarquizado da cidade, na esteira da revolução popular encabeçada ali em 1347 por Cola di Rienzo (1313-1354), aconselhava cambém sua presença ali para que os interesses papais fossem preservados. Diante disso, ele transferiu o papado para Roma, em janeiro de 1377. Portanto, quando da morte de Gregório XI em março de 1378, muitos dos
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cardeais encontravam-se em Roma. A maioria francesa entre eles gostaria de retornar
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a Avinháo. O povo romano, porém, estava determinado a manter o papado em Roma,
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e para este fim exigiram um papa italiano. Sob condiçóes tumultuadas, os cardeais
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escolheram Bartoiomeu Prignano, arcebispo de Bári, que assumiu o nome de Urba-
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no V1 (1378-1389). Um homem sem tato, que dmejava terminar com a influência
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francesa sobre o papado e realizar algumas reformas na corte papal, Urbano VI logo
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suscitou a hostilidade dos cardeais. Quatro meses após sua eleiqáo, doze dos dezesseis
::dade.
cardeais reunidos em Anagni declararam nula sua escolha anterior porque havia sido
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d i ~ a d a . ~ eviolência la ~ o p u l a re, elegeram o cardeal Roberto de Genebra como papa
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Clemente VI1 (1378-1394). Alguns meses mais tarde, Clemente VI1 e seus cardeais
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estavam estabelecidos em Avinháo. O Grande Cisma havia comeqado.
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Anteriormente houvera muitos papas rivais, mas eleitos por elementos diversos.
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Mas agora existiam dois papas, ambos devidamente eleitos pela maioria do mesmo
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corpo de cardeais. A cristandade latina agora assistia ao espetáculo de dois papas
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digladiando-se e excomungando-se um ao outro. Aparenrernence não havia nenhum ~ o d e que r pudesse decidir entre eles, e os diversos países seguiram a um ou ao outro conforme ditavam suas afinidades políticas. O papa romano era reconhecido na Itália setentrional e central, na maior parte da Alemanha, Boêmia, Polônia, Hungria, Escandinávia e Inglaterra. O papa de Avinháo tinha a fidelidade da França, Espanha, Escócia, Nápoles, Sicília e algumas partes da Alemanha. Foi uma divisão bastante equilibrada. A Europa estava entristecida e escandalizada, enquanto os abusos papais, especialmente a tributagáo, estavam aumentando, principalmente porque duas cortes (cada uma com seu próprio colégio de cardeais) tinham que ser susrentadas. Mas acima de tudo, fora ultrajado o sentimento profundo de que a igreja deve ser visivelmente uma só. E o papado decaiu sobremaneira na consideração popular.
Em Roma, Urbano VI foi sucedido por Bonifácio IX (1389-1404), e este por Inocêncio VI1 (1404-1406), que foi seguido por Gregório XII (1406-141 5). Em Avinháo, Clemenre VI1 foi sucedido por um espanhol, Pedi-o de Luna, que assumiu o nome de Bento XIII (1394-1417).
O Grande Cisma durou por quase quarenra anos, e foi composto pela criação de uma terceira linhagem de papas no infortunado concílio de Pisa em 1409; e náo foi resolvido até que o concílio de Constança (1414-141 8) afirmou sua supremacia jurisdicionai dentro da igreja e depôs, ou induziu à abdicação, os três papas concorrentes, Gregório XII, Bento XIII e João XWII (ver V: 14).
Capítulo 13
WycIif e Hus Por volta de 1400 as duas grandes heresias que anres haviam atormentado a igreja medieval - os cáraros e os valdenses - tinham sido contidas com sucesso. Os cátaros, na verdade, tinham sido praticamente destruídos. Os valdenses, embora uma força ainda a ser considerada, haviam sido isolados e forcados à clandestinidade. Semelhantemente, os cismácicos heréticos dos grupos franciscanos radicais (os
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Fraricelli) e os assim chamados Espíritos Livres já não consrituíam uma preocupaçáo
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muito grande. Porém, nessa mesma época, no meio século entre 1375 e 1425, dois novos movimentos heréticos, de proporçóes ameagadoras, surgiram em dois países na
da Europa, Inglaterra e Boêmia - dois países, ademais, que haviam esta-
do marcadamente livres de heresia no passado. Em cada país, a nova heresia foi logo atribuída a um único líder: Joáo Wyclif na Inglarerra e Joáo Hus na Boêmia. Essa arribuifáo cai bem, de modo geral, no caso de Wyclif; Hus, porém, era o herdeiro de uma tradiçáo tcheca nativa de reforma religiosa.
O fato de os ensinos de Wyclif em Oxford terem encontrado um caminho através do continente europeu aré Hus, em Praga, deveu-se em grande parte ao "acidente" de um casamento dinástico. Náo foi meramente fortuito, entretanto, que os dois lideres tivessem muitos pontos em comum. Ambos estavam reagindo aos profundos choques administrados à cristandade latina pelo "cativeiro" do papado em Avinháo e pelo catastrófico Grande Cisma que se lhe seguiu. A igreja em geral foi considerada dolorosamente em necessidade de reforma "na cabeça e nos membros". Assim, não é surpreendente que Wvclif e Hus fossem "moralistas" de coraçáo, ou que a dourrina da igreja se tornasse sua preocupacáo central e a fonre principal de sua heterodoxia. Joáo Wyclif (1 325?-1384)nasceu em Yorkshire em algum ano entre 1320 e 1330. Toda a sua carreira, muitos detalhes da qual são temas de conjecturas, esteve vinculada à universidade de Oxford, onde ele recebeu o grau de bacharel em artes em 1356 e o mestrado em artes em 1361. Por um pequeno período depois disso eIe serviu como mestre no Baliiol College. Em 1361 ele também foi nomeado reitor da igreja paroquial em FiUingham, enquanro continuava a palestrar em Oxford; em 1368, ele trocou essa reitoria peIa de Ludgershall, que era mais perto de Oxford. É possível que
-
~ t i i o o av
R l0hIIE MÉUIA POSIEAIOA
44.3
ele tenha sido eleiro diretor do Canterbury College, Oxford, em 1365, mas o papa logo anulou essa eieiçáo considerando-a irregular. Durante a década de 1360,Wvclif alcançou grande reputacão em Oxford, e em círculos acadêmicos mais amplos, como brilhante palestrante e escritor sobre lógica e metafísica; em 1369, ele havia completado uma obra impressionante, Summn de ente (Sobre o ser). Filosoficanlente, ele era um ultra-realista, um defensor vigoroso da via antiqun contra o nominalismo enrRo dominante. Ele também buscou estudos avançados em teologia, recebendo o grau de doutor em 1372 e fazendo planos para uma Sumnza tbrologzcx em doze volumes. Ele foi profundamente influenciado pela tradicáo agostiniano-platônica, conforme mediada em Oxford por Roberto Grossereste, Tomás Bradwardine e Ricardo FitzRalph
(1 295?-1360). Desapontado em sua expectativa de nomeaçáo para algum cargo eclesiástico elevado, que apareritemente lhe fora promecida pelo papa Gregório XI (13701378), ele ingressou no setvico da coroa como conselheiro teológico, e em 1374 foi nomeado pelo rei Eduardo I11 para a paróquia de Lutterworth. Abdicando à reicoria de Ludgershall, ele serviu na paróquia de 1,utterwor~haté sua morte, embora continuando sua íntima associacão com Oxford até 1381. Em 1374, Iiliyclif foi enviado a Bruges como um dos comissários do rei, para se reunir com os representantes papais naquilo que acabou sendo uma rentativa fútil para resol~~er a disputa sobre "provisores", e sobre o status da Inglaterra como um feudo do papado.
Já no início da década de 1370, WE-clifdefendia idéias sobre "domínio" ou "senhorio" que justificariam, sob cerras condiqóes, a apropriaçáo por parte do estado de propriedades eciesiásticas. Estas idéias sem dúvida eram conhecidas pela coroa na época em que ele ingressou no servico real. Ele desenvolveu completamente essa posiqáo em dois tratados, Sobre o senho~iodivino (1375)e Sobl-e a senhorio civil (1 376), baseados em palestras proferidas em Oxford após seu retorno de Bruges. Deus, declarou Wyclif, é o Senhor supremo, de cujo senhorio depende todo senhorio humano. Deus concede graciosamencç todas as posses e poderes, civis e eclesiásticos, como mordomias, não como "propriedade" permanente mas como "empréstimos" temporários, para serem mantidos somente com a condiçáo de serviço fiel. Urna vez que apenas os justos podem exercer senhorio jussarnente. aqueles eclesiásticos que estão vivendo em pecado mosca1 perdem toda reivindicação a posses temporais. Estas podem ser confiscadas deles justamente pelos governanres civis, a quem Deus tem concedido o senhorio das coisas temporais, ao passo que à igreja Deus tem concedido o senhorio apenas das coisas espirituais. Este ensino, apresentado com toda sincerida-
de e simplicidade, certamente agradou ao inescrupuloso filho de Eduardo 111, Joáo de Gaunt, duque de Lancaster, e a sua turma de nobres rapaces, que esperavam enriquecer mediante a "desconcessáo" da igreja "deiinquente". Tal ensino também agradou a muitos dos comuns, que há muito vinham criticando o clericalismo ganancioso. Da mesma forma, náo desagradou às ordens mendicantes, que tinham sempre, pelo menos em teoria, advogado a "pobreza apostólica". Em fevereiro de 1377, Wyclif foi intimado a se apresentar diante dos bispos reunidos em Londres para exame de suas idéias, mas a proteção de Joáo de Gaunt. e do partido da corte frustrou os procedimentos. Em maio daquele mesmo ano,
Gregório XI publicou uma bula contra Wyclif, ordenando-o a comparecer em Roma dentro de trinta dias; e em janeiro de 1378, o arcebispo de Londres tomou ourros procedimentos contra ele. Todas estas ações, entretanto, resultaram inócuas devido ao apoio real e ao grande suporte popular de que Wyclif desfrutava. Com o início d o Grande Cisma em 1378, Wyclif tornou-se ainda mais radical e amargurado em sua idéias, rejeitando por fim a totalidade da estrutura tradicional da igreja medieval. Praticamente abandonando a cena polírica, ele então dedicou-se ao estudo teológico e a escrever. Em sua obra Sobre a verdade das Escrituvas Sagradas (1378), ele afirmou que a Escritura é "a mais alta autori-
dade para todo cristão e o padráo de fé e de toda perfei~áohumana." Porém ele não repudiou a autoridade interpretativa dos pais da igreja e dos doutores antigos; portanto, ele náo foi um precursor do "só a Escritura" da Reforma. Em seu tratado original Sobre a Igreja (1378) ele definiu a igreja verdadeira em termos agostinianos como "a totalidade dos predestinados" (universitaspr~edestinatorz~m) - um corpo atemporal e genuinamenre espiritual, consequentemente invisível,
do qual Cristo apenas é o cabeça. O papa, por seu turno, é no máximo o cabeça da p o r ~ á oromana da igreja visivel, sendo esta composta tanto pelos eleitos como pelos condenados, que sáo conhecidos apenas por Deus, embora possam ser reconhecidos, em parte, por seus respecrivos "frutos".' Wyclif concedeu em seu 11vro Sobre o poder da papa (1379) que a igreja visível pode muito bem ter u m líder terreno, se tal líder verdadeiramente reproduzir Pedro em pobreza e simplicidade apostólica. Tal papa presumivelmente seria um dos eleitos; mas um papa que se agarra ao poder terreno e é ávido por riquezas provavelmente não é um
dos eleitos e portanto é um verdadeiro anticristo. De qualquer maneira, o papado é de origem humana - foi fundado por Constantino, náo por Crisco - e sua
jurisdiçáo está limitada estritamente as preocupações espirituais. (Subseqüentemente, Wyclif demandou a abolição do papado e a total desapropriaçáo da igreja.) Esses tratados foram seguidos por Sobre a eucdristiu (1380), no qual Wyclif rejeitou o dogma da transubstanciaçáo como ilógica, náo escriturística e infiel ao ensino da igreja antiga. Sua própria idéia positiva, conhecida como "remanência", afirma que mesmo após a consagraçáo o páo e o vinho permanecem substâncias materiais, uma vez que é impossível, tanto para os "acidences" existirem por si mesmos à parte de uma substância, como para qualquer substância realmente existente ser "aniquiladan. O corpo e o sangue de Cristo estão verdadeiramente presentes nos elementos, náo material ou carnalmente, mas simbólica ou sacramentalmente. O páo e o vinho são portanro "sinais eficazes" do sangue e corpo de Cristo. Embora Wyclif considerasse a pregação muito mais importante do que a observância sacramental, ele permaneceu devoto da eucaristia até o final de sua vida. Náo obsranre, seu ataque sobre um dos mais queridos dos dogmas da igreja, conjugado com sua denúncia das ordens mendicantes como "filhos de Cairn", custou-lhe o apoio de Joáo de Gaunt e do grupo da corte, dos frades e de muitos de seus simpatizantes em Oxford. Esta maré de oposiçáo foi fortalecida por eventos políticos em 1381, pelos quais Wyclif não teve qualquer respofisabilidade. A agieaçáo das classes inferiores, que vinha crescendo na esteira das severas turbulências econômicas causadas pela Peste Negra de 1348-1350, culminou em 1381, em uma grande revolta de camponeses que foi suprimida com muito derramamento de sangue. Os inimigos de Wyclif disseram que suas heresias haviam liberado esse violento episódio.
O resultado foi uma reaproximaçáo entre igreja e estado. Em 1382, Guilherme Courtenay, o novo arcebispo de Cantuária (1381-1396), reuniu um sínodo em Londres, que condenou vinte e quatro proposições seiecionadas das obras de Wyclif, embora este náo tenha sido citado nem condenado nominalmente. Entáo, tendo Wyclif sido abandonado pelo grupo da corte, Courtenay recebeu autorização para prender quem quer que defendesse as pioposiqóes condenadas. Livre para agir, ele rapidamen~eatacou os partidários de Wyclif em Oxford.
O próprio Wyclif, como foi observado, havia-se retirado da arena política
446
HISTÓAIA DA IGREJA E R I S T ~
nos ÚItimos meses de 1378, e no veráo de 1381 havia-se afastado para sua paróquia em Liirrerworth, onde permaneceu sem ser molestado. Estes últimos anos de sua vida foram um período de efer\rescenre atividade literária. Ele completou os volumes finais de sua Summa teológica; produziu uma enchente de panfletos no vernáculo; e trabalhou em seu Opus evangelicum e fi.ialogus, que resumiram seus principais temas teológicos e filosóficos. Ele também forneceu a inspiracão e o ímpeto para a traduçáo inglesa da Bíblia Vulgata. Parece que ele não contribuiu diretamente para a obra de traduçáo, que foi executada c completada depois de sua morre, por um grupo de discípulos em Oxford e em Lutterworth, incluindo NicoIau de Hereford e João Purvey. Wyclif também organizou um imenso conjunto de sermões para uso dos "sacerdotes pobres" que na tpoca escavam propagando o evangeIho entre os pobres. Em suas vestes e conduta, estes evangeliscas itinerantes lembravam os antigos pregadores valdenses ou franciscanos. E improvável que Wyclif tenha-se engajado ativamente na preparação deles. Seiis escritos consumiam suas energias, c sua saúde estava débil. Ele sofrera um derrame em novembro de 1382, que o deixara prcialmente paralisado. Sofreu um segundo derrame em 28 de dezembro de 1384, quando assistia a missa, e faleceu três dias mais tarde. Foi sepultado no cemitério da igreja de Lutrerworth, i.e., em solo sagrado, pois ele náo havia sido excomungado oficialmente. Em 1428 o bispo de Lincoln, obedecendo ao comando do concílio de Constança, em 1415, exumou os restos mortais de WycIif, queimou-os e lançou as cinzas
110 rio
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Os seguidores de Wyclif foram chamados "lolardos" (= "murmuradores")
-
um termo zombeteiro, de origem holandesa, que há muito vinha sendo aplicado nos Países Baixos aos bcgardos e às beguinas. O movimento ficou dolorosamente ferido por sua falta de lideranca intelecrual proeminente, após a morte de Wyclif. O s partidários de Wyclif em Oxford foram continuamente extirpados pelo arcebispo Courtenay e seu sucessor, Tomás Arundel (1396-14 14). Até mesmo Hereford e Purvey foram obrigados a se retratar. Contudo, náo obscante a perda de Oxford e da perseguiqáo e prisáo dos pregadores lolardos, o movimento continuou a crescer durante rodo o reinado de Ricardo I1 (1377-1399). A situacão mudou com a ascensão da casa usurpadora de Lancaster, na pessoa de Henrique
IV (1399- 14 13).Ansioso para aplacar a igreja,
O
novo rei foi persuadido a asse-
gurar a passagem, em 140 1, do estaruto anci-heresia, De haeretica comburendo, sob o qual alguns lolardos foram
Henrique IV, porém, poupou os
p ~ i i a o ou
11040E MEDIA POSTERIOR
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lolardos de alta posição e em grande parte tratou o estatuto como uma formalidade. Mas seu filho, Henrique V (1413-1422), não fez assim, pois cumpriu tal estatuto implacavelmente. Sob ele, o mais notável dos líderes lolardos, Sir João Oldcastle, Lorde de Cobham, um homem dos mais severos princípios religiosos, a quem a tradição e o abuso da dramatizaçáo transformaram na figura de Falstaff,foi condenado, forçado à rebeiiáo e executado em 1417. Com sua morte, a significância política da lolardia na Inglaterra chegou ao fim, embora tenham sobrevivido partidários em vários distritos rurais que continuararn a existir na clandestinidade, até a Reforma. A principal influência de Wyclif seria na distante Boêmia em vez de em sua pátria.
A Boêmia passara por desenvolvimentos religiosos, intelectuais e políticos significativos no século catorze. O imperador do Sacro Império Romano, Carlos I V (1346-
1378), foi também rei da Boêmia e fez muito por aquele país. Em 1344 ele assegurou o estabelecimento de Praga como arcebispado, livrando a Boêmia da dependência eclesiástica de Mainz (Mogúncia); em 1348 ele fundou em Praga a primeira universidade da Europa central. Carlos também era favorável & reforma eclesiástica. Durante e em seguida ao seu reinado, diversos pregadores de poder sacudiram a Boêmia, atacando a crescente secularização da igreja em nome do "evangelho simples". Entre os mais famosos destes estavam o cônego agostiniano austríaco, Conrado de Waldhausen 0-1369), e o morávio Milich de Kromerzis (?-1374).A eles se uniram Matias de Janov (13552-1394)eTomás de Shtirny (1331-1409),que fizeram contribuicóes notáveis para a literatura religiosa popuiar e teológica da Boêmia. Esses pregadores e escritores lanqaram a reforma religiosa tcheca, cujos rraqos característicos foram a pregaqáo no vernacular, reforma moral do clero e do povo, a centralidade na Escritura como a regra de vida, e a demanda por frequente participa~áona Ceia do Senhor. Esse movimento nativo de reforma antecedeu em muito a introdução das idéias de Wyclif na Boêmia. Por meio de Matias de Janov, um erudito renomado, ele também se vinculou aos círculos universitários tchecos em Praga. Politicamente, a Boêmia estava dividida por uma disputa enrre os imigrantes aiemáes e os tchecos nativos. Os tchecos estavam motivados por um forte desejo de igualdade com os governantes alemães. Em 1382, a Boêmia, até então pouco associ-
*N.T. Personagem empçdcrnido, obsceno e inrscrupulosa dc Shakespeare em Henry IV e também em'lCht. Mcrry W7ives ofwindsor.
448
HlSlbRIA DA IGREJA C R I S T ~
ada com a Inglaterra, foi conectada com este país por meio do casamento da princesa boêmia Ana com o rei Rrcardo 11. Estudances tchecos foram atraídos à Oxford e ali se familiarizaram com as doutrinas e escritos de Wyclif, os quais eles logo levaram para sua pátria, especialmente para a universidade de Praga. Entre os professores que abraçaram algumas das idéias de Wyclif estava João Hus, em quem as aspirações nacionais tchecas encontraram um ardente defensor e o movimento nativo de refor-
ma seu Líder mais proeminente. Hus nasceu em uma família pobre, na vila de Husinec no sudoeste da Boêmia, em 1372 ou 1373. Ele estudou na universidade de Praga, onde se tornou mestre em artes em 1396. Em 1400 foi ordenado ao sacerdócio, mantendo ainda um vínculo de magistério com a universidade, onde foi eleito deáo da faculdade de artes para o semestre do inverno de 1401-1402. Em 1409 ele já havia completado todas as exigências para o doutorado em teologia, com palestras sobre a Bíblia e as Sentençm de Pedro Lombardo, mas nunca obteve tal grau, devido às amargas controvérsias de seus últimos anos, que eventualmente o forçaram a deixar o recinto acadêmico e levaram-no à fogueira em Constança. Algum tempo depois de seu ingresso no sacerdócio, o qual ele considerou inicialmente apenas como uma fonte de seguranca econômica, Hus passou por uma conversão mediante o estudo das Escrituras, e tornouse um zeloso defensor da reforma clerical. Em 1402 ele foi nomeado pregador na Capela de Belém, em Praga, a qual era o ceni-ro do movimento de reforma tcheco, e ali ele logo aicanqou imensa popularidade por meio de seus ardenres sermíjes na língua ccheca.
Logo cedo em sua carreira acadêmica, Hus foi um estudante ávido das obras filosóficas de Wyclif, concordando plenamente com seu "realismo", como muitos dos mestres tchecos em Praga. Os mestres alemães, mais numerosos, por outro lado, eram em grande parte seguidores de Occam e da via moderna. As obras teológicas de Wyclif não foram levadas para Praga senáo pouco após 2400, inicialmente por um amigo intimo de Hus e seu seguidor por toda a vida, Jerônirno de Praga (1370?-
1416), que hwia recebido seu mestrado em artes em Oxford. Hus não foi, como é frequentemente pensado, um "simples eco" de Wyclif, embora ele tenha reproduzido constantemente a linguagem de Wyclif em seus sermóes e tratados. Ele deveu tanto ao movimento de reforma rcheco quanto a Wyclif, e sua apropriação da teologia de Wyclif foi criticamente seletiva. Ele aceitou o que considerava ortodoxia incontestável em Wyclif, e passou em siIênc~osobre aquelas idéias que desaprovava. Ele tam-
~ ~ n i o nv o
1l0llUE MEDIA POSTERIOR
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jém estava disposto a expressar sentimentos ortodoxos nas formulaçóes de Wyclif -
Jma disposiçáo fatal, como os eventos iriam demonstrar. Hus era completamente ortodoxo em seu ensino eucarístico; diferentemente de Wyclif, ele não negou a rransubstanciaçáo. Como Wyclif, ele ensinou que a verdadeira igreja consiste apenas dos pedestinados, dos quais o cabeca é Cristo, não o papa - embora se um papa viver Zorretamente, poderá ser considerado o cabeqa da igreja "particular" de Roma. A vida da verdadeira igreja é de pobreza e simplicidade, semelhante a Cristo. A única
Lei dessa igreja é a Bíblia, sobretudo o Novo Testamento. Este "princípio da Escritura", como em Wyclif, descartava as tradições extrabíblicas d o direito canônico mas
não negava a autoridade magisterial dos pais e doutores antigos. Em 1403 foram condenados pela maioria dos mestres em Praga quarenta e cinco artigos atribuídos a Wyclif. Os mestres tchecos, entretanto, que eram em minoria, de modo geral defenderam Wyclif. Hus, obviamente, uniu-se à defesa. Entrementes, sua pregaçáo na Capeia de Belém inicialmente teve o apoio do jovem arcebispo,
Zbynek Zajic, de Hasenburk (1401-141 1); mas as cáusticas críticas de Hus em reIa;áo ao clero, e sua identificaçáo com os ensinos condenados de Wyclif, gradualmente xansformaram essa simpatia em oposi~áo.Rapidamente surgiram novos motivos ?ara controvérsia. No Grande Cisma, a Boemia manteve-se com o papa romano, na epoca Gregório XII. Como passo para o fim da cisão, o rei da Boêmia, VencesIau IV 1378-1419), declarou em 1408 seu apoio a uma política de neutralidade entre os Zapas rivais. Hus e os elementos tchecos na universidade apoiaram Venceslau. O ~rcebispoZbynek, o clero alemáo e os mestres alemáes na universidade ficaram com Gregório XII, para o desapontamento do rei. Diante disso, em janeiro dc 1409, 'i2ncesiau modificou abruptamente a constituição da universidade, dando aos aleinães apenas um voto para cada três dados aos tchecos, revertendo assim completarnenre a proporgáo anterior.' O resultado quase imediato foi a separaqáo dos mestres 5
tstudantes alemães, que eram cerca de mil e quinhentos, que naquele mesmo ano
tirabeleceram sua própria universidade em Leipzig. Em outubro de 1409 Hus foi eleiro o primeiro reitor .da universidade após a mencionada modificação. Conse:utnremeni-e, ele ficou por muito teinpo identificado com perfídia e heresia, nas -.entes dos professores de Leipzig, cuja inimizade revelou-se publicamente em
-
,onstança. "C.T. Estc foi o famoso dccrcco de Kutna Hora.
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RISTÓRIA UA IGREJA CRISTÃ
Entrementes, o infeliz concílio de Pisa (1409)chegava ao fim (ver V: 14). O arcebispo Zbynek agora apoiava seu papa, Alexandre V (1409-1410),a quem reclamo11 da disseminação dos ensinos de Wyclif na Boêmia, e por quem foi designado para extirpá-los. Hus protestou e foi excomungado por Zbynek em 1410, e submetido a investigaçáo pela curia romana. O resultado foi grande tumulto em Praga. onde Hus era mais do que nunca utn herói popular. O rei Venceslau, cujo apoio era crucial, defendeu-o. Em 141 1 e novamente em 1412, o infame sucessor de Alexandre, papa João XXIII (1410-1415), prometeu indulgências a todos que participassem em sua planejada cruzada contra o rei de Nápoles, Ladislau (1386-1414),um defensor do deposto Gregório XII. Hus denunciou essa "cruzada da indulgência", afirmando que o papa não tinha direito de utilizar a f o r p física, que pagamentos em dinheiro náo alcançavam perdáo verdadeiro, e que as indulgências eram supérfluas, uma vez que o perdáo é dado liberalmente àqueles que verdadeiramente confessam e se penitenciarn por seus pecados. O resultado foi uma grande agitaçáo. As bulas papais foram queimadas pela populaqáo. A postura ínregra de Hus, entretanto, prejudicou gravemente sua causa. Ele perdeu muitos dos principais defensores na universidade, incluilido Estanislau de Znojrno e Estêváo Palech; ele foi novamente excomungado; e se indispôs com o rei Venceslau. Praga foi submetida a um interdito papal. Desejando poupar a cidade dessa calamidade, Hus deixou Praga em outubro de 1412, refugiandose com amigos poderosos entre a nobreza no sul da Boêmia. Durante esse período de exílio, além de escrever inúmeros tratados no vernáculo, Hus comp6s sua principal obra, De ecclesiu (Sobre a Igreja), um tratado profundamente em débito com o tratado de mesmo nome de Wyclif, evitando contudo as conclusóes mais radicais de Wyclif. Particularmente, Hus não chegou a abraçar completamente a heresia donatista de que um sacerdote pecaminoso náo tem poder sacerdotal (potestds ordinis), embora ele tenha defendido a posiçáo "semi-donatista" que sacerdotes e prelados ímpios náo possuem autoridade jurisdicional (potestus
iurisdictionis) e portanto não devem ser obedecidos. Por esta razáo, ele apelava seu caso somente a "Deus e Cristo", náo a um papa ou a um concílio eclesiásrico - uma postura claramente herética aos olhos, tanto dos curiais como dos conciliares.
O grande concílio de Conscança (1414-1418) se aproximava, e a confusáo na BoÈmia certamente exigiria sua atenção. Hus foi intimado a se apresentar perante ele e recebeu um "salvo conduto" do Sacro Imperador Romano, Sigismundo (1410-
1437), irmão do rei Venceslau. Embora soubesse que estava arriscando a vida, Hus
PIRIIIOY
4 IDADE MEBIA POSTERIOR
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decidiu partii-, parcialmente porque esrava certo de que poderia convencer o concilio sobre seus pontos de vista. Pouco depois de sua chegada em Constança ele foi aprisionado; o concílio persuadira Sigismundo a desconsiderar o prometido salvo-condu:o. Os mestres demães que haviam sido expulsos de Praga, como também os inimizos tchecos de Hus, fizeram-lhe graves acusaçóes. As acusaçóes de seu outrora colega 2
amigo, Estêváo Palech, receberam peso especial por seus juizes, dentre os quais os
principais eram os renomados Pedro de Ally e Joáo dc Gerson. Em 4 de maio de
1415, confirmando uma agáo que já havia sido rornada por um sínodo romano em
1413, o concílio formalmente condenou Wyclif como herege e ordenou que seus restos mortais fossem removidos de solo consagrado. Hiis, que era entáo tido de modo geral como o discípulo dedicado do heresiarca Wyclif, pouca coisa poderia esperar daquela assembléia. Fundamentado em trinta ensinos errôneos atribuídos a Hus, o concílio exigiu sua submissão completa. Mas o reformador tcheco era do tipo heróico. Algumas das acusaçóes ele rechaçou, afirmando que eram falsas pois baseadas em interpretagóes equivocadas. Outras posi~óesele recusou-se a modificar, a menos que fosse convencido pela Escritura e pelos pais antigos dc que estavam erradas. Ele não submeteria sua consciência ao juízo do concílio. Foi condenado e queimado em 6 de julho de 1415, enfrentando a morte com a mais firme coragem. Enquanto Hus estava encarcerado em Constança, seus seguidores em Praga, em outubro de 1414, começaram a administrar o cálice aos leigos na Ceia do Senhor - uma atitude que Hus aprovava e que logo se tornou no sinal característico do movimento hussita. A notícia da morre de Hus provocou enorme ressentimento na Boêmia, ao qual foi adicionado mais combusiívcl quando o concílio de Constança proibiu o uso laico do cálice e provocou a morte na fogueira, de Jerônimo de Praga, colega e amigo mais radical de Hus, em 30 de maio de 1416.
A Boêmia estava em revolta. Dois partidos se desenvolveram ali: um partido aristocrático, moderado, tendo sua base principal em Praga e conhecido como utraquista (comunháo sub utraque, i.e., tanto no pão como no vinho) ou calistino (do latim calix, cálice), ou simplesmente praguista; e um partido democrático, radical, chamado de taborita, pois sua fortaleza era em Tabor. Os utraquistas proibiam apenas aquelas práticas que julgavam proibidas pela "Iei de Deus", i.e., a Bíblia. Os taboritas repudiavam todas as práticas para as quais náo se podia encontrar garantia expressa na "lei de Deus". As facções enfrentaram uma disputa feroz, mas em 1420 se uniram adotando um programa
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UISTÓRIA DA IGREJA CRI SI^
religioso comum, os "Quatro Artigos de Praga", que exigia a livre pregação da Palavra de Deus, o cálice para o laicato, a pobreza apostólica e uma vida clerical e laica estrita. Juntas elas também resistiram a repetidas cruzadas direcionadas contra a Boêmia. Sob a lideranca de um general caborita que tinha apenas u m olho, e que eventualmente ficou totalmente cego, João Siska de Trocnov, todas as tentativas de esmagar os hussitas foram sangrentamente derrotadas. Os oponentes dos hussitas também não tiveram êxito após a morte de Siska em 1424. Sob Procópio, o Grande, os hussiras conduziram a guerra para além das fronteiras da Boêmia. Era inevitável algum tipo de acordo. O concílio de Basiléia, após demorada negociação, atendeu parte das exigências dos hussitas em 1433, concedendo o uso
do cálice e, até certo ponto, as outras exigências dos Quatro Artigos. O s raboritas, insatisfeitos, resistiram e foram quase totalmente eliminados pelos utraquistas em 1434, na batalha de 1,ipan na qual morreu Procópio. Os utraquistas vence-
dores fizeram então um acordo, a "Compactata", com o concílio de Basiléia, em
1436, através do qual foram restaurados à comunhão romana. Porém, em 1462, o papa Pio 11 (1458-1464) declarou nulo tal acordo. O s utraquistas náo obscante mantiveram seu ~ o d e er a Dieta Boêmia, em 1485 e novamente em 1512, declarou a igualdade total dos utraquiscas com os cat.ólicos. Na Reforma, uina parte considerável abraçou as novas idCias; uns poucos retomaram para a igreja romana. Os verdadeiros representantes dos princípios de Wyclif foram os taboritas e não os utraquiscas. Do movimento hussita em geral, com elementos extraídos dos taboritas, utraquistas e valdenses, floresceu, a partir de cerca de 1458, a
Unitas Fmtr~rm(Unidade dos Irmáos Boêmios), que absorveu muito daquilo que era vital no movimento hussita e tornou-se o ancestral espiritual dos morivios posteriores (ver VII:6). Frequentemenre Wyclif e Hus têm sido chamados precursores da Reforma. Esta designacão é apropriada
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que se refere ao seu protesto contra os abusos
eclesiásticos, sua exaltaçáo da Bíblia e sua conrribuiçáo à soma total da agitação que por fim resultou em reforma eclesiástica. As doutrinas fundarnencais dos reformadores protestantes, porém, devem muito pouco de sua substância às doutrinas de Wyclif e de Hus, e eles foram muito mais radicais em sua ruptura com o ensino tradicionai. Náo obscante, a medida em que Wyclif e Hus e um g a n d e número de pensadores "ortodoxos" do final da Idade Média, estavam já confron-
raiuis v
A IDADE MEOlA POSTERIOR
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rando as mesmas questóes centrais que os reformadores protestantes iriam confrontar, eles podem ser corretamenre denominados "precursores" da Reforma. Houve uma continua~áobásica de
embora não de "respostas".
Capítulo 14
Os Concilias Reformadores O cisma papal era o escândalo da cristandade; dar-lhe um fim, porém, náo era fácil. A lógica da Cpoca medieval era que náo existia sobre a terra poder perante o qual o papado fosse responsabilizado. Porém, as pessoas bem intencionadas percebi-
am que o cisma devia ser terminado e que a igreja precisava de reforma "na cabeça e nos membros"
- isto é,
no ~ a p a d oe no clero. As reformas desejadas eram morais e
administrativas, não doutrinárias. Entre os que procuravam seriamente remédio para o cisma estavam os mestres da época, de modo especial os da universidade de Paris.
Ali, em 1324, Marcílio de Pádua proclamara a supremacia de um concílio !geral em seu De-nsorpacis. Marcílio, entretanto, negara toda aucoridade jurisdicional a sacerdotes e prelados e também negara a fundaçáo divina do papado. Estas idéias radicais não encontraram simpatia entre os "conciliaris[as" do final do século caIorze em Paris e em outros lugares, que trabalhavam sobre trddicóes completameníe ortodoxas de teologia e direito canônico para apoiar sua reivindicaçáo básica, de que a da autoridade jurisdicional na igreja reside na totalidade do conjunro de seus mcmbros, conforme reprcsenrado em um concílio geral. O papa, por sua vez, recebe essa plenitude de poder como o "ministro principal" da "corporaçáo" eclesiástica, e deve exercitá-lo sempre para o bem de toda a igreja. O principio conciliarista central da superioridade de um concílio geral sobre o papa foi primeiramente apresentado com rigor acad2mico em matados de 1179 e 1380 por um doutor em direito canônico, o alemáo Conrado de Gelnhausen (13202-1390), entáo residente em Paris, e depois em um tratado de 1381 de outro erudito demão em Paris, Henrique de Langenstein (1 330'-1397).
A idéia de um concilio gera1 como o melhor meio para remediar o cisma - a assim
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A I S T ~ R I ADA IGREJA CRISTÁ,
chamada viu cuncilii - logo conquistou adeptos e não somente na universidade de Paris mas também na grande escola de direito canônico de Bolonha, e até entre os cardeais. No entanto, a solu~áocoiiciliar apresentava muitos problemas, especialmente porque o direito canônico estipulava que a assembléia teria de ser convocada pelo papa. C~nse~uencemente, os líderes em Paris, Pedro de Ailly e João de Gerson demoraram-se para aceitar esse plano. Por outro lado, durante anos foram feitos esforços que redundaram váos para levar os papas rivais a resignarem
- a assim cha-
mada via cessionis. A França, de 1398 a 1403 e outra vez em 1408, retirou seu apoio ao papa de Avinháo sem, no entanto, reconhecer o de Roma, mas seu exemplo praticamente não foi seguido por oucras nacóes. Em 1408 Ailly e Gerson concluíram que um concílio era a única esperança e foram apoiados por Nicolau de Clémanges (1367-1437), ex-aluno e ex-~rofessorda universidade de Paris, e que havia sido secretário de Bento XIII em Avinháo de 1397 a 1405. Agora os cardeais de ambos os papas estavam convencidos da necessidade de um concílio. Reunidos em Leghorn em 1408, em seu próprio nome convocaram uma assembléia desse tipo, a se realizar em 25 de março de 1409, em Pisa. E houve a reuniáo, com a presenca náo só de cardeais, bispos, chefes das grandes ordens, principais abades, mas também de doutores em teologia e direito canônico e representantes de soberanos leigos. Nenhum dos papas esteve presente ou reconheceu sua legitimidade. Os dois foram depostos pelo concílio, acusados de cismáticos e heréticos. Isto foi uma afirmaçáo prática de que o concílio estava acima do papado. Sua ação, entretanto, foi precipitada, pois em lugar de se certificar, como aconselhara Ailly, se o indicado como novo papa seria aceito por todos, os cardeais elegeram Pedro Philarglzi, arcebispo de Miláo, o qual tomou o nome de Alexandre V (1409-1410).
O concílio entáo se dissolveu, relegando a questáo da reforma para um futuro concílio. De algum modo, tornara-se pior a situaçáo do que antes da reuniáo do concílio. Roma, Nápoles e partes consideráveis da Alemanha permaneceram fiéis a Gregório XII. Espanha, Portugal e Escócia apoiaram Bento XIII. Inglaterra, França e partes da Alemanha reconheceram Alexandre V. Agora havia três papas, três admini~tra~óes curiais e três colégios de cardeais. Contudo, apesar de suas falhas, o concílio de Pisa demonstrara que a igreja era uma, e isso alimentou a esperanca de que um concílio melhor poderia terminar com o cisma. Esta assembléia fora convocada pelos cardeais - uma acáo sem precedentes. Dc acordo com o eminente conciliarista Dietrich de
PERIOBO Y
R IDADE MEDIA POSTERIOR
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Niem ( 1 340?-14 18), uma convocaçáo pelo imperador, se possível com o assentimento de um ou mais dos papas, estaria de acordo com a prática da igreja primitiva.
O recém-eleito imperador do Sacro Império Romano, Sigismundo (14 10- 1437), adotou a proposta de Dietrich. O próprio Sigismundo reconhecia como papa Joáo XXIII (1410-1415),um dos mais indignos ocupantes do cargo, que havia sido eleito sucessor de Alexandre V, na linha de Pisa. Sigismundo utilizou as dificuldades de Joáo com o rei Ladislau de Nápoles para conseguir dele uma ação conjunta pela qual o imperador eleito e o papa convocariam um concílio que se reuniria em Constança
em l o de novembro de 1414. E lá se reuniu a mais brilhante e a mais numerosa assembléia da Idade Média. Sigismundo compareceu pessoalmente, e Joáo XXIII presidiu. João esperava conseguir o reconhecimento do concilio. Com esta finalidade leva-
ra consigo muitos bispos italianos. Para neutralizar seus votos, o concílio (composto de patriarcas, arcebispos, bispos, abades, priores, doutores em teologia e em direito canônico e representanres dos soberanos) organizou-se em quatro "naçóes" - os ingleses, os alemães, os franceses e os italianos. Cada "naçáo" tinha apenas um voto, e também foi atribuído um voto aos cardeais. Desapontado com a decisáo do concítio, Joáo XXIII procurou fazer fracassar o concílio, fugindo em marco de 1415. Sob a vigorosa direçáo de Gerson, o concílio, entretanto, declarou em 6 de abril de 141 5, no famoso decreto Haec sancta synodus (ou Sarrosanctil), que "este santo Concílio de Constança ... declara, primeiro, que está legalmente reunido no Espírito Santo, que constitui um concílio geral representando a Igreja Católica e que, portanto, tem sua autoridade imediatamente de Cristo; sendo que todos os homens, de qualquer ordem ou condicáo, incluindo o próprio papa, são obrigados a obedecer-lhe em matérias de fé, de aboliçáo do cisma e da reforma da Igreja de Deus em sua cabeça e em seus membros."' Em 29 de maio o concílio declarou Joáo deposto sob a acusacáo de conduta escandalosa. Em 4 de julho Gregório XII resignou, mas somente após reunir formalmente o concílio sob sua própria autoridade (e desta forma assegurando, pelo menos na sua cabeça, o reconhecimento tácito por parte do concílio da legitimidade da linhagem romana de papas). O concílio livrara assim a igreja dos papas de Roma e de Pisa mediante a feliz afirmaçáo de sua autoridade suprema sobre todos na igreja. E fácil verificar porque seus guias insistiram na plena submissão de Joáo Hus,
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IISTÓRIA DA IGREJA CRISIL
cujo processo e martírio se deram na época destes eventos (ver V:13). Com o papa de Avinháo, Bento XIII, a coisa foi mais difícil. O próprio Sigismundo viajou até a Espanha para se encontrar com Bento, mas aquele obstinado poi~tífice recusou-se a resignar. O que Sigismundo náo conseguiu com Bento, obteve com os reinos espanhóis, que, juntamente com a Escócia, repudiaram a Bento. Os espanhóis se uniram ao concílio como a quinta "nacáoXe, em 26 de julho de 1417, Bento, ou Pedro de Luna, como mais uma vez passou a ser chamado, foi formalrneilte deposto.
A prudente acáo do concílio, em contraposi~áoà pressa de Pisa, certificara-se de que nenhuma parte considerávei da cristandade apoiasse os papas anteriores. Um dos principais alvos do concílio de Conscança tinha sido a reforma moral e administrativa. Como instrumento de reforma, porém, o concílio foi uma amarga decepgáo, uma vez que os ciúmes e as rivalidades das diversas "naçóes" impediram açáo efetiva. Seu único g a n d e êxito foi ter terminado com o cisma. Em novembro de 1417 os cardeais, juntamente com seis representantes de cada naçáo, elegeram um cardeal romano, Oto Colona, como papa. Escolheu o eleito o nome de Martinho V (1417-1431). A cristandade romana rinha umavez mais uma única cabeca. Em abril de 1418 o concílio foi encerrado com a promessa do novo papa de convocar outro dentro de cinco anos, em obediência a outro famoso decreto do concílio, Frequens (9 de outubro de 1417).
O concíiio de Constança foi uma experiência eclesiástica revolucionária. Ele substiruiu a monarquia papal absoluta pela autoridade representativa de um concílio geral. O papa, embora permanecesse como o executivo da igreja, recebia sua posição e direitos da totalidade dos cristáos agindo por meio de uin concílio geral, que deveria reunir-se em intervaios frequentes. O papa havia se tornado, quando muito, um monarca constitucional limitado. Pareceu por um tempo que esta !grande mudança havia sido realmente obrida. Martinho V convocou o próximo concílio para se reunir em Pavia, em 1423. A praga impediu um grande número de participantes e forçou sua transferência para
Siena, onde, depois de realizar quase nada, foi peremptoriamente dissolvido pelo papa no início de 1424. Com prazer o papa dispensaria mais concílios. Porém as guerras hussitas preocupavam a Europa e Marrinho V, cedendo à pressáo que lhe era feita, convocou em janeiro de 1431 um concílio a se reunir em Basiléia, e indicou o cardeal Juliano Cesarini para presidi-lo como seu legado. Pouco menos de dois meses depois Martiniio V veio a falecer e Eugênio IV (1431-1447) foi feito papa. Insta-
~ t n i o e ev
A IDADE MEDIA POSIERIOR
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lou-se o concílio em julho de 1431, mas em dezembro Eugênio ordenou sua suspensão para que se reunisse em 1433, em Bolonha. O concílio náo atendeu e renovou a declaraçáo de Constança, de que ele era superior ao papa. E assim, praticamente desde o princípio, houve má vontade entre o concílio de Basiléia e o papa. Atentando para o fato de que o ciúme entre as "nações" havia frustrado os planos de reforma em Constança, o concilio rejeitou tais agrupamentos e criou em lugar deles quatro grandes comissões (de reformas, doutrina, paz pública e questóes gerais). Ele começou seu trabalho com enorme vigor e promessa de êxito. Promoveu aparente reconcilia~áo,em 1433, com os hussitas moderados (ver V: 13). A unidade da igreja parecia restaurada. O papa encontrou pouco apoio e, antes de terminar 1433, reconheceu formalmente o concílio. Seu futuro parecia assegurado.
O concílio de Basiléia entregou-se, entáo, àquelas reformas morais e adrninistrativas náo efetuadas em Conscanqa. Ordenou a realizaçáo de um sínodo anual em todas as dioceses; nos arcebispados, de dois-em dois anos. Nestes sínodos seriam examinados e corrigidos os abusos. Dererminou ainda que houvesse um concilio geral de dez em dez anos. Reafirmou o antigo direito da eleiçáo canônica, conrra as nomeações papais. Limitou os apelos a Roma. Fixou em vinte e quatro o número de cardeais e determinou que nenhuma nação tivesse representaçáo maior que um terço no colégio. Extinguiu compietamente as anatas e as outras tributações mais opressivas do papado. Por mais benéfica e necessária que tenha sido esta limitaCáo dos privilégios papais rradicionais, o espírito no qual foi feita era de crescente atitude de vingança contra o papa Eugênio. Foram abolidos quase que completamente os impostos que mantinham o papado, no entanto náo se teve o cuidado de estabelecer meios honrosos de substit~ii-10s.Tal falha náo só aumencou as iras do papado como provocou divisões dencro do próprio concílio. Naqueia altura apresentou-se ótima oportunidade, da qual plenamente se aproveitou Eugênio IV. Sobre ela o concílio agiu t2o erroneamente que arruinou suas boas perspectivas.
O império oriental se encontrava em sua luta final com os turcos conquistadores. Esperando conseguir auxílio do Ocidente, o imperador Joáo VI11 Palacólogo (14251448), juntamente com o patriarca de Constantinopla, José I1 (1416-1 439) e Joáo Bessarion (1395-14721, o sagaz arcebispo de Nicéia, estava disposro a negociar a união das igrejas grega e latina. Tanto o papa como o concílio estavam dispostos a usar essa aproximação em benefício próprio. A maioria do concílio queria que os gregos fossem a Basiléia ou a Avinháo. O papa oferecia uma cidade italiana, o que era
naturalmente preferido pelos gregos. Em 1437 o concílio se dividiu quanto a esta questão, separando-se a minoria, levando consigo a Cesarini e o até entáo fiel conciliarista, NicoIau de Cusa (140 1- 1464; ver V: 17).Eugênio IV entáo anunciou a transferência do concílio para Ferrara para Iá se encontrar com os gregos. A minoria concordou e lá chegou, em marco de 1438, o imperador oriental, acompanhado de muitos prelados. Praticamente o papa saíra vencedor. Acontecimento de tanta relevância como o possível congraçamento da cristandade tirou do concílio de Basiléia, que ainda continuava, muico do seu interesse.
O concílio de Ferrara, trazido para Florença em 1439, assistiu a prolongadas discussóes entre gregos e latinos, cujo resultado final foi a aceitaçáo do primado do papa, mas em termos vagos que pareciam preservar os direitos dos patriarcas orientais. 0 s gregos conservariam suas peculiaridades no culto e o clero continuaria podendo casar. Ao mesmo tempo os gregos reconheceriam a questionada cIáusula do j l i o q u e do credo niceno mas com o acordo de que náo a incluiriam no antigo símbo-
lo. O combativo merropoli~ade Éfeso, Marcos, náo concordou, mas o imperador e muitos dos seus acompanhantes eclesiásricos aprovaram. Entáo a reuniáo das duas igrejas foi jubilosamente proclamada em julho de 1439, na bula Luetentar coeli. Táo feliz desfecho aumeritou o prestígio do papa Eugênio IV. A irreaiidade do acordo náo foi logo percebida. Reunióes com armênios e com certos grupos de monofisitas e nestorianos foram também anunciadas em Florenga ou logo após o concílio. Desde o início, porém, os monges orientais se opuseram. No retorno dos gregos, Marcos de Éfeso se tornou o herói do momento. Bessarion, a quem Eugênio fizera cardeal, teve de fugir para a Itália, onde teria notável papel em servicos literários e eclesiásricos.
Os gregos não receberam do Ocidente nenhuma ajuda militar substancial e a tomaa turcos, em 1453, frustrou para sempre as esperangas da de C ~ n s t a n t i n o ~ lpelos politicas que haviam inspirado os esforqos pela união, em 1439. Nesse meio-tempo, a maioria em Basiléia prosseguiu para atos mais radicais, sob a direçáo do único cardeal que ficara com ela, o hábil e excelente mas ditatorial Luís d'illeman de Arles (1380)-1450).Em 1439 votou a deposiçáo de Eugênio IV e escolheu como seu sucessor um leigo meio-monge, o duque Amadeu da Sabóia, que tomou o nome de Félix V. Por essa época, entretanto, o concílio de Basiléra estava perdendo rapidamente a influência que ainda tinha, no mínimo porque era visto como precipitando um novo cisma papal. Eugênio IV, na verdade, havia triunfado, e foi sucedido em Roma por NicolauV (1447-1455).Félix V abandonou seu impos-
sjvel papado em 1449. O concílio enfrentou da melhor maneiia que
a sua
derrora, escolhendo como seu sucessor Nicolau V, decretando assim sua própria dissolução (1449). Embora a teoria cot~ciliarainda continuasse viva e viria a ser poderosa na +oca da Reforma, o fiasco em Basiléia havia realmente destruído a esperança de transformar o papada em uma monarquia constitucional, ou de efetuar as necessárias reformas por inrermédio da acáo de um concílio. O papado emergiu da resultante era de "resrauraçáo" como uma monarquia que novamente era absolutista em suas reivindica~óes,agora armada com a primeira definiçáa conciliar da primazia papal, ou seja, aqueia do decreto de união Lneterztur. meli, de 1439.
As rei~indica~óes absalutistas, entretanto, uma vez mais encontraram oposicão formidável, náo de concilias eclesiásricos mas das naçóes individuais que se haviam benef ciado do Grande Cisma e da "experiência conciliar". Os reis ingleses, por exemplo, nunca desde o cativeiro do papado em Avinhão tinham rido sucesso e assegurado sua parcela de nomeações e taxas eclesiásticas, e agora esravam determinados a preservar estes ganhos. O mesmo valia para os monarcas franceses. Em 1438 o rei Carlos VI1 (1422-14611, com o clero e a nobreza, adotou a assim chamada Sanção Pragmática de Bourges, pela qual foram legalizadas na França a maior parie das reformas pretendidas em Basiléia, livrando assim a França das opressoras taxas e incerferencias papais. A Alemanha náo teve ranra sorte. Lá, em 1439, os nobres no Reichstag em Mainz adotaram uma "aceiraçáo" que lembrava em muito a "sanqáo
pragmática' francesa; mas as divisões e fraqueza do país permitiram a intriga papai, de forma que essas provisóes forarli de efeito prático limitado pela coricordara de Viena, em 1448. Foram garantidos certos privilégios a príncipes em particular, mas a Alemanha como um todo continuou sob a opressão dos impostos papais. Por todo o período do Grande Cisma e dos concílios, uma nova forca estava assim manifesrando-se - a da nacionalidade. O concílio de Consrança autorizara as "naçóes" a negociar com o papado. A Boêmia havia lidado com sua situação religiosa como uma naqao. A Inglaterra e a França haviam assegurado seus direitos nacionais.
A Alemanha também havia tentado isso. Com o fracasso dos concílios em execurar uma reforma cornplera, as pessoas começaram a se perguntar se o que elas estavam buscando náo poderia ser alcançado mediante a acáo nacional. Esre era um sentimento qiie iria prosperar até a Reforma, e iria influenciar sobremaneira o curso daquela disputa.
Capítulo 15
O Renascimento Italiano e seus Papas; Líderes Reiigiosos Populares O evento intelectual mais notável còntemporâneo do papado em Avinháo e o Grande Cisma foi o início do Renascimento. Esta grande alteraçáo na perspectiva mental foi por muito tempo tratada como sem antecedentes medievais. Presentemente se reconhece que a Idade Média não faltou com atençáo às preocupaçóes ".
individuais" e "humanísticas", que o controle da igreja nunca foi tamanho a ponto
de tornar a sobrenaturalidade totaimente dominante, e que os monumentos literários da antiguidade latina, pelo menos, eram amplamente conhecidos. O reavivarnento do direito romano, começando por volta de 1100, havia atraído atençáo crescente para aquele traço normativo do pensamento antigo, primeiro na Itália e depois na França e AIemanha. Todo o século doze, ademais, havia testemunhado u m reavivamento da lógica e das artes liberais nas escolas, incluindo a redescoberra gradual da totalidade da coleção aristotélica, que culminou nas grandes summae reológicas do século treze, com sua atencáo característica à "natureza" não menos que à "grap". Todavia, quando todos estes elementos sáo reconhecidos, permanece verdadeiro que o renascimento dos séculos catorze, quinze e dezesseis envolveu uma sutil, e cumulativamente da maior significância, mudanca na perspectiva do mundo, na
qual uma ênfase relativamente maior foi colocada na beleza, dignidade e satisfação da vida presente do que em uma vida futura de bem-aventurança ou destruiçáo, e foi atribuido às pessoas mals valor como seres humanos do que como objetos de salva-
ção ou condenação eterna. O meio pelo qual essa transformação foi forjada foi uma reapreciaçáo do espírito da antiguidade clássica, especialmente conforme manifesto nos seus grandes monumentos literários. Aos olhos de seus principais participantes e patronos, o renascimento foi nada menos do que um "renascimento" (italiano,
renascimenro; francês, renaissdnce) da cuitura em geral, e da culcura clássica em particular, após séculos de "trevas" e "barbarismo".
O zelo pela redescoberta e estudo da literatura clássica foi primeiramente exibido na Itália, onde uma cultura urbana sofisticada estava se desenvolvendo desde o final
do século treze. O fundador do "humanismo" renascen~ista(stz~diuhumanitatis, o estudo das artes liberais ou humanas) foi Francisco Petrarca (1304-1374),que foi criado em Avinháo, onde passou a maior parte de sua vida até 1353, quando passou a viver principdmenie em Milão, Veneza e Pádua. Ele era um ávido leitor dos escritores latinos antigos, especialmente Cícero e Sgneca, nos quais modelou seu elegante estilo neo-latino. Ele tambérxz Foi um crítico resoluto da filosofia aristotilico-averroís~a,
e conseqüentemente da teologia escofástica, como inimigas da religião cristá. Sua
rejeiçáo do escolasticismo, portanto, náo implicou uma rejei~áoda fé e piedade cristã; ao contrário, expressou uma preferência consciente pelo clissico sobre a tradiçáo medieval. Em Petrarca encontramos, acima de rudo, a reivindicação insistente de
que os seres humanos e seus problemas, incluindo seu telacionamenro com Deus, deve ser o centro de todo pensamento e filosofia, de tal forma que tais estudos sáo verdadeiramente as "hurnanidades'"(humdnio~a). Para este fim, Petrarca tomou Santo Agostinho como seu guia inrelrctual e saudou Plaráo como o maior de todos os filósofos. Em rodos estes aspectos - sua "eloqüência" ciceroniana; seu antropocentrismo; sua oposição cio escoiasticisrno; sua exalraçáo da "sabedoria" agostiniano-piatônica; e sua convic~áode que a erudição clássica e a fF cristá podem ser reconciliadas - Petrarca surge como a fonte primária do movimento hurnanístico
e o símbolo do ejemento "moderno" na culrura renascetitista. O reavivamento da cultura literária latina, iniciado por Pe~rarca,foi logo acornp n h a d o por um "reavivamento grego", que anrecedeu em muito a queda de Constantinopla em 1453, embora posteriormente tenha recebido novo ímpeto com a chegada de refugiados daquela catástrofe. Já em 1360, um amigo e aliado de Petrarca, Joáo Boccaccio (13 13-2 375), autor do famoso Decumevun, trouxe Leôncia Pilatos da Calábria para Florença para lecionar estudos gregos. Em 1397, o ilusrre erudito bizaritino Manuel Chqsolaras (1355)-1415) foi indicado para a cátedra de estudos gregos na uriiversidadç de FIorença. Eritre seus notáveis estudarites estava Leonardo Bruni (1370)-1444)que, quando posteriormente chanceler de Florença, combinou o amor à erudicáo com a participaçáo ativa na plítica - um "humanismo cívico" que se rosnou um traço peculiar da cultura renascenrista. O concilio de Ferrara-Florença, em 1438-1439, ao juntar gregos e latinos, fomentou grandemente o desejo de dominar os tesouros literários do Oriente. Entre os líderes gregos nesse concílio estavam dois eminentes platônicos: Joáo Bessarion (1403-1472),arcebispo de Nicéia, que foi cardeal na igreja romana no final de sua vida; e George Gemisto Plethon (1355?-
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1450),o qual ensinou sobre Platáo em Florença e com isso inspirou o líder populista florentino, Cósimo de Médici (1389-1464),a estabelecer a assim chamada Academia Platônica, em 1462, sob a direção de Marcilio Ficino (1433-1499). Ficino, que se tornou padre em 1473, combinou o cristianismo com o neoplatonismo em uma "teologia platônica", que identificava os seres humanos como o centro de uma grande hierarquia de seres, e Cristo - o Logos divino feito carne como inrermediário entre os mundos material e espiritud. A "filosofia piedosa" de Ficino exerceu uma influência pofunda além dos Alpes em admiradores tais como Jacques LeFèvre dlÉtaples na França e Joáo Coleto na Inglaterra. Coleto, por sua vez, transmiriu-a a Erasmo. Quase tão influente foi outro membro da Academia Platônica, o brilhante jovem filósofo Joáo Pico de Mirandola (1463-1494),cuja Orardo
sobre a dignidade do homem é um dos escritos mais famosos do renascimento. Seu zelo pelo hebraico e pela tradiçáo rníscica da cabaia judaica iria inspirar Johannes Reuchlin e, por meio dele, introduzir os estudos hebraicos no humanismo sei-entrional. Os humanistas do renascimento italiano reviveram a literatura da antiguidade cristã como também da cultura clássica. O convento carnaldolese de Santa Maria degli Angeii, em Florença, tornou-se um centro para o estudo dos pais da igreja grega sob seu superior humanista, Ambrósio Traversari (1386-1439). O estudo da literatura patrística também recebeu as energias de Bessarion, Bruni e, especialmente, Lourenço Valla (1406-1457).Valla, que era primeiramente gramática e filólogo, desenvolveu tamanho senso crítico e histórico agudo, que foi capaz de denunciar a doacáo de Constantino (ver IV:4)como uma falsificaçáo do oitavo século, para demonstrar que os escritos atribuídos a Dionísio o Areopagita (ver 1II:lO) eram espúrios, e para negar que o Credo dos Apóstolos havia sido realmente composto pelos apóstolos. Eie também lançou os fur-idarnentosdos estudos textuais do Novo Testamento com sua comparação crítica da Vulgaca Latina com o texto grego.
O renascimento esteve longe de ser um reavivamento do paganismo. Podemos estar certos, os humanistas, dos quais a grande maioria era composra de leigos, direcionaram muito de seu interesse na modelaçáo de uma nova "moralidade secular" - um ideal de virtude e da vida virtuosa, extraído da sabedoria antiga - que seria direramente relevante para a vida política e comercial dos abastados cidadáos da classe alta das comunas italianas. Contudo, eles náo percebiam nenhuma contradiçáo hndarnental entre a ética cristã e a clássica, e de modo gerd procuravam nas
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fontes clássicas corroboraçáo para a verdade do cristianismo. Sua condenação da teologia escolástica - que náo deve ser exagerada, uma vez que muitos humanistas eram na realidade escolásticos "de mente reformada" - raramente envolveu a rejeiçáo da doutrina cristá básica. E os principais filósofos do renascimento - Ficino, Pico e Nicolau de Cusa (ver V: 17) - eram "agostinianos" em sua síntese de cristianismo e platonismo. A cultura renascentista, resumindo, embora primariamente "secular" e "laica", náo era intrinsecamente "irreligiosa" ou "anti-clerical". Aqui não é possíveI identificar, muito menos revisar, as notáveis, frequentemente monumentais, realizações da totalidade do movimento renascentista na pintura, escultura, arquitetura, música e literatura vernacuiar. Mas pelo menos deve ser mencionada, todavia, uma inovasão tecnológica sensacional, ou seja, a impressáo por meio de tipos móveis, que foi introduzida por volta de 1450 por Joáo Gutemberg, de Mainz. Esta invenção aumentou grandemente o público leitor, ao tornar os livros disponíveis em quantidade e a um preço razoável, e isso logo tornou possível a mais ampla disseminaçáo de erudição humanisca e, posteriormente, do ensino da Reforma. Em 1500, mais de duzentas casas de impressáo haviam sido estabelecidas nas terras européias.
Embora Florença fosse a "cidade rainhá' do renascimento, o rnovimen~ofoi influente em muitas outras cidades italianas, não menos em Roma, onde ele encontrou uma série de poderosos patronos entre os próprios papas, cujas cortes, e aquelas de seus cardeais, tornaram-se locais de exposiçáo da opulência renascentista. O primeique fundou a biblioteca ro dos papas do Renascimenco foi NicolauV (1447-1455), do Vaticano e desenvolveu ambiciosos projetos para reconstruir Roma. O próximo papa, o espanhol Alfonso Bórgia, que assumiu o nome de Calixto 111 (1455-1458), não era amigo do humanismo e estava intencionado, séria embora infrutiferamente, a promover uma cruzada para expulsar os turcos da recém-conquistada Constantinopla. Um ocupante mais notável do papado foi Enéias Sílvio Piccolomini, que governou como Pio II (1458-1464). No inicio da vida foi defensor do movimento conciliar, tendo sido participante ativo no concílio de Basiléia, e conquistou renome como escritor humanista de tom decididamente náo clerical. Reconciliado com Eugênio IV, ele tornou-se cardeal, e por fim papa, opondo-se a todas as idéias conciliares que havia defendido no passado; na bula Execabilis de 1460, ele proibiu todos os fucuros apelos do papa a um concílio !geral. Seus esforços perpetrados para instigar a Europa a uma cruzada contra os turcos foram novamente em vão. Apesar
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de sua atitude mutávet e frequentemente egoísta, ele teve a mais digna concepçáo dos deveres do ofício papal que qualquer papa da última metade do século quinze. Pio I1 foi seguido por Paulo 11 (1464-14711, um colecionador de antiguidades e amigo da erudição, que náo obstante suscitou a ira dos humanistas suprimindo a Academia Romana como pagã. Os papas seguintes, de Sisto IV (147 1- 1484) até Leáo X (15 13-
1521), foram patronos das artes e das letras, e !grandes construtores que adornaram Roma e fizeram daquela cidade o cenrro da arte italiana. Entrementes, nos anos seguintes ao concílio de Constanca, os ideais e arnbicóes do papado passaram por uma mudança dramárica. A Itália havia gradualmente se consolidado em cinco grandes estados: Veneza, Milão, Florença, Nápoles (ou reino das Duas Sicílias, como era chamada), e os estados papais (ou estados da igreja) na Itália central. Muitos territórios menores permaneceram fora desses grupos maiores e foram objetos de disputa. A política da Itália tornou-se uma luta caleidoscópica para expandir as possessóes dos poderes maiores e equilibrar uns contra os outros, uma luta na qual intriga, assassinato e duplicidade eram empregados em rima medida quase sem paralelo.
O papado mergulhou totalmente nesse jogo da política italiana. Sua maior preocupaçáo foi manter a independência política e consolidar e expandir os estados papais, o conrrole eferivo dos quais havia sido impossibilitado pela permanência em Avinháo e o Grande Cisma. Começando com o pontificado de Martinho V, o papa escoihido em Consrança, os objetivos e métodos do papado foram iguais àqueles dos outros estados italianos e, quaisquer que fossem suas hesitantes aspirações a monarquia universal, o papado agora tomava seu lugar como apenas um estado entre muitos estados competidores. Seus ocupantes foram reduzidos ao status de príncipes italianos, e o ofício papal tornou-se secularizado como em nenhum outro período de sua história, excero
o século décimo. Com Sisto IV, um ex-superior
geral da ordem franciscana, a ambiçáo política e o nepotismo desavergonhado tomaram controle quase completo da Santa Sé. Sisto guerreou concra Florença, procurou enriquecer e fazer prosperar seus parentes, e empenhou-se em estender os estados papais. Ele construiu extensivamente - a Capela Sistina preserva seu nome - e gastou táo liberalmente que somente o aumento dos imposros papais poderia evitar a bancarrota.
O próximo papa, Inocêncio VI11 (1484-l492),ficou notório pela maneira na qual buscou aumentar as fortunas de seus filhos (ele teve dezesseis), seus gastos extra-
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vagantes e sua venda de ofícios. Ele chegou até mesmo a receber uma pensáo anual do sultáo turco Bajazé I1 para manter prisioneiro o irmáo e rival deste, Djem. O sucessor de Inocêncio, o espanhol Rodrigo Bórgia - sobrinho de Calixto 111 - assumiu o nome de Alexandre VI (1492-1503), obteve o papado subornando os carde-
ais. Embora um homem de imoralidade desenfreada, ele era um bom administrador das finanças papais e possuía dote político considerável. Sua grande preocupaçáo foi fazer seus filhos bastardos prosperarem, especidmente sua filha, Lucrécia Bórgia, através de casamentos vantajosos, e seu filho inescrupuloso e assassino, César Bórgia, ajudando-o a conseguir para si uma principalidade com partes dos estados papais. Seu reinado assistiu ao início d o colapso da independência italiana quando, em 1494, o rei Carlos VI11 da França (1483-1498) invadiu a Itália numa tencativa de assegurar as reivindicações francesas ao reino de Nápoles. Em 1499, Luís XII da França (14981515) conquistou Milão, e em 1503 Fernando o Católico, da Espanha (1479-15 1.6), se apoderou de Nápoles. E a Itália tornou-se o miserável campo de batalha das rivalidades francesas e espanholas. Em tais circunstâncias, não foi fácil proteger e ampliar o poder temporal do papado, mas essa tarefa foi realizada pelo mais guerreiro de todos os papas, Júlio I1
(1503-1513), sobrinho de Sisto IV. As rixosas famílias Orsini e Colonna foram reconciliadas, César Bórgia foi expulso da Itália, as cidades da Romagna foram libertas de seus conquisradores venezianas, e as várias naqóes na Europa foram agrupadas em ligas, com a conseqüência de que os franceses foram, por aquela época, expulsos da Itália. Nesta disputa, Luís XI1 defendeu uma paródia de um concílio geral em Pisa (15 1I), ao qual Júlio respondeu convocando o Quinto Concílio Laterano em Roma. Ele se reuniu de 15 12 a 15 17, mas embora tenham sido ordenadas reformas, ele náo realizou nada de imporrância. Júlio I1 foi indubitavelmente um governante de gran-
de talento, que liderou seus soldados pessoalmente e foi animado por uma vontade de edificar os estados papais no lugar de enriquecer seus parentes. Como patrono da arte e construtor ele está entre os mais eminentes dos papas. Além de iniciar a construçáo da nova basílica de Sáo Pedro, inicialmente sob adireqáo de Donato Bramante (1444-1 5 14), ele comissionou Rafael(1483-1520) para executar os afrescos nos apartamentos julianos e Miguelângelo (1475-1564) para pintá-los no teto da capela Sisrina. Júlio TI foi sucedido por João de Médici, que tomou o nome de Leáo X (15 131521). A todos os prazeres artísticos e literários da grande família florentina da qual fazia parte, ele combinou o amor à ostentaçáo e gastos extravagantes. Muito menos
guerreiro do que Júlio 11, e livre dos vícios pessoais de alguns de seus predecessores,
ele náo obstante estabeleceu como sua meta principal a expansão dos estados papais e o equilíbrio das diversas facções da Itália, domésticas e estrangeiras, para a vantagem política do papado. Em 15 16, por meio da concordata de Boloiiha com Francisco I da França (1 5 15-1547), ele assegurou a abolição da anterior Sanção Pragmática de Bourges (ver V: 14),em termos que permitiam ao rei a nomeação de todos os altos cargos eclesiásticos franceses e o direito de taxar o clero, enquanto que as anatas e outros impostos semelhantes ficavam para o papa. No ano seguinte, iniciou-se uma revolta na Alemanha, cuja gravidade Leão nunca realmente entendeu, mas que iria afastar metade da Europa da obediência romana. Estes foram os papas que represenraram o renascimento italiano, mas eles de maneira alguma personificaram o espíriro real de uma igreja que era para milhóes a fonte de conforto nesta vida e de esperança para a vida vindoura. Nem o papado representou a vida religiosa autêntica da Itália. O Renascimento foi um movimento elitista, influenciando apenas as ciasses instruídas e superiores. As massas respondiam aos apeIos dos pregadores penitenciais e ao exemplo daqueles em quem elas discerniam os atributos de santidade. Durante os séculos catorze e quinze, viveram na cristandade latina cerca de duzentas pessoas às quais a igreja, naquela época ou mais rarde, concedeu beatificaçáo ou santificaçáo. A santidade era, pois, tanto praticada quanro reverenciada.
O pregador mais notável durante o início do Renascimento foi o dominical10 espanhol, São Vicente Ferrer (1350)-1419), natural de Valência. Entre 1399 e 1419, ele efetuou suas grandes jornadas missionárias pela Franqa, Espanha, Itália setentrional, e partes da Suíça, pregando milhares de sermões a grupos imensos de ouvintes, proclamando a irninência do ÚItimo Dia e convocando os fiéis à vigilância e à confiança na cruz de Cristo como sua única segurança. Defensor dos papas de Avinháo durante o cisma, Vicente procurou levar seus companheiros dorninicanos sob a obediência de Avinháo à estrita observância do ideal original de serviço apostólico de São Domingos. Ele ocupa assim um lugar de honra no movimento medieval tardio
de reforma monástica denominado "Observantino". Talvez a maior força religiosa na Itália do século quinze tenha sido o eloqüente pregador e reformador franciscano Sáo Bernardino de Siena (1380-1444), conhecido como "o apóstolo do nome santo" (seu símbolo era o nome de Jesus, circundado por raios de luz radiante). Ele foi responsável por reformas morais em muitas cidades
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italianas, e em 1438 tornou-se vigário geral dos obscrvantes franciscanos na Itália. Ele foi auxiliado em sua reforma da ordem franciscana por seu discípulo, Sáo Joáo Capistrano (1386-1456), outro pregador eioqtiente, que efetuou missóes por toda Itália, Espanha e França e, a partir de 1451, esteve ativo na Europa oriental, em reaçáo aos hussitas e ao avanço dos turcos. Entre os Iíderes religiosos altamente influentes encontramos uma contemporânea de Vicente Ferrer, Santa Cararina de Siena (1347-13801, a mística italiana bem conhecida do final da Idade Média. Ela também foi uma líder prática de negócios, serva dos pobres, doentes e prisioneiros, curadora de querelas familiares, agenre principal no propósito de persuadir o retorno do papado de Avinháo para Roma, denunciadora destemida do vícios clericais, e embaixatriz à qual papas e outros Iíderes ouviam com respeito. Entre seus discípulos escavam muitos dorninicanos, incluindo seu ex-confessor, Raimundo de Cápua (1330)-1399). Em 1380, Raimundo tornou-se ministro geral da ordem dominicana na obediência romana e, começando em 1389, lançou a reforma de sua ordem estabelecendo conventos de observantes dominicanos na Alemanha. Outro discípulo de Sanra Catarina, e também seguidor fervoroso de Raimundo, foi Joáo Dominici (1356?-1419), que estabeleceu conventos reformados na Itália.
Em 1393, ele tornou-se vigário geral dos observantes dorninicanos na Itália; em 1407, tornou-se arcebispo de Ragusa e, em 1408, foi elevado a cardeal pelo papa Gregório XII, do qual ele foi delegado ao concílio de Constança. Um dos convertidos de Joáo, Santo Anronino de Florença (1389-1459), estabeleceu o famoso convento dorninicano de São Marcos em Florença, em 1436, fazendo dele um centro da observância; em 1446 ele tornou-se arcebispo de Florenca. Aquela cidade, e o convento de Sáo Marcos (onde a memória de Sáo Vicenre Ferrer ainda estava viva), produziu um dos maiores pregadores do final do Renascimento, Girolamo Savonarola (1452- 1498). Natural de Ferrara, Savonarola havia sido endereçado à medicina por sua familia, mas uma desilusão amorosa levou-o a pensar na vida monástica. Em Bolonha, no ano de 1474, fez-se dominicano; oito anos depois foi transferido para São Marcos em Florença, 'do qual se tornou superior em 1491, restaurando-o à observância escrita e tornando-o o centro de uma congregação de casas reformadas. De início foi pregador de escasso êxito, mas em 1490 começou a atrair grandes multidóes com poderosos sermóes conclamando ao arrependimento e à conversáo, e adverrindo, em
vagos termos apocalípticos, sobre tribulaçóes iminentes. A invasáo francesa de 1494, que pareceu confirmar o status deste superior ascético como um profeta divinamente inspirado, provocou uma revoluçáo popular contra os Médicis, e Savonarola se tornou o vero governador de Florença, a qual ele procurou transformar em uma cidade penitencial. Muitos de seus habitantes adotaram uma vida semi-monástica. Os carnavais de 1496 e 1497 assistiram à "queima de vaidades": cartas, dados, jóias, cosméticos, perucas e livros e quadros indecentes foram todos entregues às chamas. Durante aqueles anos, a mensagem de SavonaroIa rambém passou por uma mudança notável, tornando-se mais otimista e anunciando Florença como a "cidade de Deus" e "o coração e centro da Itália". Sem dúvida esse apelo ao patriotismo cívico dos florentinos é responsável em parte pelo triunfo momentâneo de seu programa de reformas. Mas ele rambém suscitou inimigos formidáveis. Os partidários do deposto Mtdici odiavam-no, e o papa Alexandre VI, cujo mau caráter e desgoverno Savonarola denunciava, foi um adversário implacável, movido no mínimo pela política próFrança do frade. Agentes papais excomungaram-no em 1497 e exigiram sua puniçáo. Os amigos o apoiaram por um tempo, mas a volúvel populaça voltou-se contra ele.
Em abril de 1498 foi preso e cruelmente torturado; e em 23 de maio foi enforcado e seu corpo queimado pelos governantes da cidade. Bem menos espetacular, embora silenciosamente efetiva, foi a obra em Gênova de uma mulher notável de nobre nascimento, Catarina Fieschi Adorno, conhecida como Santa Catarina de Gênova (1447- 151O). Seguindo uma experiência de conversão extática em 1474, ela dedicou-se a austeridades estritas e vigílias penitenciais, e desfrutou do raro privilégio leigo da comunháo diária. Uma escritora mística de qualidade, seu maior servico foi o cuidado para com os pobres e os doentes desenganados no hospital genovês, d o qual tornou-se reitora. Devido a sua influência, um jovem advogado, Ettore Vernazza, e três de seus amigos fündaram em Gênova, em
1497, a fraternidade religiosa conhecida como o Oratório do Amor Divino, cujos membros buscavam alcançar uma vida de santificaqáo pessoal por meio de exercícios devocionais comuiis e obras de caridade e benevolência. Muitas associações semelhantes foram fundadas em outras cidades italianas nessa época.
Os veios de espiritualidade e reformas emanando destes líderes religiosos, e de movimentos relacionados tais como a D e v o ~ á oModerna na Europa setentrional (ver V:9), desembocaram no ribeiro maior de reavivamento religioso que é conhecido como a Reforma Católica d o século dezesseis (ver V1:ll). Parte da tragédia da
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igreja medieval tardia é que por tempo demais os papas permaneceram fora desses movimentos de reforma, náo exercendo nenhuma liderança efetiva neles e, no caso da maioria dos papas renascentistas, exibindo uma vida que era completamente inimiga de "reforma na cabeça e membros".
Capítulo 16
Os Novos Poderes Nacionais O meio século de 1450 a 1500 assistiu a um notável desenvolvimento da autoridade real e da consciência nacional nos reinos da Europa ocidentat. A França, que parecia bastante arruinada pela guerra dos cem anos com a Inglaterra (1337-l453), delas saiu com sua monarquia muito fortalecida, pois tais luras causaram grande prejuízo a nobreza feudal. Durante os últimos estágios daquela guerra, uma jovem camponesa visionária, Santa Joana d'Arc (1412-143 l ) , "a virgem de Orléans", suscitou no povo francês um novo sentimento de identidade nacional. Subseqüentemente, o asruto e inescrupuloso rei Luís IX (1461-1483), quebrantou o poder da nobreza feudal e assegurou para a coroa uma autoridade que até então ela náo possuíra. Seu filho Carlos VIII (1483-1498), foi capaz de dirigir o agora centralizado estado, numa campanha de conquistas externas na Itália quc iniciaria uma nova época na política européia e suscitaria rivalidades que determinariam o contexto político de toda a época da Reforma. O que esses reis buscaram através da centralizaçáo em casa, e mediante conquista no exrerior, foi avançado ainda mais por Luís XTI (1498-15 15) e pelo brilhante e ambicioso Francisco I (1 5 15-1547). A França era agora uma monarquia forte, centralizada, e sua igreja estava em grande parte sob o domínio real. A Concordata de Bolonha, em 15 16, aumentara o controle da coroa sobre as nomeaçóes clericais, sobre os impostos clericais e sobre as cortes eclesiásticas, ao mesmo tempo em que dava ao papa os ambicionados impostos. O papado, pela primeira desde o fim do Grande Cisma, escava disposto a negociar tais acordos para assegurar sua posiçáo política na Itália e recuperar sua primazia sobre concílios eclesiásticos, mesmo ao preço de entregar tacitamente seu controle cen~ralizadoda igreja fora da
HISTÓRIR DA IGREJA CRISIA
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Itália. Quando a Reforma surgiu, a igreja na Franqa era, sob muitos aspectos, uma igreja do estado. Na Inglaterra, as guerras das Rosas (1455-1485), entre as casas de York e Lancaster, resultaram na destruiçáo do poder da alta nobreza beneficiando a coroa e fornentaram no povo inglês o temor de uma guerra civil e o desejo por um governo forte. O parlamento sobreviveu, e com ele a supremacia da lei, mas o poder de Henrique VI1 (1485-1509), o primeiro rei da casa Tudor, foi maior do que o de qualquer outro soberano inglês no espaço de um século. Tal poder foi exercitado com notável habilidade, mediante uma vasta rede de patronagem real, por seu filho - ainda mais capaz - Henrique VI11 (1509-1 547). Os soberanos ingleses tinham alcanqado, a ~ n d aantes
da Reforma, um alto grau de autoridade em assuntos eclesiásricos, e a igreja na Inglaterra, como aquela na França, era em grande parte nacional ao terminar o século quinze. Em nenhum outro lugar este processo de nacionalizaçáo estava se desenvolvendo tanto quanto na Espanha, onde ele estava assumindo o caráter de um despertamento religioso que faria daquele país um modelo para uma concepçáo de reforma
-
frequentemente, embora de forma náo totalmente correta, denominada Contra-Reforma - que iria por fim manter a fidelidade de metade da Europa à igreja romana purificada. A ascensão da Espanha foi a maravilha política do fim do século quinze.
A
ibérica tinha estado quase totalmente isolada das principais correntes da
vida européia medieval, e sua história era a de uma longa e árdua cruzada para sacudir o jugo r n ~ ~ u l r n a nque o , lhe fora imposto em 71 1. No século treze a iuta resultara no confinamento dos mouros no reino de Granada e na formacáo de quatro reinos
cristãos; Castela, Aragáo, Portugal e Navarra. Estes reinos eram fracos e o poder real estava limi~adopela anárquica nobreza feudal. Uma mudança radical ocorreu em 1469, quando os dois reinos mais proeminen~esda península se uniram, através do matrimônio do herdeiro de Aragáo, Fernando (rei, 1479-1516) com a herdeira de Castela, Isabel (rainha, 1474-1504). E sob o reinado conjunto deles a Espanha ocupou novo lugar na vida européia. Os tumultuosos nobres foram reprimidos, a autonomia das cidades reduzida, e uma eficiente burocracia real estabelecida. Em 1492 Granada foi conquistada e absorvida por Castela. O mesmo ano presenciou o descobrirnenco do Novo Mundo por Colombo, velejando sob os auspícios de Isabel. Esta descoberta logo se transformou em fonte de consideráveis rendas para o tesouro real.
A invasáo francesa da Itálla em 1494 provocou a intervençáo espanhola e por volta
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de 1503 a Espanha já estava firmemente estabelecida em Nápoles e logo sua influência predominava em toda a Itália. Quando da morte de Fernando em 1516, estas enormes possessões passaram para seu neto, Carlos I, já herdeiro da Áustria e dos Países Baixos, e que logo ostentaria o título imperial de Carlos V. Subitamente a Espanha se tornara a primeira potência européia. Os reis católicos, Fernando e Isabel, dedicaram-se não menos energicamente a controlar e reformar a igreja do que a expandir sua autoridade temporal. Com certeza, nenhuma naqáo com uma história como a da Espanha poderia desejar mudança doutrinária ou ser menos do que dedicada ao sistema religioso do qual o papado era o cabeça espiritual. Entretanto, a Espanha acreditava que as ações papais nos assuntos administrativos deviam ser limitadas pelo poder real, e que essa mesma aucoridade deveria estimular e manter um clero culto, moralizado e zeloso. Estes objetivos eram especialmente caros à devota Isabel, e foram tão bem alcancados que o "despertamento espanhol" serviu de modelo à "Contra-Reforma". Em 1482 ambos os soberanos compeliram o papa Sisto 1V a assinar uma concordata que colocava sob o controle da coroa a nomeaçáo para os altos cargos eclesiásticos. Esta política foi logo desenvolvida de forma a exigir a aprovacáo real para que as bulas papais fossem promulgadas, as cortes eclesiásticas passaram a ser supervisionadas e foram criados tributos para o clero, que beneficiavam o estado. Fernando e Isabel passaram entáo a
reencher os cargos importantes na igreja espa-
nhola com homens não apenas dedicados aos interesses reais mas ainda de verdadeira piedade e zelo pela disciplina. Com essa finalidade contaram ambos com a cooperaçáo de muitas pessoas capazes. Dentre estas, quem mais se destacou foi Goiiqalo (posteriormente Francisco) Ximenes de Cisneros (1436-15 17). Nascido em família pobre da pequena nobreza, Ximenes estudou direito e teologia na universidade de Sdamanca e depois, em 1459, foi para Roma para servir à cúria por um tempo. Em 1465, quando regressou, seus talentos como administrador e ~ r e ~ a d ocombinados r, com sua firmeza de caráter e inteligência, recomendaram-
no ao influente Pedro Gonçalo de Mendoza, entáo bispo de Sigiienza e posteriormente arcebispo de Toledo. Por volta de 1480, Mendoza nomeou Ximenes vigário geral da diocese de Siguenza. Em 1484, entretanto, Ximenes renunciou a todas as honras e tornou-se monge franciscano da mais austera observância, assumindo o nome de "Francisco" e, náo satisfeito, fazendo-se eremita. Mas sua reputaçáo era tal que em 1492, logo após a queda de Granada, a rainha Isabel nomeou o monge asceta
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HISIORIA
DA IGREJA CRISTÁ
seu confessor particular. Daí em diante sua ascensão na hierarquia eclesiástica foi meteórica. Em 1494, Ximenes tornou-se vigário geral dos franciscanos observanteç em Castela; em 1495, por insistência de Isabel e contra sua recusa, ele sucedeu ao cardeal Mendoza como arcebispo de Toledo e primaz da Espanha, tornando-se dessa forma também o principal ministro de estado $a rainha; em 1507, foi nomeado cardeal e inquisidor geral; serviu também por duas vezes como regente para Fernando e Isabel. Com o apoio da rainha, dedicou todo o poder dos seus altos cargos ao propósito de reformar o clero, tanto secular quanto monástico, especialmente os franciscanos conventuais, cujos mosteiros ele sumariamente passou para os observantes. A totalidade da vida da igreja espanhola ficou sob sua severa disciplina. Mesmo não sendo um grande erudito, Ximenes compreendia a necessidade de um clero culto. Em 1498 fundou a universidade de Alcalá de Henares e a ela destinou boa parte de seus rendimentos episcopais. A universidade, que foi inaugurada em 1508, e a qual Xirnenes equipou com proeminentes eruditos, rapidamente se tornou o cenrro do humanismo crisdo na Espanha. O principal humanista espanhol
da época foi Antônio de Nebrija (1444-1522),a quem Ximenes levou para Alcalá em 15 12. Mesmo se opondo à leitura geral da Bíblia pelos leigos, Ximenes acreditava
que o principal estudo do clero devia ser a Escritura. O mais nobre monumento dessa convicçáo foi a Bíblia Poligioca Complutense (Complutum era o anrigo nome de Alcalá), publicada em seis volumes, cujos trabalhos Ximenes dirigiu de 1502 a
15 17. O Antigo Testamento foi apresentado em hebraico, grego e latim, com o targum aramaico sobre o pentateuco; o Novo Testamento, em grego e latim. O Novo Testamento já estava impresso em 15 14. A honra de imprimir a primeira edição completa do Novo Testamento em grego pertence, portanto, a Ximenes e seus colaboradores. Entretanto, como náo foi obtida permissáo papal para sua publicaçáo senáo em 1520, a editio princeps do Novo Testamento em grego foi a de Erasmo, publicada na Basiléia pelo impressor Joáo Froben em 15 16.
O impulso intelectual dado inicialmente por Ximenes frutificou por fim no reavivamento da teologia de Aquino, iniciado por Francisco de Vitória ( 1 485!-1546), na universidade de Salamanca, e continuado por seus discípulos, os grande teólogos romanistas da luta inicial com o prorestanrismo, Domingos de Soto (1494-1560) e Meiquior Cano ( 1 509-1 560).
A feiçáo menos atraente do caráter de Ximenes é encontrada na disposiçáo com que empregou a força para a conversá0 dos mouros derrotados em Granada. Em
v ~ ~ i e ue o
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1492 tinham-lhes sido concedidos generosos termos de paz,
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v elos quais fora-lhes
manter sua reiigiáo e seus costumes antigos. Tdis cermos foram observados até 1499, quando o implacável Ximenes lançou uma campanha sistemática de terror para forçar a conversá0 deles, até que finalmente, em 1502, todo muçulmano com mais de catorze anos de idade que não aceitasse o batismo seria expulso de Castela. Já em 1492, imediatamente em seguida a queda de Granada, Fernando e Isabel haviam decretado a expulsão de todos os judeus professos de seus domínios. Esta expuisáo dos judeus e dos mouros sem dúvida ajudou a unificar a Espanha, mas apenas ao preço da perda de muitos mercadores e hábeis artesãos, como também quadros de intelectuais - um preço que a Espanha mal poderia pagar. (Deve ser observado que os judeus haviam sido expulsos da Inglaterra já em 1290, e da França em 1306). Uma característica do despertamenco espanhol foi a reorganizaçáo da Inquisiçáo.
O temperamento espanhol considerava uma e a mesma coisa ortodoxia c patriotismo. E por isso julgava que judeus e muçulmanos praticantes, bem como convertidos muçulmanos e judeus relapsos (que sempre eram suspeitos de "hipocrisia"), fossem iáo perigosos para a igreja quanto para o estado. Concordemente, em 1478, Fernando e Isabel obtiveram uma bula do papa Sisto IV estabelecendo a Inquisiçáo, inteira-
mente sujeita à autoridade real e com inquisidores indicados pelos soberanos. Na Espanha, portanto, a Inquisiçáo era uma instituiçáo singularmente "nacional". Dirigida por um conselho real conhecido como a Suprema, ela mostrou ser um instrumento temível, inicialmente sob a liderança do inquisidor geral dominicano, Tomás de Torquemada (1420-1498).A Inquisiçáo espanhola preocupou-se especialmente com a extirpaçáo daqueles judeus e muçulmanos convertidos (os marranos e mouriscos, respectivamente) que supostamente haviam escorregado da fé e com a matiutençáo da "pureza de sangue" (limpieza de sangw) em todos os cargos do estado e da igreja. Ela também iria lidar severamente com os procestantcs espanhóis e todos aqueles suspeitos de "luteranismo". Portanto, ao terminar o século quinze, a Espanha possuía a mais independente igreja nacional na Europa. Nela se desenvolvia mais vigorosamente que em qualquer outro lugar uma renovação moral e inteiectual. Mas tal renovação não estava dcstina-
da a ser permanente. Ao mesmo tempo era uma igreja profundamente medieval na doutrina e na prática e de intoierância feroz para com as heresias e discord%ncias. Era muito diferente a situação na Alemanha. Não havia nenhum movimento em busca de centralização nacional, e faltava ao império qualquer crescimento genuíno
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RISTORIA 011 IGREJA CRISI&
de um governo centralizado. A coroa imperial, teoricamente eletiva, foi usada pelos membros da casa austríaca dos Habsburgos de 1438 até 1740. No entanto, o poder dos imperadores residia mais na sua qualidade de proprietários de terras hereditárias do que na sua autoridade imperial. Sob Fredetico 111 (1440-1493),guerras entre os príncipes e as cidades e a desordem da pequena nobreza, cuja vida muito frequent.ement.eera na verdade de salteadores de estradas, lancou o país em confusão tal que o imperador foi impotente para suprimir. Algo melhorou com o popular Maximiliano I (1493-1519). Foi feira uma tentativa para fortalecer a autoridade central por meio de reunióes frequenres do velho Reichstag feudal, o estabelecimento de uma suprema corte imperial (1 495) e um conselho de governo imperial ( 1 500), e a divisáo do império em distritos para melhor preservar a paz pública (15 12).
Houve também esforcas para formar urn extrcito imperial e coletar impostos imperiais. Estas reformas, no entanto, tiveram pouca vitalidade ou efeito duradouro. As decis6es da corte náo puderam ser apjicadas nem os impostos cobrados. O Reickstag estava fadado, na verdade, a desempenhar grande papel nos dias da Reforma, mas era um parlamento confuso, reunindo-se em três câmaras: a dos eleitores imperiais, a dos príncipes leigos e espirituais e a dos representantes das cidades imperiais livres. A pequena nobreza e o povo comum nele náo participavam. Uma característica notável depois de 1461 foi o aumento no número e frequência de reclamações kauamina) formais quanto ao exercício "arbitrário" da jurisdição
tr
fiscalismo papal no império.
As cidades imperiais, que eram cerca de oitenta e cinco no início do século dezesseis, não reconheciam nenhiim poder superior senáo o governo débil do imperador. Elas eram dinâmicas e prósperas, e algumas eram cenrros de arividade humanista, mas no final do século quinze estavam passando por um declínio ecoliôrnico e político. Seu espíriro comercial, e sobretudo sua auro-compreensão tradicional como "repúblicas sacras" soberanas, levou-as a resistir às pretensóes tanto do clero como dos príncipes.
A mensagem religiosa dos reformadores protestantes, com sua doutrina radical da igualdade espiritual do Iaicato e do clero, teria um apelo especid naquelas cidades, táo ciumentas de seus direitos cívicas e iiberdades e tão desejosas de recuperar sua antiga ascendência.
Em nenhum país da Europa estavam os camponeses, e na realidade o "homem comum", em estado de maior inquietaçáo, especialmente no sudoeste da Alemanha.
Ali ocorreram insurreiçóes em 1476 e 1493, seguidas por uma onda de rebelióes entre 1513 e 15 17.Desde o final do século catorze, na esteira da catástrofe demográfica
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causada pela Peste Negra e as grandes epidemias que se seguiram em seu encalço, os camponeses tinham sido sujeitos a crescentes limitações em sua liberdade de movimento e direito de livre matrimônio. No processo, eles perderam sua antiga condiçáo de "locatários" e tornaram-se "súditos" ou "servos" de seus senhores leigos e eclesiásticos. Estes estavam fazendo todo esforço para proteger seus próprios interesses políticos e econômicos mediance a vincuiaçáo a eles do campesinato em estrita deperidêiicia pessoal. Tal "senhorio" (Herrschaf2) trouxe consigo maiores impostos, restricóes esfoladoras quanto ao uso dos recursos comuns (bosques, ribeiros, terras comunais), e uma perda da autonomia tradicional das vilas. No início do século dezesseis, camponeses por todo o sul e centro da Alemanha profundamente descontentes, como também os artesáos e os artífices menores em muitas das vilas e cidades, que da mesma forma encontravam-se crescentemente sujeitos aos conselhos municipais oligárquicos e as políticas restritivas das pildas. Contudo, se a vida nacional alemá como um todo estava assim desordenada e dilacerada, grandes porçóes do território alemáo se fortaleciam, desenvolvendo um tipo de vida nacional local semi-independente. Isto era mais verdadeiro na Áustria, na Saxônia eleiroral e ducal, na Baviera, no Brandenburgo e no Hesse. Seus governarites estavam rapidamente desenvolvendo administraçóes centralizadas, e exerciam relativa autoridade sobre os negócios eclesiásticos, controlando a nomeação de bispos e abades, taxando o clero e limitando a jurisdiçáo eclesiástica. Porém, náo obstante a existência de uma igreja cerritorial ou "proprietária" nesses principados, o poder temporal da igreja romana continuava mais forrnidá\~elna Alemanha do que em qualquer outro lugar na Europa, uma vez que mais de um quinto do país estava sob o controle dos poderosos príncipes-bispos, e as ordens monásticas tambtm eram grandes latifundiárias. Tanto os camponeses como os burgueses descobriram ser os impostos destes senhores eclesiásticos particularmente onerosos. Os anos que antecederam à Reforma testemunharam dois matrimônios entre os governantes Habsburgos da Áustria que foram da maior importância para o concexro polírico da época da Reforma. Em 1477, a morte de Carlos, o Temerário, o ambicioso duque da Borgonha, deixou seus territórios na Borgonha e os Países Baixos à sua filha Maria. O matrimônio dela, naquele mesmo ano, com Maximiliano 1 desagradou a Luís XI da França. Este se apoderou da Borgonha superior, planrando a semente da querela entre os reis franceses e os Habsburgos, o que determinou grandemente a
européia até 1756. O filho de Maximiliano e Maria, Filipe,
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WtSTORiA i h IEREJI CRISTA
por sua vez casou-se com Joana, herdeira de Fernando e Isabel da Espanha. Foi assim que Carlos, filho de Filipe e Joana, veio a ser senhor da Áustria, Países Baixos e os vastos territórios espanhóis na Europa e no Novo Mundo - a maior extensão territorial governada por um único soberano desde Carlos Magno. Em 15 19 foi lhe adicionado o título de imperador. Carlos V herdou também a rivalidade dos Habsburgos com os reis da Fransa. Tal rivalidade e a luca por reforma religiosa iriam influenciar uma a outra durante todo o período da Reforma, constantemente modificando a ambas.
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c.:
Capítulo 17
Humatiismrio ao Norte dos Alpes; Piedade
às Vésperas da Reforma O humanismo renascentista chegou mais tarde nos países ao norte dos Alpes, onde as tradicões culturais e sociais medievais estavam muito mais firmemente arraigadas do que na Itália. A "nova erudiçãon estabeleceu-se pela primeira vez no norte da Europa na última metade do século quinze, e não se tornou uma influência poderosa senáo na última década do século. Suas conquistas foram primeiro na Alemanha do que na Franqa, Ingiaterra ou Espanha. Os eruditos do norte, é verdade, já haviam feito alguns conratos com os humanisras italianos na primeira metade do stculo, mais rnarcadamerite rio caso do filósofo e teólogo alemáo Nicolau de Cusa (1 40 1- 1464). No início um conciliarista convicto, Cusa tornou-se um fervente defensor do ~ a ~ a no d oconcílio de Ferrara-Fiorenca em
1438-1439; foi elevado a cardeal em 1448; tornou-se bispo de Brixen em 1450; e, em 145 1- 1452, serviu como represenranre papal na Alemanha. Neste último cargo procurou reformar a vida clerical e monástica. Quando jovem estudara direito çano~iico,matemática e astronomia por seis anos, em Pádua. Ali sofrera influência
humanista, aprendendo grego e latim clássico e desenvolvendo uma admiracáo perene pelo espírito crítico de Lourenço Valla. Porém mui dificilmente ele pode ser considerado liumanisca, embora em seus escritos tenha expresso uma maneira de pensar que transcendia a do escolasticismo. Suas obras foram primeiramente impressas em
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Estrasburgo, em 1490, e novamente em 1505, em Miláo; a edicáo mais importante delas foi preparada pelo proeminente hurnanista francês Jacques LeFèvre dÉtaples (em três volumes; Paris, 1514). Cusa permaneceu na tradição do misticismo neoplarônico e desenvolveu uma cosmologia e uma teologia filosófica altamente originais, cuja importância integral somente foi percebida nos tempos modernos, em conexão com as idgias de Gio~danoBruno, Leibniz e os idealistas alemães.
A idéia central de Cusa era da sínrese ou identidade dos opostos (coincidentia oppositurum), que ele expôs em seu primeiro tratado filosófico, De docta ignorantia (Sobre a doura ignorância, 1440). Ele via a Deus como a unidade infinita de todas as distinçóes e oposiçóes finitas no universo: porque Deus contém rodas as coisas, ele é o "envolvimento" (complicatio)delas; porque rodas as coisas vêm de Deus, ele é o
"desdobramenro" delas. Esta unidade náo pode ser conhecida pela razáo (ratio) discursiva, mas apenas por uma faculdade da intuicáo ou inteligência (intellectus) um modo de cornpreensáo que equivale a uma "ignoráncia erudita", pois percebe que a coincidência de todas as coisas em Deus transcende nossa razão. Esta unidade
também transcende o poder da linguageni, e assirri pode ser expressa somente por analogias e símbolos (matemáticos). O universalismo filosófico de Cusa levou-o, ademais, a buscar a unidade da fé na diversidade de religióes. Em 1453 ele escreveu um tratado, na forma de um diálogo platônico, sob o título Depace seu concordantza $dei (Sobre a paz ou harmonia da fé). Nesta obra ele comparou o cristianismo com o judaísmo e o isIamismo e chegou a notável conclusáo: há uma reIigiáo na diversi-
dade de ritos, uma verdade resplandecente em sua variedade. A luz de desenvolvimentos posteriores, o pensamento de Nicolau de Cusa pode ser interprerado com uma das primeiras expressões do individualismo e do universalismo modernos. Em sua própria tpoca, porém, seu gênio náo foi reconhecido, e ele não foi então associado com o humanismo. A introdução gradual do humanismo italiano no norte foi devida, em parte, à nova arte da imprensa, a qual forneceu aos crudiros do norre pronto acesso às obras dos humanisras italianos, incluindo suas ediqóes dos textos clássicos. Os humaniscas italianos também viajavam para o norte em diversas atividades - como diplomatas, paiestrantes, emissários eclesiásticos, secretários de corres de principados e de conselhos municipais, e representantes comerciais. Mas os verdadeiros pioneiros do humaiiismo n o norre foram os eruditos itinerantes que adquiriam um amor pelos clássicos na Itália e retornavam para casa cheios de ardor para propagar a nava erudi-
HISTÓRIII DA IPAEJA C R I L T ~
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çáo. Alguns de seus primeiros representantes na Alemanha, porém, eram pouco credenciados para recomendkla aos mais criticas. O mais conhecido dessa geração mal-afamada foi o poeta errante, de vida relaxada, Pedro Luder (1415?-1474), que nos anos após 1454 andava de universidade em universidade, conrendendo com professores conservadores para que eIes concedessein um espaço maior no currículo para a poesia e a retórica clássica. Um "apóstolo" bastante diferente foi Rodolfo AgricoIa (1444-1485), que estudou na Itália por dez anos (1469-1479) e terminou sua vida como professor renomado na universidade de Heidelberg. Agicola foi o membro mais influente da geraçáo mais antiga de humanistas alemães, e realizou enorme esforço para aumenrar o ensino de latim nas escolas secundárias da Alemanha e da Holanda. Um discípulo seu, Alexandre Hegius (1433-1498),dirigiu a escola dos Irmáos da Vida Comum em Deventer de 1483 a 1498 e fez dela o centro principal da educação secundária no norte, do qual Erasmo seria o pupilo mais famoso.
O humanismo também fincou pé nas universidades alemãs, como é demonstrado pela recepção recebida por Agricola em Heidelberg. Outro de seus discípulos, Conrado Celtis (1459-1508),o melhor poeta lírico entre os humanistas alemães, foi por um tempo professor de retórica em Ingolstadc; em 1497, a convite do imperador Maximiliano I, ele foi para a universidade de Viena e lá fundou o Colégio de Poetas e Matemáticos. Essa infiltraçáo humanisca inicial nas universidades praticamente náo
modificou a estrutura de ensino escolástica, pois os recém-chegados normal-
menee limitavam seu ensino a instrução nas Iínguas clássicas. Na primeira década do século dezesseis, entrecanto, o humanismo estava pressionando mais agressivamenre nas universidades de Basiléia, Tubingen, Ingolstadt, Heidelberg e Erfurt. 0 s defensores da nova erudiçáo esravam agora comecando a entrar nos recintos dos teólogos e desafiar os métodos e objetivos do estudo teológico tradicional. O humanismo também encontrou muitos patronos nas ricas cidades mercantis, especialmente Nuremberg, Estrasburgo e Augsburgo. Seus simpatiza~iteseram tão numerosos no final do século quinze que estavam sendo formados círculos de erudiqáo, como a Associaçáo Literária Renana organizada por Celtis em Mainz em 1491, cujos membros se correspondiam, emprestavam suas obras uns aos outros e forneciam assistência mútua. Em 1500 o humanismo estava se rornando um fator vital na vida intelcctua1 ajemá.
O humanismo nortista, apesar de toda sua dívida para com o humanismo italia-
no, náo era uma simples imitação do modeio italiano. Seus principais representantes
ie notabilizaram por sua fusáo especial da erudição clássica com a piedade bíblica
Novo Testamento), uma combinacão que recebeu o nome de "humanismo cristáo". Isto náo quer dizer que os humanistas italianos fossem pagáos ou anri-cristãos ou iub-cristáos; a maioria deles era Ied à igreja. Contudo, em seus escritos acadêmicos e lirerários - suas obras sobre gramárica, retórica, história e poesia, todas baseadas no escudo intensivo dos clássicos gregos e latinos - eles tendiam a evitar a explícita discussão de tópicos religiosos e reológicos. Neste sentido, o tom de seus escritos era predominantemente "secular". Os principais hurnanistas no norte, ao contrário, coniugavam expressamente a erudiçáo bíblica à erudiçáo clássica, recorriavam intencionalmente às fontes da antiguidade cristá como também da antiguidade clássica, e dessa uniáo das "sagradas letras" com as "letras humanas" surgiu um programa abrangente para a reforma da igreja e da sociedade, incluindo a reorientaçáo da piedade popular e da educa$áo teológica. Esse programa de reforma baseava-se no misricismo medieval, no platonismo renascentista e, em particular, na rradiçáo de "interioridade religiosa" derivada da Devotio modevna (ver V:9). Na Alemanha, o melhor do humanismo cristão foi visco em seus dois representanres mais faniosos, Reuchlin e Erasmo. (Erasmo, embora não quisesse ser identificado com nenhum era o iídcr titular dos humanistas demáes.) grupo naciond Johannes Reuchlin (1455-1522) nasceu em Pforzheim, em circunstâncias humildes. Muito cedo ganhou reputaçáo como latinista e, como acompanhante do jovem filho do margrave de Baden, foi enviado à universidade de Paris, cerca de 1472, onde começou a estudar grego. Em 1477 recebeu o grau de mestre em artes, em Basiléia, onde passou a lecionar grego. Ainda ames de sua publicou um dicionário latino (1475-1476), que se tornou bastante popular. Depois estudou direito em Orléans c Poitiers e no fim da vida ocupou posiçóes judiciais. No entanto, seu interesse principal foi sempre acadêmico. Em 1482 esteve em Florença e Roma, a serviço do conde de Wurttemberg, e novamente em 1490 e 1498.Já na sua primeira visita a Florença seu conhecimento de grego causou admiracâo. Lá conheceu e recebeu a influência dos sábios da Academia Platônica (ver V:15), e Pico de Mitandola lhe transmitiu o interesse por doutrinas cabalísticas que aumentaram bastante sua fama na Alemanha. Reuchlin foi considerado o maior conhecedor de grego na Alemanha nos Glrimos anos do século dezesseis, e sua influência na promoção dos estudos dessa língua foi muito frutífera.
Ele estava tomado do desejo renascentista de voltar is fontes e esse desejo o levou - primeiro dos eruditos não judeus na Alemanha - a fazer profundos estudos do
hebraico para poder entender melhor o Antigo Testamento. O fruto de vinte anos desse trabalho foi a publicaçáo, em 1506, de uma gramática e um léxico, Dc rudimentzs
Hebraicis, que colocou os tesouros dessa língua à disposição dos estudantes cristãos. A terrível luta a que esse pacífico erudito foi arrastado por causa desses estudos hebraicos, e com ele toda a Alemanha culta, será vista quando forem tratados os antecedentes imediatos da revolta lurerana (ver VI: 1 ) . Reuchlin náo era protestante. Recusou-se a aprovar a Reforma que comecava e da qual testemunhou até sua morte, em 1522. Prestou porém, inestimável serviço aos estudos bíblicos, e seu herdeiro intelectual seria seu sobrinho-neto Filipe Melanchton, o eminente erudito humanista entre os reformadores luteranos. Desidério Erasmo (1466?-1536),filho ilegítimo de um sacerdote, nasceu em Roterdá ou Gouda. Seus primeiros estudos em Deventer, onde Alexandre Hegius era diretor desde 1483, despertou seu amor pelas letras e apresentou-o à "devoção moderna" - a piedade interior, cristocêiltrica - dos Irmãos da Vida Comum, que também mantinham uma escola em H e ~ t o ~ e n b o s cahqual , Erasmo também frequentou em seguida. Em 1487, a extrema pobreza levou-o a ingressar no mosteiro dos cônegos agostinianos em Sceyn, onde permaneceu por seis anos. Durante este período ele teve oportunidade de estudar os autores clássicos e os humanistas italianos. Porém ere náo tinha inciina~áopara a vida monás~ica,nem para o sacerdócio, para o qual foi ordenado em 1492. Em 1493, ele conseguiu deixar o mosteiro para se tornar secretário do bispo de Cambrai. Em 1495 estava estudando teologia em Paris, no Collège de Montaigu (onde Joáo Calvino e Inácio de Loyola posteriormente ingressariam). Seus quatro anos em Paris deixaram-no com um desprazer permanente pela teologia escolásrica, mas Iá ele também conheceu humanistas franceses como Roberto Gaguin (1433-1 501), professor de direito e ciceroniano entusiasta. Em 1499, um momento decisivo em sua vida, Erasmo visitou a Inglarerra e familiarizou-se com os principais humanistas do reino, incluindo Joáo Coleto e Tomás More, ambos os quais seriam seus amigos íntimos. Coleto, que na época estava ensinando em Oxford a epístoia de Paulo aos Romanos, atraiu o interesse de Erasmo para um esrudo sério da Bíblia c dos pais da igreja. Tal estudo exigia o domínio do grego (que o próprio Colero náo possuis), e assim, em 1500 Erasmo retornou a Paris, e durante os próximos seis anos, em Paris e nos Países Baixos, ele aperfeiçoou
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conhecimento do grego; estabeleceu a base de sua erudiçáo literária, histórica e
ri,ológica; escreveu um número de obras importantes; e começou uma ampla corres2ondência com as principais mentes de sua época. Ele rerornou à Inglaterra para -ma breve visita no inicio de 1506, e entáo, no veráo daquele ano, deixou a Inglater:a
para uma viagem de três anos a Itália. Em setembro de 1506 ele recebeu seu
ioutorado em teologia na universidade de Turim. Ele passou o restante de sua escada - 1,isitando Bolonha, Florença, Veneza, Pádua, Siena e Roma
- realizando estudos
numanistas e de grego, desfrutando da cordial recepçáo que recebeu dos eruditos italianos em todos os lugares. Em 1509 Erasmo retornou à Inglaterra para sua terceira e mais longa visita, residindo com Tomás More e, de 15 11 a 15 14, palestrando sobre grego na universidade de Cambridge. Os anos de 1514 a 1521 foram gastos em sua maior parte na Holanda,
sarticularmenre em Bruxelas e Lovaina, com frequentes viagens a Basiléia, onde o 2ublicador Froben imprimia seus livros, incluindo uma ediçáo grega do Novo Testanento e edições das obras dos pais da igreja. Nessa época, ele era considerado por iodos o príncipe dos eruditos hurnanistas, a figura dominante no mundo literário curopeu. A inimizade dos teólogos expulsou-o de Lovaina em 1521, e pelos próximos oito anos ele residiu em Basiléia. Quando a Reforma foi incroduzida naquela cidade, em 1529, ele mudou-se para Friburgo. Erasrno morreu durante uma visita a Basiléia em 1536. Erasmo foi, acima de tudo, homem de letras que enfrentou os problemas de sua Epoca com destreza absoluta e um comando inigualável do estilo Latino. Criticou de maneira forte o clero e os governances civis sendo, no entanto, movido por propósi:os sinceros. Estava convencido de que a igreja de sua época estava submersa na juperstiçáo, na corrupçáo e no erro, que a teologia fora subvercida por uma dialética contenciosa, infrutífera, e que a vida monástica era muitas vezes ignorante e indigna. Não desejava, porém, romper com a igreja que com tamanha franqueza reprovava. Era muito avesso às dispuras para simpatizar com a revoluçáo luterana, cujos "rurnultos" o desagradavam, e muito não dogmático em sua religião para aprovar o alaque radical de Lutero sobre a doutrina tradicional. Ele era também muito perspicaz para não ver, e muito honesto para náo expor, os males e abusos predominantes da igreja contemporânea e do papado renascentista. Consequentemence, nenhum lado na grande disputa que irrompeu na ÚItima parte de sua vida compreendeu-o inteiramente, e sua memória foi por muito tempo condenada por escritores polêmi-
cos, tanto protestantes como católicos. Erasmo tinha seu próprio programa construrivo de reforma. Ele almejava a renovacâo da igreja e da sociedade por meio da educação e da eloquência - especificamente, mediante um retorno às fontes pristinas da verdade cristá, à Bíblia e aos pais, como cambém i sabedoria ética dos sábios antigos, a serem instiladas através da arte da persuasão por meio de discursos agradáveis. A ignorância, a superstição e a imoralidade também deveriam ser expostas e extirpadas por meio da ironia e da sátira. Ele trabalhou para tais fins, de 1500 até sua morte. Seu Enchiridion MiIjf;IsC b ~ b ~ i z n j (Manual [Adaga] do soldado cristáo), publicado em 1503. foi uma apresentaçáo simples, direta, de um cristianismo sem cerimônias e náo dogmático. cencrado na imitaçáo de Cristo e no deslocamento das coisas sensíveis, visíveis, para as realidades inteligiveis e invisíveis. Seu Moriae Encomium (Elogio à Loucura - 1509), que pâs a Europa a rir, foi uma sátira mordaz dos males de sua época na igreja e no estado. Seu
Colloquzn Fizmiliariu (Colóquios familiares - 1519) eram diálogos vívidos nos quais a veneração as imagens, as peregrinaçóes e observâncias externas semelhantes eram os alvos da zombaria de sua brilhante pena. Sua obra edir-orialfoi da mais alta importância. Em 15 16 veio a primeira ediçáo de seu Novo Testamento Grego, acompanhado por uma nova traduçáo larina e notas críticas. Esta fui a publicaçáo pioneira do texto grego, pois a de Ximenes ainda estava inacessível (ver V: 16). Esta obra foi seguida por uma série de trabalhos sobre os pais gregos e latinos - Jerônimo, Origenes, Basílio, Cirilo, Crisósrorno, Irineu, Ambrósio e Agosrinho, nem todos inteiramente de sua pena, mas todos de seu impulso, que colocou o conhecimento acadêmico sobre o cristianismo primirivo em um novo plano e assim auxiliou profundamente a Reforma.
O Enchiridion é a apresentaçáo mais completa da teologia positiva de Erasmo, a qual ele chamava "filosofia de Cristo" (philosophia Christi). O cristianismo é descrito conio uma religião universal, essencidmsrite ética, antecipada pelos fildsofos da an-
tiguidade e alcan~andosua expressão completa no Serrnáo do Monte, de Crisro. Esta religiiio t inrerior e espiri~ual,o "culto do invisível" no meio da vida no mundo, e é animada pelo amor de Cristo e a decisão dc seguir suas pegadas. O pensamento erasmiano era pois "otimista? na raiz, visco que o conhecimento da verdade impóe a capacidade de executar a verdade, embora a graça divina também deva assistir, com essa finalidade. As diferenças evidentes entre Erasmo e Lutero sobre as questões cardeais de "pecado e graça' e a liberdade do arbítrio humano conduziriam à famosa
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troca literária entre eles de 1524-1525 (ver V1:2) e a uma separação decisiva dos caminhos entre o humanismo erasmiano e o solafideísmo luterano. Contudo Lutero e os outros reformadores protestantes defendiam muito em comum com Erasmo e os humanistas cristãos, e permaneceram em dívida para com eles, sobretudo em sua preferência educacional pela Bíblia e pelos pais da igreja em detrimento dos doutores escolásticos, e em seu cultivo das línguas bíblicas e clássicas. A influência de Erasmo também pode ser vista na teologia sacramental de reformadores como Zuíngiio e Ecolampádio, que chegaram à Reforma por meio do humanismo e que defenderam o princípio erasmiano básico de que a vida do espírito não é nutrida pelas coisas corpóreas, externas, incluindo o corpo físico de Cristo (ver VI:3). Ademais, muitos dos reformadores católicos do final do século dezesseis foram herdeiros do programa
de reforma erasmiano, ainda que não fosse político admitir isso. Assim, ainda que ele tenha-se tornado um "herético" para ambos os lados na época de sua morte, o trabalho incansável de Erasmo produzira muito fruto. Embora o hurnanismo tenha exercido uma influência maior na Alemanha no início do século dezesseis do que em qualquer oucro país além dos Alpes, os mesmos impulsos estavam presentes em outros lugares. Os esforços de Francisco Xmenes na Espanha já foram observados (ver V: 16). Mas é necessário complementar, entretanto, que sua erudição humanista era de caráter principalmente filoIógico e que foi usada no serviço de uma ortodoxia católica militante, tanto que a igreja e a cultura espanhola se mostraram extremamente resistentes às idéias erasmianas. Assim, na Espanha a nova erudiçáo apoiou a teologia antiga. Na Inglaterra, o estudo sério de grego e dos clássicos foi introduzido na década de
1490 em Oxford por Guilherme Grocyn (1446?-1519) e Tomás Linacre (1460)-
1524), ambos os quais haviam estudado na ItdIid. Quem se tornou o líder dos humanistas crisMos na Inglaterra foi Joáo Coleto (1467?-1519), que ouvira as palestras de Grocyn e Linacre em Oxford. Sob a influência deles, ele foi para a Itália em
1493 e lá desenvolveu um interesse apaixonado pelo misticismo neoplatônico, como apresentado pelos platônicos florentinos. Quando de seu retorno à Inglarerra em
1496, ele começou a ensinar as epístolas paulinas em Oxford, e nessa condição direcionou Erasmo para os estudos bíblicos. Coleto não era um classicista notável. Sua principal contribui~áofoi introduzir um método histórico e literário de interpretaçáo dos textos paulinos, siruando-os em seu contexto histórico e examinando sua estrutura retórica para então expor seu conteúdo espiritual. Segundo sua avalia-
çáo, os teólogos escoiásticos haviam contaminado a "doutrina de Cristo" com sua "filosofia profana". Colero também se esforçou para melhorar o nível acadêmico e moral do clero, e com este objetivo fundou a escola de Sáo Paulo em Londres em 1508. Muiro mais humanisra e homem de letras do que Coleto foi seu amigo Tomás More (1478-1535), que era taientoso em grego como também em latim clássico. Foi enquanto residia na casa de More em Londres, em 1509, que Erasmo escreveu seu
Moride Encornium (Elogio à Loucura, que também pode ser traduzido como "Elogio a More"). A Utopia, de More (15 16), foi a mais famosa das priblicaçóes humanistas inglesas. O servi~oreal e a controvérsia religiosa consumiriam suas energias no final de sua vida, a qual terminou em martírio (ver VI:9).
O principal representante do humanismo criscáo na França foi Jacques LeFèvre d'É1aples (Faber Stapulensis, 1460i-15361, que passou seus anos mais ativos em Paris ou nos seus arredores. Homem modesto e bondoso, sua reflexlio religiosa foi nutrida náo apenas pelo neoplatonisino de Nicolau de Cusa (cujas obras ele publicou) e Marcílio Ficino (a quem se afeiçoara em uma de suas crês viagens à Itália), mas também por seu entusiasmo pela teologia mística de Dionísio, o Areopagita, Ricardo de Sáo Vítor e Raimundo Lulo. Ele ingressou na corrente central do humanismo cristáo determinado a recuperar o sentido original dos livros bíblicos mediante o método gramárico, em oposiçáo a exegese alegórica dos mestres medievais e suas disputas dialiticas sobre textos isolados. Em 1509 ele publicou o Psnltehum quincuplex, uma exposição crítica dos Salmos baseada ein uma comparaçáo filológica de cinco versóes latinas diferentes. Em 1512, apareceu sua rradu$áo das epístolas paulinas, acompanhadas por um comentário no qual negava o mérito justificante das boas obras e defendia que a salvação t um dom gracuiro de Deus. Mais tarde, escreveu comentários dos quatro evangelhos (1522) e das Epístolas Católicas (I 524). Ao mes-
mo tempo (1 523-1 525), publicou a traducáo francesa das versóes da Vulgata, do Novo Testamento e do Saltério. Embora LeFrève tenha sido atraído pelos primeiros escritos dos reformadores protestantes e frequentemente tenha sido suspeito de "luteranismo", ele náo teve inrenqáo de romper com a igreja romana. Ansiava por uma reforma religiosa, principalmente fundamentada na Bíblia, mas dentro dos limites da igreja escabelecida. Agregou ao seu redor um grupo de dedicados pupilos, destinados a uma participação muito diversificada no embate da Reforma: Guilherme Briçonnet, seria bispo de
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A IDADE MEDIA POSTERIOR
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Meaux; Guilherme Budé, especialista em grego, colaboraria na fundacão do Collège de France; Luís de Berquin, morreria como mártir protestante; e Guilherme Farel, que seria o intrépido reformador da Suíça francófona. Em parce como resultado da ênfase humanista nas fontes, porém mais ainda em conseqüência da invencáo da imprensa, a segunda metade do século quinze presenciou uma ampla distribuiçáo da Bíblia, na Vulgata e em traducóes. Antes de 1500 foram publicadas nada menos do que noventa e duas ediSóes da Vulgata. A primeira Bíblia alemá completa foi impressa em 1466; daí até 1522 apareceram vinte e duas ediçóes. O Novo Testamento foi impresso em francês em 1477, e a Bíblia completa dez anos depois. A Bíblia espanhola foi impressa em 1478, mas foi proscrita e queimada; apareceu outra tradução em 1492. Foram impressas em 1471 duas versóes italianas independentes. Nos Países Baixos, o Antigo Testamento com exceção do Salrério foi impresso em 1477, e os Salmos em 1480. Duas Bíblias tchecas aparece-
ram em 1488 e 1489. Embora i ~ á otenha havido Bíblia impressa na Inglaterra antes
da Reforma, estavam em circulação muitos manuscritos da Bíblia de Wyclif.
A Idade Média náo presenciou nenhuma proibicáo universal e absoluta de traduçóes vernaculares da Bíblia e de seu uso por clérigos ou leigos. Porém, frequentemente foram feitos esforços ao nível diocesano local para restringir a leitura da Vulgata e das tradu~óesvernaculares pelos leigos e por sacerdoces com má formação, uma vez que tal uso "privado" das Escrituras era considerado uma fonte primária de heresia. Portanto, a questáo central cercando o aumento da leitura da Bíblia no meio século antes da Reforma era o problema da interpretaçáo bíblica, nâo da autoridade bíblica como tal. A igreja medieval jamais havia negado a autoridade norsnativa da Escritura para a fé e a vida cristá, mas essa autoridade estava vinculada à interpretacão dada a Escritura pelos pais, pelos concílios eclesiásticos, pelos doutores reconhecidos e pelos pronrinciamentos oficiais dos papas. A auroridade da Escritura, resumindo, estava inseparavelmente ligada à tradição magisterial da igreja e com a própria autoridade da igreja como fiadora da "apropriada" interpretaçáo e utilizacáo da Bíblia. A crescente familiaridade com a Bíblia suscitou inescapavelrnente a questão de se a tradicáo magisterial da igreja era em rodos os pontos fiel às Escrituras em si. Os husnasiistas cristáos, por meio de sua convocaçáo para uma interpretaçáo histórico-literal da Bíblia e um retorno aos "pais antigos", efetivamente erodiram a autoridade interpreraciva dos doutores escoiáscicos e dos exegetas medievais "alegorizadores". Ficou para Lutero e os reformadores prorestantes concluir que a
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RISTIRIA DA IGREJl CIISTÁ
totalidade da tradiçáo magisterid da igreja estava sujeita a erro, e na prática havia frequentemente errado, quando julgada pelo ensino das Escrituras, somente. A radicalidade do "só a Escritura" (sola scriptura) da Reforma está portanto no fato de ter quebrado a suposta coerência e congruência entre Escritura e tradiçáo, da Bíblia e da milenar autoridade interpretativa da igreja. A Bíblia, possuidora de clareza suficiente em sua mensagem central de salvaçáo pela graça mediante a fé, somente, foi declarada como sendo sua própria intérprete.
A crescente disponibilidade de Bíblias impressas
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sobretudo de Bíblias
vernaculares e de edicóes parciais dos Salmos, dos Evangelhos e das Epistolas eventualmente possibilitou que a posição radical dos reformadores se apresentasse confiável a um grande número de clérigos e de leigos, que agora podiam ler a BíbIia por si mesmos e aplicar seu "teste" ao ensino e prática da igreja. Ainda mais influenre foi a pregaçáo popular dos reforrnadores, que expunham as Escrituras versiculo por versícuio aos seus ouvintes, sem recorrer i s tradicionais "glossas", e assim equipavam as pessoas a compararem a igreja contemporânea com a igreja do Novo Testamento e determinar o que era "cristianisino verdadeiro" na base exclusiva da "Palavra pura". N o início da década de 1520, a Biblia redescoberta havia-se tornado uma força revolucionária. Seria equivocado concluir, entretanto, que a piedade popular às vésperas da Reforma já estava em um estado de rebelião contra a igreja romana. Pelo contrário, aquela piedade, sobretudo na Alemanha, notabilizava-se por sua "igrejice"
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i.e., sua lealdade a doutrina, as instituiçóes e aos sacramentos da igreja medieval.
A devoção popular, ademais, escava passando por uma notável intensificaçáo: a Baixa Idade Média foi u m período de "despertamento" religioso. Muito dessa piedade, é certo, foi marcada por uma frenética preocupacáo com as formas externas de religiáo, motivada em grande medida pela miséria da existência, pelo temor da morte e do diabo, e por uma aspira~áoansiosa pela certeza da salvaçáo. Muito na vida popular da Alemanha, ao final do século quinze, tendia a aumentar o sentido de apreerisáo. A ilusáo da feitipria, 'embora náo fosse de forma alguma nova, estava se espalhando rapidamente. Uma bula do papa Inocêncio VIII, em 1484, declarou que a Alemanha estava repleta de feiticeiras, e os inquisidores alemáes, Jacó Sprenger e Henrique Kramer, publicaram seu dolorosamente célebre Mulleus rnale$carum (O martelo dos malfeitores), em 1489. Era uma superstição que adicionava medo à vida quotidiana, e seria compartilhada
~ ~ s i n ui o
A IDADE Mf DIA PDSTERIOR
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pelos reformadores náo menos do que por seus oponentes romanos. Os anos de
1490 a 1503 foi um período de fome na Alemanha. O perigo turco estava tornando-se arneaqador. A inquietação social geral já foi mencionada (ver V:lG). Todos estes elementos contribuíram para o desenvolvimento de um sentimento da realidade e proximidade do Dia do Juízo, e da necessidade urgente de se fazer as pazes com Deus e assegurar-se da bem-aventurança da vida vindoura. Esta situação ajuda a explicar o fortalecimento da importância dada à venda de indulgências, à veneraçáo dos santos, ao pagamento de missas pelos mortos e à realizaçáo de peregrinaçóes. Alguns dos peregrinos mais ricos viajavam para a Terra Santa, outros iam a Roma, mas o santuário de peregrinação mais popular no estrangeiro era aquele de Sáo Tiago em Compostela (Santiago de Compostela), na Espanha. Os santuários alemáes também viviam abarrotados, e eram feitas grandes coleções de relíquias, notadamente pelo eleitor da Saxônia, Frederico o Sábio (1486-1 525), mais tarde protetor de Lutero, que as exibia em sua igreja no castelo em Wittenberg. Paralelamente a este espírito religioso externo e confiante nas obras, a Alemanha revelava uma corrente de piedade bastante diferente, marcada por uma interioridade silenciosa e singela simplicidade que via a essência da religião na relaçáo da alma individual com Deus. Esta corrente alimentava-se na tradiçáo do misricisrno alemão (dominicano) e da Devatio moderna, que em meados do século quinze havia alcançado uma influência extremamente ampla. Aqui, tam-
bém, ~ o d e - s eencontrar um desejo ~ r o f u n d opela certeza da salvação diante da morre e do juízo divino - exceto que a bem-aventurança deveria agora ser alcançada náo pela multiplicaçáo de obras piedosas, ou por um formalismo religioso exagerado, mas pelo cultivo das virtudes interiores da humildade, caridade e sujeiçáo a inevitável vontade de Deus. Durante esse período, houve também um crescente sentimento da responsabilidade leiga pelo bem-estar da igreja. Os governantes territoriais e os conselhos municipais buscavam melhorar a qualidade do clero e reformar os mosteiros. Nas cidades autônomas da Alemanha e da Confederaçáo Suíça, ademais, há muito vinham sendo feitas tentativas para assegurar o controle sobre as instituiçóes eclesiásticas locais, para regular o clero secular e monástico e para reivindicar de diversas outras maneiras para o laicato, enquanto tal, um lugar central na vida religiosa da comunidade.
HISTbRIh Dh IGREJA ERtSTí
Portanto, não seria a uma época morta que Lutero falaria, mas a uma época agitada. por uma elevaçáo na devocão religiosa e uma profunda aspiraçáo por consolaçáo religiosa. Os povos europeus eram, no geral, ainda leais à igreja romana, mas também estavam buscando naquela igreja satisfaçáo para seus anseios mais profundos e por liderança efetiva em uma época de fervente inquietaçáo, temores apocalípticos e numerosos problemas náo resolvidos.
Periodo VI A Reforma Capítulo I
O Desenvolvimento de Lutero e os Prirnórdios da Reforma A Alemanha no início do século dezesseis era em muiros aspectos o pais mais "igrejeiro" da Europa. As irrupções heréticas da Baixa Idade Média haviam sido contidas com êxito. Embora a hierarquia eclesiásrica e as ordens monásticas continuassem a ser objetos de ampla crítica, o anticlericalismo virulento tinha pouca evidência. A autoridade papal permanecia maior na Alemanha do que em qualquer oucro grande país europeu, exceto a Itália. A devocão e a piedade leiga, conquanto permi-
rindo freqiienremente excessos dos mais selvagens, ainda fluia por canais tradicionais. As peregrinações e as missas pelos mortos eram mais populares do que nunca. A veneraçio dos santos, e~~ecialrnerite da Virgem Maria e de sua rnáe, Santa Ana, havia aumentado dramaticamenre. Havia muitas coleçóes de relíquias e a venda de indulgências se multiplicava. Eram construídas muitas novas igrejas, capelas e santuários. Leigos piedosos faziam doaçóes para o sustenta de pregadores, visando à pregaçáo regular, nas principais vilas e cidades. A participação nas fraternidades religiosas alcançava novas alturas. A literatura de origem ortodoxa era lida avidamente. Portane que a Alemanha (ou qualquer outro país europeu, no que se to, não se ~ a d dizer refere a essa questáo), estava em 1500 em um estado de revolucáo incipiente contra o governa e o poder venerável da igreja romana.
Abaixo da superfície, entretanto, havia forres correntes de descontentamento e desavença. A ruína da igreja era s r u fiscalismo. O papado renascentista invariavelmente vivia além de seus meios e frequentemente estava à beira da bancarrota, especialmente porque precisava de imensas somas para manter sua posiçáo polícica na Itália. Para enfrentar suas despesas, a Cúria papal criava novos e mais opressivos impostos, taxas e multas que pesavam por demars sobre o clero mais alto que, por sua vez, passava-os para o clero inferior e, por fim, para o Iaicato. Roma tornou-se um
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AISTBRIA
DA IGREJA GRISAI
sinônimo, especialmente na Alemanha, para venalidade e avareza. O fiscalismo trazia consigo, e constituía, fraquezas morais como a simonia clerical, o nepotismo, o pluralismo, o absenteísmo e a concubinagem. Os clérigos paroquiais, em particular, estavam em uma situaçáo terrível: com formaçáo mínima, frequentemente miseravelmente pobres e normalmente vivendo com concubinas (pelas quais pagavam uma multa anual para seus bispos), sua disposiçáo de ânimo, náo surpreendentemente, era muito baixa. Ainda que esses abusos e deficiências náo fossem novidades irem fossem, talvez, maiores do que nos períodos precedenres, a percepção deies como intoleráveis por um laicato cada vez mais alfabetizado e educado era um desenvolvimento agourerito.
O "despertamento" religioso da Baixa Idade Média, como aquele do século doze, suscitou enormes expectativas. A igreja institucional náo esrava sendo amea~adapelo secularismo ou pela indiferença para com a religiáo, mas por exigências de que ela se conformasse verdadeiramente à "igreja pura, apostólica" retratada no Novo Testamento. As pessoas zelosas não queriam menos mas "melhor" religião, que para eles normalmente significava "mais bíblica". O antigo clamor por "reforma na cabeça e nos membros", retrocedendo até o movimento conciliar do início do século quinze, recebeu dos humanistas cristáos no início do século dezesseis, liderados por Erasmo, nova aceitacão e vitalidade. Os humanistas imaginavam uma renovação moral e espiritual da cristandade latina por meio da incuicaçáo das letras sacras e humanas
-a
Sagrada Escritura e as artes liberais. Esse retorno "às fontes" (adfontes) das culturas clássica e crista - esse programa de "reforma por restauraçáo" - era comum tanto aos humanistas como aos reformadores protestantes e também determinava a percepção geral das classes cultas nas vilas e cidades. A ironia é que a igreja romana, no meio de uma nova onda de devoçáo religiosa, deixou de exercer a liderança moral e espiritual nos escalóes mais elevados e foi incapaz, no nível
de nutrir e guiar a pieda-
de leiga que estava germinando.
A religiáo popular às vésperas da Reforma, ademais, tinha um caráter paradoxal. Ela parece ter sido mais severa do que encorajadora. A nova devoçáo manifestava um cresceirte sentimento de temor diante das Últimas Coisas: a irnaginaçáo da morte, dores purgatoriais e o juízo universal no Último Dia engendravam uma preocupa~áo ansiosa pela salva~áopessoal. A igreja ensinava que o destino eterno de uma pessoa seria determinado por quáo efetivamente ela havia se apropriado das graças sacramentais da igreja para que pudesse apresentar obras verdadeiramente meritórias -
p~nbnpFI
I)
REFQRMA
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uma vez que apenas uma fé ariva em obras de amor podesia ser uma fé salvífica. Porem, essa correlaçáo tipicamente medieval de graça e mérito abria as consciências sensíveis para uma dúvida corrosiva: Será que eu realmente realizei obras que agradaram a Deus? Será que eu fiz o suficiente para estar seguro da aceitação divina! Tam-
bém hb forte evidência de que a totalidade do sistema sacramen~alda igreja, sobrerudo o sacramento central da penitência, era experiencjado pelos fiéis como mais opressor do que libertador, no mínimo porque os benefícios espirituais oferecidos pela igreja estavam muito frequentemente vrnculados a quesróes monetárias e propósitos políticos.
Está evidente que uma mensagem de consolacão religiosa para a consciência ansiosa, especialmente uma que também apresentasse esperanca de alívio para os abusos eclesiásùcos, exerceria um apelo poderoso em círcuIos amplos. Assim, tal mensagem arrastaria em sua esteira uma multidáo de pessoas que, por motivos tanto espirituais como materiais, sen~iam-semagoadas com a igreja romana. Conquanro seja verdadeiro, entretanto, que as pessoas tenham aderido à Reforma protestante por causa de motivos diversos, como era de se esperar em uma sociedade na qual religiáo
e polirica eram virrualmenre inseparáveis, tambim está claro que a Reforma alcan$ou grande sucesso popular porque ela atendeu, ou prometeu atender, às necessidades de muitas pessoas que aspiravam seriamente às consolações da religiáo cristá. Estas pessoas não eram inimigas ferozes da igreja medieval: eram perseguidores sinceros da salvação que procuravam auxílio na igreja e, nela não encontrando, voltavam-se contra a religiáo rradicional e seus representantes com roda a fúria de um amor desiludido. Um importante prelúdio à Reforma em círculos intelecruais alemáes foi uma
querela envolvendo um dos mais pacíficos e respeitados dos humanisras, Johaanes Reuchlin (ver V: 17). Em 1509, um recém-convertido do judaísmo chamado Pfefferkorn foi apoiado por Jacó Hochstraren (1460-1527),o inquisidor dominicano em Colônia, enquanto Reuchlin, em resposta a uma inquiri~áodo arcebispo de Mainz (Magúncia), defendeu a literatura judaica como desejável a náo ser por pequenas exceçóes, instou um conhecimento mais compieto de hebraico e advogou uma discussáo amigável com os judeus ao invés de confiscar os livros deles. O resultado Ioi uma controvérsia tormentosa. Reuchlin foi acusado de heresia e processado por Hochstraten. O caso foi apelado a Roma e até 1520, quando foi decidido contra Reuchlin.
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HISTÕRIA Dh IGREJA CRISIÃ
Os defensores da nova erudiçáo consideraram todo o procedimeilto como um ataque ignorante e injustificado contra a erudicáo e correram em defesa de Reuchlin. Foi desse círculo humanista que procedeu uma das sátiras mais bem sucedidas de todos os tempos - as Cartas de Homens Obscuros, de Crotus Rubeanus (1480?-1539)) c Úlrico von Hutten (1488-1523), publicadas entre 1515 e 1517. Fazendo-se passar por cartas escritas pelos oponentes de Reuchlin e da nova erudiçáo, as CUY~US foram amplamente ridicularizadas devido à sua latinidade bárbara, crivialidade e ignorância. Elas criaram, sem dúvida, a impress5o de que o grupo oposto a Reuchlin era hostil ao aprendizado e ao progresso. 0' resultado do caso Reuchlin foi unir os hurnanistas alemáes e traçar uma linha divisória entre eles e os conservadores; dentre os quais os dominicanos eram os mais proeminentes. Em 3 1 de outubro de 15 17, enquanto essa disputa estava em seu ápice, um professor monástico em uma universidade demá recentemente fundada e relativamente desconhecida, realizou de uma forma que náo era nem incomum nem espetacular, um protesto contra um abuso eclesiástico. Tal protesto encontrou resposta imediata e disparou a maior de todas as revoluções na história da igreja cristá. Martinho Lutero, que foi quem realizou esse protesto, é uma das poucas pessoas de quem se pode dizer que a história do mundo foi profundamente alterada por seu trabalho. Sem ser nem um organizador nem um poíitico, e muito menos um revolucionário autodeclarado, ele persuadia as pessoas pelo poder de uma profunda fé religiosa, fruto de uma. confiança inabalável em Deus e de relações diretas, pessoais, com Deris. Estas traziam uma certeza de saivaçáo que náo deixava lugar para as esmeradas estruturas hierárquicas e sacramentais da Idade Média. Objeto de ataques cáusticos por parte de detratores católicos romanos durante séculos, Lutero é hoje amplamente reverenciado em círculos católicos como um homa religioszks genuíiio e como um parceiro digno no diálogo teológico - uma mudança no~ávelque tem surgido a partir do movimento ecumênico moderfio e da pesquisa histórica desapaixonada. Porém, seja reverenciado ou oposto, ninguém pode negar que Martinho Lutero ocupa um lugar preeminente na história da igreja. Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483 em Eisleben, onde seu pai trabalhava em uma mina de cobre. Seus pais eram de piedade simples, convencional; náo há nenhuma evidência de que eles tenham tratado seus filhos com severidade indevida ou os sobrecarregado com excessivas exigências religiosas. O pai, um homem ambicioso de origem camponesa, mudou-se com sua família para Mansfeld poucos meses
rteioio v i
R REFORMA
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após o nascimento de Martinho, e Iá alcançou respeito cívico e considerável prosperidade na atividade mineira e ficou determinado a dar a Martinho (o segundo dos oito filhos) uma educaçáo que o levasse à carreira em direito. Após estudos preparatórios em Mansfeld, Magdeburgo e Eisenach, Martinho Lutero ingressou na universidade de Erfurt em 150 1, onde ficou conhecido como um estudante diligente, amigável e amante da música. E r h r t era naquela época a mais humanisticamente avançada das universidades alemás, e Lutero ficou sob a influência do novo movimento. Embora nunca tenha se tornado um humanista no sentido completo do termo, Lutero partilhou de fato do entusiasmo do movimento pelo estudo das línguas antigas, especialmente a grega, e de sua crítica baseada na Biblia e nos escritos dos pais da igreja à teologia escolástica.
O jovem Lutero sentia fortemente aquele sentimento profundo de pecaminosidade e ansiedade que era a pedra fundamental do reavivamento religioso na época na Alemanha. Seguindo à sua graduação como mestre de artes em janeiro de 1505, ele ingressou na escola de direito em maio. A morte súbita de um colega de classe marcou-o profundamente, assim como o retorno para Erfurt de uma viagem à sua casa. Nessa oportunidade ele escapou por um triz de um raio - como conseqüência, fez
um voto a Sanca Ana de tornar-se monge. Para o desgosto de seu pai, ele rompeu com seus estudos em direito e, ein I7 de julho de 1505, ingressou no mosteiro dos eremitas agostinianos em Erfurt, confiante de que a vida monástica era o caminho mais seguro para a salvaçáo de sua alma. A "congregaçáo alemá" dos frades agostinianos, recentemente reformada por André Proles (1429-1 503) e entáo sob a supervisáo de João Staupitz (1460?-1524), desfrutava de merecido respeito popular e representava o melhor do monasticismo medieval. A ordem agostiniana valorizava muito a pregaçáo e o estudo da Bíblia, e contava entre os seus o famoso erudito agosriniano do século catorze, Gregório de Rimini (ver V:8), a quem Lutero consideraria com elevada reverência como o único teólogo escolástico livre de qualquer mancha de pelagianismo. Os tratados antipelagianos do próprio Agostinho também seriam, obviamente, importantes para o desenvolvimento teológico de Lutero. E seria Staupitz, em especial, quem mais influenciaria Lutero, a ponto deste dar-lhe o crédito por ter iniciado a Reforma. Lutero rapidamente conquistou reconhecimento na vida monástica. Em 1507 foi ordenado ao sacerdócio e no ano seguinte estava em Wittenberg, por ordem de seus superiores, ensinando ética aristotélica e preparando-se para um futuro magisté-
rio na universidade que ali fora estabelecida em 1502 pelo eleitor da Saxônia, Frederico
111, o "Sábio" (1486-1525). Aii bacharelou-se em teologia em 1509, mas foi enviado no mesmo ano de volta a Erfurt para estudar para o grau de setentiarius, ou expositor licenciado daquele famoso compêndio medievd de teologia, as Sentença de Pedro Lombardo. De novembro de 151O a abril de 15 11 fez memorável viagem a Roma, cuidando de negócios de sua ordem. De volta novamente a Wittenberg, que passou a ser daí em diante sua casa, recebeu o grau de doutor em teologia em 1512 e tornouse o sucessor de Staupitz como professor de Bíblia da universidade. Ele logo iniciou uma série de preleçóes exegéticas dos Salmos (15 13-15 15), de Romanos (15 15-15 1G), de Gálatas (1516-1 51 7) e Hebreus (15 17-15 18j. No decorrer de seus estudos doutorais, e em prepara580 para suas primeiras preleçóes, Lufero familiarizou-se com todas as tradições exegéticas, místicas e escolásticas da teologia medieval, como também com a nova erudiçáo humanista de Jacques Lefèvre d'Étaples, Reuchlin e Erasmo (ver V. 17).Ao se enfocar as tentações espirituais (Anfechtungen) de Lutero no mosteiro, frequentemente é negligenciado que ele era um teólogo brilhante e erudito de primeira qualidade. Suas habilidades práticas foram reconhecidas com sua nomeaçáo, em 15 12, para diretor de estudos em seu próprio convento e, em 1515, para vigario distrital responsável por onze mosteiros de sua ordem. Ele já havia começado a prática da pregação regular antes disso, primeiro em seu próprio convento (151 1) e depois (1514) na igreja de Wittenberg, em cuja atividade ele revelou dons notáveis desde o início. Portanto, em sua ordem ele possuía a reputaçáo de monge de piedade, erudição, dedicaçáo e zelo singrilares. No entanto, apesar de todo o rigor monástico, Lutero náo encontrava paz de espírito. Seu sentimento de pecaminosidade diante de um Deus santo e justo esmagava-o, e náo fora aliviado, antes agravara-se, pela prática da penitência e das obras ascéticas. Staupitz auxiliara-o ressaltando que a verdadeira penitência comesa náo com temor de um Deus punitivo, mas com amor para com Deus. Mas se Lutero pode dizer que Staupitz abriu seus olhos peia primeira vez para o EvangeIho, a clarificação de sua visáo foi um processo lento e gradual. Até 1509, Lutero dedicou-se aos últimos escolásticos, os teólogos nominalistas - Occam, Ailly e Biel. Lutero deveu a eles sua habilidade dialética, sua desconfiança de uma razão especulativa que rranscende os limites da revelaçáo, e talvez também sua ênfase na vontade de Deus como a única base de salvaçáo (pois conquanto os nominalistas deixassem espaço para as obras meritórias tanto antes como depois da justificação do pecador, eles em última
~tniouaui
A REFORMA
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. . :cerrco ::,iado
parte de Deus). Em 1510, entretanto, o estudo que Lutero estava fazendo de Agosti-
:xitor
nho e dos agostinianos do fim do período medieval estava lhe abrindo novas pers-
?edro
pectivas, levando-o a uma hostilidade rapidamente crescente em relação à predomi-
instância vinculavam o valor salvífico de tais obras à graciosa aceitaçáo delas por
7
-toma,
nância de Aristóteles na teologia e em retaçáo à teologia nominalista como um "novo
>assou Iirnou-
peiagianismo".
ziciou
de que a salvaçáo é um novo relacionamento com Deus, alicerçado não em qualquer
ij16), i dou-
obra meritória humana mas na confiança absoluta na promessa divina de perdão por
Ao tempo em que Lutero estava ensinando Romanos, ele já se havia convencido
causa de Cristo. A lei de Deus, com seu rigoroso comando para se viver em santidade
t
com
diante de um Deus santo, náo foi dada como um meio de salvação mas existe para
':
ram-
convencer os pecadores de seu pecado, para humilhar o orgulhoso e esmagar o h ~ p ó -
.:amo
crita. O Evangelho, com sua mensagem radical de que "Deus justifica o ímpio" pela
: mos-
fé a parte das obras,' sustenta os pecadores que se arrependem e os reconcilia com
iiro de
Deus. A pessoa redimida, portanto, ainda que náo deixando de ser pecadora, já está
~rnea-
graciosa e plenamente perdoada, e desse novo e jubiloso relacionamento com Deus
para
em Cristo agora flui a nova vida de voluntária conformidade à vonrade de Deus. A
i cçado
fé, entendida como a firme confiaqa do coração (jducia cordis) na misericórdia de
:jll)
Deus por causa de Cristo, está assim aciva nas obras de amor - náo como fruto de
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compulsáo porque a salvaçáo dependa de tais obras, mas como fruto de gratidão
:do de
porque a salvaçáo já foi usseguvada. O amor é o fruto espontâneo da fé e está direcionado para o bem do próximo; náo é uma condiçáo para a aceiraçáo de alguém
?az de
diante de Deus. Conseqüentemente a fé, não o amor (como na teologia escolásrica),
:sma-
é o vínculo que une a alma a Deus.
obras 2. não
Aqui estava uma re-ênfase no aspecto mais importante do ensino paulino, uma vez que Lutero, como Paulo, fazia da salvação essencialmente um relacionamento
-utero clari-
pessoal correto com Deus (ou seja, com o próprio Deus como "Graça Náo-Criada",
.e aos
relacionamento correto é a rnjsericórdia imerecida de Deus demonstrada nos sofri-
a rians:orno x a as LtLma
mentos de Cristo em favor da humanidade. Cristo carregou nossos pecados; e a n6s
t'. eu
e não com as "graças criadas" dos sacramentos da igreja). O alicerce e penhor desse
é imputada a própria justiça de Cristo e, em fé, entramos em uma união viva com
ele. Alguns dos místicos alemáes, especialmente,Tauler, com sua religião cristocêntrica, R o m a n o s 1:17;4:5.
ajudaram Lucero a chegar h conclusâo de que essa confiança transformadora náo é, como ele havia suposto, uma obra na qual podemos participas, mas é totalmenre a dádiva de Deus a pecadores humildes, auto-acusado~es.
O desenvolvimenro de Lutero foi ral que no início de setembro de 1517 ele preparou uma D i s p ~ zContl'd ~ ~ a Teologia Escolksra'ca - novenra e sere teses apresentando um ataque verdadeirarnence radical sobre praticamente a roraiidade do escolasticisrno medieval, incluindo a VZLZ antiguitl (tornistas e ~ S C O ~ ~como S E ~também S) a viu moder-
na (occamisrds). Ele agora declarava que a ênfase norniilalisra rtilficrre quod zrr se est - o ensino que Deus infalivelmente infundiria graca naquelas pessoas que, em um
estado de natureza, fizeram o bem que podiam - era absurda e pelagiana, na realidade pior do que pelagiana (ver V:8). Ele também condenou os primeiros escolásricos por
ensinarem que pecadores justificados cooperam em sua salvaçáo mediante a realizaçáu de obras meritórias dentro de um estado de graça {ver V:7). Pzra Lutero, qual-
quer conversa de "mérito" no tema da justificacáo era blasfêmia e heresia (pelagiana). Assim, ele subverteu o fundamento de rudo o que considerava jrisrificaç.áo pelas obras no ensino tradicional da igreja. Lutero não chegou a estas idéias por meio de um larnpejo súbito de iluminação. Sua famosa "irrupçáo evangdlica", que os estudiosos tem procurado datar com precisáo falaciosa, estendeu-se por um periodo de anos. desde suas primeiras palestras sobre. Salmos eni 3 5 13- 15 15 até seu segundo curso sobre Salmos que se iniciou no final de 15 18. Duranre esse período, sua posi~áoassumiu clareza e certeza crescentes, no mínimo por causa de seu envolvimento na controvérsia sobre as indulgências e seu ulterior julgamento diante das autoridades eclesiásticas. Conquanto em 151515 16 Lutero ainda pudesse falar da fi que justifica aquele marcado pela humikdade,
no início de 1519 esrava ensinando consisrentemenre que o pecador P justificado (aceito, absoIvido, perdoado) diante de Deus
fisomente - isto é, pela depend6n-
cia e confiança absoluta no Evangelho do perdão gracioso, a "Palavra de Deus". No início de 1517 Lutero náo estava só. Na universidade de Wirtenberg, sua oposição ao arisroteiismo e ao escolasticismo, em favor de palestras sobre a Bíblia e os pais da igreja, encontravam muita simparia. Seus colegas, André Bodenstein de Karlstadr (1480-1 54 I), que, ao conrrsrin de Lurero, havia sido educado na vi~~zntiqua, t. NicoIau
von Amsdorf ( 1483- 1565), agora se tornavam seus sinceros correligioná-
rios. A universidade logo rornou-se a ponta de lança da Reforma luterana. No final de 1517 Lucero sentiu-se compelido a falar contra um abuso gritante. O
L
~ r a l o i oui
A REFORMA
497
papa Leáo X (1 513-1 52 1) pouco antes havia emitido uma dispensa permitindo que Alberto de Brandenburgo (1490-1545)ocupasse ao mesmo tempo o arcebispado de Mainz, o arcebispado de Magdeburgo e a administraçáo do bispado de Hdberstadt.
A dispensa dos regulamentos da igreja contra "pluralismo" (múltiplos ofícios) cusrara uma grande soma a Alberro, a qual ele tomara emprestado da casa bancária Fugger, de Augsburgo. Para poder pagar esse empréstimo, também foi concedido a Alberto partilhar metade da renda em seu distrito da venda de indulgências que o papado estava emitindo, desde 1506, para a construcáo da nova basílica de Sáo Pedro e que ainda hoje é um dos ornamentos de Roma. Um dos comissionados para essa arrecadação foi João Tetzel(1470- 15 I?), um eloqüente monge dominicano, que, desejando os maiores resultados possíveis, descrevia os benefícios das indulgências nos termos mais grosseiros. Lutero mesmo náo tinha nenhum conhecimento das transacóes financeiras entre Alberto e o papa. Suas objeções ao procedimento eram pastorais e teoldgicas: as indulgências criavam um falso senso de segurança e portanto sáo destrutiva~do verdadeiro cristianismo, o qual proclama a cruz de Cristo e do cristáo, não libertacão de castigo merecido. Quando Tetzel se aproximou da Saxônia eleitoral - ele náo recebeu permissáo para entrar, embora muitos membros da congregaçáo em Wittenberg tenham atravessado a fronteira para comprar cartas de indulgência - Lutero pregou contra o abuso das indulgências e preparou suas memoráveis "Novenra e cinco teses". Em 31 de outubro de 1517 ele enviou cópias delas para o arcebispo Alberto de Mainz e para o bispo Jerônimo de Brandenburgo, em cuja jurisdi~áoencontrava-se Wirtenberg. Se Lutero naquele dia também afixou ou náo suas teses na porta da igreja d o castelo em Wittenberg, que servia como painel de afixação dos boletins da universidade, é tema de controvérsia entre os historiadores, embora seja bastante possível que ele realmente tenha feito isso. Consideradas em si mesmas, é de se admirar qual o motivo que fizeram das noventa e cinco teses a fagulha que iniciou a explosáo. Elas foram escritas em latim e planejadas para o debate acadtrnico. O tom e conteúdo delas sáo muito menos incitantes do que as noventa e sete teses de Lutero de setembro de 15 17, náo obstante Lutero estar agora atacando uma fonte lucrativa de renda eclesiástica e também estar tocando em questões bastante sensíveis sobre a autoridade papal. Suas teses, entretanto, não negavam o direito do papa de conceder indulgências. Elas questionam a extensáo das indulgências ao purgatório, e tornam
evidente os abusos permitidos pelo ensino corrente - abusos que elas implicam que seriam repudiados pelo papa quando este fosse informado. Conquanto as teses estejam longe de expressar a totalidade do pensamento de Lutero, elas demonstram certos principios que teriam conseqüência revolucionária.
O arrependimento náo é um simples ato de penitência, mas uma constante mudança de coração e mente que se estende por toda a duraçáo da vida da pessoa. O cristáo ao invés de evitar, busca a disciplina divina. O verdadeiro tesouro da igreja náo sáo os méritos superabundantes de Cristo e dos santos, sujeitos ao controle papal, mas "o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus", oferecido graciosamente por pregadores fiéis a pecadores arrependidos.' Na situação de agitação social em que se encontrava a Alemanha, foi um evento do maior significado que um líder religioso respeitado, embora humilde, tivesse falado corajosamente contra os abusos econômicos, teológicos e pastorais associados com o sacramento da penitência. Dentro de semanas, as noventa e cinco teses, traduzidas para o alemáo, espalharam-se dentro do império de norte a sul e leste a oeste. Os agentes primários nessa disseminação foram as irmandades humanistas nas cidades alemás, entre cujos quadros Lutero encontrou seus primeiros afiados fora de Wittenberg. Lutero náo havia previsto tal rebuliço. Logo surgiu um formidável oponente na pessoa do hábil polemista Joáo Maier de Eck (1486-1543), professor de teologia na universidade de Ingolstadt e antigo amigo de Lutero, que respondeu com um tratado circulado manuscrito e intitulado Obelisci. Sendo acusado de heresia, Lutero defendeu sua posição em um sermáo intitulado "Graça e indulgência", e replicou a Eck com seu próprio manuscrito náo publicado cujo título era Asteriri. No início de
1518 o arcebispo Alberto e os dominicanos fizeram chegar a Roma acusa~óesformais contra Lutero. O resultado foi que o superior geral dos agostinianos, Gabriel della Volta, recebeu ordem para encerrar a disputa, e Lutero foi convocado a se apresentar diante do cabido geral da ordem que se reuniria em Heidelberg em abril de
1518. Lá, em suas importantes "Teses de Heidelberg", Lutero argumentou contra o livre arbítrio e o controle de Ariscóteies sobre a teologia e esboçou os traços principais de sua "teologia da cruz". Lá ele também coliquistou novos seguidores, dentre os quais os mais imporcances foram Martinho Bucer (1491-1551) e Joáo Brenz (1499-
' J. ~elikane H. T.Lehmann, eds., L í ~ t h t W ~ jO T ~ 55I volumes , (St.
Louis e Philadelphia, 1955-1976), 31:31
(tese 62). Doravante, essa obra sçrá mencionada como "Lutberi Works".
~tnlonovi
1 REFORMA
499
1570), que mais tarde se tornaram os reformadores de Estrasburgo e Würctemberg, respectivamente. Por volta dessa mesma ocasiáo, Lutero também enviou a seu editor uma defesa mais elaborada de sua posiçáo diante das indulgências, as Resolzttiones ou
Exp fdndçáes. Lutero náo desejara discussáo com o papado. Parece que estava certo de que o papa veria, como ele via, os abusos das indulgências. Mas o curso dos aconcecimentos não lhe deu outra escolha senáo a defesa firme de suas opiniões ou a submissão.
Em junho de 1518 o papa Leáo X comissionou seu censor de livros e supervisor do palácio papal, o dominicano Silvestre de Prierio (1456.)-1523), a escrever uma réplica a Lutero, a qual ele produziu rapidamente. Prierio afirmou que "a igreja romana é representada pelo colégio dos cardeais e, além disso, é virtualmente o sumo pontífice", e que "aquele que diz que a igreja romana náo pode fazer o que na realidade está fazendo com respeito às indulgências, é herege".' Lutero foi entáo intimado a comparecer a Roma dentro de sessenta dias. Essa intimaçáo e a réplica de Prierio chegaram a Lutero no início de agosto. Seu caso teria terminado com sua sumária condena~áonáo tivesse tido ele a poderosa proteçáo de seu príncipe, o eleitor Frederico. Até onde Frederico simpatizava
com as crenFas religiosas de Lutero em qualquer momento é incerto, mas, em todo caso, ele se orgulhava de seu professor de Wittenberg e era contrário a enviá-lo a Roma, onde ele encontraria uma quase certa condenagáo. Sua habilidade potítica conseguiu que a audiência de Lutero fosse feita perante o representante papal no Reichstag, em Augsburgo. Este representante era o culto comentador de Aquino e teólogo de fama na Europa, cardeal Tomás de Vio (1469- 1534), conhecido como Cajetano devido ao lugar de seu nascimento (Gaeta). Cajetano já havia recebido instruções secretas do papa para náo debarer com Lucero e, caso esre não se retratasse, conseguir sua prisáo utilizando
meio disponível. Sob pressáo de Frederico,
Cajetano. subseqüentemente solicitou a Cúria que adotasse uma política mais conciliadora, e lhe foi permitido conceder a Lutero uma audiência sem debate. Os dois realizaram três reunióes de 12 a 14 de outubro de 15 18. Cajetano ordenou que Lucero se retratasse, especialmente das críticas à capacidade do poder papal de conceder indulgências. Lutero negou-se, e a 20 de outubro retirou-se de Augsburgo,
Wer B. J. Kidd, ed., Documents Illurtralive oftbe Continental Refirmation (Oxford, 19 1 1; reimpressáo, 19701, pp. 3132.
tendo apelado ao papa "para ser melhor informado". Não satisfeito com isso, em novembro Lutero apelou de Wittenberg a um h t u r o concílio geral. As poucas chances que teria de uma audiência favorável em Roma sáo demonstradas pela bula publicada no mesmo mês por Leáo X, definindo as indulgências no sentido em que Lutero as criticara. Enquanro isso, fora instalado em Wittenberg como professor de grego um jovem erudito e sobrinho-neto de Reuchlin, Filipe Melanchthon (1497-1 560), que viria a estar intimamente ligado a Lutero nos anos subseqüentes. Nunca houve maior contraste entre duas pessoas. Melanchthon era tímido e retraído, mas sem rival na erudi~ á o Sob . a forte impressão da personalidade de Lutero, ele dedicou sua apreciável capacidade, quase desde sua chegada a Wittenberg, ao progresso da causa luterana.
O imperador Maximiliano estava então claramente no fim de sua vida - de fato, morreu em janeiro de 15 19 - e pesava a ameaca de tumultos numa acirrada eleiçáo de seu substituto. O papa Leso X, como príncipe italiano, observava com desagrado a candidatura de Carlos da Espanha ou a de Francisco da Franqa, como incentivadoras
da influência estrangeira na Itália. Por isso buscou agradar ao eleitor Frederico, a quem gostaria que fosse o escolhido. Não era, pois, hora de agir contra o professor protegido de Frederico. Encáo Leáo enviou ao eleitor seu camareiro, o saxônio Carlos von Miltitz, como seu núncio, portando uma rosa de ouro, um expressivo presente do alto apreço papal. Miltitz ufanou-se de tal forma a imaginar que poderia sanar a questáo, e foi muito além de suas atribui~óes.Seguindo sua própria iniciativa ele repudiou Tetzel e ceve uma entrevista com Lutero de 4 a 6 de de janeiro de 1519. Lutero concordou em p a r d a r silêncio sobre as questóes em disputa se seus oponentes fizessem o mesmo, submeter o caso, se possível, a bispos alemáes eruditos, e escrever uma humilde carta ao papa. Porém, era impossivel qualquer acordo concreto. O colega de Lutero em Wittenberg, André Karlstadt, contrariando Eck, sustentara em 1518 que o texto da Bíblia deve ser preferido até mesmo à autoridade de toda a igreja. Eck exigiu um debate público que Karlsradt aceitou. E Lutero foi logo levado à luta, propondo defender que a supremacia da igreja romana não tinha apoio nem na história nem na Escritura. O grande debate se realizou em junho e julho de 15 19 em Leipzig. Karlstadt, que era um debatedor diligente, teve apenas sucesso moderado em sua defesa diante
do esperto Eck. O ardor de Lutero fê-lo sair-se melhor, mas a habilidade de Eclr levou Lutero a declaracão devastadora de que sua posiçáo, sob alguns aspectos, era a
FERIOIOYI
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501
mesma de João Huss e que o respeitado concílio de Constança incorrera em erro condenando-o. Para Eck, isso pareceu um triunfo forense, e eie pensou que a vitória era sua, declarando que quem negava a infalibilidade de um concílio geral era "pagáo e publicano". A posigo a que Lutcro havia sido conduzida era, de fato, significativa. Na verdade, foi muito importante essa declaragáo a que Lutero foi levado. Ele já rejeitara a inerrância e autoridade final do papa e agora proclamava a falibilidade dos concíiios gerais. T a ~ passos s implicavam no rompimento com a totahdade do sistema medieval de autoridade, e pareciam permitir apelo final apenas às Escrituras. Eck sentiu que toda a controvérsia agora poderia chegar ao fim rapidamente mediante uma bula papal condenatória, a qual, então, procurou conseguir. Essa bula, Exszkrge domine, foi publicada em 15 de junho de 1520.
Lutero estava agora verdadeiramente no auge da batalha. Suas próprias idéias estavam se cristalizando rapidamente. Partidários hurnanistas, como Úlrico von Hutten, ajuntavam-se a ele como o
comandante num conflito nacional com
Roma. O próprio Lutero, conquanto renunciando à força Hsica, estava corne~andoa
considerar sua tarefa como uma liberta@o espintuai da Alemanha de um sistema de controle papal que ele estava começando a considerar como o anticrisro. Ele também detaltiou as i~iiplica~óes diretas, de sua doutrina da junificaçáo ~ e i fi a somente, para a vida cristá de serviço à sociedade. Em seu substancioso tratado de maio de 1520,
Das B o a O~YLZS, Iatero primeiro identificou a fé em Cristo como "a primeira, mais etevada e mais preciosa de todas as boas obras", porque sornence a E pode tornar a consciência pecaminosa segura diante de Deus e libertar a vontade para o amor genuíno para com o próximo. Em seguida ele afirmou a bondade essencial dos negócios e ocupaçóes normais da vida e denunciou aqueles que "definem as boas obras tão estieitamente de forma a fazerem-nas consistirem apenas em orar na igreja, jejuar e dar e~rnolas".~ Essa vindica~áoda vida cotidiana no mundo como o melhor campo para o serviço a Deus, ao invés da fuga rnonástico-ascética do mundo, seria uma das mais importantes contribuições de Lucero ao pensamento protestalire, como também um dos mais significarivos afastamentos das concepcóes anrigas e medievais de "perfeiçáo cristã". A grande realizacáo de Lucero no ano de 1520 foi o preparo de três obras que fizeram época. O primeiro desses tratados foi pubiicado em agosto e intitulado À
HISIÓBIA DR IGREJA ERISIÁ
502
Nobrezd Crz~t2da N&%uAlemá. Escrito com ardente convic~áo,por um mestre da língua alemá, de imediato se espalhou pelo império. Nesse trabalho declarava que os três esteios que sustentavam o poder papal haviam sido derrubados. A prerensa superioridade do estado espiritual sobre o temporai é infundada, pois rodos os crentes são sacerdotes por causa do batismo. Esta verdade do s ~ e r d ó c i ouniversal solapa o segundo esteio, aquele do exclnsivo direito papal de interpretar as Escrituras; e solapa também o terceiro esteio, aquele que diz que apenas o papa e ninguém mais pode convocar um concílio reformador. "Um concílio verdadeiro, livre", para reformar a igreja deve ser convocado pelas autoridades temporais. Daí Lutero passou a ctaçar irm programa de reforma, sendo suas sugestóes mais práticas que teológicas. O desgoverno, as nomea~óese a taxaçáo papais deviam ser frenados, os cargos desnecessários abolidos, os interesses eclesiásticos alemáes colocados sob um "primaz da Alemanha", o casamento do clero permitido, os tão numerosos dias santos reduzidos para o interesse da produçáa e da sobriedade, a mendicância - inclusive a das ordens mendicanres - poibida, os botdéis fechados, a luxúria restringida e a educação teológica nas universidades reformada. Náo é de admirar que o efeito da obra de Lutero fosse profundo. Ele verbalizara o que homens sensaros de há muito vinham pensando* Dois meses depois Lutero publicou em latim seu Cativeiro Babilônico da Igftja. Nesta obra ela tratou de questóes da mais alta impor13.ncia teológica, mormente os sacramentos, e acacou fortemente o ensino da igreja romana. Limitando o nome de sacramento "àquelas promessas [de perdão] que têm símbolos a elas anexadas", Lutero defendeu que a Escritura reconhece apenas dois desses sacramentos como rendo sido instituídos por Crisro mesmo: o batismo e a ceia do Senhor.' Embora a penitência (contrição, confissáo, absolvição) náo tenha um símbolo exterior, ela cercamente tem um certo valor sacramental como um retorno diário ao batismo, e Lutero queria que a confissáo pivada fosse mantida pois esta era "uma cura sem igual para as
O que é cenrral a todos os sacramentos não é o simbolo (sacrarnentum) em si, mas a palavra divina de perdáo (a rei sacramenti) que deve ser recebida em fé. A luz disso, os votos monásticos, as peregrinaçóes e as obras meritó-
consciências
rias são considerados como substitutos criados pelas pessoas para o perdáo dos peca-
' Ibid., 3(;:124.
' Ibid., p. 86.
'
rulnioul
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'
503
dos gratuitamente prometido à fé, no batismo. Ademais, Lutero criticou a nrgaçáo do cálice aos leigos, expressou dúvidas quanto à transubstanciação e, especialmente, rejeitou a doutrina de que a missa é um sacrifício oferecido a Deus. Ele declarou que OS
ou~rossacramentos romanos - confirmaçáo, matrimônio, ordens clericais e extre-
ma unçáo - náo tèm valor sacramental na Escritura. Uma das maravilhas da tempestuosa carreira de Lutero é que ele foi capaz de escrever e publicar, simulcaneamente a esses tratados intensamente
e en-
quant-o a bula papal estava sendo publicada na Alemanha, sua terceira grande obra de 1520, Sobre a Liberdade C~istd'.Nela apresentava, com serena confianqa, o paradoxo da existtncia cristã: "O cristáo é um senhor perfeitamente livre de todos, náo estando sujeito a ninguém. O cristáo é um servo perfeitamente obediente de todos, estalido sujeiro a todos".' O cristáo é livre porque está justificado
fé somente,
não mais sob a lei das obras, e está em uma nova relação pessoal com Cristo. É servo porque está obrigado pelo amor a colocar sua vida em conformidade com a vontade de Deus e se tornar auxiliar de seu próximo. O prefácio dessa obra, uma "carta abertP' ao papa Leão X, é documento bastante curioso, transpirando boa vontade para com o pontífice pessoalmente, mas repleto de denúncias quanto a corte papal e suas pretensões para o papado, no qual o papa é representado como "estando como um cordeiro no meio de lobos". Embora a visáo de Lutero subseqfiencemente haveria de se aclarar e se expandir, sua concepção teológica do Evangelho cristáo em 1520
já estava assim praticamente completa em suas linhas gerais. Entrementes, Eck e Girolarno Ateander (1480-1542), como núncios, chegavam à Alemanha com a bula papal. Sua publicagáo iiáo foi permitida em Wittenberg e sua recepçáo em grande parte do país foi mais com indiferença ou mesmo hostilidade. Aleander, porém, conseguiu publicá-la nos Países Baixos e buscou a queima dos livros de Lutero em Lovaina, Liége, Antuérpia e Colônia. Em 10 de dezembro de 1520 Lucero replicou queimando a bula papal e o dire~tocansnico, na presença aprovadora de esrudantes e cidadãos de LVittenberg e sem oposição das autoridades civis. Estava evidente que parcela considerável da Alemanha estava em rebeliáo eclesiástica, e a situa520 exigia a aten~áodas mais altas autoridades do império. Ein 28 de junho de 1519, enquanto se desenrolava o debate de Leipzig, Carlos V (1500-1558), o neto de Maxirniliano, foi escolhido para ascender ao trono do Sacro ' Jbid.,
31:344.
HISTnRIA DA IGREJA
504
CRISTA
Império Romano. A eleiqáo de Carlos - já herdeiro da Espanha, dos Países Baixos e dos territórios austríacos da casa de Habsburgo, e senhor de uma parcela considerável da Itália e dos recém-descobertos territórios de além-Atlântico - fez dele o líder de um território mais vasto do que qualquer oucro governante europeu desde Carlos Magno. Na Alemanha, no enranto, sua autoridade era bastante limitada pelos poderes territoriais dos príncipes locais. E na época Carlos ainda era jovem e desconhecido, e ambos os partidos nas lutas religiosas da época alimentavam !grandes esperanças de conquistar seu apoio. De fato, ele era um católico romano zeloso, do tipo de sua avó, Isabel de Castela, partilhando das idéias reformadoras dela, desejoso de melhoras na moralidade, educaçáo e adrninistracáo clericais. Ele, porém, náo nutria simpatia alguma por qualquer desvio no sistema doutrinário ou hierárquico da Idade Média. Parcialmente para regularizar seu governo na Alemanha, parcialmente para preparar-se para a guerra iminenre devida às pretensóes rivais da França e da Espanha na Itdia, Carlos convocou uma assembléia do Reichsrag para janeiro de 152 1 em Worms. Embora houvesse muitos outros assuntos, todos sentiam que a soluçáo do caso de Lurero era da maior importância. Aleander, o núncio papai, insistia numa pronta condenaçáo, especialmente depois que a bula papai de excornunháo, Decetponttjcem
rornanum, fora publicada em 3 de janeiro de 1521. Visto que Lutero já escava condenado e excomungado pelo papa, o Reichstag não teria outra obrigacáo, urgia Aleander, senão tornar efetivo tal juízo. Por outro lado, Lutero tinha amplo apoio popular, e seu príncipe, o eleitor Frederico, um mestre na intriga diplomática, era de opiniáo de que Lutero náo havia tido uma audiência adequada. Frederico e outros nobres achavam que ele devia ser ouvido pelo Reichstag antes deste tomar uma resoluçáo. O imperador vacilou entre as duas opiniões, convencido de que Lutero era um herege abominável; mas, bastanre político, percebeu náo ser conveniente opor-se táo frontalmente aos sentimentos dernáes nem perder a possível vantagem de fazer do destino do herege uma alavanca capaz de trazer o papa para o seu lado na luta com a Franca.
O resultado foi que Lutero foi intimado a comparecer em Worms, sob a proteqáo de um salvo-conduto imperial. Desde Wittenberg sua viagem praticamente decorreu sob ovaqáo popular. Em 17 de abril de 1521 Lutero compareceu ante o imperador e o Reichstag. Uma pilha de seus livros lhe foi mostrada, e lhe perguntaram se ele se retrataria deles ou náo. Lutero pediu tempo para refletir. Foi-lhe dado um dia, e na tarde seguinte ele estava novamente diante da assernblbia. Ali reconheceu que, no
~ a l o rda discussão, usara expressóes duras contra pessoas; mas quanto à substância ,o que escrevera náo tinha do que se retratar, a menos que fosse convencido de seu
trro "pelo testemunho das Escrituras ou pela razão clara"."
imperador, que riáo
xodia crer houvesse tamanha temeridade capaz de negar a infalibilidade de um concílio geral, cortou a discussáo. Não é certo, mas é bem possível, tenha Lutero exçlarnado: "Náo posso fazer outra coisa. Aqui estou. Deus me ajude. Amém". Estas ~alavrasexpressam no mínimo a essência de sua determinacão inabalável. Dera um orande testemunho histórico à veracidade de suas convicçóes, diante do mais alto rribunal de sua nacáo. E dera prova cabal de sua destemida coragem.
O juizo de seus ouvintes ficou dividido, mas se ele perdeu o imperador e os prelados devido a sua forre e, como pareceu-lhes, infundada afirmaçáo, deixou impressão favorável a muitos nobres alemáes, incluindo o eleitor Frederico. Este principe, embora considerando Lutero por demais arrevido, confirmou sua determinaçáo de que náo viria dano algum ao reformador. Contudo, o resultado pareceu uma derrota para Lutero. Um mês após haver partido a caminho de casa, ele foi formalmente posto sob interdiçáo imperial, embora não antes que muitos dos membros do Reichstag tivessem partido. Ele deveria ser preso a fim de ser punido e seus livros queimados. Tal interdito nunca foi formalmente anulado, e até o fim da vida Lutero esteve debaixo da condenaçáo imperial como herege e rebelde. Se a Alemanha estivesse controlada por uma forte autoridade central, a carreira de Lurero logo teria terminado em martírio. Nem mesmo um edito imperial, entrecanto, podia ser executado contra a vontade de um forte governante territorial, e Frederico, o Sábio, mais uma vez salvou Lutero. Náo querendo sair abertamente em defesa de Lutero, fez com que máos amigas o prendessem quando este regressava a Worms e, ein segredo, o levassem ao castelo de Wartburgo, perto de Eisenach. Durante meses seu esconderijo foi desconhecido; mas qlie estava vivo e participando do destino da luta, sua pena brilhante logo o demonstraria. Seus ataques às práricas romanas aumentaram de intensidade. No entanto, o fruto mais durável desse período de retiro forçado foi sua rraduçáo do Novo Testamenro, iniciada em dezembro de
1521 e publicada em setembro do ano seguinte. Lutero náo foi de forma alguma o primeiro a traduzir as Escrituras para o alemáo, mas as primeiras versóes haviam sido feitas da Vulgata e eram de expressáo dura e
506
118IÓRIA DA IGREJA CRISTZ
grosseira. A obra de Lutero náo era meramente a partir do grego, para o qual as obras de Erasmo forneciam a base, mas era também idiomática e fácil de ler. Essa tradução determinou em muito a forma de linguagem que marcaria a futura literatura alemá aquela da chancelaria saxônica da época - elaborada e polida por um mesrre da expressão popular. Poucos serviços maiores do que essa tradução foram prestados ao desenvolvimento da vida religiosa de uma naçáo. Mas nem com toda sua deferência pelas Sagradas Escrituras como a plavra de Deus escrita, deixava Lutero de ter suas normas próprias de crítica, isto é, a relativa clareza com que um livro bíblico tescemunhava de Cristo e da justificaçáo pela graça mediante a fé somente. Julgados por esses padróes, a ele pareceu que Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse eram de valor inferior e náo pertenciam "aos verdadeiros e seguros livros principais do Novo Testam e n t ~ " Mesmo .~ na pr6pria Escritura havia diferenças em valor.
No mês em que Lutero comqou seu trabalho como tradutor - dezembro de 1521 - foi publicado em Wictenberg um pequeno volume escrito por Melanchthon, os
Luci communes, ou Pontos Cardeais da lèologid. Pode-se dizer que com ele começou a apresentação sistemática da teologia luterana. Seria ampliado, desenvolvido e modificado em muitas ediçóes posteriores.
Capítulo 2
Separaçóes e Divisões A permanência de Lutero em Wartburgo deixou Wittenberg sem a sua poderosa liderança, mas a revolução eclesiás~icaali prosseguiu adiante sob a orientaçáo de seus companheiros. Na primeira metade de 1521 se juntaram a seus primeiros companheiros na universidade - Karlstadt, Amsdorf e Melanchthon - outros dois, Joáo Bugenhagen (1485-1558) e Justo Jonas (1493-1555). A responsabilidade da liderança ficou com o ousado e impulsivo Karlstadt.
As atividades de Lutero ainda não haviam provocado nenhuma mudan$a no cul-
' Ibid., 35:394.
~ t ~ i o nvia
h REFORMA
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to público nem na vida monástica, mas estavam se formando rapidamente exigências para tais mudanças. Em outubro de 1521 um monge impetuoso, colega de Lutero, Gabriel ZwilIing (1487?-1558), em outubro de 1521, estava denunciando a missa e instando o abandono dos votos clericais. Logo teve muitos seguidores, especialmente no mosteiro agostiniano de Wittenberg, onde vários monges entáo renunciaram a seus votos. Com igual zelo Zwilling logo passou a atacar as imagens. No natal de
I521 Karlstadt celebrou a ceia do Senhor na igreja do castelo sem vestes clericais, sem oferenda sacrificial, sem elevaGão da hóstia e oferecendo o cálice aos leigos. A confissão auricular e os jejuns foram abandonados. Karlstadt ensinou que todos os ministros deveriam se casar e, em janeiro de 1522, ele mesmo contraiu matrimônio. De imediato começou a se opor ao uso de quadros, de órgãos e do canto gregoriano no culto público. Sob sua direçáo, o governo da cidade de Wittenberg extinguiu as antigas irmandades religiosas e confiscou seus bens, decretou que os ofícios religiosos seriam em alemão, condenou quadros nas igrejas e proibiu a mendicância, ordenando que os verdadeiramente necessitados fossem socorridos com os recursos da cidade. Em 27 de dezembro de 1521 a comoção pública aumentou com a chegada de três pregadores radicais de Zwickau, Nicolau Srorch, Marcos Tomás Stkbner e Tomás Drechsel. Estes "profetas" diziam ter inspiração divina direta, opunham-se ao batismo infantil e anunciavam o fim iminente do mundo. Essa rurbulência, seguida por um ataque popular às imagens, muito desagradou ao eleitor Frederico, o Sábio, e provocou protestos dos príncipes alemães e das autoridades imperiais. O governo da cidade pediu a Lutero seu recorno. O eleitor pessoalmente proibiu-o de retomar, por questões políticas, mas não obsrance em 6 de marco de 1522 Lutero estava uma vez mais em Wittenberg. Oito dias de prega~áo demonstraram seu poder. Proclamou que o Evangelho consiste no reconhecimenro do pecado, no perdáo através de Cristo e no amor ao próximo. As alreraçóes que havram provocado o tumulto tinham motivos exteriores. Só deviam ser efetuadas conslderando-se os fracos. Assim Lutero dominou a situação. Karlstadt perdeu toda sua influência e teve que deixar a cidade. Muitas das mudangas foram, momentaneamente, abandonadas e a velha ordem do culto em grande parte restabelecida. Assim Lutero revelou atitude decididamente conservadora. Opunha-se niXo apenas aos rornanistas, como até entáo, mas também aos partidários da revoluçáo que estavam se movendo, como lhe parecia, por demais rápidos. As divergências no próprio par-
ido reformista haviam começado. No entanro, náo se pode duvidar da sabedoria de
Lutero. Sua atua550 fez com que muitos dos governantes demáes o olhassem com simpatia; corno alguém que, mesmo coridenado ein Worms, era rtoalme~iteuma forsa no estabelecimento da ordem em tempos tumultuosos.
De importância especial
foi a conrinuaçáo do apoio de seu príncipe eleitor, sem o qual sua causa, mesmo nesse momento, naufragaria rapidamente. Entrementes, o imperador estava preocupado com a guerra contra a FranGapelo controle da Itália, a qual o manteria ausente da Alemanha de 1521 a 1530. Era impossível uma interferência de sua parte na Reforma. O papa Leão X morrera em dezemhro de 1521 e fora sucedido pio antigo tutor de Carlos V, agora com o cítulo de Adriano VI. Era este um homem de estrita ortodoxia medieval, mas plenanenre consciente da necessidade de reforma moral e administrativa na corte papal. Seu curto ponrif;cado d e apenas vinte meses foi um esforço 1amentavelment.einfrutífero para conrroIar os males dos quais ele acreditava que o movimento herético de Lurero era castigo divino. A simpatia por Lutero estava se espalhando rapidamente, náo sd na Saxonia mas cambénl em cidades da Alemanha. Em novembro de 1522, Adriano
enviou ao Reichstag reunido em Nuremberg um núncio com um Breve, solicitando a aplicaçáo do edito de Worms conrra Lurero, mas admitindo que havia muitas falhas na administra~áoeclesiástica. O Reichstag respondeu corn a dectaraçáo de que o edito era impossível de ser cumprido, e exigiu um concílio para a reforma da igreja,
que se deveria reunir na Alemanha denrro de um ano. Enquanto isso, somente deveria ser pregado o Evangelho santo, verdadeiro, puro e genuíno. Ademais, o Reichstag renovou as velhas queixas contra os desgovernos papais. Não obstante a forma dessa postura do Reichstag, cla foi na verdade uma vitória para Lurero e sua causa. Parecia que a Reforma conseguiria o apoio de ~ o d a iiacáo alcrná.
Sob esras circunstâncias favoráveis, congregaçiies "evangélicasn (i.e., aquelas que reivindicavam ser "reformadas de acordo corn o EvangeIho") estavam se formando rapidamente em muitas regiões da Alemanha, ainda que sem constitui~áoou ordem
de culto fixas. Lutero estava agora convencido de que tais associaçóes de crentes tinham pleno poder para indicar e depor seus pastores. Também sustentava, porem, que os governantes temporais, coma membros condut,ores da comunidade cristá e portanto como "bispos de emergência", tinham o grande dever de velar pelo Evangelho. As experihcias de Lutero com os camponeses rebeldes, e as necessidades da organizaçáo concrera da igreja dentro de extensos territbrios, logo fizeram Lutero abandonar essa "ecIesioiogia autonoma" em favor de urna crescente dependència do
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Estado, embora continuasse a defender que o exercício de funções espirituais pelos principes era apenas u m expediente temporário. Para satisfazer as exigências do novo culto evangélico, em 1523 Lutero publicou sua Ovdern do Culto Público, na qual acencuava o lugar central da pregaçáo; sua
Fórmula dd Missa,na qual, embora ainda utilizasse o latim, excluía as implicações sacrificiais, recomendava a parricipaçáo dos leigos tanto no cálice como no pão, e solicitava aos adoradores o emprego de hinos populares; e sua Ordem de Batismo,na qual apresentava um breve ofício batismal em alemão. O abandono das missas privadas e das missas pelos mortos, com suas tarifas, trouxe um sério problema para o sustento do cfero. Lutero pensou em resolvê-lo com salários tirados de um fundo comum provido pela municipalidade. Ele defendia que era permissível grande liberdade em pormenores do culto, desde que a "palavra de Deus" fosse mantida no centro. As diversas congregaçóeç reformadas, portanto, logo mostraram muica varia-
çáo, embora a rendência para o uso do alemão tenha crescido rapidamente. O próprio Lutero publicou uma Missa Alema, em 1526. Ele considerava a coi~fissáoprivada deveras desejável para preparar o cristáo para a ceia do Senhor, porém, não deveria ser obrigatória. Comparada ao desenvolvimento da Reforma em outros lugares, a atitude de Lutero em questóes de culto foi bastante conservadora. Seu princípio era que "o que náo é contrário à Escricura é pela Escricura e vice-versa". Porcanro, eie reteve muito dos costumes tradicionais, como o uso de vestes, o altar, o sinal da cruz e o emprego ilustrativo de imagens. Nos anos seguintes à dieta de Worms, a Reforma espaIhou-se rapidamente em quase todos os territórios da Alemanha, sobretudo nas vilas e cidades. Durante esse período, tudo o que era "revolucionário" era imediatamente chamado de "lurerano", tanto pelos próprios revolucionários como por seus oponentes católicos. O nascente movimento evangélico, entretanto, estava longe de ser homogêneo, e seu crescimento era desordenado, escondendo profundas diferenças sob o riome de pregaçáo, reforma litúrgica e ação política "luteranas". Em 1524 e 1525, as fissuras dentro do movimento comecaram a ficar aparente, e seus efeitos foram limitar a Reforma e fazer de Lutero líder de um partido ao invés de líder de uma naçáo.
A primeira destas separações veio da parte dos humanistas, encre os quais Lutero tinha encontrado seu primeiro quadro de defensores. O líder admirado dos humanistas, Erasmo, tinha pouca simpatia pela doutrina de Lutero da justificaçáo somente pela fé. Segundo seu pensamento, a reforma viria peIa educação, pela rejei-
$50 da superstiçáo e pelo retorno às "fontes" da verdade crisrá. Os escritos tempestuosos de Lutero e o tumulto popular cada vez mais lhe pareciam odiosos. Como os humanistas de forma geral, ele estava alarmado com o declínio na procura das universidades aiemás, que tivera início com o surgimento da controvérsia religiosa, e com a diminuiçáo d o inreresse em questões puramente eruditas. Ainda que frequentemente instado, relutou por muito tempo em atacar Lutero. Mas por fim, na segunda metade de 1524, desafiou a negaçáo do livre arbítrio defendida por Lutero na questão da salvação. Em sua obra cuidadosamente arrazoada intirulada Diatribe
de libero arbitrio, argumentou, baseado no exame de relevantes passagens da Escritura, por uma interpretacão ética e náo dogmática da religião. Sua conclusão era que a doutrina da igreja medieval tardia, que afirmava tanto a liberdade humana de decisáo por Deus como a necessidade de graça auxiliadora, era preferível ao extremismo predestinacionista de L u ~ e r o ,porque evitava ranto o maniqueísmo como o pelagianisrno, Um ano mais tarde Lutero replicou com seu tratado De servo arbitao (Sobre a Escravidão da Vontade). Nele Lutero acompanhava de perro o esboço de Erasmo e procurava refutá-lo parte por parte. Sobre a base do restemunho da Bíblia, ao qual considerava claro e único, afirmou a dependência absoluta da humanidade para com o Deus onipotente e soberano e seu gratuito dom da graça. Declarou-se a favor da predestinaçáo e náo hesitou em afirmar doutrinas que raiavam ao dererminismo. O rompimento entre Lutero e Erasmo era incurávei. Conquanto muitos dos hurnanistas mais velhos tenham abandonado Lutero, muitos dentre os jovens continuaram com ele e tornaram-se líderes locais do movimento evangélico. Lutero parecia, para alguns na Alemanha, apenas um meio reformador. Entre tais radicais estava seu antigo companheiro Karlstadt, o qual, tendo perdido toda sua influência em Wittenberg, adotou idéias e práricas ainda mais radicais e, arrebanhando muitos seguidores em Orlarnunde, praticamente desafiou Lutero e o governo da Saxônia. Negava o valor da instruçáo, vestia-se e vivia como camponês, destruía imagens e rejeitava a presenGa física de Cristo na Ceia. Ainda mais radical foi Tomás Munczer (1488?-1525), que dizia ter revelacão direta mediante visões e sonhos e denunciava tanto os rornanistas como os luteranos como "estribas" que suprimiam a "palavra interior" por meio de sua dependência servil da letra da Escritura. Ex-sacerdore católico romano, Muntzer fizera um estudo bastante abrangente da Bíblia, dos pais da igreja e dos místicos alemães, e no início fora seguidor de Lutero. Em 1521-
1522 trabalhara como um ardente pregador evangélico primeiro em Zwickau e de-
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7ois na Boêmia, onde pretendera construir "a nova igreja apostólica", convicto de que a igreja havia há muito caído de sua pureza original devido à traiçáo dos eruditos :dos sacerdotes. Em
1523 tornara-se ministro em Allstedt, cidade na Turingia, onde
oferecera uma interpretaçáo do Evangelho e um programa de reforma que rompia abertamente com as idéias de Lutero. Muntzer defendia um espiritualisrno completo que sujeitava a Bíblia ao teste da experiência religiosa: apenas aquele que é possuído pelo Espíriro pode compreender corretamente as Escriruras. O Espírito é concedido apenas aos eleitos, àqueles que nasceram novamente por meio da passagem pelo abismo do desespero e que tomaram sobre si a cruz do "Cristo amargo". Consequentemente, o batismo interior do Espírito é o verdadeiro batismo; o batismo exterior na água é desnecessário. Müntzer era homem de grande originalidade. A ordem de culto bem elaborada que ele desenvolveu para Allstedt em 1523 foi a primeira liturgia protestante no vernáculo. Pregador constrangedor, ele esforsou-se para estabelecer uma igreja "pactuada" dos eleitos que provocaria uma nova ordem social de justiça e amor. Opondo-se ao "boa vida de Wittenberg" - isto é, à recusa de Lutero em extrair de sua redescoberta do Evangelho uma nova lei, quer para a moral como para a vida social - ele defendia uma revoluçáo sangrenta, se necessária, para derribar injustiça cometida tanto por príncipes como por sacerdotes. Náo foi supresa, pois, que no devido tempo ele tenha assumido uma posição de liderança na revolta dos camponeses. Lutero opôs-se veementemence a Muntzer e a Karlstadt, e a homens como eles, chamando-os de Schwi2'rmer (fanáticos, entusiastas). A presença deles indicava uma ruptura crescente nas forças de reforma. Ainda mais séria foi uma terceira separaçáo - aquela causada pela grande revolta dos camponeses, que conduziu Lutero a um conflito aberto com todos os revolucionários sociais e arruinou seu prestígio como líder popular. A condisáo do campesinato alemáo na Baixa Idade Média era de crescente perda de liberdade e sua conseqüente inquietação, especialmente no sudoeste da Alemanha, onde o exemplo de melhores condiçóes na vizinha Suíça instigava o descontentamento (ver V: 16). O ataque luterano à autoridade espiritual tradicional e à pregaçáo evangélica da "liberdade cris~á"e da
"justiça divina" contribuíram, sem dúvida, para o surgimento da revoIta dos camponeses. Iniciada no extremo sudoeste da Alemanha em maio e junho de 1524, a insurreiçáo já havia atingido proporçóes formidáveis no início do ano seguinte. Em fevereiro de 1525 os camponeses da Suábia, apoiados por um significativo número de
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HIST6RIA OA IGREJA CRISTA
burgueses e artesãos pobres, apresentaram doze artigos, exigindo que cada comunidade tivesse o direito de escolher e depor seu pastor; que os grandes dízimos (sobre grãos) fossem usados para o sustento do pastor e para as outras despesas da comunidade e abolidos os pequenos dízimos (sobre animais); que a servidáo fosse extinta; que as reservas para caça fossem limitadas e as florestas aberras aos pobres, e que o trabalho compdsório fosse regulamentado e devidamente pago; aluguéis justos fossem estabelecidos; nenhuma nova lei fosse criada; as terras comuns devolvidas às comunidades das quais haviam sido tomadas, e abolidas as taxas sobre espólios. No inicio, Lutero procurou ver as injustiças de ambos os lados. Em sua Admoest a ç h à- Plaz de abril de 1525, ele reconheceu que os doze artigos continham muita
coisa justa e correta, e culpou principalmente os príncipes e os senhores pelo descontentamento dos camponeses, denunciando aqueles como "tiranos selvagens e ditatoriais".' Aos seus olhos, porém, toda revolução política era rebelião contra Deus, e ele considerou as exigências econômicas e sociais dos camponeses, feitas em nome da Bíblia e da "lei divina", como uma interpretacão equivocada (carnal) do Evangelho. Quando a rebelião, mal dirigida, caiu em excessos maiores de violência e pareceu tornar-se anarquista, Lutero volrou-se contra os militantes camponeses com violento panfleto, Contra a CoYJLZ de Camponeses Assafsinos e Ladróes, exigindo que os príncipes os esmagassem pela forca das armas. A derrota de Francisco I da Franqa diante do exército imperial, nas proximidades de Pavia, em 24 de fevereiro de 1525, permitiu aos príncipes alemães dominar a revolta. A insurreição camponesa foi aniquilada em espantosa carnificina durante maio e junho de 1525. Muntzer, a quem Lutero erroneamente via como o líder ideológico de toda a revolta, foi capturado, torturado e decapitado logo após a batalha de Frankenhausen em 15 de maio de 1525, na qual foram mortos seis mil camponeses. A revolta dos camponeses foi uma linha divisória na história da Reforma, assinalando o fim de seu período de crescimento descontrolado. Daí em diante, o movimento ficou sujeico à supervisáo mais próxima das autoridades civis, que foram obrigadas ou a suprimi-lo ou a esrabelecer novas ordens eclesiásticas evangélicas em seus territórios. A Reforma, ent-retanto, embora cerramente tenha perdido parte de seu apelo às massas, não deixou de ser um movimento popular espontâneo, como fica evidente por sua introdução em muitas cidades alemás durante a década seguinte. A
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iniciativa por reforma normalmente vinha dos comuns e das guildas de artesáos, náo dos "patrícios" urbanos ou dos próprios magistrados - um fato que contradiz a antiga crença de que a revolta dos camponeses resultou na completa alienacão das classes inferiores da causa de Lutero. Não obstante, no final de 1525 já estavam claramente traçadas as linhas divisórias dentro dos quadros dos reformadores; endurecida a oposição à Reforma, no mínimo porque os defensores da "fi antiga" apontavam para a insurreiçáo civil como o resultado inevitável da rebelião eclesiástica. O progresso da Reforma agora dependia de sançóes autoritárias e ordens eclesiásticas compulsórias. Entrementes, o papa Adriano VI falecera em setembro de 1523 e fora sucedido por Júlio de Médici como Clemente VI1 (1523-1 534) - homem de caráter respeitável mas com pequena percepçáo da import$ricia das questões religiosas, e, na política, primordialmente um príncipe rerritorial da Itália. Clemenre enviou como seu legado ao novo Reichstag reunido em Nurernberg, no início de 1524, o rnui hábil cardeal Lourenço Campeggio (1474- 1539). Pouco obteve Campeggio no Reichstag. Este prometeu cumprir o edito de Worms contra Lutero "tanto quanto possível" e exigiu uma "assembléia !geral da naçáo alemã", a se reunir em Espira (Speyer), no final do ano. Mesmo ausente o imperador conseguiu frustrar essa reunião. O êxito
de Campeggio foi muito maior fora do Reichstag. Em virtude de seus esforços, em 7 de julho de 1524 foi formada em Ratisbona (Regensburg) uma liga para apoiar a causa romana. Reunia o irmão do imperador, Fernando, os duques da Baviera e um número de bispos do sul da Alemanha. Enquanto Roma assim se fortalecia no sul da Alemanha, a causa de Lutero recebia importantes adesóes. A principd delas foi, em 1524, a do conde Filipe de Hesse
(1 5 18-15671, o mais hábil político dentre os príncipes luteranos. Ao mesmo tempo, Alberto da Prússia, gráo-mescre dos cavaleiros teutônicos, Jorge de Brandenburgo, Henrique de Mecklenburgo e Alberto de Mansfeld demonstravam decidido interesse na causa evangélica. Em 1524 também foram ganhas as importantes cidades de Magdeburgo, Nuremberg, Estrasburgo, Augburgo, Esslingen, Ulm e ourras de menor importância. Nos dias tenebrosos da revolta dos camponeses morreu ( 5 de maio de 1525) Frederico, o Sábio, o cauteloso protetor de Lutcro. Sucedeu-o seu irmáo João, "o Constante" (1525-1532). A mudanqa foi favorável a Lutero, pois o novo eleitor era lutcraiio ativo e declarado. Durante esses meses também, em 13 de junho de 1525, Lutero casou-se com uma ex-freira, Catarina von Bora (1499-1552). Esta união
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UlST6RIA DA IGREJA CRISTÁ
demonstraria alguns dos aspectos mais atrativos do caráter do reformador.
A supressão da revolta dos camponeses deixara os príncipes e as cidades como as verdadeiras forças dirigentes na Alemanha, e cornbinaçóes políticas eram feiras entáo pró e contra a Reforma. A liga católica de Ratisbona já foi mencionada. Outra liga de católicos, no norte e na centro da Alemanha, foi instituída pelo duque Jorge da Saxônia e outros príncipes católicos, que se reuniram em Dessau em julho de 1525. Como resposta, Filipe de Hesse e o novo eleitor João da Saxônia organizaram em Torgau uma liga luterana. A vitória imperial em Pavia, em fevereiro anterior, resultara no aprisionamento do derrotado Francisco I, rei da França. A guerra pendera decisivamente a favor do imperador, e seus frutos pareceram assegurados pelo rratado de Madrid de janeiro de 1526, pelo qual Francisco obtinha a liberdade. Os dois monarcas se comprometeram a conjugar esforços para extirpar a heresia. As perspectivas do luteranismo eram realmente das piores possíveis. O iuteranismo deve principalmente ao papa o afastamento do perigo. Clemente VII, sempre mais príncipe italiano que eclesiástico, estava bastante alarmado com o aumento do poder imperial na Itália. Entáo formou uma liga italiana contra o imperador. A ela se filiou o rei francês em maio de 1526. Francisco I repudiou o tratado de Madrid e agora a Liga de Cognac reunia a França, o papa, Florença e Veneza contra O imperador. Os êxitos
de Pavia pareciam perdidos. A guerra deveria ser reencetada. As máos do imperador estavam por demais ocupadas para interferir nas lutas religiosas da Alemanha. Foi assim que, quando o novo Reichstag se reuniu em Espira, em meados de 1526, ainda que as instruções imperiais proibissem dteraçóes em macéria religiosa e
determinassem a execução do edito de Worrns, os Iuteranos foram capazes de instar que a situaçáo mudara desde que fora avaliada pelo imperador quando suas ordens foram emitidas da Espanha. O avanço assustador dos turcos, que resultaria na desasrrosa derrota do rei Luís I1 da Hungria em 29 de agosto de 1526, em Mohács, também aconseihava união mili~ar.Portanto, o Reichstag declarou que, até a reuniáo de um "concílio ou uma assembléia nacional", cada um dos governanres territoriais do império deveria "viver, governar e conduzir-se conforme sua esperança e confianfa em responder a Deus e a sua majestade imperial".' Isto foi, sem dúvida, uma mera acomodafáo para o momento. Mas as cidades e os príncipes luteranos imediatamente interpretaram como uma autorizaqáo plena-
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mente legal para ordenarem suas constirui~óeseclesiásticas como bem lhes parecesse.
A sombra disso, a organizaçáo de igrejas territoriais luteranas foi entáo rapidamente efetuada. Já antes do Reichstag de 1526 alguns passos haviam sido dados nesse sentido. Além dos limiccs do império, Aberto de Brandenburgo (151 1-1568), o gráomestre dos cavaleiros teutônicos na Prússia, em 1525 transformara seu cargo num ducado hereditário, sob a soberania da Polônia, e trabalhou empenhadamente pela Iuteranizaçáo do território. Na própria Saxônia eleitoral, o eleitor Joáo estava planejando um controle governamental mais ativo dos assuntos eclesiásticos, e Lutero publicara em 1526 sua Missa ALmd e Ordem do Culto Divino, antes do Reichstag. O decreto do Reichstag entáo muito fortaleceu essas tendências. Na Saxônia, que de uma forma gera tornou-se o modelo para a cria~áode igrejas territoriais luteranas, o eleitor nomeava "visitadores" para investigarem a doutrina e conduta cíericais, baseados em artigos confeccionados por Melanchthon em 1527 e ampliados no ano seguinte. Foi abolida a antiga jurisdi~áodos bispos, o terrirório dividido em distritos, cada um sob um "superintendenten com autoridade espiritual mas não administrativa sobre o ministro paroquial e, por sua vez, responsável ante o eleitor. O clero indigno ou recalcitrante foi expulso, a uniformidade do culto assegurada e confiscadas a propriedade monástica, as dotações de altares e fundaqóes similares, em parte para benefício de igrejas e escolas paroquiais, mas em parte maior para o tesouro eleitoral. Numa palavra, a igreja luterana estatal, rendo a mesma exrensáo que o território da Saxônia e como membros rodos os habitantes batizados, substituiu a antiga igreja governada pelo bispo. Outros territórios da Alemanha evangélica também foram organizados da mesma forma. Para auxiliar na instrução religiosa do povo, que uma década de confusão reduzira a condicóes deploráveis, em 1529 Lutero preparou dois catecismos, dos quais o Catecismo Menor t um dos mais nobres monumentos da Reforma. Tal desenvolvimento das igrejas territoriais pode ter lugar gracas às favoráveis condi~óespolíticas. O imperador rinha uma [remenda e custosa guerra pela frente; a recompensa da vitória seria o domínio da Itália. Seu irmáo, Fetnando, fora coroado rei da Hungria em 3 de novembro, e desde entáo escava em luta com os turcos. Era impossível uma interferência efetiva na Alemanha. Mas em 6 de maio de 1527 um exército imperial contendo muitos soidados alemáes conquistou Roma, encerrou o papa Clemente VI1 no casteIo de Santo Ângelo c subme~eua cidade a todo tipo de barbárie. Embora a boa sorce pareceu estar voltada para a França na primeira parte
de 1528, antes do final daquele ano as forças imperiais tinham imposto seu domínio.
O papa foi compelido a fazer a paz com o imperador, em Barcelona em 29 de junho de 1529, e a França abandonou a luta pela paz de Cambrai, em 5 de agosto seguinte.
A guerra que se travara desde 1521 estava terminada e Carlos V, agora, poderia dedicar sua atenção a supressão da revolta luterana. Os chefes luteranos, por sua parte, náo tinham sido totalmente bem sucedidos. Enganados por uma trama de Oto von Pack, oficial da Saxônia ducal, o landgrave Filipe de Hesse e o eleitor Joáo da Saxônia foram convencidos de que os católicos pretendiam atacá-los. Filipe determinou se anrecipar ao suposto golpe e estava se armando para isso, em 1528, quando se descobriu que a carta na qual Pack baseava sua informação era falsa. O resultado do "incidente Pack" foi o agravamento das relações entre os dois gandes partidos eclesiásticos.
Em tais circunstâncias era inevitável que quando a próxima dieta imperial se reunisse em Espira, em fevereiro de 1529, a maioria católica fossefortemente hostil para com os inovadores luceranos. Esse Reichstag enráo ordenou, por decisão da maioria, que não poderia mais haver nenhuma mudança eclesiástica, que o culto romano fosse permitido em todos lugares e que as autoridades e ordens religiosas romanas teriam permissáo de desfrutar plenamente de seus direitos, propriedades e rendas anteriores. Isso teria sido na prática a aboliçáo das igrejas territoriais luteranas. Impotenres para derrotarem essa legislação, os poderes civis lutcranos representados no Reichstag apresentaram em 19 de abril de 1529, um protesto formal, o Prote~tatio. Este documento é de importância histórica pois dele nasceu o nome do partido Protesrante. Sustentavam-no Joáo, da Saxônia eleitoral, Filipe de Hesse, Ernesto de Luneburgo, Jorge de Brandenburgo-Ansbach, Wolfgang de Anhdt e as cidades de Estrasburgo, Ulm, Constança, Nuremberg, Lindau, Kempten, Memmingen, N6rdlingen, Heilbronn, Isny Sáo Galeno, Reudingen, Weissenburgo e Windsheim. As perspectivas protestantes eram assustadoras. A situaçáo exigia uma uniáo defensiva e Filipe de Hesse se propôs a consegui-la. Nessa conjuntura crítica a causa da Reforma estava ameacada pela divisáo entre os reformadores da Saxônia e da Suíca e pela rápida expansão dos anabatistas.
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II REFORMA
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Capítulo 3
Úlrieo Zuínglio e a Reforma Suíqa A Suíqa, embora nominalmente parte do Sacro Império Romano, desde longo tempo era praticamente independente. Seus treze cantóes, todos repúblicas autônomas, estavam reunidos numa fraca confederaçáo. O pais, como um todo, era considerado o mais livre da Europa. Seus filhos tinham grande fama como soldados e por isso eram muito procurados como mercenários, principdmente pelos reis franceses e pelos papas. Ainda que a condiçáo educacional geral fosse baixa, o humanismo penetrara nas maiores cidades, e nas primeiras décadas do século dezesseis sua sede principal era Basiléia. A reforma suíça teria suas origens no humanismo, na autonomia local, na resistência ao domínio eclesiástico e na indignação para com os impostos monásticos, especialmente onde os mosteiros eram grandes latifundiários. Úirico (Huldreich) Zuínglio, principal reformador da S u í p de língua alerná, nasceu em primeiro de janeiro de 1484, em Wildhaus, onde seu pai era o magistrado da aldeia e se encontrava em boa posiqáo. Um tio, deáo de Wesen, colocou-o no caminho da cultura, o qual ele continuou em Basiléia e depois em Berna. Ali foi orientado pelo humanista Henrique Wolflin (Lupulus), de 1496 a 1498. Durante dois anos (1500-1 502) estudou na universidade de Viena, onde Conrado Celtis desfrutava de grande fama no conhecimento dos clássicos. De 1502 a 1506 continuou os escudos na universidade de Basiléia, onde se graduou como bacharel em artes em 1504 e recebeu o grau de mescre dois anos depois. Em Basiléia foi aluno do humanisca
%más Wyttenbach (1472-1526). Dele guardou grata memória por ter-ihe ensinado a autoridade exclusiva da Escritura, a morte de Cristo como o preço único do perdáo e a inutilidade das indulgências. Com tal ensino Zuínglio naturalmente tornou-se humanista, ansioso em investigar as antigas fontes da fé criscá e crítico daquilo que os humanistas geralmente consideravam superstiçáo. Em 1506 Zuínglio foi nomeado pároco de Glarus, onde permaneceu pelos próximos dez anos. Durante esse tempo capacitou-se em grego, começou a esrudar hebraico e assimilou os escritos de Erasrno. Também, estudou cuidadosamente os clássicos, a Bíblia (utilizando a partir de 1516 a edição de Erasmo do Novo Testamento grego) e os pais da igreja. Ademais, tornou-se pregador influente e membro
respeitado de um pequeno grupo de eruditos liumanistas, opôs-se ao emprego dos suíços como mercenários, exceto peio papa, de quem recebeu uma pensão em 1513. Como capelão, acompanl-iou os jovens de sua paróquia em várias campanhas icalianas. ZuíngIio estava patrioticamente convencido do mal moral do servi50 mercenário. A França, porém, desejosa de alisrar soldados suíços, trouxe tanta perturbaçáo à sua paróquia de Glarus que ele, sem resignar ao posto, transferiu em 1516 suas atividades para o sanruário de peregrinaçáo de Einsiedeln. A mudança aumentou-lhe a reputação como pregador e estudioso. Ali também opôs-se vigorosamente à venda de indulgências pelo monge franciscano Bernardo Sanson. Nesse momento ele já havia se [ornado um dos melhores eruditos em grego ao norte dos Alpes, como também um diligente estudioso de hebraico. Mais tarde, Zuínglio atribuiu a esse retiro em Einsiedeln, sempre procurando não admitir qualquer dívida para com Lutero, sua aceitaçáo da posição evangélica. As evidências que sobreviveram indicam, porém, pouco mais do que um humanismo biblico erasmiano. Em 1518 ele prontamente aceitou a nomeaqão como capelão papal. Nessa época, sua vida privada não estava livre de recriminaçóes pela quebra do voto de castidade. Sua oposição ao servi50 militar aos estrangeiros e sua fama como pregador e erudito provocaram sua eleição, em dezembro de 15 18, pelo cabido da igreja Grande Minster em Zurique, para sacerdote remunerado, cargo este que assumiu no primeiro dia de 15 19. Zuínglio imediatamente começou uma exposiçáo versículo por versículo de todos os livros da Bíblia, iniciando com o evangelho de Mateus, sem recorrer a interpretação [radicional (escolástica). Em setembro de 1 5 19, atacado pela peste bubônica, esteve às porcas da morte. Essa experiência forçou-o a sério autoexame e despertou-lhe intenso senso de missão divina. Em 1520 sua vida espiritual foi aprofundada ainda mais pela perda de um irmáo querido. Nesse mesmo ano renunciou à pensáo papai. Em 1521 passou a estudar cuidadosamente os escritos de Lutero. Continuou a pregar vigorosamenre contra o recrutamento de mercenários,
de forma que o conselho municipal de Zurique por fim (janeiro de 1523) proibiu essa prática. Embora Zuínglio tenha estado, porranto, por muito tempo movendo-se rumo à Reforma, foi em 1522 que sua vigorosa obra reformadora teve início. É interessante notar que a primeira questáo em debate surgiu náo de uma preocupação com a certeza pessoal de salvaçáo, como com Lutero, mas da convicção de que apenas a
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Bíhlia, interpretada evangelicamente, era obrigatória aos cristáos. Em março daquele ano alguns cidadãos quebraram o jejum quaresmal, citando a afirma$áo de Zuínglio sobre a auroridade exclusiva da Escritura em questão de justificação. Ele, entáo, no púlpito e com a pena, saiu em defesa deles. O bispo de Constança, em cuja diocese encontrava-se Zurique, enviou uma comissão para reprimir a inovaçáo. O governo civil d o cantáo decidiu que o Novo Testamenro náo impunha jejuns, no entanto
seriam observadas por amor à boa ordem. A importância dessa decisão contemporizada estava em que as autoridades civis praticamente rejeitavam a jurisdicáo do bispo e assumiam o controle total das igrejas de Zurique.
Zuínglio acreditava que a autoridade eclesiástica finai era a comunidade (Gemeinde) cristH, a assembléia local de fiéis sob o sznhorio exclusivo de Cristo
2
das Escriruras
divinameilte inspiradas qrie testemunham a redençáo efetiiada por ele. Essa autoridade é exercida em benefício da comunidade mediante os órgáos do governo civil devidamente constituídos agindo de acordo com as Escrituras, Só é permissível ou obrigatório aquilo que a Bíblia ordena ou cuja autorizacão específica possa ser encontrada em suas páginas. Conseqüentemente, a atitude de Zuíngiio para com as cerimonias e ordem do culto antigo era muiro mais radical que a de Lutero. A situaçáo em Zurique era tal que o governo cantonal introduzia gradativamente as mudan-
ças que Zuínglio, como fiel intérprete da Escritura e líder popular natural, persuadia aquele governo a sancionar, no minimo porque, ao permitir as mudanças propostas na
reiigiosa, teria sua autoridade aurnen~ada.O conselho municipal,
correspondentemente, ordenou um debate público, em janeiro de 1523, 1x0 qual a Bíblia deveria ser o fiindamento exclusivo. Zuínglio preparou para esse debate sessenta e sete breves artigos, afitmando que o Evangelho náo tira sua autoridade da igreja e que a salvaçáo é pela fé somente, e negando o caráter sacrificial da missa, o caráter salvífico das boas obras, o valor intercessório dos santos, o caráter obrigatório dos votos monásticos e a existência do purgatório. Declarou, ainda, ser Cristo o único cabeça da igreja e defendeu o casamento das clérigos. No debate, assiseido por
mais de seiscentas pessoas, o conselho declarou Zuínglio como vencedor contra seus oponentes romanistas, afirmando que náo ficara provada nenhuma heresia contra ele e que ele náo era nenhum inovador, julgado pelo padráo escriturístico. O conse-
lho também ordenou que Zuínglio continuasse pregando e que todos os outros deveriam pregar apenas o que poderia ser sustentado pelos evangelhos c pela sagrada
Escritura. Isso foi um retumbai~tetriunfo pessoal para Zuíilglio, e efetivamelite
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HIST~RIA DA IGREJA GBISIÃ
garantiu a Reforma em Zurique, embora náo introduzindo-a "oficialmente". Tensões crescentes dentro da cidade, incluindo algumas manifestaçóes de iconoclasmo, levaram entáo Zuíngiio e seu ministro associado, Leo Jud (1482-1542), a proporem outro debate público para lidar especificamente com a questão da missa e do uso de imagens. Por ordem do conselho esse segundo debate foi realizado em outubro de 1523 e assistida por cerca de novecentas pessoas. Zuíliglio e Jud ataca-
ram a veneraçáo de imagens ("ídolos"), negaram o caráter sacrificial da missa, afirmaram a base bíblica para a comrinháo dos leigos em ambos os elementos e demandaram que os culros fossem realizados no vernáculo. Esse debate, como o primeiro, foi um triunfo para Zuínglio, mas o concílio andou caucelosamenre. Ele votou para que fossem mantidas a missa em latim e a comunhão em um elemento, e permitiu apenas a rernoçáo silenciosa de imagens, cuja propriedade fosse privada, das igrejas.
O conselho também nomeou uma comissáo de catorze, incluindo Zuíngiio e Jud, para deliberar sobre as questóes. O próprio Zuínglio defendia essa política de açóes graduais; "caminhando devagar", ele certa vez escreveu a Jud, "alcançaremos nossos objetivos". Entretanto, outros seguidores mais radicais da reforma queriam que as mudancas se realizassem muito mais rápido, sem esperar pelos magistrados, e assim ficaram desiludidos com a lideran$a de Zuínglio (ver VI:4).
As mudan~asdecisivas, assinalando uma ruptura clara com Roma, veio em 1524 e 1525. Em junho e julho de 1525, por ordem do conselho, grupos de trabaihadores removeram
ela força quadros, estátuas e relíquias das sere igrejas da cidade e cesca-
ram o órgáo com uma parede na Grande Minster. Ein dezembro daquele ano os mosreiros foram dissolvidos, cncontrando pequena resistência, e suas propriedades disposras para propósitos educacionais e socorro aos pobres. A niissa coi~siriuouate a semana santa de 1525, quando também foi abolida, embora náo sem pesada oposiçáo da minoria católica no conselho. Em seu lugar foi instituído um culto simples
no vernáculo, com comunháo em ambos os elementos em memória da última ceia.
A transformação estava completa. A jurisdicão episcopal fora abandonada, os cultos eram realizados em aiemâo, o sermáo rornara-se cenrral e as doutrinas e cerimônias características da velha ordem haviam desaparecido. Zuínglio explicou e justificou essas mudanças em sua principal obra teológica: Comentdrio Sobre a E~dadeime rs
Falsa Religzúo (1 525). Enrremenres, em 2 de abrii de 1524, Zuínglio casara publicamente com Ana Reinhard, uma viúva com quem já havia se casado secretamente no início de 1522.Durante todo esse tempo, os papas não interferiram efetivamente
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nos assuntos religiosos da cidade, principalmente porque precisavam do apoio militar de Zurique, o maior dos estados suíqos e até então a única fonte confiável de tropas mercenárias na Confederaçáo Suíça. Zuínglio, naturalmente, acompanhava com atenção a sorte da revolução ecIesiástica em outras partes da Suíça e nas regióes alemãs limítrofes, auxiliando ao máximo que podia. Basiltia foi gradativamente conquistada para a causa evangélica, especialmente por Joáo Ecolampádio (1482-153I), que ali trabalhava continuamente desde 1522. Em Basiléia a missa foi abolida em 1529. Berna, o maior dos cantóes suíços, foi ganho para a Reforma em 1528, após muito trabalho evangélico preliminar, por um debate público em que Zuíngiio teve papel principai. Sáo Galeno, sob o hurnanista Joaquim von Watt, conhecido como Vadianus (1484-1 55 I), também foi ganha, como foram os cantóes de Schafkausen e Glarus e as cidades de Constança e Miilhausen na Aisácia. A decisáo de Berna pelo protesrantismo zuingliano foi de extrema importância. Ela evitou que Zurique com seu zuingiianismo ficasse isolada dentro da Confederaqáo Suíça e por fim possibilitou a obra de Joáo Calvino evitando que Genebra caísse sob o domínio dos duques católicos de S ~ b ó i a(ver VI:7). De importância comparável foi a inclinaçáo de Estrasburgo, cidade do sul da Alemanha, pelo ponto de vista zuingliano e não pelo luterano. Naquela cidade, o movimento evangélico, iniciado em I521 por Mateus Zell (1477-1548), fora conduzido adiante vigorosamente a partir de 1523 por WoIfgang Kopfel, ou Capito (1478-1 541) e pelo hábil e pacífico Marrinho Bucer (149 1-1 55 I), porém, só se completou em 1529. Zuínglio e Luteso estavam de acordo em muitas questóes, mas tinham temperamentos distintos e suas formaqóes religiosas e intelectuais tinham sido bastante diferentes. Lutero começara sua carreira como escolástico medieval tardio, frade agosriniano e professor universitário de Bíblia, e chegara à sua ruptura evangélica a partir de profundas luras religiosas no mosreiro. Zuínglio, pároco e pregador da cidade, havia percorrido a senda dos humanistas, embora seu humanismo erasmiano fora constantemente aprofundado, e por fim transformado, por seu estudo de Paulo e de Agostinho e por sua experiência de pecaminosidade e sofrimento. Conquanto ele também aprendera muito com os primeiros escritos de Lutero, suas ênfases eram diferentes das de Lutero. Para Lutero, a vida cristã era de liberdade em perdáo e reconciliação com Deus. Para Zuínglio, ela era muito mais uma vida de conformidade à vontade de Deus segundo estabelecida na Bíblia.
Em ponto algum da doutrina cristá a divergência entre Zuínglio e Lutero era
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mais visível que na interpretação da ceia do Senhor, e essa divergência por fim romperia as fileiras evangilicas. Para Lutero, as palavras de Cristo na ÚItima ceia: "Este é o meu corpo", eram literalmente verdadeiras; conseqüentemente, ele ensinava que o corpo e o sangue de Cristo estão "realmente" ou "substancidmente" presentes no pão e no vinho consagrados e sáo recebidos verdadeiramente por todos que partilham dos elementos - pelos fiéis para a salvação mediante o perdáo de seus pecados, pelos incrédulos para sua condenacáo. No entanto, desde 1521, um advogado holandês, Cornélio Hoen, sustentava que a interpretaçáo apropriada seria: "Isto signz$ca o meu corpo". A tese de Hoen chegou ao conhecimento de Zuínglio em 1523, e para ele confirmava a compreensáo simbólica das palavras para a qual já se inclinava. Desde então negou qualquer presença física de Cristo na ceia. Cristo, por certo, esrá presente espiritualmente, não no pão e no vinho mas nos corações dos fiéis, que recebem, apenas eles, os benefícios da ceia. Os elementos sáo assim sinais visíveis e exteriores de uma graça espiritual e interior, já presente, e portanto "comer" é equivalente a "crer" (edereest credere). A ceia é uma r ~ f e i ~ ácomum o de agradecimento e lembrança e une a assembléia de crentes em uma confirmação comum de lealdade a seu Senhor. Por volta de 1526, essas interpretações rivais tinham provocado uma amarga controvérsia através de panfletos, na q u d tomavam parte Lutero e Bugenhagen de um lado e Zuinglio e Ecolampádio de outro, com seus respectivos partidários. A mais importante obra de Lutero foi sua [Grande] Conjssú'o a Respeito da Ceia do Senhor
(1528).Ambos os lados demonstraram pouquíssima caridade. Para Zuínglio, a afirmaçáo de Lutero sobre a presença física de Crisro era um remanescente irracional da supersti~áocatólica. Um corpo físico só pode estar em um único lugar, e o corpo de Crisro - desde a Assunçáo - está no céu. Coisas fisicas, ademais, náo podem c o n m ou conduzir realidades espirituais. Para Lutero, a interpretacão de Zuínglio era uma exaltacáo pecaminosa da razão sobre as 'palavras simples" da Escritura e uma negat ã o da realidade da Encarnaçáo de Crisro. Ele procurou explicar a presença física de
Cristo em dez mil altares simultaneamente apelando à doutrina cristológica tradicional da "comunicaçáo de atributos" (communicatioidiornatum) - i.e., que as qualidades da natureza divina de Cristo, incluindo ubiqüidade, eram comunicadas à sua natureza humana. Lutero estava preocupado, também, em defender que o fiel participava na totalidade do Cristo divino-humano e em evitar qualquer desrnembramento da pessoa de Cristo. Ele declarou que Zuínglio e seus seguidores náo eram cristáos, ao passo que Zuínglio afirmou que Lutero era pior do que Eck, o defensor romano.
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As idélas de Zuínglio foram acolhidas náo apenas na Suíça de fala alemã mas em muitas partes do sudoeste da Alemanha. O partido romano se deleicava com essa evidente divisáo das forcas evangélicas e encorajava ativamente mais divisões entre os protestantes suícos e os alemáes mediante a ênfase nos elementos católicos ("ortodoxos") no luteranismo. ZuíngIio era o melhor dotado poliricamente dentre os reformadores, e desenvolveu planos de vasto alcance que, no fim, nada resultaram. Os antigos cantóes rurais de Uri, Schwyz, Untenvalden e Zug eram fortemente conservadores e se opuseram
às mudanças em Zurique. Lucerna os acompanhava, formando com eles um forte partido romano. Por volta de abril de 1524 haviam constituído uma liga para resistir à heresia. Em maio de 1526, a Confederaçáo Suíça reuniu-se para um debate religi-
oso em Baden. Zuínglio foi convidado, mas náo atendeu ao convite. Em seu lugar foi Ecolampádio, que defendeu habilmente a posicão evangélica. Nessa época, todos os cantóes, exceto Zurique, ainda eram oficialmente catóricos, e o resultado do debate foi um triunfo católico. Zurique estava, por enquanto, isolada. Entretanto, depois que Berna tornou-se oficialmente protestante em fevereiro de 1528, as cidades reformadas de Zurique, Constança e Berna formaram uma "Aliança Civica Cristá" em junho daquele ano - uma liga formidável à qual se vincularam mais tarde Sáo Galeno em 1528 e Biel, Mulhausen, Basiléia e Schaffhausen em 1529. N o início do ano seguinte também dela passou a fazer parte Estrasburgo. No entanto, essa liga ainda era muito menor do que o desejado por Zuínglio. Com o passar do tempo, essa liga tornou-se fator divisor da unidade s u í p pois os canróes conservadores romanos formaram em oposicáo à "Uniáo Cristá" e, em 1529, firmaram aliança com a Áustria.
As hostilidades haviam começado. Porém, o auxílio austríaco ao p r t i d o romano era insuficiente, e a 25 de junho de 1529 foi feira a paz entre os dois parcidos, em Kappel. Seus termos foram muito favoráveis a Zurique e aos zuinglianos. A aliança com a Áustria foi abandonada. Zurique estava então no ápice de seu poder e era por todos considerada como a cabeFa política da causa evangélica. Todavia a paz fora apenas uma trégua e quando, em 1531, Zurique pretendeu forçar a pregaçáo evangélica nos cantóes romanos mediante um embargo no envio de alimentos para eles, mais uma vez a guerra era certa. Zurique, apesar dos conselhos de Zuínglio, não havia se preparado convenientemente para a luta. 0 s cancóes romanos agiram rapidamente. Em I I de outubro de 1531
derrotaram os homens de Zurique na batalha de Kappel. O próprio Zuíngiio foi
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HIRIRIA OI IGREJA CRISTÃ
descoberto entre os que estavam gravemente feridos. Após recusar as ministraçóes de um confessor, ele foi morto e seu corpo esquartejado, queimado e misrurado com estrume, para impedir que suas cinzas fossem recolhidas e se tornassem relíquias protestantes. Na paz que se seguiu Zurique foi forçada a abandonar suas alianqas, e cada cantáo teve o direiro total de regular seus assuntos religiosos internos. O progresso da Reforma na Suíça de língua alemá estava interrompido permanentemente. Zuínglio foi sucedido na liderança da igreja de Zurique, embora náo em suas arnbiqóes políticas, pelo hábil e conciliador Henrique Bullinger (1504-1575). O movimento suíço, como um todo, seria modificado e amplamente desenvolvido pelo gênio de Calvino. As igrejas que dizem ser filhas espirituais dele, e por conseguinte parcialmente de Zuínglio, receberiam por fim o nome de "Reformadas", para se distinguirem das "Luteranas".
Capitulo 4
Os Anabatistas Foi dito acima, quando falamos de Karlstadt, que alguns dentre os que trabalharam com Lurero no início concluíram ser ele apenas meio reformador. Isto também aconteceu, com intensidade ainda maior, com Zuínglio. Enrre os que estavam mais na vanguarda a favor das inosraçóes em Zurique encontravam-se Félix Manz (1500!-
1527), sacerdote erudito e filho de um cônego da Grande Minster, e Conrado Grébel
(1498-1526),descendente de uma das famílias mais proeminentes da cidade e, como Zuínglio, educado como hurnanista nas universidades de Viena e Basiléia. Eles, juntamente com outros, concluíram por volta do fim de 1523, que Zuínglio era um falso profet.a que havia falhado em apiicar o tesce bíblico a rodas práticas religiosas em Zurique e que esperava pelas lentas autoridades seculares para executar as reformas comandadas incontinenti
palavra de Deus. Esse elemento radical ficou em
evidência pela primeira vez durante o segundo grande debate, em outubro de 1 523, quando conclamou à imediata aboliFáo das imagens e da missa - passos que as autoridades ainda não estavam preparadas para tomar.
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Um dos mais hábeis participantes nesse debate foi Baltasar Hubmaier (1480?1528), doutor em teologia pela universidade de Ingolstadt, onde havia sido aluno e depois colega de João Eck, o oponente de Lutero. Em 1521 Hubmaier tornou-se pregador em Waldshut, no extremo norte da Suíga. Convertido às idéias evangélicas pelos escritos de Lutero em 1522, exigiu, com êxito, reformas em sua cidade. Já em maio de 1523 esrava com dúvidas quanto ao batismo infancil e discutiu sobre isso com Zuínglio, o qual, nessa ocasiáo, segundo o testemunho de Hubmaier, simpatizara com ele. Sua critica se fundamentava na falta de base escriturística para o batismo infantil. Em 1524, Grébel e Manz chegaram à mesma conclusão, mas só no começo de 1525 puseram a teoria em prática. Suas críticas levaram, em 17 de janeiro de 1525, a um debate público com Zuínglio.
O resultado foi que o conselho da cidade ordenou em 18 de janeiro que todas as criancas nao batizadas fossem apresentadas para batismo no prazo de oito dias alguns pais haviam postergado deliberadamente - e também ordenou o fim de prega~ á não o autorizada e de reunióes ilícitas para culto. Isso pareceu aos dissidentes uma determinaçáo por um poder terreno contrária à Palavra de Deus. Ao anoitecer de 2 1 de janeiro de 1525 um pequeno grupo se reuniu em uma casa pertencente à mãe de Felix Manz. Depois de orarem, Jorge Blaurock (1492?-1529),um ex-sacerdore casado, levantou-se e solicitou a Conrado Grébel que o batizasse. Grébel assim o fez, e entáo Blaurock batizou outros quinze. Exatamente nessa mesma hora o conselho estava emitindo uma ordem exigindo que Grébel e Manz parassem de propagar suas idéias e banindo seus companheiros que não fossem cidadáos de Zurique - entre eles Guilherme Roubli (1484?-1559), sacerdote de Wytikon, e Ludovico Hatzer (1500?1529). Na semana seguinte estes homens, agora agindo abertamente contra a decisáo das autoridades, efetuaram reunióes de avivamento na aldeia de Zollikon, perto de Zurique. Eles conduziram reunióes de oraçáo em casas particulares. Aqueles que experienciaram regenera~áo,cerca de trinta e cinco, foram batizados por afusáo. Tendo assim instituído o batismo de fiéis, passaram a celebrar sua particrpaqáo na comunhão de Cristo pela observâiicia simples da ceia do Senhor. No domingo de páscoa de 1525 Hubmaier foi batizado por Roubli em Waldshut. Através destas açóes decisivas, os dissidentes formaram uma comunidade separada, uma "igreja reunida" de "fiéis genuínos". Seus oponentes os apelidaram de "anabatistas", ou rebatizadores. Esse título era tanto impreciso quanto preconceituoso,
li-
uma vez que eles reconheciam apenas um batismo, aquele para adultos somente, e porcanto negavam a validade de seus batismos na infância. Eles chamavam a si mesmos simplesmente "irmáos" e "irmãs". Contudo, o nome tradicional, entendido adequadamenre, é convenienremente aplicado a esse nodvel movimento da época da Reforma. Zuínglio se opôs a esses primeiros anabatistas (ou Irmáos Suíqos, como eles são normalmente denominados no presenre) encarniçadamente, mas pouco conseguiu para demovê-los de sua posi~áo.Grébel e seus companheiros diferiam dele a medida que percebiam ser o tesre de fé cristá um discipulado de Cristo que, sustentavam, tinha que ser experimentado através de um renascimento ou despertamento espiritual e demonstradò em uma vida de santidade. A verdadeira igreja de Deus, correspondentemente, é constituída náo de rodos os cristãos
professas, que ingressaram na igreja por meio do batismo na infância, mas apenas pelos fiéis convictos, que receberam o batismo quando adultos em piena consciência de fé e que agora exibem em suas vidas os frutos palpáveis da fé. Conseqtientemente, os anabatistas recusaram-se a ter qualquer parte em igrejas estatais inclusivas do ripo que Zuínglio estabelecera em Zurique e que foram desenvolvidas em outros cenrros da Reforma. Suas crenças os impeliram, ao invés, a se estabelecerem aparrados em comunidades livres e em seus próprios conventículos. Portanto, foram os primeiros a praticar a separacão completa enrre igreja e estado. Uma vez que a fé é voluntária, o uso de força em questóes religiosas é inadmissível - uma posicáo que implicava no abandono da exigência secular de uniformidade religiosa como a garantia de ordem e paz ~ ú b l i c a Foi . principalmente por causa desse náo conformismo que foram perseguidos. Seu sectarismo foi interpretado como expressão de hostilidade à sociedade organizada, no mínimo porque se recusavam, baseados no Sermáo da Montanha, a fazer juramentos e participar de qualquer forma de serviço militar - solapando assim dois fundamentos da vida política contemporânea. Em suas próprias mentes, entretanto, eles simplesmente escavam levando o biblicismo de Zuínglio à sua conclusáo lógica e estavam realizando nada menos do que uma resrauraçáo do crisrianismo primitivo. Em
7 de março de 1526 o conselho de Zurique ordenou que os anabatistas
fossem afogados, parodiando horrendamente a crença deles. Esse castigo eventualmente foi aplicado pela magistratura de Zurique a quatro Fessoas. O primeiro
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mártir anabatista no cantáo foi Felix Manz, que foi afogado no rio Limmat em 5 de janeiro de 1527. Grébel escapou de sorte semelhante só porque morrera da praga pouco tempo antes. Enquanto isto, Hubmaier estava reunindo uma g a n d e comunidade anabatista em Waldshut. Mas seu maior triunfo na propagaçáo de suas idéias foi alcanqado com a pena. Segundo ele, a Bíblia era a única lei da igreja e, conforme o teste escriturístico, a ordem correta do desenvolvimento cristão era a proclamaçáo da palavra, o arrependimento, a fé, o batismo e as obras - estas úlcimas indicando uma vida vivida com a Bíblia como sua lei. Entretanto, WaIdshut logo foi envolvida na revolta dos carnponeses e partiihou do fracasso desse movimento. Hubmaier teve que fugir e a cidade voltou a ser católica. Preso e torturado em Zurique, escapou para Augsburgo e daí para a Morávia, onde propagou com muito êxito o movimento anabatista. Estas perseguiçóes tiveram o efeito de espalhar a propaganda anabatista pela Alemanha, Suíça e Países Baixos. Logo o movimento tomou grandes proporções. Nas partes ainda católicas do império, a propaganda anabatista praticamente substituiu a luterana. Os governantes territoriais no início procuraram parar o movimento criando leis contra ele, exatamente como as autoridades de Zurique haviam feito. Fernando da Áustria foi o primeiro a agir assim e seu irmáo, o imperador Carlos V, o apoiou (4 de janeiro de 1528). Mas apesar do fato de que muitos anabatistas tenham sido vítimas dessas
eles se tornaram mais e mais preocupantes para as autori-
dades. Entáo as dieras de Espira (1529) e de Augsburgo (1530), a assembléia dos territórios alemáes, tanto católicos romanos como protestantes, aplicaram sobre eles
a velha lei romana contra a heresia. Doravante, a membresia em qualquer grupo anabatista seria punível com a morte. Nos territórios católicos romanos, particularmente na Áustria e na Baviera, essa lei recém-proclamada foi executada com extrema severidade. Nos rerritórios evangélicos os anabatistas não foram tratados como hereges, mas como sediciosos. Náo querendo se conformar à ordem eclesiástica estabelecida, tinham oportunidade de emigrar. Porém, se se recusassem a partir e continuassem a professar publicamente sua fé, seriam considerados perturbadores da paz e
unidos com prisáo ou morte. Somente em Hesse, Wurttenberg e Estrasburgo
foram evitados cais "julgamentos sangrentos".
A expansão do movimento anabatista partiu de três centros: Suísa, sul da Alemanha e Morávia. Quando Zurique começou a suprimi-lo, os primeiros convertidos levaram sua fé a outras partes da Suísa. Logo foram estabelecidas congregaçóes
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HISTÓRIA iih IGREJA ERISTÃ
anabatistas pelos aiciplanos dos Alpes. Uma prova de que cresceram bastante é a atitude que as autoridades públicas tomaram contra elas. Em 29 de dezembro de 1529 o conselho da cidade de Basiléia preparou um debate público entre pregadores evangéiicos e porta-vozes dos anabatisras e terminou proibindo o movimento. Em 1530-1 531 três fiéis foram executados e muitos outros exilados. No cantáo de Berna realizou-se um longo debate com vinte e três anabariscas, de 10a 9 de julho de 1532, em Zofingen. Também ali o resultado foi a condenaçáo pública. Entre 1529 e 1571 ocorreram quarenra execuçóes públicas de anabatistas. A situaçáo era parecida nos cantóes de Appenzell e de Aargau. Grisons e a regiáo ao redor de Chur [ornaram-se o centro principal da propaganda anabatista na Suíca. O principal agente ali foi Blaurock, até ser
na fogueira no Tirol em 6 de setembro de 1529. Por
muiro tempo os grupos anabatistas continuaram muiro ativos ali, como se pode ver pela correspondência de Bullinger, sucessor de Zuínglio, um de seus mais ardentes opositores escritores. De Graubunden os secrários estiveram em contato permanente com amigos e simpatizantes na Morávia e na Itália superior, especialmente Veneza. No iriício Augsburgo foi o principal centro anabatista alernáo. Foi ali que Hubmaier batizou Hans Denck (1 500?-1527) em maio de 1526. Ele, por sua vez, pouco depois barizou Hans Hut, que passou a organizar uma congregação que cresceu rapidamente, conquistando até mesmo membros de famílias aristocratas (em março de 1527 batizou Eitelhans Langenrnantel). Em 20 de agosto de 1527 um grande número de anabatistas do sul da Alemanha e da Austria realizaram um sínodo (mais tarde denominado "sínodo dos Mártires") em Augsburgo, sob a liderança de Denck, principalmente para lidar com as idéias apocalípticas de Hut. Este se dizia um apóstolo ou divinamente enviado, afirmando que a perseguiçáo aos sanros seria seguida
ela destruiçáo do império pelos turcos. Depois disso, os sanLos seriam reunidos
e
todos os sacerdotes e governantes indignos seriam por efes destruídos, depois do que Cristo visivelmente reinaria sobre a terra. A maioria rejeitou estas idéias e Hut prometeu guardá-las para si. O sínodo decidiu enviar evangelistas à Áustria, Baviera, Worms, Basiléia e Zurique. Quase todos os enviados em breve sofreram a morte dos mártires. Hut foi aprisionado em Augsburgo em setembro de 1527. Ele morreu por causa das queimaduras sofridas quando sua cela se incendiou acidentalmente. Seu corpo foi queimado publicamenre no dia seguinte,
7 de dezembro de 1527.
No encerramento do sínodo Denck se dirigiu para Ulm e Nuremberg e daí para Basiléia, onde morreu devido à praga. Foi uma das mais importantes figuras entre os
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sectários. Com cultura humanista, em 1524 tornara-se o reitor da famosa escola de São Sebaldo, em Nuremberg. Ele era bastante respeitado, mas foi dispensado de seu posto em 1525 quando expressou simpatia pelas idéias espiritualistas de Muntzer. Embora ele entáo tenha se juntado aos anabatistas em Augsburgo, provavelmente atraído pelo ideal de discipulado cristáo e pacifismo deles, suas idéias eram as de um espiritualista contemplativo. Antes de sua morte, parece que ele rompeu todo contato com os sectários pois rejeitava toda organizacáo visível da vida cristá. Sua fé repousava sobre uma luz interior superior a toda Escritura. Ele encontrava em Cristo o mais elevado exemplo de amor e defendia que o cristáo podia viver sem pecado. Seus escritos, marcados por uma bela interioridade cristá, demonstram que seu pensamento foi nutrido pelas tradiçóes de platonismo cristáo e misticismo, especialmente a "teologia alemá". De 1526 aré 1533 Estrasburgo foi o principal centro anabatista alemão. Ali existia desde 1524 uma comunidade anabatista autóctone, fundada pelo jardineiro e pregador leigo Ciemente Ziegler. A parcir de i 526 também existia uma comunidade de refugiados de Irmãos Suíços dirigida por Miguel Sacrler, ex-monge de Sao Pedro em Friburgo, que havia sido expulso de Zurique no final de 1525. Ele era altamente considerado em toda parte por causa de sua profunda piedade cristá. Os pregadores de Estrasburgo, especialmente Capiro c Mateus Zell e sua esposa Cacarina, foram muito seus amigos. Bucer, que via nos anabacistas uma ameaça à comunidade cristá unificada, pensava que a persuasão poderia convencê-los a abandonar seu sectarismo. No final de 1526 Denck foi de Augsburgo para E s ~ r a s b u r ~e oconquistou muitos seguidores. Em 22 de dezembro Bucer travou com ele um debate público. Como resultado, Denck foi mandado embora da cidade pelo conselho, e entáo foi para Worms e de lá voltou para Augsburgo, onde em 1527 participou do supramencionado Sínodo dos Mártires. Pouco tempo depois do banirnento de Denck de Estrasburgo, Sattler partiu voluntariamente. Em 24 de fevereiro de 1527 ele presidiu um sínodo de Irmãos Suíqos em Schleitheim, reunido para combater aberraqóes internas ao movimento (os "falsos irmáos") e resistir aos desafios do exterior. O sínodo adotou sete artigos de fé, provavelniente redigidos na essência por Sattler. Essa "Confissáo de Schleitheim" - uma declaraqáo representativa das convicçóes anabatistas evangélicas - afirma o batismo dos fiéis. A igreja é considerada como composta unicamente de associacóes locais de criscáos regenerados e batizados, unidos como o corpo de Cristo pela observância comum da ceia do Senhor. Sua única
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HISTORII DA IGREJA CRISIÃ
arma é a excomunháo (o banimento). E exigida absoluta rejeição de toda "servidáo da carne" - uma desaprovaçáo dos excessos antinomianos que apareceram nas bordas do movimento anabatista. As formas de culto das igrejas romana, luterma e zuingliana são explicitamente repudiadas como náo cristás. Os deveres do pastor - que agora é considerado como um ministro estabelecido ao invés de um evangelista itinerante são claramente definidos. Sua principal responsabilidade é ler as Escrituras e ensinar e admoestar à luz delas, conduzir na oraçáo e presidir a Ceia, em cuja capacidade ele disciplina e bane em nome da igreja. Conquanto o governo civil seja tido como uma necessidade neste mundo imperfeito, os cristãos náo devem participar nele; náo devem portar armas ou usar a força, nem devem fazer qualquer tipo de juramento. Estas eram idéias que seriam reapresentadas em proporções variadas, mais tarde, por batistas, congregacionais e quacres. E, por meio destes, teriam grande influência no desenvolvimento religioso da Inglaterra e dos Estados Unidos. Logo após o sínodo, Sattler foi aprisionado pelas autoridades austríacas e queimado na fogueira em Rottenburgo em 21 de maio de 1527. Sua esposa foi afogada oito dias depois.
A comunidade anabatista em Estrasburgo continuou a florescer, principalmente porque novos líderes sempre vinham abrigar-se na cidade. Durante algum tempo a figura principal foi Pilgram Marpeck (1495?-1556),engenheiro tirolês que chegou em Estrasburgo em setembro de 1528 e conquistou muitos seguidores. Entre dezembro de 1531 e janeiro de 1532 participou de numerosos debates orais e escritos com Bucer, e logo depois disso foi mandado partir da cidade. Por um tempo ele montou seu quarteI general em Ulm, mas em 1544 passou a residir permanentemente em Augsburgo. Marpeck foi o principal formulador e organizador dos anabatistas do sul da AIemanha desde o início da década de 1530 até sua morte em 1556. Marpeck defendeu suas convic~óesem escritos bem trabalhados, os quais só recentemente têm vindo à luz. Neles procurou justificar as doutrinas anabatistas baseado em um biblicismo estrito. Em 1542 escreveu uma espécie de catecismo, sob o título Vermahnung oder Tdufiiichlezn, e durante a última parte de sua vida completou sua
maciça "Réplica" (I/emntwortung)a Gaspar Schwenckfeld (1489-1561), o principal porta-voz de um espiritualismo evangélico entre os reformadores radicais.
A partir de 1533 o governo de Estrasburgo tomou medidas mais severas contra os sectários (aprisionamento), principalmente porque Melquior Hofmann (1495)-1543) introduziu entre eles um apocalipsismo fanático. Este estranho homem nascido na Suábia e curtidor de profissáo, caíra sob a influência da causa de Lutero em 1522.
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Entâo tornara-se pregador leigo, apresentando suas confusas idéias durante suas viagens pelos países bálticos, Sutcia, Dinamarca e Holsrein. Nesses lugares esteve sempre em conflito com sacerdotes catíilicos romanos e pregadores luteranos. Em junho de 1529 apareceu em Estrasburgo e lá fez contato com os anabatistas, submetendose ao rebatismo. A oposição destes às igrejas territoriais levou-o a desenvolver uma forma original de ap~cali~ticismo, a qual expôs em conexão com o livro do Apocalipse de Joáo. Ele agora considerava Lutero, o "apóstolo dos começos", como um Judas. Proclamando a si mesmo "apóstoIo do fim", predisse que o Juízo Final seria em
1533, a partir de Estrasburgo e abarcar-ido o mundo inteiro. Depois que sua prisáo foi ordenada escapou da cidade em abril de 1530 e dirigiu-se para Emden, na Frísia Oriental, onde arrebanhou muitos seguidores (os "Melquioritas"), enchendo-os com a expectativa de que triunfariam enquanto os demais pereceriam pela violência. Quando esses seguidores experimentaram perseguição severa nas mãos das autoridades católicas, Hofmann ordenou a suspensáo dos batismos de fiéis por dois anos (a Pausa), e retornou a Estrasburgo, a "nova Jerusalém", no final de 1531. Novos mandados de prisáo o forçaram a Fugir da cidade no início de 1532. Retornou uma vez mais em meados de 1533, e em maio foi submetido a duas audiências judiciais e mantido sob suave detençáo. Foi então examinado detalhadamente por Bucer durante o decorrer do importante sínodo de Estrasburgo de 10 a 13 de junho de 1533. Hofman foi sentenciado a prisáo perpétua e permaneceu preso até sua morte em 1543, mantendo-se firme em suas convicções e na sua esperanca até o final. Na Morávia os anabatistas encontraram refúgio nas grandes propriedades dos senhores de Liechtenstein. Em julho de 1526 Baltasar Hubmaier foi para Nikolsburgo e transformou a paróquia luterana local de fala alemá em uma congregaçáo anabatista. Milhares de refugiados, principalmente da Áustria Superior e do Tirol, estabeleceram-se lá e formaram várias comunidades. Hubmaier era o principal líder deles - o "patriarca de NikolsburgoV- aré que, em julho de 1527, foi entregue às autoridades austríacas. Foi queimado na fogueira em Viena, em 10 de março de 1528, e poucos dias mais tarde sua esposa foi afogada no Danúbio. Houve muitas divisóes entre os Irmáos Morávios. Em maio de 1527 realizou-se um gande debate em Nikolsburgo entre Hans Hut e Hubmaier. Hut esperava o fim do mundo para 1528 e defendia um pacifismo radical. Hubmaier argumentou pela necessidade de governo civil e defendeu a submissáo a tal governo, incluindo o dever de prestar serviço militar e pagar impostos. Eie também defendeu que um magisrra-
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do pode ser expressamente cristão, e aprovou tanto a guerra justa como a pena capital. (Em todos esses aspectos, Hubmaier náo era um anabatista típico.) Os irmáos que ficaram do lado de Hut deixaram Nilrolsburgo, sob a lideran$a de Jacó Wiedemann, e fundaram uma comun~dadeem Austerlitz, em 1528, que cresceu rapidamente e logo contava vários milhares de membros. Eles desenvolveram uma ordem social comunista (comunidade de bens). Foram um dos poucos grupos entre os anabatistas a fazer isso, embora uma acusaqáo padráo contra estes, em todos os lugares onde foram perseguidos, é que todos eles haviam abolido a propriedade privada.
A comunidade de Austerlitz por sua vez sofreu muitas divisóes e separaçóes, até que o apóstolo tirolês Jacó Hutter organizou-as firmemente, de 1529 a 1536, quando também ele sofreu morte de mártir queimado na fogueira em Innsbruck. Entretanto, ele deixou os "Irmáos Hutreritas" tão bem organizados economicamente que foram capazes de manter sua ordem comunista até 1622 na Morávia, até 1685 na Hungria e de 1770 a 1874 na Ucrânia. Entre 1874 e 1877, grupos de hutteritas migraram da Rússia para a América do Norte e estabeleceram comunidades em Dakota do Sul e Monrana e, mais tarde, em Manitoba e Alberta. Os sucessores imediaros de Hutter foram uma linha de bispos vigorosos: Hans Arnon (1536-1 542); Pedro Riedemann (1542-1 556), que em 1540 escreveu um livro notável intitulado
RcchenrchaJZ (Relato de fé), uma das mais impressivas exposiçóes da fb. e prática anabatista; Pedro Walpot (1556-1578) e Claus Braidl (1585-161 1). Ao final da era da Reforma, existiam congregações anabatistas, fora da Morávia, na Suíça, no Paiatinado, na Holanda, na Frísia, na Prússia e na Polônia. Nas décadas de trinta e quarenta estavam ativos também no Hesse e na Saxônia, os principais territórios luteranos. Filipe de Hesse procurou tratá-los com brandura. Os que foram presos e não quiseram abjurar, foram banidos. A pena mais severa imposta a eles foi a prisão. O Iíder mais radical entre os anabatistas de Hesse foi Melquior Rink, antigo assoc~adode Tomás Muntzer. Ele passou os últimos dez anos de sua vida no cárcere, onde morreu cerca de 1540. Um dos mais notáveis fatos na história do anabatisrno em Hesse foi um debate que Bucer realizou com alguns deles, por ordem do landgrave, de 30 de outubro a 2 de novembro de 1538, em Marburgo. Foi uma das raríssimas ocasiões em que os fiéis anabatisras sentiram-se compelidos a se renderem aos argumentos de seus oponentes e abandonarem sua fé. Na Saxônia e na Turíngia os anabatistas foram suprimidos vigorosamente. Lutero,
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que injustamente os identificou com Karlstadt e Muntzer, o "Schwdrmer", os considerava pervertedores da fé, porque, em sua opiniáo, criam na salvagáo pelas obras e pela lei. O gerairnente pacifico Melanch~honfoi feroz inimigo deles. Tinha-os como contrários à ordem política e social. O maior opositor literário dos anabatistas na Saxônia foi Justo Menius. Entre 1530 e 1544 publicou vários escritos contra eles, sendo os principais
'RDoutrina e o Segredo dos Anabatistas Refutados pela Bíblia"
e "Do Espírito dos Anabatistas".
If. um fato bastante notável que todas as obras posteriores dos reformadores estabelecidos - por exemplo, o "Comentário Sobre a Epíscola aos Gálatas" de Lutero, publicado primeirarnenre em 1535, e a "Instituiçáo" de Calvino - expunham a fé evangélica por um lado em oposiçáo ao catolicismo romano e, por outro, contrastando com os anabatistas.
Capítulo 5
O Estabelecimento do Protestantismo Alemão O término feliz da guerra com a França e a reconcilra~áocom o papa Clemente VI1 deixaram Carlos V livre, em 1529, para finalmente interferir efetivamente nos assuntos da Alemanha. O Reichstag de Espira, naquele ano, alarmado com o progresso do luceranismo e a expansão dos anabatistas, e consciente das mudanças nos objerivos do imperador, proibira novos avancos luteranos, e praticamente ordenara a restauraçáo da autoridade episcopal romana. A minoria luterana protestara. Nessa situaçáo ameaFadora, Filipe de Hesse procurara formar uma liga defensiva de todas as forfas evangélicas da Alemanha e da S u í ~ a .Os principais obstáculos foram as diferenças doutrinárias entre os dois partidos, mas Filipe esperava que uma conferência pudesse harmonizá-las. Ainda que Lutero fosse contrário, por fim concordou. Assim, em lo de outubro de 1529, no casteIo de Filipe em Marburgo, Lutero e Meianchthon se encontraram face a face com Zuínglio e Ecolampádio. Estavam todos eles acompanhados de alguns dos líderes menores de ambos os partidos. Bucer e outros representantes de Estrasburgo também par~iciparam.Nos dias que se segui-
ram transcorreu o "colóquio de Marburgo". Lutero estava um pouco desconfiado da solidez dos suíços no que se refere às doutrinas da Trindade e do pecado original, mas o verdadeiro ponto de diferença foi a presença corporal de Cristo na ceia (ver VI:3). Lutcro sustentava com firmeza a interpretaqáo literal das palavras: "Este é o meu corpo". Zuínglio apresentou o argumento comum de que um corpo físico náo pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Era impossível um acordo. Zuínglio lembrou que ambos os partidos eram, antes de tudo, irmãos em Cristo. Lutero, porém, declarou-se incapaz de aceitar alguém como irmão na fé a menos que houvesse unanimidade em todos os artigos "Tendes um espírito diferente do nosso", no básicos de fé. Sua famosa obsen~a~áo: entanto, não foi dirigida a Zuínglio, mas a Bucer. Contudo, Filipe não queria deixar a esperança numa liga defensiva esvanecer dessa forma e assim persuadiu Lutero a redigir quinze artigos de fé. Houve acordo em catorze, mas no décimo quinto, referente à ceia, as diferenqas apareceram pois
concordararn em tudo, exceto no ponro sobre a natureza da presença de Cristo. Esses artigos de Marburgo foram assinados por ambos os lados, mas com a ressalva de que "cada lado deveria demonstrar amor cristão pelo outro até onde a consciência permitisse".' Lutero e Zuínglio se retiraram de Marburgo, cada um certo de que fora o vencedor. Os luteranos agora estavam decididos a ingressar em confederações políticas somente na base de acordo confessional. Os "Ai-tigosde Schwabach", preparados por Lutero e seus companheiros de Wittenberg, provavelmente em junho de 1529, e urilizados por eles em Marburgo, serviriam para t a l propósito. O eleitor da Saxônia e o margrave de Brandenburgo-Ansbach fizeram então desses artigos o teste da con-
federa@~política. Das grandes cidades do sul da Alemanha, apenas Nuremberg estava disposta a aceitá-los. A liga defensiva dos evangélicos que Filipe desejara era impossível. Os luteranos e os suíços seguiriam seus caminhos, pois a divisáo era permanente.
Em janeiro de 1530 o imperador enviou da Itália, onde se encontrava para ser coroado pelo papa, uma convocaçáo para o Reichscag se reunir em Augsburgo. Com inesperada amabilidade, e declarando ser o acerto das diferenças religiosas o princi~ a objetivo 1 da reunião, prometeu ouvir com benevolência todas as representações. Quando o Reichstag se reuniu em 20 de junho os luteranos estavam prontos com sua
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confissáo. Os teólogos de Wittenberg já haviam redigido, em meados de 1529, uma declaração de suas crenqas nos Artigos de Schwabach, e suas criticas das práticas romanas estavam expressas nos assim chamados Artigos de Torgau de maio de 1530. Melanchthon elaborou a Confissáo de Augsburgo, tendo como base essas duas listas anteriores de artigos, e ela foi lida em alemão diante do imperador e dos representantes no ~eichstagem 25 de junho de 1530. Ela trazia as assinaturas do eleitor Joáo da Saxônia, de seu herdeiro Joáo Frederico, do margrave Jorge de Brandenburgo-Ansbach, dos duques Ernesto e Franz de Brunswick-Luneburgo, do landgrave Filipe de Hesse, de Wolfgang de Anhalt e dos representantes de Nuremberg e Reutlingen. Antes do encerramento do Reichstag, as cidades de Heilbronn, Kempren, Weissenburgo e Windsheim também assinaram essa confissáo. A Confissão de Augsburgo foi obra principalmente do suave e conciliador Melanchthon. Ainda que informado do curso dos acontecimentos, Lutero, continuando sob a interdiçáo imperial, náo pôde ir a Augsburgo e permaneceu nas proximidades, no castelo de Coburgo. Melanchthon continuou a revisar a confissáo até o dia
de sua apresentaçáo; desejoso de sarar o cisma, ele fez diversas concessóes aos romanistas. Entretanto, não era só o espírito conciliador que o movia. Seu propósito era demonstrar que os luteranos, longe de estarem introduzindo uma nova doutrina, náo haviam se afastado da igreja Católica, ou mesmo $a igreja romana, em nenhum aspecto vird e essencial, conforme revelada em seus primeiros escritos. Tal concordância é afirmada expressamente, e muitas das heresias antigas são cuidadosamente repudiadas nominalmente. Por outro lado, as posi~óeszuinglianas e anabatistas sáo energicamenre rejeitadas. A autoridade exclusiva da Escritura não é afirmada explicitamente em nenhum lugar. O papado náo é condenado categoricamente em nenhum lugar. Não são mencionados o sacerdócio universal dos crentes, o purgatório
e a transubstanciaçáo. Apesar disso, Melanchthon imprimiu um tom completamente evangélico à confissáo como um todo. A justificaqáo pela fé é feita o fundamento de toda doutrina e vida. As marcas evangélicas da igreja são evidenciadas. Sáo rejeitados a invocação dos santos, o sacrifício da missa, a negaçáo do cálice aos leigos, os votos monásticos e a prescrição de jejuns. Lutero declarou-se satisfeito com a confissao, embora ressaltando que ele náo podia "andar táo gentilmente e suavemente" como MeLanchthon. Zuínglio enviou ao imperador uma vigorosa exposiçáo de suas idéias, a Rutio Fidei, a qual recebeu pouca atençáo. Fato mais significativo foi a apresentaçáo em 9
de julho de uma confissão conjunta das cidades do sul da Alemanha simpáticas ao zuinglianismo (Estrasburgo, Constança, Memmingen e Lindau) - a Confessia
Terrupolitand. Em grande parte saída da pena de Bucer, nela foi defendida uma posiçáo intermédia entre os zuinglianos e os luteranos. O cardeal Campeggio, que era o representante papal, aconselhou que a confissáo de Augsburgo fosse examinada pelos teólogos romanos presentes em Augsburgo. Tal conselho foi aceito pelo imperador. O principal dentre esses especialistas era Eck, o antigo oponenre de Lutero. Os teólogos católicos prepararam uma refutaçáo, que lhes foi devolvida pelo imperador e pelos príncipes católicos como demasiado polêmica. Por fim, em 3 de agosto foi apresentada ao Reichstag, mas em forma bastante abrandada. Como o imperador ainda esperava por uma reconciliacão, foram nomeadas as comissóes do conclave. Porém, sua obra foi em váo - para o que muito contribuiu a firmeza de Lutero. A maioria católica declarou que por decisáo do Reichstag os lureranos haviam sido completamente refutados e que lhes fora dado até 15 de abril de 1531 para se conformarem. Ademais, ainda segundo a maioria católica, o Reichscag decidira que seria tomada uma a ~ á oconjunta contra os zuinglianos e os anabatistas e que um concílio geral se reuniria dentro de um ano para sanar os abusos na igreja.
Um tribunal imperial reconstituído decidiria os casos de secularizaçáo em rermos favoráveis aos carólicos. Os luteranos prorestaram, que sua confissáo não havia sido refutada e chamaram atenção para a Apologia, ou defesa da confissáo, de Melanch~hon.Esta fora por ele preparada apressadamente em resposta a refuraçáo romana. Essa Apologia, reescrira e publicada no ano seguinte (1531), tornou-se uma das obras clássicas do luteranismo. Tal situaçzo exigia uma uniáo defensiva. O próprio Lutero, que dissera ser pecado opor-se pela força ao imperador, agora estava disposto a deixar a legalidade de tal resistência à decisáo dos advogados. Os príncipes luteranos se reuniram em Schmalkalden no dia de natal e lançaram as bases de uma liga. Bucer, que se esforqava ininterruptamente pela união, persuadiu Esrrasburgo a aceitar a Confissáo de A~~gsburgo - um exemplo que teve grande influência sobre outras cidades do sul da Alemanha. Finalmente, em 27 de fevereiro de 1531, a Liga de Schmalkalden estava completa. A Saxônia eleitoral, Hesse, Brunswick, h h d t e Mansfeld uniram-se em pacto defensivo com as cidades de Esrrasburgo, Constança, Ulm, Reudingen, Memmingen, Lindau, Isny, Biberach, Magdeburgo, Bremcn e Liibeck.
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Ainda que a posiçáo de Carlos V pudesse parecer forte na superfície, na realidade náo era tanto assim diante dessa oposiçáo unida. Os principes católicos tinham ciúmes uns dos outros e do imperador. O papa temia um concílio geral. A França merecia atençáo. O dia fatal - I 5 de abril de 1531 - transcorreu sem a temida ameaça.
ri morte de Zuínglio, em Kappel em outubro de 1531, privou o evangelismo suíço de seu vigoroso líder e fez pender o protestantismo do sul da Alemanha para uma uniáo mais chegada com Wittenberg. O início de 1532 trouxe novo perigo a todo o império - a invasáo dos turcos. Em i 529 eles haviam sitiado Viena e, diante de seu avanço, as diferenFas religiosas, pelo menos em certa medida, deveriam ser postas de lado. Em 23 de julho de 1532 o imperador e a liga de Schmalkalden assinaram a paz de Nuremberg. Por ela todos os processos em andamento sobre secularizaçáo seriam retirados, e assegurada a paz aos protestantes até que se reunisse um concílio geral ou, ao menos, um novo Reichstag. Pouco depois Carlos V partiu da Alemanha para a Itália e a Espanha, só rerornando em 1541. Ainda que precária, a situaçáo dos protestantes melhorara bastante, e a consolidaçáo das igrejas nos territórios protestantes concinuou sem interrupçáo.
O luteranismo também estava conquistando rapidamente novos rerritórios. Por volra de 1534 já haviam sido ganhos Anhalt-Dessau, Mecklenburgo, Pomerânia, Hanôver, Frankfurt e Augsburgo haviam sido ganhos. Ainda de maior importância foi a conquista para o luteranismo em 1534, por Filipe de Hesse, do ducado de Wtirttemberg Tirou-o Filipe de Fernando, o irmão do imperador, e restituiu-o a seu duque Úlrico, mosivado em grande parte pelo ciúme que os católicos tinham da casa de Habsburgo. A morte do duque Jorge, em 1539, foi seguida pelo triunfo do luteranismo na Saxônia ducal. No mesmo ano foi obtida a adesão cautelosa do Brandenburgo eleitoral a Reforma.
Essa expansáo do luteranismo foi auxiliada por um rrágico episódio ocorrido em
1534- 1535 c que privou o anabatismo de sua influência na Alemanha - a revolu~áo de Munster. Os anabatisras, em geral, eram pessoas pacíficas, de grande retidão religiosa e paciente persistência nas perseguicóes. O episódio de Munster náo foi típico deles como um todo. Porém, havia surgido entre eles iíderes radicais como Melquior Hofmann (ver V1:4).Ademais, durante a década de 1525 a 1535, os anabatistas evangélicos pacifistas ainda não estavam claramelite distintos dos anabatistas revolucionários e dos espiritualistas revolucionários como Tomás Müntzer.
A pregaçáo apocaliptica de Hofmann obteve muitos discípulos nos Países Baixos.
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HIST~RIADA IEREJA E R I S T ~
Um deles, Joáo Mathys, padeiro em Harlem, apresentou-se como o profeta Enoque, e logo espalhou uma mensagem fanática por rodos os Países Baixos e partes vizinhas
da Alemanha. Diferindo de Hofmann, que esperava que o poder de Deus instaurasse a nova era, Mathys pretendia inaugurá-la pela força. O descontentamento democrático popular proporcionou-lhe sua oportunidade. Em parte alguma esse novo ensino foi mais influente do que em Munster, na Vestfália, onde Bernt Rothmann, um pregador Iuterano, aceitara as idéias anabatistas em janeiro de 1534. Pouco depois lá chegou M a t h ~ se, também um alfaiate de Leyden, Joáo Bockdson. Agora se dizia que Deus rejeitara Estrasburgo devido a sua incredulidade e escolhera em seu lugar Munster como a nova Jerusdém. Para lá acorreram radicais em grande número. Em fevereiro de 1534 ganharam o controle da cidade e expulsaram os que não aceitaram a nova ordem. O bispo de Munster sitiou a cidade.
Em abri1 Mathys foi morto em combate. Joáo de Leyden foi procIamado rei. Foi estabelecida a poligamia e declarada obrigatória a comunidade de bens. Os oponentes foram eliminados seivagemente. A luta, ainda que manrida heroicamente, não tinha esperança de vitória. O bispo, com o auxílio de tropas católicas e luteranas, tomou a cidade em 25 de junho de 1535. Os líderes sobreviventes foram cruelmente torturados e executados. Para o anabatismo alemáo isso foi uma catástrofe. Popularmente julgou-se que esse fanatismo fosse característico dos anabatisras e por isso seu nome tornou-se infâmia.
O movimento anabatista foi resgatado e purificado de seu radicalismo por meio da lideranca do sábio e pacífico Menno Simons (1496-1 561). Natural da Frísia, fora ordenado ao sacerdócio católico em 1524. Apesar das crescentes dúvidas sobre o bacismo infantil e a transubstanciaçáo, ele permaneceu em seu ofício sacerdotal até janeiro de 1536, ¶uando o desastre em Munster despertou sua preocupação pastoral pelos desorientados melquioritas, as "ovelhas sem pastor", e ele então assumiu o ministério anabatista, para o qual foi ordenado no início de 1537. Menno dedicouse a reabilitar o movimento e reunir seus remanescentes dispersos no norte. Ele e seus seguidores, denominados "menonitas", conseguiram estabelecer congregaç6es nos Países Baixos e no norte da Alemanha, nas quais foi restaurada a forma mais antiga de anabatismo evangélico. Os ensinos básicos de Menno foram resumidos em seu
influente livro de 1540 intituiado Fundamento da Doutrinu Cristã. Carlos V jamais deixara de esperar e trabalhar por um concílio geral que sanasse as divisões na igreja e efetuasse reformas. Nada conseguira de Clemente ViI. Paulo
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111 (1534-1549), sucessor de Clemente, mesmo não sendo religioso de todo o coraçáo, compreendeu melhor que Clemente a gravidade da situação criada pela Reforma. De imediato fez cardeais Gaspar Contarini (1483-1542), Jacó Sadoleto (1477-
1547), Reginaldo Pole (1500-1 558) e João Pedro Caraffa (1476-1 5 59). Todos eram homens desejosos de reformas na moral, na educaçáo e na administração e que, em
1537, apresentaram ao papa longas recomendacóes para melhoramentos eclesiásticos. Paulo 111, de fato, convocou um concílio geral a se reunir crn Mântua em maio de 1537. Mas uma nova guerra (1536-1538) entre Carlos V e Francisco I da Franca impossibilitou a reuniáo do concílio. Carlos tinha colocado seu coracão no concílio e exigido dos líderes protestantes reunidos em Schmalkalden em fevereiro de 1537 que concordassem em participar. A ordem imperial os colocara em posiçáo difícil.
Há muito tempo eles falavam de um concílio geral, e já em 1518 Lutero pedira a convocaçáo de tal assembléia. Mas eles percebiam claramente que eram minoria e portanto se recusavam a participar em um concílio numa cidade italiana e sob o domínio do papa. Carlos percebeu que naquela altura era impossível um concílio. Entáo expcrimentou realizar reunióes de discussão. Tais reunióes foram realizadas em Hagenau em junho de 1540; em Worms um pouco mais tarde, no mesmo ano; e em Ratisbona (Regensburgo) em abril de 1541. Do lado protestante tomaram parte, em uma ou mais reunióes, Melanchthon, Bucer, Calvino e outros; do lado católico, Eck, Contarini e também outros. Por um momento parecia que poderia ser alcançado um acordo sobre a questão central da justificaçáo, mas a previsáo mostrou-se ilusória. As diferenças eram por demais profundas para um acordo. Ficou claro para Carlos V que o caminho para a conciliação estava bloqueado e que os protestantes náo parricipariam num concílio geral, a menos que primeiro fosse reduzida sua forca política e militar. A uniáo dos inreresses protestantes náo era menos perigosa à autoridade imperial em assuntos políticos. Ela estava rompendo a pouca unidade que ainda havia no império. Carlos, então, vagarosamente e com muita hesitacáo, foi desenvolvendo seu grande plano. Convocaria um concílio. Pela força, reduziria o poder do protestantismo de modo que os protestantes aceitariam tal concílio, como árbitro final. Daí, o concílio faria aquelas mínimas concessóes necessárias à reuniáo da cristandade e corrigiria os abusos condenados tanto por católicos como por protestantes. Para a realização desse plano, primeiro devia assegurar três coisas: se possível, dividir politicamente a liga de Schmalkalden; afastar o
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que, mesmo privada, não pode ser qualificada de secreta. Um pregador da corte realizou a cerimônia, e Melanchthon, Bucer e um representante do eleitor da Saxônia formaram entre as testemunhas. Ainda que tenham procurado guardar o caso em segredo, isso logo mostrou-se impossível. Lutero aconselhara "uma sóiida mentira", mas Filipe declarara decididamente: "Não mentirei".
O escândalo foi grande, tanto entre católicos como entre protestantes. A bigamia era proibida pela lei do império. Um príncipe bígamo perderia sua coroa. Os demais príncipes evangélicos náo defenderiam o ato de Filipe ou prometeriam proteçáo às suas conseqüências. O imperador viu nisso sua oportunidade. Em 13 de junho de
1541 conseguiu um acordo com Filipe, como preço de náo piores conseqüências, mediante o qual o landgrave nem pessoalmente nem como representante da liga de Schmalkalden faria alianças com estados estrangeiros. As esperançosas negociaçóes com a França, Inglaterra, Dinamarca e Suécia, que aumentariam em muito o poder da liga de Schmalkalden contra o imperador, riveram que ser abandonadas. Pior ainda, Filipe teve que prometer náo auxiliar o duque Guilherme de Cleves, simpacizaiite da causa evangélica, cujos direitos sobre Gelders o próprio Carlos disputava. Como o eieitor da Saxônia era cunhado de Guilherme e estava determinado a ajudá10, o resultado foi uma grave divisáo na liga. Tal divisáo revelou suas consequências desastrosas em
1543 quando o imperador derrotou Guilherme, incluiu Gelders per-
manentemente entre suas possessóes e obrigou o duque a repudiar o luteranismo. Essa derrota pôs a perder a esperançosa tentativa de garantir o arcebispado de Colônia para a causa protesrante.
A sorte também favoreceu Carlos no restante de seu programa. Em 1542 Paulo
I11 foi persuadido a convocar um concílio geral a reunir-se em Trento, cidade então pertencente ao império, mas praticamente iraliana. A guerra obrigou a um adiainento, mas em dezembro de
1545 por fim cornecararn suas sessóes. Estas teriam trans-
curso agitado e cheio de interrupções até 1563 (ver Vi:ll). Carlos conseguiu no Reichsrag de Espira em
1544, com vagas e indefinidas promessas, o apoio passivo e
mesmo alguma ativa cooperacão dos protestantes para as guerras contra a França e os turcos. A campanha contra a Franqa foi rápida. O imperador, aliado com Henrique
VI11 da Inglaterra, aproximou-se de Paris, mas, para surpresa da Europa, fez a p x ~ com o rei francês, aparenternenre sem obter qualquer vantagem de seu cerco milirar. Na realidade, porém, ele eliminara no futuro próximo a possibilidade de ajuda Francesa ao protesrantismo alemão. Os turcos, ocupados com uma guerra na Pérsia e
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HISIORIA DA IEREJA
ERISTA
enfraquecidos por disputas inrernas, fizeram trégua com o imperador em outubro de
1545. Tudo parecia ter trabalhado conjuntamente a favor de seu golpe contra o protestantismo alemão. Foi quando as perspectivas da causa protestante estavam assim se entenebrecendo que Lutero morreu durante uma visita à sua cidade natal de Eisleben, em 18 de fevereiro de 1546. Seus ÚItimos anos estiveram longe de ser felizes. Desde muito sua saúde estava abalada. As disputas entre os reformadores, para as quais contribuíra ativamente, o angustiavam. Acima de tudo, magoava-o profundamente o fracasso da pura pregaçáo da justifica~áoexclusivamente pela fé em transformar a vida social, cívica e política ao seu redor. Estava confortado pela vida feliz no lar e pela plena confiança em seu evangelho. A obra que iniciara ultrapassara a capacidade de um homem em controlá-la, por mclhor dorado que fosse. Ele não era mais necessário. Sua memória, no entanto, deverá sempre ser a de uma das figuras titânicas na história da igreja. Antes de entrar na guerra, Carlos conseguira dividir ainda mais os protestantes. A Saxônia ducal tornara-se toralmente protestante sob o duque Henrique (1539-1541), mas seu curto reinado foi sucedido por seu jovem filho Moritz (1541-1553). De grande habilidade polirica, Moritz era um tipo difícil de avaliar, porque em uma época dominada por motivos religiosos declarados, ele não se preocupava nada com as questóes religiosas envolvidas e tudo com seu próprio progresso político. Embora fosse genro de Filipe de Hesse e primo do eleitor da Saxônia, Joáo Frederico (1532-
1547), Moritz enrrara em arrito com o eleitor e não estava em boas relaçóes com Filipe. Entáo, em junho de 1546, o imperador conseguira secretamente seu apoio pela promessa de transferir para ele a dignidade eleiroral de seu primo no caso de ter êxito na guerra, e outras concessóes importantes. Assim, plenamente preparado, o imperador declarou Joáo Frederico e Filipe sob interdito por deslealdade ao império - Carlos desejava que a guerra parecesse política e náo religiosa. A liga de Schmalkalden
não havia se preparado adequadamente. A defecqão de Morirz foi um grande golpe. Ainda que no início a campanha tenha sido favorável aos proresrances, em 24 de abril de 1547 a Saxônia eleitoral foi esmagada na batalha de Mtihlberg sobre o Elba, nela sendo aprisionado Joáo Frederico. Filipe viu a causa perdida e se rendeu ao imperador. Ambos os príncipes foram encarcerados. Moritz recebeu o rítulo de deitor e a metade dos territórios de seu primo. Politicamente, o protestantismo estava esmagado. Somente algumas cidades do norte, sendo a principal Magdeburgo, e
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alguns príncipes menores também do norte ainda ofereciam resistência. Entretanto, fato curioso, o imperador que acabara de esmagar politicamente o proresrantismo, nunca estivera em piores relaçóes com o papa do que entáo. Paulo 111 ajudara-o no começo da guerra, mas se retirara, temeroso de que o vitorioso imperador se tornasse por demais forte. Carlos desejava que o concílio de Trento fosse devagar até que ele tivesse tornado os protestantes dispostos a reconhecer o concílio. Queria que o concílio fizesse pequenas concessóes, suficientes para acalmar os preconceiros protestantes. O papa, por sua vez, queria que o concílio definisse rapidamente a fé católica e se dissolvesse. Em abril de 1546 o concílio já tornara um acordo algo dificd de ser alcançado ao definir a tradição como sendo fonte de autoridade em matéria de fé. Para diminuir a influência imperial, em março de 1547 o papa declarou o concílio transferido para Bolonha. O imperador negou-se a reconhecer tal transferência e disse não estar sujeito às resoluçóes cridentinas já ~omadas. Tinha que ser encontrada alguma maneira de acordo religioso sob o qual a Alemanha pudesse viver até a reparação do cisma, que Carlos esperava que o concílio eferuasse. Portanto, o imperador nomeou uma comissão para preparar um "Ínterim". Tal documento era essencialmente romano, embora concedendo o cálice aos leigos, permitindo o casamento do clero e limitando ligeiramente os poderes do papa. Os príncipes católicos recusaram-se a aceitá-lo. O papa o denunciou. Carlos teve que abandonar a esperança de fazer dele um programa de uniáo temporária, mas conseguiu sua a d o ~ á oem 30 de junho de 1548, pelo Reichstag em Augsburgo, como aplicávet aos protestantes. Ele logo passou a fazer cumprir esse Ínterim de Augsburgo com mão de ferro. Moritz da Saxônia prestara rais serviços à causa imperial que uma modificaçáo, conhecida como Ínterim de Leipzig, foi permitida em seus territórios. Tal Ínterim afirmava a justificaçáo pela fé somente, mas restabelecia muito do governo e usos romanos. Melanchthon o aceitou com relutância, considerando suas partes romanas como "adiaphora", ou matéria não essencial. Por essa fraqueza ele foi asperamente atacado pelos desafiadores luteranos da inconquistada Magdeburgo, principalmente por Matias Flacius Illyricus (1520-1575) e Nicolau von Arnsdorf (1483-
1565). Muiro fez Flacius para manter o luteranismo popular nesses tempos sombrios, mas as amargas querelas entre os teólogos luteranos haviam c ~ m e ~ a d o . Superficialmente, parecia que Carlos estava se aproximando de seu objetivo. O papa Paulo 111 morrera em 1549 e fora sucedido por Júlio 111 (1550-1555), que se mostrava mais acessível ao imperador. O novo papa convocara o concílio para se
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HISTdRIA LIA IGREJA G R I ~ T Ã
reunir de novo em Trento, e diversos teólogos protestantes realmente compareceram perante ele, em 1552. Na realidade, porém, a Alemanha estava profundamente desgostosa, os protestantes gemiam sob o jugo imperial e os príilcipes catblicos estavam enciumados do crescente poder de Carlos e de sua aparentemente bem sucedida tentativa de garantir a sucessão imperial para seu filho, que mais tarde ficaria famoso como FiIipe I1 da Espanha. Moricz da Saxônia náo se conformava em ver que seu sogro, Filipe de Hesse, ainda conrinuasse na prisão. Além disso, percebera que já obtivera tudo o que podia esperar do imperador e que, uma vez que seus súditos eram profundamente luteranos, somente como líder luterano contra o imperador sua arnbicáo sem limites poderia alcanqar outras recompensas.
O pretexto que Moritz encontrou para levantar um exército foi lançar uma campanha, em nome do imperador, contra a desafiadora Magdeburgo. Foram feitos acordos com os príncipes luteranos do norte da Alemanha. O auxílio do rei Henrique I1 da França (1547-1559) fol assegurado pelo preço da entrega à França das cidades limítrofes alemás - Merz, Toul e Verdun. Carlos sabia do plano mas náo tomou medidas adequadas para impedi-lo. O golpe foi dado com rapidez. Henrique invadiu a Lorena e tomou as cidades cobiçadas. Moritz marchou rapidamente rumo ao sul, quase capturando o imperador, que escapou fugindo de Innsbruck. Toda a estrutura que Carlos erguera com canto trabalho ruiu como um castelo de cartas, não tanto ante a força do luceranismo, mas anre a independência territorial dos príncipes. Em 2 de agosto de 1552 o tratado de Passau terminou a breve luta. Por esse tratado, o acerto da questáo religiosa ficava para o próximo Reichstag, que só pôde se reunir rrês anos depois. As rivalidades entre os príncipes perturbavam a Alemanha. Moritz perdeu a vida em
1553 em luta contra o indisciplinado margrave
Alberto de Brandenburgo. Carlos escava consciente de que náo queria tolerar o protestantismo mas que tal tolerância era inevitável. Então, deu a seu irmáo Fernando (eIeito imperador apenas em 1580) plena autoridade para cuidar do caso. O Reichstag se reuniu em Augsburgo. Os luteranos exigiram plenos direitos e a posse de todas as propriedades eclesiásticas já secularizadas ou ainda a serem. Pediram tolerância para os Iuteranos nos territórios católicos, mas não a concederam aos carólicos em territórios luteranos. Estas exigências exí-remas naturalmente encontraram resistência. O resultado foi um acordo, a paz de Augsburgo, de 25 de setembro de 1555. Por suas disposicóes, foram dados a católicos e Iuteranos direitos iguais no império - os outros evangélicos náo foram reconhecidos. Cada príncipe leigo determinaria qual das
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.54.5
duas fés seria professada em seu território - os súditos não teriam o direito de escolha - e apenas uma fé seria permitida em cada território. Este foi o princípio normalmen-
te def nido como cuius vegio, eius religio. No que se refere às propriedades e terricórios
eclesiásticos, foi acordado que a situa~áoao Tempo do tratado de Passau, 1552, seria a norma. Todos os que estavam na posse dos luteranos ficariam com eles. Porém, a partir de entáo se um governante espiritual católico se tornasse protestante perderia sua posiçáo e propriedades. Dessa forma foi assegurada aos católicos a posse permanente dos territórios espirituais não perdidos até 1552. Esta era a "reserva eciesiástica". As pessoas insatisfeitas com a fé do território onde viviam teriam pleno direito de emigração e justa venda de seus bens - um grande avanço em relação à puniçáo por heresia, mas a opção era apenas entre carolicismo e luteranismo. Dessa forma o luteranismo alcançou pleno estabelecimento legal. A AIemanha estava dividida permanentemente. O sonho de Lutero de purificaçáo de roda a igreja alemá se desvanecera, da mesma forma que a concepção católica de unidade visí~~el. Os primeiros líderes desapareciam rapidamente. Lutero morrera nove anos anres. Melanch~honviveria até 1560. Carlos V abdicara de sua posse dos Países Baixos em
1555 e da Espanha um ano depois, e se recolhera a San Yuste na Espanha, onde morreria em 1558.
Capitulo 6
Os Países Escandinavos Dinamarca, Noruega e Suécia estiveram nominalmente reunidas sob um soberano dinamarquês desde a formaçáo da uniáo de Kalmar em 1397. A partir de 1460 Schleswig-Holstein rambém esteve debaixo do domínio dinamarquês. A coroa não era poderosa em nenhum desses países. Em todos eles os membros do alto clero eram impopulares, opressores, frequentemente nascidos no exterior e sempre em disputas com a nobreza. Em parte alguma da Europa a Reforma seria táo amplamente política. No início da Reforma o trono dinamarquês estava ocupado por Cristiano I1 (15 13-1523), déspota escIarecido e simpático ao Renascimen~o.Ele acreditava que o
p n d e mal de seu reino encontrava-se no poder nas mãos dos nobres e dos eclesiásticos. Com o objerivo de limitar o poder dos bispos mediante a introduçáo do movimento luterano, ele trouxe em 1520 um pregador luterano chamado Martinho Reinhard, o qual se mostrou ineficaz. Karlstadt serviu como conselheiro em 1521, ainda que por pouco tempo. Parcialmente inspirada por este, uma lei de 1521 proibia apelos a Roma, reformava os mosteiros, limitava a autoridade dos bispos e permitia o casamento do clero. Entretanto, sua execução foi impedida por forte oposição, e as classes privilegiadas, provocadas de muitas maneiras por Cristiano 11, reagiram depondo-o em 1523 e estabelecendo no trono a seu tio, Frederico I (15231533). Embora simpático ao luteranismo, Frederico foi forçado pejos partidos que o fizeram rei a prometer respeitar os privilégios dos nobres e a impedir qualquer pregaçáo herética. Mesmo assim, o luteranismo penetrou no país. A parrir de 1524 o luteranismo teve um propagandista acatado entre o povo, Hans Tausen (1494-1561), que fora monge e estudara em Wiccenberg. Em 1526 o rei Frederico nomeou Tausen seu capeláo. Nesse mesmo ano o rei tomou para si a confirmação das nomeações para o episcopado. Uma lei de 1527 legalizou essa iniciativa real, concedeu tolerância aos luteranos e permitiu o casamento do clero. Essas mudanças foram apoiadas por grande parte da nobreza, que o rei conquistara dando cobertura aos seus ataques aos direitos e propriedades eclesiásticos. Em 1530, o mesmo ano da Confissáo de Augsburgo, Tausen e seus cooperadores apresentaram ao l ar lamento dinamarquês os "Quarenta e três artigos de Copenhague". No ano anterior tinha sido publicada e muito bem
recebida uma tradução dinamarquesa por Cristiano Petersen, do Novo Testamento.
Na ocasiáo em que os artigos foram apresentados, nenhuma decisáo foi tomada; no entanto o luteranismo fez notáveis progressos até o falecimento de Frederico, em
1533. A morte de Frederico deixou rudo em confusáo. A maioria da nobreza apoiava o mais velho de seus dois filhos, Crisciano I11 (1536-1559), luterano confesso; enquanto que os bispos apoiavam o mais jovem, Hans. Seguiu-se um período insano de guerra civil do qual Cristiano 111 emergiu vitorioso. Os bispos foram aprisionados, sua autoridade abolida e as propriedades eclesiásticas confiscadas pela coroa. Cristiano entáo solicitou ajuda de Wittenberg. João Bugenhagen, companheiro de Lutero, chegou em 1537. Sete novos superintendentes luteranos foram nomeados pelo rei, mas conservaram o título de "bispos". Estes superintendentes foram orde-
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nados pelo próprio reformador alemão, que era ele mesmo superintendente de Wittenberg. A igreja dinamarquesa foi, assim, reorganizada conforme o sistema luterano.
A Noruega era um reino separado mas estava sujeita ao rei dinamarquês por causa dos termos da união de Kalmar. A Reforma praticamente náo chegou ao país durante o reinado de Frederico I. Nas lutas que se seguiram, o arcebispo Olaf Engelbrektsson de Trondheim, chefe do clero norueguês, liderou um partido moderador e fugiu do país quando da vitória de Cristiano 111. A Noruega foi feita província dinamarquesa, e a nova constituição religiosa luterana dinamarquesa foi introduzida nominalinente. No entanto, Cristiano 111 foi muito negfigente quanto à pregação e superintendência na Noruega. A conseqiiência foi que a Reforma, imposta de cima, demorou muito para ganhar a simpatia A mesma história se pode contar a respeito da distante possessáo dinamarquesa da Islândia. A Reforma viajou vagarosamente para lá. Em 1540 o bispo Gisser Einarsen de Skálholt, educado na Alemanha e simpático ao luteranismo, comesou uma reforma luterana conservadora. Nesse mesmo ano foi publicada uma versão islandesa do NovoTestamcnto. Em 1548 uma forte reaçáo católica, liderada pelo bispo Jon Aresen de Holum, tentou quebrar o jugo dinamarquês. Mas em 1554 a rebelião foi dominada e o luteranismo estabelecido obrigatoriamente, e por muito tempo recebeu pouca aceitaçáo popular. A reforma da Suécia esteve em grande parte vinculada à l u ~ anacional pela independência. Cristiano I1 da Dinamarca encontrara feroz resistência aos seus esforços para conquistar o trono sueco. Seu principal cooperador ali foi Gus~avoTrolle, arcebispo de Upsala. Gustavo procurou aprovacão pelo papa Leão X da excomunháo de seus oponentes, ainda que tal oposicáo fosse simplesmente política. Em 1520 Cristiano I1 tomou Estocolmo e fez acompanhar sua coroaçáo como rei da Suécia de um ato de tremenda crueldade. Reuniu os nobres, que de nada suspeitavam, para a cerimônia, s mandou matá-los como hereges excomungados. O Banho de Sangue de Estocolmo levantou a Suécia em rebelião contra Cristiano 11. O líder dessa revolta foi o vigoroso Gustavo Vasa. Em 1523 os dinamarqueses foram expulsos e Gustavo coroado rei 1523-1560). Enrremenres, a doutrina luterana estava sendo ensinada por dois irmãos que em i519 haviam retomado de um período de estudos em Wittenberg - Olaf (1493)1552) e Lars Peterson (1499-1573).Ambos trabalhavam em Strengnas, e Jogo con-
verteram o arquidiácono Lars Andersson (1482-1552). Em 1524 o rei Gustavo estava definitivamente a favor desses líderes. Andersson (Laurentius Andreae) tornou-se seu chanceler c Lars Peterson professor de teologia em Upsala. Em 27 de dezembro de 1524, em Upsala, houve um debate enrre Olaf Peterson (Olavus Petri), enráo pregador em Estocolmo, e o campeáo romano Pedro Galle. Tal debate pareceu uma vitória aos reformadores. Em 1526 OLavus Petri publicou sua traduçáo sueca do Novo Testamento (com o auxílio de seu irmão ele também traduziu o Anrigo Testamento, e toda a Bíblia em sueco foi publicada em 1541). Em parte o apoio do rei provavelmente foi devido às suas convicqóes religiosas, no entanto náo menor parte foi motivada pela extrema pobreza da coroa, que Gustavo pensava ser possível remediar unicamente por extensa confiscação dos bens da igreja.
O rei deu o
decisivo no mês de junho de 1527. Na diera de Vasteras,
ameaqando abdicar, o rei exigiu e obteve a entrega a coroa de todas as propriedades episcopais ou monásticas que o rei julgasse desnecessárias às obras propriamente religiosas. Ele obteve também a dcvoluçáo aos nobres de todas as rerras isentas de impostos que eles haviam doado a igreja desde 1454. Por fim, também exigiu a pregacão da "pura palavra dc Deus". Foram feitas provisóes para a reorganização da igreja sob a autoridade real. Embora senhor da igreja sueca e também de posse de grande parte das propriedades eclesiásticas, Gustavo empregou seu poder na religiáo com moderaqáo. Muitos dos antigos prelados abandonaram o país. O ofício episcopal foi mantido, se bem que agora os bispos eram nomeados pelo rei. Em 1528 foram consagrados novos bispos, seguindo os ritos antigos, pelas máos do bispo Pedro Magni, de Vasteras, que fora consagrado na época do catolicismo. Foi, pois, por meio dele que se considerou a sucessão aposeólica ter sido transmitida ao episcopado luterano sueco. Em 1529 o sínodo de Orebro tomou ourras medidas reformadoras. Nesse mesmo ano foi publicada uma ordem de culto sueca, e em 1531 a "Missa Sueca". Ainda nesse ano Lars Peterson foi sagrado arcebispo de Upsala, embora sem jurisdiçáo sobre os bispos seus colegas - eles permaneceram sob o poder real. Muitos do baixo ciero aceitaram a Reforma e foram man~idosem seus cargos. Porém, tais modificações introduzidas pelo poder real estavam longe de alcançar imediata aceitaqáo popular e a Suécia demorou a se tornar totalmente evarigélica. Seu tipo de luteranismo era muito conservador na dourrina e na prática. A reforma na Suécia ocasionou a da Finlândia, entáo incluída na monarq~iiasueca. A igreja sueca passaria por um período de reacáo romariizanre, especialmente no reinado do
filho de Gustavo, Joáo I11 (1568-1592), que terminaria em 1593, quando o sínodo de Upsala formalmente adorou a Confissáo de Augsburgo como o credo oficial da Suécia.
Capitulo 7
A Reforma na Suíça Fracófona e em Genebra antes de Calvino A cidade mais force no norte da S u í ~ aera Zurique, enquanto que no sul a mais poderosa era Berna. Esta vivia em consranre rivalidade com os duques de Sabóia, mormente pela posse dos territórios franctfonos nos arredores do lago de Genebra (o Pays de Vaud). A aceitaçáo do protestantismo por Berna em
7 de fevereiro de
1528, levou o governo da cidade a procurar introduzir a Reforma nos distrixos de~endentes,estimulando a pregaçáo de Guilherme Farel (1489-1 565). Farel era natural dc Gap, província francesa de Dauphiné. Quando estudava em Paris, caiu sob a influência do reformador humanista Jacques LeFèvre d'Étaples, e em 1521 estava pregando sob os auspícios do reformador moderado Guilherme Briçoilnet, bispo de Meaux. Orador de ardente veemência, intensa seníimcntalidade e voz muito forre,
de tanto pregar a Reforma logo teve de deixar a FI-ança. Em 1524 se enconrrava em Basiléia novamente pregando a Reforrns, com ral impetuosidade que rermino~iexpulso da cidade. Os meses seguintes foram um período de perambulacáo, durante o qual visitou Escrasburgo, onde conquisrou a amizade de Bucer. Em novembro de 1526 Farel iniciou seu rrabalho em Agle na Suíqa francófona, onde o governo de Berna o defendeu, ainda que esta náo estivesse totalmente comprometida com a Refor~ila.Coiii a vitória completa das novas idéias em Berna, a obra de Farel progrediu rapidarnerite. Aigle, Ollon e Rex adotaram a Reforrtia erxi .,778, destruindo imagens e pondo fim à missa. Depois de tentar em váo converter Lausana, iniciou em novembro de 1529 tempesi-uoso acaque a Neuchârel, que por F n resultou na irnplantaçáo da Reforma ali. Em 1530 coiiseguiu o mesmo ein Morat. ?iirEm, em Grandson e Orbe que, como Morat, estavam sob o governo conjunto da
protesrante Berna e da católica Friburgo, ele conseguiu apenas a tolerância para ambas as formas de culto. Em setembro de 1532 foi convidado a participar de um sínodo dos valdenses, nos altipianos dos Alpes Cocianos. Essavisita resultou na aceitação da Reforma por grande número de valdenses. Esres foram subseqüentemente atendidos por um companheiro de Farel, Pedro Olivétan (1506?-1538),cuja craduçáo francesa da Bíblia seria publicada em 1535. Em outubro de 1532 Farel fez uma tentativa fracassada de pregar a Reforma em Genebra. Em todo lugar ele enfrentava oposiçáo com indômita coragem, por vezes com risco da própria vida e até sofrendo ofensas físicas. Ninguém, no entanto, conseguia ficar indiferente a sua presença marcante. Seu principal colaborador era o gentil Pedro Viret (15 11-157 I), o futuro reformador de Lausana. Quando da chegada de Farel em 1532, Genebra estava engajada em consolidar uma revoluçáo política que ocorrera durante a década de 1520. Situada numa rota comercial principal através dos Alpes, Genebra era uma comunidade mercantil ativa, conscie~itede seus interesses e liberdades e de padróes morais mais relaxados, apesar de seus numerosos mosteiros e estabelecimentos eclesiásticos. As liberdades genebrinas se mantinham com grande dificuldade diante dos abusos do poderoso duque de Sabóia. Q ~ ~ a n ddoo início do século dezesseis, três poderes compartilhavam o governo da cidade e das aldeias adjacentes: o bispo; seu vicedominus, ou administrador ~emporal;e os cidadáos, que se reuniam anualmente em uma Assembléia Geral e elegiam quatro "síndicos" e um tesoureiro. Além da Assembléia Geral, os cidadáos eram !governados por um Pequeno Conselho de 25 membros, do qual faziam parte os "síndicos" do ano corrente e os que haviam servido como tais no ano anterior. Quesróes políticas mais amplas eram discutidas pelo Conselho dos Sessenta, nomeado peto Pequeno Conselho. Em 1527 foi criado o Conselho dos Duzentos, cujos membros incluiam o Pequeno Conselho e outros 175 eleitos por ele. Os agressivos duques de Sabóia tinham nomeado o vicedominus desde 1290 e controlado o bispado desde 1444. A luta, pois, era pela liberdade dos cidadáos concra os interesses da casa de Sabóia, representados pelo bispo e pelo vicedominus. Em 1519 um grupo de cidadáos revolucionários, conhecidos como os Eidguenotes (Ezdgenossen,"confederados"), que eram a favor de uma alianca suíça contra a casa de Sabóia, fizeram uma aliança com a católica Friburgo. Porém, o duque Carlos I11 de Sabóia prevaleceu e o patriota genebrino Filiberto Berthelier foi decapitado. Em 1525 os revolucionários retomaram seus esforços, sob a liderança de um exilado
genebrino, Besançon Hugues. Em I526 Hugues negociou uma aliança com Berna e Friburgo. A Assembléia Geral ratificou os tratados e Genebra ficou entáo em segurança no campo político suíço. Em agosto de 1527 o bispo Pedro de la Baume abandonou a cidade, a qual náo podia mais controlar, e se vinculou totalmente aos interesses da casa de Sabóia. A autoridade do vicedominus foi repudiada, e os poderes tradicionais do bispo e de seu agente foram assumidos pelo Pequeno Conselho e pelo recém-formado Conselho dos Duzentos. O duque Carlos atacou a corajosa cidade, mas Berna e Friburgo vieram em seu auxílio em outubro de 1530, e ele teve que se comprometer a respeitar a liberdade genebrina. Até entáo, havia pouca simpatia pela Reforma em Genebra, mas Berna estava ansiosa para ver a fé evangélica estabeiecida ali. Berna, na verdade, pretendia controlar o destino religioso de Genebra assim como sua revoluçáo política. A agita~áo protestante não se iniciaria na cidade senão em junho de 1532, quando foram afixados cartazes criticando as pretensóes papais e apresentando a doutrina reformada. Mas Friburgo, a outra aliada de Genebra, era firmemente católica, e o governo de Genebra repudiou quaisquer inclinaçóes para o "luteranismo". Como já foi observado, Farel e seus colaboradores, Pedro Olivétan e Ancônio Saunier, chegaram em Genebra em outubro de 1532, sob os auspícios de Berna. Contudo, náo conseguiram se estabelecer e foram obrigados a deixar a cidade. Um mês mais tarde, Farel enviou seu colega Antônio Froment (1508?-1581)à Genebra, onde este foi contratado como mestre-escola e dessa forma propagou a doutrina reformada. Froment reuniu um grande número de seguidores e em l o de janeiro de 1533 teve a ousadia de pregar publicamente. O resultado foi uma grande cornogáo popular e ele teve que abandonar a cidade. Na páscoa do ano seguinte havia protes[antes em número suficiente para se atreverem a celebrar a ceia do Senhor. Farel retornou em dezembro, e em janeiro de 1534 ele e Pedro Viret, que também fora enviado por Berna, realizaram um debate público com Guy Furbity, um frade dominicano erudito e o principal defensor local da causa romana. O debate rerminou em um g a n d e tumulto. Em março, Farel e seus seguidores, agora um grupo ~onsiderável,apoderaram-se de uma capela monástica para ser urilizada como local pregação.
O governo genebrino estava em situaçáo difícil. Friburgo, sua aliada católica, .
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rtrgia que Farel fosse silenciado. Berna, sua aliada protestante, insistia na prisáo de !-lrbity, que acusara os genebrinos de serem fantoches de Berna. A magistratura
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HISThRIA DR IGREJA CRISIA
puniu 'Furbiry e rompeu relaFóes com Friburgo. Assim, Berna restou como única aliada suíça de Genebra. Entáo o bispo exilado, agindo em acordo com o duque de Sabóia, armou tropas para atacar a cidade e sitiou-a. Esta açáo fortaleceu sobremaneira a oposição genebrina, e forneceu a Farel e Viret a oportunidade de avançarem sua causa vinculando o pro~estantismoà luta de Genebra por independência. Em l o de ourubro de 1534 o Pequeno Conselho declarou vago o bispado, ainda que Genebra esrivesse longe de ser predominantemente protestante. No início de 1535, Farel prevaleceu sobre os síndicos e conseguiu a autorizaçáo para um debate público entre os lideres protestantes e o clero católico, mas o bispo proibiu a participaçáo deste. Farel e Virer prevaleceram facilmente sobre os poucos porta-vozes romanos no debate, que cornou a maior parte de junho. Encorajado por seu sucesso, eles se apoderaram da igreja de La Madeleine em 23 de julho e em 8 de agosto da catedral de Sáo Pedro. Grupos iconoclastas pilharam as igrejas. Dois dias
mais tarde o governo da cidade suspendeu a missa. Os cônegos da catedral e a maioria dos sacerdotes, monges e freiras abandonou a cidade. Em 31 de maio de 1536 a obra foi completada por uma decisão da Assembléia Geral, expressando sua determinação de "viver nesta santa lei evangklica e palavra de Deus" e abolir "todas as missas e outras cerimônias e abusos papais, imagens e ídolos". Enrrementes, o duque de Sabóia pressionava Genebra com ferocidade. Por um tempo, Berna recusou-se a enviar auxílio, mas por fim, em janeiro de 1536, veio poderosamente em socorro de Genebra. Esta viu desaparecer o perigo de Sabóia, apenas para ser ameaçada pelo controle de Berna. Porém, a coragem de seus filhos mostrou-se a altura do desafio, e em 7 de agosto de 1536 Berna reconheceu a independência de Genebra. Agora a cidade estava iivre. Ela aceitara o protestantismo, embora mais por causas poiíticas que reIigiosas, e suas insrituiçóes religiosas tinham que ser reorganizadas. Farel sentia-se incapaz para a tarefa, e em julho de 1536 constrangeu um jovem francês seu conhecido, em trânsito na cidade, a permanecer e auxiliar na obra. Este amigo era João Calvino.
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A REFORMA
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Capítulo 8
Joáo Calvino Joáo Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, cidade na Picardia cerca de noventa quilômetros a nordeste de Paris. Seu pai, Geraldo Cauvin, alcancara por seus esforços o posto de secretário do bispado de Noyon e procurador do cabido de sua catedral. Geraldo desfrutava da amizade da poderosa família nobre dos Hangest, que fornecera, no rempo dele, dois bispos a Noyon. Joáo Caivino teve relações muito chegadas com os jovens dessa família, e através dessas relaçóes aprendeu as maneiras da sociedade polida, que poucos reformadores tiveram. Pela influência do pai, Calvino recebeu os benefícios de certos cargos eclesiásticos em Noyon e nas suas proximidades; o primeiro deles quando ainda náo tinha doze anos de idade. Nunca, porém, foi ordenado ao sacerdócio romano. Provido assim de recursos, em agosto de 1523 Calvino pode ingressar na universidade de Paris, estudando primeiramente no Collège de Ia Marche, onde por um tempo desfrutou da notável instruçáo em Iatirn dada por Maturino Cordier (1479-
1564), a quem ficou devendo as bases de seu estilo literário briihante. Ele entáo prosseguiu em seu curso de artes no semi-monástico Collhge de Montaigu, onde foi educado na filosofia aristotélrca e na lógica nominalista, possivelmente pelo teólogo escocês Joáo Major (1470-1550), e graduou-se como mestre em artes em 1528. Enquanto estudante granjeou muitas amizades sólidas, noradamente na família de Guilherme Cop, médico do rei e entusiasta adepto do humanismo. Geraldo destinara o filho à teologia e ao sacerdócio, mas em 1527 esrava com problemas com o cabido da catedral de Noyon e resolveu que seu filho estudaria direito. Conseqüentemente, Calvino entáo ingressou na universidade de Orléans, onde Pedro de i'Estoile (1480-1537) gozava grande fama de jurisra. Depois, em 1529, foi para a universidade de Bourges, a fim de ouvir André Alciati (i493-1 550). Corno seu interesse pelo humanismo era muito forte, tanto em Orléans como em Bourges ele coineçou a estudar grego, com o auxílio do erudito alemáo Melquior Wolmar (1496-15611, o qual ficou seu amigo para o resto da vida. Calvino obteve sua licenciatura em direito, mas a morte de seu pai em 1531 deixou-o livre para decidir o que queria, e ele entáo continuou seus estudos do grego e iniciou hebraico
--
no Collège de France, instituiqáo humanista f~lndadaem 1530 pelo rei Francisco I em Paris. Nessa época, Calvino trabalhou com afinco em seu primeiro livro, o Cornentdrio ao Tratado de Sêneca Sobre
d
Clemência, publicado em abril de 1532. Era
uma maravilha de erudição, e mui marcado por um profundo senso dos valores morais. Entretanto, nessa obra Calvino náo demonstrou nenhum interesse pelas questóes religiosas da época. Era simplesmente um humanista entusiasta e profundamente culto. Não foi, no enranto, por falta de oportunidade em conhecer as novas doutrinas que Calvino ainda náo fora atingido pela luta. Woimar, seu tutor, estava comprometido com a Reforma, como também estava Pedro Roberto (1506?-1538),parente de Calvino e seu colega de estudos em Orléans, conhecido como Olivétan pois, de táo estudioso, queimava o óleo até o meio da noite. O humanismo, ademais, promovera na Franga, como em toda parte, um movimento reformisra. Seu mais alto representante há muito tempo era Jacques LeFèvre d'Étaples (1460?-1536),que por alguns anos após 1507 fixara residência no mosreiro de St. Gerrnain des Prés, em Paris, e se cercara de notável grupo de discípulos. Entre estes encontravam-se Guilherme Briçonnet (1470-1534), o ativo líder do partido reformador francês e, a partir de I 5 16, bispo de Meaux; Guilherme Budé (1467-1540), que persuadiu o rei a hndar o Collège de France; Francisco Vatable (i-1547), o professor de hebraico de Calvino
nessa instituição; Geraldo Roussel (1500)-1550), amigo de Calvino e mais tarde bispo de Oléron; Luís de Berquin (1490-1529), morto na fogueira por causa de seu protestantismo; e Guilherme Farel, cuja ardente carreira como reformador já foi observada. Muitos humanistas, tais como a família de Cop, cuja amizade Calvino desfrutara em Paris, simpatizavam com estes homens - nenhum dos quais, exceto os dois últimos mencionados, rompeu com a igreja romana. Eles tinham o valioso apoio de Margarida d'Angoulême (1492-1549), a hábil e popular irrnii do rei Francisco e rainha de Navarra a partir de 1527. Ela, por fim, se tornaria protestante em segredo.
Os livros de Lutero rapidamente penetraram na França e foram lidos nesse círculo. Porém, poucos dos seus componenres sentiram a gravidade da situação ou estiveram dispostos a pagar o preço total da Reforma. Assim, no círculo erudito em que Calvino se movia náo havia ignorância de quais eram as questões principais. Elas apenas ainda náo tinham se tornado importantes para ele. Em algum momento entre a primeira parte de 1532, época da publicação do seu primeiro livro, e o início de 1534, Calvino passou por aquilo que mais tarde chama-
~ ~ s i o nvio
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ria de uma "súbita conversão". (Alguns eruditos datam essa conversá0 tão cedo quanto
1528-1530, mas nesse caso seria necessário explicar a ausência de algo distintamente protestante no comentário de Calvino sobre Sêneca). Nada se sabe ao cerco dos pormenores dessa experiência, mas em seu centro estava a convicção de que Deus, em sua providência secreta, dera uma nova direçáo à vida de Calvino e estava subjugando e tornando malcável seu coração empedernido. Desde aí a religiáo passou a ocupar o primeiro lugar em seus pensamentos. Sambem se ignora até que ponto já nesse momento ele pensava em romper com a igreja romana. Ele ainda era participante do círculo humanista em Paris, cujos líderes eram Roussel e seu amigo íntimo Nicolau Cop. Em 10 de novembro de 1533 Cop proferiu seu discurso de posse como reiror da universidade de Paris, e nele pediu reformas, usando linguagem emprestada de Erasmo e Lutero. É improvável que Calvino seja o autor desse discurso, como alguns têm defendido; mas, por certo, ele simparizava com os sentimentos ali expostos. O discurso suscitou grande comoção, e o rei Francisco se pôs a agir contra os "luteranos". Cop e Calvino tiveram de procurar refúgio e este último foi se abrigar na casa de um amigo em Angoulême, Luís du Tillet. Entáo Calvino começou a sentir, cada vez mais, a necessidade de romper com a anciga comunlláo, e isso o levou a Noyon, em
4 de maio de 1534, a fim de renunciar aos benefícios que lá detinha. Mas a França estava ficando muito perigosa para ele, especialmente depois que Antônio Marcourt afixara suas imprudentes teses contra a missa, em outubro de 1534. Assim, em janeiro de 1535 ele encontrava-se em segurança na protestante Basiléia. Os cartazes de Marcourr foram seguidos pelo recrudescimenro das perseguições, sendo uma das vítimas o amigo de Calvino, Estienne de Ia Forge, comerciante parisiense. Francisco I namorava o auxílio dos prorestantes germânicos na luta contra Carlos V e daí, para justificar a perseguiçáo na França, publicou em fevereiro de
1535 uma carta aberta acusando o protestantismo francês de objetivos anárquicos que governo algum poderia tolerar. Calvino sentiu que devia defender seus caluniados companheiros. Entáo rapidamente concluiu uma obra iniciada em Angoulême e publicou-a em março de 1536 - Instituiçáo da Religiáo
- prefaciando-a com
uma carta ao rei francês. Esta carta é uma das principais obras literárias da era da Reforma. Cortês e digna, é uma apresentaçáo tremendamente vigorosa da posição protestante e uma defesa de seus aderentes contra as calúnias do rei. Até então nenhum protestante francês falara com tanta clareza, controle e vigor. Com ela seu
autor, de vinte e seis anos de idade, passou imediatamente a ser o líder do protestantismo francês.
A Instztuiçúo,projetada como um catecismo de seis capítulos, eventualmente se desenvolveu em um volumoso tratado de oitenta capítulos na ediçáo final de Calvino, de 1559. Mas mesmo em 1536 já era a apresentaçáo popular mais ordenada e sistemática da doutrina e da vida cristá que a Reforma produziu. Pertencendo à segunda geracão de reforrnadores, Calvino náo almejava ser um pensador "criativo". Ele reconheceu rapidamente que sua obra não poderia ter sido feita sem o trabalho anterior de Lutero. Do reformador alemão ele se apropriara dos conceitos de justificação peia
fé e dos sacramentos como selos das promessas de Deus. Também extraiu muito de Bucer, principalmente as ênfases desre na glór'ia de Deus como sendo o objetivo para o qual todas as coisas são criadas, na predestinaçáo como doucrina da confiança crisrá e nas conseqüências da eleição divina como um esforço vigoroso para uma vida de conformidade com a vontade de Deus. Mas tudo está sintetizado e aclarado com uma habilidade própria de Calvino. Para Calvino, o conhecimento humano mais elevado é o de Deus e de nbs mes-
mos. Náo temos desculpas, pois a natureza nos dá conhecimento suficiente por meio do testemunho da consciência. Porém, apenas as Escrituras podem fornecer conhecimento salvifico adequado, que o testemunho do Espírito no coraçáo do leitor crente atesta como a própria voz de Deus. Estes oráculos divinos ensinam que Deus é bom e a fonte de toda bondade em codos os lugares. A obediência à vontade de Deus é o dever primeiro do ser humano. Como foi no princípio criado, o ser humano era bom e capaz de obedecer à vontade de Deus; perdeu, no enranto, tal bondade e capacidade na queda de Adão e agora é, por si mesmo, absolutamente iiicapaz de bondade. Por isso, nenhuma obra humana é meritória diante de Deus, e todos os seres humanos encontram-se em estado de ruína, merecendo táo somente condenação. Alguns, porém, mediante a obra de Cristo, sáo imerecidamente resgatados dessa condição desamparada e desesperada. Cristo pagou a pena devida pelo pecado daqueles pelos quais morreu. No entanto, o oferecimento e a recepçáo desta satisfaçáo foi um ato livre da parte de Deus, de maneira que seu motivo é o amor de Deus. Tudo o que Cristo fez é inútil até que se rorne posse pessoal do indivíduo. Essa apropriação é efetuada pelo Espírito Santo que atua quando, como e onde quer, criando arrependimento e fé - uma fé que é, como para Lutero, uma união vital entre o crente e Cristo. Essa nova vida de fé é salvaçáo, mas salvacáo para a justi~a.O fato
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de que agora os crentes realizam obras agradáveis a Deus é prova de que entraram em união viva com Cristo. "Náo somos justificados sem obras, náo obsrante, náo somos justificados pelas obras".' Assim Calvino deixa lugar para uma concepçáo das "obras" táo exigente como qualquer proposta pela igreja romana, embora muito diferente em relaçáo ao cumprimento da salvaçáo. O padráo estabelecido diante do cristão é a lei de Deus, conforme contida nas Escrituras, não como base de sua salvação mas como expressão daquela vontade de Deus que o cristão, como um indivíduo já salvo, se esforgará para cumprir. Esta ênfase na lei como o guia da vida cristã era peculiaridade de Calvino. Isso faz o calvinismo sempre insistir no caráter, ainda que na concepçáo de Calvino a pessoa é sdva para o caráter e náo pelo caráter. A vida cristá é nutrida, sobretudo, pela oração. Umavez que todo o bem provém de Deus, e os pecadores são incapazes de iniciar ou resistir a sua conversáo, conclui-se que a razáo por que alguns sáo salvos e outros
É absurdo indagar uma razáo para tal náo, é a escolha divina - eleigáo e co~idena~áo. escolha além da vontade completamente deterrninanre de Deus. Para Calvino, porém, a eleiçáo (predestinaçáo) nunca foi um tópico de especulaçáo mas sim uma doutrina de conforto crisráo. O fato de Deus ter um ~ l a n ode salvaçáo para cada pessoa, individualmente, seria uma inabalável rocha de confiança, não somente para alguém convicto de sua própria indignidade, mas ainda para alguém cercado por forças adversas, ainda que representadas por sacerdotes e reis. Isso faria do crente um cooperador de Deus no cumprimento da vontade deste mesmo Deus. Para a manutenção davida cristá, três instituicões foram divinamente estabelecidas: a igreja, os sacramentos e o governo civil. Em última análise, a igreja consiste de "todos os eleitos por Deus";' mas isso também denota adequadamente "a totalidade da humanidade. . . que rende cutto ao único Deus e C r i ~ t o "Porém, .~ náo pode haver igreja verdadeira "onde mentira e falsidade alcançaram pr~eminênciá'.~ O Novo Tesrainento reconhece como oficiais da igreja apenas pastores, mestres, presbíteros e diáconos, que assumem sulis responsabilidades com o assentimento da congregaçáo a quaI servem. Sua "vocaqáo" é dupla: a secreta disposiçáo efetuada por Deus e a
i>utitlii@~, 3.16.1 (cdiçáo de 1559). (Cf. J.T. McNeill, scl., e E I,. Butrlcs, tr. Calvin: institutes ofthc C-hristian Religion, 2 vois. [Philadelphia, 1 9601.) .:5id., 4.1.2. :bid., 4.1.7. :31d., 4.2.1.
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HISTÓRIA DA IGREJA CRISTL
"aprovacão do povo". Assim Calvino dava voz à congregação na escolha de seus dirigentes, ainda que as circunstâncias em Genebra o levariam a considerar que ali essa voz fosse a do governo da cidade. Semelhan~emente,Cdvino reivindicava para a igreja jurisdição total e independente em assuntos de discipli~iaaté ao ponto da excornunháo. Ela náo poderia ir além; mas isso era a retenção de uma liberdade que todos os demais líderes da Reforma haviam entregue à supervisáo do estado. Entretanto, o governo civil rinha a incumbência divinamente outorgada de cuidar da igreja, ~ r o t e ~ e n d o -de a falsa doutrina e punindo os ofensores para cujos crimes a excomunháo era insuficiente. Calvino reconhecia apenas dois sacramentos - batismo e ceia do Senho~.Com referência à candente questão da presença de Cristo, ele se coloca~~a, como Bucer, entre Lutero e Luínglio, mais perto do reformador suíço na forma e do alemão no espírito. Como Zuínglio, negava qualquer presença física de Cristo; no entanto, afirmava em termos mui claros uma presença real, ainda que esp~ritual,recebida pela
fé. "Crisro, a partir da substância de sua carne, infunde vida em nossas almas, de fato, difunde sua própria vida em nós, ainda que a carne real de Crisro não ingresse em nós".j Quando da publicação da Instituiqáo,no início de 1536, Calvino visitou rapidamente a corte de Ferrara, na Itália, certamente procurando proclamar a causa evangélica perante sua compatriota de mente liberal e hospitaleira, a duquesa Renata. Sua permanência ali foi breve, seguida de rápida visita a França para acertar seus assuntos financeiros e depois continuar para Estrasburgo com seu irmáo e sua irmá. Os perigos da guerra levaram-no a se desviar para Genebra, em julho de 1536, e ali o ardente apelo de Farel, como já vimos (ver VI:7), persuadiu-o a ficar.
A obra de Calvino em Genebra começou de forma bem modesta, como preletor da BíbIia, e apenas um ano depois é que foi nomeado pregador. No entanto, exercia !grande influência sobre Farel. Seu primeiro trabalho ein conjunto foi auxiliar os ministros e as autoridades civis de Berna a es~abeleceremde forma efetiva a Reforma por todo Vaud e em Lausana, que acabavam de cair sob o controle de Berna. Em Lausana, Pedro Viret foi nomeado pastor, cargo que desempenharia até 1559. Calvino manteria amizade íntima com ele. Cdvino e Farel então procuraram alcançar três alvos na própria Genebra. Em janeiro de 1537 apresentaram ao Pequeno Conselho
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uma série de recomendações da autoria de Calvino. Nelas era proposta a celebraçáo mensal da ceia do Senhor. Para um preparo melhor, o governo da cidade nomearia "certas pessoas de boa conduta" para cada parte da cidade. Elas, juntamente com os ministros, informariam à igreja quais os indignos que deviam ser disciplinados até ao ponto da excomunháo. Foi esta a primeira tentativa de Calvino de fazer de Genebra uma comunidade modelo e, ao mesmo tempo, de afirmar a independência da igreja em sua própria esfera. A segunda tentativa foi a adoçáo de um catecismo composto por Calvino. A terceira, a imposiçáo de um credo, possivelmente de autoria de Farel, a todo cidadão. O Pequeno Conselho adotou essas recomendações, mas com modificaçóes consideráveis.
O êxiro da obra de Calvino foi logo ameaçado. Ele e Farei foram injustamente acusados de arianismo por Pedro Caroli, entáo ministro em Lausana. Eles defenderam sua ortodoxia, mas antes foi dada grande publicidade ao assunto. A nova disciplina e a exigência de aceitação individual do novo credo logo suscitaram acerba oposiçáo em Genebra. Tal oposiçáo foi forte o suficiente para alcancar uma decisáo do Conselho dos Duzentos, em janeiro de 1538, pela qual a ceia não seria recusada a ninguém. Esta decisáo arruinava o sistema disciplinar de Calvino. No mês seguinte a oposi~ãotriunfou nas eleições na cidade e resolveu encerrar a questáo. A liturgia de Berna era algo diferente daquela entáo em uso em Genebra. Há muito Berna queria que sua liturgia fosse adotada em Genebra, e a oposiçáo conseguiu pelo voto tal adoçáo. Calvino e Farel consideravam de pouca importância a diferença entre as liturgias de Berna e Genebra, mas Ihes pareceu uma violação da liberdade da igreja a imposiçáo pela autoridade civil da iiturgia de Berna, sem que fossem ouvidos os ministros. Ambos recusaram-se a ceder e foram entáo banidos, em 23 de abril de
1538. Sua obra em Genebra parecia haver terminado em fracasso total. Após vá tentativa de serem restaurados em Genebra pela intervencáo das autoridades da Suíça protestante, Farel encontrou um pastorado em Neuchâtel, onde desde encáo fixou residência, e Calvino, a convite de Bucer, foi se refugiar em Estrasburgo. Sob muitos aspectos, os três anos que ali viveu foram os mais felizes de sua vida. Ali pastoreou uma igreja de refugiados franceses e foi preletor de teologia. A cidade lhe concedeu honrarias e o fez um de seus representantes nos debates que Carlos V promoveu entre protestantes e católicos. Com isso Calvino ganhou a amizade de Melanchthon e de outros reformadores alemáes. Em 1540 casou-se com Idelete de Bure, que seria sua fiel companheira até 1549, quando ela morreu. Também enquan-
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HISTORIA DA IGREJA ERISTA
to em Estrasburgo, ele encontrou tempo para escrever náo apenas uma ediGáoampliada da lmtituiçúo, mas também seu Cornenthl-to Sobre Romanos, que foi o início de uma série que o colocou na primeira fila dos exegetas reformadores, e sua brilhante
Réplica a Sadoleto, uma defesa magistral dos princípios protestantes. Entrementes, ocorreu uma revoluçáo em Genebra mas Calvino náo teve qualquer responsabilidade nela. O partido que conseguira a expulsão de Calvino fez em
1539 um tratado desastroso com Berna, que causou sua derrota no ano seguinte e a condenação dos negociadores do tratado como traidores. O partido favorávei a Calvino estava de novo no poder, e seus líderes desejavam seu retorno. Ele foi persuadido, embora com dificuldade, e em 13 de setembro de 1541 estava novamente em Genebra, praticamente senhor da situaçáo. Calvino conseguiu prontamente a adoçáo de sua nova consrituiçáo para a igreja genebrina, as Ordenanças Ec~esiásticas,agora muito mais precisas que as recomendações aceitas em 1537. Mas apesar de seu retorno triunfal, não alcançou a aceitação total das Ordenanças, como era seu desejo. Elas declaravam que Cristo instituíra em sua igreja quatro ofícios - pastor, mestre, presbírero e diácono - e definiam os deveres
de cada ofício. O s pastores deveriam se reunir semanalmente para debates públicos, exame dos candidatos ao ministério e exegese; tais reunióes ficaram popularmente conhecidas como a Congregação (Congrégatz'oion).Os mestres, ou doutores, seriam responsáveis pela instruçáo dos fiéis na doutrina verdadeira e comporiam o quadro
de professores do sistema escolar de Genebra, o qual Calvino considerava essencial para a educaçáo religiosa da cidade. Aos diáconos eram atribuídos o cuidado dos pobres e a supervisáo do hospital. Os presbíteros eram o coraçáo do sistema de Calvino. Eram doze leigos, escolhidos pelo Pequeno Conselho, dois dentre seus próprios componentes, quatro dentre os Sessenta e seis dentre os Duzentos, e sob a presidência de um dos síndicos. Eles, juntamente com os ministros (que em 1542 eram apenas nove), formavam o Consistório (Consistoire),que deveria reunir-se toda quinta-feira e era o encarregado da disciplina eclesiásrica. Eles poderiam, se necessário, excomungar os que não se arrependessem; se a ofensa exigisse pena maior, deveriam remeter o caso as autoridades civis. Para Caivino, nenhum direito parecia ráo vital a independência da igreja como esse da excomunháo, e por nenhum lutou ranto, até seu estabelecimento final em 1555. Além dessas Ordenanças, Calvino preparou um novo catecismo muito mais eficiente e introduziu uma liturgia baseada naquela de sua congregaçáo francesa em
Estrasburgo, a qual, por sua vez, era na essência uma traducáo da liturgia em uso geral naquela cidade alemã. Ao formulá-la para Genebra, Calvino fez grandes modificaçóes para adaptá-la aos costumes ou preconceitos da cidade. Esta liturgia combinava de modo apropriado orações fixas e oraçóes espontâneas. (Calvino ' náo era contrário às oraçóes fixas escritas, como mais tarde passaram a ser seus descendentes espirituais na Inglaterra e na América). A lirurgia também proporcionava lugar central ao canto congregacional. O próprio Caivino preferia uma celebraçáo semanal da ceia do Senhor, e as Ordenanças propunham uma celebra~áono mínimo mensal, mas o conselho estabeleceu o número de quatro por ano. Sob a direçáo de Calvino - ele náo tinha nenhum outro cargo senão o de ser um dos ministros da cidade, cujo número havia aumentado para dezenove em 1564 muito foi feito pela educaçáo e incremento do comércio, mas toda a vida genebrina estava sob a supervisáo consranre e minuciosa do Consistório. Calvino queria fazer de Genebra o modelo de uma comunidade cristá perfeita. Sua postura evangélica rigorosa atraiu grande número de refugiados, muitos deles pessoas de posiçáo, culcas e ricas, principalmente da França mas também da Itália, Países Baixos, Escócia e Inglaterra. Elas logo se tornaram em fator muito importante na vida genebrina. O próprio Calvino, e todos os seus ministros associados, eram estrangeiros. Praticamente desde o início houve oposicáo ao seu governo e por voira de 1548 se tornara mui séria. Era constituída por dois elementos: os que se aborreciam com qualquer tipo de disciplina; e, muito maior, os descendentes das antigas famílias genebrinas que consideravam que Calvino, seus ministros cooperadores e os refugiados eram estrangeiros que estavam impondo um jugo estranho sobre uma cidade de heróicas tradiçóes de independência. Este último partido, conhecido como os Libertinos, estava sob a lideraqa do síndico Arni Perrin, que fora um dos mais vigorosos defensores de Calvino.
O período de luta mais áspera foi de 1548 a 1555 - do momento em que alguns dos habitantes mais antigos começaram a remer que fossem politicamenre desbancados pelos refugiados, até que estes, dos quais praticamente todos eram ardorosos defensores de Calvino, alcançaram o que se temia: colocaram Calvino numa posiçáo inabalável. Embora sua fama aumentasse constantemente fora de Genebra, duranre todo esse período Calvino permaneceu em grave risco, o de,ter sua obra destruída na própria cidade. Muitos foram os conflitos, mas dois se salientaram. O primeiro foi o criado por
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RISTÕRIA DR IGREJA CAISIii
Jerônimo Bolsec (?-1584), ex-monge carmelita em Paris, na ocasião médico protestante em Veigy, perto de Genebra. Bolsec acusou Calvino de erro, em uma reunião da Congregaçáo, ao afirmar a predestinaçáo, ou seja, que sua doutrina na realidade tornava Deus a causa de pecado. Isso era um ataque ao cerne da base da autoridade de Calvino, pois sua segurança em Genebra apoiava-se unicamente no fato de que todos o consideravam um intérprete fiel das Escrituras. Em outubro de 1551 Calvino levou a acusaçáo de Bolsec ao governo da cidade. O resultado foi o julgamento de Bolsec. Foram pedidas as opiniões de outros governos suí~os,e ficou evidente que eles não davam tanta importância quanto Calvino à predestinaçáo. Foi com dificuldade que ele conseguiu o banirnenro de Bolsec, e o episódio levou-o a uma insistência ainda maior sobre a importância vital da predestinaçáo como verdade cristã. Quanto a Bolsec, terminou retornando à comunháo romana e vingou-se de Calvino escrevendo uma biografia grosseiramente caluniosa. Com dificuldade, pois, Calvino mantinha sua autoridade quando, em fevereiro de 1553, as eleiçóes, que por alguns anos tinham sido muito equilibradas, penderam decididamente em favor de seus oponentes. Sua queda parecia inevitável, mas foi salvo e posto no caminho da vitória definitiva devido a seu confronto em Genebra com Miguel Servetus ( I 5 11-1553), cujo caso forma o segundo daqueles aqui mencionados. Servetus era espanhol, quase da mesma idade que Calvino, e homem sem dúvida de grande gênio, ainda que excêntrico. Em 153 1 publicara seu De Trinitatis
Emribus (Sobre os Erros da Trindade). Forçado a esconder sua identidade, estudou medicina em Paris sob o nome de Villeneuve e é considerado como tendo antecipado a descoberta da circulaçáo sanguínea por William Harvey. Estabeleceu-se em Vienne, na França, onde medicou muito, vindo a ser o médico pessoal do arcebispo, mas também trabalhou secretamente em seu CbristianismiRestitutio (Restituição do Cristianismo), que publicou no comeGo de 1553. Segundo sua opiniáo, a doutrina nicena da Trindade, a cristologia de Calcedônia e o batismo infantil eram as principais causas da corrupçáo da igreja. Já em 1545 comecara irritante correspondência com Calvino, cuja Instituicão criticava com desprezo.
A identidade e autoria de Servetus foram reveladas às autoridades eclesiásticas romanas de Lyon por Guilherme de Trie, amigo de Calvino. E o mesmo Trie, pouco depois, forneceu outras provas obtidas com o próprio Calvino. Servetus foi condenado à morte na fogueira, mas antes do cumprimento da senrenqa escapou da prisáo, em Vienne. Por motivos inexplicáveis dirigiu-se a Genebra, onde foi preso em agosto
de 1553. Sua condenaçáo entáo tornou-se um teste de força entre Calvino e a oposição. Esta não ousou sair abertamente em defesa de um herege tão notório, mas opôs a Cahino o máximo de dificuldades que pôde. Já Servetus, como tinha muita esperança em um resultado favorável, exigiu que Cdvino fosse exilado. Exigiu, também, que os bens de Calvino lhe fossem adjudicados. O processo terminou com a condenaçáo de Servetus à morte na fogueira em 27 de outubro de 1553. Ainda que se tenham erguido poucas vozes de protesto, principalmente a de Sebastião Castellio (1515-1563), de Basiléia, muita gente concordou com Melanchthon, que isso fora "feito corretamente". Por mais odioso que o processo e seu trágico fim possam parecer aos observadores posteriores, para Calvino foi uma grande vitória. O evento livrou as igrejas suíças de qualquer imputaçáo de fdta de ortodoxia com referência à doutrina da Trindade, ao passo que os oponentes de Calvino arruinaram-se por terem dificultado a puniçáo de alguém a quem o sentimento geral da época condenava.
A situação melhorada de Calvino logo se tornou evidente. As eleições de 1554 lhe foram francamente favoráveis e as do ano seguinte ainda mais. Em janeiro de 1555 obteve o reconhecimento permanente d o direito d o Consistório proceder à excomunháo sem a interferência governamental. Nesse mesmo ano o governo, agora de ampla maioria calvinista, esforçou-se em fortalecer sua posiçáo mediante a concessáo do direito ao voco a um número considerável de refugiados. Uma pequena revolta à tarde de 16 de maio de 1555, promovida pelos adversários de Calvino, foi usada como motivo para executar e banir seus líderes como traidores. Daí em diante o partido favorável ao reformador passou a ser senhor único de Genebra. Berna era ainda hostil, mas eni 1557 Emanuel Filiberto, duque de Sabóia e vitorioso sobre os franceses em Sr.-Quentin, a favor da Espanha, achou-se capaz de reivindicar para si o ducado, cuja maior parte estava entáo em mãos francesas. Esse perigo comum tanto a Berna como a Genebra suscitou uma "alia~içaperpétua" entre as duas cidades em janeiro de 1558, na qual pela primeira vez Genebra estava em pé de igualdade
com sua antiga aliada. Assim, livre dos mais angustiantes perigos, na cidade e no exterior, Calvino coroou sua obra em Genebra com a fundaçáo em 1559 da "Academia Genebrina" - na verdade, a universidade de Genebra, como desde há muito se tornara. Ela imediatamente tornou-se no maior centro de erisino teológico das comunhóes reformadas, afora a luterana, e o grande seminário de onde centenas de ministros foram enviados náo somente para a França, mas também para os Países
Baixos, Inglaterra, Escócia, Alemanha e Itália.
A influência de Calvino se espraiou para muito além de Genebra. Gracas à sua Instituição,seu modelo de governo eclesiástico em Genebra, sua academia, seus co-
rnencários e sua constante correspondência, ele moldou o pensamento e iiispirou os ideais do protestantismo da França, dos Países Baixos, da Escócia e dos puritanos ingleses. Sua influência penetrou na Poiônia e na Hungria, e antes de sua morte o calviliismo já estava se enraizando no sudoeste da Alemanha. Seu sistema preparava pessoas fortes, certos de que foram eleitos para ser colaboradores de Deus na execuçáo da sua vontade, corajosos na luta, exigentes quanto ao caráter, confiantes de que Deus dera nas Escrituras a norma de toda conduta humana correta e culto apropriado. Os discípulos espirituais de Calvino, nas mais diversas terras, possuíam uma marca comum. Essa foi a obra de Calvino, o domínio da mente sobre a mente, e certamente, ao rempo de sua morte em Genebra, em 27 de maio de 1564, ele merecia a qualificação de "único reformador internacional". Calvino não deixou sucessor de igual estatura. A obra crescera demasiadamente de forma que uma só pessoa não poderia mais dirigi-la. Mas em Genebra, e em certa medida em suas atividades além dos limites de Genebra, seu manto caiu sobre os dignos ombros de Teodoro Beza (1 5 19-1605), homem de espírito mais conciliador e maneiras mais gentis, mas dedicado aos mesmos ideais.
Capítulo 9
A Reforma Inglesa A história da Reforma na Inglaterra é a história da protestantizaçáo gradual da população e da igreja inglesa, um processo que se estendeu pelos reinados de Henrique
VI11 (1509-1547) e seus três filhos e sucessores, Eduardo VI (1547-1553), Maria (1553-1558) e Isabel I (1558-1603). A ocasiáo imediata, embora náo a causa suficiente, da Reforma inglesa for a "grande questão" do divórcio entre Henrique e Catarina de Aragáo, que por fim levou à separação da nação da obediência romana e à drástica diminuição da riqueza e privilégios da igreja. Nesse aspecto, a Reforma foi em gran-
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de parce uma açáo do estado, imposta de cima por um soberano obstinado, seus hábeis ministros e um parlamento complacente. Ao mesmo tempo, essa rebeliáo política foi encorajada e eventualmente transformada por um movimento autóctone de reforma eclesiástica e dissensão religiosa popular que antecedeu aos planos e problemas matrimoniais do rei. Quando Henrique VI11 iniciou seu reinado, a igreja na Inglaterra estava assolada por muitas fraquezas evidentes, tanto em suas estruturas como em seus quadros. Os prelados eram, no geral, servos reais, nomeados por sua dedicacão c presteza a coroa e porque os emoiumenros dos altos cargos eclesiásticos tornavam suas nomeações praticamente sem custo para o erário real. Por sua formação, eles eram mais juristas civis do que teólogos, uma circunstância que ajuda a explicar sua virtual unanimidade ao lado de Henrique quando este rompeu com o papado. O "carreirismo" dos bispos e do alto clero - sua busca por ascensáo e enriquecimento mediante patrocínio real e serviço civil
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naturalmente abrigou os abusos do pluralismo, absenteísmo e
simonia, e, perigo ainda maior, deixou as paróquias nas mãos de párocos com formaqáo deficiente e normalmente sem recursos. Enquanto o clero paroquial estava assim
mal equipado para executar suas funcóes pastorais vicais de ensino e pregação, o clero monástico, com algumas exceçóes notáveis, havia abandonado a observância estrita de suas regras e já não era mais modelo exemplar para a espiritualidade leiga.
Os primeiros anos do reinado de Henrique assistiram a um reavivamento dos lolardos (ver V: 13), que permitiu que poderosas correntes de anticlericalismo oriundas do exterior se instalassem no país e fossem agucadas ainda mais. Os leigos se ressentiam profundamente das pesadas taxas financeiras impostas pela igreja e sua jurisdição coercitiva tanto sobre as propriedades como sobre as almas deles. Assim o neololardismo e o anticlericalismo serviram como tra~npoiirnpara o protestantismo, da mesma forma que o humanisnio inglês, com sua insistente demanda por reforma eclesiástica e sua crítica bibliocêntrica dos abusos. O humanismo chegara na Inglaterra no final do século quinze e encontrara defensores influentes entre alguns do alto clero e nos círculos aristocráticos e da corte. Joáo CoIeto (14671-1519), que em
1504 tornara-se deão da catedral de Sáo Paulo em Londres, já em 1496 proferira conferências em Oxford sobre as epístolas paulinas em tom plenamente hurnanisra, e em 1508 fundara novamente a Escola de Sáo Paulo. Em 1512 ele pregou um famoso sermão na Convocação do Clero, no qual censurou "o modo de viver mundano e secular dos sacristãos e sacerdotes" e estabeleceu um programa de reforma. O
próprio renomado Erasmo ensinara em Cambridge durante os anos de 15 1 1 e 1514, tendo primeiro visitado a Inglaterra em 1499 e novamente em 1506 e feito muitos amigos ali, incluindo Joáo Fisher (1459?-1535),bispo de Rochester, e o famoso Sir Tomás More (1478-1535). Mas as amplas esperanças por uma reforma eclesiástica e civil "erasmiana" gradual logo se despeda~aram,por causa da infiltraçáo na Inglaterra dos escritos revolucio~iáriosde Lutero. Estes já estavam circulando em 15 19-1520 e começaram a influenciar alguns dos jovens professores da universidade, e também aos mercadores em Londres e em outros portos que mantinham comércio com o norte da Alemanha. Iniciando-se por volta de 1520, um grupo de professores de Cambridge reuniam-se naTaverna Cavalo Branco, apelidada de "Pequena Alemanha", para debater as novas doutrinas. Entre os interessados na discussão residentes em Cambridge no início da década de 1520 estavam os líderes da primeira geraqáo de protestantes ingleses: Roberto Barnes (1495-1540), Tomás Bilney (1 495?-1531), Hugo Latimer (1485?-1555),Joáo Frirh (15032-1533), Miles Coverdale (1488-1568), Tomás Cranmer (1489-1556), Nicolau Rrdley (1500?-1555), Mateus Parker (1504-1575) e calvez rambém Guilherme Tyndale (1495?-1536) - cinco dos quais se tornariam bispos e todos com exceção de Coverdale e Parker seriam martirizados por sua fé. Tyndale, que morreu marririzado em Vilvorde, perto de Bruxelas, foi o mais notável desses primeiros protestantes. Por volta de 1522, tendo resolvido traduzir o Novo Tesr~mentopara a língua inglesa mas não encontrando apoio de Cuthbert Tunstall, bispo de Londres, para tal projeto, foi para o continente. Lá visitou Lutero em 1524, e no ano seguinte publicou em Colônia e Worms uma esplêndida traduçáo baseada no texto grego de Erasmo e também bastante dependente da Bíblia alemã de Lutero. Em 1526, cópias dessa sua tradução estavam chegando na Inglaterra, onde as autoridades tentaram em váo impedir. Ela recebeu recepçáo especialmente cordial
em Londres, enrre os mercadores e entre os numerosos grupos de lolardos que da mesma forma defendiam uma estrita "religião da Bíblia". A confluência do "antigo lolardisrno" com o "novo luteranismo" virtualmente garantiu a hostilidade dos líderes da igreja inglesa ao ensino de Lutero e às bíblias no vernáculo. Fisher e More, os
mais proeminentes erasmianos do reino, logo rornaram-se os mais salientes antiiuteranos do país. Porém, como veremos, por toda a década de 1530 o próprio arcebispo de Cantuária e principal ministro de estado do rei Henrique acalentou forres simpatias pelo luteranismo e pelo protestantismo continental e assumiu a lidetanga
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na execuçáo de uma prote~tantiza~áo moderada da igreja inglesa, apesar do crescente conservadorismo do rei e suas políticas reacionárias. Henrique VI11 era um homem de notáveis qualidades intelectuais e força de realização, lia bastante e era muito interessado na teologia escolásrica, simpatizante do humanismo e popular entre o povo. Porém, era egoísta, obstinado e dado a espasmódicos atos de terror. Na primeira parte de seu reinado contou com o auxílio de um excelente diplomata, Tomás Wolsey (1474?-1530),que em 1509 Tornara-se seu conselheiro
articular. Em 1514 Wolsey foi alçado a arcebispo de York, e em 1515 foi
nomeado chanceler pelo rei e cardeal pelo papa Leáo X. Em 1518 o papa rambém o nomeou representante ou enviado especial da Santa Sé. Assim, Woisey exercia grande poder canto na igreja como no estado, ao preço, enrretanto, de vincular ainda mais intimamente ao papado sua própria sorce e a da Inglarerra. Henrique, por sua vez, era um dedicado filho da Santa
Sé. Quando os escritos de Lutero começaram a
circular na Inglaterra, seu uso foi proibido, e Henrique publicou sua Mrmaçáo dos Sete Sacramentos contra Lutero em 1521. Com isso recebeu de Leáo X o título de "Defensor da Fé". Henrique casara-se em 1509 com Catarina de Aragáo, filha de Fernando e Isabel de Espanha, e viúva, embora o casamento houvesse sido apenas nominal, de Artur, seu irmáo mais velho. A dispensa autorizando esse casamento com a esposa d o irmáo falecido fora concedida por Júlio 11 em 1503. Henrique e Catarina tiveram seis filhos, mas apenas Maria sobreviveu. Por volta de 1527, se náo antes, Henrique passou a expressar escrúpulos religiosos sobre a vaiidade de seu matrimônio, dizendo que a Escritura (Lev. 20:21) proibia expressamente o casamento com a viúva de um irrnáo. Em todo caso, os motivos de Henrique não eram meramente sensuais. Se fossem, ele poderia muito bem ter se contentado com suas amantes. Entretanto, a guerra das Rosas havia acabado há pouco, em 1485, e a falta de um herdeiro homem, legítimo, caso Henrique morresse, provavelmente reacenderia a guerra civil. Uma vez que náo sra provável que Catarina tivesse mais filhos, Henrique queria outra esposa. Wolsey apoiou a pretensão d o rei em se divorciar pois esperava que Henrique se casasse com uma princesa francesa e assim se deslocasse mais firmemente do lado espanhol para o francês na política continenral. Henrique, entretanto, rinha outros planos. Desde 1525 ele estava cada vez mais completamente apaixonado por Ana Bolena, dama de sua corte e irmã de Maria Bolena, sua amante. Seguiu-se uma ~omplicadanegociaçáo na qual Wolsey esforqava-se ao máximo utilizando seus po-
deres de representante papal para conseguir o divórcio do rei, enquanro Catarina comportava-se com firmeza e dignidade, embora fosse tratada com crueldade. A anulação do casamento provavelmente teria sido conseguida com o papa Clernen~e
VI1 (1523-1534), não fora o curso da política européia, que deixou o imperador Carlos V vitorioso na guerra e submeteu o papa à política imperial (ver VI:2). Carlos estava determinado a náo deixar que Catarina, sua tia, fosse repudiada. Henrique, furioso com o fracasso de Wolsey no controle da jurisdiçáo papal, despediu-o do cargo de chanceler em meados de 1529. O grande cardeal morreu em 29 de novembro de 1530, no caminho para Londres para ser processado por traiçáo. Wolsey fora sucedido como chanceler por Tomás More em outubro de 1529, o qual imediatamente Iançou uma campanha de perseguicáo contra os suspeitos de heresia, conduzindo à fogueira, entre outros, Tomás Bilney e João Frith - os primeiros mártires protesrantes na Inglaterra. E n d o Henriqiie, ainda impedido de obter seu divórcio, gostou da sugestáo de Tomás Cranmer, na época ensinando em Cambridge e nesse período fortemente inclinado ao protestantismo, que fossem ouvidas as opiniões das universidades européias. Isso foi feito em 1530, com sucesso apenas parcial; mesmo a antipapal Wittenberg defendeu a legitimidade do matrimônio do rei com Catarina. Não obstante, havia começado uma amizade duradoura entre o rei e Cranrner que teria tremendas consequências. Agora estava fora de questão uma açáo favorável do papa. Entáo Henrique resolveu apoiar-se no sentimento nacional de hostilidade ao poder estrangeiro e na sua de ameaqas, ou para romper com o papado totalmente ou então para ameaçar o controle papal de forma a aicançar seus desejos. Em janeiro de 1531 acusou a
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totalidade do clero de violação do velho estatuto de Praemunire (1353), por terem
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reconhecido a autoridade de Wolsey como representante papal - autoridade que o próprio Henrique reconhecera e aprovara. Ele náo apenas extorquiu grande soma como preço
elo ~ e r d á omas , ainda obteve a declaraçáo das convocaçóes (dos cleros
de York e Cantuária) na qual o clero reconhecia que eIe era "o único protetor e líder supremo da igreja e do clero da Inglaterra". Foi adicionada a essa declaração, por insistência do clero, a frase qualificadora "até onde a lei de Cristo permite", Entáo, em 15 de maio de 1532, em seguida a uma solicicaçáo da Casa dos Comuns ao rei ~ e d i n d oo controle rcal da totalidade da legislaçáo eclesiástica, as convocaçóes co~icordaram relutantemente, na assim chamada Submissáo do Clero, a não fazerem
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nenhuma nova lei eclesiástica sem a permissão do rei e remeterem todos os estatutos existentes para revisão por uma comissão de clérigos e leigos aprovada pelo rei. No dia seguinte, Tomás Mote renunciou ao seu cargo de chanceler. Mais para o fim de
1532, o parlamento sancionou uma lei proibindo o pagamento de todas as anaras a Roma, exceto com o consentimenro do rei. Em janeiro de 2533 Henrique casou-se secretamente com Ana Bolena, que sabia estar @vida. Em mar50 seguinte o
arl lamento aprovou uma decisão legislativa crucial,
a Lei de Restriçáo de Apelos, que proibia qualquer apelo a Roma tanto em questóes espirituais como temporais. Tal lei virtualmente abolia a autoridade papal na Inglaterra. Entrementes, Henrique utilizara a proibiçáo condicional das anatas para obter do papa CIemente VI1 a confirmaçáo de sua indicará0 de Tomás Cranmer como arcebispo de Cantuária. Cranmer foi consagrado em 30 de março de 1533; em 23 de maio este reuniu urn tribunal e formalmente declarou inválido o casamento de Henrique com Catarina e em 28 de maio declarou o casamento com Ana Bolena
totalmente legal. A nova rainha foi coroada em primeiro de junho e em 7 de seteinbro teve uma filha, a princesa Isabel. Enquanro transcorriam esses eventos, em I 1 de julho de 1533 Clemente VI1 preparou uma bula ameaqando Henrique de excomunháo. A resposta do rei foi uma série de leis promulgadas pelo parlamento em 1534, pelas quais foram proibidos quaisquer pagamentos ao papa e anulados todos os juramentos de obediência ao papa, licenças romanas e oucros reconhecimentos da autoridade papal. Ademais, rodos os bispos seriam eleitos por nomeaçáo do rei. Em maio de 1534 as convoca~ G e sformalmente repudiaram a supremacia papal. Em 3 de novembro de 1534 o
parlamento aprovou a famosa Lei da Supremacia, pela qual Henrique e seus sucessores eram declarados "a única cabeça suprema [na terra] da Igreja da Ing1acerrau,sem cIaúsulas restritivas, e com pleno poder de reprimir "heresias" e "abusos".~Esta ieí não concedia direitos espirituais como a ordena~áoe a adminisrra~áode sacramentos, mas no resrante ela praricamente colocava o rei no lugar do papa. O rornpirnento com Roma foi completo. Estas leis náo ficaram de forma alguma apenas no papel.
Em maio de 1535, alguns monges de uma das mais acaradas ordens na Xnglacerra - os cartuxos - foram executados de modo bárbaro por negarem a supremacia do rei. Em 'anho e julho, o bispo Jaáo Fisher e o ex-chanceler Sir Tomas More foram decapita3 B ~ r c n s o nrd., , Documentos da ifleja Cristi?,3" ed. (Sáo Paulo, 179X), p. 332
dos pela mesma ofensa. Porém, entre o alto clero, apenas Fisher aceitou o martírio; o restante surpreendentemente seguiu complacentemente ao rei.
O gênio por trás da legislação mais crucial promulgada pelo assim chamado Parlamento Reformador de 1529-1536 foi Tomás Cromwell (1485?-1540),um homem de origem humilde, por vezes soldado, banqueiro e mercador, a quem Wolsey havia utilizado como agente comercial e parlamentar. Em 1531 Cromwell era membro do conselho privado, em 1534 tornou-se o principal secretário do rei e em 1535 o rei o nomeou vice-regente e vigário geral para negócios eclesiásticos. As idéias de Cromwell sobre a igreja e o estado deviam muito à obra Defensor pacis, de MarsíIio de Pádua (ver V:I2). Ele também tinha genuína inclinaçáo reiigiosa para o luteranismo e demonstrava zelo especid pela tradução da Escritura no vernáculo. Ele náo foi de forma alguma um "Maquiavel inglêsn.Ademais, embora frequentemente tenha-se mostrado cruel e ocasionalmente se tornado um instrumento voluntário de procedimentos corruptos, foi um homem de princípios muito além do que as noções tradicionais do "Cromwell cínico e inescrupuloso" permitem visualizar. Ele náo era totalmente subserviente ao rei, nem procurou fazer de Henrique um monarca absoluto. Bastante conhecedor da lei comum, Cromwell era um excelente estrategista parlamentar e trabalhava consiscenternente através da Casa dos Comuns para alcançar
seus objetivos. A transformação política da Inglaterra em um reino governado pelo rei agindo no e através do parlamento deveu-se, em grande parte, à ação de Cromwell. Os reformadores henricenos mais importances encontraram nele seu principal patrocinador e o homem melhor equipado, por capacidade e posicáo, para traduzir a teoria em prática.
Um dos principais planos de Cromwell foi assegurar uma dotação permanente para a coroa, que necessariamente envolveria uma exploração em larga escala dos recursos eclesiásticos. Em toda parte a Reforma foi marcada por confiscos da riqueza
e propriedades eclesiásticas. Crornwell, Cranmer e seus reformadores colaboradores, ademais, eram contrários ao monasticismo em termos religiosos. Em 1535, correspondentemente, Cromwell nomeou uma comissáo para visitar os mosteiros e relatar suas condiçóes. As visitas foram executadas apressadamente, e o relatório submetido ao parlamento em 1536, embora náo sem base factual, apresentava um retrato unilateral da decadência e corrupçáo monástica. O parlamento entáo adjudicou ao rei, "seus herdeiros e cessionários para sempre", todos os estabelecimentos monásticos cuja arrecadação anual fosse menor do que duzentas libras. O número de esta-
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belecimentos alcan~adospor essa medida foi cerca de trezentos, dos quais cerca de oitenta conseguiram isenções temporárias. Logo, entretanto, os estabelecimentos maiores se dissolveram "voluntariamente", o último dos quais em 1540. O número total de mosteiros dissolvidos na Inglaterra e em Gales entre 1536 e 1540 foi cerca de oitocentos. Por volta de nove mil monges, frades e freiras foram erradicados.
A dissolucáo náo suscitou nenhuma oposiçáo significativa, nem das ordens religiosas nem do povo em geral. Virtualmente todos os oficiais reais que assurnjrarn a liderança na divisão e venda das terras outrora pertencentes aos mosteiros eram eles próprios leigos católicos proeminentes. No final de 1536 e início de 1537 irromperam quatro revolcas no norte da Inglaterra, conhecidas coletivamente como a Peregrinaçáo da Graça, mas foram rapidamente suprimidas. Embora permeadas por conservadorismo religioso, suas origens eram amplamente econômicas e seus objetiVOS
seculares; elas náo foram "guerras religiosas" a favor dos mosteiros ou da monar-
quia papal. Também não há evidência sólida de que a dissoluçáo tenha provocado grandes catástrofes sociais e econômicas, tais como inflaqáo desenfreada, cerco nocivo de terras ou aumento predatório do aluguel de terras. As raízes das crises agrárias que acossaram a Inglaterra durante a década de 1540 eram muito anteriores à dissol u ~ ã odos mosteiros.
A morte de Catarina de Aragáo em janeiro de 1536 aliviou em parte a ameaça de intervenção de Carlos V no governo de Henrique. Aquela altura, I-Ienrique estava enfastiado com Ana Bolena e não perdoava o fato de ela não conseguir dar-lhe um herdeiro masculino. Ademais, Cromwell suspeitava do partido de Bolena no canse-
lho privado do rei. Ela foi acusada de adultério em maio de 1536 e decapitada no dia dezoito desse mesmo mês. U m dia antes Cranmer declarara nulo e inválido o casamento dela com Henrique. Em 30 de maio Henrique casou-se com Jane Seymour,
que lhe deu o tâo desejado filho em 12 de outubro de 1537. Apenas doze dias depois do nascimento do menino, que recebeu o nome de Eduardo, Fane morreu. Conforme se desenvolvia a oposiçáo de Henrique a Roma, a opiniáo protestante se espalhava encre uma minoria considerável das classes alta e média, e até mesmo conquistava um forte, ainda que cauteloso, grupo de adeptos na corte. A família Seyrnour, da qual Henrique retirara sua terceira rainha, é um exemplo notável. No final da década de 1530 a Reforma na Inglaterra já era muito mais do que um mero ato do estado. Cromwell e Cranmer também promoviam ativamente a causa protestante, segundo as circunstâncias Ihes permitiam. A atitude religiosa de Henrique,
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entretanto, continuava aquela da ortodoxia católica, exceto que substituíra a autoridade do papa pela sua própria. Em 1535 e 1536 Cronwell enviara emissários a Wittenberg para debates doutrinários com os líderes luteranos, com o objetivo de levar a Inglaterra para a órbita da liga de Schmalkalden, mas Henrique não queria nada com uma fórmula de fé distintamente protestante. Em 1536, principalmente em resposta à premente necessidade da igreja inglesa por uma defini$áo de sua doutrina, o próprio Henrique redigiu os assim chamados Dez Artigos, no quais efetuou sua concessáo mais extrema ao protestantismo. O s padróes de autoridade de fé sáo a Bíbiia, os três credos ecumênicos e os quatro primeiros concílios ecumênicos. Sáo definidos apenas três sacramentos: batismo, penitência e a ceia do Senhor; os outros náo sáo mencionados nem positiva nem negativamente. Justificaçáo implica fé em Cristo apenas, mas a confissáo e absoiviçáo e as obras de caridade também são necessárias. Cristo está fisicamenre presente na ceia. As imagens devem ser veneradas, mas moderadamente. O s santos devem ser invocados, mas náo porque "nos ouviráo antes do que Cristo". As missas para os mortos sáo desejáveis, mas a noçáo que o "bispo de Roma" pode livrar uma alma do purgatório deve ser rejeitada.
Um evento muito mais importante dessa época, promovido cuidadosamente por CromweIl, com o auxílio de Cranmer, foi a p r o d u ~ á ode bíblias em inglês. Em 1535, Miles Coverdale, entáo no exílio, produziu a primeira Bíblia completa em inglês e conseguiu imprimi-la no exterior, provavelmente em Zurique, de onde foi levada para a Inglarerra e ali reimpressa naquele mesmo ano. Em 1537 apareceu uma segunda Bíblia vernacular completa, traduzida por Joáo Rogers (1500)-155 5); impressa em Londres, ficou conhecida como a "Bíblia de Mateus", pois Rogers utilizara o pseudônimo de Tomás Mateus. Cranmer chamou a atençáo de Cromweli para essa traducáo, e este conseguiu em agosto de 1537 a permissão do rei para que ela pudesse ser vendida no reino. Imediatamente após, ele também licenciou a venda da Bíblia de Coverdale, mais barata. Em 1538 Cromwell urgiu aos bispos a promoção da leitura da Bíblia entre os leigos e ordenou-lhes que fixassem uma data na qual todo pároco deveria ter uma Bíblia em inglês disponível para leitura pública em sua igreja. Náo satisfcito com as novas traduc;óes, entretanto, Cromwell solicitou a Coverdale uma revisáo completa. O resultado foi a pullicagáo em abril de 1539 da obra-prima
de Coverdale, a assim chamada BíbIia Grande, a qual Cranmer adicionou um famoso prefácio para a segunda e d i ~ á ode 1540. A disponibilidade e imensa atracáo da Bíblia vernacular mostrou-se de extrema importância para a Reforma inglesa, princi-
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palmente por colocar a igreja contemporânea diante do espelho do cristianismo neocestamentário original.
A publicaçáo de bíblias vernaculares foi auxiliada pela impressão, em 1544, de uma litania em inglês preparada por Cranmer, a qual daí em diante, por ordem real, passou a ser utilizada nas igrejas. A litania foi a primeira peça dos projetos de Cranmer para um livro de oração inglês, que tomou suas energias de 1540 a 1547 e que produziria Rutos apenas durante o próximo reinado. Desde o início de 1536 a obra do rei Henrique decorria livre de interferência estrangeira em virtude de Carlos V e Francisco I estarem novamente em guerra de
1536 a 1538. Advindo a paz em junho de 1538, aumentaram sobremaneira os riscos para Henrique. O papa exigiu uma ação conjunta da França e da Espanha contra o rei rebelde. A diplomacia de Henrique e os mútuos ressentimentos desses países cvitaram o ataque. Ao mesmo tempo, Henrique deu vários passos impor~antescom o fito de diminuir tais perigos. Ele queria demonstrar ao mundo que era um católico ortodoxo, salvo com referência ao papa, e queria definir dc uma vez por rodas a fé da igreja inglesa. Assim, em junho de 1539 o parlamento aprovou a Lei dos Seis Artigos. O documento afirmava como credo da Inglaterra uma estrita dourrina da transubstanciaçáo, cuja negaçáo seria punida com a morte na fogueira. Repudiava o casamento do clero e a comunháo tanto no páo como no vinho. Ordenava a observância permanente dos votos de castidade e recomendava as missas privadas e a confissão auricular. Tal lei, conhecida como "chicote sangrento de seis tiras", vigorou até a morte de Henrique. Na frente política, Cromwell insistia em que Henrique fortalecesse sua posiqáo com um casamento do agrado dos protestantes alemães e que o unisse com os adversários do imperador Carlos V. A escolhida foi Ana de Cleves, irmá mais velha do duque Guilherme de Cleves e da esposa de João Frederico, eleitor da Saxônia. O casamento se realizou em 6 de janeiro de 1540. Quando a viu pela primeira vez, Henrique ficou insatisfeito, náo se sentindo atraído por ela. Ao concrário, achou-se incapaz de consumar o casamento e pouco tempo depois solicitou dispensa. Cromweil procrastinou, entretanto, pois sabia que a escolha d o rei recairia sobre Catarina Homard, sobrinha de Tomás Howard, duque
de Norfolk, o poderoso líder da maioria católica no conselho privado. O principal diado de Norfolk no conselho era Estêváo Gardiner ( 1 4 9 0 ? - 1 5 5 5 ) , bispo de \Yrinchester. Cromwell estava agora, pela primeira vez, seriamente fora de compasso com o rei, cuja postura religiosa, adcmais, pela influência de Norfolk e Gardiner,
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HISTÓRIA DA IEREJA C R I S T ~
estava ficando cada vez mais reacionária. A queda de Cromwell foi notavelmente súbita. Ele foi preso em 10 de junho de l i 4 0 e condenado sem julgamento, por um decreto parlamentar de confisco de bens e perda de direitos civis, sob a acusaçáo fabricada de heresia e traição. O maior e mais leal servo do rei foi decapitado em 28 de julho de 1540. Um pouco antes, em 10 de julho, Cranmer declarara inválido o casarnenco de Henrique com Ana de Cleves, e a ex-rainha foi consideravelmente compensada por sua perda com terras da coroa. Em 9 de agosto Henrique casou-se com Catarina Howard; mas em novembro de 1541 a nova rainha foi acusada de aduldrio. Desta vez as acusaçóes eram verdadeiras; ela foi decapitada em fevereiro de
1542. Em julho de 1543 Henrique casou-se com Catarina Parr, que ceve a felicidade de viver mais do que ele. Henrique morreu em 28 de janeiro de 1547 e foi sucedido por seu filho, que governou como Eduardo VI (1547-1553). Quando da morte de Henrique, o
art tido reformador no conselho privado e na
corre estava em ascensáo. A família Howard, a última forrdeza do catoIicismo, pcrdera prestígio por causa do fim infame da quinta rainha de Henrique e arruinou-se ainda mais devido ao aventurismo negligente de Henrique Howard, conde de Surrey e filho do duque de Norfolk, que foi decapitado por rraisáo em
19 de janeiro de
1547. O próprio duque teria ido para o paríbulo em 28 de janeiro, não fosse a morte do rei Henrique naquele mesmo dia. Norfolk permaneceu na prisáo por todo o novo reinado. O bispo Gardiner também foi para a prisáo, em junho de 1548, e perdeu sua sé em 1551. O partido protestante era comandado por Eduardo Seymour, conde de Hertford, irmão de Jane Seymour e tio do novo rei. Esse partido rambém desfrutava do apoio de Cararina Parr e seu círculo, que defendiam o humanismo erasmiano e o tipo de reforma cautelosa proposto pelo arcebispo Cranmer. A ascensão ao poder pela facçáo Seymour, conjugada com a evidente dedicasão do jovem rei Eduardo à religiáo da Reforma, possrbilitou que pregadores zelosos e publicistas trabalhassem abertamente pelo afastamento da igreja inglesa do catolicismo romano e henriceno para um protestantismo completo. A maioria dos protestantes fervorosos que estavam em arividade durante esses anos ideviarn muito mais aos reformadores suícos e do sul da Alemanha - Bucer, Zuínglio, Bullinger e logo também calvino - do que a Lutero e aos teólogos luteranos. No final do reinado de Eduardo a Inglaterra havia se tornado um país protestante, pelo menos no que se refere às deciaraçóes oficiais de fé
e prática. Quando subiu ao trono Eduardo VI tinha apenas nove anos de idade. Por isso o
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governo era exercido pelo conselho privado, sob o controle de Hertford, que fora entáo nomeado protetor do reino e duque de Somerset. Soldado capaz mas político indeciso, Somerset tem sido descrito tradicionalmente como um idealista e amigo dos pobres, embora avaliações mais recentes sublinhem sua ambição desmedida e cobiça impiedosa. De qualquer forma, ele exerceu um con~roieautocrático do estado por dois anos, durante os quais avançou-se um protestantismo mais radical. Em
1547 o parlamento aboliu a legislaçáo existente sobre heresia e também as severas adições feitas por Henrique às antigas leis sobre rraiçáo, revogou a Lei dos Seis Artigos, removeu todas as restrições à impressáo, leitura e ensino das Escrituras e ordenou que o cálice fosse oferecido aos leigos. Nesse mesmo ano ocorreu o último grande confisco de terras eclesiásticas - a dissoluçáo das "chantries", isto é, capelas com parrirnônio para rezarem missas pelas almas de seus fundadores. Também foram confiscadas as propriedades das capelas livres, das igrejas colegiadas, dos hospitais (abrigos) e das fraternidades e corporaçóes religiosas. No início de 1548 foi ordenada a remoçáo das imagens das igrejas. Em 1549 se tornou legal o casamento de sacerdotes. Logo se deu uma grande confusáo e, como medida para avançar as reformas e assegurar a ordem, o parlamenro promulgou em 21 de janeiro de 1549 a Lei de Uniformidade, pela qual seria universal na Inglaterra o uso de um livro de oraçáo comum. Tal livro, conhecido como o Primeiro Livro de Oraçáo de Eduardo IV, foi em grande parte obra de Cranmer, baseado nas liturgias medievais da Inglaterra. Cranmer usou também um breviário romano revisado, cuja publicação se dera em
1535 pelo cardeal Fernandez de Quifiones, e o Consultatio, de tendências luceranas, que foi uma experiência de Hermann von Wied, arcebispo de Colônia, ~ublicado em 1543. O Livro de Oraçáo, de 1549, mantinha muitos pormenores do culto antigo, tais como oraçáo pelos mortos, comunháo nos sepultamentos, uncáo e exorcismo nos batizados, e unção dos enfermos, coisas que logo foram abandonadas. As vestes medievais também sobreviveram por dgum tempo. Na eucaristia, as usadas na concessáo dos elementos ao comungante implicavam que o corpo e o sangue de Cristo eram realmente recebidos. Entrementes, Sornerset estava atrapalhado com perturbaqóes políticas. Para neutralizar o crescente poder da França na Escócia ele procurou a uniáo das duas casas reais britânicas por meio do casamento do rei Eduardo com a princesa escocesa Maria Stuart, que seria "rainha dos escoceses". Para reforçar seus planos, invadiu a
Escócia e infligiu-lhe terrivel derrota em 10 de setembro de 1547, em Pinkie, com o que, no entanto, seu alvo principal foi frustrado. Os irados chefes escoceses apressaram-se em noivar Maria com o herdeiro da França, posteriormente Francisco 11, fato da maior importância para a reforma escocesa. Maria foi levada para a França e um poderoso exérciro francês ocupou a fronteira norte da Ingiaterra. A fútil campanha escocesa de Somersec também causou imensos gastos financeiros, que a naçáo mal poderia suportar em uma época de inflaçáo severa e descontentamento rural. Embora o parlamento tenha feito alguns esforços para impedir o cerco de terras comuns, uma série de levantes de camponeses convulsionaram o sul da Inglaterra em 1549. O mais sério desses ocorreu em Norfolk, sob a eficiente liderança do mercador Roberto Ket, cujas forças eventualmente foram derrotadas por Joáo Dudley, conde de Wanvick. Somerser calculara erroneamente ao deixar de ir ele mesmo ao campo de batalha, confiando a lideranca a Warwick. Os rumul~ose as revoltas de 1549 serviram para desacreditar o governo de Somerset. Tendo perdido o apoio de virtualmente todos os membros do conselho privado, o protetor foi derrubado por um golpe de estado em outubro de 1549, O líder e beneficiário último dessa conspiraçáo foi o conde de Wanvick, que em fevereiro de 1550 emergiu como sucessor de Somerset, embora ele nunca tenha assumido o título de protetor. O caráter de Warwick, que em 1551 tornou-se duque de Northumberland, permanece um mistério. Ele salvara Somerset da execução na época do golpe, no entanto, por fim tramou sua decapitaçáo ( 1 552), em parte, deve ser dito, porque Somerset procurou sempre minar o poder de seu ad~rersário.Um retrato idealizado de Somerser tem promovido uma percepçáo de Northumberland como extremamente inescrupuloso, avarento e tirano. Diferentemente de Somerset, entreranto, ele procurou exercer um governo corporativo por meio do conselho privado, e seu regime efetuou importantes reformas administrativas e financeiras. Seu protestantismo tem sido assumido como puramente político, porém ele parece ter beneficiado os reformadores mais extremos por convicçóes pessoais, assim como considerações de governo. Apoiado pelo leal rei protestante, seus três anos de goveriio testemunharam a transformação da igreja inglesa em um corpo protesrante de caráter visivelmente reformado (suíço).
O Livro de Oração, de 1549, náo era popular. A oposicáo conservadora ao livro reve papel proeminente nas rebeliões de 1549 em Devon e Cornwall. Os protestantes julgavam que ele mantinha por demais os usos romanos, uma atitude que o pró-
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prio Cranmer logo passou a parrilhar. Estas críticas eram apoiadas por um número de eminentes refugiados protestantes do continente que desde o final de 1547 eram bem-vindos na Ingiaterra: os italianos Pedro Martire Vermigli, ou Pedro Mártir (15001562), e Bernardino Ochino (1487-1564); o reformador polonês Jan Laski, ou Joáo Lasco (1499-1560); e o mais influente de todos, Martinho Bucer, de Estrasburgo, que em 1559 escreveu um livro conhecido como a Censura para mosrrar o que estava errado com o Livro de Oraçáo, de 1549. Cranmer e seus colaboradores, correspondentemente, efetuaram uma revisáo do Livro de Oraçáo, que foi republicado sob uma nova Lei de Uniformidade em abril de 1552. Nesse Segundo Livro de Ora$20, foi abolido muito mais do antigo cerimonial. As oraçóes pelos mortos foram omitidas; a mesa de comunhão substituiu o altar; na ceia, passou a ser usado o páo comum, em vez da hósria especial; foram postos de lado o exorcismo e a unção; as vestes medievais foram expressamente proibidas e apenas requerido o uso da sobrepeliz; e foi introduzida uma nova fórmula para a entrega dos elementos eucaríscicos que harmonizava com a concepçáo zuingliana da ceia. Cranmer estivera há muito ocupado na preparaçáo de artigos da religião. Em 1552 esses artigos foram submetidos, por ordem do conselho, a seis teólogos, entre os quais estava Joáo Knox. O resultado foi os Quarenta e Dois Artigos, que foram autorizados em 12 de junho de 1553 pela assinatura do jovem rei, menos de um mês anres de sua morte. Eles eram ainda mais decididamente protestantes em tom do que
o Seguildo Livro de Oração, embora fossem direcionados contra o extremismo protestante - especificamente, aiiabatismo - como também contra o catolicismo tradicional. Durante 1552, Cranmer também produziu uma revisáo abrangenre do direito canônico - a Reformatio Legum Ecclesiasticarum, mas essa obra digna de louvor não conseguiu conquistar aurorizaçáo nem do rei nem do parlamento. Entrementes, desde 1550, as vagas no episcopado eram preenchidas por reformadores sinceros, de forma que o episcopado eduardiano possuía um caráter fortemente protestante. Northumberland sabia muito bem que seu poder e sobrevivência pessoal dependiam da vida do rei e da inanutensáo de MariaTudor longe do crono. Em meados de
1553, estava evidente que o frágil Eduardo escava morrendo de tuberculose. Yorthumberland então adotou um plano desesperado, muito possivelmente a mando do próprio Eduardo, que certamente desejava manter a igreja inglesa protestante.
O testamento dc Henrique VIII, em sua forma final, deixara a coroa para Eduardo, \laria e Isabel, nesta ordem, e nomeara os herdeiros Grey de sua irmá mais nova,
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Maria, como sucessores residuais depois do fim da linha Tudor direta. Em 11 de junho de 1553 Eduardo deseidou suas meia-irmãs e estabeleceu a sucessão em Jane Grey, esposa do filho mais velho de Northumberland, Guildford Dudley, e neta de Maria, irmá de Henrique VIII. Cranmer consentiu relutantemente com esse plano táo impensado. Eduardo VI hleceu em 6 de julho de 1553.
A trama de Northumberland falhou completamente. Northumberland, em um equívoco espantoso, deixou de prender Maria, que escapou desimpedida. Mesmo as partes mais protestantes do país, como a cidade de Londres, ficaram do lado de Maria. O povo claramente preferia paz, unidade e sucessão legítima ao invés de guerra civil. Em pouco tempo, Maria estava segura no trono e Northumberland foi decapitado. Ele abjurou a seu protestantismo no patíbulo. Gardiner foi solto da prisáo, restaurado à sua sé de Winchester e tornou-se chanceler. Cranmer e os principais bispos protestantes foram levados para a prisáo. No final de 1553 o parlamento legitimou Maria ao deciarar válido o casamento da mãe dela com Henrique VIII.
A legislaçáo eclesiástica do reinado de Eduardo VI foi revogada, e o culto público foi restaurado às formas do úlrirno ano de Henrique VIII. A Lei de Supremacia de 1534, enrretanto, náo foi imediatamente revogada. Por mais odioso que fosse a Maria, ela procedeu com cautela no inicio, guiada pelo conselho de Simáo Renard, o embaixador do primo dela, o imperador Carlos V, que náo queria nenhuma a ~ á precipitada o ate que Maria estivesse a salvo, casada com seu filho Filipe, que logo seria Filipe II da Espanha. Este casamento, no qual Maria colocava seu coração mas Filipe via apenas como um dever dinástico, ocorreu em 25 de julho de 1554. O enlace foi deveras impopular pois era considerado uma ameaça de domínio estrangeiro.
A reconciliaçáo com Roma fora até aquele momento postergada, embora tenham sido destituídos os bispos e outros clérigos de tendência reformista. Entre o final de 1553 e meados de 1555, cerca de oitocentos protestantes, tanto clérigos como leigos, se refugiaram no continente, principalmente nas cidades alemãs e suíças de Emden, Frankfurt, Estrasburgo, Basiléia, Zurique e Genebra, onde foram treinados no protestantismo reformado. (Os estados luteranos se mostraram pouco hospit-aleiros a esses exilados marianos, considerando-os heréticos em suas crenças sacramentais e também temendo repercussões políticas.) Uma das mais importantes realizações dos exilados foi a produ~áoda assim chamada Bíblia de Genebra, publicada naquela cidade em abril de 1560. Essa Bíblia inovadora, com seu tempero calvinisca, tornouse a Bíblia mais largamente utilizada durante o reinado de Isabel, sem rival até a
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publicação da Versáo Autorizada em 16 1 1. Enquanto a Reforma inglesa assim se preservava pela fuga, a restauração mariana do catolicismo procedia vagarosamente na Inglaterra, retardada em parte devido ao receio muito disseminado de que as propriedades eclesiásticas confiscadas seriam tomadas de seus possuidores atuais. Sob a garantia de que essa não seria a política papal, o cardeal Reginaldo Pole (3500-1558), primo de Henrique VIII, foi admitido na Inglaterra como representanre papal. O parlamento votou a resrauracáo da autoridade papal e, em 30 de novembro de 1554, Pole absolveu a naçáo de heresia e restaurou-a à obediência romana. O parlamento então passou a renovar as velhas leis contra a heresia e a abolir a legislacáo eclesiástica de Henrique VIII, assim restaurando a igreja à posição em que estava em 1529, salvo no referente às suas e ~ - ~ r o p r i e d a des, que a lei confirmou a seus aruais possuidores. Uma severa perseguição começou repentinamente. A primeira vítima foi Joáo Rogers, tradutor da Bíblia, queimado em Londres em 4 de fevereiro de 1555. A atitude do povo, que o aclamou quando ia para a fogueira, foi de mau presságio para essa política. Não obstante, antes do fim do ano, mais setenta e cinco pessoas tinham morrido na fogueira em vários lugares da Inglarerra. Dentre elas as mais notáveis foram os ex-bispos Hugo Latirner de Worcesrer e Nicolau Ridley de Londres, cuja heróica atitude no dia da morte - 16 de outubro - em Oxford causou profunda impressão. Outra vítima importante naquele ano foi Joáo Hooper, ex-bispo de Gloucester e Worcester. Hooper era um homem cujos princípios resolutamente zuinglianos ou "suíçost' assinalaram-no como protótipo dos puritanos posteriores. Maria e Gardiner estavam especialmente determinados a atacar o maior do clero protestante, o arcebispo Cranmer. Embora homem de consciência e princípio, Cranmer náo era do mesmo conteúdo heróico do qual eram constituídos Latirncr, Ridley, Hooper e Rogers. Em 25 de novembro de 1555 ele foi formalmente excomungado por sentença em Roma e pouco tempo depois Pole foi feito arcebispo de Cantuária em seu lugar. Cranmer agora se encontrava anre um dilema intolerável. Ele defendera sinceramente, desde sua nomeação por Henrique VIII, que o rei era a suprema autoridade da igreja da Inglaterra. Seu protestantismo era verdadeiro, mas a nova soberana era católica romana. Naquela hora de angústia ele se submeteu e declarou que reconhecia a autoridade papal conforme estabelecida peja lei. Maria não pensava em poupar o homem que declarara sua máe adúltera e ela própria bastarda. Cranmer tinha que morrer. Mas esperava-se que por uma abjuraçáo pública do pro-
testantismo antes de morrer ele desacreditaria a Reforma. Tal esperanga quase se concretizou. Cranmer assinou nova retrataçáo, negando por inteiro o protestantismo. Mas no dia de sua execução em Oxford, 21 de março de 1556, ele recobrou coragem. Repudiou totalmente suas retrataçóes, deciarou sua fé protestante e manteve sua máo ofensiva, que assinara as submissões que agora renunciava, nas chamas até se consumir. Filipe deixara a Inglaterra em setembro de 1555. Sua ausência, conjugada com a circunsdncia de Maria não ter filhos, influiu de tal modo em sua mente que ela passou a pensar que náo fizera o bastante para satisfazer o juízo de Deus. Daí as
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perseguiçóes persistirem sem minimizar até sua morte, em 1558. No total, foram queimadas perto de trezentas pessoas, muitas delas oriundas do sudeste da Inglaterra
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e a grande maioria pertencente às classes trabalhadoras. Enrre elas estavam mais de
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cinqüenta mulheres e uma grande proporgáo de jovens. Comparado com o tributo dos sofredores nos Paíscs Baixos, o número total de mártires marianos foi pequeno, embora a história inglesa não apresentasse nenhum precedente para mortes na fogueira em tal amplitude e o sentimento inglês ficou profundamente revoltado. Esses martírios - rapidamente celebrados no imensamente popular Atos e Monumentos
(1563) de Joáo Foxe (15 16-1587) - provavelmente fizeram mais pela expansáo do sentimento anti-romano do que todos os esforços governamentais anteriores, e revelam que a Reforma havia lançado raízes muico mais profundas entre o povo comum do que frequentemente se pensa. Ademais, o processo de mudança teológica e litúrgica iniciado na década de 1530 sob Croinweil e Cranmer, conduzindo a consolidagáo do protestantismo sob Eduardo VI, provou ser irreversível. Maria náo podia retroceder a roda da história, e suas políticas pareciam cada vez mais anacrônicas. O último ano de sua vida tambtm assistiu à entrega de Calais aos franceses, a última possessáo inglesa no continente, e um potente símbolo da grandeza nacional passada. Quando Maria faleceu, em 17 de novembro dc 1558, poucas horas antes do cardeal Pole, seu reinado estava desacreditado e não houve crise alguma na ascensão de Isabel ao trono. Isabel 1 (1 558-1603) foi por muiro tempo percebida como ilegítima, embora seu lugar na sucessáo fora assegurado pelo parlamento ainda quando Henrique VIII vivia. Ela se tornou protestante necessariamente, tanto por nascimento e educaçáo como pelas negagóes romanas do casamento de sua mãe. Porém, durante o reinado de Maria, quando sua vida correu perigo, ela se conformou ao ritual romano. Con-
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quanto ela renha mantido em segredo suas convicçóes religiosas mais ínrimas e certamente náo fosse favorável ao extremismo protestante, desde o início ela dernonscrou preferência por uma resoluçáo não católica da questão religiosa. Sua ascensão ao trono teve o apoio de Filipe I1 da Espanha, que logo se tornaria o seu mais acerbo inimigo. Por mais carólico que fosse, Filipe era bastante político para náo desejar ver a França, a Inglaterra e a Escóciasob o governo de um só par real, e se Isabel náo fosse a rainha da Inglaterra, entáo Maria, "rainha dos escoceses" e esposa do príncipe que
em 1559 se tornaria o rei Francisco I1 da Franca, ascenderia por direito ao trono inglês. Em suas primeiras medidas após subir ao trono, Isabel desfrutou, também, do auxílio de um dos mais cautos e lúcidos estadistas que a Inglaterra jamais produziu, Guilherme Ceci1 (1520-1598), mais conhecido como Lorde Burghley, a quem ela imediatamente nomeou como secretário particular e que seria seu
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selheiro até cquando ele morreu. Outra grande vantagem de Isabel é que eIa se sentia totalmelite ingiesa e se identificava profundamente com as ambiçóes politicas e ccoii6micas da naçáo. Essa qualidade representativa levou muitos - os quais a teriam combatido se considerassem apenas as posturas religiosas - a se reconciliarem com seu governo. Ninguém duvidava de que ela colocava a Inglaterra em primeiro lugar. Isabel agiu cautelosamente com suas mudanças, de forma a satisfazer os ativistas protestanres na Câmara dos Comuns, os quais, conforme se mostrou mais tarde, forçavam a rainha a se mover mais rapidamente do que ela pretendia. Em 29 de abril de 1559 o parlamento aprovou nova Lei de Supremacia, mas sob forte oposição dos bispos rnarianos na Câmara dos Lordes. Por essa lei eram rechaçados a autoridade do papa e todos os pagamentos e apelos a ele. Porém, foi feita uma m u d a n ~ ade título significativa por insistência da própria Isabel. Em lugar do antigo "Suprema Cabeça", cão desagradável aos católicos c muito pouco aceitável aos protestantes militantes, ela seria agora designada "Governadora Suprema" da igreja na Inglaterra
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pressão muito menos censurável mas que, na prática, significava a mesma coisa. Os testes para a heresia seriam agora as Escrituras, os quatro primeiros concíiios gerais e as decisões do parlamento. Enquanto isso, uma comissão estivera revisando o Segundo Livro de Oração de Eduardo VI. Conquanto a própria rainha pareça ter defendido o Primeiro Livro de Oraqáo de 1549, ela náo teve opçáo senáo aceirar uma versão modificada do Livro de Oraçáo de 1532, que tinha sido santificado pelos mártires nas fogueiras. As modificações introduzidas conformavam-se ao gosto conservador tia rainha e ranibém ajudavam a tornar o riovo ot'ício rriais aceitável aos católicos
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moderados. A oração contra o papa desapareceu, o mesmo acontecendo à deciaraçáo de que a genuflexáo na ceia náo implicava em adoraçáo (uma declaração, conhecida como "Rubrica Negran, que fora adicionada ao Livro de Oraçiio de 1552 por insistência de Joáo Knox). A questão da presença física de Cristo no sacramento foi propositadamente deixada indefinida pela simples combinação das fórmulas de entrega dos elementos nos dois livi-os de Eduardo.
A Lei de Supremacia foi seguida imediatamente pela Lei de Uniformidade, que ordenava que todo o culto depois de 24 de junho de 1559 fosse prestado de acordo com a nova liturgia, e estabelecia que os ornamentos da igreja e as vestes dos seus ministros seriam aqueles do segundo ano de Eduardo VI. Essa "Rubrica dos Ornamentos", que assim preservava as vestes tradicionais, provocou a vigorosa oposição dos exilados marianos, que enráo retomaram 5 Inglaterra e den~reos quais os principais bispos isabelinos eram recrutados. Esta assim chamada Controvérsia das Vestes demonstra que o puritanismo, definido arnplamenre como o esforço para purificar a elemento nas origens da igreja igreja e sua liturgia de "papismo", foi um angiicana. Todos os bispos da época de Maria, exceto dois, recusaram-se a fazer esse jurarnenIo de supremacia. Enrre o baixo clero, no entanto, foi pequena a resistência, não chegando a duzentos o número dos que se rebelaram. Novos bispos deviam ser nomeados, e ~MateiisParker (1504-I575), ex-capeláo da máe de Isabel, foi eleito arcebispo de Cantuária, conforme o desejo de Isabel. Parker, como Cranmer, era erudito e reservado; como alguém que não se havia exilado, ele era também um protestante de idéias moderadas. Sua sagra~áoapresentou dificuldades, uma vez que os bispos marianos se recusaram a participar, mas na Inglaterra havia os que tinham sido ordenados ao ofício episcopal na época de Henrique VI11 e Eduardo VI. Parker foi consagrado em 17 de dezembro de 1559 por alguns deles - Guilherme Barlow, João Scory, Miles Coverdale e Joáo Hodgkin. Assim inaugurado, logo ficou estabelecido um novo episcopado anglicano. Foi intencionalmente postergada uma definição do credo, além da implícita no Livro de Oracáo. Em 1563, porém, os Quarenta e Dois Artigos de 1553 foram em parte revisados e agora, como osTrinta e Nove Artigos, se tornaram a deciaraçáo de fé da igreja da Inglaterra. E assim, por volta de 1563, a resoluçáo isabelina estava completa. Mas também estaara ameaçada por dois lados: Ruma, rendo o papa excomungado Isabel em 1570 e urgido seus súditos a deporem-na; e, com potencial ainda mais explosivo,
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reformadores mais diligentes que desejavam ir mais longe e que logo foram denominados puritanos. Uma característica notável da Reforma inglesa é que ela náo produziu nenhum destacado líder religioso - nenhum Lutero, Zuínglio, Calvino ou Knox. Nem tarnpouco, antes d o começo d o reinado de Isabel, manifestou qualquer despertamento espiritual considerável entre o povo em todos os níveis da sociedade. Viria um grande reavivamento da vida religiosa da Inglaterra, cuja história inicial coincidiria com o reinado de Isabel, mas que nada deveria diretamente à. rainha.
Capítulo 1 0
A Reforma Escocesa No inicio d o século dezesseis a Escócia era um país pobre e atrasado. Suas condiçóes sociais eram feudais. Seus reis tinham pouco poder. Sua nobreza era turbulenta. Sua igreja era relativamente rica em terras, possuindo cerca da metade do pais, mas as posiçóes eclesiásricas eram utilizadas em grande parre para a coloca~áodos filhos mais moços das casas nobres e, assim, muito das propriedades eclesiásticas estava nas máos dos nobres leigos. A fraca monarquia normalmente se apoiava na igreja contra a nobreza laica. As universidades fundadas no século quinze em St. André, Glasgow e Abecdeen eram muito fracas, quando comparadas com os centros culturais do continente. Os estabelecimentos monásticos no gerd escavam em declínio, e as igrejas paroquiais estavam sujeitas a uma negligência escandalosa, com quadros com pouca formaçáo e vigários muito mal pagos. Era desejada por quase todo mundo uma reforma de tipo disciplinar, nas "maneiras e moralidade". Quando a Reforma se estabeleceu na Escócia em 1560, houve uma preocupação em primeiro lugar com a reestruturaçáo completa da política eclesiástica; as questóes teológicas e litúrgicas receberam atençáo secundária.
O motivo determinante de muito da história política da Escócia nessa época era o temor do domínio ou anexação peia Inglaterra, o que a levou a vincular seu destino ao da França. Três derrotas dolorosas inflingidas pela Inglaterra - Flodden (15133, 5olway Moss (1542) e Pinkie (1547) - aumentaram esse sentimento de antagonismo,
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mas também demonstraram que mesmo a superioridade militar inglesa náo podia conquistar a Escócia. Por outro lado, a Escócia aliada à França era um grande perigo para a Inglaterra, perigo que se tornou mais sério ainda quando esta rompeu com o papado. Por isso tanto a Inglaterra como a França procuravam formar dentro da Escócia partidos e facGóesa elas favoráveis. A poderosa família dos Douglas pendia totalmente para a Inglaterra, enquanto a dos Hamilton inclinava-se para a França. Este país também tinha fortes partidários no arcebispoTiago Beaton 0 - 1 539), de St. André, o primaz da Escócia, e em seu sobrinho, o cardeal Davi Beaton (1494?-
1546), seu sucessor na mesma sé. Ainda que o rei Tiago V (reinou de 15 13-1 542) fosse sobrinho de Hcnrique ViII, e seu nero Tiago VI se tornasse Tiago 1 da Inglaterra em 1603 e unisse as duas coroas após a morte de Isabel, Tiago V lançou sua sorte com a França, casando-se sucessivamente com uma filha de F~anciscoI e, depois que ela morreu, com Maria de Lorena, da poderosa família católica francesa dos Guise. Deste último consórcio, táo importante na história do país, nasceu Maria, "rainha dos escoceses" ( 1 542-1 587).
Não demorou muito após o início da Reforma e já havia manifestações protestantes entre os escoceses. Parrício Hamilton (1 504?-1528),que visitara Witcenberg e estudara em Marturgo, pregara a doutrina Iuterana e foi queimado em 29 de fevereiro de 1528. A causa progrediu lentamente. Houve outras execuções em 1534 e 1540. Porém, em 1543 o parlamento escocês autorizou a leitura e tradução da Bíblia. Foi apenas uma fase efêmera devida à influência inglesa, pois em 1544 o cardeal Beato11 e o partido francês estavam fazendo forte repressáo. O principal dentre os pregadores desse tempo foi Jorge Wishart (15 13?-1546),queimado por ordem do cardeal Beaton em 2 de março de 1546. Logo depois, em 29 de maio, o próprio Beaton foi brutalmente assassinado, em parte por vinganca pela morte de Wishart e em parte por hostilidade à sua política francesa. Os assassinos se apossaram do castelo de Beaton em St. André, e ali reuniram seus simpatizantes. Em 1547 um perseguido pregador protestante, ao que parece convertido por Wishart e certamente seu amigo, e de nenhuma anterior notoriedade, refugiou-se junto a eles e se tornou seu mestre espiritual. Era João Knox, que viria a ser o herói da reforma escocesa. Nascido em Haddington ou seus arredores, entre 1505 e 15 15, o início da carreira de Knox foi obscura. Ele fora ordenado ao sacerdíicio, mas quando Wishart foi preso ele estava com o mártir e preparado para defendê-lo. As forças francesas enviadas para dominar os rebeldes no castelo de St. AndrC forçaram sua rendiCáo. Knox
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foi levado para a Franqa e durante dezenove meses sofreu o destino cruel de um escravo de galé. Solto por fim, dirigiu-se para a Inglaterra em 1549, entáo sob governo protestante em nome de Eduardo VI. Ali tornou-se um dos capeláes reais e em 1552 rejeicou o bispado de Rochester. A subida de Maria Tudor ao trono o obrigou a fugir em 1554. Porém, os refugiados ingleses aos quais primeiramente se juntou em Frankfurt se dividiram por causa de suas críticas ao Livro de Oração de Eduardo, e ele entáo foi para Genebra. Lá se tornou ardente discípulo de Calvino e trabalhou na versáo genebrina da Bíblia em inglês, que mais tarde seria tão querida pelos puritanos ingleses. Foi durante esse período de exílio que h o x desenvolveu suas idéias revolucionárias sobre o direico de o povo comum pegar em armas contra governantes idólatras, ímpios - idéias das quais Calvino náo compartilhava. Entrementes, a Escócia se afastara mais do que nunca da Inglaterra por causa da derrota em Pinkie, em 1547. Maria, "rainha dos escoceses", fora prometida ao herdeiro do trono francês e enviada à Franca em 1548, para ficar em segurança. Sua mãe, Maria de Lorena, da família dos Guise, se tornou regente da Escócia em 1554. Para g a n d e parte dos nobres e do povo da Escócia a dependência à Franfa era táo odiosa quanto a submissáo à Inglaterra. Protestantismo e independência nacional pareciam estar unidos, e nessa dupla luta Knox seria o líder. Em 1555 ele se atreveu a voltar ao seu país e lá pregou durante seis meses. A situação, porém, ainda náo estava madura para a revolta e Knox retornou a Genebra para pastorear a igreja de refugiados de fala inglesa. Ele plantara, no enrailto, semente frutífera. Em 3 de dezembro de 1557 alguns nobres protestantes e antifranceses na Escócia fizeram um pacto para "estabeiecer a mui bendita Palavra de Deus e sua congregaçáo". Mais combustível foi posto nessa dissidência com o casamento de Maria Stuart com o herdeiro da França em 24 de abril de 1558. A Escócia agora parecia prodncia da França, pois se desse consórcio nascesse um filho, ele seria governante de ambos os países. E a ligaCáocom a França ficou mais assegurada por um acordo assinado por Maria, na ocasiáo mantido secreto, de que se ela morresse sem herdeiros a Escócia passaria para a França. Antes do final de 1558 Isabel era a rainha da Inglaterra, e Maria, "rainha dos escoceses", a denunciou como usurpadora ilegítima e se proclamou ocupante por direito, do trono ingiês. Nestas circunsrâncias, os defensores da independência escocesa e do protestantismo aumentaram rapidamente e foram formando um partido. AIém disso, seria possível contar com o auxílio de Isabel mesmo que ele significasse apenas segurança para
a soberana inglesa. f i o x compreendeu que chegara a hora e em 2 de maio escava novamente na Escócia. Nove dias depois pregou em Perth. A turba destruiu os estabelecimentos monásticos da pequena cidade. Naturalmente a regente considerou isso ato de franca rebeldia. Ela tinha ao seu dispor tropas francesas, e os dois lados logo se prepararam para a luta. Suas forças eram equilibradas e o resultado ficou indeciso. Para desgosto de Knox, em vários lugares da Escócia igrejas foram destruídas e propriedades monás~icassaqueadas. Em 10 de julho de 1559 morreu Henrique I1 da França e o esposo de Maria, Francisco 11, o substituiu no trono. Reforços franceses foram logo enviados à regente na Escócia. As coisas pioraram muito para os reformadores. Por fim, em janeiro de 1560, chegou auxílio da Inglaterra. Em 11 de junho de 1560 a regente morreu e sua causa pereceu com ela. Em 6 de julho foi assinado um tratado entre a França e a Inglaterra pelo qual os soldados franceses seriam retirados da Escócia e seus parrícios excluídos de todos os postos importantes no governo escocês. A revolução triunfara com o apoio inglês, mas sem comprometer a independência da Escócia, e Knox fora seu inspirador.
O partido vitorioso levou seu triunfo ao parlamento escocês. Em 17 de agosto de 1560 foi adotado como credo do reino uma confissão de fé calvinista, em sua maior parte preparada por Knox. Uma semana mais tarde o mesmo parlamento aboliu a jurisdição papal e proibiu a missa, sob pena de morte na terceira reincidência. Ainda que o rei e a rainha, na França, hajam negado sua aprovaçáo, a maioria da naqáo se pronunciara. Knox e seus companheiros passaram então a completar sua obra. Em dezembro de 1560 se realizou uma reuniáo tida como a primeira "Assembléia Geral" escocesa. Em janeiro seguinte foi apresentado ao parlamento o Primeiro Livro de Disciplina. Era um notável documento que procurava aplicar o sistema elaborado por Calvino a todo um reino, ainda que se estivesse longe de um sistema "presbiteriano" completamente desenvolvido. Em cada paróquia haveria um ministro e anciãos exercendo suas hnçóes com o consenrimenro da congregaçáo. Ministro e anciãos formavam a junta disciplinar - mais tarde chamada "sessão" - com poder de excomunháo. Nas cidades maiores haveria reunióes para discussáo e dessas discussóes sairiam os "presbitérios"; sobre grupos de ministros e congregações haveria sínodos e acima de tudo estaria a "Assembléia Geral". As necessidades da época e o estado incipiente da igreja levaram a criação de duas novas instituiçóes: "leitores", em lugares onde não houvesse ministros ou fosse deveras grande o trabalho; e "superintendenres", sem autorida-
PER~OIO VI
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de espiritual mas com poderes administrativos para supervisionar a organização de paróquias e recomendar candidatos ao ministério. Além desses traços eclesiásticos, o
Livro apresentava apreciáveis esquemas para a educação nacional e atendimento aos pobres. Knox queria que a igreja, a educacáo e os pobres fossem mantidos pelas propriedades da amiga igreja. Nisso, no entanto, o
Livro encontrou resistência por
parte do parlamento, que náo adotou essas propostas financeiras, ainda que muitos dos seus membros as tenham aprovado. Aos poucos a constitui~áoeclesiástica entrou em vigor, mas os nobres se apossaram de tal forma das cerras eclesiásticas que a igreja se tornou uma das mais pobres da cristandade. Porém, essa relativa pobreza deu-lhe um caráter democrático, o que a faria baluarte do povo contra os abusos dos nobres e da coroa. Todas as práticas sem apoio na Escritura foram eliminadas. O domingo foi o único dia santo que permaneceu. Knox preparou o
Livro de Ordem Comum para a
direção do culto público, por vezes chamado "Liturgia de Knox", o qual foi aprovado em 1564 pela Assembléia Geral. Ele estava em grande parte baseado naquele da congregaçáo inglesa de Genebra, que por suavez, estava calcado no modelo de Calvino. Ele permitia, entretanto, ainda mais o uso de orações espontâneas, sendo as fórmulas dadas tidas como modelos cujo emprego exato não era obrigatório, embora a ordem geral e o conteúdo do serviço estivessem bem definidos. Em breve Knox se viu compelido a defender o que ganhara. O rei Francisco I1 da França faleceu em 5 de dezembro de 1560, e em agosto seguinte Maria voltou para a Escócia. Sua situação de jovem viúva despertava simpatias, que eram aumentadas pelo seu g a n d e charme pessoal. Ela náo era mais rainha da França e os que haviam apoiado o protestantismo não por questóes religiosas mas pela aspiraçáo de independência nacional, bem poderiam pensar que o grave perigo da dominação francesa, que os levara a aceitar a revoluçáo religiosa, havia passado. No início Maria portouse com grande prudência. Mesmo náo fazendo segredo de sua fé - ela mandava realizar a missa em sua capela, para a furiosa desaprovaçáo de Knox, então ministro de São Giles em Edimburgo e admirado
residentes daquela cidade - ela não inter-
feriu no acordo religioso estabelecido em 1560. Maria empenhou-se em assegurar seu reconhecimento como herdeira de Isabel ao trono inglês, coisa que esta náo pensava em conceder. Maria contou com os sábios conselhos de seu meio irmáo, Tiago Scuart (153 1?-1570),que viria a ser conde de Moray, e que fora um dos líderes dos "Lordes da Congregaçáo". Ela procurou, com entrevistas pessoais habilidosas,
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IIISTÓAIA DA IGREJA
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ganhar Knox. Este, porém, se negou a qualquer acerto e permaneceu a alma do partido protestante. Não obstante, as perspectivas se tornaram sombrias para ele. Maria ganhava amigos. Os nobres protestantes estavam divididos. A missa era cada vez mais utilizada. Knox tinha boas razóes para temer que Maria entregasse a Escócia a um rei católico, consorciando-se com algum importante príncipe estrangeiro. Foi seriamente discutido um casamento com o filho de Filipe II da Espanha. A n d a mais alarmante para a causa protestante na Escócia e na Inglaterra foi o casamento de Maria, em 29 de julho de 1565, com seu primo Henrique Stuarr, Lorde Darnley (1545-i567), por quem ela se apaixonara. A reivindicação de Darnley ao trono inglês era semelhante a da própria Maria. Ele era popular entre os ingleses católicos, e ainda que houvesse passado por protestante na Inglaterra, agora se confessava catóiico. O casamento aumentou o perigo para Isabel dentro de sua párria e fortaleceu o partido católico na Escócia. Moray, que se opusera ao consórcio, foi expulso da corte e logo exilado, enquanto Maria ia submetendo, um a um, os senhores protestantes que simpatizavam com ele. Assim Maria perdeu seu conselheiro mais sábio. Até aqui Maria agira com muita astúcia, mas entáo o protestantismo escocês foi salvo pelos erros e falta de auro-controle dela mesma. Darnley era desagrável e depravado. Mudaram os sentimentos de Maria para com ele. Por outro lado, os ciúmes dele foram despertados
elos favores que Maria dispensava a Davi Riccio, italiano
que ela empregara como secretário estrangeiro e a quem os senhores protestantes consideravam inimigo. Daí, então, Darnley e alguns nobres protestantes fizeram uma trama e a 9 de marco de 1566 arrastaram Riccio da presenca de Maria e o assassinaram no palácio de Holyrood. Maria se portou com grande astúcia. Dissimulando sua fúria, conseguiu com Darnley os nomes de seus cúmplices na trama e exilou os que praticaram o assassinato. Já aos demais participantes na trama, acolheu-os novamente. Obviamente, eles sabiam que ali estavam devido a tolerância dela. Em 19 de junho de 1566 nasceu o filho de Maria e Darnley, o futuro Tiago VI da Escócia e Tiago I da Inglaterra. Maria jamais parecera tão segura do trono escocês como agora. Na verdade, Maria nunca perdoara seu marido, e agora voltava-se para um nobre protestante, Tiago Hepburn, conde de BothweIl (1536?-1578). Borhwell era rude e licencioso, mas valente, leal e guerreiro; suas qualidades contrastavam com as do fraco esposo de Maria. Ele começou a tramar para tirar Maria de Darnley. Ainda hoje se discute qual participação teve a própria Maria em toda essa trama. Darnley, que convalescia de varíola, foi levado por ela de Glasgow para uma casa nas proximidades de Edimburgo, onde Maria ficou com ele durante parte de sua última tarde.
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Na madrugada de 10 de fevereiro de 1567 a casa foi pelos ares, e o corpo de Darnley foi encontrado nos escombros. A opiniáo pública acusou Bothwell do assassinato, e era crença generalizada que Maria também teria participado. Em todo caso, ela curnulou de honras a Rothwell e ele foi absolvido por uma farsa processual. Em
24 de abril Bothwell encontrou Maria numa de suas viagens e fê-la prisioneira utiIizaildo a forqa - com a coriiv6ncia dela mesma, coriforttie geralrner-lte se dizia. Ele era casado, mas sua esposa se divorciou dele em 3 de maio, acusando-o de adultério. No dia 15 desse mesmo mês ele casou-se com Maria, segundo o rito protestante. Táo vergonhosas tramas provocaram generalizada hostilidade na Escócia e tiraram de Maria, sob aquelas circunstâncias, a simpatia dos carólicos na Inglaterra e no continente. Na Escócia, protestantes e car6licos juntaram suas forças contra ela. Em
24 de julho de 1567 foi obrigada a abdicar em favor de seu filho de apenas um ano de idade e nomear Moray como regente, e ficou presa no castelo de Lochleven. Em 29 de julho João Knox pregou o sermão na coroaqáo de Tiago VI. Cotn a queda de Maria, rriunfou o protestanrismo, que foi entáo definitivamente estabelecido pelo parlamen~oem dezembro. Maria escapou de Lochleven em maio de i 568, mas Muray derrotou os partidários dela, e ela entáo fugiu para a Inglaterra, onde seria o centro das intrigas católicas até sua execuçáo par conspirar contra a vida de Isabel, em fevereiro de 1587. A ardente carreira de Knox chegava ao fim. Morreu a 24 de novembro de 1572, tendo influenciado não apenas a religiáo mas o próprio cará~erda naçáo, mais do que qualquer outra pessoa na história escocesa. A obra de Knox foi continuada por André Melville (1 545- 16231, que lecionara em Genebra como colega de Beza desde
1568 atd seu regresso à Escócia em 1574. Ele foi o reformador educacional das universidades de Glasgo~ve Sr. André. Mas ainda mais se d i s r i i ~ ~ ucomo i u aperfeiçoador do sistema presbiteriano na Escócia e seu vigoroso deferisor contra os abusos episcopais e reais deTiago VI. Este o obrigou a passar no exílio os dezesseis últimos anos de sua vida.
Capitulo 1 I
,A Reforma Católica e a Contra-Reforma Em meados do século dezesseis o crescimento sólido do protestantismo, muitas 7-ezes espetacular, suscitara uma reacáo poderosa da igreja romana. Começando com Paulo III ( 1 534- 1549), os papas direcionaram esforços de roda a igreja para represar a revolta protestante, corrigir os abusos eclesiásticos mais gritantes, codificar o ensi-
í9a
UISTÓRIA
DA IGREJA CRI SI^
no eclesiástico normativo contra os hereges e cismáricos protestantes, e recuperar territórios perdidos. Essa reaçáo defensiva à ameaqa protestante é adequadamente chamada Contra-Reforma; contudo, essa denominação náo é de forma alguma adequada a [odos os fatos e, tomada isoladamente, conduz a um retrato histórico parcial. Pois ao lado dessa resposta negativa ao protestantismo pode-se observar movimentos espontâneos de reforma católica que ou antecederam a Reforma protestante ou se originaram independentemente dela. Esses movimentos, no
estáo em
continuidade com os esforqos do fim do período medieval que buscavam renovaçáo religiosa pessoal e reforma institucional, conforme evidenciado em fenômenos como a Devotio modernd, concil~arismo,humanismo cristão, pregaçáo penitencial, programas de reforma monástica oriundos dos meios observantes e a fundaçáo de fraternidades relrgiosas. Sob essa luz, pode-se falar com razáo de uma Reforma Católlca autóctone do século dezesseis, cenrrada na esperança de alcançar uma reforma completa "na cabeça e membros". Com toda probabilidade, entretanto, essas correntes de re~iovaçáo espiritud náo reriam conseguido o apoio ativo de papas e prelados - não teria sido "institucionalizada", por assim dizer - náo fosse o profundo choque provocado em toda a igreja pela Reforma prorestante. Ademais, a necessidade urgente de conter e contra-atacar o protesrancismo delineou em grande parte o curso no qual transcorreriam essas correntes. Portanto, Reforma e Contra-Reforma católicas estiveram intimamente unidas. Os dois centros princrpais dos quais o reavivamento católlco se irradiou foram Espanha e Itália, embora a renovaçáo espiritual em ambos os países tenha tido grande dívida para com tradiçóes de espiritualidade mais antigas nos Países Baixos e na Alemanha.
Já foi observado (ver V16) que uma geração antes do rompimento de Lutero com Roma, a Espanha estava testemunhando um vigoroso esforço por reforma liderado pela rainha Isabel e pelo cardeal Francisco Jiménez de Cisneros. Tal esforço combinava zelo por um clero paroquial melhor treinado e maior nível moral, reforma dos mosteiros de acordo com as linhas dos observantes e estudos bíblicos baseados nos princípios do humanismo cristão, com dedicaçáo inabalável à ortodoxia tradicional e repressáo da heresia pela Inquisicáo espanhola. A vida espiritual renovada da Espanha também se expressaria em um grande florescimento de misticismo quietisra, envolvendo novas técnicas de oração meditativa; em uma teologia escolástica
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renovada, envolvendo um reavivamento do tomismo; e não menos na fundação da mais influente das novas ordens religiosas, a Sociedade de Jesus - desenvolvimentos que seráo vistos mais tarde neste capítulo. Esse "despertamento espanhoP foi de grande importância para a Reforma católica e a Contra-Reforma. Não obstante, o catolicismo rejuvenescido também foi muito influenciado por fontes italianas autóctones de reavivamento religioso. Durante os últimos anos do século quinze e o primeiro quartel do dezesseis, foram estabelecidas na Itália muitas fraternidades religiosas ou "oratórios". Estas associaçóes meio-leigas, meio-clericais, eram dedicadas ao cultivo de uma intensa piedade pessoal e a realizaçáo de obras de caridade, especialmente o cuidado dos orfáos e dos incuráveis (pessoas sofrendo com a nova doença, sífilis). A mais famosa destas associações, de caráter predominantemente leigo, foi o Oratório do Amor Divino, fundado em Gênova em 1497 por Ettore Vernazza, um discípulo e biógrafo de Santa Catarina de Gênova (ver V: 15). Em algum momento entre 15 14 e 15 17, Vernazza estabeleceu uma filial do oratório em Roma. Seus líderes incluíam Caetano de Thiene (1480-1547), sacerdote dedicado e oficial da cúria, posteriormente canonizado (como São Caetano); e Joáo Pedro Caraffa (1476-1559), bispo de Chieti, diplomata papal e posceriormence papa Paulo IV (1555-1 559). Em 1524 Caetano e Caraffa e dois outros membros do oratório romano fundaram a assim chamada Ordem Tiatina em Roma, para a qual Caraffa escreveu uma regra em 1526. Essa era uma ordem de "clérigos regularesn, de sacerdotes, isto é, que professavam os votos monásticos, viviam em comunidade sob um superior e buscavam aperfeiçoar suas próprias vocacóes sacerdotais e elevar o padrão de vida clerical em geral. O nume oficial deles era "Clérigos Regulares da Providência Divina", mas eram popularmente conhecidos como "Tiatinos", segundo o bispado de Caraffa em Chieti (= Theate, em latim). Todos os primeiros membros da ordem doaram suas propriedades e abdicaram de seus benefícios. Sua pobreza, estrito ascetismo e obras de caridade para os doentes e destituídos Ihes conquistaram grande respeito popular. Sua influência como a sementeira da reforma católica foi muito desproporcional em relação ao seu reduzido número. Muitos dos primeiros líderes do reavivamento católico na Irália tinham íntima ligaçáo com os oratorianos e os tiatinos. Isso foi marcadamente verdadeiro em relacão ao senador e embaixador veneziano, Gaspar Contarini (1483-1542), que de 1530 a 1535 foi membro de um grupo reformador zeloso em Veneza que incluía Caraffa
(após o saque de Roma em 1527 os tiatinos mudaram paraveneza); Gregório Cortese (m. 1548), o abade do mosceiro beneditino de São Jorge Maior; e o inglês Reginaldo Pole (1500-1558), erudito humanista e primo de Henrique VIII. Já em 1516, Contarini escrevera um tratado sobre o ofício episcopal (De oficio episcopi), que apontava o caminho para a renovação espiritual do episcopado - uma das necessidades mais urgentes do dia e subseqüentemente a base da Reforma católica. O ideal de Contarini corporificou-se em Joáo Mateus Giberti (1495-1543), o bispo reformador de Verona de 1524 até sua morre, que também era um dedicado defensor dos tiatinos.
A partir de 1527, quando ele passou a residir em sua sé após catorze anos de serviço exemplar na Cúria, Giberti exerceu a mais íntima supervisáo de seus clérigos para assegurar que eles cuidariam fielmente das almas. Suas ordenancas serviram como padrão para muito da Legisla~áodisciplinar do concílio de Trento, e seu exemplo inspirou o famosíssimo bispo pastoral da igreja pós-tridentina, Sáo Carlos Borromeo (1538-1584), arcebispo cardeal de Miláo a partir de 1560. Ainda outro reformador episcopal com ligaçóes com os tiatinos, que ele mesmo pode ter sido membro do oratório romano, foi Jacó Sadoleto (1477-1547), o erudito bispo de Carpcncras que renrou rrazer os genebrinos de volra para o aprisco carólico romano e a quem Calvino endereçou sua famosa Réplica (ver VI:8). Outras duas ordens de clérigos regulares foram estabelecidas na Itália por volta da mesma época que os tiatinos: os "Clérigos Regulares de Sáo Paulo", fundada em Miláo em 1533 por Santo Antônio Maria Zaccaria (m. 1539) e dois colaboradores, e conhecida popularmente como os barnabitas, pois possuíam a igreja de São Barnabé em Milão; e a ordem dos somasquis, fundada em 1532 em Somasca no norte da IsáIia por Sáo Girolamo Aemiliani (m. 1537). Os barnabitas e os somasquis, como os tiatinos, estavam movidos por motivos de sancificaçáo pessoal, reforma do oficio
sacerdotal e caridade ativa aos pobres e aflitos, especialmente as vítimas miseráveis das guerras no norte da Itália. As associações religiosas de mulheres também desempenharam um papel importante no reavivamenro católico. A principal destas foi um grupo de mulheres solteiras e algumas viúvas que se reuniam em Bréscia em 1535 sob a direçáo de Santa Ângela Merici (14742-1 540). Essas "Ursulinas", assim chamadas por causa de sua dedicaçáo à lendária Santa Úrsula, viviam em suas próprias casas e cultuavain em suas próprias igrejas paroquiais, mas comprometiam-se a liderar uma vida de abnegaçáo em obediência aos superiores e em arividades de caridade, sobretudo a educa-
v ~ i i n o ovi
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çáo religiosa de moças. O bispo de Bréscia aprovou a fundação em 1536, e ela logo espalhou-se por todo o norte da Itália, especialmente em Milão, e posteriormente na Fran~a.Embora Ângela pretendesse que sua fundacão fosse uma associação leiga sem votos monásricos e clausura, a companhia gradualmente rransformou-se em uma ordem completa. Comecaram a usar hábiros em 1546; os votos simples e a vida comunitária foram introduzidos em 1572; e em 1612 as ursulinas de Paris passaram a praticar clausura estrita e realizar x70tos solenes segundo a regra modificada de Santo Agostinho. Os conventos ursulinos se multip~icaramrapidamente, especialmente na França e n o Canadá, e alcançaram proeminência na educaçáo de moças. Entre os membros mais famosos da ordem estava Maria Guyard ("Maria da Encarna~áo",1599-1672), uma mística notável que fundou o convento em Québec em 1639.
A mais importante dessas novas ordens religiosas fundadas na Itália no século dezesseis, e atrás apenas dos jesuítas em termos de influência, foi a dos capuchinhos
(Capuccini, assim chamados por causa de seu distinro hábito rústico com um capuz de quatro pontas, ou capuccio). A ordem foi fundada entre 1525 e 1528 (quando ela recebeu autorizaçáo papal) por Mateus de Bascio (149j?-1552) e crês companheiros - os irmáos Ludovico e Rafael de Fossombrone e Pauio de Chioggia. Todos os quatro
eram franciscanos observantes que queriam retornar à letra da regra original de Sáo Francisco (ver V:4).Daí, eles se comprometeram com a pobreza absoluta, com a mortificaçáo física extrema, com uma vida de oraçáo ordenada, com a pregação itinerante de caráter moral e evangélico simples e com obras de caridade entre os doentes e os pobres. Mateus foi o primeiro a decidir e a assumir esse tipo de vida, enquanto que Ludovico foi o organizador do movimento. Apesar da oposiçáo dos temiam a perda de seus memsuperiores dos observantes, que c~m~reensiveimente bros mais dedicados, os capuchinhos alcançaram uma organização separada e experimentaram u m crescimento fenomenal. Já eram cerca de setecentos por volta de 1535 e ao redor de dois mil e quinhentos em 1550. Depois de 1572, quando foram permitidos estabelecimentos fora da Itália, a ordem rapidamente experimentou uma expansáo mundial. Estas forças de renovaçáo religiosa emanando principalmente da Itália e da Espanha alcançaram um controle significativo do papado pela primeira vez durante o pontificado de Paulo I11 (1 534-1 549), embora Adriano VI (1 522-1 523) tenha exibido
um zelo verdadeiro, embora ineficaz, por reforma durante seu breve e infeliz reina-
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do. Em contraste, nem Leão X (1513-1521) nem Clemente VI1 (1523-1534) perceberam a gravidade da situaçáo, e ambos revelaram-se incapazes de colocar suas responsabilidades como lideres da igreja acima de suas ambições políticas e preocupaçóes dinásticas como príncipes italianos. Paulo 111, entretanto, embora não isento de crítica por causa de lapsos morais antes de assumir as ordens sacerdorais e por utilizar seu cargo para enriquecer os membros de sua família, esteve muito mais alerta do que seus predecessores para os perigos que ameaçavam a igreja interior e exteriormente. Logo no início de seu pontificado ele nomeou alguns reformadores sinceros para o colégio de cardeais. Entre estes estavam Contarini, Caraffa, Sadoleto e Pole; subseqüentemente, Cortese rarnbém foi elevado, embora Giberti tenha recusado a honra. Em 1536, atendendo ao pedido de Conrarini, Paulo I11 nomeou todas estas pessoas, mais outros três, para uma comissão responsável pela apresentaçáo de reformas em preparaçáo para um concílio geral da igreja. Em 1537 a comissáo submeteu
seu relatório claro e direto, o Consilium de emendanda ecclesia, que idenrificava a venalidade dos papas e dos cardeais como a principal causa de deserção na igreja, Paulo 111 adotou algumas das propostas do relatório visando a eliminar os abusos mais sérios na Ciiria. Ao passo que Caraffa era um homem de devoçáo inflexível ao dogma medieval, Contarini e Pole tinham considerável simpatia pela doutrina da jusrifica~áode Lutero, assim como Girolamo Seripando (1492-1563), o superior geral dos frades agostinianos. Náo obstante, esres homens, cujas idéias sobre justificação foram no final rejeitadas no concilio de Trenro, escavam muiro distantes de idéias verdadeiramente protestantes. Enrretanto, havia um número considerável de pessoas na Itália principalmente membros de ordens religiosas, mulheres aristocráticas e humanistas de origem clerical - cujas simpatias os levavam bem mais longe. Eram particularmente numerosos em Veneza, onde foi impressa em 1530 a tradu~áoitaliana do Novo Testamento realizada por Antônio Bruccioli, e dois anos depois toda a Bíblia. Já foi mencionada, em relacáo a Calvino, a hospitaiidade de Ferrara sob a duquesa
Renata (ver Vl:8). O mais imporranre desses grupos era o que se reunia em Nápoles, ao redor de Joáo Valdés (I 500?-1541), individuo natural de Castela e humanista erasmiano que fora para Roma em 1529 a serviço de Carlos V e se estabelecera permanentemente em Nápoles em 1534. Embora tenha rnorrido como católico devoto, Valdés enfatizava a autoridade exclusiva da Escritura e dos pais da igreja, e cultivava uma piedade interior, mímica, que náo atribuía nenhuma importância es-
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sencial aos ritos e sacramentos da igreja. Seu discípulo, Benedito de Mântua, escreveu por voIta de 1540 Os Beneficias da Morte de Cristo, o mais popular dos livros procedentes deste círculo. Entre os amigos de Vddés encontrava-se Pedro Marrire Vermigli (Pedro Mjrtir,
1500-15621, prior do mosteiro de São Pedro, em Nápoles - cujo pai fora admirador de Savonarola - e destinado a ser professor de teologia protestante em Estrasburgo e Oxford. Também Bernardino Ochino (1487-1564), o pregador mais proeminente na Itália de sua época, vigário geral da ordem dos capuchinhos de 1538 a 1541, mais tarde prebendário protestante de Cantuária, pastor em Zurique e, por fim, forcado a se tornar andarilho em virtude de suas idéias excêntricas, morrendo entre os anabatistas na Morávia. (A apostasia de Ochino em 1542 quase provocou a desrruiçáo da ordem dos captichinhos.) Outro amigo desse grupo era um sobrinho de Caraffa, Galeazzo Caraccioli, marques de Vico, que mais tarde seria í n ~ i m ocolaborador de Caivino em Genebra. Esses evangélicos italianos estavam, porém, desorganizados e sem auxílio dos príncipes, exceto o mui cauteloso apoio que lhes era dispensado em Ferrara. Também não consegúiram muitos seguidores entre o povo comum. Eram uma planta exótica na Itália, e o mesmo pode se dizer dos poucos protestantes que havia na
Espanha. O papa Paulo 111 vacilou durante algum tempo entre o método conciliatório advogado por Conrarini, que participou das reunióes de Ratisbona (ver W:5) conio legado papal; e o de Caraffa, que pedia severa repressão das divergências doutrinárias e defendia reforma moral e administrativa. Finalmente se decidiu por este, e sua
decisão passou a ser política de todos os seus sucessores. Ante o apelo urgente de Caraffa, em 21 de julho de 1542 Paulo III reorganizou a Inquisiçáo romana, seguindo priticipalmence o modelo espanhol, e essendeu sua autoridade a toda a cristanda-
de. No entanto, seu estabelerirnenro concreto, obviamente, se deu somente onde recebeu apoio de autoridades civis amigas. Por causa dela, rapidamente desapareceu o incipiente protestantismo italiano. Assim foi forjada uma das principais armas da Contra-Reforma. Muito mais importante foi o despertamento do zelo missionário com que o gênio da Espanha conrribuiu para inflamar o enrusiasrno católico. Sob qualquer ponto de vista cor11 quc seja encarado, Santo Itiácio de Loyola (1491- 1556) é um dos pri~icipais vultos da época da Reforma. Ifiigo de Ofiez g. Loyola nasceu de família de nobres cavaleiros no norte da Espanha. Depois de servir como escudeiro na corte do
rei Fernando, fez-se soldado. Demonstrou sua intrepidez quando Pamplona foi sitiada pelos franceses, em 1521. Mas durante o cerco foi ferido gravemente nas pernas e isso o incapacitou para o serviqo militar. Durante seu lento restabelecimento leu as traduqóes espanholas das vidas dos santos e da Vida de Cristo,de Lodolfo, o cartuxo (ver V:2). Ele decidiu que seria cavaleiro de Cristo e da Virgem. Em 1522, após se recuperar, até certo ponto, peregrinou para o satituário mariano em Montserrat, depôs suas armas sobre o altar da Virgem e trocou suas vestes de cavalaria pelas de um mendigo. De lá seguiu para a cidade vizinha de Manresa, onde permaneceu por quase um ano (março de 1522 a fevereiro de 1523). Ali refletiu sobre A Imitaçúo de
Cristo de Tomás de Kempis, submeteu-se às penitências mais severas e experimentou uma série de arrebatamentos e visões extraordinários. Inácio escreveu, ainda sob a impressáo imediata de suas experiências místicas em Manresa, o primeiro rascunho de seus Exercicios Espirituair, um livro notável que atingiria sua forma final em Roma em 1541. (0[exco latino do original espanhol foi publicado pela primeira vez em Roma em 1548.) Esse não é um livro destinado à leitura para edifica~áoreligiosa mas para ser utilizado experimentalmente sob a liderança de um diretor espiritual, tal uso culmina~idoem um aro voluntário, a saber, a escolha de uma nova forma de vida.
E, portanto,
uma obra projetada para guiar as
pessoas à realizaçáo de seu destino eterno sob a vontade de Deus. No interesse da salvacáo de suas almas e para a glória de Deus, elas são levadas a fazer uma escolha deliberada a favor de Cristo, abandonar seus pecados e assumir uma atitude de "santo desinteresse" para com esre mundo para poderem utilizar todos os bens deste mundo para a glorificaqáo de Deus. Resumindo, o cristão é levado a se submeter inteiramente a Deus e a se tornar membro totalrnenre disciplinado da igreja, pronto a servi-la obedientemente. Assim, na espiritualidade de Inácio, a obediência ao sofrimento de Cristo e à sua igreja (hierárquica) ocupa o lugar central que a fé na misericiirdia não merecida de Deus para a glória do Cristo crucificado ocupa na religiáo de Lutero. Aqui pode ser visto um ponto relevante de conrraste entre as Reformas católica e protestante.
Em 1523 Inácio foi como peregrino a Jerusalém, disposto a servir a Cristo como missionário entre os muçulmanos, mas os franciscanos residentes, aos quais ele tentou se juntar, consideraram-no perigoso e o enviaram de regresso. Convencido de que para fazer a obra que desejava era necessário instrução, Inácio ingressou numa classe de rapazes em BarceIona (1525) e logo prosseguiu para as universidades de
Ncalá (1 526-1527) e Salamanca (1527). Sendo um líder naco, reuniu companheiros com as mesmas idiias e com eles praticou seus "exercícios". Isto suscitou suspeitas por parte da Inquisiçáo espanhola e ele passou um tempo na prisáo. Em 1528 ingressou no Collège de Montaigu, na universidade de Paris, justamente quando Calvino o deixava. Ali náo fez nenhuma demonstraçáo pública, mas congregou ao seu redor um punhado de amigos e discípulos dedicados - Pedro Lefèvre, Francisco Xavier, Diogo Lainez, Alfonso Salmerón, Nicolau Bobadilla e Simão Rodriguez. Em 15 de agosto de 1534, em uma pequena capela em Montmartre, Paris, estes companheiros fizeram voto de ir pregar em Jerusalém para a conversáo dos turcos, ou, não sendo isto possível, colocarem-se totalmente à disposiçáo do papa. Logo se junraram a eles outros três recrutas: Claúdio Le Ja>: Pascoal Broee e Joáo Codure. Em 1537, após completarem seus estudos, os dez companheiros se reuniram em Veneza para cumprir seu voto, mas Jerusalém estava isolada pela guerra e por isso resolveram se oferecer ao papa. No inicio de 1539 Inácio os convocou a Roma, e em junho consorciaram-se em uma "Companhia de Jesus", visando a servir como professores de crianças e analfabetos, como pregadores populares, como capeláes nos hospitais e como líderes de missóes ou retiros. Além de seus votos de castidade e pobreza, já feitos em Montmartre, eles fariam voto de obediência ao papa, para irem onde quer que ele os enviasse. (Não se deve pensar que a companhia foi fundada especificamente para combater o protes~antisino,embora na década de 1550 esta tenha se tornado uma de suas tarefas principais. A visáo de Inicio estava originalmente voltada para o mundo m ~ ~ u l m a neoXavier , já estava contemplando o trabalho nas Índias). Mesmo com a oposiçáo eclesiástica, Paulo I11 foi levado pela acitude favorável de Contarini e a habilidade de Inácio a autorizar, em 27 de setembro de
1540, a Sociedade de Jesus, na bula Regzmini rnilit~zntirecclesiae. A consti~uiqáoda sociedade ainda estava indefinida, salvo que teria um líder a quem era devida total obediência e que trabalharia onde tal líder e o papa determinassem. Em abril de 1541 Inácio hi escolhido como o primeiro superior geral da ordem, funÇáo que desempenharia até sua morte em 31 de julho de 1556.
A constituiçáo dos jesuítas foi-se desenvolvendo aos poucos, sendo completada de fato somente após a morte de Inácio. Entretanto, suas linhas principais são devidas a ele. Na liderança está um superior geral vitalício, a quem é devida obediência absoluta; ele, por sua vez, é vigiado por quatro assistentes eleitos pela ordem e que podem depô-lo, se necessário. Sobre cada distrito há um provincial, nomeado pelo
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UISTÓRIA DA IGREJA CRISTh
superior geral. A admissão formal na sociedade requer um rigoroso noviciado de dois anos, seguido pelo "escolasricado", um período de extensão indefinida dedicado aos estudos nas humanidades, filosofia, teologia, etc. O escolástico faz os votos simples de pobreza, castidade e obediência; se aceito como membro da sociedade, é ordenado e então passa outro ano de preparação espiritual, conhecido como "terceiro noviciado" ou "terceiranato". Depois disso, ele é incorporado na sociedade ou como "coadjutor espirirual formado", para ser empregado em funçóes puramente espirituais, ou como membro totalmente confesso que assume solenemente os três voros tradicionais. Neste último caso, com o tempo poder-lhe-á ser permitido fazer um quarto voto, aquele de obediência direta ao papa. O grupo que governa a socie-
professas do quarto voto". Visando ao serviço pastora1 desimpedido, os jesuítas não estáo obrigados a horas fixas de culto ou trajes, dade é composto de todos os "pais
como os monges, e também náo estáo obrigados a nenhuma recitaçáo comum do ofício divino - uma ruptura revolucionária com a tradição moilásrica. Todo membro
é disciplinado pelo uso dos Exercicios Espiritzldts de Inácio. Solitário e em silêncio, interrompido apenas pela liturgia e pelas comur-iicaqóescom seu diretor, aquele que se está exercitando passa quatro semanas em rneditaçáo ordenada sobre os principais fatos da vida e obra de Cristo e sobre a guerra cristá contra o mal. O direcor, por sua vez, adapta a cécnica às necessidades e capacidades particulares daquele que se está exercitando.
Em resumo, a sociedade que Inácio construiu foi um instrumento maravilhoso, combinando o individualismo renascentista - cada indivíduo indicado e treinado para seu próprio trabaIho específico - com o sacrificio da vontade e completa obediência ao espírito e aos objetivos do todo.
A Sociedade de Jesus se espalhou rapidamente na Itália, Espanha e Portugal, atingindo cerca de mil membros quando da morte de Inácio. Teve, porém, dificuldades para se estabelecer na França e na Alemanha. Por volta da segunda metade do século dezesseis tornara-se a força individual mais poderosa no reavivamento católico e a guarda avançada da Contra-Reforma. Seus principais meios eram a pregação, o confessionário, suas ótimas escoias - não para o povo em geral, mas para os nobres e ricos
- e suas missões esrrangeiras. Sob a influência dos jesuítas, a confissão e a comunháo se tornaram mais frequentes nos países católicos. E, para auxiliar o confessionário, a prática moral jesuíta foi gradualmente se desenvolvendo, principalmente após a morte de Inácio, e de modo especial na primeira parte do século dezessete, numa forma que
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provocou críticas não apenas dos protesrantes mas também de muitos católicos (ver
VII:16). Naturalmente, sendo uma sociedade de caráter internacional, cujos membros estavam ligados a seus superiores por consranres relarórios e cartas, logo também se tornou uma força na vida política. Juntamente com a Companhia de Jesus, o concílio deTrento deve ser classificado como a agência primária da Contra-Reforma e Reforma católica. Esse concílio teve uma história bastante errática. Ansiosamente desejado por Carlos V e relutantemente convocado por Paulo 111, por fim se reuniu ernTrento em dezembro de 1545. Em março de 1547 a maioria italiana o transferiu para Bolonha, onde continuou a se reunir até setembro de 1549. Mas em maio de 155I retornou a Trento, onde a minoria espanhola permanecera por todo o tempo. Em 25 de abril de 1552 foi suspenso por causa do sucesso da revolta protestante chefiada por Moritz da Saxônia contra o imperador (ver VI:5). Só em janeiro de 1562 tornou a se reunir novamente e completou sua obra em 4 de dezembro de 1563. No cotal, o concilio realizou vinte e cinco sessões durante seus três períodos principais. No primeiro período (1545-
1547), quando foram tomadas as decisóes doutrinárias mais importantes, nunca houve mais do que setenta e dois votantes presentes; no último período (1562-1563), o número aumentara para mais de duzentos. O direito de votar esteve limirado aos bispos, aos superiores gerais das ordens e aos abades influentes. A votação foi por indivíduos, não (como no concílio de Constan~a)por na~óes.Em todas as vezes, portanto, a maioria escava nas mãos dos italianos e representava o desejo papal de que definiqóes dourrinárias precedessem as reformas. Por outro lado, os bispos espanhóis, igualmente ortodoxos na fé, apoiaram vigorosamente o desejo do imperador de que as reformas viessem antes que a doutrina. Finalmente concordou-se que doutrina e reforma seriam discutidas simultaneamente, mas rodas as decisóes teriam que ter a aprovaçáo do papa, fortalecendo assim a supremacia papal na igreja. Voz nenhuma teve mais influência no concílio do que as dos peritos teológicos do papa, os jesuítas Diogo Lainez (15 12-1565) e Alfonso Salmerón (I5 15-1585), e a influência deles apoiou firmemente o espíriro antiprotesrante, Os decretos doutrinários do concílio de Trento foram claros e definidos em sua rejeiçáo das crenças protestantes - pelo menos naquilo que assumiam ser a posiçáo protestante - ainda que frequentemente se mostrassem indecisos em relação a temas de discussáo nas controvérsias medievais. A ju~tifica~áo não é pela fé somente, assim declarou o concílio, mas pela fé formada por obras de caridade, e portanto a salvação
depende de u n a justiça adquirida, inerente, náo de uma justi~aimputada, forânea.
A Escritura e as tradi~óes"apostblicas" sáo igualmente fontes de verdade divina e devem ser recebidas com igual reverência. Apenas a igreja tem o direito de determinar o verdadeiro sentido e a correra interpretação da Escritura. A Vulgata Latina é o texto sagrado e canônico. Os sacramencos são sete e não dois (ou três). O sacramento da penitência envolve obras de sa~isfa~áo, como também contrição e confissão, e implica o poder da igreja de conceder indulgências. A missa envolve a rransubscanciaçáo dos elementos consagrados, é um sacrifício propiciatório verdadeiro que re-presenta de uma maneira não sangrenta O auto-oferecimento de Crisro no altar da cruz, e beneficia náo apenas os fiéis vivos mas também as almas dos fiéis que partiram no purgatório; daí, é recomendada a prática de "missas privadas". O cálice náo deve ser oferecido aos leigos, e o larim deve permanecer como a lingua
li túrgica. Nestes e noutros decretos assemelhados, o concílio fechou totalmente a porta, em rodos os aspecros, para qualquer acordo ou modificacão da doutrina medieval e rejeitou todas as
doutrinas protestantes por completo. A pesquisa erudita
mais recente tem demonstrado, entreranto, que os decretos tridentinos foram cuidadosa e cautelosamente formulados, não foram tão insistentemente hostis ao protestantismo como por logo tempo se acreditou, e estão abertos a interpretações que tornam possível o diáiogo ecumênico e a aproximagáo teolbgica. Em seu concexco imediato, entretanto, eles foram vistos como barrando qualquer possibilidade de re~oncilia~áo entre os dois grandes campos confessionais. Embora as reformas efetuadas em Trento estivessem longe de satisfazer os desejos de muicos na igreja romana, elas estabeleceram uma base sólida para a renovacáo do ofício pastoral da igreja e, com isso, de sua vida espiritual. A principai dessas reformas foi a restaura~áoaos bispos de poderes efetivos de supervisão em suas sés, como também a clara delimitação de suas responsabilidades pastorais. Desse momento em diante, o bispo seria "delegado da Sé Apostólica" em sua prdpria diocese, possuiria (pelo menos em teoria) suficiente autoridade para prevalecer sobre aquelas numerosas isencóes do controle episcopal que foram a ruína da igreja medieval e para limitar o poder excessivo até entáo exercido pela Cúria, legados e núiicios. Essa autoridade seria reforçada pela realizacão de sínodos provínciais regulares e de visitas paroquiais anuais. Ademais, os bispos ficaram obrigados a pregar regularmente e a residirem em suas sés, e impedidos de possuir mais de um bispado. O clero paroquial, da mesma
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forma, deveria ensinar claramente o que é necessário para a salvaçáo e ser modelo de dedicados pastores de almas. Para essa finalidade, o concílio, naquilo que foi talvez seu cânone mais importante, ordenou a criaçáo de seminários - "sernen~eirasperpétuas de ministros para o culto a Deus". O bispo de toda diocese onde não houvesse universidade deveria fundar um desses seminários para o preparo de clérigos dignos.
Além de sancionar legisjaçáo reforrnadora para as ordens religiosas e emitir regulamentos para evitar casamentos clandestinos, o concílio também aprovou um catálogo de livros proibidos, que seria ~ r e ~ a r a dpelo o papa, seguindo o exemplo deixado por Paulo TV em 1557. Resultou dessa última açáo, a criagáo em Roma em 1571, por Pio V (1566-1572), da Congregaçáo do Índex, para a censura de publicaçóes.
A melhor defesa da posição romana até encáo, o De locis tbeolugiris libriXi(, foi fruto de Melquior Cano (1509-1 560), influente teólogo dominicano espanhol em Trento. A teologia, ensinou ele nessa obra publicada três anos após sua morte, está baseada na autoridade. A autoridade da Escritura repousa no poder da igreja de depurar e aprovar, o qual determina o que é e o que não é Escritura. Mas como a doutrina cristã não está, de forma alguma, contida em sua totalidade na Escritura, a tradiçáo, transmitida e depurada pela igreja,
t outra fonte autorizada. Cano fora
pupilo e posteriormente sucessor de Francisco de Vitória (1485?-1546)na universidade de Salarnanca. Ele era, assim, um dos principais representantes do "novo escolasticismo", iniciado por Vitória, que fez da Sumina theoiugiae deTomás de Aquino o texto teológico básico, ao invés das Sentenças de Pedro Lombardo, e que se empenhou em purificar a teologia moral e dogmática de todos elementos altamente especutativos e fundamentá-la exclusivan~entena Escritura e nos pais da igreja.
O resultado de todas estas influências foi que por volta de 1565 estava reavivado um catolicismo diligente e vigoroso em todos os níveis da vida da igreja, principalmente nos mais elevados. Os papas eram agora predominantemente homens de vida estrita e zelo reformador, enquanto a própria Roma se tornou uma cidade mais séria, muito mais eclesiástica que na época da Renascenca. Estava muito difundido um novo espírito, tenaz em sua oposiçáo ao prorestanrismo, profundameilte conservador em sua teologia, mas comprometido com reformas administrativas amplas e pronto a lutar ou sofrer por sua fé.Ante este zelo renovado, o protestantismo dém de parar de fazer novos
avances teve suas conquistas na Renânia e no sul da Alemanha
deveras abaladas. O catolicismo começou a ter esperancas de reconquistar tudo o que perdera.
A recuperação católica de um sentimento de segurança ficou especialmente evidente, ao nível da erudição, nos escritos do gande debatedor jesuíta natural da Toscana, Robcrto Belarmino (São Roberto Belarmino, 1542-1621). Ele se uniu aos jesuítas em 1560, tornou-se professor no colégio romano jesuíta em 1576 e foi eleito cardeal em 1597. Sua obra Debates Contra os Hereges de Nossa Época (3 volumes, 1586-1593) foi de longe a defesa mais impressiva do catolicismo tridentino contra a Reforma protestante em termos históricos e racionais. Um defensor igualmente famoso da legitimidade histórica do ca~olicismoromano foi César Barônio (15381607), membro e posteriormente superior geral do oratório romano de São Filipe de Néri (ver abaixo), eleito cardeal em 1596 e bibliotecário do Vaticano no ano seguinte. Sua obra, Annales Ecclesidstici (12 volumes, 1588-1607), foi dirigida especificamente contra a Historia Ecrlesiae Christi (13 volumes, 1559-1574), preparada pelo teólogo luterano Matias Flacius Illyricus (1520-1575) e seis colaboradores e conhecida como as Centlirias de Magdeburgo, porque cada volume cobria um século de história da igreja. Estas duas obras monumentais eram preconceiruosas e estavam pobremen~edispostas; porém o acesso de Barônio aos arquivos do Vaticano capacitou-o a apresentar material muito mais novo e expor as muitas imprecisóes dos centuriões de Magdeburgo, particularmenre seu manuseio de textos originais.
O tema persistente corrente por toda a Reforma Católica foi a busca por um clero mais digno. Esse objetivo inspirara Caetano de Thiene e os tiatinos no início do século dezesseis, e não era menos central na obra de Filipe de Néri (Sáo Filipe de Néri, 1515-1 595) e seus "oratorianos" no final do século. Natural de Florença, educado pelos dominicanos no convento de São Marcos, onde a memória de Savonarola ainda vivia (ver V:15), Néri foi para Roma em 1533 e logo dedicava-se a vigílias solitárias de oraçáo e obras de caridade em favor dos peregrinos e convalescentes. Ele foi ordenado ao sacerdócio em 155 1 e sua ulterior atividade como confessor e líder de exercícios vespertinos regulares em oraçáo, conhecidos como "oratórios", rapidamente lhe conquistou reputação popular como o "apósrolo de Roma". A Congregaçáo do Oratório (oratorianos) surgiu dessas atividades. Era uma ordem de sacerdotes seculares, vivendo em comunidade sem votos, que o papa Gregório XiII (15721585) aprovou formalmente em 1575. Os oratorianos procuravam conduzir as pessoas a Deus mediante oraçáo, cultos de pregaçáo, confessionário e, náo menos, atrações de boa música. O "oratório" do século seguinte desenvolveu-se dos cânticos (laudi virituali) efetuados nos exercícios devocionais dos oratorianos. O composi-
rtnronn vi
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tor de miliros desses cânricos, e o refo~rnadorda miísica eclesiásrica católica, Joáo Palestrina (1525?-1594),foi ele próprio um dos penitentes de Néri.
Em 1611 foi estabelecida em Paris por Pedro de Bérulle (1575-1629) a congregacáo francesa dos oratorianos, e logo ela se espalhou por toda a França e Holanda. Enquanto o oratório romano de Filipe Néri era constituído de casas independentes, o oratório francês de Bérulle - aprovado oficialmente pelo papa Paulo V (1605-
1621) em 1613 sob o nome "Oratória de Jesus Cris~o"- tinha uma organizaçáo centralizada governada por um superior geral. O oratório dedicava-se especialmente ao treinamento de sacerdotes nos seminários fundados de acordo com a legislaçáo tridentina. O próprio Bérulle ficou mais conhecido por sua ardente devoção à natureza Iiuniana iie Jesus, a Cristo enquanto Deus eticarriado, revelada em sma obra mais famosa, As Grandem-r deJe-mu (1 623).
O reavivamento católico caracterizou-se ainda mais por um novo florescimento de piedade mística, no qual, como em muitas outras coisas, a Espanha esteve à frente. A feiçáo principal dessa espiritualidade era um quiecismo de auto-renúncia - uma elevaçáo da alma em coiltempIa~áoe ora550 silenciosa a Deus - até que se concluísse
que fora aIcancada uma uniáo no amor divino, o u no êxtase de uma revelacáo interior. A oraçáo é possível apenas na base da auto-renúncia, esquecimento total do eu, pois Deus somente pode encher a alma que se esvaziou de tudo o que é criado. Os principais representantes dessa piedade foram Teresa de Jesus de AviIa (Santa Teresa,
I 5 15-1 582) e seu discípulo, Joáo da Cruz de Fontiveras (Sáo Joáo da Cruz, 15421591). Teresa deixou uma desci-icáo abrangerite, embora desconexa, da vida de .oraçáo em O CfimPnhoda Pe$~i~Jo(1565) e O CasteIo Izterjor (1577), enquanto que as obras líricas de João da Cruz - A Subida do Monte Carmelo, A Noite Tenebrosa da Alma, O Cântico do EspÉ~ito,A Chama Viva do Amor - fornecem uma afirmação integrada da totalidade da doutrina mística e são obras-primas literárias. (Suas obras foram primeiramente publicadas em 1618, na forma de uma edicáo resumida, em
,Qlcdá; uma ediçáo crítica do texto autêntico foi pblicada em 19 12-19 14.) Esses dois grandes místicos espanhóis uniram a vida contemplativa com a ativa. Deve-se a eles o aprofundarnento da reforma da ordem carmelita na Espanha, ou seja, o estabelecimento de numerosas casas de carmelitas descalços, frades e freiras totalmente comprometidos com os rigores ascéticos de sua regra original (ver V:4).
A disserninacáo do misricismo teresino deveu-se principalmente a Pedro de Bérulle, mas também a Francisco de Sales (Sáo Francisco de Sales, I567-1622), nominal-
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HISTflRIA DA IGREJA CRISTÁ
mente bispo de Genebra desde 1602, a cujos esforços sáo devidas as conquistas de partes da Sabóia próximas a Genebra, e sua discípula, Joana Franpise Frémiot de Chantal (Santa Joana de Chantal, 1572-1641). A celebrada obra de Francisco de Sales, Introduçúo à Vida Devota (1609), levava a vida contemplativa para fora do convento e, baseada em uma noçáo otimista dos poderes da vontade humana, afirmava que a
religiosa não está menos ao alcance da pessoa leiga ordinária do
que ao monge e à freira. Ali estava uma nova ênfase bem distinta na piedade católica, ou seja, que a vida de devoqão é algo relativamente fácil, desde que nutrida pelos sacramentos, especialmente pela comunháo frequente, e conduzida por um diretor espiritual competente. Em 1610 Francisco de Sales e Joana de Chantal fundaram em Annency a Ordem da Visitaçáo (também conhecida como visicandinas ou irmás salesianas). Era originalmente uma congregação de mulheres contemplativas engajadas na visitaqáo aos doenres e aos pobres; mas em 1618 tornou-se uma ordem religiosa formalmente constituída com votos solenes, dedicada à educação de meninas.
O zelo católico também se revelou, com resultados significativos, nas obras das missões no estrangeiro. Estas foram principalmente empresas das ordens mendicantes, de modo especial os dominicanos e os franciscanos, com quem a Sociedade de Jesus partilhou zelosamente os labores desde o momento de sua fundaçáo. A cristianizaçáo da ArnCrica do Sul, da Central, de grandes porqóes da do Norte e rambém das Filipinas é devida a essas ordens. O mais famoso desses missioilários foi o antigo companheiro de Inácio, Francisco Xavier (Sáo Francisco Xavier, 1506-1552). Nomeado missionário para
3
fndia
Portugal, embarcou em Lisboa em
elo próprio Inácio, a pedido do rei João I11 de 7 de abril de
1541, chegou em Goa em maio de
1542 e iniciou uma carreira de vigorosa atividade. Fazendo Goa sua base de operações, ele pregou no sul da Índia, Malaia e nas Molucas. Em 1549 penemou no Japáo e começou uma obra que estava alcançando grandes proporcões quando as autoridades do país severamente a reprimiram, em 1614. Xavier morreu eni I. 552, justamente quando ia entrar na China. Sua obra foi mais exploradora do que formadora, mas
ele abriu muiras portas e seu exemplo foi de contagiosa influência e de longo alcance.
A obra que Xavier pretendera fazer na China foi iniciada em 1583 pelo jesuíra Maeeus Ricci (1 552-1610). Entretan~o,seu desejo de ser "tudo para com todos" levou-o a transigir com o culro dos antepassados, um afrouxamento ao qual os missionários de outras ordens católicas, especialmente os dominicanos, se opuseram
vigorosameiite. Na Índia, os primeiros conversas eram quase inteiramente dentre os sem castas ou dentre as castas inferiores. O jesuíta Roberto de Nobili (1577-1656) deu início em 1606 em Madura a um trabalho visando as casras superiores, reconhecendo as distinçóes entre as castas e dessa forma se acomodando ao sistema social indiano. Foi grande seu êxito aparente, mas seus métodos suscitaram uma torrente
de críticas e, por fim, foram proibidos pelo papado em 1744 (embora em 1623 Roma tenha se recusado a condenar Nobili). Provavelmente a mais famosa experiência das missões dos jesuítas tenha sido no Paraguai, onde iniciaram sua obra em
1583. Em 1610 começaram a reunir os nativos em "reduções", ou aldeias, todas construídas da mesma forma, onde os moradores eram mantidos em paz e aprendiam os elementos da religião e as artes industriais, mas eram conservados numa estrita dependência semi-infantil dos missionários. O sistema ruiu com a expulsáo dos jesuítas em 1767, e deixou poucos resultados permanentes. As rivalidades entre as diversas ordens r a vontade de supervisionar mais efeciva-
menre os esforços missionários, levaram o papa Gregório XV (162 1- 1623) a fundar em 1622 a Cong~~gutLo de (ZropdgundaFide. Através deia todo o campo de atividade missionária poderia ser inspecionado e supervisionado por Roma.
Disputas Confessionais na França, nos Paises Baixos e na Inglaterra As rivalidades dinásticas entre a Franca e a Espanha, com suas conseqüências políticas e militares, possibilitaram o desenvoIvimento da Reforma e facilitaram a divisão da Alemanha entre luteranos e católicos exarada em 1555, na paz de Augsburgo - um acordo precário no qual calvinistas (e anabaiistas) não tiveram lugar. Henrique
I1 (1547- 1559) sucedera a Francisco I na França e Carlos V cransfeerira para seu fillio Frlipe II (1556-1598) a soberania sobre a Esyanha, Países Baixos e os territórios espanhóis na Itilia e no Novo Mundo. Conrinuaia, porém, a velha rivalidade. No início Filipe alcançou na guerra mais êxito que seu pai, e suas virórias em Sr.-Quenrin,
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HISTbRIA D I IGREJA CRISTA
em agosto de 1557, e em Gravelines, em julho de 1558, obrigaram a França a assinar o tratado de Cateau-Cambrésis, em 2 de abril de 1559. Esse tratado foi um dos eventos mais importantes na história da Europa. A França desistiu da longa luta pela hegemonia na Itdia e experimentou um declínio agudo em seu destino mediante décadas de contendas civis e guerras religiosas. A Espanha tornou-se a primeira potência na Europa e foi amplamente capaz de induzir a França, debilitada e dilacerada pela guerra, a acompanha-la, ou pejo menos a náo se opor a seus interesses. Embora as seculares disputas dinásticas entre Habsburgos e VaIois tenham diminuído após 1559, a Europa não desfrutou de tranqüilidade. Pelo contrário, as relacóes internacionais foram novamente exacerbadas por disputa e divisões confessionais, sobretudo pelo feroz conflieo entre o calvinismo militante e o catolicismo reavivado.
O ano de 1559 restemunhou a fundação da Academia Genebrina (ver VI:8), da qual seriam enviadas centenas de dedicados ministros e evangelistas para toda a Europa, sobretudo para a França e os Países Baixos. Assim, Genebra sob Calvino e Beza tornou-se o centro de uma missáo protestante internacional, visando a conquis~aros povos ainda "náo convertidos" da Europa para a fé reformada afastando-os do "papismo" e da "idolatria". O protestantismo militante se via confrontado, porém, por um catoiicismo muito mais unido e poderoso do que o fora em qualquer tempo.
O líder desse catolicismo contra-reformado era Filipe 11, da Espanha. Homem austero, culto, metódico, trabalhador e infinitamente paciente, Filipe dirigiu todos os seus esforços para manter a ascendência hispano-habsburga na Europa e a soberania absoluta em seus territórios dinásticos. Unido em desconfortável alianca com o papado pós-tridentino, que se irritava sob sua inesca~áveldependência da monarquia espanhola, Filipe também se considerava indicado por Deus para extirpar a detestávef "heresia" protestante de seus territórios, para obstaculizar o avanço desta na França e para reseaurar a cris~andadccomo um todo à "verdadeira" fé católica. O s trinta anos seguintes, a era da "preponderância espanhola", seriam o período de maior perigo na história do nascente protestantismo. Talvez o momento em que o perigo chegou ao auge renha sido durante o ano de 1559, quando, após a morte de Henrique 11 no mês de julho, a coroa passou a Francisco I1 (1559-1560), cuja esposa era Maria, "rainha dos escoceses", e também pretendente ao rrono da Inglaterra. Mas mesmo o ardente catolicismo de Filipe não estava disposto a ver combinaqáo táo perigosa para a Espanha como a França, Escócia e Inglaterra sob um só par real. Daí, então, auxiliou Isabei a assegurar sua ascen-
p ~ n i o i ovi
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são ao trono.
A influência de Calvino penetrava cada vez mais na França, e os protestantes franceses ou "huguenotes", como ficaram conhecidos após 1552, se multiplicavam, apesar de severa perseguição. Em 1559 eram fortes o suficienre para reunir seu primeiro sínodo geral em Paris, no qual adotaram um credo fortemente calvinista preparado por Antônio de Ia Roche Chandieu e uma constituiçáo presbiteriana baseada nos princípios eclesiásticos de Calvino. No início da década de I560 havia por volta de duas mil congregações hupenotes e talvez cerca de um milhão e meio de seguidores (embora tais estimativas variem amplamente). A grande maioria provinha das classes dos artesáos e profissionais, principalmente nas vilas e cidades do sul da França. A vitalidade política apresentada peio partido residia em seus membros oriundos
da aristocracia, incluindo alguns dos nobres mais eminentes da regiáo. A morte de Henrique I1 e a ascensáo de Francisco I1 ao trono tornaram a família dos Guises, tios da nova rainha, todo-poderosa na corte. Os Guises eram da Lorena, e muitos nobres franceses os consideravam estrangeiros. Essa família, extremamente católica, tinha como líderes principais os dois irmáos, Carlos, "cardeal da Lorena", e chefe do clero francês como arcebispo de Rheims, e Francisco, duque de Guise e considerado o melhor soldado da França. Oposta a essa família estava a de Bourbon, a cuja frente estavam Antônio de Vendôme, "primeiro príncipe do sangue" e rei titular de Navarra, homem de espírito débil e vacilante, e seu irmão Luis, muito mais capaz, príncipe de Condé. A casa de Châtillon também era contrária aos Guises. Seu chefe era Gaspar de Coligny (15 19-1572), conhecido como almirante Coligny, homem íntegro e calvinista devoto.' Estes eminentes nobres, em grande parte, foram levados a abraçar o protestantismo por serem contrários à centralização do poder na monarquia. Assim, representavam a hostilidade da antiga nobreza feudal aos avanços reais sobre suas "liberdades" tradicionais. Estima-se que por volta de 1560 a metade dos nobres franceses tenham abandonado sua fidelidade a Roma. Seja como for, os interesses de muitos dos aristocratas franceses coincidiam com os dos humildes calvinistas da classe média no desejo de que as coisas mudassem de rumo, especialmente quando se intensificou a persegui~áoaos huguenotes sob o governo de Francisco 11, dominado pelos Guises. O primeiro passo para uma revoluçáo foi dado em
N.T. Coligny participou da expediiáo fraiicesa que tentou estabrlecer uma colônia na baía da Guanabara, em 1555. Os frailceses foram expuisos por Mem de Sá em 1564.
março de 1560, quando a mal planejada "Conspiração de Amboise" fracassou na tentativa de prender o jovem rei e entregar o governo aos Bourbons. Condé, que participara da trama, teria sido executado se Francisco I1 náo tivesse morrido a 5 de dezembro de 1 560.
A ascensáo de Carlos IX (1 560-1 574))irmáo do falecido rei, introduziu um novo partido na confusa luta. Os Guises perderam muito de seu poder na corte, mas ainda continuavam como os líderes dos interesses católicos na França, e iniciaram negocia ~ ó e secretas s com Filipe I1 da Espanha, clamando para que ele liderasse uma cruza-
da internacional contra o calvinismo. Essa perspectiva, que Filipe não poderia acalentar seriamente, foi suficiente para trazer o inconstante Antônio de Navarra de volta para o aprisco católico. Agora a principal influência sobre o novo soberano, que ainda não tinha onze anos de idade, era a de sua máe, Catarina de Médici (1 5191589). Hábil e inescrupulosa, sem qualquer paixão religiosa em particular, ela estava disposta a preservar a dinastia dos Valois, representada por seus três filhos sobreviventes. EIa estava determinada a evitar uma guerra civil sangrenta e a manter os direitos da coroa, mediante uma política de reconciliacão religiosa e política. Era auxiliada por um estadista de visáo ampla e conciliatória, Miguel de I'Hôpiral (1 507-
1573), que se tornara chanceler da França em 1560. Então Catarina procurou a reconciliaçáo das duas grandes facções da nobreza, libertou Condé da prisão, permiriu um debate público enrre teólogos católicos e prorestantes, em Poissy, em setembro de 156 1 - no qual Beza tomou parte imporrance. E logo em seguida, em janeiro de 1562, publicou um edito permitindo aos huguenoces liberdade para culto público fora das cidades muradas, e de culto privado dentro delas. O colóquio de Poissy e o Edito de Tolerância marcaram o nível mais aito da onda do protestantismo francês. Em vez de se submeter a essa política de moderacáo, o partido católico resolveu provocar a guerra. Em l 0de março de 1562 o duque de Guise, em seu caminho para Paris com suas tropas, permitiu que elas atacassem uma p n d e congregação huguenote em Vassy (uma vila murada na Champagne), ila hora do culto. Foram mortos ou feridos bem mais de cem huguenotes. Esse "Massacre em Vassy" foi seguido por três guerras sangrentas entre huguenotes e católicos - 1562-1563, 1567-1568 e 15681570 - com breves tréguas entre elas. Antônio de Navarra foi ferido c morreu (1562); o duque Francisco de Guise foi assassinado por um protestante (1563); e Condé foi capturado em batalha e imediatamente morto (1 569). Restou Coligny a frente da causa huguenote. No geral, os huguenotes se mantiveram firmes, e a inveja da influ-
~ t n i o i oul
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ência espanhola auxiliou a causa deles, tanto que em agosto de 1570 foi feita a paz de St.-Germain-en-Laye. Por ela foi dada liberdade de culto completa aos nobres, foram permitidos ao huguenotes do povo comum dois locais para culto em cada divisão governamental da Franca e foram cedidas para o controle huguenote, como garantia, quatro cidades fortificadas (La Rochelle, Cognac, Montauban e La Charité). O s huguenotes haviam se tornado, na realidade, um estado armado dentro do estado. Nessa altura, a situação na França se tornou muito complicada pelo curso dos acontecimencos nos Países Baixos. As origens das causas da agitaçáo naquela região eram muito mais políticas e econômicas que religiosas, ainda que na luta a religião fosse constantemente assumindo maior importância. Os Países Baixos, que Filipe 11 recebera em 1555 de Carlos V, seu pai, eram um grupo de dezessete províncias, ciosas de seus direitos locais, predominantemente mercantis e manufatureiras, e dispostas a reagir contra tudo que interferisse nos costumes estabelecidos ou que perturbasse o comércio. O luteranismo ali chegara logo em seu início, mas fora amplamente superado pelo anabatismo entre as camadas mais inferiores da popuIaçáo. Por volta de 1561, quando a confissáo belga foi esboçada por Guy de Brts, o calvinismo estava rapidamente fazendo conversos entre a classe média, especialmente nas vilas manufatureiras das provincias do sul (Artois, Hainault, Brabant, Flandres). A nobreza, entretanto, ainda náo fora alcançada, e em 1562 os calviniscas ainda eram uma pequena minoria da populaçáo. Carlos V, embora resistindo com tenacidade às incursões do protestantismo, respeitara amplamente os direitos e privilégios dos estamentos provinciais e da classe governante nos Países Baixos. Filipe 11 náo se portou assim. Ele resolveu estabelecer ali a mesma uniformidade política e religiosa que a da Espanha. Em 1559 ele nomeou como regente sua meia-irmá Margarida, duquesa de Parma (1522-15861, com um coriselho consultivo de três membros, entre os quais a figura domiiiantc era seu leal ministro, Antônio Perreirot, mais conhecido como cardeal GranveIle (1 5 17-1586). Esse conselho praticamente usurpou o poder do antigo Conselho de Estado, no qual participava a alta nobreza. Em 1560, Filipe conseguiu do papa a reconsticui~áototal da geografia eclesiástica dos Países Baixos, por meio da qual foram criadas onze novas dioceses e três novas arquidioceses. Esse arranjo libertou as dioceses (originariamente em número de quatro) dos Países Baixos da supervisáo estrangeira (pelos arcebispos de Reims e Colôiiia). Isso, no entanto, suscitou amarga oposiçáo, já que
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rodos os novos prelados foram nomeados por Filipe, enquanto que os nobres estavam acosrumados há muito tempo a colocar seus filhos mais jovens nesses oficios Iucrativos. Além disso, Filipe estava lançando mão de todas as forças, incluindo a Inquisição local, para esmagar a heresia - uma atitude que desagradou profundamente a populaçáo em geral, especialmente a classe mercantil, porquanto prejudicava o coínércio e fazia emigrar os trabalhadores. Daí, nobres e comerciantes ficarem deveras revoltados. O s principais dentre os oponentes a essas mudanças eram tr2s importantes nobres: os condes católicos de Egrnont e Hornes; e o maior de todos os magnatas dos Países Baixos, Guilherme de Nassau, príncipe de Orange (1533-1584), nascido luterano mas agora, pelomenos nominalmente, católico, e que viria a ser calvinista em 1573 e o herói da independência holandesa. Estes homens forçaram a demissão de GranveIle em 1564, e Filipe passou a ver neles o principal obstáculo a seus planos. Ao invés de conceder qualquer tolerância, exigiu a execuçáo dos decretos do concílio de Trento e puniçáo mais rigorosa da heresia. Nesse momenco, a nobreza menor, incluindo o irmão mais novo de Guilherme de Orange, Luís de Nassau (1538-1574), entrou em acáo. Eles redigiram uma petiçáo de protesto, pedindo mudança na poiítica relisiosa, e a apresentaram iregente em 5 de abril de 1566. O apelido zombcteiro de "Mendigos" (Ies Gucux), dado aos signatários nessa ocasiáo, logo tornou-se o nonie reverenciado do partido de oposicão. Nesse exato momento, ademais, a população se rebelou, impelida pelas más condições econômicas e pela fome. A pregaçáo calvinista foi ouvida abertamente nas vilas e cidades do sul, e no início de agosto de
1566, irrompcram tumultos iconoclastas. Dentro de seis scmanas haviam se espalhado por todo o país, e ceilcenas de igrejas foram saqueadas e destruidas. Tais excessos, normalmenrc realizados contra a vontade dos ministros calvinistas, ofenderam a opiniáo moderada e fizeram com que muitos dos nobres, tanro catúlicos como protesrantes, deixassem de se opor ao regime espanhol. Guilherme de Orange, incapaz
de maneer a unidade da frágil coalizáo de aristocratas e comuns, de católicos, calvinistas e luteranos, afastou-se para sua residência na Aiernanha, em abril de 1567. Mal se iniciara, a revolta parecia acabada. ~ M a r ~ a r i de d a Parrna estava novamente no conrrole, e a repressáo severa náo parecia nem necessiria nem recomendável. Porém, para Filipe, cais acoiltecimentos eram
uma rebelião política e religiosa intoleráve.ei. Entáo ele enviou seu brilhante mas brutal general Fernando ÁIvarez, o duque d'Alba (1508-1 i82),com um excelente exér-
PER~ODOYI
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cito espanhol com nove mil soldados. Alba chegou em Bruxelas em agosto de 1567 e imediatamente iniciou a "reconquista" dos Países Baixos. Margarida, que aconselhara rnoderaçáo, cedeu em favor de Parma no final do ano. Durante os seis anos de governo (1567-1573) de A b a , foram executados mais de mil "rebeldes", iricluindo Egmont e Horncs (em 5 de junho de 1568). Em maio de 1568 o exilado Guilherme
de Orange lançara uma invasáo dos Países Baixos a partir da Alemanha, mas foi facilmente repelido por A b a . Este, firmemente no controle, passou a introduzir, em 1569, um sistema de taxacão cxageradamente pesado, inclui~idoum imposto perrnanente de dez por cento sobre vendas e exportações. Esse imposto, que foi visto como levando os Países Baixos à ruína econômica, alienou completamente a classe mercantil. Assim, as medidas repressivas de Mba deram nova vida à causa naçionaiisra. Não obstarite, esse triunfo parecia completo; o país aparentenlente fora forcado i submissáo. A oposic;áo que apareceu veio dos "Mendigos do Mar", corsários nômades holandesa, flamengos e franceses que viiihaiii pilhando os navios espanhbis navegando para os Países Baixos desde 1568. Eles eram comandados nominalmente por Luís dc Nassau e receberam de Guilherme de Orange em 1570 status semilegal. Guilherme ainda estava na Aernariha tentando conseguir apoio dos príncipes protesranres. Até o início de 1572 os Mendigos da Mar tiveram refúgio incer~ogarantido nos portos ingleses.
Em abril de 1572 os Mendigos do Mar, tendo sido enviados das baías inglesas em março, atacaram e capturaram o porto sem defesas de Brill. Pouco tempo depois, capturaram Flusliing, e dentro de poucos meses as pro\rínci;w da Holanda e da Zclhndia estavam quase completamente sob seu controle, uma vez que foram auxiliados por militanres calvinistas e simparizantes orangiscas. O ressentimento provocado pelo reino de terror caiiibém ajudou a assegurar no mínimo o apoio passivo da populaçáo
em geral. Em julho as principais cidades da Holanda, Zeliindia, Frísia e Utrecht reconheceram Guilherme de Orange como seu s~adhold~i(vice-rei).As províncias do norce no geral estavam scm defesas, pois Xlba rerirara suas guarnições para o sul, onde Luís de Nassau e seus aliados estavam conduzindo a irnrasáo de Hainault com [ropas huguenotes da França, enquanto Guilherme de Orange estava avançando sobre Brabame a partir da Alemanha. No início de agosco de 1572 o rei Carlos IX da França estava preparado para enviar um exército de quinze mil homens contra o ameaçado Alba. O governo espanhol nos Países Baixos estava entáo no maior perigo. Desde a paz de Sr.-Germain em 1570, os huguenotes e os adversários da Espanha
na Franca trabalhavam para reviver a velha política que fazia da França rival em vez de aliada da Espanha. Foi planejada assistência imediata aos rebeldes neerlandeses, que seria recompensada pela cessáo de alguma p o r ~ á oterritorial. Ninguém foi mais favorável a isso que Coligny cuja influência sobre Carlos IX era muito grande. Para aumentar a reconciliaçáo dos partidos franceses, foi arranjado o casamento de Henrique de Navarra, filho protestante do falecido Antônio de Navarra e da rainha de Navarra, Joana d'Albret, calvinista dedicada, com a irmá de Carlos IX, Margarida de Valois. Nobres hupenotes e católicos e seus acompanhantes se reuniram para as bodas, em 18 de agosto de 1572, na fanaticamente católica Paris. Catarina de Médici passou a ver com crescente receio a influência entáo exercida por Coligny sobre seu filho, o rei. O que ela entáo fez provavelmenre foi motivado por ciúme macernal e, sobretudo, pelo temor de que a guerra com a Espanha para a q u d Coligny estava conduzindo o rei viesse a ser desastrosa para a coroa francesa. Aparentemente, o que ela queria no início era assassinar Coligny. Nisso contava com a total simpatia de Henrique, duque de Guise, filho do assassinado Francisco, que erroneamenIe acusava Coligny pelo assassinato do pai em 1563. Em 22 de agosto de 1572 falhou um atentado contra a vida de Coligny, deixando-o apenas ferido. Esse fracasso levou Catarina ao pânico, pois ela se inimizara com os huguenotes sem privá-Ios de seu líder. Assim ela e seus partidários opraram por uma chacina geral, para a qual o grupo de Guise e os fanáticos parisienses forneceram abundantes recursos. Em 24 de agosto, dia de Sáo Bartolomeu, a sangrenta tarefa começou. Coligiiy foi morto, e com ele um grande número de vítimas que tem sido avaliado diferentemente, mas alcançando no mínimo três mil em Paris e várias vezes esse número em toda a Franca. Henrique de Navarra salvou sua vida abjurando o protestantismo.
Em Madrid e Roma a notícia foi recebida com regozijo. A causa católica fora salva de grande perigo. A política francesa fora revertida. 0 s planos de intervençáo militar nos Países Baixos foram eliminados. Porém, Cararina e os catúlicos militantes náo obtiveram nenhuma vantagem na F r a n ~ apois , a retomada da guerra civil era o resultado previsível dos acontecimentos de agosto de 1572. A quarra, quinta, sexta e sétima guerra huguenote (1572-1573, 1574-1 576, 1577 e 1580) seguiram sua trajetória de destruição e miséria, mas os huguenotes não Foram suprimidos. Carlos IX morreu em 1574 e foi sucedido por seu perverso e indeciso irmão, Henrique I11 (1574-1589). Escava se desenvolvendo uma divisão entre os próprios católicos. Desde muito havia pessoas, ainda que de religião católica, que sentiam
raloio ui
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escarem as prolongadas guerras arruinando o país e fomentando intrigas estrangeiras, especialmente por pane da Espanha. Esse grupo, conhecido como os Politiques, criam que devia ser alcançado algum tipo de paz com os huguenotes, de fato, que a religiáo em primeiro isso era inevitável. Por outro lado, havia os que coloca~~am
plano, e estavam dispostos aver a França ~ransformadaem mero apêndice da Espanha, desde que o catolicismo triunfasse. Esses, desde algum tempo, vinham organizando associaçóes em várias partes do país para sustentarem a igreja romana. Em 1576 todas elas foram agrupadas numa Liga Católica (ou "Uniáo Sacra"), encabeçada por Henrique de Guise e apoiada pela Espanha e pelo papa. A formacáo da Liga ernpursou os PoLitiqu~scada vez mais para Lima aliança com os huguenores, os quais encontraram seu líder político em Hcnrique de Navarra, que rctornara à sua fé prorescance em 1576.
A chacina de Sáo Bartolomeu salvou Alba e fez Guilherme de Orange perder a esperança de pronta expulsáo da Espanha dos Países Baixos. Os dois anos que se seguiram foram de intensa luta, na
GuiIherme foi a alma da oposiçáo. A princí-
pio, o comando de Alba pareceu invencível. Mons, Mechlin, Zutphen, Naarden e Haarlem caíram todas ante as forças espanholas, mas náo puderam tomar Alkrnaar, em outubro de 1573. Alba solicitou sua demissiio e, em novembro, foi substituído
por Luís de Requeséns (1525)-1576).A política espanhola, no entanco, não sofreu modificasáo substancial. Em abril de 1574 Luís dc Nassau foi morto em Mook, perco de Nijmegen, ocasião em que as rebeldes Foram derrotados compleramente.
Mas em outubro a heróica defesa de Leyden foi vitoriosa e tornou-se evidente que o norte dos Países Baixos náo poderia ser conquistado pelas for~asencáa disponíveis à Espanha, principalmente porque ela mostrava-se incapaz de alcarqar o controle do mar. Requeséns morreu em março de 1576 e em
4 de novembro daquele ano as
tropas espanholas, sem seu comandante, se descontrolaram e saquearam Antuérpia. Morreram mais de sete mil cidadãos e soldados durante onze dias de pilhagem e Iilassacre. A reaçáo a tudo o que era espanliol foi suficiente para unir as províncias do sul e do norte na assim chamada Pacificaç50 de Ghenr, em 8 de novembro de 1576. Essa Pacificaçáo conclamava a expulsão das tropas espanholas, a suspensáo dos editos de Filipe 11contra as heresias e a liberdade de culto para os calvinistas na Holanda e na Zelândia, desde que eles se abstivessem de atividades anticatólicas fora de seus territórios.
O novo comandante espanhol, o meio-irrnáo de Filipe, Dom Joáo da Áuçrria
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HISI6RIA DA IGREJA C R I S T i
(1547-1578), nada podia fazer senáo aceitar a pacificaçáo. Contudo, a parcida das tropas espanholas em março de 1577 náo Trouxe a paz religiosa. O calvinismo tinha defensores entusiastas nas vilas e cidades de Brabant e Flandres, e em 1577 e 1578 veemente pregaçáo calvii~ista,combinada com descontenramento social popular, convulsiono~ias províncias do sul em uma série de levantes que lembraram os distúrbios içonoclastas de 1566. A classe governante das províncias francófonas dos valóes do sul passou a desconfiar, até mesmo a desprezar os líderes do norcc holandês c seus zelosos pregadores calvinisras. Em janeiro de 1579 as províncias dos valóes se uniram na Liga de Arras para a proteqáo de sua fé catcílica e da ordem social. As províncias do norte responderam naquele mesmo mês com a União de Utrecht. Protestantes migraram do sul para o norte aos milhares, enquanto muitos católicos se mudaram para o sul. Os planos de Guilherme de Orange para a uniáo dos Países Baixos estavam-se desmanchando diante da intolerância e partidarismo religiosos. Entrementes, Dom Joáo da Austria morrera desiludido e amargurado, em outubro de 1578. Seu sucessor foi seu sobrinho e filho de Margarida de Parnia, Alexandre Farnese ( I 545-1 592), príncipe e mais tarde duque de Parma, gerierai e es~adistade apreciável talento. As coisas logo comeqaram a melhorar para a Espanha. Por meio de diplomacia astuta e sucesso militar, Parma conseguiu consolidar a auroridade real nas províncias dos valóes, onde montou sua base de operaçóes para a recuperação espanhola dos Países Baixos. Por fim, ele salvou as dez províncias do sul para a Espanha e para o catolicismo; a Bélgica de nossos dias é seu legado. As sete províncias do norte (HoIanda, Zclândia, Utrechc, Gelderland, Frísia, Overijssel c Groningen), juntamente com Flandres e Rrabant, declararam sua independência da Espanha em 158 1. Embora Flandres e Brahant tenham sido reconquisradas por Pasma nos quatro anos
seguintes, as províncias do norte conseguiram mancer sua liberdade náo obsrance as dificuldades, incluirido o assassinato, ein 10 de julho de 1584, de Guilherme de Orange por um fanático da realeza. (Em 1580 Filipe I1 declarara Guilherme proscrito e estipulara um prêmio para sua morre,) Duranre essa lura as igrejas calvinistas dos Países Baixos esriveram se organizando. O primeiro sínodo nacional se reunira em 1571 fora do território neerlandês, em Emden. Dois anos depois Guilherine de Orange abraçara o calvinismo. Em 1575 ele fundou uma universidade em Lcyden, logo famosa por sua erudjçáo em reologia e nas ciências. A igreja reformada dos Países Baixos, como a da França, era de constituicáo presbiteriana, ainda que o grau de sua independência do controle estatal te-
tiroa ao vi
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nha motivado longa controvérsia e variado nas diferentes províncias. A severidade da luta pela independência nacio~lal,o desejo de obter auxílio de todos quantos deles ernm amigos e o espírito mercantil levaram os protestantes dos l'aíses Baixos, por volta d o início do sécuio dezessete, a um grau de tolerância maior do que em qualquer outro lugar na cristandade da época. Na verdade, aos católicos não era permitida a realização de cultos públicos ou o exercício de cargos políticos, mas tinham direito de residência c trabalho. Em 1577 Guilherme de Orange concedera aos anabacistas direito de culto, coisa que jamais haviam tido em qualquer outro lugar. Esse grau de tolerância, ainda que parcial, logo fez dos Países Baixos um refúgio para os oprimidos por motivo religioso e contribuiu para o fortalecimento da n a ~ á o . Porém, a morte de seu líder, Guilherme de Orange, trouxe grande perigo para os neerlandeses. Sentindo que sozinhos náo poderiam se manter, ofereceram o governo dc seu país primeiro a Henrique I11 da França e depois a Isabel da Inglaterra. Anibos recusaram. Em fevereiro de 1585 Bruxelas se rendeu diante de Parma, e em agosto foi a vez de Antuérpia. Alarmada com o êxito espanhol, Isabel enxriou em dezembro de 1585 um exército sob o comando dc seu favorito, o conde de Leicester. Sem a permissáo dela, Leicester aceitou o título de governador geral, mas seu governo foi
um fracasso, tanto diplomática como militarmente, e ele recornnu à Inglaterra em
1587. Tinha-se a impressáo de que o coiriando habilidoso de Parma venceria as províncias rebcladas, mas nesse exato momento Filipe solicitou seus préstimos para uma empresa ainda niaior. O rei espanhol resolvera nada menos que a conquista da Inglaterra.
Filipe auxiliara Isabel no início do reinado dela por motivos exclusivameiite políticos. Cedo, porém, tais motivos deixaram de exis~irc Filipe tornou-se inimigo dela, vendo na "Jesabel inglesa" a líder daquele protestantismo que se compromorera a exterminar. A primeira parte do reinado de Isabel esteve surpreendentemente livre de
incomodas por parte de seus súditos católicos. Porém, Maria, "rainha dos escoceses", era a hcrdeira do trono e tornara-se um cencro permanente de conspiração após sua fuga para a Inglaterra, em 1568. Em 1569 irrompeu uma rebelião católica no norte da Inglaterra ("o Levante do Norte"), insuflada pela Espanha, mas foi rapidamente dominada. Em 25 de fevereiro de 1570 o papa Pio V emitiu sua extraordinária bula,
Regnuns in excelsis, declarando Isabel excomungada e deposta. Em 1571 foi descoberta a assim chamada conspiração Ridoifi - devido a um banqueiro italiano residetite na Inglatcrra - que visava ao assassinato de Isabel e ao casamento de Maria com o
duque de Norfolk, o primeiro nobre do reino. A trama falhou completamente. O parlamento reagiu declarando crime de alta traição qualquer ataque à pessoa de Isabel, à sua ortodoxia ou à sua legitimidade ao trono. Norfolk foi executado em 1572. Durante os primeiros anos de Isabel os católicos ingleses surpreendentemente receberam pouco auxílio ou direçáo espiritual de Roma e seus seguidores no continente. Para remediar esta situaçáo, Guilherme Allen (1532-1594),hábil exilado inglês feito cardeal em 1587, fundou um seminário em Douai, Flandres, em 1568, para preparar missionários para a Inglaterra. Seus estudailtes logo comeqaram a ir para lá, chegando a mais de duzentos e cinqüenta por volta de 1585. Sua obra era quase inteiramente es~irirual,mas mesmo assim as autoridades inglesas viam-na com hostilidade. Agravou-se a situaçáo quando, em 1580, os jesuítas iniciaram uma pe-
quena missáo sob a liderança de Roberto Parsons (1546-161O) e Edmundo Campion
(1 540-1581). Esre foi preso e executado, embora náo tenha intentado nenhum movimento político. Parsons, porém, escapou para o continente, atraiu Allen para seus ~ l a n o se comecou uma série de intrigas para provocar uma invasáo espanhola da Inglaterra, um levante católico nesse país e a morre ou a deposição de Isabel. Seu trabalho trouxe muita infelicidade para seus companheiros católicos na Inglaterra. Hoje sabemos que muitos dos sacerdotes que atuavam na Inglaterra náo possuíam desígnios traidores, mas na época isso náo foi ~ercebido.As autoridades inglesas consideraram todos comti inimigos públicos, e executaram tantos quantos seus espiões conseguiram descobrir. Mas pelo esforço desses sacerdotes foi preservada a igreja romana na Inglaterra, enibora a um custo assombroso. Durante o reinado de Isabel foram executados 183 sacerdotes e leigos.
Em 1586 novo plano foi preparado contra a vida de Isabel - a conspiraqáo de Babington - !oi qual os espióes ingleses descobriram que Maria, "rainha dos escoceses", escava pessoalmente envolvida. Como conseqüência, ela foi decapitada em 8 de fevereiro de 1587, após muita indecisáo por parte de Isabel. Entáo Filipe se resolveu a invadir a Inglaterra. Embora há muico reIutante quanto a entrar em guerra contra Isabel, ele ressentira-se bastante da intervenção inglesa nos Países Baixos sob Lcicester, em 1585, e também as incursões sernipiratas que Sir Francis Drake conduzira contra estabelecimentos espanhóis no Caribe e no golfo do México naquele mesmo ano com a autorizacão de Isabel. Ademais, antes de sua execuçáo Maria nomeara Filipe como seu sucessor ao trono inglês, e Filipe tinha então motivo para se apresentar como vingador da rainha martirizada e defensor da Iegitimidade. E, náo menos im-
aion no vi
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portante, a conquista da Inglaterra restauraria o catolicismo ali e na Escócia, capacitaria Parma a submeter os rebeldes Países Baixos e deixaria Filipe livre para interferir decisivamente na Franca.
O plano de Filipe era reunir uma grande esquadra em Lisboa e enviá-la para portos nos Países Baixos. Lá, as tropas experientes de Parma seriam embarcadas em balsas e cruzariam o canal escoltadas por navios e invadiriam a Inglaterra. A "Grande Armada" deveria partir em 1587, mas em abril daquele ano Drake conduziu sua famosa incursáo em Cádiz, destruindo muitos navios e mantimentos e assim postergando a aventura por um ano. Por fim, em 28 de maio de 1588, a "invencível" armada de cento e trinta navios e trinca mil homens zarpou de Lisboa. A batalha na qual estava presres a se engajar foi um confronto entre velhas e novas táticas navais. A estratégia espanhola era se aproximar dos navios inimigos e abordá-los. Seus pleóes eram lentos e difíceis de manejar, seus canhões atiravam pesado mas eram de curto alcance. Os navios ingleses eram maiores, mais velozes, mais fáceis de manobrar e armados com mais canhões que, embora mais leves, atiravam com maior precisáo e cinharn maior alcance. Portanto eles eram capazes de impedir a aproximaçáo e abordagem e castigar os desajeitados vasos espanhóis com artilharia mortífera. Em 31 de julho feriu-se o combate, defronte de Plymouch. Seguiu-se uma semana de luta veloz, subindo o canal da Mancha. Perseguida implacavelmente, a armada não conseguiu se unir com Parma na costa flamenga, uma vez que os Paises Baixos não possuíam porto com águas profundas para receber os galeões espanhóis (uma falha fatal no plano de Filipe, a qual ele náo prestara atenção apesar da objeção bem informada de Parma). Em 8 de agosto, após a esquadra espanhola em Calais ter sido dispersada por um terrivel ataque dos navios ingleses, os restantes dos vasos enfrentaram os navios ingleses, muito mais numerosos, em intensa baralha defronre de Gravelines. Sem esperança de vitória, o remanescente da armada fugiu para o norte, procurando escapar para a Escócia e a Irlanda. Tempestades completaram sua dest r u i ~ á odurante a retirada. Metade de seus navios e dois terços dos homens não retornaram. A Inglaterra foi a rocha na qual a empresa imperialista de Filipe e suas visóes de um catolicismo restaurado se despedaçaram. Náo apenas a sua armada caiu diante da artilharia e da marinha inglesa, como também nunca ocorreu o levante católico que ele esperava que acontecesse na Inglaterra durante o decorrer da batalha, e que homens como Allen e Parsons haviam predito tão confiantemente. Enquanto as grandes esperanças de Filipe eram assim desfeitas em 1588, ele se
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agarrava, táo tenazmente como nunca, ao plano de erradicar o protestantismo da França e manter esse país fraco e dividido. A morte do único irmáo sobrevivente de Henrique 111, o duque de Anjou, em 1584, deixara o huguenote Henrique Bourbon de Navarra como próximo herdeiro do trono. Para evitar cal sucessáo, Filipe e a liga católica fizeram em janeiro de 1585 um tratado secreto pelo qual quando da morte de Henrique 111 a coroa passaria ao tio de Henrique de Navarra, Carlos, cardeal Bourbon. Em julho de 1585 Henrique III foi forcado pela liga a retirar dos huguenotes todos os direiros, e em serembro uma bula de Sisto V (1 585-1590) declarou Henrique de Navarra incapaz de ocupar o trono. Disso resultori a oitava guerra huguenote
(1585-1 589) - tambem conhecida como "Guerra dos Três Henriques", por causa de Henrique 111, Henrique de Guise, o líder da liga, e Henriquc de Navarra. Paris era inteiramenre devorada a Henrique de Guise. E m 12 de maio de 1588 seus habitantes obrigarain Henriquc 111 a deixar a cidade. O fraco rei náo via como resistir às exigências da liga e de seu autoritário chefe e, em 23 de dezembro, fez com que Henrique de Guise fosse traicoeiramente assassinado. Catarina de Médici morreria treze dias depois. Heiirique de Guise foi sucedido na liderança da liga por seu irmáo Carlos, duque de Mayenne. Henrique 111 envio fez um acordo con-i Henrique de Navarra, e juntos estavam sitiando Paris quando Henrique 111, o último dos Valois, foi apunhalado
por um monge fanático e inorreu no dia seguinte, 2 de agosto de 1589. Mas Henriquc de Navarra, ou, como ele agora se tornava, Henriquc IV da Franca (1589-1610), ainda não estava nem um pouco seguro em seu novo trono. A liga foi derrotada em Iviy, em março de 1590, mas Parma e suas tropas foram novamente convocados dos Países Baixos, desta vez para "salvar" a França. Eles impediram que Henrique caprurasse Paris em 1590 e Rouen em 1592. Entrementes, as forças espanholas invadiram a Bretanha c o Languedoc. Só após a morte do brilhante Parma, em 3 de dezembro de 1592, é que Henrique IV realmente governou. Então, por questóes puramente políticas, Henrique IV se declarou católico, sendo recebido na igreja romana em 25
de julho de 1533, embora o acordo com o papa náo fosse concluído senáo mais de dois anos depois. Embora sujeita à crítica moral, essa atitude de Henriquc agradou à grande maioria de seus súditos e trouxe paz ao conturbado país. Mas Henrique também não se esqueceu de seus antigos companheiros. Em abril de 1598 foi publicado o edito de Nanres. Por ele, os huguenotes eram admitidos em todas as Funções públicas, o culto público era permitido onde existira em 1597, exceto em Paris, Rheims,
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Touiouse, Lyon e Dijon, e os filhos dos huguenotes não podiam ser for$ados a receber instruqão católica. Como garantia, algumas cidades fortificadas foram entregues aos huguenotes. Em maio de I598 a guerra franco-espanhola, declarada por Henrique IV em 1595, foi encerrada pejo tratado de Vervins, basicamente nos mesmo terinos do tratado de Cateau-Cambrésis de 1559. Filipe I1 morreu em 13 de setembro de 1598, com setenta e um anos de idade. Ele não apenas náo conseguira conquistar a Inglaterra como sua intervenção militar na França capacitara os rebeldes holandeses a retomarem a ofensiva, sob Maurício de Nassau (1 567-1625), o jovem filho de Guilherme dc Orange. Eles consolidaram seu controle sobre as Províncias Unidas e garantiram a independência holandesa.
Em seguida ao edito de Nantes, as igrejas h~rgucnoresentraram cm seu período mais próspero. Completaram sua organizaçáo, e floresceram suas escolas em Sedan, Saumur, Montauban, Nimes e em outros lugares. Elas formavam uma corporat;áo política armada dentro do estado. Como tal, foram contrapostas pela política cencralizadora do cardeal Richelieu, o
ministro de Luís XIII (1610-1643).
Em 1628, Ihes foi tirada a fortaleza de La Rochelle, após resistência de catorze meses, e terminou sua semi-independência politica. Seus privilégios religiosos foram preservados pelo Edito de Nimes, em 1623, inas sofreram crescentes ataques dos jesuítas e outras influêricias católicas no decorrer do século. A revogação do Edito de Nantes, ein 1685, por Luís XIV (1643-171 5), reduziu os huguenotes a uma igreja persegui-
da, mártir, que seria proscrita atC as vésperas da Revoluqáo Francesa. Ta1 revogagáo também lançou ccrca de trezentos mil huguenotes no exílio, para o benefício da Inglaterra, Holanda, Prússia e América.
Capítulo 13
As Controvérsias Religiosas Alemãs e a Guerra dos Trinta Anos A desgraça do luteranismo foi náo ter outro laço de uniáo entre seus representar-ites nos seus vários territórios que um acordo na "pura doutriria", e que diferenças de interpretaçáo eram tidas como incompatíveis com a comunhão cristá. A concepçáo
luterana original da fé como a firme confiança do coraçáo na misericórdia de Deus gratuitamente prometida por causa de Cristo tendeu a se transformar numa noção mais intelectualizada da fé como "um assentimento pelo qual se aceita todos os artigos da fé" - uma definição apresentada uma vez por Melanchthon. O resultado foi o desenvolvimento gradual de um novo escolasticismo protestante. Durante a década de 1530 a influência teológica de Melancbthon tornou-se ainda mais dihndida e aguda do que a do próprio Lutero. Os discípulos de Melanchthon, por sua vez, exerceram uma influência determinante na segunda geração do luteranismo. Influenciado pelo pensamento humanista, Melanchthon aos poucos se afastou de sua concordância inicial com Lutero, diferindo em alguns aspectos de seu famoso colega. Quando da edição de 1535 de seu Loci communes, ele chegara a modificar a doutrina de Lutero sobre a liberdade humana e a ensinar que a fé salvifica é o resultado das operações conjuntas da palavra proclamada, o Espírito Santo, e a vontade humana - um ponto de vista que geralmente recebe o nome de "sinergismo". Ele também defendia que as boas obras são "necessárias para a vida eterna", não como a base da salvagão mas como sua evidência indispensável - uma postura que mais tarde abandonaria, mas que seria retomada por alguns de seus pupilos. Com referência à Ceia do Senhor, Melatichthon chegou a pensar que Lutero vinculara exageradamente a "presença real" de Cristo aos elementos sacramentais; sem chegar de todo à posição de Calrino (ver VI:?,), ele defendeu que Cristo é dado "não no páo, mas com o pão", enfatizando dessa forma a recepção espiritual em vez da física. Esses traços mais recentes do pensamento de Melanchthon foram incorporados em sua edição de 1540 da Confissão de Augsburgo, a assim chamada edição Variata ou "alterada". Tais diferenças nunca trouxeram rompimento com Lutero, em parte graças à generosa afeição deste para com seu amigo mais moço, e em parte graças à cautela de Melanchthon em suas expressões. Não obstante, essas diferenças por vezes levaram Melanchthon a se sentir constrangido diante de Lutero nos derradeiros anos da carreira desse reformador e ainda causariam muitos problemas nas comunhóes luteranas. Um dos principais moti\~osdo mal-estar foi o consentimento relutatite de Melanchthon ao Ínterim de Leipzig, em 1548 (ver VI:5). Para ele, muitas práticas romanas entáo restabelecidas eram "não essenciais" (adiaphora). Para Matias Flaciui Illyricus e Nicolau von Amsdorf, vivendo em segurança em Magdeburgo, nada podia ser "não essencial" naquela época. Ambos atacaram Melanchthon veementemen-
PEB~OIOYI
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te, no que foram apoiados por João Brenz (1499-1570), que liderou a oposição ao Ínterim na Alemanha meridional. Esta foi a "Controvérsia Adiaforista". Esse racha logo aumentou quando os príncipes da antiga linhagem eleitoral da Saxônia, agora privados do poder eleitoral, julgaram que Melanchthon, ao permanecer em Wittenberg, agora em poder de Moritz, o mesmo que lhes espoliara o poder eleitoral, era culpado por desertar uma família que o apoiara fielmente. Eles elevaram a escola de Jena a universidade, em 1558, e nomearam Flacius para uma de suas cátedras. As universidades de Jena e Konigsberg foram os principais centros da oposição "gnésio-luterana' ("luteranaverdadeirá') a Melanchthon e seus defensores "filipistas". Surgiram outras disputas teológicas, entre elas a "Conrrovérsia Osiandra" e a "Controvérsia Majorisra'. André Osiander (1498-1552) provocou a oposição de ambos os partidos luteranos, como também a de João Calvioo, ao ensinar que a justificação é uma questão de o pecador não simplesmente "ser declarado justo" mas realmente "ser feito justo" mediante a permanência substancial do Cristo divino no pecador. Jorge Major (1502-1 574) afirmava, em profunda concordância com a antiga postura de Melanchthon, que é impossível ser salvo sem boas obras, uma vez que estas são necessárias para conservar a justificação pela fé. Em 1552 ele foi aracado veementemente por Amsdorf, que chegou a afirmar que as boas obras sáo danosas e prejudiciais à salvação. No mesmo ano Joaquim Westphal (1510-1574) lançou um feroz ataque à doutrina de Melanchrhon sobre a Ceia do Senhor, dizendo-a "criptocalvinismo", ou calvinismo furtivamente introduzido. Não é de se admirar que pouco antes de sua morte, ocorrida em 19 de abril de 1560, Melanchthon tenha expresso sua disposicão em partir para escapar "da raiva dos teólogos" (rabies theologorum). A situaçáo protestante na Alemanha foi rumulruada ainda mais pelo avanço vitorioso do calvinismo no sudoeste. Frederico 111 (1559-1576), o primoroso eleiror do Palatinado, depois de estudar os debates sobre a Ceia do Senhor, decidiu adotar a posiçáo calvinista quando se tornou eleitor em 1559. Em 1262 os jovens teólogos Gaspar Olevianus (1536-1587) e Zacarias Ursinus (1534-1583) prepararam para os territórios de Frederico o notável Catecismo de Heidelberg - , em 1562 - uma das exposições mais amavelmente brandas e empiricas do calvinismo. O eleitor o adotou em 1563. Mas o calvinismo não tinha proteção alguma sob a Paz de Augsburgo de 1555, e logo náo somente os católicos como também os luteranos protestaram contra sua tolerância. Os debates dentro do luteranismo continuaram com grande intensidade. Em
1573 o eleitor Augusto da Saxônia (1533-1586), tendo assumido a tutela dos jovcns príncipes da Saxônia ducal, onde predominavam os oponentes "gnésio-luteranos" de Melanchthon, expulsou os seus representarites mais radicais. Até então a Saxônia eleitoral, com suas u~liversidadesde Wittenberg e Leipzig, havia seguido a tradiçáo de Melanchthon ou "filipista". Agora, em 1574, o eleitor Augusto acreditava ter descoberto em seus próprios domíiiios uma propaganda calvinisra aré então insuspeita sobre a Ceia do Senhor. Ele mandou para a cadeia alguns de seus principais teólogos, sendo que um deles chegou aré mesmo a ser torturado. "Filipismo" e "criptocalvinismo" forani reprimidos com rigor. No entanto, essa luta cáustica deu origem em 1577 ao último grande credo luterano, a Fórmula de Concórdia. Ela foi preparada por alguns teólogos irêtiicos, dos quais os principais eram Jacó Andrea (1528-1590) de Tubingen, Martiriho Cheninitz (1522- 1586) de Brrinswick e Nicolau Selnecker (1532-1592) de Leipzig. Em junho de 1580, ocasiáo do quinquagésirno aniversário da apresentaçso da Confissáo de Augsburgo, ela foi publicada no Livro de Co?zcóudia,junramente com os outros "símbolos" ou declarajóes confessionais luteranos - os três credos ecumênicos, a Coiifissáo de hugsburgo (inaíterada), a Apolugi;z da Confissáo de Augsburgo, os Artigos de Sclimalkalden e os Catecismos Pequeno e Grande. O volume recebeu as assinaturas aprobatórias de cinqüenta e um príncipes, dos representantes de trinta e cinco cidades e de mais de oito mil ministros. hlguns príncipes e cidades luceranos negaram-se a subscrever a Fórmula de Concórdia, mas ela, sem dúvida alguma, representava a grande maioria da Alemanha lutcrana. Ela rejeitava as posi~óesextremadas tanto dos "gnbsio-luceranos" como dos "fiiipistaç", ao passo que mantinha a interpretacáo lurerana mais estrita sobre todos os pontos controvertidos. Embora a Fórmula continuasse em concordância substancial com o pensamento d e l u t e r o , era consideravelmente mais "escolástica" em seu mttodo e forma de argumento do que as próprias obras teológicas de Lutero. Assim, pode-se dizer que a Fórmula inaugurou o período da alta ortodoxia luterana, que teria sua exposição clássica na monumental obra Loci theologici (9volumes, 1609-1622) de Joáo Gerhard (1582-1637). Esca obra distinguiu-se por seu extenso uso do mécodo dialético. Sob essa repressáo os "íilipistaç" se voltaram cada vez mais ao calvinismo, e este airançou ainda mais na Alemanha. Nassau juntou-se ao Palatinado em 1577, Bremen por volta de 1581, Anhalt em 1597 e parte de Hesse no mesmo período. A casa eleitoral do Brandenburgo se tornou calvinista em 1613, ainda que muitos dos habi-
PERIOOO VI
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62.3
tantes dessa regiáo continuassem luteranos. Essa mudanca frequentemente foi acompanhada pela manutençáo da Confissão de Augsburgo. Não obstante essas igrejas "reformadas" alemás terem se tornado calvinistas na doutrina e no culto, a disciplina característica de Calvino teve pouca acolhida entre elas. Na ocasião da Paz de Augsburgo em 1555, a Alemanha era um pais esmagadoramente protestante. A igreja católica romana desaparecera da maior parte do país e estava em siruaqáo dcsesperadora. Praticamente todos os governantes seculares tinham se tornado protestantes, mas dois terços dos príncipes eclesiásticos no Reichsrag, bem como o iniperador, continuavam católicos, e eles forneceriam a base política para o reavivamento católico ria Alemanha e no império. O protestantismo na Alemanha, ademais, alcancara sua máxima expansáo ~erritorialpor volta de 1566. Desse momento em diante comecou a declinar. O catolicismo reavivado da Conrra-Reforma ficou cada vez mais agressivo, liderado pelos jesuítas e apoiado por príncipes zelosamente católicos, como os duques da Baviera. O protesrancismo, dividido confessional e politicamente, não podia oferecer resistência unificada. Na Raviera, o duque Alberto V (1 550-1579) aplicou vigorosainentc o princípio
cuius ~egio,eius reIigio para dominar a nobreza e o povo protestante do lugar. Em
1572 o abade de Fulda de modo idêntico buscou reprimir o protestantismo em seu terrirório monástico. Por algum tempo encontrou bem sucedida resistência, mas por fim alcancou seu objetivo a partir de 1602. Sob a lideran~ados jesuítas, foram efetuados progressos católicos semelhantes em muitos hispados nos quais os habitantes haviam abracado as idéias evangélicas. Logo o protestantismo [ambém foi suprimido nos cerritiirios pertencentes às três grandes arquidioceses de Mainz, Trier e Colônia, cujos príncipes-bispos contavam-se entre os sete eleitores imperiais. A disputa mais séria deu-se em Colônia, cujo arcebispo, Gebhard Truchscss, decidiu se casar, em 1582, e abraçou o protescanrismo. Pouco auxilio recebeu dos príncipes protestantes. E m 1583 ele foi forçado a deixar sua sé estrategicaniente situada, e o território foi totalmente restaurado ao catolicismo. Na Áustria e na Boêmia a situa@O
se [ornou progressivamente desfavorável para o protestantismo; e ali, como em
todas as partes do irnpdrio, a propaganda jesuíta fez muitos conversas. Essa propaganda era agressiva e confiante de que por fim triunfaria. As relacóes entre protestantes e católicos eram permanentemente tensas.
Um fato ocorrido ern 1606-1607 aumentou substancialmente essa animosidade. A pequena cidade imperial de D o n a u w ~ r t hera na sua quase totalidade protestante,
mas lá sobrevivera um mosteiro benditino, e os monges estavam decididos a recuperar a cidade ao aprisco católico. Uma de suas procissóes religiosas, em 1606, terminou em tumulto. A mando imperiar, o hábil duque católico da Baviera, Maximiliano
Bi-:
(1597-1651), ocupou a cidade e deu início à repressáo do culto evangélico. No
O
Reichstag de 1608, em Ratisbona, os territórios católicos exigiram a rcstiruiçáo de
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todas as propriedades eclesiásticas confiscadas desde 1555. Essa reivindicaçáo estava
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de pleno acordo com a legislação da Paz de Augsburgo; mas no transcurso de duas
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gera~óesa popuIago de muitos desses distritos tinha se tornado predominanternen-
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te protestante.
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Sob tais circunstâncias, alguns príncipes protestantes formaram em 4 de maio de
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I608 uma "uniáo" defensiva, chefiada pelo eleitor calvinista Frederico IV, do Palatinado (1583-1 6 10). Ela logo foi contraposta por uma "liga" de príncipes católicos, formada em 10 de juIho de 1609 e liderada por Maximiliano da Baviera. Os
hirr
fortes estados luteranos do norte da Alemanha náo quiseram ingressar na uniáo, e o imperador também náo ingressou na "liga". Se Henrique IV da França estivesse vivo,
t bem possível que a guerra tivesse se iniciado naquela ocasiáo, uma vez que o rei francês aliara-se com a uniáo para um projetado ataque sobre os Países Baixos espanhóis; mas seu assassinato em 161O, c a incerteza da sucessão imperial na Alemanha, retardou-a por algum tempo.
O verdadeiro início da assim chamada Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) foi provocado na Boêmia. Esta era, em 1609, amplamente protestante. Essa maioria protestante então arrancou de seu rei meio demente, o imperador Rodolfo I1 (1576-
1612), um diploma - a "Carta de Majestade" - concedendo alto grau de tolerância religiosa. Rodolfo foi sucedido, como rei e como imperador, por seu irmáo Matias (rei 161 1-1613; imperador 1612-1619), mas ele náo tinha filhos e em 1617 seu primo, Fernando de Estíria, defensor inflexível da Contra-Reforma, conseguiu ser reconhecido
estados boêmios como sucessor de Matias. As violações católicas
da "Carta de Majestade" aumentaram, e em 3 de maio de 1618, um grupo de nobres protestantes insatisfeitos lançou os dois regentes católicos, que representavam o ausente Matias, por uma alta janela do castelo Hradczany, em Praga. Tal fato - conhecido como Defenestra~áode Praga - levou a Boêmia a se revoltar, e começou a guerra. No início, foi ela favorável aos insurretos boêmios e, depois da morte de Matias em 1619, eles eiegeram como seu rei o eleitor calvinista do Palarinado, Frederico V
(1610-1632). Na mesma semana, Fernando de Estíria foi eleito imperador, com o
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A REFORMA
nome de Fernando I1 (1619-1637). Frederico encontrou pouco apoio fora da BoSmia, enquanto Maximiliano da Baviera e uma força espanhola dos Países Baixos vieram em auxílio de Fernando. Sob o comando do general valáo João Tserkales, conde deTilly (1559-1632), essa combinação católica esmagou as forças boêmias na baralha de Montanha Branca, perto de Praga, em 8 de novembro de 1620. Frederico fugiu do país. A Carta de Majestade foi anulada, as propriedades dos protestantes boêmios foram em
parte confiscadas,
para o proveito financeiro dos jesuítas, e a Contra-Reforma posta em vigor com máo de ferro na Boêmia e Morávia. Entre os que se enriqueceram pela aquisição das propriedades confiscadas estava alguém destinado a desempenhar grande papel na história posterior da guerra, Albrecht v011 Wallenstein (1583- 1634). A uniáo foi dissolvida. Então foi a vez de os protestantes serem semelhantemente reprimidos na Áusrria. Entrementes, tropas espanholas, sob o comando de Ambrósio Espinola, invadiram o Palatinado em 1620. Logo seguiram para lá Tilly e o exército da liga católica.
O território foi conquistado, o catoiicismo imposto e, em 1623, o cítulo eleitoral de Frederico, com boa parte do Palatinado, foi transferido para Maximiliano da Baviera.
O noroeste da Alemanha, onde muitos bispados haviam se tornado possessóes protestantes desde a Paz de Augsburgo, ficou enráo ameapdo pela guerra, e os reve-
-5 tõi
ses já sofridos pelo protestantismo despertaram a atenção de potências protestantes
-. . ..~ioria
estrangeiras. Porém, ninguém fez nada de efetivo a não ser Cristiano IV da Dinamar-
i 5-6-
ca (1588-1648), a quem a Inglaterra e os Países Baixos protestantes enviaram peque-
. :.-~ncla
no auxílio. O imperador Fernando pensou ser rrernenda a animosidade do rei dina-
';latias
marquês e assim ordenou a Wallens~einque organizasse um novo exército e ficasse
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seu
como cornandante-em-chefe imperial. Este notável aventureiro, nascido protestan-
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ser
te, era agora nominalmente católico e na época o nobre mais rico da Boêmia. Líder
r:dicas
nato, organizou um exército no qual náo havia restriçáo de raça ou credo, simples-
.:obres
mente a exigência de capacidade na luta e lealdade ao comandante-em-chefe. Rapi-
T .O
au-
:onhe-
damente ele organizou uma forta de grande eficiência. Em 2 5 de abril de 1626 Wallenstein derrotou o exército protestante comandado
guer-
pelo conde Ernesco de Mansfeld, na ponce de Dessau sobre o Elba. Ele perseguiu as
liatias
tropas derrotadas cruzando a Silésia até a Hungria, para onde elas se haviam retirado
.srico V
na vá esperança de montar uma poderosa resistência em conjunto com o inimigo do
;om o
imperador, o calvinista Bethlen Gabor, príncipe da Transilvânia. Em 27 de agosto de
.
i
636
HISTORIA DA IGREJA CRISTíI
1626 Cristiano TV da Dinamarca foi batido por Ti1Iye o exército da liga católica, em Lutter. Essas vitórias católicas prosseguiram em 1627 e 1628. Caíram primeiro Hanôver, Brunswick e Siiésia, e depois Holstein, Schleswig, Pomerânia e Mecklenburgo. Wallenstein, porém, não conseguiu capturar o porto de Stralsund, no Báltico, pois este foi socorrido pelos suecos. Diante disso, Wallenstein achou ser prudente fazer a paz antes que o capaz rei da Suécia, Gustavo Adolfo (1 6 1 1- 1632), pudesse interferir na guerra. Dessa forma, mediante um tratado em maio de 1629, foi concedido a Cristiailo IV conservar seus territórios sob a condiçáo de náo mais
interferir na política alemã. Os católicos estavam decididos a colher os frutos de suas vitórias. Em 6 de março de 1629 o imperador Fernaildo emitiu um "Edito de Restiruiqáo", ordenando a devolução aos católicos de todas as propriedades eclesiásticas que tinham passado i s mãos protestantes desde 15 52, a expulsão dos protestantes dos territórios governados por católicos, c o não reconhecimenro de qualquer grupo protestante, exceto os luceranos,
assim os calvinisras de quaisquer direitos. Os eventos dos pri-
meiros anos seguintes impecliram a plena execução desse edito, mas cinco bispados, ceni mosteiros e centenas de igrejas pnroquiais foram, por um rernpo, assim transferidos. E muito mais teria sido transferido se as vitórias carblicas tivessem continuado, e se os católicos náo tivessem brigado entre si pelos espólios. Essas disputas, e os ciúmes da lisa, encahecada por Masrimiliano da Baviera, provocados pela grande ampliação do poder imperial efetuada por Wallenstein, fizeram com que a liga exigisse, e obtivesse, a sua demissáo. Em setembro de 1630 o imperador se viu compelido a despedir o seu general mais capaz. Ainda antes da dernissáo de Wallenstein, ocorrera um fato da máxima importância mas cujas consequ~riciasnão foram patentes de imediato. Em junho de 1630 o rei Gusravo AdoIfo da Sukcia desembarcara com um pequeno exército ria costa alemá. Dois motivos o levaram a interferir na guerra. Indubitavelmenre vinha como defensor da fé protestante; mas também desejava fazer do Báltico um lago sueco e, daí, via nos ataques imperiais aos portos alemáes no Báltico imediata ameaça ao seu próprio reino. No caso de que esses portos fossem tomados por uma potência hostii, a Suécia correria grave perigo. Gustavo rapidamente conseguiu expulsar da Pomerânia as tropas imperiais, mas marchou devagar por falta de aliados. Em janeiro de 1631, entretanto, fez um tracado com a Franca, entáo sob a magistral liderança de Armando du Plessis, cardeal Rtchelieu (1585-1642), ministro de Luís XIII. Por esse trata-
~ t i i a o ovi
A REFORMA
62;
do, a Sutcia conseguia considerável ajuda financeira c Richelieu renovava a histórica hostilidade da França contra os Habsburgos da Espanha e da Áustria. Renascia a antiga política francesa de auxiliar os inimigos dos Habsburgos para o proveito da moriarquia francesa, inesmo que tais inirriigos fossem protestanres. O próximo passo importante e difícil de Gustavo era conseguir a alianca do Brandenburgo que, embora protestante, era imperialista, e da Saxônia, que era neutra. Em 20 de maio de 1631 TilIy tomou Magdeburgo, praticamente destruindo a cidade com fogo e tratando seus habitantes com brutal ferocidade. Essa perda de uma fortaleza procestance foi seguida, em junho, pela alianca entre Gustavo e o eleitor do Brande~ihrir~o, e em agosto, pelo abandono pela Saxônia de sua neutralidade e imediata uniáo com os suecos. Em I7 de setembro de 1631, com pequeno auxílio da Saxônia, Gustavo derrotouTiíly em Breicenfeld, perto de Leipzig.
O poder imperial no norte da Alemanha desintegrou-se, e o rei sueco marchou vitoriosamente até o Keno, estabelecendo-se em Mainz, enquanto o exército da Saxônia tomava Praga. Em tal aperto, o imperador convocou de novo Walienstein para que formasse um exircito, c em abri1 de 1632 esse general estava à frente de forca rcdobrada. Enráo Gustavo marchou contra Maxi~nilianoda Baviera, derrotou Tilly numa baralha perto de Doi~auworth,na qual esse coniandante foi mortalmente ferido. A capital bávara, Munique, teve que se render ao rei sueco. Enrrementes, Wallenstein expulsara de Praga o exército da Saxônia, e marchara ao encontro de Gustavo. Os dois exércitos se posicionarani um diance do outro perto de Nuren~berg.Após algumas semanas de hesitaçáo, Wallenstein se dirigiu para o norte com o fito de esmagar a Saxônia. Gustavo o seguiu e o derrotou em Lutzen, perto de Lcipzig, em
16 de
novembro de 1632, em árdua batalha na qual Gustavo perdeu a vida. Sua obra, porém, permaneceu. Fizera do Edito de Restitujçáo letra morta no norte da Alemanha, e sua memória é guardada com carinho pelos protestantes alemães.
A direçáo dos assuntos suecos passou para o capaz chanceler Axel Oxenstjerna, ainda que o melhor general protestante fosse agora Bernardo de Saxe-Weimar (1604-
1639). Em novembro de 1633 ele capturou Ratisbona, importante cidade no sul da Alemanha, e rompeu a linha do Danúbio para o avanço protestante. Enquanto isso, Wallenstein ficara relativamenre inativo na Boêmia, cm parte temeroso das grandes tropas espanholas enviadas para a Alemanha meridional, e em parte conspirando com a Saxônia, Suécia e França. Náo se pode saber exatamente a que ele tinha em
mente, mas o mais provável é que almejasse assegurar para si mesmo a coroa da Boêmia. Seu fracasso em reconquistar Ratisbona foi a última gota que fez transbordar a desconfiada hostilidade do imperador, e em 25 de fevereiro de 1634 ele foi assassinado por alguns de seus próprios oficiais, em conseqüência da intriga imperial. Em 5 e 6 de setembro de 1634 Bernardo e as tropas suecas foram completamente derrotados em Nordlingen por um exército composto de tropas imperiais e espanholas. Essa batalha foi táo decisiva como a de Breitenfeld, cerca de três anos antes. Breitenfeld demonstrara que a Alemanha setentrional náo podia ser conquistada pelos católicos, Nordlingen demonstrava que a Alemanha meridional náo poderia ser vencida pelos protestantes. A guerra, pois, tinha que terminar e em 15 de junho de 1635 o imperador e a Saxônia acertaram a paz, em Praga. O dia 12 de novembro de
1627 foi estabelecido como data normativa. Todas as propriedades eclesiásticas ficariam por quarenta anos em poder daqueles que naquela data estavam de posse detas, e seu destino final seria decidido por um tribunal formado igualmente por juízes
católicos e protestantes. Privilégio algum foi mencionado para os calvinistas. Nas semanas que se seguiram, a maior parte da Alemanha protestante ratificou tal acordo. Porém, não haveria paz para a desventurada terra. A guerra continuaria por mais treze anos, táo selvagem como dantes. Seu objetivo inicial foi praticamente abandonado e ela se converteu em luta travada em solo alemão com o apoio de partidos aiemáes, para o engrandecimento da Espanha, França e Suécia, na qual a Franga levou a melhor parte. Fernando I1 foi sucedido por seu filho, Fernando I11 (1637-
1657),mas a mudança não alterou a situagáo. A Alemanha faltavam líderes de verdade, sendo a única exceçáo Frederico Guilherme, o "Grande Eleitor" ( 1640- 1688) do Brandenburgo. Mas se ele teve êxito no aumento de suas possessóes territoriais, era jovem demais para influir no curso da guerra. Por fim, depois de inúmeras negociaçóes, foi alcançada a Paz de Vestfália em 27 de outubro de 1648. A Suécia estava firmemente estabelecida no litoral alemáo do Báltico. A maior parte da Alsácia passou para a França. Foi formalmente reconhecida a antiga independência da Suíça. O Brandenburgo recebeu o arcebispado de Magdeburgo e os bispados de Halberstadt e Minden como compensaçáo pela desistência, a favor da Suécia, sobre parte da Pomerânia. Maximiliano da Baviera manteve seu título de eleitor e parte do Palatinado, enquanto o restante deste foi restituído
r~nleioui
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a Carlos Luís, filho do infeliz Frederico V, para quem foi criado um novo título eleitoral. O acordo religioso foi mais importante. Nesse acordo, a habilidade do "Grande Eleitor" conseguiu a inclusao dos calvinistas, os quais, com os luteranos, foram considerados um só partido, em oposiqâo aos católicos. Os calvinistas alemáes, por fim, alcançaram plenos direitos. O Edito de Restituiçáo foi totalmente abandonado, e o ano de 1624 tomado como norma. Qualquer propriedade eclesiástica naquele ano em mgos de católicos ou protestantes, com eles permaneceria. Ainda que vigorasse o direico de um soberano leigo determinar a religiáo de seus súditos, ele foi modificado por uma provisão que dizia que no território onde, em 1624, existira cutco religioso dividido, cada parte continuaria na mesma proporçáo daquele ano. Ficou acertado entre luteranos e calvinistas que a norma seria a data da paz, e que no caso de futura mudança do governante leigo para uma ou outra forma de protestantismo isso náo afetaria seus súditos. Por outro lado, por insistência do imperador, náo se deram privilégios aos protestantes na Áustria e na Boêmia.
A paz a ninguém agradou. O papa a denunciou. Mas todos estavam cansados da guerra, e a paz teve o p n d e mérito de traçar as fronteiras entre catolicismo e protestantismo, tosca mas aproximadamente, onde de fato estavam. Como tal, revelou-se essencialmente perrnanence, e com ela pode-se considerar encerrado o período da Reforma no continente. Para a Aíemanha, a Guerra dos Trinta Anos foi um duro e tremendo mal. O país havia sido revolvido, durante uma geracáo, de um extremo ao outro, por exércitos rapinantes e sem lei. A população decaíra de dezesseis milhões para menos de seis. O comércio e a indústria foram destruídos. Acima de tudo, a vida intelectual estagnara, a moral se tornara áspera c corrupta, a religião fora gravemente prejudicada. Um século após o término da guerra, suas devastadoras conseqüências ainda não tinham sido sanadas. Poucas evidências de vida espiritual foram percebidas nesse terrível período de guerra. Contudo, pertence a essa época grande parte da obra de Paulo Gerhardt (1607-1676), talvez o maior dos hinólogos lutcranos. Sua obra reflete a confiança da piedade sincera em meio a tensáo da guerra. Nos primeiros anos da guerra, t-ambém, tiveram lugar as principais atividades do influente místico protestante, Jacó Bohme (1575-1624), de Gorlitz.
Capítulo 14
Socinianismo A época da Reforma apresentou uma série de desvios da ortodoxia tradicional com referência a pessoa e obra de Cristo. Embora tais desvios náo fossem característicos dos anabatistas em geral, suas primeiras manifestacóes se deram entre anabatistas como Luís H a ~ z e er Hans Denck. As idéias radicais de Servetus e seu rrrígico fim já foram observados (ver VI:8), inas esse engenhoso pensador não fundou nenhuma escola de discípulos. O s principais anti~rinitáriosda kpoca vieram da Idlia, onde elenrentos do anabatismo c do espiritualisrno se misturaram com o espírito racionalisra do humanisnio italiano formando um quesrionarnento radical da doutrina cristã ortodoxa. Durante a década de 1550, alguns dos principais radicais italianos poderiam ser encontrados em Genebra uu nos seus arredores, onde havia urna grande e ilustre coilgregaqáo de refugiados protesrantes italianos. Entre os membros dessa diáspora italiana que ficaram profu~idamenteinquietos com a execuqáo de Servecus em 1553, e que em diferentes graus se identificavam com suas idéias, estavam Maceus Gribaldi (1506)-1564) c Joáo Valentino Ge~itile (1520?-1566). Gribaldi, famoso professor de direito civil em Pádua e depois em Tubirigen e Grenoble, foi reprovado publicamente por Calvino em 1555 por causri de seus erros. Gentile chegou a Genebra por volta de 1556, foi aprisionado em 1558 acusado de possuir idéias heréticas, fez uma retrataçáo pública humilhante (consciente da sorte de Serverus), e, depois de uma carreira itinerante que o levou à Polônia
de 1562 a 1564, foi decapirado em Berna em 1566. De muito maior irnporrância foi o medico piernonrês Jorge Biandrata (15 15)-1588),que passou um ano em Genebra como presbítero da congregacáo iraliana, mas achori prudente mudar-se para a Polônia em 1558. Lá foi médico das famílias que governavam o país e a Tiansilvânia. Nesta última região auxiliou a fundar uma comunhao unitária que, em 1571, obteve reconhecimento legal por decreto do rei Joáo I1 Sigismundo da Hungria (1 540-1571) um marco na história da tolerância religiosa lia Europa. O principal aliado de Biandraca nessa obra notá~relfoi Francisco Dávid (1 5 I O?-1579), sucessivamente o
superintendente das igrejas luteranas, das calvinistas e das unitarianas naTransiivânia, que em 1565 comeqara a pregar abertamente contra a doutrina da Trindade.
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O s que estavam fadados a dar seu nome ao nascente movimento anti-trinitário foram os dois Sozzinis, tio e sobrinho. Lélio Sozzini (Socinus, 1525-1562) era de importante familia de juristas de Siena e ele próprio estudante de direito. Convertido ao protestantisino rio início da década de 1540, passou muito de seu tcmpo viajando pela Europa. Viveu por um ano (1550-155 1) em Wittenberg, desfrutando da amizade de Melanchthon apesar de sua percepcáo "espiritualizante" dos sacramentos. Foi bem acolhido em Basiléia e Genebra, mas por fim fixou residência em Zuriquc, onde faleceu. A execuçáo de Serverus chamou sua atencáo para o problema da Trindade, mas suas especulaçóes não se tornaram públicas durante sua vida. Seu sobrinho, muito mais influente, Fausto Sozzini ( 1 539-1604), tambim natural de Sieria, residiu em Lyon de
156l a 1563, com viagens a Genebra e Zurique em 1562.
Em Zurique reuniu as aliotaçóes de seu falecido rio e, sob sua influência, escreveu em Lyons sua Explicatio do prefácio do evangelho de Joáo. Fausto residiu novamente na Itália de 1563 a 1574, conformando-se exteriormente à igreja romana. Em 1574 estabeleceu-se em Basiléia, onde escreveu seu maior tratado, DeJesu Chi-isto servdtore
(1 578, publicado na Polônia em 1594). Nessa obra, como cm seu anterior E~cpliratio, Fausto rejeitou a divindade "natural" de Cristo em favor de uma divindade e um governo mundial concedido pelo Pai ao Filho na Ascensáo, em retribuiçáo de seu ofício como Servo de Deus justo e sofredor. Em 1578 ele foi para a Transilvânia, por insistência de Biaiidrara (que estava entáo envolvido em amarga querela com D5vid devido à insistência deste de que Crisro i ~ á udeve ser adorado nem lhe serem endereçadas as oracoes). Fausto foi para a Polônia em 1580, entzo o país mais tolerante na Europa, e ali residiu até sua morte em 1604. Graças aos labores de Fausto Sozzini e oucros na Polônia, os protestantes antitrinitários - a assim chamada Igreja Reformada Menor - co~isolidou-scconsidcravelmente e exprimiu suas crenças de forma efetiva no Catecismo Kacoviano. Publicado em Raków em 1605, a cidade da qual tomou seu nome e na qual os "Irmáos Poloneses" tinham sua sede, esse catecismo foi redigido por um grupo de discípuios de Fausto. Ele é uma notável combinacáo de arrazoados racionalistas e cru sobrenaturalis~no.A base da verdade C a divinamente inspirada Escritura, mas a confian$a no Novo Testamento está baseada primeiramente nos milagres que acompanharam sua proclamaçáo e especialmente no supremo milagre da ressurreiçáo. O Novo Testamento, assim confirmado sobrenaturalmente, C a garantia do Antigo. O propósito de ambos é mostrar ao entendimento humano a senda para a vida eterna.
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UlSTbRlA OA IGREJA E R I S T ~
Ainda que neles haja coisas acima da razão, nada há de valor contrário à razão. O livre arbíerio humano é afirmado, e sáo negados o pecado original e a predestinaçáo.
O dogma eclesiástico daTrindade náo é nem bíblico nem racional. A única fé que as Escrituras exigem é a crença na existência de Deus e de que Ele é gaiardoador e juiz.
O ser humano 6 mortal por natureza e náo pode por si mesmo encontrar o caminho para a vida eterna. Daí Deus ter lhe dado a Escritura e a vida e o exemplo de Cristo.
O próprio Cristo era homem mortal, mas náo homem ordinário. Mediante seu nascimento miraculoso da Virgem Maria, eie era o Primogênito de Deus e portanto dotado de sabedoria e poder. Ele revelou perfeitamente a vontade divina e deu o exemplo da vida moral perfeita, selada com sua morre penosa. Deus portanto levantou-o dos mortos e, na Ascensáo, atribuiu-lhe uma divindade adotiva e fê-lo coregenre do mundo. Consequen~emence,Cristo agora é digno de oração e invocação.
A vida cristã consiste em alegria em Deus, oracáo e açáo de gracas, renúricia do mundo, humildade e paciência permanente. Suas conseqüências sáo o perdáo dos pecados e a vida eterna. A Ceia do Senhor deve ser observada como um ato de comemoraçáo da morte de Cristo. O batismo náo tem valor regenerador, náo é apropriado às crianças, e quando muiro é um riro pelo qual os conversos ao cristianismo sinalizam publicamente sua adesáo a Crisco como seu Mestre. (Fausto negava a utilidade do bacismo para quem já nasce cristão; após sua morre, enuetanto, o batismo de fiéis por imersáo tornou-se uma marca característica do socinianismo.) Tudo no socinianismo, portanto, estava centrado na vida moral do crente. A saivaçáo náo é pela fé somente, mas pelo correto conhecimento e prática obediente do caminho prescrito escrjturalmente para a vida eterna - o caminho de obediência ativa à lei de Deus revelada e exemplificada de forma suprema por Jesus Cristo. Em sua ênfase na fé-como-conhecimento, o socinianismo revelava sua afinidade com desenvolvimentos aparentados na ortodoxia reformada e luterana. Em sua nega~áo da justificação s o h j d e , como também em sua rejeiqáo dos milenares dogmas trinitários e cristológicos, o socinianismo rompeu decisivamente com o cristianismo reformado clássico.
O socinianismo foi banido da Polônia em 1658, principalmente devido aos esforqos dos jesuítas, mas encontrou adeptos na Holanda e mais ainda na Inglaterra, onde teria influência considerável.
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Capitulo 13
Arminianismo Na última década do século dezesseis e nos primeiros anos do dezessete, a igreja reformada nos Países Baixos (as Províncias Unidas) foi dilacerada por uma amarga controvérsia centrada nas questões da predestinaçáo e da adequada relaçáo entre igreja e estado. De um lado estava o grupo dos calvinistas estritos, defendendo a doutrina da predestinaçáo incondicional por Deus dos eleiros e dos réprobos desde antes da fundação do mundo, e afirmando o direito da igreja governar-se completamente, embora buscando o estado para proreçáo e manucençáo. Estes "alros" calviiiistas defendiam, portanto, a poiítica eclesiástica genebrina de "não interferência" dos magistrados nos negócios espirituais, e na teologia representavam em p n d e parte as idéias de Teodoro Beza (15 19-1605), sucessor de Calvino em Genebra. Beza assumira e desenvolvera a doutrina da predestinaçáo de Calvino, dando-lhe uma precisão lógica e ordenaçáo sistemática que náo se encontra no próprio Calvino, e tornando-a o centro do sisrema
teológico. Muitos desses calvinistas influenciados por Genebra eram
refugiados do sul dos Países Baixos e náo estavam inclinados a tolerar qualquer desvio daquilo que assumiam ser a verdadeira fé "reformada". Do outro Iado estava o
grupo dos "arminianos", que defendiam que a predesrinaçáo diz respeito apenas ao homem em seu estado de queda ou pecaminoso, náo ao homem enquanto não criado, e que o decreto divino de eleição e condenaçáo está baseado no conhecimento prwio que Dcus tem do comportamento das pessoas. Eles também defendiam que os magistrados cristáos sáo táo responsáveis pelo cuidado espiritual da igreja como o
sáo por seu bem-estar temporal; conseqiientemente, tais magistrados podem emitir leis relativas à política eclesiástica e podem participar lia nomeaçáo e supervisão de ministros.
O líder deste último grupo, continuamente cercado por seus adversários, era Jacó Harmenszoon (Jacobus Arrninius, 155311 560-1 609). Ele tem sido descriro frequentemente como humanista ou racionalista, mas é muito melhor vê-lo como encontrando-se na tradicáo dos reformadores protestantes holandeses autóctones que pouco ou nada deviam ao calvinismo gxebrino. Tais reformadores eram a favor de
uma igreja inclusiva, que náo insistisse sobre definiçóes credais precisas nem se preocupasse com teologia "especulativa", e que buscasse o magistrado cristão para orientação em todos os aspectos da vida eclesiáscica. Entre esses reformadores holandeses mais antigos c não dogmáticos, que foram nutridos por uma piedade bíblica visando a uma religião "purificada", estavam Dirck Coornhert (1522-1590) e Gaspar Coolhaes
( I 534-1615). Arminius, natural de Oudewarer, na Hoianda, recebeu instruçso primária em Utrecht, possivelmente na Gmosa Escola Sáo Jerônimo, fundada no stí.culo quinze pelas Irmáos da Vida Comum. Em 1575 ele perdeu sua mãe, irmãos e parentes quando Oudewater foi devastada por tropas espanholas. O s amigos ajudaram de forma que ele pôde continuar seus estudos na universidade de MarLurgo e, de 1576 a 1581, na universidade de Leyden. Esta última instituiçáo fora fundada por Guilherme de Orange em 1575, e Arminius esteve entre os primeiros estudantes a se matricularem nela. Depois ele foi enviado, as custas da Corporaçáo dos Mercadores de Arnsterdam, para Genebra, e ali estudou sob Aeza - de quem discordou desde o início - de 1582 até 1586, com um ano de estudo em Basiléia (1 583-1584). Após uma viagem à Italia, ele retorriou para os Países Baixos em 1587, e no ano seguinte irigressou em um pastorado que durou quinze anos em Amsterdam, conquistando no~oricdadccomo pregador e pastor de espírito irênico. Embora ele fosse muito considerado por seus paroquianos e pela magistratura de Amsterdam, suas idéias logo susciraram a ira de seu companheiro clerical Perrus Plancius (1552-1622), calvinista rigoroso que alcancara fama (e riqueza) como cartógrafo da Companhia Holandesa das indias Orientais. Em 1603 Arminius foi escolhido para suceder o esrimado Franciscus Junius (1545-1602) corno professor de ceologia em Leyden, onde permaneceu até a morte. Dentro de um ano após sua chegada em Leyden, Ar-minius foi envolvido em uma áspera disputa com um colega teólogo, Franciscus Gornarus (1563-1641), reprcscntante extremado da idéia "supralapsariana" de predescinaçáo, em contrário à posiçáo "sublapsariana" (ou "infralapsariana"). Essa questão dizia respeito à "ordem" do "decrero" divino de predesrinaçáo. Deus decretava eternamente a eIeiçáo e a não eleição das pessoas e entáo permitia a queda como um meio pelo qual esse decreto absoluto pudesse ser execueado (rz~pmIapsum)? O u Deus permitia que a queda ocorresse e apenas entáo decretava a eleição e a náo eleiçáo das pessoas (sub ou i n f i Lnpsum)?O próprio Calvino náo trabalhara sobre esse tema, náo oferecendo nenhuma "ordem
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dos decretosn. Essa tarefa ficou para Beza; e ele, como Gomarus, ensinava que Deus decretara erernamente salvação e condenaçáo sem levar em consideracão o homem enquanto criado, muito menos enquanto caído. O decreto eterno, absoluto de Deus -
sua soberania todo-determinante - tem que ter prioridade sobre, e informai; todas
as outras consideracóes antropológicas e teológicas. Arminius, de sua parte, náo era nem supralapsariano nem s ~ ~ b l a ~ s a r i acnnisso o, residia um de seus principais distariciamentos do "alto calvinisnio".
A primeira posi-
çáo, a seu ver, fazia de Deus o autor do pecado, enquanto arnbas as posições deixavam de dizer o que é decisivo. EIe ensinava, ao invés, que Deus primeiro nomeara Jesus Cristo como o Redentor e Salvador do pecado, e que os crentes sáo predestinados para a salvaçáo somente em Cristo. O primeiro e absoluto dccrero dc Dcus, portanto, teve Cristo somente como seu objeto, e a predestinacão tem que ser discutida apenas nesse contexto cristológico. Daí, a predestii-iagán das pcssoas não ser absoluta mas condicional à sua aceicagáo ou rejei~áode Cristo. O u seja, Deus determina salvar aqueles a quem prevê que iráo crer em (:risco e perseverar na fé, enquanto deseja condenar aqueles a quem prevê que não iráo crer em Cristo e perse\~eraráo na dcscrenqa. (A presciência de Deus é portanto a base da prede~tina~áo, e náo o contrário). Nesse contexto, Armínio tinha que deixar cspaqo para a escolha humana, isto é, para um ato de crer da parte das pessoas que são salvas e, da mesma forma, para um ato de rejcivar a oferta de salvação de Deus da parce dos condenados. O ato de crer, entretanto, somente ti possí~relpor causa da graGa divina, e não pode ser ccinsiderado meritório; fora de tal graça, o arbítrio humano está aprisionado ao peca-
do e assim, abandonado a si mesmo, resiste ao Espírito Santo e rejeita a graça de Deus oferecida no Evangelho. Portanto, a graça capacira a pessoa a cooperar no ato
de crer, mas tal cooperacão é o resultado de renovação pelo Espírito Santo, náo o meio para a renovação. Essa noção de "graça cooperante", por mais quc circunscrita, náo tinha lugar no calvinismo estrito, mas era similar ao "sinergisrno" esposado por Filipe Melanchthon em seu período posterior (ver VJ:13). Depois da morte de Arminius, em 1609, a direçáo do pareido "arminiano" coube a seu amigo íntimo e pregador da corte, Joáo Uitenbogaert (1557-1644), c a Sirnáo Biscop (Episcopius, 1583-1643), discípulo e amigo de hrminius, que pouco depois
se tornaria professor de teologia em Leyden. Em 1610 eles e mais quarenta e dois ministros, agindo em resposta a um pedido anterior dos Estados da Holanda, redigiram uma declaraqáo de sua fé intirulada "Rcmonscrance", a qual deu ao grupo o
nome de "Remonstrantes". Contrariando a doutrina calvinista da predestinaçáo absoluta, ela ensinava uma predestinaçáo baseada na presciência divina do uso que as pessoas fariam dos meios de graca. Combatendo a doutrina de que Cristo morreu apenas pelos eleitos, ela afirmava que Ele morreu por todos, ainda que ninguém receba os benefícios de Sua morte, exceto os crenres. Era acorde com o calvinismo na negaçáo da capacidade de as pessoas chegarem ao arrependimento e a fé por si mesmas - tudo depende da graça. Consequenremenre, os arminianos náo eram pelagianos, embora essa acusação tenha sido repetida constantemente contra eles. Em oposiçáo i doutrina calvinista da graça irresistível, ensinavam que a graça pode ser rechaçada, e mostravam incerteza com referência ao ensino calvinista da perseveranqa, defendendo que era possível que as pessoas
perder a graça uma vez recebida.
Desde a época de sua irrupqáo pública n o final de 1604, a controvérsia arminiana
-
apesar de seu caráter acadêmico e abstruso - suscitou conflitos por
todas as províncias protestantes dos Países Baixos, uma vez que a teologia estava intimameiite vinculada
política. Os arminianos eram apoiados por Joáo van
?i
Oldenbarneveldc (1547-16 19), líder civil da província da Holanda e o personagem dominante nos Estados Gerais das Províncias Unidas; e pelo eminente jurista e historiador, Hugo Grotius (1 583-1645), autor de duas obras famosas - De jure belli acpncis (1625), que lhe rendeu o título de "fundador do direito internacionaIn, e De veritirte religionis chri~tilrnne(1'622), na qual ele propôs uma nova teoria da obra expiatbria de Cristo. Oldenbarneveldt, Grotius e os arrninianos eram tolerantes religiosa e teologicamente, politicamente republicanos, e defensores do direito de a magistratura exercer jurisdicáo tanto civil quanto eclesiástica. Eles também eram a favor de uma trégua com a Espanha no permanente conflito cnrrc norte e sul. (Em 1609, a assim chamada Trégua dos Doze Anos foi de fato assinada.) Eles foram opostos pelo stndholdei. Maurício de Nassau (1 567-
1625), filho de Guilherme de Orai-ige e notável líder militar das Províncias Unidas, que desejava se estabelecer como soberano no norte e visava a reconquistar da Espanha as províncias meridionais. C o m ele escava a grande maioria dos calvinisras (os "contra-remonstrantes"}, que apoiavam seus olijetivos bélicos, eram fortemente anti-católicos, eram a favor da centralizacão do governo e insistiam em uma política eclesiástica presbiteriana. Em julho de 16 18 Maurício utilizou a milícia para efetuar um golpe de estado nas principais cidades da Holanda, substituindo os magistrados simpatizantes dos remonstrantes por aqueles favo-
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ráveis aos contra-remonstrantes. Oldenbarneveldt foi acusado de traição e decapitado em 1 3 de maio de 1619. Grotius foi condenado à prisáo perpétua, mas fugiu da prisáo com a ajuda de sua esposa em 1621. Entrementes, fora convocado um sínodo nacional pelos Estados Gerais, agora "purificado" da influência arminiana, para decidir a controvérsia. A assembléia se reuniu em Dorr (atual Dordrecht) de 1 3 de novembro de 1618 a 9 de maio de 1619. Além de representantes dos Países Baixos, também participaram delegados da Inglaterra, Escócia, Palatinado, Nassau, Hesse, Bremen e Suíça. Os remonstrantes estavam presentes apenas como acusados; náo tiveram assento. O sínodo de Dort, como era de se esperar, condenou o arminianismo e adotou noventa e três "cânones" rigorosamente calvinistas, que juntamente com a Confissáo Belga e o Catecismo de Heidelberg tornou-se a base doutrinária da igreja reformada holandesa. Em 23 de abril de 1619 foram adotadas cinco séries de artigos que afirmavam especificamente os "cincos pontos" do calvinismo em réplica ao armiilianismo; (1) eleição absoluta, incondicional; (2) expiacáo cuja eficácia é limitada aos eleitos; (3) depravacão total do "homem natural"; (4) irresistibilidade da graGa; e (5) perseveranga final dos eleitos. O sínodo, entretanto, náo adotou as idéias supralapsarianas de Gornarus.
Em conseqüência do sínodo de Dort, os arminianos foram proibidos de pregar e muitos fugiram do país; mas quando da morte de Maurício, em 1625, c a ascensão de seu irmáo Frederico Henrique (1625-1647), que favorecia os remonstrantes, as medidas contra eles ficaram só no papel. Muitos dos rernonstrantes retomaram, ainda que sua fé náo tenha recebido reconhecimento oficial senáo em 1795. Nos Países Baixos, a associaçáo cresceu vagarosamente; ela existe atualmente como a Irmandade Reinonstrante ou Igreja ReformadaRemonstrante. Seu tipo de piedade em sua pátria foi predominantemente intelectual e ética, e foi um pouco influenciada pelo sociilianismo. O arminianismo teria influência maior na Inglaterra do que em sua pátria e provaria, na pessoa de Joáo Wesley, sua possibilidade de associa~áocom um tipo de piedade ráo calorosa e emotiva como qualquer interpretaqáo da crença cristã pode exibir.
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HISTÓRIR i l h IPREJA CRISTR
Capítulo 16
Anglicanismo, Piiritanismo e as Igrejas Livres na Inglaterra, Episcopalisrno e Presbiteriaiiismo na Escócia A posição da rainha Isabel I da Iilglaterra, no começo de seu reinado, era exrremarriente difícil. Suas relaqóes com os católicos romanos já foram consideradas (ver
VI:12). Estarido seus súditos longe da unidade religiosa e ela enfrentando conspiraçóes internas e inimigos no exterior, foi somente com manobras políticas extremamente habiiidosas que ela coiiseguiii giiiar sua iiau com êxito. Seus
problemas se
ampliaram com as divisóes que foraiii surgindo, logo após o início de seu reinado, enrre os que concordavam com o seu rompimento com Roma. Tais dificuldades aumencavam airida mais, à medida que decorria seu reinado, pelo despcrtamento da vida religiosa popular que estava transformando uma riaqáo que outrora permanccera espiritualmente apática, na época das mudanças efetuadas por Henrique VIII, Eduardo V1 e Maria. Isabel procurou fazer com que sua resolucáo dos conflitos religiosos fosse, dentro do possí\~l,de fiicil acriraqáo. A igreja, em seu clero c ofícios, se pareceria ao antigo culto tanto quanto o sentimento prorestante pudesse tolerar. Com poucas exceçóes, todo o clero paroquial se conformou. Isabel, de bom grado, deixaria o clero em paz em suas igrejas desde que ele ficasse quiero, embora náo se pudesse confiar neie nem em sua cordial aceitaçáo do protestantismo, nem em sua capacidade para pregar ou em seu zelo espiritual. A atitude de Isabel foi sábia, do ponto de visra político. Por
causa dela, a Inglaterra foi poupada de guerras como as que devastaram a França e a Alemanha. Desde o comeco, todavia, a rainha se viu face a face com um protestantismo mais agressivo, que náo considerava a idéia dela de uma igreja ampla, nacional, abrangcnce, suficientemente "reformada". Muitos dos que foram exilados no tempo de Maria sofreram a influência de Genebra, Zurique ou Frankfurt e voltaram cheios de admiraçáo por um protestantismo radical. Em sua maioria eram pessoas tomadas de profundo zelo reiigioso, e com as quais Isabel teria que contar no seu conflito corn Roma. Mas a rainha pensava que, se eles conseguissem introduzir as rnudai~qasque deseja-
vam, agitariam a situacáo que, com dificuldade, era mantida em paz. D o ponto dc vista religioso, eram facilmente cornprecnsíveis as aspiraçóes de tais pessoas. Para elas, a Bíblia era a autoridade básica, suplantando toda a pretensáo da igreja de ser intérprete ou guardiá da tradiçáo detentora de auroridade. Queriam banir dos ofícios o que criam ser remanescente da superstição romana e desejavam para cada paróquia um pregador zeloso, espiritual. Em particular, eram conrrários às vestes clericais prescritas, achando que perperuavani na mente popular a idtja do ministério como um estado espiritual de poderes peculiares e consequenremente náo col-icorde com o sacerdócio de todos os crentes. Também se opunham à genuflexáo para a recepçáo da Ceia do Senhor, dizendo que tal atitude implic.ava adoraçáo da presença física de Cristo nela, e a execuçáo d o sinal da cruz no batismo, por considerar isso urna supcrstiçáo. Ademais, combatiam o uso de aliancas 110 casamento, tcndo-o como continua~áodo co~iceitodo matrimdnio como um sacramento. Em virtude desse desejo de purificar a igreja, no início da década de 1560 estas pessoas passaram a ser chamadas "puritanos". Em 1563 os puritanos procuraram assegurar seu programa de reformas através da convoca~ãodo clero da provincia de Cantuária, o corpo legislativo da maioria da igreja da Inglarerra; mas foram vencidos por apenas um voto. Muicas puritanos já haviam começado a adotar práticas mais simpies no culro e a usar roupas comuns. Sob a direGáode tourenco Humphreu (1527-1590j, presidente do Magdalen College, Oxford, eTomás Sampson (1517-1589), deáo da Igreja de Cristo, Oxford, ambos exilados no tempo de Maria, teve início acalorada discussão puritana sobre o uso das vestes obrigatórias - 3 "Conrrovérsia Isabclina sobrevestes".
A universidade de Çarnbridge muito simpatizava com
OS
pul-itarios. Mas iiesrc as-
sunto a política da rainha se opunha com vigor a qualquer m o d i f i ~ a ~ á Assim, o. em
1566 o arcebispo Mateus Parker publicou seus "Anúncios",' exigindo que rodos os pegadores obtivcssem novas 1icenç.a~dos bispos; proibindo sermões provocadores de coiitrovérsias; exigindo 3 genufIexáo na comunháo; prescrevendo minuciosaiiiente
as vestes clericais. Diante dessa regulamei~taçáo,vitrios clérigos puritanos foram
privados de seus cargos, inclusive Sampson, que ficou preso durante algum tempo. Uma nova questáo surgiu entre aqueles que haviam aprendido nos centros refor-
H. Gec r W. J. Hardy, eds., L)ocu~nciztiJIluftrdtiue qf-Eiiglijil C77urc.h H i ~ t n r(Londres, ~ iS96), pp. 467jyj.
mistas do continente que qualquer culto para o qual náo se encontre base bíblica é um insulto à divina majestade. Eles começaram a questionar se um sistema eclesiás-
tico que depóe minisrros que se recusam a usar vestes e adotar cerimônias impossíveis de se demonstrar peia Escritura é o que Deus deseja para a igreja. Além disso, uma vez que liam seu Novo Testamento com óculos genebrinos, alguns puritanos 1á encontravam um padráo definido de governo eclesiástico totalmente diferente do existente na Inglaterra. Conforme esse padráo, a disciplina era mantida por anciáos, os ministros oficiavam com o consentimento da congregaçáo e havia paridade espiritual essencial entre os que, como disse Calvino, as Escrituras, ao descrevê-los como Foi "bispos, presbíteros e pastores", "empregam essas palavras como ~inônimas".~ essa mesma convicçáo quanto h igualdade essencial dos que exercem funçáo espiritual que fortaleceu o ~resbiterianisrnoescocês em sua longa luta com a "prelazia", ou governo eclesiástico episcopal.
O representante e líder desse desenvolvimento dentro do puritanismo foi Tomás Carmright (1 5352-1603). Em 1569, como professor de divindades na Universidade
de Cambridge, advogou a nomeaçáo de anciáos para a disciplina nas paróquias, a elei~áode pastores elos membros dessas comunidades, a abolição dos ofícios de arcebispos e arcediagos e a equiparação essencial entre o clero. Isso era presbiterianismo prático, e daí em diante os puritanos mais radicais avançaram no rumo presbiteriano.
Os argumentos de Cartwright suscitaram a oposição daquele que viria a ser o principal inimigo dos primeiros puritanos, Joáo Whitgift (1530-1604). Contra a afirmaçáo de Cartlvright do presbiterianismo de jure divino, Whitgift longe estava de defender autoridade similar para o episcopado. Para ele essa era a melhor forma de governo eclesiástico, mas negava que nas Escrituras houvesse modelo explícito, e afirmava que neIas rnriiro é deixado ao juízo da igreja. Em 1572, Whitgift conseguiu por fim que Carnvright fosse expulso da universidade, da qrial, cerca de dois anos
anres, fora removido do
Desde entáo Cartwright viveu errante e perse-
guido, a maior parte do tempo no continente, labutando infatigavelmente pelo progresso da causa puritana presbiteriana. extreAs mudanças pleiteadas por Carnvright foram apresentadas num mado mas de grande apelo popular, intirulado AdmoestaçZo ao Parlamento, escrito por dois ministros londrinos, Joáo Field 0-1588) e Tomás Wilcox (1549?-1608).
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Whitgift escreveu uma réplica a esse panfleto, a qual foi, por sua vez, replicada por Carnvriglit. Alguns puritanos eram mais moderados que este último, e achavam que eram necessárias relativamente poucas alteraçóes na constituiçáo eclesiistica em vigor. Para eles, cerimônias censuráveis podiam ser abolidas, o Livro de Oração revisa-
do, anciáos instituídos nas parbquias e os bispos mantidos como presidenrcs das igrejas de cada diocese organizada como um sínodo, pvimi intevpaves. Mas o espírito presliteriano crescia, e na década de 1570 foram feitos vários experimentos presbiterianos dentro da estrutura eclesiCstica em vigor. Foram realizadas reuniões de ministros e leigos piedosos para prega~áoe discussáo - reunióes denominadas "profetizantes". Em alguns casos - primeiro em Wandsworrh, perto de Londres, em 1572
-
congrega~óesvoluntariamente se organizaram numa espécie de presbitério
paroquial. A posiçáo prcsbireriana foi exposta pela publicaqáo em 1574 de Uma Declavaçáo Completa e Chrn da Disciplina Eclesidstica, por um ex-professor de
Cambridge, Walter Travers (1548?-1635).Tudo isso foi auxiliado pela ascensáo ao arcebispado de Cantudria, quando da morte de Parker em 1576, de Edmundo Grindal
(1 5 19)-1583). Elc simpatizava com os puritanos e foi suspenso por suas conscientes objecões às ordens da rainha de proibir as reunióes "profetizantes". Cartwright e seus companheiros puritanos se opunham a qualquer separação da igreja da Inglaterra. A idéia deles era introduzir o mais possível a disciplina e a prática puritanas e esperar que ulteriores reformas fossem feitas pelo governo. Tal cxpectativa não parecia sem fundamento. A constimiçáo e o culto da igreja do país haviam sido alterados quatro vezes no decurso de uma geração. Náo poderia haver em breve uma quinta mudanca para um modelo que os puritanos julgavam ser mais bíblico? Eles iriani agiíar e esperar. Foi esse, no geral, o programa dos puriranos. Entretanto, havia alguns que achavam tal espera injustif~çável.Estes queriam estabelecer logo o que lhes parecia escriturístico. Eram os "separatistas", dentre os quais surgiriam os proponentes da polírica congregacional. Em 19 de junho de 1567 as autoridades de Londres capturaram e aprisionaram alguns dos membros de uma congregaçáo separatista, ostensivamente reunidos para um culto e cclebraçáo de um matrimônio. Esse grupo achara que não podia seguir livremente a Palavra de Deus dentro da estrutura da igreja da Inglaterra e escoIhera seus próprios dirigentes, sendo ministro Eùcardo Fitz. Além desse grupo
- "l'lumber's
Hall" - havia outros grupos
não-conformistas, mas no primeiro período puritano as atividades separatistas foram de caráter fugaz e temporário.
O primeiro defensor realmente notável das idéias separatistas na Inglaterra foi Roberto Browne (1 550?-1633),estudante em Cambridge nos tempestuosos tempos do breve professorado de Carnvright, onde se graduara em 1572. Começando corno puritano presbireriano progressista, por volta de 1580 adotou príncipios separatistas e, juntamente com seu amigo Roberto Harrison, fundou em Norwich uma congregação independenre, cm 158 1. Foi preso várias vezes por causa de sua prcgaçáo. Ele e a maioria de sua congregagáo buscaram segurança em Middelburg, nos Países Baixos. Browne publicara ali, em 1582, um grande volume contendo três tratados. Um, dirigido contra os puritanos que desejavam permanecer na igreja da Inglaterra, apre-
Nizguém, e senta seu ataque no título: h t a d o Sobre ztma Refoorrna sem E~pel-arpo~
Sobre n Impiedade Daqueles Pregddores que Núo se Re$rvzul-do . . . Até que o Magiltrddo as Ol-dene e Obrigue. Outro, Livro queilp~esentaa Kda e Comport~~narnto de Todos os VEi.dddei~osCYiStZos, descrevia a verdadeira igreja como formada de crentes reunidos por s u a própria vontade. De acordo com Browile, a única igreja é o agruparnento local de crentes com Cristo por experiência, unidos a Ele e uns aos outros por um pacto voluntário. Igreja assim tem Cristo corno sua cabeça imediata, c é por oficiais e leis por Ele designadas. Cada uma é autônoma e escolhe um pastor, um mestre, anciáos, diáconos e viúvas, conforme determina o Novo Testamento; mas cada membro C responsávei pelo bem-es~ardo todo. Nenhuma igreja cem autoridade sobre outra, mas todas se devem auxiliar fraternalmente.
O congregacionalismo de Rroxvne se assemelha em certos aspectos às idéias anabatisras (ver VI:4). Mas náo houve nenhum rrabalho anabatista organizado na Iilgla~erra,senáo no século seguinte. Browne náo demonstrou nenhuma dívida consciente para com os anabatistas, nem rejeirou o batismo infantil. O separatismci inglês surgiu principalmente de dentro do movimento puritano. Browne náo permaneceu como seu principal defensor por muito tempo. Sua permant.ncia na Holanda foi curta. Sua igreja era cheia de turbulência e, após algum tempo na Escócia, ele retornou para a Inglaterra, onde sc conformou à igreja estabelecida, ao menos exreriormenre,
em outubro de 1585, e passou o longo resto de sua vida, de 1591 a 1633, no ministirio daquela igreja. Enrrementes, quando Grindal era arcebispo, muitos do principal grupo de ministros puritanos, que haviam permanecido na igreja estabelecida, deixaram de usar, no todo ou ein parte, o Livro de Oração. Foi enfatizada a efetivaçáo de "Santa Disciplina" - Waiter Travers preparou uma segunda obra sobre esse tema, para servir de
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guia i prática puritana. Porém, Grindal foi sucedido na sé de Cantuária, de 1583 a 1604, por Whitgift. Calvinista na teologia, era rigoroso quanto à disciplina, c nesse sentido recebia caloroso apoio da rainha, a
era de
implacável hostilidade para
com o movimento puritano. Wliitgifc publicou de imediato ordens impondo total aprovaçáo e uso do Livro de Oraqáo, determinando vestes clericais e proibindo todas as reuniões religiosas privadas.' E desde entáo a ináo da repressão caiu pesadamente sobre os puritanos. Acirrou-se esta hostilidade pela publicação anônima de uma sátira contra os bispos. Era grosseira e injusta, mas extremamente espirituosa e irritante. Era claramente de origem puritana, ainda que
náo aprovada por eles.
Publicada em 1588-1589 c conhecida como "Panfletos de Marti~ihoPreladerrado
[ M q ~ ~ l a t rseu ] " autor jamais foi plcnamence ideiitificado, ainda que as probabilidades apontem jó ShrocIcmorton (1545- 160 I), leigo puritano. Alguns têm suspeitado de Joáo Pcnry (1553-1593), patiflctlirio galês.
A afirrnagáo pilritana e separatista do caráter divino dc seus sistemas estava entáo rapidame~itefortalecendo uma mudança de atitude lios líderes de seus oponentes, os anglicanos. Ricardo Bancroft (1 544-1610), que seria o sucessor de Whicgift como arcebispo, em seu sermáo pregado elii 1589 em Paul's Cross, Londres, tião só concienou o priritanismo como afrrrnou o direitojui-r divina do cpiscopado. Adriano Saravia
(1531-1613}, teólogo varão residente na Inglaterra, defenderia a mesma idéia um ano mais tarde. Da mesma forma Tomás Bilson (1547-1 61 G ) , que em breve seria bispo de Winchestel; em seu Governo Pe?pétuo da Igreja de (,'i-isto, cm 1593. h/Ienos extremado foi o erudito Ricàrdo Hooker (1 553)-1600), em suas Leis de Pulíticn Ecle-
siáftict~,publicadas em 1594 e 1597. Cria ele que o episcopado estwa firmado na Escritura; mas seu principal argumento a favor do episcopado era a sua razoabilidade
essencial, concra o biblicisino extremado dos puritanos. Estavam lanqados os fundamentos de um partido da alta igreja.
A repressáo ao puritanismo e ao separatismo foi deveras auxiliada pelo 'Ilibunal da Suprema Comissão. Desde o tempo de Heniique VI11 era expediente favorito do rei controlar assuntos ou
cclesiásticos por meio de comissões nomeadas para
investigar e julgar sem estarem sujeitas aos processos ordinários da lei. O sistema se desenvolveu gradualmente. Isabel o ampliou e o firmou; mas ele só se tornou uma comissáo eclesiástica totalmente eficiente quando Baricroft tornou-se um de seus
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HISTÓRIA DA [GREdA CRISTA
membros, em 1587. Por volta de 1 592 alcançara plenamente seus poderes. A presunção de culpabilidade era contra o acusado, e a natureza das provas era indefinida. Esse tribunal podia examinar e aprisionar em qualquer lugar da Inglaterra, e se tornara o braço direito da autoridade episcopal.
O separatismo arrefeceu depois da volta de Browne à igreja da Inglaterra, mas logo reapareceu. Em 1587 Henrique Barrow (1550)-1593),advogado londrino, e o clérigo João Grcenwood (?-1593) foram presos por promoverem reuniões separatistas em Londres. Da prisáo faziam sair secreramente manuscritos que apareciam como tratados impressos na Ilolanda, atacando tanto os anglicanos como os puritanos e defendendo princípios separatistas escritos mais radicais que os de Browne. Conquistaram vários adeptos, inclusive o ministro puritano Francisco Johnson (1562-
1618). Em 1592 foi organizada em Londres uma congregaçáo separatista, rendo Johnson como pastor e Greenwood como mestre. Em 6 de abril do ano seguinte Barrow e Greenwood foram enforcados por negarem a supremacia da rainha em assuntos eclesiásticos. No mesmo ano o parlamento aprovou uma tei proclamando o banirnenco de rodos que desafiassem a autoridade eclesiástica da rainha, recusassem frequentar a igreja ou comparecessem a qualquer "conventículo" onde se realizasse outro culto que náo o legal.5 Por causa dessa lei, muitos da congregação de Londres foram compelidos a se refugiar em Arnsterdam, onde Johnson, após ter sido solro, coneinuou como seu pastor enquanto Henrique Ainsworrh (1571-1623) tornou-se seu mestre. Os anos finais do reinado de Isabel também presenciaram o início de uma reagâo ao calvinismo dominante. Em 1595 surgiu uma controv&rsiaem Cambridge, onde Pedro Baro (1 534-1599) defendia as doutrinas liberais de Arminius. Tal discussão propiciou a pubIicaçáo, sob os auspícios de Whitgift, dos fortemente cajvinistas "Artigos de Lambeth",' mas a tendência de criticar o calvinismo, assim iniciada, aurnentou. A oposiçáo completa ao puritanismo seria mais e mais característica do partido anglicano.
O longo reinado de Isabel findou em 2 4 de marco de 1603. Sucedeu-a o filho de Maria, "rainha dos escoceses", Tiago 1 (1603-1625). Ele já ocupava o trono escocês desde 1567, como Tiago VI. Todos os partidos religiosos da Inglaterra \Firam ' com
" Ibid., pp. 492-498. P. Schaff, çd., C r e d !f Christriidom, 6 a cd., 3 volunirs (Nova Iorque, 1319), 3:523.
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~ a r o i nui
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esperança sua ascensão. Os católicos por causa de seu parentesco, os puritanos presbiterianos por causa de sua formaçáo e os anglicanos por causa de suas altas concep~óessobre o direito divino e sua hostilidade para com o governo presbiteriano, que se desenvolvera em suas longas lutas para manter o poder da coroa na Escócia. Apenas os anglicanos acertaram quanto ao seu caráter. Sua frase favorira era: "Sem bispo náo há rei." Nas pretensóes e na açáo náo era mais arbitrário que Isabel, mas o país suportaria de um governante popular e admirado muitas coisas que o magoariam se o soberano fosse aiitipático, indigno e náo representativo. Quando de sua viagem a Londres, em abril de 1603, Tiago I recebeu a "Petiçáo Milenária".b Era assim chamada porque dizia representar mais de um milhar de ingIeses, embora náo levasse nenhuma assinatura. Era uma exposicáo mui moderada das aspiraçóes puritanas. Dela resultou, em janeiro de 1604, a realizaçáo de uma conferência em Hampton Court entre bispos e puritanos, estando presente o rei. Além do próprio soberano, o ~rincipaldefensor do anglicanismo foi Bancroft, entáo bispo de Londres. Náo foi concedida nenhuma das grandes rnudaqas que os puritanos desejavam, exceto uma nova tradução da Bíblia. Daí apareceu a versáo "Aucorizada" ou "King James", em 1611. Os puritanos receberam ordem de se conformar. Essa vitória anglicana foi seguida, em 1604, pela promulgaçáo, com o apoio real, de uma série de cânones que tornavam lei eclesiástica muitas das declaracóes e práticas contra as quais os puritanos faziam objeções. O principal inspirador disso foi Bancroft, que cm breve sucederia a Whirgift na sé de Cantuária (1604- 16 10). Os puritanos se alarmaram sobremaneira, mas Bancroft no governo foi mais generoso do que suas declarações e atitudes anteriores ~ o d e r i a mdar a entender, e apenas um número relativamente pequeno de ministros foram realmente excluídos. O anglicanismo também se fortalecia pela ineihoria gradativa da formacão e zelo de seu clero, para a qual
Whitgift e Rancrofc muito concribuíram - sendo notável exemplo o erudito, piedoso e eloquente Lancelote Andrewes (1555-1626) feito bispo de Chichester em 1605. O sucessor de Bancroft no arcebispado foi Jorge Abbot (161 1-1633), pessoa de poucas simpatias c calvinista acirrado. Era impopular entre a maioria do clero e caiu
em desgraça na última parte do seu episcopado. Os anglicarios sentiram a perda de líderes hábeis como Whitgift e Bancroft e, em tal circunstância, não apenas o puritaC . I,. Manschreck, ed., il Histor~uj'lhristiailiq: Headinys in tbr Histor~uf tlie C~hurchfiov2the Reformatioir the Prejenb (Grattd Rupids, MI, l < ) S l ) ,yp. 137-198.
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HISTORIA DA IGREJA GRISTA
nismo mas também o separarismo fizeram grandes progressos.
Um movimento separatista cujas últimas conseqüências foram de largo alcance ceve seu início logo no princípio do reinado de Tiago I, quando Joáo Smyth (1 570!1612), ex-clérigo da igreja es~abelecida,adotou princípios separatistas e se tornou pastor de uma congregação em Gainsborough. De imediato conseguiu aderentes nos distriros rurais adjacentes, e uma outra congregaçáo se formou na casa de Guilherme Rrclvster (156Oj-1644), em Scroohy. O jovem Guilherme 13radford (1590-1657) era membro dessa congregaçáo. Ele desfrutou da direçáo do erudito e amável Joáo Robinson (1 5751-1 625), que era, como Smyth, ex-clérigo da igreja da Jnglarerra, e como ele tambkni cria que o separatismo era o único caminho lógico. Sentindo o peso da oposição, os meinbros da congregação de Gainsborough, liderados por Smpth, exilaram-se em Amsterdarn, provavelmente ein 1608. A congrega<;áode Scroob): dirigida por Robi~isone Ri-enster, segiiiu o mesmo caminho para a Holanda, estabelecendo-se por fim em Le)-den, em 1609. Eiri Ams~erdam,Smyth cricrou e111 controvérsia com Francisco Johnson e, bascrindo-se em seus próprios estudos do Novo'Pcstamenro, convenceu-se de que o método apostólico de admissáo de membros na igreja era o batismo após confissáo de alreperidimento diante de Deus e fé em Cristo. Então, em I608 ou 1609, ele batizou a si mesmo por ehsáo, e dcpois os demais de sua igreja, esrabelecendo-se a primeira igreja batista inglesa, airida que em solo liolandês. Smyth também se rornou arminiano, aceitando que C:risto morrera náo apenas pelos eleitos mas por toda a humanidade. Estas suas novas ênfases o aproximaranl da posisáo anabatisca, e alguns da sua congregacáo, por fim, se filiaram aos rncnoiiitas holandeses. Smyth, porém, morrcu de tuberculose em 1 6 1 2 , antes que a transferência fosse completa. O remanescente de sua congregagáo, no enranto, apegou-se i posiqáo batista inglesa sob a diregáo de Tomás Helqys (1550)-16 16!) c Joáo Murton 0-1 625?). Eles retomaram para a Inglaterra em 16 11 ou I 61 2, rorilando-se a primeira congregação batista permancnre em território ingIEs. Arminianos em seus pontos de vista, ficaram conhecidos como "batistas gerais". Foram grandes defensores da tolerância religiosa. Nestes mesinos anos uma nova posicáo purirana foi lapidada por Henrique Jacob (1 563-1624), que fora membro da coi~gregacáode Robinson, em Leyden; por Guilherme Ames (1576-1633), eminente teólogo exilado na Holanda; e por Guilherme Bradshaw (1571-1618), um dos principais escritores puritanos. Estes homeils formularam os princípios da posicáo congregacioiial indepcndeiite ou não separatista,
da qual provém direramente o moderno congregacionalismo. Empenhados em evitar a separação da igreja da Inglaterra, trabalharam a favor de um sistema nacional de igrejas congregacionais dentro da igreja estabelecida. Henrique Jacob fundou uma igreja em Southwark em 1616, a primeira igreja coirgregacional a existir continuamente. Na década de 1630, entretanto, um pequeno grupo da igreja de Jacoh se convenceu de que o batismo de crentes era a norma da Escritura. Separando-se da sua congregagáo, criaram uma segunda linha batisra na Inglaterra, denominada batista
"particular" ou calvinista porque criam na expiação particular ou resrrira, cxclusiva dos eleitos. Por volta de 1641 adotaram o batismo por imersáo por considerá-lo o modo mais correto. A partir deles, tal modo se generalizou entre todos os batistas ingleses.
O principal acontecimento na história da congregacáo d e 1,eyden foi a decisáo de enviar sua minoria mais ativa para a América. Kobinson, que quase fora conquistado para a posição congregacional náo separatista por Jacob e Ames, permaneceu relucantemente coni a maioria. Em 1620, após cansativas ncgociaçóes, os "Pais Peregrinos" atravessaram o Atlântico no MaJ$uuluel: sob a direqáo espiritual do seu "ancião", Girill-ierme Rrewster. Em 21 de dezembro lançaram os fundamentos da colônia de Plymouth e dela, pouco depois, Guilherme Bradford foi governador sábio e abnegado. Assim, os ramos náo separatista e separatista se conjugaram nessa primeira implantação do congregacionalismo na Nova Inglaterra. Enquanto isso, sob o governo mais brando de Abbot, o puritanismo foi desenvolvendo suas "conferências", substitutas das antigas "profetii,açóes". Nas paróqu~asonde o pároco oficial não queria ou relucava ou mesmo era incapaz de pregar, os puritanos pagavam pregadores vespertinos de forte aceiiro puritano. Tal atitude foi iim artifício puritano, que o tempo mostrou ser eficaz, para fazer com que aqueles pregadores cujas consciências não permitiam que administrassein os sacramentos na maneira prescrita,
sua mensagem. O puritanismo sempre tinha e n f ~ ~ i z a da o
rigorosa observância do domingo, c suas tendências sabatistas aumentaram com a publicaçáo, em 1595, por Nicolau Bownde (?-1613) de sua Doutr-inn do Subbath. Nessa obra o autor insistia na perpccuidade do quarto mandamento dentro do rigor judaico. Surgiu, pois, muita hostilidade puritana
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coino também a do arcebispo
-1botr - quando Tiago I publicou seu fnrnoso Livro dos Espovtes, em 16 18, recomendando os antigos jogos e danfas populares para observagão no domingo. Pareceu aos
puritanos ser isso uma ordem real para desobedecer à vontade de Deus. O crescimento do puritanismo foi estimulado ainda mais por considera~óespolíticas. O modo arbitrário com que o rei tratava o parlamento, sua falta de apoio efetivo aos pressionados protestantes da Alemanha no começo da Guerra dos Trinca Anos, e sobretudo suas infrutíferas tentativas de consorciar seu herdeiro com uma princesa espanhola, aumentaram os ressentimentos e levaram os Comuns a uma simpatia política continuamente crescente para com o puritanismo, ainda mais que os anglicanos estavam muito identificados com a política real. No fim do seu reinado, em 1625, as perspectivas eram sinistras.
A política de Tiago no seu reino do norte não estava menos fadada a fracassos futuros. Durante a infância de Tiago, o regenre Morton, em 1572, coriseguira a perpetuação nominal do episcopado, em grande parre como um meio de se apoderar das terras da igreja. Na Escócia, pois, havia bispos que o eram só de nome. O poder deles era insignificante. Em 158 1, sob a direcáo de André Melville, a Assembléia Geral dera plena autoridade aos presbitérios como cortes eclesiásticas e rarificara o
Segundo Livro de Disciplina presbiteriano. Apesar da oposiçáo de Tiago, o rei e o parlamento escocês se viram compelidos, em 1592, a reconhecer este sistema presbiteriano como estabelecido por lei. Todavia, Tiago estava resolvido a substituir esse presbiteriailismo detentor de imensa autonomia por um episcopado controlado pelo rei. O meio em suas máos para isso eram os bispos nominais. Em 1597 ele estava suficienternenre forte para afirmar que somente ele tinha o direico de convocar Assembléias Gerais, e foi aumentando vigorosamente seu ataque ao presbiterianismo. Melville e outros líderes foram exilados. O ano de 1610 presenciou notável avanço real. Tiago estabeleceu dois tribunais de alta comissão para casos eclesiásricos na Escdcia, semelhantes àquele da Inglaterra, cada um deles tendo um arcebispo como
residente. Ele tambtm
buscou junto aos prelados ingleses sagraçáo e sucessáo apostólica para o até então irregular episcopado escocês. Em 16 12, um parlamento organizado para favorecer a causa do rei completou o processo, outorgando plena jurisdicáo diocçsana a esses bispos. Aré entáo náo houvcra mudanças no culto, mas nove anos depois o rei forçou, através de acovardada Assembléia Geral e, em seguida, pelo parlamento, determinaçóes para a genuflexáo ila comunháo, para a confirma~áopor máos episcopais, para a observância das grandes festas da igreja e para a comunháo e o batismo privados. Quando Tiago morreu, a Escócia fervia de descontentamento religioso.
~ t i i o i avi
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Na Inglaterra e na Escócia Tiago I foi sucedido por seu filho Carlos I (16251649). Era homem de maior dignidade ~ e s s o a lque seu pai, de vida familiar pura, sinceramente religioso, mas tão extremado quanto Tiago na sua coilcepçáo do direito divino dos reis, arbitrário em seus atos e incapaz de entender as tendências da opinião pública.Sambém era marcado por uma debilidade que facilmente o expunha à acusação de duplicidade e desonestidade. Desde o inicio gozou da amizade e apoio de Guilherme Laud (1573-1645), um dos homens mais notáveis da época. Laud fora, no tempo de Tiago, líder entre os anglicanos mais jovens. Vigoroso antagonista do calvinismo, já em 1604 afirmara "náo poder haver verdadeira igreja sem bispos". Em 1622, em discussáo com o jesuíra Fisher, susrentara que a igreja romana era uma verdadeira igreja e ramo da Igreja Católica universal, da qual a igreja da Inglaterra era a parte mais pura. Sob rnuicos sentidos ele foi pioneiro daquilo que mais tarde ficou conhecido como tradição anglo-católica. Náo é, porém, de se admirar que tanto as autoridades puriranas como as rornanas, para quem semelhante opiniáo era novidade, o tivessem na conta de carólico romano de coraçáo. Duas vezes lhe ofereceram o cardinalaco. Todavia, classificá-
10 assim é i ~ á ofazer justiça à sua posiçáo. Laud procurava a uniformidade nas cerimônias, vestes e culto. Era zeloso e consciencioso, mas de língua áspera e maneiras imperiosas, o que Ihe criou muitos inimigos. Ele se tornou para os puritanos símbolo de tudo quanto odiavam. No fundo, com toda sua falta de simpatia, possuía piedade verdadeira do tipo - ainda que náo táo atraente - da de Lancelote Andrewes. Em 1628 Carlos o fez bispo da diocese de Londres, fortemence puritana, e em 1633 arcebispo de Cantuária. Ele foi, em todos os sentidos, o principal conselheiro em assuntos eclesiásticos de Carlos, e também em assuntos políticos, após o assassinato do duque de Buckingham em 1628.
A pequena nobreza rural, que formava a coluna vertebral da Câmara dos Comuns, simpatizava muito com os calvinisras e estava politicamente disposta a protestar contra a arbitrária imposiçáo de impostos sem o consenrimento do parlamento. De pronto Carlos perdeu a afeicáo dela, por ambos os motivos. Sob a direçáo de Laud, ele nomeou arminianos para posiçóes eclesiásricas de evidência. Em 1628, para evitar debaces com os calvinistas, ele fez com que uma declaraçáo fosse colocada como prefácio dos Trinta e Nove Artigos, dizendo que ninguém faria "sua própria interpretaçáo" de qualquer artigo, "mas o tomaria no
sentido literal e gramaticalp.- O parlamento se revoltou.Tarlos também passara a impor tributos, prendendo alguns que se negavam a pagar. Rogtrio Manwaring (1590-1653), capeláo real, argumentou que, uma vez que o rei governava como representante de Deus, os que rechacavam os tributos criados por ele estavam em perigo de perdiçáo. O parlamento condenou Manwaring, em 1628, a pagar multa e prisáo, mas Carlos o protegeu com perdão e o recompensou com promocóes ecIesiásticas c, por fim, com um bispado. Quesrionamentos sobre o direito real de encarcerar sem declaracáo de causa, de impor ~riburose de legislar sobre assuntos eclesiásticos, agravaram as relacóes entre o rei e o parlamenro. Assim, depois de dispensar o parlamento de 1629, Carlos resolveu governar sem o seu auxilio. O parlamento ficou sem se reunir atf 1640. A fraqueza do partido anglicano foi ter se identificado com a política arbitrária do rei. Com o apoio do rei, Laud impôs com mão forte a exigência de conforrna~áo.As conferências foram interrompidas. Os pregadores puritanos foram silenciados. O
Livro de Esportes foi i-eeditado. Em tais circunstâncias, rnuiros puritanos comecaram a desanimar com as perspectivas religiosas e políticas e passaram a planejar a ida para a América, como os fundadores da colônia de Plymouth j A tinham feito. Eies não iam em busca de liberdade para todos; ao invés, eles buscavam liberdade para pregar e se organizar conforme acreditavam ser o ensino bíblico. Assim, cornecou a emigração para Massachusetts em 1628. No ano seguinte foi conseguida uma carta patente real para essa colônia, e foi fundada uma igreja em Salem. O ano de 1630 viu a chegada de muitos imigrantes, sob a direcáo de João Winrhrop (3588-1649). Logo havia fortes igrejas ao redor da Baía de Massachusetts, dirigidas por ministros capazes, dentre os quais os mais notgveis eram Joáo Cotron (1584-1652) de Boston e Ricardo Mather (1596-1669) de Dorchester. A coloriia de Connecricut foi fundada em 1636, com Tomás Hooker ( I 586-1647) como principal ministro em Hartford, e a colônia de New Haven em 1638, sob a direcáo espiritual de Joáo Davenyort
(1597-
1670). Estes homens eram clérigos da igreja inglesa estabelecida. Náo simpatizavam com o separatismo. Mas, como vigorosos puritanos, consideravam a Bíblia como a única Iei para a organização eclesiástica, e criam firmemente que ela ensinava a política ~on~regacional. Foram capazes de fazer na Nova Inglaterra o que seus compa-
Geç e Hardy English Chiirch Hiztorj, pp. 51 8-520. "bid., pp. 521-527.
nheiros congregacionalistas náo separatistas aspiraram fazer na velha Inglaterra - firmar seu sistema congregacional sob a l e i do estado como a única igreja estabelecida.
Até 1640 a mar&puritana subiu no rumu da Nova Inglaterra e pelo menos rinte mil pessoas atralressaram o Arlântico.
O período cm que Carlos governou sem parlamenra foi uma época dc apreciável prosperidade na Inglaterra, mas a inquieta~áocontinuou por çaiisa da cobrança de impostos geralmente tidos como ilegais (tal como o famoso "direito sobre navios") e
da iniposicáo de uniformidade religiosa. Mas foi ria Escdcia que irro~npeua tormenta. Tiago I tivera êxito na aniquilacáo do presbiteriariismo, principaimente por conseguir o apoio da nobreza através da concessiio de terras eciesiásticas. Carios, no início de seu reinado, ordenara a restituição dessas terras mediance um ato de revogasão, jusro ajnda que in~pollrico,com vanragi-ns para a igreja escocesa, embora a ordcni não tenha sido cabalmente execurada. O efeito político dessa lei, entretanto, foi lançar a grande maioria dos que estavam em posse dcssas rerras e dízimas eciesiásticos para o lado dos descoriterites presbirsrianos. Havia agora uma Escócia relari-
vamente uiiida, no lugar das divisões que Tiago fomenrara para seu proveiro. Por maiores que tenham sido as mudanças efetuadas por Tiago 1, ele náo se arrevera a alterar as linhas gerais do culto público. Mas em 1637, num desejo fátuo de uniformidade, inspirado por La~id,Carlos impôs Lima Iitiirgia que, na esséncia, era a
da igreja da Inglaterra. Seu uso em Edimburgo, em 23 de julho, provocou rumulros. A Escócia se inflamou em oposicáo. Em fevereiro de 1638 foi firmado um I'acro Nacional para defender a verdadeira religiáo. Em drzembru a Assembléia Geral dep6s
OS
bispos e repudiou toda a es~rururaeclesiástica que Tiago e Carlos haviam
erigido. Era a rebelião e Carios reuniu forças para supimí-Ia. Táo forte era a atirtide da Escócia que, em 1639, foi negociada uma trégua mediante um acordo. Mas em
1640 Carlos resolveu siibmeter os escoceses. Para acender aos gastos com 3 guerra em perspectiva, Carlos foi por fim compeiido a convocar o parlamento inglês em abril
de 1640. Imediatamente vieram a tona aqueles velhos ressentimentos parlamentares referentes à política e à religijo, e Carlos rapidamrnre dissolveu esse "Parlamento Breve". Na curra guerra que se seguiu, os escoceses in~adiram,com êxito, a Inglaterra. Carlos foi obrigado a garantir o pagamento do exército dc ocupação aré um tratado ser firmado. Obviamente, o parlamento inglss teria que ser convocado novamenre e, em novembro de 1640, o "Parlamento Longo" começou seu trabalho. Fi-
cou iiiiedia~arnenreeviden~eque o puritariismo presbiteriario esrava ern maioria.
Laud foi lançado na prisáo. Em julho de 164 1 foi abolida a Alta Cornissáo. A tentativa do rei, em janeiro de 1642, de prender cinco membros da Câmara dos Comuns, aos quais acusava de traição, precipitou a erupcáo da guerra civil. No geral, o norte e o oeste ficaram com o rei, o sul e o leste com o parlamento.' No começo de 1643 um ato do parjamento abolia o episcopado antes do término do ano. Era preciso fazer algo para manter o credo e o governo da igreja, e entáo o parlamento convocou uma assembléia de cento e vinte e um clérigos e trinta Leigos por ele indicados, para se reunir em lo de julho de 1643, em Westminster, para aconselhá-lo (o que manteve o poder de legislar em suas próprias mãos). A Assembléia de Westminster, assim convocada, contava com alguns congregacionalistas e episcopalianos, mas a grande maioria era puritana presbiteriana. Entretanto, a guerra colocara o parlamento em situaçáo desconfortável. Para conseguir ajuda da Escócia, o parlamenro aceitou em setembro de 1643 a formação da Liga de Pacto Solene, que, opondo-se à "prelazia", estabelecia a maior uniformidade possivel em religiáo na Inglaterra, Escócia e Irlanda. Ela foi imediatamente imposta a todos os ingleses maiores de dezoito anos. Entáo tiveram assento na Assembléia de Westminster emissários escoceses, sem voto mas com muita influência. Em 1644 a assembléia apresentou ao parlamento o Diretório do Culto e um sistema de governo eclesiástico totalmente presbiteriano. Em janeiro seguinte o parlamento aboliu o Livro de Oriçiío, substituindo-o pelo Diretório, o qual fornecia uma ordem de culto que 6 substancialmente a mesma usada por geraçóes nas igrejas presbiterianas e congregacionais conservadoras. Trazia certo equilíbrio entre a iiturgia prescrita e as orações espontâneas. O parlamento hesitou em estabelecer o governo presbiteriano, mas por fim o ordenou ~arcialmenteem 1646 e 1647. N o entanto, foi posto em execuçáo de modo imperfeito. Laud teve seus bens confiscados e foi executado em janeiro de 1645 - o que deve ser considerado como um ato de vingança. Em seguida, a assembléia preparou sua famosa confissáo,'[' apresentando-a ao parlamento em fins de 1646. Adotada em 27 de agosto de 1647 pela Assembléia Geral da Escócia, continua sendo o padráo básico dos presbiterianismos escocês e americano. O parlamento inglês se recusou a aprová-la até junho de 1648, quando a modificou em algumas partes. Em 1647 a
Para os importantes documentos que ilustram esse período, ver ibid., pp. 537-585. J. H. Leith, ed., Creedr of the Churches: A Reader in Christian Docmnefrom the Bibie t o rhe Prescnt (Garden Cit): N.Y.,1963), pp. 192-229. 'O
assembléia completou dois catecismos: o Maior, para exposiçáo no púlpito, e o Menor," primariamente para o ensino das crianças. Ambos foram aprovados em 1648 pelo parlamento inglês e pela Assembléia Geral da Escócia.
A Confissáo de Westminster e os catecismos, especialmente o Menor, têm sido sempre considerados entre as mais notáveis exposiçóes do calvinismo. Repetem, em linhas gerais, o conhecido cipo continental. Sobre a questáo dos decretos diviilos sáo infraiapsários (ver VI: 15). Uma de suas principais características é que, em adicáo à familiar derivaçáo do pecado original dos primeiros pais como "raiz de toda a humanidade", enfatizam um "pacto de obras" e um "pacto de graca". No primeiro, Adáo é considerado como cabeça representativa da raqa humana, a quem Deus fez promessas definidas e nas quais estavam incluídos seus descendeilces e que ele, como representante deles, perdeu tais promessas tanto para eles como para si mesmo por causa de sua desobediência. Tendo falhado o ''pacto de obras", Deus ofereceu um novo "pacto de graça" por meio de Crisro. As raizes dessa teologia pactua!, ou federal, podem ser encontradas nos escritos de Bullinger (ver VI:3), ainda que sua mais cabal exposição estaria na obra de joáo Cocceius (1603-1669), professor em Franeker e Leyden. Era uma tentativa para dar uma explicaçáo definitiva do pecado como ato próprio do homem, e mostrar a verdadeira responsabilidade humana por sua ruína. Outra característica destes símbolos é a ênfase na observância do dia do descanso
(Sabbath), de acordo com o desenvolvimento puricano dessa doutrina. Enquanro decorriam essas discussões teológicas e eclesiásticas, a guerra civil passara por seu período inicial. Em 3 de julho de 1644 o exército real fora derrotado em Marston Moor, perto de York, devido principalmente à perícia de um membro do parlamento, de pouca experiência militar, Oliver Cromwell (1599-1658), que criara astutamente uma tropa selecionada de "homens religiosos". Não decorrera um ano, em 14 de junho de 1645, e Cromweil estraplhara o último exército do rei, nas proximidades de Naseby. No ano seguinte Carlos se entregara aos escoceses e estes,
por sua vez, o entregaram ao parlamento inglês. O exército 'novo modelo", criado por Cromwell, era uma força de religiosos entusiastas, na qual pouco se ligava às distinçóes de credos. Desde que se opussessem a Roma e à "prelazia", puritanos de rodas as cores eram bem recebidos. O grupo dominante era o dos independentes,
HISTDRIA DA IGREJA CRISTA
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com batistas e secrários mais em evidência. Mas o rígido presbiterianismo da maioria parlamentar se ia tornando tão desagradável ao exército quanco fora o anrigo governo dos bispos, e Cromwell partilhava tocalmente desse senrimento. Logo o exército esrava exigindo maior grau de tolerância. O puritanismo apelara à Bíblia e à experiência, e agora homens de formaçáo espiritual - muitos deles no exército - reclamavam a liberdade de seguir suas convicções. Essa atitude do exercito impediu o estabelecimento pleno d o presbiterianismo sancionado pelo parlamento. Isso desagradou aos escoceses. Entáo Carlos usou a sir~iaqáopara criar intrigas e induzir os escoceses a invadirem a Inglaterra para seu proveito, fazendo-os crer que eIe apoiaria-o presbiterianisrno. Entre 17 a 20 de agosto de 1648, o exército invasor foi derrotado por Cromwcil, pcrro de Prçston. Tal virória deixou o cxérciro suprcmo na Inglaterra. Em 6 de dezembro, a "Purga do Orgulho" expulsou do parlamento seus membros presbirerianos, deixando o "Parlamento Restante". Carlos I foi entáo julgado e condenado, acusado de perfidia e traiçáo, sendo decapitado em 30 de janeiro de 1649. O rei cnhentou a morte com grande dignidade. Enráo Cromweil subjugou a Irlanda em 1649, e no ano seguinte submeteu a Escócia. O filho de Carlos, snais rarde Carlos I1 (1660-1685), foi por ele derrotado em 1651, nas cercanias de Worcesrer. Em toda parte a oposiqáo fora destruída. Cromwell, embora náo identificado completamente com nenhuma corrente puritana, tendia para os independentes. Foi concedida muita tolerância sob seu protetorado,'"
os puritanos episcopa1ianos moderados, os presbiterianos, os indepen-
dentes e alguns batistas foram incluídos crn um ampIo estabelecimento religioso. Desde o comeqo da guerra, no entanto, cerca de dois mil clérigos episcopais tinham sido privados de seu oficio e sofrido grandes privaçóes. Porém, está claro que, como nas mudanças anteriores e posteriores, a grande maioria do clero o u não foi molesta-
da ou se acomodou às novas coildi~óes.Cromwell era hábil, consciencioso e diplomata, porém seu governo estava baseado na autoridade militar e como tal náo contava com a simpatia dos iilgleses. Ao mesmo tempo, as querelas dos grupos religiosos rivais também eram igualmente antipáticas à imensa maioria do povo inglês, que entáo náo podia aceitar mais de uma forma estabelecida de religiáo. Até morrer, em
3 de setembro de 1658, Cromwell suprimiu toda rebeldia. '' Gee r Hardv, Etzglish Cliurci~Histoiy, pp. 574-585.
? ~ i i o e ovi
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Oliver Cromwell foi sucedido como procecor por seu filho Ricardo. O novo govetnante, poréin, era homem fraco, disso resultando a anarquia. Realistas e presbiterianos entáo se uniram para resraurar a monarquia. Em 14 de abril de 1660,
de Breda, Carlos I1 publicou uma declaraçáo de "liberdade para consciências sensíveisU'je a 29 de maio entrou em Londres. Mas se os presbiterianos nutriram quaIquer esperanca de serem incluídos tio novo arranjo religioso, ficaram amargamente decepcionados. É possível que CarIos I1 pretendesse dar algum lugar aos presbiterianos na igreja nacional. Eduardo Repolds (1599-1676), até entáo fervente puritano, foi feito bispo de Norwich. Também foi oferecido um bispado ao piedoso Richard Baxter (16151691), um dos principais vultos do partido presbiteriano, mas ele não aceitou. Em
1661, as au~oridadesgovernamentais ordenaram uma conferência entre bispos e presbiteriaiios no Palácio S a ~ o y .Ela ' ~ não teve ncnhum resultado prático. Carlos I1 era iilescrupuloso, imoral, débil e indiferente em matéria de religiáo. Náo se podia confiar em suas prtrmessas. Mas ainda que ele [ivesse sido melhor ou mais forte, P duvidável que ele pudesse resistir à maré crescente da teaqno nacional contra o puritanismo. O primeiro parlamento eleito após sua restauraçáo era fortemente realista e anglicano. As convocaçóes de Cantuária e de York se reuniram em 1661 e fizeram cerca de seiscentas alterações no Livro dc O r a ~ á omas , ncnhuma de caráter puritano.
Um novo Ato de Uniformidade recebeu aprovacáo real em maio do ano seguinte. Por ele era proibido, sob severas penas, o uso de qualquer outro ofício além daqueles do Livro de Oraçáo revisado. Ademais, exigia que todo clérigo prestasse, ar-ites de 24 de agosto, jurameilro de "sincero assentimeiito e coiisentirnenco a rodas e cada uma das coisas nele contidas e prescritas". Ele tambim declarava "que é ilegal eomar armas contra o rei, sob
que seja o p r e t e ~ t o " . ~ ~
Tais provisões visavam tirar os puritanos da igreja, e nesse sentido alcançaram seu objetivo. Por volta de mil e oitocentos miniscros preferiram abandonar seus cargos em vez de fazerem o juramento. O partido puritano agora estava - coisa que antes nunca sucedera - fora da igreja da Inglaterra. O náo conformismo fora forçado a se transformar em dissidência. Os presbiterianos e os independentes, estes últimos en-
Ibid., pp. 585-588. Ibid., pp. 588-594. ' Ibid., pp. 600-613. i
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tão organizados segundo linhas congregacionais, foram obrigados a sair da igreja estabelecida. Seguiram-se severas medidas, em parte tomadas pelo temor de uma conspiracão contra a monarquia restaurada. Pela Primeira Lei do Conventículo (1664), as penalidades para quem comparecesse a um oficio que náo estivesse de acordo com o Livro de Oracáo e com a presença de cinco ou mais pessoas da mesma família eram multa, prisão e exílio. Pela "Lei das Cinco Milhas" do ano seguinte, era proibido a qualquer pessoa que tivesse ingressado em "ordens sacras ou ordens pretensamente sacras", ou que tivesse pregado num "convcntículo", e náo tivesse feito o juramento condenando a resisrência armada ao rei e assegurando não intentar "nenhuma alteraçáo de governo quer na igreja quer no estado", residir num raio de cinco milhas de qualquer cidade incorporada ou dentro da mesma distância do lugar onde exercera seu minisrério.'Tais pessoas também estavam proibidas de ensinar nas escolas praticamente a única ocupaçáo k disposição de um ministro deposto. Náo foi possível colocar totalmente em prática estas e outras deliberações do assim chamado "Código Clarendon", mas elas provocaram ~ r a n d e sperseguicóes aos dissidentes. A Segunda Lei do Conventículo (1670) tornou menos severas as penalidades aos que participavam ilegalmente dos ofícios dissidentes, mas engenhosamente determinava que as pesadas multas recaídas sobre o pregador e os ouvintes poderiam ser cobradas de qualquer dos assistentes, caso a falta de recursos impedisse seu pagamento por todos." No entanto, apesar dessa repressáo, continuaram as pregaçóes e congregações dissidentes. Carlos 11, ainda que sem religião, tinha simpatia pela fé romana, que confessou em seu leito de morte; e seu irmáo, posteriormente Tiago 11, foi católico ardente e reconhecido desde 1672. Ademais, Carlos recebia pensóes secretas do fortemente católico rei da França, Luís XIV. Em 15 de março de 1672, com o objetivo de auxiliar os catóIicos e obter o apoio dos dissidentes para tal, Carlos publicou, sob sua própria autoridade, uma Declaraçjo de Indulgência. Por ela, era concedido aos protestantes dissidentes o direito de realizarem cultos públicos, suspensas as leis penais contra os católicos e seu culto permitido em casas particulares. O parlamenco viu isso como um favor inconstitucional a Roma. Daí obrigou, em 1673, a retirada da referida Declaração e sancionou o Ato de Prova que, embora alvejando os católicos,
'"bid., yp. 620-623; H. Bçttenson, ed., Docum~ntrof tbe Christian Church (Londres, 1947), pp. 404-407. '-Gee e Hardy, EngIiih Cbr~rchHisroly, pp. 623-632.
VERIOIO YI
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recaiu pesadamente sobre os protestantes dissidentes. Todos os detentores de funçóes militares ou civis residindo dentro de trinta milhas de Londres, com poucas exceçóes, eram obrigados a tomar a Ceia do Senhor conforme o rito da igreja da Tnglaterra ou perder seus pos~os.'~ Esse estatuto náo foi revogado senáo em 1828. A repres.-
sáo aos dissidentes, portanto, continuou até a morte de Carlos 11, ein 1685. Quanto aTiago I1 (1685-1688), deve ser ressaltado que seu alvo primordial era o
estabelecimento do catoiicismo e que as medidas que tomou nesse sentido foram vigorosas mas sem tato. Ignorando o Ato de Prova, nomeou católicos para altos postos civis e militares. Permitiu a entrada de monges e jesuítas na Inglaterra. Em
1686, conseguiu de uma submissa Suprema Corte Real o reconhecimento de seu direito de "prescindir de todas as leis penais em casos especiais". Ele restabeleceu o Tribunal da Suprema Comissão. Em 4 de abril de 1687 publicoli uma Declaraçáo de Indulgência, concedendo total tolerância religiosa." Em si mesma, essa declaração era agradável e do ponto de visra moderno, um ata louvável. Porém, seus motivos eram muito óbvios. Seu objetivo último era tornar a Inglaterra, mais uma vez, um país cacolico romano, e rodo o protestantismo se alarmou, enquanto os amantes do governo constitucional viam nela a anulasão do poder do parlamento pela vonrade real arbirdria. A vasta ruaioria dos dissidentes, ainda que por ela libertada de fortes restriçóes, se recusou a apoiá-la e se aliou aos eclesiásticos. Quando Tiagu II ordenou, em abril de 1688, a lei~urada Declaraçáo de Indulgência em todas as igrejas, sete bispos protestaram. Foram processados e, para a alegria dos protestantes, absolvidos. Tiago exigira demais do sentimento nacional. Guilherme de Orange (16501702), governador dos Países Baixos, genro do próprio Tiago, pois casara com sua
filha Maria, foi convidado para encabeçar o movimento contra ele. Em 5 de novembro de 1688 Guilherme desembarcou coni uni exército, e Tiago fugiu para a França. A revolnGáotriunfara e, em 13 de fevereiro de 1689, Guilherme (111) e Maria foram proclamados soberanos da Inglaterra. O clero da restauraçáo afirmara durante muito cempo a doutrina do direito divino dos reis e a obediência passiva à autoridade real para que essa mudança tivesse sua aprovasão. Sete bispos, liderados por Guilherme Sancroft (1617-1693), se negaram a jurar obediência aos novos monarcas, no que foram acompanhados por cerca de
'' Ibid., pp. 632-640. ' Ibid , pp. 641-644.
quatrocentos clérigos. Para eles, Tiago I1 ainda era o ungido do Senhor. Foram depostos, como anglicanos e dissidentes anres o haviam sido, e semelhantemente àqueles se portaram dignamente. Muitos deles eram homens de profunda piedade. Formaram o partido dos que se negaram a fazer o juramento, e uma parcela desse grupo se refugiou na Escócia, onde fez genuína c o n t r i b ~ i ~ álitúrgica o à igreja episcopal naquele país. Diante das circunçcâncias da re~~oluçáo de 1688, náo poderia mais ser negada tolerância aos protestantes dissidentes. Pela Lei de Tolerância, de 24 de maio de
1689, era concedida liberdade de culto a todos quantos jurassem fidelidade a Guilherme e Maria, subscre\~essemas posi~óesdoutrinárias dos Trinta e Nove Artigos e rejeicasscm a jurisdiçáo do papa, a rra~lsubstancia~áo, a missa, a invocaçáo davirgem Maria e dos santos." Era uma tolerância pessoal, náo um acerto rcrritorial como na Alemanha, ao rér~ninoda Guerra dos Trinta Anos. Agora podiam existir lado a lado diversas formas de culto proccstante. Os dissidentes talvez chegassem a um décimo da populaçáo da Inglaterra, divididos principalmente entre as "três velhas denominações" - presbiterianos, congrcgacionais e baristas. Ainda estavam obrigados a pagar dízimos à igreja estabelecida e sujeitos a muitas outras inabilidades jurídicas. Porém, haviam conquistado liberdade religiosa essencial, e com o tempo, ficariam conhecidos como as igrejas livres inglesas. Tais privilégios náo foram concedidos nem àqueles que negavam a Trindade nem aos católicos romanos. Estes últimos conseguiram certo alívio só em 1778 e 1791, e a liberdade completa apenas em
1829. Na Escócia, a restauraçáo trouxe um tempo de grande agitaçáo e sofrimento. O parlamento de 1661 anulou todas as leis que desde 1633 eram favoráveis à igreja presbiteriana. O episcopado, portanto, foi restabelecido como nos dias de CarIos I. Em secernbro dc 166 1 foram nomeados quatro bispos, sendo o principal deles Tiago Sharp (161 8-1 673), indicado para o arcebispado de Santo André. A consagragáo deles foi obtida lia Inglaterra. Sharp fora ministro presbiteriano, mas traíra seu partido e sua igreja. O parlamento exigiu de rodos os funcionrírios que repudiassem os pactos de 1638 e 1643. Em 1663 o parlamento estabeleceu pesadas multas sobre os que não comparecessem às igrejas, agora governadas de modo episcopal, ainda que náo tenha ousado introduzir uma liturgia. Muitos minisrros presbiterianos foram
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entáo depostos, especialmente no sudoeste escocês. Qiando seus paroquianos náo tomavam parte nos ofícios celebrados pelos novos nomeados, eram multados e, se náo pagavam, soldados eram enviados atrás deles. Ern 1664 foi adicioilado aos instrumentos de repressão um TI-ibunal da Suprema Comissáo. Dois anos mais tarde, alguns dos oprimidos partidários dos pactos de I638 e 1643, ou pacrualistas [Covenanters], se envolveram na Revolta de Pentland. A repressão foi desapiedada e
a partir de entáo os presbirerianos foram tratados com crescente sevcridade, Em 3 de maio de 1679, ern retardada vindita, Sharp foi assassinado. Tal crime foi seguido de
uma revolta armada dos pacrualistas, mas em 22 de junho ela foi reprimida em Borhwell Bridge e os prisioneiros trarados com grande crueldade. Seis meses depois
o irmáo do rei, Tiago - mais tarde Tiago TI, da Inglaterra - praticamente ficou encarregado dos assuntos escoceses. O s presbiterianos estremados e intrarisigenres, conliecidos como cameronianos - de um de seus chefes, Kicardo Cameron (1648)-
1680) - eram rigora um povo proscrito e perseguido. No início a ascensão ao trono de Tiago I1 (ou VII, segundo a numeraçáo escocesa) intensificou a perseguicáo aos carneronianos. Seu primeiro ano foi o "rempo de macar" e o
de 1685 estabeleceu a pena de marte para quem participasse
de um "coliveriticu~o".P(iré~ri,TÍago logo procurou fdzer o mzsnio que se estava fazendo na Inglaterra. Ele encheu de católicos seu conseiho, e em 1687 Cartas de Indulgêricia concedendo Liberdade de culto. Como na Inglaterra, essa abolicáo de penas aos católicos despertou a hostilidade dos protestantes de todos os matlzes. Episcopais e presbi~eriaiioseram igualmeiirc coiitrários, e quando Guilherme e Maria subiram ao trono da Inglaterra encontraram muitos amigos no reino do norte. A Escócia, porém, escava mais dividida do que a Inglaterra. Os Stuarts eram escoceses, e ernbosa os episcopais náo se agradassem do ca~olicismode Tiago, eles desconfiavam do calvinismo do "holandês Guiiherme", o qual ~ i n h ao apoio dos presbiterianos. No enranto, a revoluçáo triunfou em 1 1 de maio dz 1689. e Guilherme e Maria se tornaram governantes da Escócia. E m 1690 o parlamento restaurou todos os ministros presbiterianos expulsos desde 1661, rarifi~oua Confissão de Westininsrer e declarou o presbirerianisrno a forma de religiiio reconhecida pelo governo. O estabelecimento legal da igreja presbiteriarra teve a oposi~áodos leigos carneronianos, que mantiveram sua hostilidade a qualquer conrrole da igreja pela autoridade civil e condenaram a incapacidade da renovaçáo dos pactos. Também protestaram os episcopais, que eram fortes no norte da Escócia. Em 1707 a inglater-
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ra e a Escócia foram reunidas no reino da Grá-Bretanha, sendo salvaguardados os direitos independentes da igreja da Escócia. Ao tempo da rainha Ana, em 1712, foram aprovadas pelo parlamento duas leis importantes. Uma delas tolerava o episcopado, fortemente implantado no norte da Escócia. A outra, fadada a ser motor de infinita agitação, permitia que "patronos", normalmente a coroa ou os grandes senhores de terras, impusessem nomeaçóes de ministros ~resbiterianosa paroquianos hostis (ver VII:7).
Capitulo 17
Os Quacres Durante as agiradas décadas de 1640 e I650 na Inglaterra, multiplicou-se o número de rnovi~nentossectários. Alguns deles, como os Levelers e os Diggers, eram seitas político-religiosas. Outros exibiram ênfases fortemente milenaristas, especialmente os Homens da Quinta Monarquia. Tranqüilamente, o mais significativo desses movjmentos e um dos mais notáveis produtos da época das guerras civis foi a Sociedade dos Amigos, conhecida popularmente como quacres, pois tremiam (to
p a k e = tremer) diante do Senhor. Jorge Fox (1624-1691) foi um dos poucos gênios religiosos cia história inglesa. Nasceu em Fenny Drayton, filho de um teceláo. Cresceu fervoroso e compenetrado, "sem nunca haver feito mal a qualquer homem ou mulher". Aos dezenove anos de idade foi convidado, por alguns cristãos nominais, para participar de uma reunião para beber. Ficou táo escandalizado com o contraste entre a prática e as palavras, que se entregou à ansiosa procura da realidade espiritual. Detestava toda sorte de falsidades. Teve uma experiência central e transforrnadora com Deus em 1646. Daí lhe veio a firme convictáo de que toda criatura recebe do Senhor uma porçáo de luz e que se essa "luz interior" for seguida, ela seguramente conduzirá à "luz da vida" e à verdade espiritual. A revelaçáo náo está confinada às Escrituras, ainda que elas sejam a verdadeira Palavra de Deus, mas ilumina todos quantos são discípulos verdadeiros. O Espírito de Deus fala diretamente com esses discípulos, entrega-lhes sua mensagem e os estimula a servir.
r~sloiav i
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Fox comeqou seu tempestuoso ministério em 1647. Ele acreditava que, uma vez que a luz interior é concedida pela vontade divina, o verdadeiro ministério é o de qualquer homem ou mulher que Deus queira usar. Deve-se rejeitar o ministtrio profissional. O s sacramentos são verdades interiores e espirituais. Os elementos externos não são apenas desnecessários mas enganosos. Os juramentos n2o sáo necessários para corroborarem a palavra fidedigna do cristáo. A bajuiaçáo em palavras ou a ~ ó e és degradação do verdadeiro respeito cristáo de homem para homem. Os títulos artificiais devem ser rechaçados, embora Fox não negasse títulos legais como rei ou juiz. Para o cristáo a guerra náo é lícita e a escravidáo é abominável. Para ser verdadeiro, todo cristianismo tem que se expressar numa
vida transformada e consagrada. A sinceridade e o zelo espiritual das crenças de Fox, sua aversáo a tudo que cheirasse a formalismo e sua ânsia por experiência espiritual íntima tiveram enorme forca de atragáo. Ele conquistou seguidores dentre os vários grupos puritanos e denrre as seiras que haviam proliferado no solo puritano. Por volta de 1652, se reuniu a primeira comunidade quacre em Preston Patrick, no norte da Inglaterra. Dois anos depois, os Amigos já haviam se expandido até Londres, Bristol e Norwich. Entre os primeiros conversos de Fox, Margarida Fel1 (1614- 1702) foi a mais importante. Fox casou com ela depois que ela enviuvou, e a casa dcla, Swarthmore Hall, se converteu em quartelgeneral para seus pregadores. Por causa das circunstâncias da vida inglesa, tal movimento encontrou feroz oposiqáo. Antes de 1661 mais de três mil Amigos, incluiiido o próprio Fox, haviam passado pela prisão. Cedo entre eles se manifestou tal zelo missionário que os quacres foram levados a proclamar sua f i nos mais distantes lugares, como Jerusalém, Índias Ocidentais, Alemanha, Áustria e Holanda. Em 1656 entraram em Massachusetts, e em 1661 quatro já haviam sido enforcados ali. Para essa severidade há uma explicaçáo, embora nada a justifique, no comportamento extravagante de bom número dos primeiros quacres; esse comportamento teria provocado a interferência policial em qualquer época. Tais extravagâncias foram devidas à falta inicial de organizaçáo, assim como a crença na imediata inspiração do Espírito. Fox percebeu a necessidade de ordem, e aí por 1666 as linhas principais da disciplina quacre estavam formuladas, ainda que enfrentando grande oposição. Foram estabelecidas "reuniões mensais" para que a vida e o comportamento dos membros fossem vigiados com rigor.
Antcs da morte de For;, em 1691, os quacres já haviam adquirido as características sóbrias que desde entáo os distinguem.
As leis contra os dissidentes e a restauracão recaíram com peculiar severidade sobre os quacres, posto que eles, diferindo dos presbiterianos e congregacionais, não cuidavam em ocultar suas reuilióes, mas as realizavam desafiadoramente diante das autoridades hostis. Cerca de quatrocentos morreram nas prisóes e muiros foram arruinados financeiramente pelas pesadas iriultas. A esse período, no entanto, pertence a maior vitória dos quacres e seu maior experimento colonial. (;uilherme Penn (1644-1718), filho do almirante Sir Guilherme Penn, após simpatias para com o quacrismo desde 1661, abraçou totalmente suas crenqas em 1666 e tornou-se um dos mais eminentes pregadores c defensores literários da fb. Resolveu achar na América a liberdade negada aos quacres ria Inglaterra. Após auxiliar no envio de cerca de oitocer-itos quacres para Nova Jersey em 1677 e 1678, Penn obteve de Carros I1 a coi-icessáo da Pennsylvania, em 168 1, como cancelamento de Lima dívida da coroa para com seu pai. Em 1682 foi fundada Filadélfia e teve inicio um grande experimento colonial.
O Ato de Tolerância de 1689 (ver VI: 16) livrou os quacres, bem como outros dissidentes, de suas restri56es niais severas, e lhes concedeu liberdade de culto.
Período VI1 O Cristianismo Moderno
Os Primórdios da Ciência e da Filosofia Modernas A questáo se a Reforma deve scr classificada no período medieval ou no moderno tem sido bastante debatida. Muito se ~ o d dizer e em defesa de ambas as posturas. h Reforma pode ser coiisiderada medieval por diversos motivos: sua concepcáo de uma religiáo que deve ser mantida por amoridade externa; sua defesa do domínio da religiáo sobre todas as formas de vida educacional e cultural; seu apoio a idéia de que apenas um tipo de culto é permissível, ao menos em um dado território; sua noção do pecado original, dos maus espíritos e da feitiçaria; seu conceito sobre a arhicrarisdade e imediaçáo da interveiiqáo divina no mundo; e sua reduçáo da perspectiva :c!igiosa aos limites do mundo do além. Assim, também, os problemas que foram .r-.ris discutidos, por difcrenres que tenham sido suas solucóes daquelas apresentadas
Idade Média, foram essencialmente medievais. Os probIemas centrais da teoIo-
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iarina tinham sido, desde o tempo de Agostinho, se não de Tertuliano, aqueles
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r:.icionados com pecado c graça, e o foram tambén-i na Refortna. Embora o próprio lz:t:o
cenha rejeitado Aristóteles, a primeira filosofia protestante foi iiireiramente
I-sro~Cliça.Sernethantemenre, embora o monasticismo tenha sido rejeitado, perdua concepqáo ascética do mundo, principalmente no caivinismo.
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7or outro lado, a Reforma corno movimento religioso representou uma nova i::rs~sáo
do significado da fé cristã. Rompeu a dominaçáo do sisrema sacramental
. .
r -t a: sículos controlava o cristianismo. O batismo e a Ceia do Senhor foram man-.
- . cm alta estima, mas agora eram considerados mais como garantia das promes-
.-.!E
-. .
C: Livinas do que como canais exclusivos de graça. O Espírito Santo, cujos meios
~iis~eriosos, indubitavelmente usa o batismo e a Ceia do Senhor para seus propú-
r .
L:
, ds graça, mas sem exclusáo de outros meios. Chega-se à fé por meio da Palavra
Ilírus, pregada ou escrita, trazendo ao crente a presença viva de Cristo. A fé em
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R i S I 6 R l A i i A IGREJA E R I S T ~
Cristo, que é experimentada tanto como perdáo como poder, é dom de Deus. A relação do indivíduo com Deus não é de débito e crédito, de más ações a serem expiadas e de méritos a serem alcancados, mas um estado de rcconciliaçáo do qual as boas obras sáo fruros naturais. A apreciação protestante das relações e ocupaçóes iiormais da vida como os melhores campos para o servico de Deus tambdm foi um afastamento radical da Idade Média. Tais características ligam a Reforma ao mundo moderno; de fato, elas contribuíram sobremaneira para a lapidaçáo do período moderno. No entanto, feito um balanço, e considerando também o quanro a Reforma reprimiu as tendências mundanas do humanismo, o movimento em seu primeiro século e meio deve ser considerado em grande medida como uma continuaçáo da Idade Média. Depois disso, embora grandes grupos reiigiosos ainda continuem a usar fhrmulas da Reforma e manter nomes originados naquela kpoca, eles já náo viviam mais na mesma atmosfera.
E impossível assinalar com precisão o momento dessa mudanp. A alteração não se deveu a um único líder ou a um grupo de líderes. Ela modificou o pensamento cristáo de modo desigual, mas universal. Várias causas interferiram na transforma~ á oUma . delas foi a contínua seculariza~áoda cultura, a partir de meados do século dezessete. O modelo do medievo e da Reforma que preconizava o domínio da igreja sobre o esrado e a sociedade deu lugar à instalaçáo de uma civilizaçáo religiosamente neutra.' Outro fator importante foi a ascensáo das classes profissionais, rnercanris e trabalhadoras a uma influência educacional e política sempre crescente. Na época da Reforma eram poucos os dirigentes do pensamento e participantes no governo, mas no período moderno seu número e independência aumentaram constantemente. Tal crescimento contribuiu para causar - e por sua vez ser fomentado pela mesma - uma crescente tolerância da parte do estado, o que tornou possível tanto a enorme subdivisão do protestantismo como o aparecimento de muitos grupos de pensadores náo associados dire~amentenem opostos à religião organizada. Os instrumentos mais poderosos na realização desta mudança de atmosfera foram dois. Primeiro, o aparecimento da filosofia e da ciência modernas, com as conseqüentes imensas transformações na percepção do universo e do lugar do ser huma-
' Jarnes Hasrings Nichols rcssalcou que a Paz devesrfália (1648), que encerrou a Guerra dosTrinra Anos, é uma excelente dara para representar a transi~áopara uma nova fase na policica, pois naquela opoxrunidade considerações dinisricas e nacionais sobrepujaram as teológicas e confessionais: Hiscory of Chriscia~xity, 1650-1950: Stcularizatioii of the Wesr Nova lorque, 19563, p. 6.
no nele. Segundo, o subseqüente desenvolvimento do método histórico de análise e interpretação do pensamento e das instituiçóes. No início do período da Reforma a concepção de universo era ptolomaica. A terra era tida como centro ao redor do qual giravam o sol e as estrelas. O Renascimento gregas sobre um sistema heliocêntrico, as quais reacendera na Itájia as e~pecula~óes foram cuidadosamente desenvolvidas por Nicolau Copérnico (1473-1 543), de Torun, Polônia, e publicadas no ano de sua morre. Na tpoca elas desperraram pouca atencáo, e quando o fizeram foi de modo muito desfavorável. Mas a ciência astronômica progrediu. Tycho Brahe (1546-1601), embora aceitando apenas parcialmente o sistema de Copérnico, muiriplicou as observaçóes. Johannes Kepler (1571-1630), seguidor de Copérnico, ampliou-as em brilhantes generaliza~óes.Ambos estavam seguindo, ainda que náo diretamente influenciados por ele, o novo método de Sir Francis Bacon (1561-1626), peio qual o experimenro indutivo era a base da generalizacáo hipotttica. Galileu Galilei (1564-1642), de Pisa, deu ao mundo o termômetro, desenvolveu o pêndulo, estabeleceu a mecânica física sobre nova base experimental e, sobretudo, aplicou o telescópio ao estudo dos céus. O verdadeiro triunfo da teoria de Copérnico se deve a Galileu. Mas sua explanaçáo, especialmente em seu
Diála,o de 1632, provocou amarga oposisáo filosófica e eclesiástica, e no ano seguinte a Inquisiçáo o obrigou a abjurá-la. A demonstrac;áo popular da reoria de Copérnico foi, porém, obra de Sir Isaque Newton (1642-1727). Sua obra P~incipin de 1687, fez sensaqáo na Europa, demonstrando matematicamente que os movimentos dos corpos celestes são explicáveis pela gravitaçáo. O efeito das conclusóes de Newton foi profundo. Aos pensadores, o universo físico não era mais campo da ação divina arbitrária, mas um reino de leis interpretável - essa foi a conclusáo da ciência da época, em termos estriros de causa e efeito mecânicos. Esta terra náo era mais o centro de todas as coisas, mas mero ponto num vasto reino de corpos, muitos de tamanho infinitamente maior, e todos se movendo em obediência a uma lei inalterável. O próprio Newton era profundamente religioso e muito interessado em teolo-
gia, mas suas descobertas científicas foram usadas por alguns como meio para desacreditar o cristianismo. Enquanto a ciência estava assim revelando um novo cku e uma nova terra, a filosofia, de modo não menos vigoroso, reivindicava autoridade em nome da razáo. René Descartes (1596-1650), um francês basrarite católico, passou grande parte de sua ativa vida intelectual nos Países Baixos. Lá escreveu Discurso Sobre a Método
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HISTÓRIR DA IGREJA ERISTR
( 1 637), Primeira Filosofid (1641) e Principia (1644). No seu entender, somence é conhecimento real o que a mente compreende compIetamente. A mera erudiçáo não é inteligência. O s objetos e as idéias que se apresentam à mente escáo cáo envolvidos
e sáo tão dependentes uns dos oumos que devem ser analisados e separados em sua simplicidade para serem realmente compreendidos. Consequenternence, o começo de todo conhecin~entot a dúvida, e náo pode haver progresso real algum até que seja alcançado um f~indamenro,ou ponto de partida, do qual náo se possa duvidar. Ta1 frindamenco Descarccs encontrou, com Agostinho, em sua própria existência como ser pensanre. Mesmo duvidando, "penso, logo existo". Se examiilarmos o conreúdo desse "eu pensante", nele encontraremos idéias maiores do que as que por si mesmo pode gerar. E, visto que nada pode cxistir sem causa adequada, deve haver uma causa bascance grande e bastante real para produzir tais idéias. Consequcntemente, somos convencidos da existência de Deus e da reiacão de Deus com todo o nosso pensamento. Em Deus, pensamento e ser estio unidos. Nossas idtias ser50 verdadeiras c iguais as de Deus somente quando forem claras e distintas, com uma clareza lógica como as demonscracóes da geometria. A nlatéria, embora tendo da mesma forma que o cspírito sua origem em Deus, em tudo é oposta ao espírito. Em última análise, só possui extensáo e o movimento puramente mecânico que Deus lhe imprimiu. Em conseqüência, os animais sáo meramente máquinas. Já no ser humano, a relaqáo entre matéria e espíriro causou a Descartes grande perplexidade. No entanto, por influente que tenha sido a filosofia carresiana, náo foram seus pormenores que afetaram profundamente o pensamento popular, mas sua afirmaçáo de que todos os conceitos devem ser postos em dúvida acé que sejam provados, e que qualquer prova adequada [em que ter a certeza da demonstracáo matemática. Estes dois princípios teriam conseqüências enormes.
A influência do judeu holandês Baruque Spinoza (1632-1677),esteve decididamente ao Iado dos princípios de Descartes. Nos séculos posteriores, tanto pietistas como românticos iriam se inspirar lia obra de Spinoza, com suas ~endênciasmonisca e panteísta. Ele ensinava que tudo é uma substância infinita, tudo é Deus ou natureza, conhecido em dois modos ou atributos, pensamento e extensáo, dos quais todas as pessoas ou atributos finiíos são a expressão. Nos debates de sua época, entrecanto, a contribuiçáo de Spinoza fortaleceu o racionalismo em desenvolvimcnto.
Mas coma os seres humanos aIcançam o conhecimento? Uma resposta importante veio da parte do matemático, historiador, estadista e filósofo alemáo Gottfricd
~ ~ n i o ovilo
O CRlSTIANISMO MODERNO
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Wilhelm Leibniz (1646-1716). Durante os últimos quarenta anos de sua vida foi bibliotecário em Hanover, e incansável lutador peia reuniâo do catolicismo e do protestantismo. Diferindo de Spinoza, que via no universo uma substância, 1.eibniz cria que o número de substâncias era infinito. Cada Lima é uma "mônada", urn cen[ro indivisível de forqa. Cada mônada espelha o universo, ainda que o grau de corisciência em diferentes môriadas varie da virtual inco~isciênciaa atividade máxima. Quanto maior e mais clara a consciência, mais se aproxima a mônada do divino. Deus é a manada original, para cuja percepção todas as coisas são claras. Todas as idéias estáo involucradas na môriada, são inatas, e precisam ser trazidas à luz. Aqui esrá novamente o tcstc característico de verdade, que Descartes e Spinoza haviam apresentado. Nenhuilia mônada influi noutra; tudo que parece ser influEncia reçíproca é a açáo de uma harmonia preestabelecida, como relógios perfeitos indicando a mesma hora. Também, o conjunto de mônadas que forinairi os corpos náo ocupam espaço. Cada mônada é corno um ponto matemático, e tempo e cspaço são apenas os aspectos necessários pelos quais seus agrupamentos sáo percebidos. Deus criou o mundo para iiiostrar sua pcrfcicáo, e portanto, escoIheu o melhor de todos os mundos possíveis. O que parece ser mal é imperfei~ão,dor física e limicaçáo, ou mal moral, que náo ohstante é necessário no sentido de que Deus náo poderia ter feito
um mundo melhor. A resposta de Leib~iizFoi, portanto, que os homens chegam ao conhecimento pela elucidação de suas idéias inatas.
A resposta dada pelo mais influenre pensador inglês do fim do século dezessete e início do dezoito, John Locke (1632-1704), foi inuito diferente. Em seu famoso
Erisaio S o b ~ en Cumpl-eensiro Humnnn (1690), Locke negou a existência de idéias inatas. A mente é um papel em hra~ico,no qual os sentidos escrevem suas impressões, as quais a mente combina em idéias mediante a reflexáo, e a combinação de idéias simples dá origem a idéias mais complexas. O propósito de Locke era demonstrar que tudo o que aspira a ser conl~ecirnentoé merecidamente submetido à crítica quanto a sua razoabilidade julgada pela razáo bascada na experiência. Assim tesrada, ele cncontra a cxiscência de Deus demonstrada pelo argumento de causa e efeito; a moral é tzo den~oiistrávelquanro as verdades da matemárica. A religiáo deve ser essencialmente razoável. Ela pode estar acima da razáo
- além da experiência - mas
não pode contradizer a razáo. Locke desenvolveu estas idéias no seu livro Ruzoabiliddde
do Cristianismo (1695). Ele diz nesta obra que as Escrituras contêm uma mensagem, confirmada por milagres, que supera a capacidade da razáo para alcançá-la sem aju-
da; mas essa mensagem não pode ser contrária a razáo e nem um milagre confirmar algo essencialmente náo razoável. Conseqüentemente, ainda que fosse cristáo sincero, Locke teve pouca paciência com o mistério na religiáo. Para ele era suficiente reconhecer Jesus como o Messias e praticar as virtudes morais que ele proclamou e que estão fundamentalmente de acordo com os ditames de uma razáo que difrcilmente é distinguível do senso comum esclarecido. Locke náo foi menos influente como defensor da tolerância e inimigo de toda imposiçáo em matéria religiosa. A única arma própria da religiáo é sua razoabilidade essencial. Locke também influenciou sobremaneira a formacáo da teoria política na Inglaterra e nos Estados Unidos. Nesse terreno fora precedido, em várias dire~óes, por Grotius (1 583- 1645), Hobbes (1588-1679) e Pufendorf (1632-1694). Em seu
Tratados Sobre o Governo (1690), Locke argumentou que os homens têm direitos naturais à vida, liberdade e ~ r o ~ r i e d a d Com e. o fito de assegurar tais direitos, o governo i estabelecido pelo consenrimento dos governados. Em ta1 estado deve governar a vontade da maioria, e quando esta vontade não é posta em prática, ou sáo violados direitos fundamentais, o povo tem o direito de fazer revoluçáo. As funcóes legislativa e executiva devem ser cuidadosamente discriminadas. A legislativa é superior.
E muito
difícil superestimar a influência dessa idéia no desenvolvimento da
teoria política na Inglarerra e nos Estados Unidos, por mais inadequada ou extravagante que possa ser como explanaçáo histórica da origem do estado.
As idéias desenvolvidas pelo conde de Shaftesbury (1671-1713) em sua obra
Cdructeristicus dos Homens (171I), foram de considerável significacá0 na teoria da moral. Hobbes renrara encontrar a base da moral na constituiçáo humana, mas nela não descobrira nada além de puro egoísmo. Para I,ocke, a base que a razáo descobre
C a lei de Deus. Ainda que inteiramente razoável, para Locke a moral ainda é posiriva, um mandamento divino. Shafresb~lr~ agora ensinava que, uma vez que o ser humano é um scr que possui direitos pessoais e relacócs sociais, a virtude consiste no equilíbrio adequado de ubjerivos egoístas e altruístas. Essa harmonia é alcançada, e o valor das ações determinado, por um "sentjdo moral" interior. Shaftesbury assim baseava o certo e o errado na constituicáo fundamental da própria natureza h~imana, náo na vontade de Deus. Isso explicava racionalmente por que mesmo alguém que rejeitasse a existência de Deus - o que náo era o caso de Shaftesbury - estava náo obsrante obrigado a manter uma conduta moral. Também eliminava a esperanca de recompensa ou o temor de castigo como motivos principais para a conduta moral.
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Ateu e inimigo da moral já náo podiam mais ser considerados conceitos equivalences, como o haviam sido anteriormente, em termos gerais. Esses desenvolvimentos na ciência e na filosofia forneceram os fundamentos do
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movimento que caracterizou o ambienre do século dezoito, o Iluminismo. Tal movi-
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mento foi o esforço consciente para aplicar o governo da razáo aos vários aspectos da
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vida individual e coletiva. Seus princípios fundamentais - autonomia, razáo, harmonia preestabelecida - influenciaram profundamente o pensamento e as ações do mundo moderno e condicionararn o ambiente no qual o cristianismo vivia.
Capitulo 2
A Transplantação do Cristianismo para as Américas O cristianismo nas Américas é, ances de mais nada, uma importacão do Velho Mundo. Assim como a c o l o n i ~ a ~ ádo o hemisfério ocidental representava muitas na~Óesda Europa, também os vários tipos de cristianismo europeu foram reproduzidos nas Américas. Onde, como nas ArnCricas do Sul e Central, a imigraçáo foi em g a n d e parte de povos homogêneos que impuseram sua civiiizacão aos habitantes nativos, um único tipo de cristianismo - normalmente o catblico romano - rem sido dominante, por mais que seu predomínio tenha sido contestado por influências seculares. Onde, como na América do Norte, muiros povos contribuíram para a população, o resultado tem sido enorme variedade e uma necessária tolerância mútua (ainda que um só tipo de cristianismo tenha dominado aqui e acolá nos primórdios da coloniz a @ ~ )Isso . contribuiu sobremaneira para o surgimento de plena liberdade religiosa. Entre~anto,nas três Américas, embora a implantação do cristianismo possa ser visto
de uma maneira !geral como uma parte integral dos desdobramenros da cristandade europiia, mudanças sutis introduzidas pela transiçáo para os novos ambientes levaram a evolução de formas distintas de cristianismo. Especialmente na América do Norte, onde muitas d e n ~ m i n a ~ ó protestantes es se tornaram independentes de suas igrejas maternas, podem ser discernidas a "americanizacáon e a "canadizaçáo" das tradições cristãs.
Um aspecto importante da conquista espanhola das Américas Central e do Sul foi o estabelecimenro do catolicisrno romano. Clérigos seculares, que trabalhavam no contexto de estruturas hierárquicas elaboradas, foram trazidos para atender os colonos europeus. A conversão das populaçóes nativas foi em garide parte obra das ordens monásticas, vigorosamente apoiadas pela coroa espanhola (a portuguesa, com relaçán ao Brasil). Protestando com êxito contra a escravizaçáo dos índios, os monges desei~~~olveram o sistema de missáo. Este sistema algo paternalista por vezes perdurava por longos períodos, embora na teoria fosse apenas um agente da expansáo da igreja e da cultura que dcveria ser logo subsciruído pelas esrrururas normais. Os frailcisçanos, dominicanos e jesuíras foram especialmente ativos na conversáo das Américas do Si11 e CenrraI. Os franciscanos começaram a trabalhar na Venezuela, México, Peru e Argentina ria pri~ncirametade do século dezesseis. Eles foram os primeiros a atuar no Brasil.
Pelo fim do st.cuio haviam hindado ccirnunidades cristãs no que é hoje o Novo M6xico e Texas. Em 1770 dcsenvolveruin muitos centros missionários na Califdrnia, onde sua obra floresceu durante meio século. Os franciscanos tiveram dignos competidores nos dominicanos, que estavam no México em 1526 e pouco depois na Colómbia, Venezuela e Peru.
A atividade dos jesuíras foi ainda mais extensa. A partir de 1543 desenvolveram obra no Brasil. A Colômbia logo sc revelou um dos seus campos de maior êxito. Cerca de 1568 esravam no Peiu. Em 1572 comecaram a trabalhar no México. O século dezessete presencio~isua intensa atividade no Equador, Bolívia e Chile'e o progresso de suas aldeias indígenas
controladas no Paraguai, tema
muito debatido. Esses cxércitos de missionários monásticos reproduziram fielmente o cristianismo caiólico romano espanhol, ao qual eram táo dedicados.
Em 1551 foram fundadas universidades em Lima e na Cidade do México - as mais respeitáveis instit~~içóes de ensino no Novo Mundo. A educaqáo clernentar foi mantida em nivel mínimo, tanto que o analfabeiisrno foi geral, mormente entre os nativos, durante rodo o período do domínio espanhol.
O Canadá francês se iniciou em 1604. No início a influência huguenote foi considerável, mas logo foi derribada pelo catoIicismo. As ordens religiosas, lideradas pelos jesuítas, fizeram esforços sérios para converter os índios. A narrativa de seu heroismo e espírito de sacrifício é um dos clássicos da história missionária. Em 1673, um missionlírio jesuíta chamado Jacques Marquette (1637-1675) descobriu o
PERIOBO YII
O CRISTIANISMO MOOERNO
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Mississipi. Logo foi estabelecida uma série de postos missionários por rodo o vale deste rio, até o sul, na Louisiana. No entanto, poucos frutos permanentes resultaram desse vigoroso impulso missionário. Diferindo do modelo na América do Sul, as tribos resistiram à formação de comunidades agrícolas, e foram assoladas por enfermidades, pelo alcoolismo e pelas guerras inrertribais. O crescimento da i,arej a na Nova França foi resultado da imigraçáo. O modelador do catolicismo romano canadense francês foi o agressivo Francisco de Laval (1623-1708), primeiro bispo de Q~~ébec. As colônias francesas c cspanhoIas no Novo Mundo, portanto, assistiram a importaçáo de uma tradição religiosa dominante. As colônias inglesas, porém, receberam diversas organizacóes eclesiásticas. A igreja da Inglaterra foi transplantada para a Virgínia qua~ldoda efetiva funda~ãodesta, em 1607, e ali permaneceu estabelecida por lei durante todo o período coloniaI. Entretanto, a falta de um bispo residente através de todo este pcríodo prejudicou gra~cmencea igreja. Na falta de supervisão adequada, frequentemente os conselhos paroquiais leigos assumiam o controle de dadas paróquias e tendiam a administrá-las segundo os interesses da aristocracia local. O bispo de Londres exercia jurisdiçáo ilomiriaI sobre a colonia, e fazia esforc;os para atender a sua responsabilidade por meio da indicação de comissários. James Blair (1656-1743) serviu como comissirio na Virgínia de 1685 até sua morte. Seu empreendimento mais notável foi a fundacáo, em 1 693, do William and M a y Collcge. Mas faltava autoridade concrera aos co~nissáriose a igreja padecia com seu clero, pois entre os clérigos havia incompetentes e alguns indignos. Ademais, algumas paróquias eram muito extensas e, normalmente, náo havia clérigos o suficiente para arcndê-Ias. Conseqüentemente, a igreja oficial não era suficienremente forte e não podia resistir efetivamente a expansão de grupos dissidentes.
A vizinlia de Virgínia ao norte, Maryiand, a primeira colônia inglesa que teve proprietário no que é agora os Estados Unidos, foi entregue por carta-patente ao católico romano Lorde Baltimore, em 1632. Desejoso de assegurar um lugar de refúgio e liberdade, sob a soberania da Inglaterra, aos seus coinpanheiros de crenqa, Baltimore estabeleceu a tolerância religiosa. Desde o começo os prorestantcs exccdiam em número aos católicos. Em 1691 Maryland foi convertida em colônia real e, em grande parte graças aos esforços do comissário Tfiomas Bray (1656-1730), a
igreja da Inglaterra foi estabeiecida por lei como a igreja oficial. Na realidade, Bray esteve na colônia apenas poucos meses, mas seus préstimos, principalmente por in-
HISTÓRII DA IGREJI CRISTA
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termédio da organização da Sociedade I'romotora do Conhecimento Cristáo (S.P.C.K.), em 1699, e a Sociedade para a Propagaçáo do Evangelho em Terras Estrangeiras (S.I?G.), em 1701 (ver VII:9), foram imensuráveis. O estabelecimento da igreja da Inglaterra, no entanto, náo conquistou a simpatia da maioria da populaçáo. Os quacres, presbirerianos e batistas experimentavam expansão constante. Quanto aos católicos romanos, estavam sujeitos a restrições legais, como em outras colônias. Na história católica romana, o século dezoito, até a revoluçáo da independência, foi o "período penal". Depois de 1689 foram feitos esforços pela mãe pát~iapara, onde possível, assegurar o csrabelecirnento da igreja da Inglaterra. O primeiro fruto dessa atitude foi a lei de Maryland; depois seguiram-se os estabelecimentos nas Carolinas do Sul e do Norte,
respectivamente em 1706 e 1715. O caráter religioso mesclado de suas populaçóes, incluindo hriguenotes, presbirerianos escoto-irlandeses, batistas e quacres, tornaram esses estabelecimentos praticamente ineficientes, não obstante o grande número de missionários fornecidos pela S.P.G. e a alta qualidade de uma série de párocos em Charleston. O início da obra da igreja da Inglaterra na Geórgia coincidiu com a funda+
da colônia, em 1733, mas o estabelecimento da igreja só se efetuou em
1758. A politica de tolerância logo atraiu para lá vários outros grupos de protestantes c o es~abelecimentofoi praticamente apenas noniinal. Já notamos a instalaçáo dos peregrinos e puritanos ingleses na Nova Inglaterra,
que comeGou em 1620, e os passos dados para a fundaçáo, entre esta data e 1638, das colônias congregacionalistas de Plymouth, Baía de Massachusetts, Connecticut e
Ncw Haven (jrer VI: 16). Com os habilidosos líderes da Baía de Massachusetts abrindo caminho, foram feitas sérias tentarivas para a criaçáo de uma comunidade santa
sobre a terra, solidamenre baseada sobre a "lei simples" da Bíblia. Fazendo da cartapatente de sua companhia comercial a constituiçáo de um estado, trabalharam por mais de meio século para construir sua comunidade bíblica teocrática. Crendo que seus ministros bem treinados haviam lido corretamente as Escricuras, apressaram-se em fundar o Harvard College (1636) para que nunca lhes faltassem líderes bem preparados. Também não negligenciaram na obra de conversáo dos índios. O trabalho de John Eliot (1604-1690), iniciado em 1646, levou à fundaçáo, em 1649, da primeira sociedade missionária na Inglaterra, a Sociedade para a Propagação do Evangelho na Nova Inglaterra (ver VI1:9). Esses primeiros congregacionalistas da Nova Inglaterra não diferia111teologicamente de seus irmáos puritanos na Grá-Bretanha -
eles acolheram o aparecimento da Confissão de Westminstcr (ver VT:I6), adotaramna em sua essência e enfatizaram a teologia federal, ou do pacto. Durante o primeiro sbculo suas controvérsias lidaram mais com o desenvolvimçnto da política do que com questóes de doutrina. Cerca de 1631, em Massachusetts e rapidamente nas foi estabelecido por lei, e ficou evioutras colonias puritanas, o ~on~regaciorialismo dente o pleno significado de "congregacionalismo náo separatista", quc insistia vigorosamente na uniformidade religiosa e procurava restringir o11 excliiir todos os dissidentes. A existência de religião estabelecida, ou oficial, nas colônias puritarias (Connecticut e New Haven foram aglutinadas em 1662-1665; Baía de Massachusetts e I'lymouth foram aglutinadas em 1691; New Hampshire se tornou independente de Massachusetts em 1680) perdurou por mais tempo do que em qualquer outra parte do país (ver VII: 1O). No entanto, náo demoraram a aparecer discordantes da ordem estabelecida. Praricarnerite desde o começo havia batistas ocasionais na colônia de Massachuserts, e apesar da repressáo governamental eles organizaram uma igreja em Boston em 1665 e vagarosamente se espalharam na Nova Inglaterra. Os quacres chegaram à baía em 1656, ansiosos por testemunharem contra a igreja estatal puritana. No período de cinco anos, quatro deles foram enforcados em Boston, até que Carlos I1 ordenou que cessassem as execuqóes. O governo de restauracáo na Iriglaterra procurou coibir os obstinados puritanos e finalmente coilseguiu revogar a carta-patente da Baía de Massachusetts (1684). Com a afirrnacáo do controle rcal, o culto da igreja da Inglaterra por fim conseguiu uma base permanente na Nova Inglai-erra, comecando em Boston, em 1687. A nova carta-patente de 1691 substitiiiu os requisitos religiosos pelos de propriedade para a concessáo de cidadania, e concedeu certa tolerância para minorias religiosas, ainda que conservando porrncnores irritantes, tais como pagamentos obrigatórios às igrejas estabclecidas. Entre 1727 c 1729, em Massachusetts e Connecticut, certos grupos foram dispensados, ainda que debaixo dc condiqóes onerosas, dos impostos para o sustento do congregacionalismo.
O declínio das esperanças puritarias por uma comunidade santa monolícica riáo foi afetado apenas por forças externas, mas rambém porque a dedica~áodos fundadores frequentemente não foi igualada pela dos seus filhos e netos. A esperanqa inicial fora por uma igreja de membros eleitos, somente "santos comprovados", mas logo as barreiras tiveram de ser algo reduzidas pelo Half-way Co\renant [Pacto Parcial] (1657-1662). Apareceram rendências liberais em Harvard por volta do fim do sécu-
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HISTÓRIA DA IGREJA GRISTÃ
10, e a fundaçáo da entáo radical Brattle Street Church, em Boston, em 1699, revelou quáo distantes da fé original estavam alguns dos dcscendentes dos colonos puritanos. O s congregacionalistas de Connecticut, que se inclinavam no sentido de uma posicáo semi-presbiceriana, ficaram preocupados com essas rendências eni Massachusetts, e a f~11idac;áo do Yale College (1701) foi parte da reacso a tais tendências. Mas grupos dissidentes também agitavam Connecticut: batistas, quacres e uma seita autóctone, radical, sabatista, denominada "rogerene" começaram a ser ouvidos.
Os episcopais se firmaram em Stratford ern 1707 e progrediram bastante em 1722, quando um pequeno grupo de líderes congregacionalistas passaram para o cpiscopado, liderados pelo reitor, ou presidente, de Yaie, Timothy Cutler (1684-1765), e Samuel Johnson (1696-1772), que mais tarde (1754) tornou-se o primeiro presiderite da hoje Columbia University O crescimento da igreja da Inglaterra foi bastance auxiliado pela obra da S.P.G., que enviou a maioria de seus missionários às colônias onde a igreja episcopal era mais fraca.
A ~ o l o n i z a ~ áde o Rhodc Island foi um desenr~olvirnentoaltamente notável na Nova Inglaterra. Roger Williams (1604?-1683) fundou Providence em 1636. Na ocasião ele estava banido de Massachusetrs por se opor, como princípio teológico, a cocrçáo em assuntos religiosos. Rhode Island tornou-se refúgio para os que huscavam liberdade de expressáo religiosa. Em 1639 foi fundada a primeira igreja batista na AmCrica. Williams foi seu membro por breve tempo, e passou a parte final de sua vida como um "buscador" na procura da verdadeira igreja. Apesar de muitos problemas internos oriundos de um incenso individualismo, foram mantidos os amplos princípios de liberdade religiosa sobre os quais Rhode Islarid foi fundada. Os quacres, em particular, ali enconcrararn um lar. Williams suspeitava muito deles e antiparizava com eles, mas nunca violou seus princípios e portanto nunca empregou o poder do estado para reprimi-los.
Assim, o anglicanisn~ofoi estabelecido por lei nas colônias d o sul e o congregacionalisrno na Nova Inglaterra (exceto Rhode Island), com grupos dissidentes logo em evidência tanto no sul como no norte. Mas nas colônias centrais, desde cedo houve grande diversidade religiosa, e quaisquer esperanças pelo estabelecimento oficial de uma religião logo feneceram. A Nova HoIanda foi esrabelecida permanentemente como posto comercial holandês em 1624. Quatro anos mais carde foi organizada em Nova Amsterdã, na illia de Manhartan, sua primeira igreja reformada Iiolandesa, a mais antiga representante do sistema presbiteriano na América. Jonas
PER~UUOvil
O CRISTIANISMO MODERNO
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Michaelius (1 584-?) veio da Holanda para ser seu primeiro miriistro. Esta c outras igrejas reformadas foram estabelecidas por lei, mas em 1644 a populaçáo religiosa de Manhartan também incluía luteranos, mcnonitas, puritanos ingleses e católicos romanos. Foram feitas tentativas para obsrar outro culto que não o da igreja reformada da Holanda durante a a d m i n i ~ t r a ~ ádo o governador Perer S t ~ i y e s a n (1647-I664), t embora tenham sido feitas concessões aos puritanos que possuíam inclinações presbiterianas. Os quacres foram especialmente alvo de repressão. O domínio hoIandês terminou em 1664, quando a colônia passou aos ingleses sob o nome de Nova Iorque. Em 1693 os governantes ingleses conseguiram a aprovação de uma lei ministerial, c entáa houve tentativas para interpresá-la como estabelecendo a igreja da Inglaterra em Nova Iorque. Mas a área sobre a qual a lei era válida era limitada, e ela não estabeleceu a igreja episcopal ali no mesliio sentido dos estabclecimencos nas çolôliias do sul. Aigumas igrejas, especialmente a da Trindade conieqando em 1637, receberam por muitos anos, com base
112 tal
lei, fundos públicos para a manutençáo
de seu clero. A igreja reformada Iiolandesa foi protegida por Icgislaçáo liberal, c a crescente tolerância deu oportunidade para outras denomiriaqóes. Em 1709, uma grande imigraçáo de alemáes rcformados, oriundos do Palarinado, cheg,ou na colonia.
Os primeiros quacres chegaram à América ern 1656 como missionários. A perseguiçáo os aguardava por toda parte. Cedo, porém, obtiveram cerca rolerância e progressivamente foram se expandindo e desenvolvendo suas reunióes. A visita de Jorge Fox às colônias, em 1672, muito auxiliou na estabili~a~áo do movimento. Logo as
colonias centrais se tornaram na principal área de expansão dos quacres. A primeira experiência de governo importante dos quacres começou cm Jersey Ocidental, onde a carta de 1677, "Leis, Cor-icessóese Pactos", concedia liber-dade religiosa. Em Jersey Oriental desde cedo houve colonos representando o presbiterianismo puritano iil-
glês, os reformados holandeses e o presbiteriaiiismo escocês. A colônia ficou nas ~iláosdos quacres por um tempo, embora o elemento presbiteriano continuasse a maior força reIigiosa. O domínio quacre já havia desaparecido quando da aglutinagáo das duas Jerseys, em 1702, para a formagáo da Nova Jersey.
Já foi mencionada a concessão da Pen~isylvaniaa William Penn, em 1681, c sua colonizaçáo por quacres no ano seguinte (ver VI:17). A polí~icaquacre de liberdade religiosa atraiu representantes de outras formas de f6. Daí, nenhuma outra colônia apresentou tamanha diversidade de organiza~óesreligiosas como a Pennsylvania. Os
batistas, principalmente provenientes da Inglaterra e de Gales, logo se fizeram representar ali mais do que em qualquer ourro local nas colônias. A Associação Batista da Filadélfia, destinada a desempenhar papel principal nos assuntos incercoloniais, foi organizada em 1707. Meno~iitasda Alemanha e da S u i p inundaram a Pennsylvania em busca de refúgio. Vários outros grupos alemães, tais como os batistas germânicos (Dunkers, fundados em 1708), migraram para o convidativo refúgio. No século dezoito chegou uma grande onda de luteranos alemáes. Os primeiros grupos luteranos na América foram de suecos, relacionados com o breve esforço desse povo para fundar uma colônia no rio Delaware. O segundo p r í o d o do desenvolvimento luterano foi o holandês, localizado na área de Nova Iorque. Mas no século dezoito, a imigraçáo alemá centrdizada na Pennsylvania introduziu o grupo étnico que logo se tornaria o mais importante no luteranismo colonial. Também vieram muitos aleináes reformados que desfrutaram de estreita relacáo com os líderes dos holandeses reforrnados. N o inicio do século dezoito outra vaga de imigrantes, fadada a ser de enorme importância religiosa, econômica e política, levou colonos escoto-irlandeses náo apenas às colônias centrais mas também para as outras colônias. Os escoto-irlandeses, oriundos
dos povoamentos escoceses no norte da Irlanda eram, como a maioria dos escoceses que emigraram nessa época, profundamente presbiterianos. Encontraram Lim líder e organizador em Francis Makemie (1658-1708), a cuja iniciativa se deve o primeiro presbitério americano, o da Filadélfia, em 1706. Nesre presbitério, e em muitas congregacóes presbiterianas, prcsbi~erianospuritanos ingleses cultuavam juntamente com seguidores escoceses e escoto-irlandeses de Calvino. h migraçáo dos escoto-irlandeses continuou atb o irromper da revolucáo pela independência, fazendo-os presentes em praticamente tndas as colônias. Muitos deles dirigiram-se para a fronteira ocidental, e é à energia desse povo que se deve, em grande parte, a colonizaçáo do que é hoje a Virgínia Ocidental, o oesce da Carolina do Norte, e por fim o Kentuçky e o Tennessee, como também g a n d e parte da Carolina do Sul e do Alabama. Seu crçscimento foi de tal porte que, dez anos após a organizaqáo d o primeiro presbitério, foi formado um sínodo, incluindo os presbitérios de Long Island (depois Nova Iorque), Nesv Casrlc (Dela~vare)e Filadélfia.
A obra episcopal foi iniciada nas colónias centrais antes do início do século dezoito, e sua expansáo nesse século foi devida principalmente a obra dos missionários
da S.P.G.
~raioiovii
D CRISTIANISMU MODERNO
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Assim, pelo fim d o primeiro quartel do século dezoito, embora a multiplicidade de organizações religiosas fosse comum em todas as colônias, as centrais, especialmente, apresentavam uma grande diversidade religiosa. Nenhuma denominação predominava nas colônias como um todo. Conquanco denominaçóes específicas fossem fortes em certas colônias, nenhuma igreja poderia vir a ser a de todas as colônias. As igrejas que se estabeleceram na América foram claramente igrejas transplantadas. Mas no novo ambiente, e especialmente em relaçáo àquelas igrejas que desfrutavam
de estabelecimento oficial na Europa mas náo nas colônias, havia confusáo e hesitaçáo, porquanto práticas e procedimentos familiares frequentemente náo funciona-
vam bem. Muitos membros que tinham sido fiéis no Velho Mundo, não mantinham (ou por motivos de distância náo podiam manter) seus vínculos religiosos no Novo Mundo. As igrejas oficialmente estabelecidas também foram perturbadas tanto $0 declínio d o fervor de seus próprios membros como pela expansáo dos grupos dissidentes em seu meio. Ademais, os efeitos do racionalismo e do deísmo da Idade da Razáo estavam começando a se fazer sentir nas igrejas, e muitas das pessoas que náo frequentavam as igrejas eram indiferentes ou mesmo hostis à reIigiáo. Apesar do crescimento de igrejas mediante a irnigraçiáo, estava se desenvolvendo uma situacão na qual segmento crescente da populaçáo náo tinha nenhum vínculo religioso.
A vida canadense 110século dezoito foi rnarcada por uma luta permanente entre a França e a Inglaterra pelo controle dos territórios setentrionais, por fim vencida pelos ingleses. Ao final da Guerra da Rainha Ana (tia Europa, a Guerra da Sucessão Espanhola) em 1713, a França entregou a Baía de Hudson, Newfoundland e grande parte da Nova Scotia para os ingleses. Mas não foi seiláo após a fundacão de Haiifax em 1749 que surgiram congregaçóes protestantes permanentes. Nas décadas seguinres foram f ~ ~ n d a d aigrejas s anglicanas, luteranas, congregacionais, preshiterianas, metodistas e batistas. Entrementes, durante a guerra entre franceses e índios (a Guerra dos Sete Ai~os)a cidade de Québcc caiu nas máos dos ingleses, e Montreal capitulou um ano mais tarde. O Trarado de Paris em 1763 acabou com todas as possessões francesas no continente norte-americano. O esforço para angIicizar a província do Québec logo foi abandonado; o parlamento britânico, por meio da Lei do Québec
de 1774, permitia que os franco-canadenses mantivessem seu próprio sistema iemifeudal, concedia cidadania aos católicos romanos e tornava-os elegíveis para cargos públicos, e permitia que a igreja mantivesse seu direito de cobrar o dízimo dos l-iéis. Québec permaneceu predominantemente católica, mas nas províncias maríti-
G;s
HISTORIA DA IGREJA GRISTÃ
mas tanto os católicos fra~icófonosconio os catóiicos anglófonos tiveram que se ajustar aos padrócs dc pluralismo religioso que esravam cada vez mais se tornando característico da vida reli,'~ l o s anorte-americana.
Capítulo 3
O Deisino e Seus Oponentes; o Ceticismo
Uma das importantes conseqüências da expansáo do espírito do Iluminismo (~rer
VI1:l) no fini do século dezessete e início do dezoito, foi o desenvolvimento do tacionalisti~ona religião. A concep~áonewtoniana do universo era a de um reino de leis, criado por uma "primeira causa" c funcionando numa ordem mecânica. O conhecimento recente de antigas ci~~ilizacóes e de outras religióes ampliava os horizontes humanos e confl-oiitava as pessoas com oucras culturas que náo a cristã. A prova
da verdade para Locke era a razoabilidade, no senrido de conformidade com o senso comum. Ele percebia a moralidade como o conteúdo principal da religiáo. A reaçáo moral contra as paixões e brutalidade das guerras religiosas foi um poderoso estímulo para o desenvol~imentodo racionalismo religioso. Todas estas influências conduziram a uma significativa decolagem do racionalismo no pensamcnro religioso in-
glês. Em sua forma mais branda ele surgiu como "sobrenaturalismo racional", mas em seu desenvolvirilento central tomou a forma de um cleísmo cristão pleno, ao passo que sua ala radical se fez deísmo anricristáo e voltou-se contra a religiáo organizada.
O pioneiro dcisr~ifoi Edward Herbert de Cherbury (1 583-1648), quc já em 1624 enumerara os artigos de fé apontados como constituintes da religiáo natural e sustentados por toda a h~imanidadena sua simplicidade náo conspurcada. Sáo eles: Deus existe, dcvc scr adorado, a virtude é o seu verdadeiro culto, o homem deve se arrepender dos seus atos maus e após a morte há recompensa e casi-igos. Mas poucos racionaIistas no século dezessete foram táo longe. O próprio Locke deixou um iugar para a reveiacáo na sua interpretaçáo do cristianismo, ainda que insistindo em que o
que fora revelado era basicamente sirnples e sempre razoável. A fé racioi-ial sobrenaturalista de John Tillotson (1630-1694) náo era muito diferenre. Para este famoso pregador, arcebispo de Cantuária e Iíder do partido latitudinário lia igreja da Inglaterra, a religiáo natural tem que ser suplementada pela revelacáo, uma vez que é necessário uma sançáo divina à moralidade. Mas John Toland (1670-1722), embora ainda deixando algum lugar para a revelação divina, se encaminhava para uma posiçáo deísta completa, e seu livro, O C~istianismo niio éMisterioso, publicado em 1696, iniciou a controvérsia deísta na Inglaterra. 0 s que pardavam o conceito da revelacão se defenderam afirmando que ela era confirmada pelas profecias e pelos milagres. Mas em 1713 Anthony ColIins (1676-1729) publicou sua obra Discuisos do Livre
Penenramento, na qual atacava o argumento da profecia, enquanto Thomas Woolston (1669-1733) sujeitava os milagres a uma minuciosa crítica. Em 1730 apareceu um livro de Mactliew "finda1 (1657-1733) intitulado Crzstianismo tdo A~ztigoQuanto a
Cr-inçn'o,normalmente chamado de a Bíblia Deísta. O s principais pontos da posiçáo deísta foram apresentados pelos escritos desses autores. Eles afirmavam que tudo o que é aceito além ou acima da razáo é realmente aceito pela fé sem provas. Ser livre é estar isento de superstiçáo; conseqüentemente o único pensador racional é o livre pensador. O s piores iilirnigos da humanidade são os que têm mantido as pessoas nas cadeias da supersti~áo,e o maior exemplo desses inimigos são os "sacerdotes" de todos os tipos. Tudo o que é de valor na revelaçáo já foi dado aos homens na religiáo racional natural; em conseqüência, "cristianismo" - isco é, tudo o que tem valor no cristianismo - é "ráo antigo quanto a criaçáo." Tudo o que é obscuro ou está acima da razáo na assim chamada "revelacáon é superstiçáo e sem vaior ou mesmo pior que isro. O s milagres náo são prova real da revelacáo; eles ou sáo supérfluos, pois rudo de valor que testemunham a razáo já possui, ou são um iilsulto à perfeita obra de um criador que pôs este mundo a girar segundo as mais perfeitas ieis mecinicas c agora não intergere no seu funcionamento. O deísmo, assim, parecia pôr abaixo todo o cristianismo histórico e a autoridade da revelaçáo. Foi abertamente denunciado como ateísmo, porém injustamente, por mais destrutivo que possa ter sido. Era, na percep$0
de seus defensores, a Jibertaçáo da rcligiáo das cadeias da supersticáo e o retorno
a primitiva pureza e simplicidade racional.
Dc uma perspectiva posterior, as fraquezas do deísmo sáo evidentes. Sua religião racional, primitiva e universal é táo fruto da iriiaginayáo quanto o primitivo estado social e político imaculado do impoluto filho da natureza, idéia táo cara ao século
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HISTbRIA DA IGREJA
CRISTA
dezoito. Sua a f i r n ~ a ~ de á o que "tudo o que existç", isto é, tudo o que é natural
- "é
bom", era otimismo superficial. Não tinha percepçáo alguma dos fatos reais do desenvoivimcnto histórico da rcligiáo. Seu Deus estava distante, um ser que de uma vcz por todas estabelecera certos princípios religiosos, essencialmente regras de moralidade, e colocara em movimento um inundo mecânico rnarax~ilhosamentearranjado com o qual agora nada ccm a ver. Apesar de sua declaraçáo de estar solidamente fundamentado na verdade auto-evidente, estava ele mesmo fundamentado em uma posicáo de fé. Não obstante, seu mérito foi ter contribuído para, no geral, elevar o nível de consciência ética e de preocupacão humanitária.
O deísmo suscitou muitas refutacóes, e a principal prova d o seu poder está em que, embora a maioria dos deístas fossem pessoas relativamente medíocres, a maioria dos seus oponentes tentaram combatê-lo com argumentos racionais, admitindo frequentemente utilizar urna prcela considerável de seu método, ainda que não de seus resultados. Uns poucos combateram-no mediante uma negaçáo plena de qualquer poder da razáo no terreno da religião. Foi essa a resposta de William Law (1686-
1761) em sua réplica a Tindal, inticulada O Caso diz RazZo (1732). A i-azáo, argumentou Law, náo apenas não encontra a verdade na religiáo; "ela é a causa de todas as desordens de nossas paixóes, as corrupçóes de nossos coracóes." Deus está acima da capacidade de compreender do homem. "A própria vontade de Deus é a sabedoria, c a sabedoria é a vontade de Deus. A bondade de Deus é arbitrária."
A filosofia de George Berkeley (1685-1753), homem dos mais generosos impulsos, ráo foi projetada para ser uma resposta direta ao deísmo, mas seu autor a considerava como destruidora de todo "ateísmo". Berkelcy tentou fundar um colégio missionário nas Bermudas, visando à evangelizaçáo dos índios americanos, viveu por um tempo em Rhode Island e em 1734 foi feito bispo de Cloyne, na Irlanda. De acordo com seu pensamento, nada realmente existe além de mentes e idéias. Náo há nenhum outro conhecimerico do que se denomina matéria senão uma impressão em nossas mentes, e uma vez que algo semelhante só pode afccar algo semelhanre, nossas mentes só podem ser afetadas por outras mentes. Uma vez que as idéias são universais e constantes, elas têm que ser o produro em nossas mentes de uma mente univer-
sal, eterna e permanentemenrc ativa. Sal mence é Deus, a quem sáo devidas todas as nossas idiias. Mas as idéias exisrcm náo apenas subjetivamcnce ern nossas mentes. Em certo sentido, o que denominamos natureza é um conjunto de idéias na mente divina, impressas numa ordem definida e constante em nossas mentes, ainda que sua
P~RIOIO YII
O CIISTIANISMO MODERNO
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realidade para nós esteja apenas em nossa percepção delas em nossas próprias mentes, Negando assim a realidade da macéria, Berkeley procurava destruir por inteiro aquele conceito, que o deismo afirmava, do mundo como um gigantesco mecanismo - um relógio ampliado - feito de uma vez por todas por um criador supcr sábio, que
agora nada tem a ver com o seu funcionamento. Berkeley queria substituir este conceito pela concepçáo de uma atividade espiritual divina i~niversale constanre. Embora esta concepçáo tenha sempre desfrutado de elevado respeito fiiosófico, para as pessoas medianas é muito sutil e muito oposta às evidências dos scntidos. Mais famosa em sua própria época, ainda que de capacidade filosófica ou valor permanente muito menor, foi a obra de Joseph Butler (1692-17521, de ascendência presbiteriana mas que ingressara cedo na igreja da Inglaterra e [ornara-se bispo de Bristol em 1738 e de Durharn em 1750. Seu livro Anrrlogirr dd Religião (1736) foi obra de imenso labor, candura e cuidado. Em resposta aos deístas, ele partiu das premissas, sustentadas igualmcntc pelos deístas e por seus adversários, de que Deus existe, que a natureza segue um curso uniforme e que o conhecimento humano é limitado. Deus é recorihecidamerite o autor da natureza; se as mesmas dificuldades podem ser levan~adascontra o curso da nacureza como contra a revelaçáo, a probahilidade é que ambas possuam o mesmo autor. Suas semelhansas positivas também conduzem à mesma coiiclusáo. A imortalidade é no mínimo bastante provável. Assim como a felicidade ou desgraça atual dependem do comportamento, é provável que a felicidade ou desgraça futura assim também o seja. Segundo a percepção de Butler, todos agora estão em um estado de "provaçáo" no que se refere ao uso desta vida; é provável que todos também estejam agora em "provacão" no que se refere ao destino futuro. Nosso conhecimento limitado da natureza não garantc uma declaraçáo de que a revela~áoé improvável, muito menos impossível, e se realmente houve uma revelaçáo é uma questáo histórica a ser testada por sua comprovação por milagres e pelo cumprimento de profecias. Amplamente aceito em seu tempo como resposra irrefutável ao deísmo, e como tal requerida por muito tempo nas universidades inglesas e americanas, o cauteloso equilíbrio de probabilidades de Butler fracassa totalmente diante das questóes modernas e cem sido criticado com razão por suscitar mais dúvidas do que fornecer respostas. Seu traço mais atraente é seu fervor moral na exaltaçáo do reinado divino da consciência sobre a agáo humana. David Hume (1711-1776), o mais arguro filósofo inglês do século dezoito, disparou um notável ataque tanto contra o deísmo como concra muitas das defesas do
cristianismo. Hume nasceu em Edimburgo, e lá também faleceu. Viveu alguns anos na Franca, exerceu funcões públicas, escreveu uma História da Inglaterm popular mas muito tendenciosa em favor do partido conservador e alcançou fama como economista político. Durante seus úlrimos anos foi considerado como o líder amável e gentil dos círculos literários e intelectuais de sua cidade natal. Seu sistema filosófico
foi apresentado magistralmente em seu >atado Sobre n Natzreza Humi*-na(1739), mas essa obra juvenil náo chamou muira atençáo. O contrário, porém, sucedeu quando Hume tornou a expor as mesmas idéias em Ensaios FiLusóficos (1748) e em História
hktuml da Keligizo (1757).Filosoficamente, Humc foi um dos mais perspicazes entre os pensadores dedutivos, permanecendo na base de Locke, mas fazendo uma crítica radical e demolidora das ~eoriasde tockc e expressando o mais completo ceticismo religioso. E a experiência quem nos fornece todo o nosso conhecimento, mas o recebemos como idéias e impressões isoladas. As conexóes entre nossas iin-
pressões mentais quando relacionadas por causa e efeito, ou quando unidas e mantidas por uma subsrância básica, sáo simplesmente as posturas arraigadas mas sem fundamento de nossos hábitos mentais. Elas são as maneiras pelas quais nossas mentes estáo acostumadas a agir. O que realmente percebemos 6 que, em nossa observat;áo limitada, certas experiências estáo associadas. Saltamos para a conclusáo de que existe uma relacáo causal entre elas. Assim, também, a substância C "inventada". Se causa e efeito forem assiin abandonados, o argumento da existência de Deus neles baseado ficará sem fundamento. A negaçáo da substância náo deixa nenhum eu permanente verdadeiro atrás de minhas experiências e nenhuma base filosófica para a imortalidade. Hume, em quem se manifestavam os primórdios da crítica histórica, rambém defendeu que a história revela que o politeísmo precedeu o monoteísmo no desenvolvimento humano, e portanto a história não fornece base alguma para a doutrina deísta do Deus único originalmente reconhecido, nem para a existência da religiáo racional, primitiva e simples da natureza, que o deísmo proclamava. Muito da crítica de Hume era bastanre sutil e radical para ser cabalmente compreendida ranto pelos deísras como por seus oponentes ortodoxos, contra os q u i s ela era igualmente dirigida.
A maior sensacáo provocada por Hume foi sua crítica aos milagres, então considerados como a principal defesa da revelacão c do cristianismo. Seu argumento era duplo. A experiência é a fonte de todo nosso conhecimento. Nossa experiência confirma a uniformidade da natureza muito mais vigorosamente do que a infdibilidade do testemunho humano. Consequenremente, a pobabilidade de que erro, equívoco
PER~ODUvii
O CRISTIANISMIT MODERNO
6&1
o u engano zenha levado ao relato de um milagre i imensametite maior do que cetiha sido realmente inrerrornpido o curso uniforme da nacureza. Ademais, admitindo
que o testemunho possa provar que eventos incornuns realmen~cocorreram, isso náo provaria que eles estabeleceram algo, a iiáo ser que se provasse ainda que eles Foram realizados pelo poder divino para aquele propósito especial, o que t uma tarefa ainda mais di8çii. Esras posturas tiveram efeito permanente. Poucos dos que atualnielicc afirmam os milagres os consideram, como era feito no sCculo dezoito, como provas principais do cristianismo. Antes, a revelaçáo é considerada como conduzindo f-6 aos milagres niuito mais do que dando-lhes sustcntacáo. Aqueles que atualmente aceitam os milagres, no grral, percebem a revelqáo coma algo táo sobrenacural e divino e por este motivo consideram os milagres seus acompanhantes adequados. Desde a crítica de Hume, a quesBo dos milagres se tornou cada vez das mais difíceis. A obra de H u n e foi a mais poderosa expressáo de uma conseqiiência da controvérsia deísta na Inglaterra - o surgimento do cepticismo. Uma crítica cbptica da história antiga do criscia~lisnioproposta pelo historiador Edward Gibbon (1737-1794) nos capítulos quinze e dezesscis de sua Histúria do
Declinio e
do Inzpé~zoRornano (1776) mercce rnenqáo, náo por sua importân-
cia inerencc mas pela ctintrovbrsia que suscitou e pela luz que projeta sobre o pensamento da época. Ao procurar explicar a propagação do cristianismo. Gibbon apresentou como motivos seu zelo herdado dos judeus, seu ensino sobre a imortalidade, sua reivindica~áode dons rniraculosos, sua inoralidade severa e sua organizaçáo eficienre. Provavelmente nenhum historiador nioderno negari qualquer destas explicac;úes, em si mesmas. O que o impressionará C que lhes falta toralrne~icea cornpreensáo da natureza da religião, seja a cristá ou qualquer outra, c das forças pelas quais a religiáo faz suas conquisras. Mas esta era uma ignorância parrilhada também pelos críticos de Gibbon no século dezoito. A explicaLáo ortodoxa corrents era de que os priineiros discipulos tinham sido táo profundamencc convencidos da verdade cio Evangelho, pelos milagres, que esravan-i prontos a pôr cm risco suas vidas em seu benefício. A explicaçáo bastante superficial de Gibbon provocou sensa~áoporque apresenrou outras causas, náo táo diretamente sobrenaturais, para a expansáo do cristianismo. Seu único rt-sultado permanente foi contribuir, juntamente com outras influências, para a investigacão histórica das Escrituras e das origens do cristianismo, o que veio a ser a grande tarcfa do século dezenove.
A atitude geral da época, e também do raciocínio geral da apresentacáo ortodoxa
68?'
MISTORIA DA IGREJA CRISTA
imparciai do cristianismo na Inglaterra, no final do século dezoito, está bem ilustrada na obra de William Paley (1743-1805). Seus livros, Exame das Evidências do Cris-
tidnismo (1794) e Teologia Na~ura1(1802), foram escritos com iiotável clareza de estilo e força de raciocínio e gozaram de ampla popularidade durante muito tempo. Vendo rim relógio, disse ele, concluímos peia existência de um fabricante; da mesma forma, da maravilhosa adapraçáo do corpo humano, o joelho, a máo, os músculos, concluímos pela existência de um Projetista Todo-Poderoso. Estes argumentos, portanto, provam a existência de Deus, que estabeleceu sua vontade como norma para a ação humana e revelou-a aos homens. O propósito da revelação é "a prova de um estado futuro de recompensas e punições." Tal revelacão foi dada por Cristo, e para os primeiros discípulos sua força convincente estava nos milagres pelos quais era acompanhada. "Os que agiam e sofriam pela causa, agiam e sofriam pelos milagres." Paley entáo apresenta sua definiçáci. "Virtude é fazer o bem à humanidade, em obediência 5 voncade de Deus, por causa da felicidade eterna." Esta noçáo de virtude, prudente e egoísta, é característica da época de Pale>: assim como eram suas ênfases no caráter cornprobatório dos milagres e na demoilstraçáo mecânica da existência divina (cuja força a ceoria da evolucáo esvaziou bastante desde entáo). Náo obstante,
é agradável notar que o pensamento de Paley de "fazer o bem à humanidade" o levou à ferrenha oposição à cscravidáo humana. O deísmo exerceu, de muitas formas, uma
influencia maior pela sua provocacáo à apologia cristá por um lado, e à filosofia céprica por outro, do que por seus esforços diretos. No geral, o deísmo inglês foi um deísmo cristão, cauteloso, cuja influência em !grande parte restringiu-se apenas às classes superiores. Mas foi acompanhado por um deísmo anticristão radical que, embora com poucos seguidores, era aguerrido em seu acaque ao cristianismo organizado. Peter Annet (1693-?) usou uma espécie de crítica bíblica crua e iconoclasta em seu ataque. Pouco antes d o fim do século o deísmo anticristáo contou com uma poderosa apresentação popular nos escritos apaixonados e militantes de Thomas Paine (1737-1809), filho de
um quacre inglês. Sua obra Sentido Comum (1776) prestou grande serviço à revoluçáo americana; seu livro Direitos do Homem ( 1 79 1) não foi menos efetivo na defesa dos princípios subjacentes à revoluçáo francesa. Em seu outro livro, Idade
da Razáo (1794-1796), o deísmo foi apresentado em sua forma anticrisrá mais agressrva.
O deísmo inglês influenciou o desenvolvimento d o racionalismo em outros
lugares - na Alemanha, porém mais diretamente na França, onde teve muitos adeptos e se tornou moda entre as classes elevadas. O principal desses deístas foi François Marie Arouet ou, como ele mesmo se chamava, Voltaire (1 694- 1778). Familiarizara-se com o deísmo durante sua estada na Inglaterra, de 1726 a 1729, s sofrera a influência dos escriros de Peter Annet. Em Volraire a França do século
dezoito teve sua mente mais perspicaz. Não sendo filósofo, era fútil, egoísta, mas ?ossuía verdadeiro bdio à tirania, especialmente à perseguicão religiosa. Nincuém jamais aracou a religião organizada com tão inexorável ridículo. Tal dispu-
r: estava, por necessidade, mais amplamente radicada na França que na Grá3retanha. Neste último país fora alcançado certo grau de tolerância religiosa e -ra permitida g a n d e divergência na interpretaçzo religiosa. Na França, domina-:a o catolicismo romano dogmárico. A disputa, pois, era entre deísmo ou ateís30de
um lado, e um único tipo afirmativo de cristianismo de ourro. Volraire
Era verdadeiro deísta em sua crença na existência de Deus e de uma primitiva rsligiáo natural que consistia de uma moralidade simples, e em sua rejeiqáo à
ve do que dependesse da autoridade da Bíblia ou da igreja. Não há dúvida que i u a obra influenciou extensa e significativamente o espírito francês naquelas di-
reqóes que se revelariam na revolução francesa.
O deísmo afetou o século dezoito amplamente. Ele foi essencialmente o credo de Frederico, o Grande, da Prússia (1740-1786); de José 11, do Sacro Impbrio Xornano (Áusrria, 1765-1790); e do marquês de Pomba! (1699-1782), o maior sjradista português do século. Nas colônias inglesas da Amtrica do Norte a conrrovérsia deísta foi acompanhada com grande interesse, e as crês principais posi;ões racionalistas tiveram vultos nativos. Os pastores de Massacliusetts, Ebenezer S a y (1696-1787) e J o n a t h a n Mayhew (1720-1766) eram basicamente iobrenaturalistas racionais, enquanto Benjamin Franklin (1706-1790) e Thomas -Tsfferson (1743-1826) eram essencialmente deístas. O deísmo anticristáo foi ex~ r e s s opelo autor de A Razáo, Único Oráculo d o Homem (1784), Ethan Allen 1737-17891, general revolucionário, e 1764-1806).
elo expedicionário cego, Elihu Palmer
686
iisrónin O4 IGREJA CRlSTh
Uiiitarismo na Inglaterra e na América Já foi assinalado que as idéias antitrinitárias no continente foram representadas por alguns anabatistas (ver Vi:4)e peíos socinianos (ver VI:14). Ambos os tipos penetraram na Inglarerra. Em 1575, no reinado de Isabei, foram queimados "batistas arianos" provenientes dos Países Baixos. No reinado de Tiago
I, Bartholomew
Legate (1 575?1612) c Edward Wightrnan (?-1612),defensores de idéias sernelhantes, entraram para a história como os ÚItimos ingleses queimados por motivos religiosos, em 1612. Com as conrrovérsias da época da guerra civii, idéias anritrinitárias se fizeram mais evidentes. Com John Biddfe (161 5-1662), formado em Oxford, o sociniunismo ceve o representante mais culto, que foi preso várias vezes. O grande poeta puritano, John Miltoli (1608-1674), inclinou-se para o arianismo nos últimos anos de sua vida. O principal convertido de Biddle foiThomas Firinin (1632-1697), leigo londrino, que cooperou na publicacão de rracados anàtrinitários. Surgindo o século dezoito, com suas tendências racionalistas tanto no círculo ortodoxo como no deísta, e sua inclinaqáo para ver na moralidade a essência da religiáo, essas tendências ariticrinitárias foram grandemerite fortalecidas. Em 1702 o ministro presbiteriano Thomas Emlyn (1 663-1741) publicou Invesriga~áona Escritura Sobre Jesus Cristo, livro muito lido. Em 1712, Samuel Clarlce (3675-1729), pároco de Sáo Tiago, Westmirlster, e considerado o mais filosófico dos clErigos angiicanos, publicou seu livro inritulado Doutrina Bíblica da Trindade, no qual procurou demonstrar as idéias arianas através de cuidadoso exame do Novo Testamento. Foi porém, entre os dissidentes, especialmente os presbiterianos e os batistas gerais,
quc as idéias antirrinitárias conquistaram o maior número de seguidores. Em 1717 Joseph Hallett (169 1i-1 744) e James Peirce (1674)-1726), ministros presbirerianos em Exeter, procuraram uma posicáo intermediária entre a ortodoxia e o arianismo.
O mais erudito dos dissidentes do século dezoito, Nathaniel Lardner (1684-1768), adotou idéias similares, e o movimenro se espalhou. No
os congregacionais e
os batistas particulares foram pouco afetados; seus membros aumentaram em númelo ultrapassando os presbiterianos que, quando ro à medida que o s é c ~ ~ transcorria, da Lei de Tolerância, eram o grupo mais numeroso denrre os não conformistas.
P E R ~ O O OVII
O ERtSTIANISMO MODERNO
687
As tendências arianas prepararam o caminho para o desenvolvimerito de um unitarismo organizado separadamente na Inglaterra. O movimento precipitou-se quando um clérigo da igreja oficial, Theophilus Lindsey (1723-1 808), que tinha adotado urna postura unitarista, fez circular uma petiçáo, que colheu cerca de duzentas e cinquenta assinaturas, solicirando que os clérigos fossem desobrigados de subscrever os Trinta e Nove Artigos, mas dessem sua fidelidade somente as Escritu-
ras. Em 1772 o parlamento se recusou a recebê-la. No ano seguinte Lindsey se retirou da igreja oticial e em 1774 fundou, em Londres, uma igreja unitarista. Joscph Priestley (1733-18041, clérigo dissidente, químico notável, descobridor do oxigtnio, simpácico às revoluções americana e francesa, que passou os úitimos dez anos de sua vida na Pennsylvania, estava intimamente ligado a Lindscy. Em 1779 o parla~nento emendou
3
Lei de Tolerância, substituindo a requerida aceitaçáo da parre doutriná-
ria dos Trinca c Nove Artigos por uma profissão de f6 nas Escrituras, e em 1813 rejeitou todas as açóes penais contra os que negavam a li-indade. Esse unitarismo inglês mais antigo era formal e inteIectua1, direto em sua rejeicáo dos "credos compostos pelos homens" e em sua insistência da salvacáo pelo caráter. Foi quase sempre competente in~eIectualmente,mas teve pouca influência na vida religiosa popular.
O unitarisrno inglês teve algum resultado, produzindo um movimento semelhante na Nova Inglaterra, ainda que este também tenha surgido devido às seneralizadas tendências racionalistas do século Jezoiro. A presença dc Priestley e dc Williarn Hazlitt (1737-1820) nas colônias ajudou a precipitar sua emergência conio um movimento independente. King's Chapel, a igreja episcopal mais antiga na Nova Inglaterra, se tornou
3 primeira
igreja abertamente unitarista, em 1787, sob a direção dc
seu pastor, James Freeman (1759-1835). Muitos congregacionais simpacizararn com o unitarismo pois,
em reaqáo ao Grande Desperta~nento(ver VIS),as
influências arminianas estavam se espalhando, e as idéias anti-trinitárias eram cautelosamente acalentadas por alguns. Mas as igrejas congregacionais estairanl estabelecidas legalmente, e qualquer surto de controvérsia teológica era temido, pois estava fican-
do cada vez mais difícil defender as igrejas estabelecidas em uma época que assistia ao progresso das liberdades. Náo foi senáo no século dezenove que a controvérsia entre os grupos ortodoxo e liberal irrompeu abertamente, provocando o cisma unitarista (ver VIL: 15).
688
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ.
Capitulo 5
O Pietismo na Alemanha Já foi mencionado o desenvolvimento de um luteranismo escolástico (ver VI:13). Ainda que baseado nas Escrituras, ral desenvolvimento assumia a forma de uma interpreracáo dogrnática fixa, rígida, exara e que exigia conformidade intelectual. Ademais, enfatizava a pura doutrina e os sacramentos como sendo os elementos
suficientes da vida cristá. O relacionamento vital enrre o crente e Deus que Lutero ensinara, fora substituído em g a n d e parte por uma fé que consistia na aceitacão de uin todo dogmático. O papel do leigo era inteiramente passivo: aceitar os dogmas que lhe eram assegurados serem puros, ouvir sua exposiçáo do púlpito, participar dos sacramentos e partilhar nas ordenancas da igreja - isto era a essência prática da vida cristá. Exisriam algumas evidências de uma piedade mais profunda, da qual os hinos da época sáo ampla proxra. Também, sem dúvida, poderiam ser encontrados muitos exemplos individuais de profunda vida religiosa, mas a tendência geral era externa e dogmática. Esta era a tendência frequentemenre inritulada, embora apenas parcialmenre correta, "ortodoxia morta". Em certos aspectos esse protestantismo escolástico era mais estreito do que aquele do período medieval, pois fora involuntariamente influenciado pelo espírito racionalisra contra o qual Iutara, de forma que se tornara parecido com as novas correntes racionalistas, tanto na têmpera como no método. Daí ele participar nas reacóes contra o racionalismo.
O pietismo foi um rompimento com essas tendências escolásticas, uma afirmação da primazia do sentimento na experiência cristá, uma defesa da participaçáo ativa dos leigos na edificaçáo davida cristá e uma ênfase numa atitude ascética estrita para com o mundo. Várias influências conrribuíram para o surgimento desse movimento, e é difícil rastreá-Ias todas com precisáo. A melhor abordagem para uma compreensão do contexto e da natureza do reavivamento pietista é por meio de sua figura central, Philipp Jacob Spener (1635-1705), um dos vultos religiosos mais notáveis do século dezessete e no qual o ensino e o exemplo pietista tiveram sua fonte imediata. Spener nasceu em Rappoltsweiler, na Alta Alsácia, e foi educado em Estrasburgo, onde se tornou versado na exegese bíblica e presenciou uma disciplina eclesiástica e
QERIOIO YII
O CRISTIABISMO MODERNO
687
um cuidado com o ensino catequético que iam muito além do que era normal na
maioria dos círculos luteranos. Estudos posteriores em Basiléia e Genebra aproximaram-no das ênfases reformadas mas sem afastá-lo do luteranismo. Seu desenvolvimento mental e espiritual foi modelado por muitos fatores. Em Estrasburgo Spener estudou cuidadosamente a teologia de Lutero. Ali foi especialmente estimulado por um livro escrito por um simpatizante do misticismo, Johann Ari~dt(1555-1621), intitulado Erdadeiro Cristianisnzo, que fora publicado entre 1605 e 1609. Não está claro o quanto a poesia religiosa de Paul Gerhardt (1607-1676) o teria impressionado. Também não se sabe o quanto ele deve àquele movimento nas igrejas reformadas, algumas vezes denominado "Pierismo Holandês" ou "Precisianismo Holalldê~'.Os líderes desse movimento, que tem sido identificado com o puritanismo inglês, pois este o fertilizou profundamente, foram Willem Teelinck (1579-1 629), Gisbert Voet
(1 589-1677) e Jodocus van L o d e n ~ t e ~(1620-1 n 677). No entanto, náo hrí dúvidas de que Spener foi bastante influenciado pelos escritos puritanos, muito especialmente pela tradu~áoalemã de um livro muito lido de Lewis Bayly (2-1631) intitulado A Prdticd da Piehde e por algumas obras traduzidas de Richard Baxrer (1 6 15- 169 1). Em 1666 Spener passou a ser o principal pasror na próspera cidade comercial de Frankfurt. Sentia a necessidade de disciplina eclesiástica mas achava-se impedido, pois toda autoridade escava nas rnáos do governo da cidade. Utilizando a liderança
que lhe era permitida, rapidamente melhorou a instrugao catequética. Sua primeira inovaGáoiniporrante se deu em 1670, quando reuniu
em
sun
própria casa um peque-
no grupo de pessoas com idéias semelhantes para a leitura da Bíblia, oracáo e discussão dos sermóes dominicais
-
tudo com o intuito de aprofundar a vida espiritual
daí pierismo. individual. Estes círculos receberam o nome de ~aiie~iapietatis, Tais planos para o cultivo de uma vida cristá mais férvida foram expostos por Spener em seu livro Pia desideria, de 1675. Ele descreveu os principais males da época como sendo a interferência do governo, o mau exemplo das conduras indignas de alguns clérigos, as interpretaçóes controversas da teologia e as bcbedices, a imoralidade e o egoísmo dos leigos. Ele propôs como meio de reforma a forma~áode círculos nas diversas congregações - ecclesiolae in ecclei-ia - para a leitura da ~ í b l i ae, visto qrie todos os crentes sáo sacerdotes (um ensino luterano que estava praticamente esquecido), para mútua vigilância e auxílio. O cristianismo é muito mais vida do que conhecimento intelectual. A controvérsia a ninguCm aproveita.
E desejável um
melhor preparo dos clérigos; deve ser exigido deles um conhecimenro experimental
690
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA
da religiáo e uma vida condigna. Deve ser praticado um novo tipo de pregaçáo, destinada a edificar a vida criscã dos ouvintes, ao invés de ser principalmente coniroversa ou exibidora das habilidades de argumentar do pregador. O ímico cristianismo genuíno é aquele que se demonstra na vida. Seu comeqo normal é uma rransforma-
çáo espirit-ual, um novo nascimento consciente. Spener também revelou certas tendências ascéticas, semelhantes às dos puritanos ingleses, inculcando moderaqxo no comer, beber e trajar, condenando o teatro, as d a n ~ a se os jogos de cartas, que o luteranismo da época considerava como "coisas indiferentes". Os esforços de Spener encontraram forte oposiçáo e despertaram enorme conrrovérsia. Ele foi falsamente acusado de heresia ¶uando, indicando certo afastamento intencional dos padrões luteranos, mas verdadeiramente no sentido de que seu espírito c ideais eram inteiramente distintos da ortodoxia luterana da época. Sua obra envolvia um deslocamento de ênfase dos credos para as Escrituras. Seu sentimento de que, se "o coracáo" esriver correto, as diferenças de interpretaqão intelectual serão
de importância scciindária, foi ferreamente combatido por aqueles que enfatizavam a "doutrina puraJ'. Indubita\relmente, Spener popularizou a familiaridade com a Bíblia e enfraqueceu a autoridade das normas confessionais como a forma lógica final daquilo que as Escrituras rinham a ensinar. Uma conseqüência desse estudo bíblico foi preparar o caminho para uma investigaçáo da natureza e história das Escrituras. Spener melhorou sobremaneira a instrucáo religiosa dos jovens e alcançou seu propósito de irirroduzir uma vida cristã popular mais ativa e ardorosa, fundamentada nas Escrituras. Em Frankfurt, alguns de seus discípulos, apesar de seus prorestos, afastaram-se do culto e dos sacramentos da igreja. Conseqüentemente, as reunióes de Spener suscitaram a oposiçáo policial, e foi com aiegria que ele recebeu, em 1686, convite para ser o pregador da corte, em Dresden. Entrementes, o movimento pietista tinha alcançado a universidade de Leipzig. Em 1686, um dos instrutores mais jovens, August Hermann Francke (1663-1727), e alguns companheiros, fundaram ali um colLegium philobiblicum para o estudo das Escrituras. No início seus membros eram instrutores, seu método era científico e tinha a aprovaqáo das autoridades universitárias. Mas ein 1687, quando se encontrava em Luneberg e estava escrevendo um sermáo sobre Jorio 20:31, Francke experimenrou o que considerou como um novo nascimenro divino. A estada de alguns meses com Spener, em Dresden, completou sua aceitaçáo do pierismo. Em 1689 Francke estava de volta em Leipzig, palestrando para os estu-
dantes e para o povo da cidade, com grandes audiências. Logo a cidade se agitou.
Um decreto do príncipe-eleitor de imediato proibiu a reuniáo dos cidadáos em "coiivenrículos". Sem díivida, as conferências de Francke levaram aIguns alunos a iiegligçnciar outros estudos e a assumir uma atitude crítica. Sob a dire$áo de um professor de teologia de Leipzig, Johanil Benedict Carpzov (1633-16991, as aiitoridades da universidade limitaram o trabalho de Francke. Carpzov tornou-se Lim dos mais encarnicados oponentes de Franclce. A posicáo deste ficou muito incômoda, e ein i690 ele aceitou um corivite para ser "diácono" em Erfurt. Entrementes, a senda de Spener em Dresden náo era fáciI. O clero da Saxônia considerava-o estrangeiro; as duas universidades da Saxônia, Leipzig c Wittenberg, se opunham a ele. Suas reuniões para edificaçáo espiritual provocavam críticas. C1 príncipe-eleitor, Joáo Jorge 111 (1647-169I), se ofendeu por que Spener repreendia pastoralmente suas bebedeiras. Quando, pois, recebeu de Berlim um convite do príncipe-eleitor do Brandemburgo, Frederico I11 (1688-1701), que se tornaria o rei Frederico I da Prússia (1701-1713), Spcner o aceitou de bom grado. Ainda que jamais tenlia conquistado seu novo soberano para o pietismo, deIe recebeu muito apoio, e seus anos em Berlini, onde permaneceu até a morte, foram os mais fclizes e
bem sucedidos de sua vida. Enquanro em Berlim, Speiier pôde prestar o seu maior serviço ao pietismo. Christian Thomasius (1655-1728)
-
racionalista no sentido de Locke, crítico da
teologia altamente divisiva da época, criador da jurisprudência alem& o primeiro a si~bstituiro latim pelo alemáo como língua de ensino universitário, defensor da tolerância religiosa, cCptico quanto às bruxarias e inimigo do emprego judicial da tortura - fora expulso de Leipzig em 1690 por causa da hostilidade dos rcólo,=OS. Era grande sua popularidade entre os estudantes. Thomasius náo foi um pietista, embora tenha condenado as perseguicões aos pietistas e feito todo o possível para auxiliar Francke na sua disputa com as autoridades de Leipzi~.O príncipe-elciror do Brandemburgo, há muito desejoso de ter sua própria universidade, aproveitou o exílio de Thomasius para fundar uma em Halle, que foi iiiauguruda formalmente em
1694 e nela Thomasius dirigiu a faculdade de direito até sua morte. Enquanto isto, a enérgica introducáo por Francke, em Erfurt, de práticas pietistas despertara a oposi@o do clero da cidade. A hostilidade de Carpzov o perseguiu, e em 1691 ele foi expulso pelas autoridades. Spener entáo buscou junto ao príncipe-eleitor a nomeação de colegas que sinipatizavam com o pietismo, enue eles Francke. Este foi nome-
ado para lecionar em Halle e para pastorear a aldeia próxima de Glaucha. Desde o princípio Francke dominou os métodos e a instrução teológica em Halle; embora att 1698 não fosse formalmente membro do corpo docente de teologia, ele fez de Halle um centro do pietismo. Francke era dotado de imensa energia e gênio organizador. Sua paróquia de Glaucha era um modelo de fidelidade pastoral; suas conferências na universidade eram exegéticas e experimentais; e sua combinação da cátedra e da prática paroquial era altamente benéfica para seus alunos. Em 1695 ele inaugurou uma escola para crianças pobres c mais arde rima escola preparatória, a Paedagogium, e uma escola de latim. Estas fundacóes educacionais, todas dirigidas no espírito pietisia, conquistaram p n d e renome; na ocasião da morte de Francke elas contavam com duas mil e duzentas crian~as.Ele também fundou uma Casa de Órfãos, a qual, ao tempo de sua morte, abrigava cenco e trinta e quatro crianças. Estas instituições, muitas das quais continuam até hoje, foram iniciadas praticamente sem recursos; Francke sinceramente cria que elas eram mantidas pelas respostas às oraçóes. Vinham donativos de todas as parees da Alemanha. No entanto, sem duvidar da fé de Francke, é justo assinalar que ele entendia da arte de conquistar amigos e de conseguir publicidade honesta. Foi alro o número de pessoas da nobreza que foram patronos dessas instituições. Pode-se dizer que foi quase sua uma outra organizacáo: o Instituto Bíblico, fundado em 1710 por seu amigo Carlos Hildebrando, Freiherr von Canstein
(1667-
1719), para a publicaçáo das Escrituras e sua circuiaçáo de maneira econômica. Tal instiruto tem tido uma história notável. Uma característica importante destas atividades em Halle foi o zelo por missóes ali despertado. Numa época em que os protestantes em geral ainda não reconheciam sua obrigacáo missionária, Francke e seus companheiros estavam desperros para ela. Quando Frederico IV (1699- 1730) da Dinamarca desejou enviar os primeiros missionários prorestantes à Índia, estabelecendo-os em Tranquebar em 1706, entáo possessáo dinamarquesa, foi encontrá-los entre os alunos de Francke, em Halle Bartholomaus Ziegenbalg (1638-1719) e Heinrich Plutschau (1678-1747). Durante o século dezoito náo menos que sessenta missionários saíram da universidade de
HalIe e suas institui~óesassociadas para o estrangeiro. O mais famoso dentre eles foi Christian Friedrich Schwartz (1726-1798), que trabalhou na Índia de 1750 até sua morte. Por certo, o nome de Francke merece lugar de destaque no rol dos líderes da obra rnissionária.
PERIDIO YII
O CRISTIANISMO MOOERRO
693
A influência do pierismo também se fez sentir nas igrejas reformadas alemãs da regiáo do baixo Reno, onde uma fusáo de ênfases pietistas luteranas e reformadas foi demonstrada por Theodore Untereyck (1635- 1693) e Joachim Neander (1650?-1680).
O fermento pietista penetrou nas igrejas luteranas da Noruega, Suécia e Dinamarca, nelas estimulando bastante o zelo religioso entre o povo; e muitos dos colonos alemáes na América foram profundamente afetados pelo movimerito. Na Alemanha, quando da morte de Francke em 1727, o pietisrno já alcançara sua marca mais elevada. Ele náo produzira mais nenhum líder da mesma habilidade que Spcner e Francke, embora continuasse a se espalhar pela Alemanha, principalmente em Wiirttemberg, sob a direção de Johann Albrecht Bengel (1687-1752). E difícil fazer um cálculo estatístico, já que os pietistas não se separavam das igrejas luceranas; mas é fora de dúvida que o pietismo afetou a Alemanha ampla e perenemente. Ele promoveu um tipo mais vital de piedade, melhorou em muito a cpalidade espiritual do ministério, da pregaçáo e do preparo cristáo da mocidade, expandiu a participação do laicato na vida da igreja e aumentou substancialmente a familiaridade do povo com a Bíblia e o estudo devocional das Escricuras. Seus defeitos foram sua insistência em uma conversão consciente por meio de esforço como o único mttodo normal de entrada no reino de Deus, sua atitude ascética para com o mundo, ilustrada pela severa repressáo de Francke quanto aos divertimentos das crianças em suas instituiçóes, seus juízos censuradores considerando como irreligiosos aqueles que náo eram pietistas, e sua negligência dos elementos intelectuais na religião. O pierismo produziu muito poucos líderes intelectuais. No geral, entretanto, a avaliaçáo do pietismo é amplamente favorável. Ele prestou relevante serviço para a vida religiosa da Alemanha protestante. Um fruto do pietismo merecedor de referência foi a contribuicáo de valor feita à incerpretaçáo da história da igreja por um dos seus adeptos mais radicais, Gorcfried Arnold (1666-1714). Ele era amigo de Spener e foi por breve tempo professor em Giessen, mas depois disso passou a viver em relativo retiro em Quedlinburg. Desde a Reforma, a história da igreja era polêmica e considerava que deveriam ser rejeitados todos os pensadores a quem a igreja de sua própria tpoca rejeitara. Em seu livro
Unparteiiscbe Kircben und Ketzer-Histoire de 1699 e 1700, Arnold introduziu uma nova concepçáo. Ele lera muito sobre os hereges da antiguidade e concluíra que ningutm deve ser considerado herege porque no seu cernpo foi tido como tal. A pessoa deve ser julgada pelos seus próprios méritos, e mesmo as idéias dos chamados
674
HISTORIA DA IGREJA
CRI SI^
hereges têm seu lugar !-ia his~óriado pensamento cristão. Uma pessoa que concebe uma idéia valiosa corre sempre o risco de levar sua interpretação até o extremo. Assim foi com Arnoid. Ele concluiu que tem havido mais verdade nos hereges do que na ortodoxia. Mesmo assim, com ele a história da igreja deu um passo adiante de decidida importância.
Capítulo 6
Zinzendorf
Mor avianismo
Um dos mais ilodveis resultados do despertamei-ito pietista, ainda que loiige estivesse de receber a aprovação dos pietistas ern geral, foi a reconstituiçáo dos Unitas Fratrum ou, como eles ficaram conhecidos, os Irmáos Morávios, sob a direçáo do conde Nicolau Ludovico von Zinzcndorf. Zinzcndorf nasceu cm Dresden, cm 26 dc maio de 1700. Seu pai era alto oficial da corre eleitoral da Saxônia e amigo de Spener, c morreu pouco depois do nascin-ienco de Zinzcndorf. Sua niáe casou-se novamenre, e o menino um tanto solitário e introspectivo foi criado por sua avó, a baronesa pietista Henriquera (:atariria von Gersdorf. Desde berii jovem, Zinzendorf já apresentava o traqo que dominaria sua vida religiosa - apaixonada devoção pessoal a Cristo. Dos dez aos dczcsscte anos estudou no Paedagogizím de Francke, em Halle. O rigor ali imperanre não lhe agradava, mas aos poucos passou a apreciar o zelo de Francke, e sua natureza religiosa foi despertada em 1715, quando de sua primeira comunháo. h insistência da família para que ingressasse no funcionalismo público o levou a Wittenberg de 1716 a 1719 para estudar direito. Ainda que pietista decidido,
suas experiências em Wittenberg abrandaram seus sentimentos anteriores para com o luteranismo ortodoxo. Ein 1719 e 1720 fez longa viagem à Holanda e à França, entrando em contato coni várias personalidades notáveis e manifestando claramente seus princípios religiosos, ainda que com bastante tato. Ao retornar, passando por CasteIl, enamorou-se de uma prima, mas julgando que o conde Henriquc XXIX von Reush riilha a preferência, abandonou suas pretensões, certo de que Deus o chamava para alguma obra. I'or fim, em 1722, casou-se com a irmá do conde Henrique,
priinoo v11
O CRISTIANISMO MODERNO
Erdmuth Dorothea, que foi para ele uma esposa bastante harmoniosa. Os desejos de seus parentes o levaram a ingressar no serviço do príncipe-eleitor, em Dresdcn, em 1721. No entanto, ele estava interessado primeiramente no cultivo
da "religiáo do coraCáon, no sentido pietista, entre seus amigos de Dresden, e ainda mais em suas propriedades de Berthelsdorf, situadas a cerca de cem quilômetros a leste de Dresden, onde, como senhor, nomeara para o pasrorado seu amigo Johann Andrcas Rothe. Ali, de maneira totalmente acidental, haveria de descobrir sua voca-
çáo.
A Unitas Fratrum (ver V:13) na Boêmia e na Morávia enfrentava dias difíceis. Parte dela se refugiara na Polônia, onde mantinha sua existência contínua, mas sob dificuldades cada vez maiores. Seus membros persuadiram o pregador calvinista na corte de Frederico 111 em Berlim, Daniel Ernst Jablonsky, que estava conectado com a Unitas Fratrum tanto por ascendência como pelo contexto, a aceicar a ordenaçáo ao episcopado, em 1699. As conseqüências da Guerra dos Trinta Anos tinham sido catastróficas para o protestantismo tcheco, e ele persistia na Boêmia e na proví~lcia vizinha da Morávia apenas secretamente e sob perseguiqáo. Já em 1722 os sobrevivences de fala alerná da Uniras Fratrum, residentes no norte da Morávia, cornecaram a buscar refúgio na Saxônia, sob a liderança de um carpinteiro, Christian David
(1690-175 I). Zinzendorf deu-lhes perinissáo para fundarem uma aldeia em sua propriedade em Berthelsdorf, a qual denominaram Herrnhut, e onde se reuniram em grande número. A eles se ligaram muitos pietistas germânicos nativos e outros entusiastas religiosos. No início, Zinzendorf prestou pouca atençáo a esses colonos, afora lhes dar asilo, mas crn 1727 cornecou a dirigi-los espiritualmente. No começo a tarefa foi dura. O s refugiados estavam divididos c seu aIvo cra formar uma igreja separada, enquanto o de Zinzendorf e Rothe era incorporá-los na igreja Iuterana oficial da Saxônia, ainda que com reuniões adicionais especiais, segundo o plano de Spener dos rolligiid pietatis. Por outro lado, os costumes locais facultavam que uma aldeia organizada tivesse governo secular e fizesse suas próprias leis. Conforme esse costuine, em 1727, Herrnhut escolheu "anciáos" para sua direqáo secular. Zinzendorf, como senhor da propriedade, tinha certos direitos indefinidos de governo, e tudo isso foi selado por um ofício de comunhZo de tal poder espiritual, em Bertlielsdorf em I3 de agosto de 1727, qric csra data é geralmente reconhecida como a do reilasciinento da Unitas Fratrum, atualmente frequentemenre conhecida como a igreja morávia.
636
HISIÓRIA D A IGREJA
CRISTA
Logo se desenvolveu uma organizaçáo espiritual a partir dessas instituições governantes da aldeia de Herrnhut, originariamente seculares. Surgiu, a partir dos anciáos, um comitê execurivo de quatro pessoas, que em 1730 passou a exercer funqóes ministeriais. Formou-se um presbitério gerai, do qual o primeiro moderador foi Leonhard Dober (1706)-1766), que retornou do campo missionário em 1734 para assumir suas funções. Para Zinzendorc a sociedade de Herrnhut passou a ser vista como uma milícia de Cristo, para impulsionar sua causa no país e fora dele - um novo monasticismo protestante, sem votos ou celibato mas ligado a seu Senhor pela oracão e culto diário. A partir de 1728 os jovens eram separados da ~ 'a dfamiliar ordinária, e cada faixa etária era colocada sob estrita supervisáo. As crianças eram criadas separadas de seus pais - conforme a maneira da Casa de Órfãos, de Halle. A comunidade tentou até mesmo regulamentar a escolha dos cônjuges nos casamentos.
O ideal era aqueie de uma comunidade separada do mundo mas pronta a enviar forSas para trabalhar em qualquer parte do reino de Cristo. N o entanto, duas tendências trouxeram confusáo a esse piano. O elemento morávio aspirava a ver o estabelecimento de uma denominaçáo separada, um reavivamento completo da antiga Unitas Fratrum. Zinzendorf, porém, estava firme na idéia de uma ecclesioln in rcclesz'a. Ele desejava manter os morávios como parte da igreja lucerana oficial, apenas como um grupo especial dencro dela, no qual se fomentaria uma vida espiritual mais ardente, uma "religiáo do coracão". O movimento logo encontrou muica oposiçáo, náo apenas dos luteranos ortodoxos, mas cambém dos pietistas, tanto em virtude das peculiaridades de Herrnhut como por causa de sua tendência separatisra. No geral, aos poucos os sentimentos separatistas se tornaram majoricários, embora sem abolir de todo a outra tendência.
A disposiqáo dos morávios de irem a qualquer lugar servindo a Cristo deu ao movimento um impulso missionário que ele jamais perdeu. Nenhum grupo protestante rem estado toa consciente do dever missionário e nenhum esteve tão consagrado à obra, proporcionalmente ao seu número. Umaviagem a Copenhague para assistir à coroaçáo de Cristiano IV (1730-1746), da Dinamarca, pôs Zinzendorfem contato com naturais das Índias Ocidentais dinamarquesas e da Groenlândia. Zinzendorf retornou a Herrnhut inflamado de entusiasmo missionário. O resultado disto foi que Leonhard Dober e David Nitschmann (1696-1772) iniciaram uma missáo nas Índias Ocidentais em 1732, e Christian David e outros, no ano seguinte, na Groenlândia. Dois anos mais tarde um concingenre apreciável, liderado por August
Gottlicb Spangenberg (1704-1792), começou a trabalhar na Geórgia. Jablonsky ordenou Nirschman~ibispo - o primeiro da moderna sucessáo morávia - para esta obra missionária, em 1735. Entrementes, o relacionamento entre Zinzendorf e o governo da Saxônia foi se rornando bastante tenso. As autoridades austríacas se queixavam, sem fundamenro, de que eIe cstava atraindo seus súdiros. Renovaram-se as queixas eciesiásiicas e a 20 de março de 1736 ele foi banido da Saxônia. Zinzcildorf encontrou oportunidade para trabalhar em Ronneburg, n o oeste da Alemanha, e nas províncias bálricas. Em 1737 foi ordenado bispo por Jablonsky, em Bcrlim. Em 1738 e 1739 viajou para as índias Ocidentais; em 1741 se encontrava em Londres, onde a obra morávia se desenrroivia já h i vsrios anos. Em dezembro desse ano escava em Nova Iorque e na véspera do natal deu o nome de Belém à colônia que os morávios da Geórgia estavam começando na Pennsylvania - cidade fadada a se tornar a sede do movimento na América. A peregrinacáo de Zinzendorf na América foi muito ativa. Eie esforçou-se para reunir as forças protestantes alemás espalhadas na Pennsylvania numa unidade espirirual que ficaria conhecida corno a "Igreja de Deus no Espírito". Iniciou missões entre os índios, organizou sete ou oito congregacóes morávias e fundou escolas. Foi estabelecido o ministério itinerante, sob a superintendêi~ciade Peter Bohler (17121775). Zinzendorf embarcou em janeiro de 1743 para a Europa e em dezembro de 1744, Spangeiiberg ficou responsável, como bispo, por toda a obra na América. O mais famoso missionirio morávio entre os íildios foi David Zeisberger (1721-1808), que trabalhou encre os creeks da Geárgia a partir de 1740, e entre os iroqueses desde 1743 até sua morte. Assim Herrnhut se tornou uma coirneia de atividade rnissioiiária. Foram iniciadas missões no Suriname, Guiana, Egito e África do Sul. Em 1771, depois de várias tentativas, foi es~abelecidauma missáo permanente no Labrador. Os nomes de seus primeiros campos missionários demonstram uma característica do esforço morávio. Eram em sua maioria lugares difíceis, que exigiam paciência e devocão cspcciais, e esse traço caracteriza os labores missionários morávios até o presente. Entrementes, embora Zinzendorf fosse contrário ao separatismo, o moravianismo esrar7ase tornando cada irez mais uma igreja. Ele foi reconhecido como tal pelo governo da I'rússia, ein 1742. I'or volra de 1745 a igreja morávia estava inteiramente organizada, com bispos, presblteros e diáconos, ainda que seu governo fosse, como
H I S I L h I A DA IGREJA CRISTÃ
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ainda permanece, mais presbiteriano que episcopal. O parlamcnro inglês, mediante uma lei de 1749, reconheceu-a como "uma igreja protestante episcopal antiga". Zinzendorf, porém, náo abandonou sua teoria de uma ecclesiola in ecclesia. E111 1747, após negociaçóes com as autoridades da Saxônia, foi suspenso o seu banimento, e no ano seguinte os morávios aceicararil a Confissáo de Augsburgo. E m 1749 a igreja morávia foi reconhecida como parte da igreja oficial da Saxônia, com seus ofícios próprios. Nessa época o moravianismo escava desenvolvendo uma mui bela lirurgia e uma hinologia muito rica. Essa igreja sempre foi pequena, mas sua influência disseminou-se amplamente por meio do evangelismo da "diáspora" na Europa. As sociedades religiosas sob os auspícios rnorávios influenciaram muitas pessoas sem pertur-
bar o vínculo dclas com as igrejas oficiais regulares. Enquanto Zinzendorf esteve banido, ele e alguns morávios desenvolveram certas peculiaridades teológicas e cultiirais que se tornaram motivo de merecidas críticas. Sua ênfase na morte expiatória de Cristo tomou direcáo errada, centrando-se em uma concentraçáo e um jogo de paiavras mórbidos sobre o sangue e as feridas do Crisro crucificado. Essa tendência fan~asiosae sentimental foi encorajada pelos morá~riosna Wetteravia, onde o movimento estava centralizado em Ronneburg, Marienborn e Herrnhaag, durante o período do banimento, e pelo filho de Zinzendorc Christian Renatus (1727-1752). A insistência de Zinzendorf em que os cristáos devem tornar-se criancinhas para entrar no reino de Deus provocou a expressão de rnuica infantilidade. Escas peculiaridades alcanqararn seu auge entre 1747 e 1749, mas no !gera1 foram se corrigindo por si mesmas. O próprio Zinzendorf as abandonou. Este período é denominado pelos morávios como "tempo de joeirar". Estas tendências devem ser consideradas quando muito como máculas no cariter daquele que pôde dizer, como poucos podem, de sua devoçáo a Cristo: "Tenho uma paixão Elc."
A vida de Zinzcndorf de 1749 a 1755 i-raiiscorrçu principalmente na Inglaterra. Seus bens haviam sido gastos sem reservas com os morávios e agora ele estava quase em bancarrota. Suas dividas foram encampadas, como era justo, peios morávios e foram sendo saldadas aos poucos. Tal necessidade financeira levou ao desenvolvirnenco constitucional dos morávios. Foi estabelecido um diretdrio colegiado, que se transformou numa junta de governo, supervisionando os assuntos morávios, e as tâuas pagas pelas diversas congrega~óesprovocaram um sínodo geral onde elas se faziam representar e que se reunia a intervalos regulares.
PERIOBO YII
O C R I S I I A N I S M O MOOERNO
699
Zinzcndorf passou os últimos anos de sua vida principalmencc eni arividades pastorais. Gastara prodigamente sua vitalidade e perdera a esposa e seu único filho. Morreu em 9 de maio de 1760, em Herrnhut. A Unicas Frarrum, pela qual Zinzeiidorf ranto fizera para renovar e inspirar, estava agora firmemente estabelecida como a igreja morávia, tanto que sua morte não trouxe abalo maior. Por felicidade, a dircgáo prática da igreja morávia recaiu sobre Spangenbcrg, mandado retornar da América para Herrnhut, em 1762. Ele a dirigiu até sua morte, 30 anos depois. Náo possuía o gênio e o entusiasmo de Zinzendorf, mas tinha igual devoqáo, grande senso prárico e alra capacidade de organizaçáo. Sob sua lideran~asábia e vigorosa o moravianismo se fortaleceu e cresceu; o que provocava crítica foi corrigido. Sua obra foi tranqüila, náo aparatosa, mas totnlr-ileiltemeritória. h igreja morivia assumiu seu lugar de respeiro entre as famílias da cristandade, exercendo ampla influência através de scu zelo missionário e trabalho na diispora.
Capítulo 7
O Reavivamento Evangélico na Grá-Bretaiiha; Wesley e o Metodismo As tendhcias no pensamento c na vida religiosa da Inglaterra
110
início do século
dezoito já foram assinaladas (ver VII:3). O ttrrnino das lutas do século anccrior fora marcado por generalizada letargia espiritual tanto na igreja oficial da Inglaterra como nas dissidentes. O racionalismo penetrara em rodas as classes de pensadores religinsos, de modo que mesmo entre os ortodoxos o crisrianismo se assemelhava mais a um sistema de moralidade apoiado por sançóes divinas. Joseph RutIer (ver VII:3) pode ser um caso típico. Suas probabilidades áigidas podem ter convencido alguns intelectos, mas só alguns poucos foram levados 2 ação. Havia pregadores capazes, mas o sermão caracrerístico era um ensaio descolorido sobre as virtudes morais. A obra dc alcance evangclístico era mínima. A condiçáo das classes inferiores era de indigência espiritual. Os divertimentos populares eram grosseiros, o analfabetismo era generalizado, a lei era aplicada de modo brural e as prisues eram antros de doen-
HISlbRIA DA IGREJA
700
CRIOTI
ças e iniqüidade. Nunca o alcoolismo prevaleceu tanto na vida inglesa como naquele período.
Além disso, a Grá-Bretanha estava às vésperas da revolução industrial que a transformaria, no último terço do século dezoito, de país agrícola em industrial. James Watt (1736-18 19) patenteou o primeiro motor a vapor eficiente em 1769. James Hargreaves (?-I 778) patenteou a máquina de fiar em 1770. Richard Arkwright (17321792) inventou o fuso mecânico em 1768. Edmund Cartwright (1743-1823) invenrou o tear mecânico em 1784. Josiah Wedgwood (1730-1795) tornou as olarias Staffordshire operacionais a partir de 1762. A s mudanças industriais e sociais e os problemas delas decorrentes foram da maior imporrância e implicaram em reajustes de imensas conseqüências práticas para a religiáo. No início do século dezoito náo faltavam homens e movimentos ansiosos por melhorar as coisas. Williarn Law náo foi apenas um vigoroso oponente do deísmo. Seu livro intitulado SCrio Apelo à Vida Devota e Santa (1728) influenciou profundamente John Wesley, e permanece um dos monumentos da literatura exortativa inglesa. O congregacional Isaac Watts (1674-1748), há muito esquecido como ceólogo, com justiça tem sido chamado o fundador da moderna hinologia inglesa. Seus Hinos (1707) e Os Salmos de Davi Imitados na Linguagem do Novo Testamento
(1719) puseram abaixo os preconceiros então existentes, em ambos os lados do Atlântico, nos círculos de língua inglesa náo clericais, conrra o uso de tudo quanto náo fosse passagens rimadas da Escritura. Tais hinos expressam piedade profunda e vital. Foram feitos alguns
esforces
combinados sigiiificativos em favor de uma vida
religiosa mais fervorosa. Dentre eles se contam as "sociedades religiosas", sendo a mais antiga delas aquela formddd em Londres por um grupo dc jovens, por volta de
1678, para oraçáo, leitura das Escrituras, cultivo de uma vida religiosa, comunháo freqiienre, auxíiio aos pobres e aos soldados, marinheiros e encarcerados, e encorajarnenro da pregaqáo. Elas se propagaram rapidamente. Por volta de 1700, só em Londres havia cerca de uma centena, e também podiam ser encontradas em muitas partes da Inglaterra e aré na Irlanda. Em 1702 uma delas foi organizada em Epworth pelo pai de John Wesle): Sarnuel Wesle. Em vários sentidos elas se pareciam aos collegia pictatis de Spener (ver VTI:7) mas não havia um Spcncr para impulsioná-las. Eram compostas quase exclusivameilte por membros comungantes da igreja estabelecida. Muitos do clero consideraram esse movimento como "entusiasta", ou, como hoje se diria, "fanático". A partir de 17 10 ele declinou muito, mas as socieda-
PER~OIE YII
O ERISIIIINISMO MODERRO
701
des iriam permanecer e desempenhariam u m papel importante no início do rnetodismo. Tais esforços, no entanto, tinham apenas influência local e parcial. O grosso do povo inglês estava em letargia espirirual ainda que cegamente consciente d o pecado e convencido da realidade da futura puniçáo e recompensa. Náo haviam sido despertadas as emoçóes da lealdade a Cristo, da salvaçáo por seu intermédio, de uma fé transformadora presente. Era necessário o apelo por um zelo espiritual vívido, mais dirigido a convencer o coração do que ponderar sobre prudência ou sobre frígida argumentacão lógica. A profunda transformação efetuada na Inglaterra, cujos resultados fluíram em benéficas correntes para todos os territórios de língua inglesa, foi primordialmente resultado do "reavivamento evangélico". Os primeiros sinais de um despertamento apareceram no começo do século dezoito. Na Escócia, sob a liderança de Ebenezer (1680-1754) e Ralph Erskine (1685-1752), cresceu um movimento evangélico nos primeiros anos do século; por volta de 1714 Ebenezer foi forçado a pregar num campo adjacente à sua igreja, para poder acomodar as rnultidóes. Três anos depois, uma obra puritana anônima d o século dezessete, provavermente de autoria de Edward Fisher, A Essência da Teologia Moderna, voltou a ser publicada por incentivo de um zeloso pregador popular, Thomas Boston (1677-
1732),de Ettrick. A despeiro da censura formulada em 1722 pela Assembléia Geral, os "Homens Essenciais", com seu ardente espirito evangélico, granjearam muita simpatia. Eles organizaram "sociedades de oração" que também lembravam os collegia pietatis de Spener. Em Gales, Howel Harris (1714- 1773) e Daniel Rowlands (171 3-
1790) foram líderes de um reavivamento que irrompeu em meados da década de 1730. Mas somente com o surgimento de seus rrês grandes líderes - John e Charles Wesley e George Whitefield - o reavivamento evangéIico cresceu como poderosa maré. Durance quatro décadas ele avancou em rrês vertentes específicas mas intimamcnce relacionadas, todas ligadas à igreja oficial da Inglaterra: as sociedades metodistas sob a orientaçáo dos irmãos Wesley, os metodistas calvinistas sob Whitefield e os Evangélicos Anglicanos, estes trabalhando junto a linhas paroquiais mais tradicionais. Náo foi senáo em 1779 que as primeiras separacóes formais de quaisquer dessas vertentes ocorreram na igreja da Inglaterra.
Os pais dos irmáos Wesley eram descendentes de náo-conformistas. Seus dois avós estavam entre os clérigos expulsos em 1662. O pai, Samuel Wesley (1662-1735), preferira o miriistério da igreja oficial e fora, desde 1696 até sua morte, pároco da
igreja campesina de Epworth. Homem de zelosa disposicão religiosa mas pouco prrírico, escrevera a Vida de Cristo ein Verso e um comentário do livro de Jó. A mãe, Susanna (Anncsley), era mulhcr de norávcl fortaleza de caráccr, sendo, como seu marido, anglicana devota. O s filhos tinham muito dos pais, calvez mais da forca materna. Num lar de dezenove filhos, dos quais oito morreram na infância, forcosamente a regra era trabalho duro e estrita economia. John era o décimo quinto e Charles o décimo oitavo dessa grande ninhada. John Wesley nasceu em 17 de junho de 1703 e Charles em 18 de dezembro de
1707. Ambos foram salvos com dificuldade de um incêndio na casa paroquial, ein 1709. Ia1 faro deixou impressão indelével na mente de John, que desde entáo se considerou literalmente "um tiçáo arrancado do fogo". Em 1714 John ingressou na Charrerhouse School, em Londres e, dois anos após, Charles iilgressou na Westrninster School. Os dois meninos se distinguiram como estudantes. Ern 1720 John ingressou rio Christ Church College, Clxford, para onde Charles foi seis anos depois. O progresso incclectual de John foi tamanho que, em 1726, foi nomeado membro do Lincoln College. Para ser candidato a tal honraria John teria que estar nas ordens sacras e, eiitáo, em 25 de setembro de 1725 foi ordenado diácono. Com sua ordenaçáo começaram as liitas espirituais que só terminariam com sua conversão, em 1738 e, quiçá, em cerro sentido, se prolongariam além dessa data. Enrre 1726 e 1729 Johil \Vesley foi a maior parte do tempo assisrente de seu pai. Em 22 de setembro de 1728 foi ordenado sacerdote. Durante siia ausência de Oxford,
na primavera de 1729, Charles Wesley e dois colegas es~udantes,Rohert Kirkham e William Morgan, organizaram um pcqueno clube, principalmente para levarem avante seus estudos, mas que logo mosrrou-se ideal para a leitura de bons livros e para a cornunháo frequente. Quando de seu retorno a Oxford, em novembro de 1729, John Wesley se tornou o líder do grupo que de imediato atraiu ourros estudantes. Sob sua direçáo, o grupo procurava realizar os ideais de William Law de uma vida consagrada. Em agosto de 1730, pela influência de Morgan, começaram a \'~sltarOS '
'
encarcerados na prisáo de Oxford. O s membros do grupo jejuavam. Seus ideais eram altamente igrejeiros. Os universitários zombavam deles. C h a n ~ a v a no~grupo de "Clube Sanco" e, por fim, algum estudante enconrrou um apelido que pegou, os "metodisras" (nome que já fora usado no século anterior). Esravam, porém, ainda muito longe do que seria o metodismo. Ainda forrnavam um grupo que lulava penosamente pela salvaçáo de suas próprias almas. Como eram eritáo, mais se assemelhavam ao movi-
~ ~ n i o ouiio
O ERISTIAIISMD MODERNO
mento anglo-católico do século dezenove que ao metodismo histórico.
O clube recebeu uma importante adesáo no começo de 1735 na pessoa de George Whitefield. Nascido em GIoucester em 16 de dezembro de 1714, filho de um esr-alajadeiro, ele crescera pobre, ingressando em Oxford em 1733. Uma grave moIéstia na primavera de 1735 provocou uma crise em sua experiência religiosa. Ele emergiu dessa crise com alegre certeza de paz com Deus. Enl junho de 1736 Whitefield buscou e recebeu ordenacão episcopal, e imediatamente, embora bastante jovem, iniciou sua maravilhosa carreira de pregador. Nenhum pregador anglo-saxáo do século dezoito exibiu tal poder no púlpito. Homem basicamente sem espírito denoininacional, numa época em que tal espírito era geralmente intenso, ele estava pronto a pregar em qualquer lugar e em quaiquer púlpito que lhe fosse entregue. Por vezes duvidava da genuinidade de experiências religiosas diferentes da sua, mas era de natureza profundamente simples e altruísta. Sua mensagem era o Evangelho da paz e da graca perdoadora de Deus por meio da aceitação de Cristo pela fé, e a conseqüente vida de servi50 em alegria. Seus poucos sermóes impressos dão escassa idéia do sru poder. Um tanto dramático e
de voz maravilhosamente ex-
pressiva, ele dominava grandes auditórios nos dois continentes. Passo~igrande parte dc seu ministério ativo na América do Norte. Em 1738 esteve ria Geórgia. No ano seguinte voltou à América e sua pregaçáo na Nova Inglaterra, em 1740, foi acompanhada pela maior cornoçáo espiritual jamais vista ali. Náo foi menor seu êxito nas colônias centrais, ainda que ali e na Nova Inglaterra houvesse grande divisáo de opiniões sobre o valor espiritual permanente de sua obra. Os anos de 1744 a 1748 viram-no novamente neste lado do Atlântico e também os de 1751 e 1752 e, ainda, os de 1754 e 1755. Sua sexta visita foi de 1763 a 1765. Em 1769 retomou para seu último giro de prega~áo,e faleceu a 30 de setembro de 1770, em Newburyport, Massachusetts. Ele havia se entregado sem restrições ao serviço das igrejas americanas de todas as famílias protestantes. Náo foi um organizador. Não deixou nenhum grupo com seu nome, mas despertou milhares. Nenhum dos dirigentes do Clube Metodisra estava destinado a pcrmanecer por muito tempo em Oxford, nem o seu movimento a ter muita influência na universidade, que estava entáo em declínio tanto acadêmico quanto religioso. A morte de seu pai, em 25 de abril de 1735, deixou os irmáos Wesley menos apegados ao lar, e ambos conseguiram colocação como inissionirios para a nova colônia da Geórgia, cuja colonização fora iniciada em 1733 pelo gcneral Oglethorpe. Embarcaram em
70,;
HISTÓRIA DA IFREJA CRISIA
outubro de 1735. Durante a viagem mantiveram-se constantes nos exercícios religiosos e no auxílio aos demais viajantes. No navio havia um grupo de vinte e seis
c':
morávios, chefiados pelo bispo David Nitschmann. A animosa coragem dessa gente
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durante uma rempcstade convenceu John Wesley de que os morávios tinham uma
C.
confiança em Deus que ele náo possuía. Muito aprendeu com eles. Pouco depois de
l r.-
chegar a Savannah encontrou-se ele com Spangenberg (ver VXI:6), que lhe fez esta
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embaraçosa pergunta: "Você conhece Jesus Cristo?" Wesley respondeu: "Sei que Ele
C o salvador do mundo". Ao que Spangenberg replicou: "Cerro. Mas você sabe que Ele o salvou?" Na Gcórgia, os Wesleys trabalharam com afinco, mas tiveram pouco êxito. Charles Wesley retornou ao país natal em 1736, desgosroso e enfermo. Mas John permaneceu. Demonsrrou então seus dotes linguísticos dirigindo ofícios em ale~náo,francês c italiano. Em 1736 fundou em Savannah uma pequena sociedade para o cultivo da
vida religiosa mais fervorosa. Trabalhou infatigavelmeilte, ainda que com pouca paz de espírito ou conforto para os outros. Era observador zeIoso da Alta Igreja. FaltavaIhe tato. Caso digno de atencáo foi o de Sophie Hopkey, uma mulher sob todos os aspectos digna de ser sua esposa. A ela e aos amigos dela ele deu motivos para crerem que sua intençáo era casar-se com ela, mas oscilava entre o celibato clerical e a possibilidade dc contrair matrimônio. Uin resto de supersticáo que Wesley sempre conseivou, levava-o a resolver assuntos imporrantes pelo primeiro versículo da Escritura lida ao acaso ou lancando sortes. Neste caso recorreu ao último método, e a resposta foi adversa. Assim Wesley naturalmente chamou sobre si o ressentimento da moca e de seus parentes. Melindrada, ela logo casou-se com outro pretendente. O marido proibiu que ela conrinuassc a participar das discussóes religiosas íntimas de Wesley. Entáo este achou não estar Sophie preparada adequadamenre para receber a comunháo e negou-lhe o sacramento. Os amigos dela acusaram ser isto o aro de um pretendente desgostoso. Chegava ao fim a influência de Wesley na Geórgia. Iniciararnse processos contra ele. Entáo decidiu voltar à pátria. Em l o de fevereiro de 1738 John Wesley estava de volta à Inglaterra. Em sua viagem para o exterior temera a morte. Em seu amargurado desapontamento só podia dizer: "Tenho bela religiáo de verão". No entanto, era pregador de grande poder e labutava incansavelmente. Caíra em muitos erros, mas não naqueles que demonstrassem falta de consagraçáo cristá. Felizmente para o seu ailgustiado esrado de espírito, na semana em que John retornou os dois irmáos entraram em íntima relacáo com um morávio, Peter Bohler,
que, viajando para a Geórgia, ficara em Londres até maio. Ensinava Bohler a f&de completa auto-entrega, a conversá0 instantânea e a alegria na fé. Antes de partir, Bohler organizara Lima "sociedade", depois conhecida como "Sociedade Fetrer-Lane" e da qual John Wesley foi um dos membros fundadores. Porém, nenhum dos dois irmãos ainda encontrara a paz. O que Charlcs Wesley denominou sua "conversão" ocorreu-lhe em 21 de maio de 1738, quando ele estava acometido de grave enfermidade. No dia 25, a experiência transformadora ocorreu a John. Conforme ele relata, naquela noite ele fora de má vontade à reuniáo de uma "sociedade" anglicana na rua Aldersgate, em Londres, e ouviu a leitura do
de Lutero ao Comentário a
Romanos. "Cerca de quinze para as nove, enquanto ele [Lutero] descrevia a transformagão que Deus opera no çoraçáo por meio da fé em Cristo, senti meu coraçáo estranhamente aquecido. Senti que confiava em Cristo, em Cristo apenas, para a salvação; e me foi dada a certeza de que Ele tirara meus pecados, os iiieus mesmos, e
me salvara da lei do pecado e da morte." Náo pode haver d w i d a quanto 3 alta significação desta experiência. Ela determinou dai em diante a crenca de LVesley quanto ao caminho normal para a entrada na vida crisrá. Foi a luz de toda sua visão teológica. Entretanto, foi de certa forma gradualmente, mesmo depois desta experiência, e por meio da pregacáo e observaçáo duma obra semeIhance nos outros e pcla comunháo com Deus, qiie ele alcançou plena liberdade do temor e alegria complera na fé. John Wesley resolveu conhecer mais os morávios, que o rinham ajudado atb ali. Menos de três semanas após sua convcrsáo viajou para a iilernaiilia. Lá ciicontrou-se com Zinzeildorf, em h/larienborn, ficou duas semanas em Herrnhut e em setembro i 1sy.
de 1738 estava de volta em Londres. Foi uma grande visita para Wesley. Viu muito o
3u-
que adniirar, mas nem tudo Ihe agradou. Percebeu que Zit~zendorfera tratado com
: re-
excessiva deferência e que a piedade morávia náo escapava às limitaçóes subjetivas.
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Ainda que devesse muito aos rnorá~rios,lVesley era por demais ativo em sua atitude
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religiosa, niuito pouco místico, deveras interessado nas grandes necessidades do pró-
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ximo para ser cabalmente morávio. John e Charles entáo passaram a pregar nas oportunidades que Ihes apareciam.
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No encanto tiveram muitos púlpicos fechados ao seu "entusiasmo" e falavam princi-
.-ta.
palmente nas "sociedades" em Loi~drese cni seus arredores. No comego de 1739
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Whitefield iniciara seu trabalho em Bristol, e lá, em 17 de fevereiro, comecara a
,.-.ler,
pregar ao ar livre aos mineiros dc carvão de Kiilgswood. Fez amistosas relações com
Howel Harris, o qual, desde 1736, trabalhava com g a n d e resultado como pregador leigo em Gales. Whitefield então convidouJohn Wesley a i r a Bristol. Hesitava Wesley em pregar ao ar livre, mas a oportunidade de proclamar o Evangelho aos necessitados era irresistivel, e a 2 de abril ele começou em Bristol o que viria a ser seu costume
por mais de cinqüenta anos, enquanto as forcas lhe permitiram. De imediato Charles seguiu o exemplo d o irmáo. Ainda que não possuindo o poder dramático de WhitefieId, John Wesley era um pregador por poucos igualado quanto ao efeito sobre o povo - sincero, prárico, desremido. Atacado, principalmente no início de seu ministério, e frequentemente em risco dianre da vioiência popular, náo se assustava com perigo algum, nenhum distúrbio o abatia. Sob sua pregagáo, como sob a de Whitefield, eram frequenres as notáveis manifestacóes físicas. Homens e mulheres choravam, desmaiavam, tinham conuuIsóes. Aos dois pregadores isto parecia obra do Espírito de Deus ou a resistência visível do diabo. Esras manifestações, e o desagrado que frequenten-iente despertavam, foram responsáveis por g a n d e parre da oposicáo que esses pregadores encontrax7arnpor parte do clero regular. O s dons de John Wcsley como organizador eram notáveis. Porém, a criacão do metodismo foi gradual - sendo uma adaptação dos meios às circunstâncias. Em 1739, em Brisrol, ele fundou sua primeira "sociedade" realmente nierodista e lá também
comeqou a edif;cacáo da primeira capela, a 12 de maio desse ano. No fim desse mesmo ano adquiriu em Londres uma velha fundicáo que se tornou a primeira capcla naquela cidade.
Até entáo, em Londres, os netod distas se haviam unido à sociedade morávia FetterLane, mas os ideais de Wesiey, no entanto, o estavam afastando do moravianismo. Esta separaçáo agravou-se quando, em oucubro de 1739, Philipp Heinrich Molther (17 14-1780), recém-enviado por Zinzendorf, afirmou em Fetter-Lane que se alguém
rinha dúvidas náo ~ o s s u í averdadeira fé e devia abster-se dos sacramentos e da oracão, aguardando em silêncio que Deus renovasse sua esperança religiosa. Tal ensino encontrou pouca simpatia diante da esforçada atividade de Wesley. A Sociedade FecrcrLane dividiu-se. Wesley e seus amigos se retiraram, e a 23 de juIho de 1740 fundaram na fundicão uma "Sociedade Unida", puramente merodista. Wesley continuou amigo de alguns morávios, mas desde entáo os dois movimentos ficaram separados um do outro. Wesley não tinha desejo nem intençáo de romper com a igreja da Inglaterra. Por isso náo fundava igrejas, mas usava o expediente das antigas sociedades religiosas,
que agora consisriam apenas dc pessoas convertidas. Estas sociedades estavam divididas em "bandas" ou grupos desde o início, para o cultivo mútuo da vida cristã. Este era um expediente morávio, mas a experiência iogo ensinou a Wesley algo mais eficiente. Pouco após a orga~lizaqãoda sociedade de Bristol, Wesley adotou o plano de conceder "carteiras da sociedade" àqueles que considerava suficientemente capacitados a serem membros plenos e a receber outros em carácer probatório. Tais carreiras eram renovadas rrimestralmcnte e proporcionavam uma maneira rápida de jocirar a sociedade. A dívida sobre a capela de Bristol levou a um arranjo ainda mais importante. Em 15 de fevereiro de 1742 os membros foram divididos em "classes" de cerca de doze pessoas, cada classe tendo um líder encarregado de colerar semanalmente um penny de cada membro. Esse sistema foi introduzido em Londres a 25 de março. Suas vantagens para a supervisão espiritual e múma vigilsncia de imediato foram mais evidentes do que seus miritos financeiros. E pronto se rorriou um dos traços característicos do metodismo, ainda que as antigas "bandas" cambém continuassem por bastante tempo. Wesley preferia que codos os pregadores fossem ordenados, mas poucos dentre os cléi-igos simpatizavam com o movimento. Desde 1738 Joseph Humphreys, um pregador leigo, o auxiliava, mas o emprego de leigos náo foi grande até 1742, quando Thomas MaxfieId começou regularmente esse trabalho, que logo ocupou muita gente. Com o crescer do movimento surgiram outros oficiais Ieigos: "mordomos" para
cuidar das propriedades, mestres para as escolas, "visitadores de enfermos" para a visitaçáo de doentes. No princípio WesleY percorria rodas as sociedades, localizadas mormente nas regióes de Londres e Bristol. Entretanto, logo a tarefa se tornou graiide demais. Eni 1744 ele reuniu os pregadores em Londres - o que foi a primeira das "conferências ar-iuais". Dois anos apiis o campo foi dividido em "circuitos", com pregadores itinerantes e dirigentes mais fixos para "ajudarem principalmente num lugar". Em pouco, um "assistente", depois chamado "superinccndente", foi encarrcgado de cada "circuito". Através de apropriadas p ~ b l i c a ~ ó eWesley s, sc esforcou por auxiliar o desenvoivimento intelectual de seus pregadores leigos, procurando que
estudassem na medida do possível. Foi em vão que buscou obter para eles ordenaçáo episcopal; mas náo permitiu que homens náo ordenados administrassem os sacramentos. Ainda que teologicamente Wesley permanecesse sobre a base comum da tradicional doutrina evangélica e considerasse suas sociedades como integrantes da igreja da
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MISTORIA D A IGREJA E R ~ S T Ã
Inglaterra, duas questões conduziram a enorme controvérsia. Uma foi sobre a perfeiçáo. Wesiey cria ser possível que um cristáo alcançasse retos morivos governantes - o amor a Deus e ao próximo - e que cal alcance traria liberta~áodo pecado. Conforme o cauto e sóbrio critério de Wesley, isso era um alvo antes que um resuitado obtido com freqüência - diferente do que julgavam alguns de seus seguidores. Ninguém foi mais positivo do que ele de que a salvaçáo se evidencia em uma vida de obediência ativa, zelosa, à vontade de Deus.
A segunda disputa referiu-se à predesrinaçáo. Wesley, como no geral a igreja da Inglaterra de seu tempo, era arminiano. Porém, herdara dos pais uma antipatia especial em relacáo ao calvinismo, o qual lhe parecia restrito ao esforço rnoral. Whirefield era calvinista. De 1740 a 1741 houve uma troca de cartas candentes entre os dois evangelistas. Náo obstanre, as boas relacóes pessoais entre ambos não demoraram a ser restabelecidas quase plenamenre. Whirefield encontrou apoio, em 1748, em Selina, Condessa de Huntingdon (1707-1791), viúva rica, convertida ao metodismo, mas possuidora de forre caráter dominante para permitir a direção insistente de Wesley. Qriis ela ser o seu próprio Wesley e, como ele, fundou e supcrvisionou sociedades e capelas - a primeira em Brighton, em 1761 - iniciando assim a "Conexáo de Lady Huntingdon". Ela mesma no-
meou Whirefield seu capeIáo. Sua "Conexão" era calvinista. Em 1769 a conrrovbrsia sobre a predestinacáo renovou-se com intensidade. Na confcrência de 1770 Wesley assumiu forte posiçáo arminiana e foi defendido por scu dedicado discípulo, o suíço John William Fletcher (1729-1785), que se estabelecera na Inglaterra e aceitara um cargo lia igreja oficial, em Madeley, onde fez obra nocivel. O resulrado da controvérsia foi confirmar o caráter arminiano d o metodismo weslcyano. No entanto, a "Conexão de Lady H u n ~ i n g d o n de metodistas caIvinistas deve ser considerada como u m movimento paralelo, não hostil. Seu espíriro fundamental era essencialmente o mesmo dos irmáos Wesley
O mecodismo ~ v e s l e ~ a rcresceu io consideravelmente. John tinha muitos arnigos e assistentes, mas poucos i~iriinoscom os quais pudesse compartilhar suas responsaliilidades. Seu irmão Charles o acompanhara por algum tempo em suas viagens, mas não ~ i i r h aa constituiqáo de ferro de john. Charles raramente viajou depois de
1756.Trabalhou eni BristoI e dc 1771 aré sua morte, em 29 de marqo
de 1788, pregou em Londres. Sempre foi mais conservador e anglicano que John. Sua grande obra foi escrever hinos, não apenas para o metodismo mas para toda
itnioia vir
O ERISTIIINISMO MODERNO
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a cristandade de língua inglesa. Em 1751 John casou-se com a viúva Mary Vazeille e fez um consórcio infeliz. Entáo se dedicou de maneira ainda mais irrestrita ao seu trabalho. E sobre todas as diversas preocupa~óesdo inetodismo exerceu autoridade sábia mas absoluta. Naturalmente, conforme as sociedades cresciam e se multiplicavam os pregadores, aumentava a pressáo para a concessão de autoridade para a administraçáo dos sacramentos. A isto Wesley resistiu por muito tempo, mas como eram poucos os homens ordenados por via episcopal, a forga dos eventos tornou esta pressáo irresistível, apesar da insistência de WesIey de que seu movimento estava no interior da igreja oficial. Wesley granjeou muitos simpatizantes que permaneceram na igreja oficial da Inglaterra. Tais anglicanos evangélicos concordavam no geral com sua ênfase religiosa - conversão, fé confianre, vida religiosa demonstrada em obras ativas a favor dos outros. Por outro lado, adotavam pouco dos seus métodos peculiares e, no geral, se distinguiam teologicamenre por um moderado calvinismo mais que
pelo arminianismo. Whitefield era o pai espiritual d e muitos deles. Não muito bem orgariizados, se desenvolveram no
evangélico dentro da igreja da
Inglaterra. Pioneiro nesse rumo foi Williarn Grimshaw (1708- 1763), vigário de Haworth, que passou pela experiência da conversáo cm 1734, a quaI o transformou e o levou ao caminho evangélico. Manteve-se em boas relaçóes com Wesley e Whitefield. Notável entre os evangélicos foi John Ncwton (1725-1807), excomandante de navio negreiro. Convertido, se tornoti dos mais prestimosas pregadores, primeiro em Olney e depois como pároco dt: Sainr Mar!. Woolnoch, em Londres. Seus hinos demonstram sua fé alegre e confiante. Outro evangélico renornado por seus hinos foi Augusrus Toplady (1740- 1778), autor de "Rocha dos Séculos". Thomas Scott (1747-1821), sucessor de Newton em Olne]; ficou mais conhecido por sua Bíblia da Família com Anoracóes, um comentário de imensa popularidade em an-ibos os lados d o Arlânrico. Richard Ceci1 ( 1 748-1 8 10), no
fim da vida foi um dos mais influentes pregadores em Londres. Joseph Milner (1744-1797), fez de Hull um haiuarte evangélico e teve muita influência por meio de sua História da Igreja de Cristo, continuada após sua morte por seu irmáo Isaac. Nesta obra deu ênfase ao desenvolvimento das biografias cristãs mais que às disputas dentro do cristianismo. Isaac Milner (1750-1820) foi por muito tempo professor ein Cambridge e ajudou a dar o toili grandemente evan-
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HISTORIA DA IGREJA CRISTÃ
gélico assumido por essa universidade, trabalho continuado ali por Charles Simeon (1759-1836). Não faziam parte das fileiras clericais vários que foram instrumentos para a difusáo das idéias evangélicas. Um destes foi William Coxvper (1731-1800), o maior dos poetas ingleses da metade final do século dczoiro e amigo íntimo de Newton. Com Hannah More (1745-1833) o evangelismo teve uma defensora pessoalmente relacionada com os meios literários, artísticos e teatrais de Londres. Foi escritora de rratados e estdrias de grande popularidade e filantropa generosa e abnegada. Os anglicanos evangélicos permaneceram dentro da igreja da Inglaterra, mas as duas correntes mrtodistas por fim dela se separaram. Em 1779 a Condessa de Huritingdon e seus companheiros saíram da igreja da Inglaterra; e com o rcmpo a conexão se tornou na Igreja Metodista Galesa. Os metodistas wesleyanos sepa-
raram-se da igreja oticial aos poucos c, por fim, somente após a morte de John Wesley (1791), que desejava que seus seguidores evitassem a separa~áo.Porém, tinham sido dados dois importantes passos em 1784. Em 28 de fevereiro, por um "Ato de Declaraç.áoWWesley cuidou para que o movimenro con[iiluasse após sua morte, nomeando uma "Conferência" de cem membros para zeIar pclas propriedades e assumir a dircgão do rnovimeilto. Foi u m passo adiante na direção do aurogoverno do rnerodismo. Em l o de setembro WesIey juntou-se a outros presbíteros da igreja da Inglaterra para ordenar presbíteros e u m superintendente para a An-iCrica (ver V11: 10). Na verdade, isso foi uma ruptura com a igreja da Inglaterra, ainda quc Wesley não tenha considerado dessa forma. A separação final dos metodistas wesieyanos está, talvez, melhor assinalada pelo "Plaiio de Pacificacáou, de 1795, que estabilizou a eritáo igreja independente. Wesley coilservou suas forcas e se manteve em contínua atividade quase até o fim. Faleceu em Londres a 2 de marco de 1791, tendo feito uma obra que rcvo-
lucionou prof~indamentea condiçáo religiosa das classes inferior c média da Inglaterra e ainda dc modo mais amplo afetou a América. N a Escócia, as separaçóes reais da igreja presbiteriana oficial ocorreram mui-
to mais cedo,
em virtude do sistema "patronaIn pelo qual o patrono
podia forcar a nomeação de um minisero para uma congregagáo relutante (ver V1:16). Em 1733 Ebenezer Erskine, de StirIing, denunciou tal limitaçáo do poder de escolha do minisrro por parte da congregacão. Seu sínodo o disciplinou, e ele e vários companheiros foram depostos pela Assembléia Geral, em 1740.
O Grande Despertamento O movimento de maior influência e o mais transformador na vida religiosa da Amirica no século dezoito foi o Grande Desperrarnento, um reavivarncnto que teve muitas fases e se estendeu por mais de cinquenra anos. Iniciado num rcmpo em que os modelos tradicionais criscáos náo demonstravam muita eficácia, e numa época de expansáo do racionalismo e de confusáo cultural, o despercamento náo apenas levou a tremendo impulso da vida criçtá, riias ainda transformou os conceitos sobre a maneira de se entrar nessa vida de tal modo que afetou profuiidamentc a maioria das igrejas americanas. Ncsce aspecto o Grande Dcspertamento foi análogo ao pietisrno na Alemanha e do desperramcnco evangélico na Grã-Bretanha. Eiifarizou uma rnudança transformadora, regenerariva, uma "cons~ersáo",como a maneira normal de entrada na igreja. Difundiu amplamente uma noção de igreja que enfatiza sua imporrancia como um grupo de crisráos que riveram a experiência da cc~nversáo;a atengáo primeira náo escava no preparo crisráo. Moralidade esrrita e piedade sisicera caraccerizarani o movimento como um todo. Sua influência difundiu uma compreensáo evangélica de religiáo não apenas entre igrejas diretamente afetadas mas tarnbém entre outras d e n ~ m i n a ~ õ cembora s, em todo canto o movimenro fosse considerado controverso. Ao fornecer novas compreensóes da autoridade religiosa e novos princípios de açáo, o Grande Despertamenro ajudou as comunidades protestantes a se ajusrarcm às realidades de seu tempo c fornecerem uma nova apologia da fé diante dos desafios da religiáo racional. Sob sua influência, a vida educacioria1 foi estimulada e novas faculdades foram fundadas. Sendo um movimento intercolonial, o despertameiito ajudou a colocar as coliinias em relaçáo mais íniima e assim indiretamente auxiliou no preparo do caliliriho para a RevoluFáo Americana.
Os primeiros sinais do Grande Despertamento surgiram na década de 1720 nas congregações da Igreja Reformada Holandesa no Vale do Raritan, em Nova Jersey. Forrnalisrno e perda de vitalidade caracterizavam muitas das congregaçóes reformadas; muitos dos holandcscs se satisfaziam em considerar suas igrejas como símbolos de sua nacionalidade e herariça. Mas um jovem pascor, Sheodore J. Frelinghuysen
(1691-174S),que se familiarizara com as ênfases puritanas na Holanda, onde fora
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HISTORiA OA IGREJA E R I S T ~
deixou suas marcas permanentes nela.
O Grande Despertamento chegou a Nova Inglaterra quando u m reavivamenro notável varreu a cidade de Northampton, Massachusetts, em 1734-35. Chamou muita atencáo, especialmente quando seu líder, Jonathan Edwards (1703-17581, pastor em Northampton, descreveu-o lium clássico reavivaiista - Narratiua$el da sz~rp~eendente
obra de Deus convertendo muitas centenas dealinas... (1737). O reavivamento irrompeu novamente em 1739, espalhando-se amplamente na Nova Inglaterra. Os líderes congregacionais foram auxiliados no trabalho por Gilbert Tennent e George Whitefield, este último entáo no auge de seu entusiasmo juvenil- Por toda parte multidóes se amontoavam para ouvi-lo; seus sermões provocavam desmaios e gritaria. Conforme o des~ertamentose disseminava, centenas de pessoas eram transformadas para sempre. A condiçáo espiritual de muitas comunidades era modificada. Mas o despertamento na Nova Inglaterra foi tão controvertido como aquele ocorrido nas colônias centrais. Whitefield frequentemente considerava como não convertidos aqueles que náo concordavam com ele, e alguns que foram influenciados por ele tornaram-se ainda mais censuradores e impiedosos. O reavivamento foi perturbado ainda mais pelas atividades divisionistas do instável James Davenport (17161757), que pregava discursos prolixos, vazios, sem preparo, nos quais atacava, citando nomes, muitos dos ministros dirigentes, considerando-os como não converridos. . . Formaram-se Igrejas congregacionais separadas. Em protesto, as "Velhas Luzes", sob
a liderança do pastor da Primeira Igreja de Boston, Charles Chauncy (1705-1787), atacou as "Novas Luzes", que viam nos reavivamentos uma obra de Deus. A reaçáo contra o des~ertamentocontribuiu para a difusão do arminianismo e, por fim, do pensamento unicário entre o congregacionalismo. Foi tamanha a reaçáo contra o reavivamento que depois da metade do século o despertamento já não era mais uma forca potente nas igrejas congregacionais oficiais, embora continuasse bastante forte entre os batistas, que entáo estavam se espalhando rapidamente na Nova Inglaterra, aproxirando-se grandemente dos exemplos do despertamenro.
O Grande Despertamento espalhou-se também nas colônias do sul, contribuindo ali para o desenvoIvirnento dos grupos dissidentes. Nas décadas de 1740 e 1750 o presbiterianismo se difundiu rapidamente na Virginia e no sul, principalmente pela ardente pregaçáo de Samuel Davies (1723-1761). Logo depois de 1750, foram iniciados, através de reavivalistas da Nova Inglarerra, reavivamentos entre os batistas na Virginia, os quais, diante da resistêricia dos batistas regulares, organizaram muitas
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O CRISTIANISMO MOOERNO
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igrejas batistas separadas. Estes rcavivamentos provocavam elevado entusiasmo emocional, e as perseguições por parte das autoridades coloniais serviam apenas para incrcmentar a causa. Embora seja verdade que se possa dizer que o Grande Uespertamento, enquanto fenômeno intercolonial de grandes propor~ócs,tenha terminado quando os interesses da revoluçáo tornaram-se muito absorventes, nos meios bacista e metodista os traços do despertamento conrinuaram muiro fortes.
O metodismo demorou a chegar na América - a obra náo começou antes de 1766. Por volta desse ano Philip Embury (1728-1773) e Robert Strawbridge (?1781) cornecaram atividades merodistas em Nova 101-que e Maryland, respectivamente. Um dos primeiros dentre os vigorosos pregadorrs leigos foi o capitáo do exército britânico 'rhomas Webb (1 724-1796). Em 1769 IYesIey enviou o primeiro dos oito missionários ieigos oficialmente nomeados. O único deles que permaneceu ativo no rnctodisrno americano durante e após a revoluçáo foi Francis Asbury (1745-
1816). Durante a dtcada de 1770 o metodismo cresceu rapidamente principalmeiite em Maryland e Virginia, como um movimento de sociedades frouxamente ligadas a igreja da Inglaterra, exatameme como na mãe pátria. Em 1773 foi realizada enl Filadklfia a primeira conferência metodista americana. O crescimento continuou durante a revolução e diversos pregadores leigos nativos ingressaram no movimento. Exceto nas sociedades tnetodistas, houve pouco interesse nas igrejas episcopais no despercamento. No sul, a corrence racionalista era forte (latitudinarianismo), no norte a tendência alta-igreja dos missionirios da Sociedade Propagadora do Evangelho náo era receptiva ao reavivarnenro. O mais importanrc episcopal cva~i~élico foi Devereux Jarratt (1733-180 I ) , pároco em Virginia, que fora convertido pela pregaçáo da Nova Luz presbiteriaila mas que se ligara à igreja da Inglaterra porque Wesley e Whitefield estavam nela. Ele auxiliou sobremaneira as sociedades metodistas antes de elas se organizarem como igreja independente, em 1784. As organizações luteranas não foram aferadas muito diretamente pelo Grande Despertamento. Seu crescimento nesse período foi devido principalrnence a afluência de colonos germânicos. Havia entre eles, porém, considerável sentimento pietista. Seu preeminente líder, Henry Melchior Muhlenberg (171 1-1787), fora esrimulado a vir às colônias pelos dirigentes de Halle. Ele representava iim equilíbrio entre as ênfases pietista e ortodoxa, e era ativo na organizacão de novas igrejas entre os alemáes luteranos, os quais se haviam tornado o maior grupo religioso na Pennsylvania tios meados do stculo dezoito. Em 1748 organizou o primeiro sínodo luterano a ter
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HISTÓRIA D A IGREJA
CRISTA
existência permanente. O espírito pietista esteve muito mais em evidência entre algumas das organiza~óesalemãs menores. Das discussões provocadas pelo Grande Desperramento surgiu na Nova Inglatcrra a concribuiçáo mais considerável que a América do século dezoito fez à teologia a obra de Jonarhan Edwards e sua escola. Nascido em 1703 no lar de um pastor, em Connecticur, Edwards se graduou em Yale, em 1720. Apds rápido pastorado presbiteriano em Nova Iorque, tornou-se tutor em Yale. Eni 1727 tornou-se pastor associado em Northampton, depois pastor tirular quando morreu seu avô, Solomon Stoddard ( 1 643-1 729). Intelecrualmente brilhante, Edwards lia amplamente as obras filosóficas e científicas de sua bpoca, mergulhando nos escritos de Locke e Newton. Cedo convencido da clássica ênfi~secalvinista na soberania de Deus e na prede~tina~áo, Edwards firmou corajosamente sua posiçáo teológica, usando como gráos para o seu moinho as mais rcccnces descobertas da Idade da Ilazáo. Líder nos reavivamentos, ele defendia aquilo que sentia ser o verdadeiro reavivamento, ou seja, uma obra de Deus, contra aqueles que, de um lado, rejeitavam todo emocionalisrno em religião e
os que, de nutro, o expioravam. Em 1746 apareceu o Gatado a Respeito da5 Emo~óes
Rel&iosi?s, uma defesa teológica do que Ed~vardscria ser genuíno reavivamento. Nesta obra ele utilizou iloqóes psicoIógicas, em parte derivadas de Locke. Pastor e eclesiástico, era defensor dos mais altos padrões para os membros da igreja, crendo que somente os santos - os verdadeiramente eleiros
- deveriam ser membros
em plena
comunhão. Quando agiu rendo como base esta convicqáo, náo mais permanecendo ria posição mais frouxa, foi demitido de seu púlpito em 1750. Isto a dcspeiro do cuidadoso tratado sobre o assunto, aparecido no ano anterior, Qualzj$caçóes Rrqzie~ida
para a Plena Comunhão. Ent50 Edwards se tornou missionário entre os índios, em Stockbridge, Massachusetts, onde achou tempo para dedicar seus conhecimentos teoiógicos e filosóficos à defesa do calvinismo contra o arminianisrno, termo sob o qual caracrerizava as tendências reológicas liberais do século dezoito. Em seu Trntddu Sobre o Avbi-
trio (1754) sustentou que conquanto todos os homens tenham capacidade natural para se voltarem para Deus, falta-lhes capacidade moral - isto é, a inclinaçáo - para fazê-lo. Esca inclinação determinante é o dom transformador da graça de Deus, embora sua falta náo seja desculpa para o pecado. Teólogo sistemático, Edwards planejou uma obra maciça apresentando por completo sua posiçáo. Na realidade, terminou apenas uns poucos fragmentos dela, embora alguns de seus tratados anteriores
p ~ i l o e ovil
O ERISTIANISMO MOOERNO
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devessem, aparentemente, ser encaixados nela. Um dos fragmentos foi A Natareza da
fiudadeiva X-~tude,publicado postumamente, em 1765. Segundo seu pensamento, virtude t amor ao Ser i~~teligente em geral. Mas Deus possui infinitamente a maior parcela da existência, ele
t infinitamente o maior Ser. Assim, a verdadeira virtude
deve consistir essencialmente e radicalmente rio supremo amor a Deus. Ta1 virtude verdadeira náo pode ser encontrada através da razão e do entendimento, pois é feita
de afeições e disposiçóes; ela surge da ascendência da suprema paixão, amor, sobre o amor a s i próprio. "Benevolência desinteressada" é uma de suas provas, e é totalmente um dom de Deus. Mas a obra sistemática dr Edwards ficou incompleta. Convocado a ocupar a ~residtnciade Princeton, submeteu-se à vaciilacáo durante uma epidemia de varíola, contraiu a doença e morreu poucas semanas depois dc assumir o cargo. As idéias de Edwards foram defendidas por um grupo de seus seguidores: Joseph Rellamy (171 9-1790), Samuel Hopkins (1721-1803),Jonathan Edwards, Ir. ( 1 745-
1801) e Nathaniel Emmoris (1745- 1840). Estes reólogos eduardianos deram o tom da discussão rcológica na Nova Inglarerra por nluitas dicadas: eles continiiaram a debater as questões q u e Ed~vardshavia suscitado, polemizando com os velhos calvinistas, seguidores da teologia federal ou pactual. Embora os eduardianos fossem eruditos competentes e trabalhadores esforcados, faltavam-lhes a criatividade pottica e a amplitude de perspectivas que caracterizaram o mestre. Hopkins, parricularmente, lidou com algumas das posturas eduardianas com lógica inflexhrel. Porém, ao acentuar o tema da "benevolência desinteressada", inconscien~emencepreparou o caminho para algumas das mudanças teológicas do sCculo dezenove. Embora a obra desses eduardianos tenha ocorrido depois que o Grande Despertamento alcancara seu ápice nas igrejas congregacionais da Nova Inglaterra, eles verdadeiramelite apresentaram e defenderam um calvinismo evangélico que foi influente nos desenvolvimentos posteriores na América (ver VII: 15).
A experiência americana de des~ertamentoteve certa influência no Canadá. Um Grande Despertainenro emergiu na Nova Escócia na década de 1770, em continuacão histórica com os congregacionais separatistas de Connecticut, vários dos quais haviam migrado para a província mais ao norte. Esse despertamento foi liderado por um homem de Rhode Island que fora para a Nova Escócia ainda menino, Henry
Alline (1748-1784). Familiarizado com os relatos clássicos de conversá0 nos escritos puritanos evangélicos, ele respondeu ao chamado para pregar imediatamente após
sua própria experiência de convicgáo em 1775. Ele elaborou uma "teologia de despertamcnto" distinta, a qual proclamava em viagens de pregaçáo itinerante, provocando intensa resposta, especialmente entre a classe dos trabalhadores. As idtias de Alline sobre a igreja foram marcadas decisivamente pelo congregacionalismo separacista; porém, as congregaçócs da Nova Luz que resultaram de seus esforços reavivdistas náo se mostraram estáveis, c algumas, como suas similares em Connecticut, foram mais tarde reconsi-icuídas como igrejas batistas. Assim, na Nova Escócia como na Nova Inglaterra, os batistas freqlientemence ceifaram a seara do G r a n d e Despertamento.
Capítulo 9
O Impacto do Reavivamento Evangélico; o Surgiriieiito das Missóes Modernas Na Inglaterra, o impacto do reavivamento evangélico foi sentido muico além dos limites dos seus arraiais. Sua influência sobre os grupos náo-conformistas mais aiitigos foi estimula~~te, ainda que náo uniforme. Tais grupos estavam ein si~uagáode decadência na primeira metade do século dezoito. Seus líderes, no início, olhara111 de esguelha para lVesley e WhirefieId, mas conforme o reavivamento prosseguia, os mais joveils se enrusiasmavam com ele. Foi este o caso principalmente entre os congregacionais, que foram quem mais se beneficiaram com o reavivamento. Sua pregacáo foi vivificada, seu zelo reanimado e seu número aumentou rapidamente. Conseguiram muitas adesóes entre os despertados pelo metodismo, mas que não se adaptaram à disciplina mctodista. Outros Ihes vieram de paróquias da igreja oficial. Por volta de 1800 os congregacionais ocupavam na IngIaterra posiçáo muito diference daquela de um século antes. Os bariscas particulares também usufruíram desse crescimento, assim como os batistas gerais, apesar da considerável influência d o pensamento ariano. Em 1770 uma ala evangélica separou-se como Batistas Gerais da Nova Conexáo em proresto contra a tendência unicária. Os presbicerianos, por outro lado, quase não foram afetados pelo despertamento. O arianismo e o socinianismo
P~RIOBO YII O CRISTIIINISMO MODERNO
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dominavam entre eles, e seu número diminuía. Os quacres também náo foram rnuito afetados pois os métodos reavivalistas eram muito estranhos ao seu espírito para lhes impressionarem.
O movimento metodista tinha ampla visáo filantrópica, e os evangélicos dela compartilhavam. O metodismo, sob a Iideran~ade Wesley, visava auxiliar financeiramente os seus pobres, conseguir empregos, cuidar dos enfermos, estabelecer escolas e salas de leitura e eliminar a rudeza e a violência das classes inferiores.
O despertamento do no\~oespírito do hurnanirarisrno teve um dos seus mais nobres representantes em John Howard (1726-1790), latihndiário pacífico, religioso, interessado em escolas e casas-modelo, que participava de cultos em congregações congregacionais e batistas. Howard foi nomeado delegado geral de Bedford, em
1773. Ele ficou muito chocado com a sujeira física c moral das prisóes, cujos oficiais eram mantidos não por salários mas pelo que podiam extorquir dos encarcerados. Ainda mais, os presos náo estavam convenientemente separados, nem os absolvidos eram posros em liberdade enquanto não quitavam suas dívidas. Diligcnre em tudo que fazia, Howard visitou praticamente todas as prisóes inglesas e em 1774 apresentou ao parlamento os horríveis resultados de sua investigacáo. Ele entáo empreendeu tarefa semelhante na Escócia, na Irlanda e no continenre europeu. Muito ficou por fazer, mas bem merece ele o título de "pai das reformas nas prisões". Seus últimos anos foram dedicados a esforços náo menos abnegados para determinar métodos corretos para impedir a propagaqáo da peste. Sua dedicaçáo lhe custou a vida no sul da Rússia. Henry Venn (1725-1797), pároco de Huddersfieid, e seu filho John (1759- 18 13), pároco de CIapham, reuniram ao redor de si um grupo que se distinguiu pela dedicação às boas causas. Esse grupo, formado principalmente por abastados leigos anglicanos evangélicos, foi cognominado "Seita de Clapham". Seus membros influenciaram sobremaneira na eliminaçao da escravidáo na Grá-Bretanha e nos seus domínios. Este mal j i fora severamente condenado por John Wesley. Também os quacres
já tinham se oposco vigorosamente conrra a escravidáo. No começo do século dezenove a gente de Clapham liderou a vitoriosa campanha para acabar com a escravidáo.
Zachary Macaulay (1768-1 838), pai do famoso historiador, certa vez embarcou num navio negreiro para ver por si mesmo a condiçáo dos escravos. O Iíder mais eficiente nessa cruzada foi um dos mais preeminentes leigos evangélicos, Wiliiam Wilberforce (1759-1833). Rico, popular e membro do parlamento, "converteu-se" em 1784 pela
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HIST6RIA DA IGREJI\ ERISTÃ
instrumentalidade de Isaac h/Iilner. Em 1797 pubIicou Esáo real do ststerna religioso que prevalece entre os oist~ospro@jsosnas classes alta e média nc~tepais,contrastada com o verdadeiro crijtirlnimo. Tornou-se esse tratado um dos mais populares escritos evangélicos. Em 1787 Vlrilberforce iniciou a longa Iuta de sua vida contra a escravidão, o que resultou na aboli~áodo tráfico de escravos, em 1807, e da própria escravidão em todos os domínios britânicos, em 1833. Ao desenvolver seus esforços religiosos, humanos c beneficentes, evangélicos de vários tipos frequenremence trabalhavam juntos em sociedades \~olundrias.O movimento de reavi~arnenrodeu grande impulso à difbsáo de literatura cristá. Wesley publicou constantemente por meio da Sociedade Promotora do Conhecimento Cristão, fuiidada em 1699 (ver V11:2). Em
1799 foi formada ein Londres uma entidade
interdenominacional denominada Sociedade de Folhetos Religiosos. O pietismo dera o exemplo de uma publicacão ampla e barata da Bíblia por intermédio da fundaçáo do baráo Czanstcin, em Halle, em 1710 (ver VII:5). Em 1804 foi fundada em Londres a Sociedade Bíblica Brirânica e Estrangeira pelo empenho dos evangélicos. Logo apareceram organizacóes similares ria Irlanda, Escócia e Estados Unidos (ver VII: 15). Por sua obra foi possível uma grande d i ~ ~ u l g a ~ das á oEscrituras. Aigum tipo de ensino religioso para as crianças é provavelmente táo velho quanto a reiigiáo organizada, e a época da Reforma valorizou sobremaneira a instruçáo cacequética. Ainda que renracivas tenham sido feitas anreriormente, os primeiros esforqos sistemáticos e bem sucedidos, em larga escala, visando a alcançar os pobres e analfabetos com a educaqáo cristá foram por meio das escolas dominicais. Foi seu fundador, em 1780, Robert Raikes (1 735-18 1 L), leigo evangéiico da igreja oficial. Na falta de instruçáo púbIica, cuidou em dar aos analfabetos possibilidade de estudarem, e também conhecerem os fundamentos cristãos, por in~ermédiode professores pagos. Isso no único dia que as crianças tinham livre, o domingo. Também era obrigatória a freqüência à igreja. Raikes era proprietário do GLoucester Journal, no qual publicava notícias dessas atividades. A iniciativa se propagou com g a n d e rapidez. Wesley e os náo-conformistas a apoiaram. Foi organizada em Londres uma Sociedade Promotora das Escolas Dominicais, em 1785. Sociedade semelhante surgiu em Filadélfia, em 1791. Ainda que o crescimento do movimento tenha sido táo rápido quanto permanente, ele náo deixou de receber oposiçáo por parte do clero, em parte por ser novidade e, em parte, por causa de sua "profanaçáo" do domingo. A instruçáo secu!ar logo decresceu e o professor pago deu lugar ao líder voluntário.
~ r r i o i ovil
O CIISTIANISMO MODERNO
72I
Nenhuma outra institui~áocristã chegou a ficar táo amplamente integrada na vida da igreja moderna. Uma das conseqüências mais imporrances do reavivamento evangélico foi o surgimento das modernas missóes protestantes. O desen\~olvimentodas missóes católicas romanas na época da Reforma fora rápido e frutífero (ver VI: l l ) . Mas a falta de conratos geográficos somada a certos problemas internos e convic~óesteolcigicas, muito retardou esforços protestantes equivalentes. Entretanto, logo após as conquistas holandesas no século dezessete, o trabalho começou elii Ceiláo, Java e Formosa. A primeira organizacáo rnissionária inglesa para o estrangeiro, a Sociedade para a Propagaçán do Evangelho na Nova Inglaterra, surgiu por uma lei do parlamento, em
1649. Sua c r i a ~ á ofoi a resposca ao trabaiho de John Eliot entre os índios de Massachusetts (ver VII:2). Ela patrocinou a impressão da Bíblia Indígena de Eliot, bem como de outras obras. A Sociedade para a Propagacão do Evangelho em Terras Estrangeiras foi organizada em 1701 (ver VI1:2). O pietismo alemão produziu de 1705 em diante as missóes hdle-danesas (ver VII:5}. Em 1732 começou a norável atividade rnissionária dos morávios (ver VI1:6). Os quacres também fizcram alguns
empreendimentos missionários. O interesse pelos povos não cristãos surgiu na Grá-Bretanha em conseqüência das viagens de descobrimento realizadas no Pacífico, pa~rocinadaspelo governo inglês, pelo capitáo James Cook (1728-1799), desde 1768 atC sua morte. Tais descobrimentos despertaram o zelo missionário de William Carey (1761-18340, rim sapateiro e mais tarde pregador batista, que revelaria ser pessoa de notável talento para línguas e botânica tanto quanto possuidor de inextinguível dedicaçáo missionária. O resultado em forma escrita de seu pensamento sobre missões foi sua I ~ v e s t i g ~ ~ ~ o
Sobw a Obrigacão dos Cristúos de Empregaiem Meios para n Conversão dos PagZos, de 1792. Este livro e um sermáo de Carep sobre Isaías 54.2 ievaram à organizaqáo da Sociedade Batista para a Propaga~áodo Evangelho entre os Pagãos. Carey foi seu primeiro missionário e suas cartas da Índia foram ~ o d e r o s oesrímulo para outros empreendimentos missionários. Em 1795 foi formada a Sociedade Missionária Londrina, como empresa incerdenominacional, principalmente pelos esforços de David Bogue (1750-1 825), ministro congregaciona1 de Gosport, e Thomas Haweis (1734-
1820), pároco evangélico de Aldwinkle. Seus primeiros missionários foram enviados a Taiti, e m 1796. P o s ~ e r i o r m e n t eessa sociedade tornou-se u m a enridade congregacional. O crescente senso da obrigação rnissionária levou à organizacáo da
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H I S I I R I I DA IGREJA C R I S I h
Sociedade Missionária da Igreja em 1799, representativa da ala evangélica da igreja oficial, por insrrumencalidade de John Venn, pároco de Clapham, e Thomas Scott, publicador da Biblia da Fanzilid. A Sociedade Missionária Metodista Wesleyana da Inglaterra foi fundada em 1817-18. Depois de pequenas tentativas locais na Escócia
já a partir de 1796, foram fundadas em 1825 as juntas de missões da igreja da Escócia. Esse aprofundamento da obrigação missionária bricânica despertou amplo interesse em outros países. O começo do século dezenove veria a organização de inúmeras sociedades missionárias, tanto denominacionais como interdenominacionais, nos Estados Unidos e na Europa continental (ver VII:14, 15).
Capitulo 1 0
A Época da Revolupáo nos Estados Unidos Treze das colônias inglesas na h é r i c a do Norte tornaram-se livres da mãe pátria, fazendo-se nacão independente, na última metade do sCculo dezoito - época da revolução na América. A acençáo de muita gente passou do vivo interesse religioso que caracterizou o Grande Despertamenco para uma longa série de fatos políticos e militares de absorvente preocupacáo. O crescente atrito encre as colônias e a coroa levou ao irromper da revolucáo em 1775, à declaraçáo de independência em 1776, à destruidora guerra que se esre~ideuaté 1783 e % extensa discussáo sobre a estrutura da nova nação, que só rerminou com o estabelecimento do governo sob a constituição dos Estados Unidos em 1789. A filosofia revolucionária, em sua atitude para com a religiáo, tendia para o racioi~alismo,minimizando o prestígio das igrejas. Muitos dos líderes políticos eram influenciados pelo deísmo da Inglaterra ou da França (ver
VIM). Assim, por mais de uma geracão as pessoas ficaram absorvidas pelo pensamenro e pela a ~ á oda re~roIuçáo,e a religiáo atraiu menor atençáo geral do que anteriormente.
O faro de maior importância para a religiáo nesse período da América foi a conquista da liberdade religiosa. Isro foi um passo revolucionário, pois representou um distanciamento radical dos princípios de uniformidade e oficializaqáo que haviam
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HISTDRIII DA IGREJA GRISIA
Connecticut; em 18 19 em New Hampshire; e em 1833 em Massachusetts. Ao nível nacional, os vários fatores combinaram-se para promover liberdade religiosa desde o começo. O artigo VI da Consti~uiçáoafirmava que "nenhuma prova religiosa jamais será exigida como qualificaçáo para algum ofício ou cargo público nos Estados Unidos". A primeira emenda (1791) a Constirui~áodeclarava que o "Congresso não legislará oficializando religiáo, ou proibindo o livre exercício dela ..." Assim, os modelos de oficializaqáo e uniformidade foram abandonados, e, com o d e ~ a ~ a r e c i m e n rda o última igreja oficializada, rodas as igrejas sobreviveram como associa~óesvoluntárias, iguais perante a lei. A obtenqáo da independência pelos americanos trouxc novos problemas sobre rodas as denominaçóes. Algumas delas que tinham sido ramos das igrejas européias agora precisavam se reorganizar sobre bases independentes. Neill-iuma comrinháo na América sofreu tanto com a revolucáo como a igreja da Inglaterra. Muitos de seus ministros c membros, especialmente no norte, simpatizaram com a máe párria, e saíram da iuca arruinados. Seu próprio nome náo parecia nada patriótico, e então foi sugerido o de "Episcopal Protestarite" numa conferência de clérigos e leigos de Maryland! em novembro de 1780. Dois anos mais tarde, Rrilliam White (1748-1836), pároco da Igreja de Crisro, em Filadélfia, e ardoroso partidário da independência americana, traqou um plano segundo o qual seria organizada a igreja Episcopal Protestante Americana, independente do estado e do controle eclesiástico inglês, com corpos representativos compostos náo apenas por clérigos mas também por leigos. Parecia-lhe remota a possibilidade de conseguir um episcopado americano. D e acordo com as sugestões de Whire, reuniu-se na cidade de Nova Iorque uma convençáo voluntária, representando oito esrados, em outubro de 1784, e convocou a primeira convençáo geral a se reunir em Filadélfia em setembro de 1785. Enquanto isso, o clero de Connecticut se mantivera à parte e escolhera Sarnuel Seabury (1729-1796) como seu bispo. Ele viajara para a Inglaterra, em junho de 1783, para a sagraqáo episcopal. Mas vendo a impossibilidade de ser consagrado pelos bispos ingleses por falta de licença do parlamento, Seabury foi buscar sagracâo episcopal junto aos bispos escoceses "nonjuror", em Aberdeen, em novembro de 1784.
A convenção geral de 1785 adorou uma constituição para a Igreja Episcopal Protestante nos Esrados Unidos, obra em grande parte de William White. Eia cambbm solicitou aos prelados ingleses a consagração de bispos para a América.
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HISIÓRIA UA IGREJA CRISÃI
como também Coke, "superintendentes". Mas Asbury conhecia a mentalidade americana e sentiu que os pregadores leigos deveriam reunir-se para livremente aceirarem o plano de Wesley e elegerem a ele e a Coke como superintendentes. Assim, começando a 24 de dezembro de 1784, a "Conferência do Naral", reunida em Baltimore, fez exatamente aquilo, formando a Igreja Episcopal Metodista. Asbury foi ordenado diácono, ancião e superintendente em dias sucessivos e uma dúzia de outros pregadores foram ordenados anciáos. Foi preparada uma disciplina. Coke e Asbury, com forre contrariedade de Wesley logo comeqaram a chamar a si mesmos "bispos", rítulo que se Tornou oficial em 1787. A primeira conferência geral se reuniu em 1792, dirigindo a expansão da nova igreja, totalmente independente e em franco crescimento.
A dcpendkncia das igrejas reformadas holandesa e alemã para com a Holanda vinha há muito declinando, e o rompimento completo dos l a ~ o sfoi apenas uma formalidade, em 1792 c 1793, respecrivamente. 0 s ca~ólicosromanos, obviamente, náo se tornaram independentes, mas redefiniram suas rçlaqóes e alcançaram unia organização nacional. Ainda eram insignificante minoria ao Tempo da independência americana, mas sua posição melhorou muito e m consequê~iciada crescente tradicão de liberdade religiosa e da atividade patriótica de muitos deles durante a revolucáo. Tinham estado sob os cuidados do vigário apostólico de Londres, mas com a independknçia isso náo era mais possíveI. E m 1784 o rnui respeitado John Carroll (1735-1815), de Maryland, foi nomeado prefeito apostólico para os Esrados Unidos por PioVI
(1774-1799). Logo ~roblernasinrernos fizeram com que fosse altamente recomendável ter um bispo, mas os carólicos americanos receavam ser submetidos a um bispo estrangeiro, e os sacerdotes solicitaram a Roma o direito de eleger seu próprio bispo. Tal solicicaçáo foi atendida, e em 1790, na Inglaterra, Carroll foi corisagrado bispo de Baltimore. N o ano seguinte, na catedral desta cidade, reuniu-se o primeiro sínodo católico romano dos Esrados Unidos. Em 1808, ainda sob Carroll, BaIrimore se cornou sede de arcebispado, enquanto bispados foram criados em Nova Iorque, Boston, Filadélfia e Bardstown (Kenrucky). No ano em que Carroll faleceu, os alicerces do catolicismo romano nos Estados Unidos esravam firmemente lançados e o número de sacerdotes passava de uma cenrena, embora a imigraqáo que tanto aumentaria essa igreja ainda fosse coisa do futuro.
Os morávios também mantinham íntimos lacos com o centro europeu em
Herrnhut. Em 1775, de fato, fora adotada uma nova política de centralizacáo, de forma que os morávios americanos ficaram mais do que nunca dependentes d o controle de além-mar. Esta foi uma acitude infeliz, pois os chefes estrangeiros continuaram a pensar em termos das igrejas oficiais européias e náo compreenderam a oportunidade oferecida pela liberdade no cenário americano. O impacto dos morávios logo diminuiu. Náo foi senão no século dezenove que a Igreja Morávia Americana tornou-se autônoma.
Algumas das denominações - Congregacional, Batista, Quacre - já eram independentes, e a revoluçáo náo as afetou diretamenre quanto à sua organizaçáo. Os presbiterianos também estavam organizados independentemente, mas aproveitaram a oportunidade para se reorganizar. Durante a década de 1780 redigiram uma nova constituiçáo, que proporcionava espaço para uma estrutura totalmente presbiteriana, encabeçada por uma assembléia geral, q u e se reuniu pela primeira vez em Filadélfia, em 1789. O s luteranos também haviam sido aurônomos, mas durante a época revolucionária começaram a se organizar. Muhlenberg (ver VI1:X) preparou, em 1762, uma consrituiçáo modelo para sua congregaçáo em Fiiadélfia. Por ela, todos os dirigentes seriam escolhidos pela própria congregaçáo. Ficaram, assim, delineadas as duas feições características básicas da polícica luterana americana - congregacional com respeito à congregacáo local, presbiteriana com respeito h posiçáo dos minisrros no sínodo. O sistema sinodal se difundiu vagarosamente. Em 1786 foi organizado o seg~indosínodo, o ministério de Nova Iorque. U m terceiro sínodo logo sc formou na Carolina do Norte.
Em 1820 foi organizado um sínodo geral, mas apoiado apenas por uma parte dos luteranos. A questáo da nacionalidade e rensóes teológicas impediram os luteranos de afcancar qualquer unidade nacional. Uma nova organizaçáo religiosa se desenvolveu na América durante o períod o da luta pela independência nacional - a dos universalisras. A crença na salva-
ção de todos apareceu ocasionalmente na América, no século dezoito, como em ourras partes. O pai do universalismo organizado foi John Murray (1 74 1- 18 15), que fora rocado pela pregação de Whitefield na sua pátria, a Inglaterra, c pcios escritos de James Relly (1722)-I778), que passara da posiçáo de um dos pregadores de Whitefield para a de advogado da salvaçáo universal. Foi corno discípulo de Relly que Murray chegou a América, em 1770. Iniciou, entáo, um ministCrio itinerante, principalmente na Nova Inglaterra. Calvinista moderado, Murray
cria que Cristo pagara por inteiro não só os pecados do restrito grupo dos eleitos, mas dc todos, c quc no juízo todos receberiam imediata bem aventuranca, quando toda incredulidade na misericórdia de Deus desapareceria. Para os que crêem plenamente, bem aventurança prometida por Deus começa agora.
O universalismo recebeu novo impulso quando, em 1780, Elhanan Winchester (175 1- 1733, ministro batista em Filadélfia, independentemente de Murray adotou idPias universalis~as,que defendia com eloquência. Diferentemente de Murray, suas opinióes gerais eram arrniniaiias. A salvaçáo é baseada na livre submissáo final de todos a Deus, mas no caso dos sem arrependimento isto náo se dá até
que seus espíritos sejam purificados por sofrimentos prolongados, embora não eternos. Ainda mais influente foi Hosea Baliou (1771-1852), por muito tempo pastor em Boston. Murray e Winches~erforam trinitários. Ballou era ariano e foi nesta direçáo que rumou o universalismo americano. O propósito da expiação era moral - demonstrar o amor de Deus pelos homens. O pecado traz castigo, aqui ou após a morte, até que os homens se volrem d o pecado para Deus. Cerca de 1790 os uni\~ersalisraseram suficien~ementenumerosos para realizarem uma convenção em Filadélfia. Três anos mais tarde foi organizada uma nova convencáo na Nova Inglaterra, a qual se reuniu em 1803, em Winchester, New H a m p h i r e . Ela adotou um credo breve que afirmava os princípios básicos J a nova denominaçáo. O s primeiros convertidos ao universalismo eram prcdominantemente das mais humildes camadas sociais.
A época revolucionária americana foi significativa para a religião, uma vez que as correntes de vida e pensamento que tinham sido movidas pelo Grande Despertamento confluíram com outras forças para assinalar uma rransiçáo para a liberdade de crenca. Isso implicou em um novo contexto para as igrejas, no qual modelos voluntários para sobrevivência e crescimento tinham que ser adorados por todas. A oficializacão da religiáo que por catorze séculos marcara a cristandade foi abandonado a nível nacional, com profundas conseqüências para a vida religiosa não apenas na naçáo recém-independente mas para bem além dela, uma vez que esse "experimento vivo" era atentamente observado.
Capitulo 1 1
O Iluminismo (Arifldarung) Alemão
A Inglaterra avançara muito em seu desenvolvimento deísta, racionalista e unitário antes d o aparecimento do metodismo. Lá, as duas correntes marchavam paralelamente. Se o despertamento evangélico fora, teologicamente, em parte um retorno a conceitos doutrinários mais antigos, fora mais ainda um apelo aos fortes e profundos sentimentos religiosos da naçáo. Na Alemanha, o pietismo, com sua tônica
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senti-
mento, precedeu o Iluminismo (AufRlaruzg), embora continuasse a correr paralelamente a este último
ele começou a se desenvolver. O pietismo rompera o
domínio da oitodoxia confessional, mas nzo produzira líderes teológicos quc tomassem o lugar dos antigos reólogos dogmáticos. O espírito crítico, racionalista, do século dezoito, as obras dos deístas ingleses e seus oponentes, a radica1 modificação popular do deísmo na França - tudo isto invadiu a Alemanha e encontrou o campo intelectual praticamente estéril. O resultado foi o rápido crescimento do Iluminismo, como ele mesmo se denominou. Fortemente racionalista, abrigava muitas nuanqas de opiniáo. Mais do que na Inglaterra ou na França, por meio de sua obra crítica e construtiva, o Iluini~lismopreparou o caminho para significativa m u d a n ~ ana teologia que, no siculo dezeno~re,haveria de se espraiar amplamente nos países protestanies. As especulaçóes de Leibniz (ver VII: 1) foram por demais profundas para produzirem poderosa impressáo em sua própria época, embora mais tarde tenham tido enorme efeito. Thomasius (ver VII:5) semeara um espírito racionalista, mas sem criar um sistema. Sua influência foi marcada pelo desei~voli~imento de uma atitude ~riental,tanto que não é por acaso que ele tem sido cha~iiadoo "abridor do caminho do Ilun~inismo".Seu grande protagonista, no entanto, foi Christian Wolff (1679-
1754). Não sendo um gênio criativo, Wolff incorporou e expressou de tal forma o pensamento informe c inarticulado de sua época que sc tornou o líder filosbfico e teológico de duas gerações de coniparriotas. Perito em matemática, como muiros dos filósofos do seu século e do precedente, começou ensiilando matemárica em Halle, eiri 1707. A i sua filosofia rapidamente se deserivolveu, em íntima conexáo
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HISTORIA DA IGREJA ERISTÃ
com a de Leibniz, cujos profundos pensamentos, porém, Wolff nunca captou. Ele ensinava que somente é verdade aquilo que pode ser demonstrado pela certeza Iógica, semelhante a matemática. Assim, a verdade deve ser deduzida racionalmente do conreúdo inato da mente - a "razáo pura". Tudo o que procede da experiência é meramente contingente e confirmatório. O mundo é composto de uma infinidade de substâncias simples, cada uma dotada de força, embora náo com todas as qualida-
des das mônadas de Leibniz (ver VII: 1). Os corpos são agregacóes desras subsrâncias. O mundo é uma gigantesca máquina, regida por leis mecânicas. A alma é aquilo que em nós está consciente de si mesmo e de outros objetos. Ela está dotada com as capacidades de conhecimento e de desejo. A realização completa destas capacidades é o prazer; a incompleta é o sofrimento.
Posto que o mundo é contingente, deve ter uma causa. Conseqüentemente, Deus existe e fez o mundo. As leis de toda acáo e pensamento racional nos fornecem os atributos divinos. Uma vez que realiza~áocompleta é o mais elevado aIvo de todo ser, tudo o que almeja a realizacá0 completa de nós mesmos e dos outros homens deve ser vrrtude. Por conseqüência, os princípios da ação correta estão corporificados, como com os deístas, na constituicáo fundamental divinamente ordenada do homem. Wolff náo negava que houvesse reveIaqáo, mas declarava que ela náo poderia conter nada em desacordo com a razáo. Ele achava que os milagres sáo possíveis, embora improváveis, e cada milagre implicaria dois atos de igual poder: a interrupçáo da ordem natural e sua restauração depois do evento. A opinião de Wolff com respeito ao ser humano era otimista. Este marcha, individual e socialmente, para uma realizaçáo mais ampla. Tudo isto significava um distanciamento da teologia
anterior, tanto a ortodoxa como a pietista. E tal distanciamento se apresentava aos seus dias com a conclusividade de uma demonstracão lógica. Embora Wolff permirisse algum espaço para a rcvclaçáo c o milagre, para ele os objetos apropriados para a consideracão religiosa náo sáo nem a revelaçáo sobrenatural nem o resgate sobrenatural do pecado e da ruína, mas Deus, religiáo natural, moralidade implantada originalmente e progresso rumo à perfcicáo individual e racial. Também o ser humano náo é um ser desesperado ou incapaz, como na teologia anterior. As idéias de Wolff suscitaram a hostilidade de seus colegas pietistas de Halle. Em 1723 eles buscaram sua demissáo junto ao rei Frederico Guilherme I (17 13-1740).A decisáo real, mesmo para eles, foi surpreendentemente severa: foi ordenado a Wolff que deixasse a universidade dentro de quarenta e oito horas ou seria enforcado. Ele
PERIOBD YII
O CRISTIANISMO MODERNO
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encontrou refúgio em Marburgo, e mais tarde Frederico, o Grande, restaurou-o honrosamente à sua cátedra em Halle, em 1740. Sua obra, entrementes, se convertera em propriedade pública. A ela pouco pôde adicionar nos catorze anos que ainda passou em Halle até sua morte. Seu pensamento se rornou o de grande parte da Alemanha. Terminara o domínio do pietismo em Halle. Menos radical, mas influente no auxílio à nova aticude do pensamento alemão, foi Johann Lorenz von Mosheim (1694?-1755),professor em Helmstedt e finalmente em Gottingen. O mais admirado pregador do scu tempo, senhor de brilhante estilo em latim e em alemáo, foi basicamente um sobrenaturalista racional. Não nutria simpatias pelo dogmatismo dos ortodoxos. As ênfases dos pietistas náo suscitavam sua rcaçáo; nem podia ele apoiar o racionaiismo extremo de Wolff. Perscrutou muitas ireas do pensamento religioso, e sua influêricia, no geral, fiavorcccu a difusiio do Iluminismo. Sua contribuicão principal, porém, foi no campo da história. Sua
instrtzitionesHisto~iaeEcclesiasticize, publicada pela primeira vez em 1726 e em forma i h a l em 1755, abarcou toda a história da igreja. Em seu Comlizentirrii de rebus Ch~i~tinnorum ante Co~stizrztinum(1753), tratou dos primeiros séculos de forma mais ampla. Bem merece Mosheim o título de 'pai da moderna hisrória da igreja". Ele almejava se livrar de toda parcialidade partidária, e o conseguiu em grande rnedida, às custas de certa insipidez. É sua a primeira histbria da igreja a almejar relatar os eventos exaramente como acor-itecerarn,sem uma causa a defender. Como tal, e por motivo de sua er~idicáoe estilo, sua obra lhe sobreviveu por longo tempo.
O racionalismo mais extremado também encontrou seus representantes na Alemanha. Hermann Samuel Reimarus (1694-1768),por muito tempo afamado professor de línguas orientais em Hamburgo c líder dos círculos eruditos da cidade, na juventude viajara pela Inglaterra e lá adotara idéias deíscas. Muito escreveu em defesa delas, mas suas obras só foram publicadas depois de sua morte por intermédio de 1,essing entre 1774 e 1778, como fragnientos encontrados na biblioteca de Wolfenbiittel - daí Fudgmentos de Wolfenbiittel. Esta pubIicaçáo provocou imensa discussáo. Como para os deístas, também para Reimarus tudo o que é verdadeiro é aquela religião natural que ensina a existência de um Criador sábio, uma moralidade original e a imortalidade - tudo isso verificável pela razáo. O mundo mesmo é o único milagre e a única revelaçáo; quaisquer outros são impossíveis. Os escrirores da Bíblia nem sequer foram homens honestos, mas impelidos pela fraude e pelo egoismo. Um curioso comentário sobre as condi~óesdo pensamenro na Alemanha é que
os escritos de Reimarus, embora deveras criticados, não tenham sido menos valorizados por outros como uma defesa da religião contra o materialismo e o ateísmo. Cotthold Ephraim Lessing (1729-1781),a quem se deveu a publicaçáo dos escritos religiosos de Reimarus (embora ele riáo concordasse inteiramente com Reimarus), eminente dramaturgo e crítico artístico e literário, partilhando um lugar entre os escritores clássicos com Goethe e Schiller, apresentou em sua Educaçáa da Rapz Hu-
mana (1780) uma teoria muito plausível. Da mesma forma que o indivíduo passa pelos sucessivos estágios da infância, juventude e maturidade, assim tanibérn a raça humana. As Escrituras foram dadas por Deus para satisfazerem a estas necessidades.
A in8ncia é impulsionada por recompensas e castigos imediatos. O Antigo Testamento t um iitrro ditrino de preparo para as pessoas nessa condição, com promessas de vida longa e bênçáos temporais pela obediência. A j~iiren~ude está pronra a sacrificar a tranqüilidade presente e os bens menores pelo êxito e felicidade no futuro. Para ela, ou para pessoas nesse estágio, o Novo Testamento com sua presente autoentrega e eterna recompensa, é um guia adequado. Mas na maturidade, o que governa é o dever, sem esperança de recompensa ou temor da punicáo como motivacáo. Seu guia C a razão, embora talvez Deus ainda possa enviar mais alguma reveIacâo em seu auxílio. A obra de Lessit-ig difundiu amplamente, na Alemanha culta, o sentimento de que a religião cristá histórica perrencia a um esrágio passado do desenvol~ i m e n t ohumano ou a um estágio inferior presente.
C1 resulrado do IIuminismo foi uma difusão ampla da idéia que somente eram de valor nas Escrituras as verdades da religião natural e sua moralidade, despidas do milagroso ou do sobrenatural. Jesus fora um mestre moral mais que centro particular
de f6. Isro era racionalismo e caracterizou muito o mais vigoroso pensarnenro teológico da Alemanha desde 1800, e continuou forte no século dezenove. A ortodoxia confessional e o piccismo prosseguiram paralelamente ao racionalisrno, ainda que com decrescente apelo intelectual e muito daquilo que se poderia chamar semiracionalismo. Contudo, a época também se carac~erizoupor forte polêmica contra o supersticionismo, por um gratide desenrolvimento da beneficrncia popular e voluntária, e pela irnplemeriracáo da irisrrugáo do povo.
O século dezoito cambém foi marcado, e em Iugar algum tanto quanto na Alemanha, pela ar-r~pliac;ão dos estudos textuais e históricos da Bíblia, os quais deram início ao moderno período do criticisnio.
0 erudito inglês John Mil1 (1645-1707),p~ibli-
cou um testamento grego, baseado em cuidadosa comparaqáo de manuscritos, rio
praioso YII
O CRISTIINISMO MODERNO
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ano de sua morte. Jean le Clerc (1657-1736),educado em Genebra, depois arminiano em Amsterdam desde 1684 até sua morte, granjeou fama como exegeta por seus intentos em explicar o ensino das Escrituras sem preconceitos dogmáticos - abordando-as não em busca de textos de prova, mas seu real significado. Johann Albrecht Bengel (ver VII:5), por muito tempo diretor do seminário teológico em Denkendorf, em Wurtcemberg, homem de inclinacão pietista, foi o primeiro a reconhecer que os manuscritos do Novo Testamento podem ser agrupados em famílias e a estabelecer a regra crítica, normalmente aceita, que deve ser preferida a leitura mais difícil em detrimento da mais fácil. Seu Gnomon, ou Índice, do Novo Testamento (1742), foi o comentário mais notável até encáo produzido. Nada, diz ele, deve ser lido na Escritura se lá náo estiver, e nada que Iá está que possa ser esmiuqado pela mais rígida aplicaçáo dos princípios gramaticais deve ser omitido. Wesley fez disto a base de suas
N o t a S o b e o Novo Testanzento (1755). Na mesma época, Johann Jakob Wetatein (1693-1754), de Basiléia e Amsterdam, despendeu quase a vida inteira trabalhando em seu Novo Testamento Grego com Diversas kr.iantes, publicado em 1751-1752. Assim, a crítica textual e a exegese sadia progrediram muito. Deve-se a Jean Astruc (1684-1766), real professor de medicina em Paris, o anúncio, em seu Conjeturds (1753), do caráter composto dc Gê?zesi,.. Em 1781 a teoria conquistou o apoio fundamental de Johann Gottfried Eichhorn (1752-1827), mais tarde professor racionalista em Gottingen, por vezes chamado "fundador da crítica do Antigo Testamento". Mas foi somente na parte final do século dezenove que a. descoberta de Astruc alcançou extenso reconhecimcnco. Em Johann August Erncsti (1707-1781), professor em Leipzig desde 1742, a Alemanha ceve um mestre que náo apenas auxiliou sobremaneira aquele despertamento do pensamento e ideais clássicos que influenciou a vida intelectual alemã no final do século dezoito, rnas também aplicou à interprcração do Novo Testamento os mesmos princípios que aplicava a literatura clássica. O sentido deve ser determinado pelos mesmos métodos gramaricais e históricos tanro em u m campo colilo no outro. Rcimarus em seu sétimo Fragmenro, publicado por Lessiilg em 1778, pela primeira vez submercu a vida de Crisro a rígidos métodos historiográficos, iguais aos que se aplicavam a história secular. Sua total rejeiláo do sobrenatural, do mítico e do lendário deixori suas conclusóes bastance estéreis, mas ele suscitou questóes de método e conclusáo que desde então têm constituído em grande parte os problemas dessa área de pesquisa. Johann Salomo Semler (1725-179 I), professor em Halle a partir de
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HISTÓRIA DA IGREJA G R I S T ~
1752, teve formaçáo pietisra mas tornou-se na maturidade um racionalista conservador. Sua importância residiu nos rumos que indicou mais que nos resultados clue obteve. Ele separava as verdades permanentes da Escritura dos elementos devidos às épocas ern que foram escritos os diversos livros e negava igual valor a todas as partes da Escritura. A rcvelacão, ensinava, esti na Escricura, mas nem toda a Escritura é revelaçáo. Os credos da igreja eseáo em crescimento. A história da igreja é um desenvolvimento. Em particulal; fez distinçáo entre os grupos pctrinos, judaizantes, e os grupos paulinos, antijudaicos, na igreja primitiva. Esta distincáo desempenharia um grande papel nos debaces posteriores.
Capitiilo 12
Tendências no Pensamento Protestante Alemáo no Século Dezenove Nada parecia mais característico da primeira metade do século dezoito que o domínio da "razão", ou senso comum. O espírito da época era não emocional, intelectual. EIc efetuou tremenda obra no questionamento daquilo que fora aceito por tradição, na eliminacá0 de velhas supersticóes e abusos, e na exigência de legirimidade do que quer que almejasse ter autoridade. Porém, era frio e parcial. Conforme o século dezoito rranscorria, levantava-se contra tal espírito imensa oposiyáo. As reivindicaci7>esdo sencimento se afirmavam, expressas em um "retorno à natureza" que era muitas vezes uma natureza fruto apenas da imaginacáo, mas acompaniiado por um renovado apreco
elo ciássico e elo medieval, e por um reavivamento do senti-
do do sobrenatural na religião, freqiiencemente vago e obscuro mas que criava unia atmosfera totalmente diferente na qual eram afirmadas as reiviildicaçóes das pessoas de serein sencimento, ao invés de simples pensamento. Seu primeiro e mais eficiente apóstolo foi Jean Jacques Rousseau (1712-1778), mas o movimento se manifes~ounão apenas lia Franca como em coda a Europa. Em nenhum lugar se evidenciou tanto como na Alemanha. Lessing dele participou. Seus mais notáveis representarices literários foram Johann Wolfgang von Goethe (1749-
1832) e Johann Christoph Friedrich von Schiller (1753-1805). O velho racionalismo náo foi varrido de cena, mas modelos radicalmente diferentes de vida e pensamento, geralmente referidos sob o termo genérico "romantismo", disputaram mais equilibradamente a preferência.
No século dezoi~o,a filosofia parecera ter levado a um beco sem saída. Leibniz ensinara que todo conhecimento era uma elucidaçáo do que estava contido inatamcnte na mônada. Wolff afirmara o poder da "razão pura" de fornecer as únicas certezas. Por outro lado, Locke ensinara que tudo procede da experiência, e embora Hume tenha duvidado de toda conclusáo baseada em causa e subsrância, ele considerava, como Locke, que todo conhecimento se fundamentava na experiência. As rendências inglesas e alemãs pareciam mutuamente excludentes. Seria obra de Kant combináias e superá-las sobre uma nova base, que viria a ser o ponto de partida da filosofia moderna, e dar ao sentimento um valor que nenhum dos grupos anteriores havia reconhecido. Por um lado, Kant foi o clímax e o cumprimento da religiáo racionalis~a, iluminista. Mas por outro lado, foi também crítico do Iluminismo, desnudando suas fraquezas e lirnitaqóes, solapando assim sua influência e revelando a necessidade de novas abordagens, as quais apareceram no início do sCculo dezenove. Emanuel Kant (1724-1804) era naturd de Konigsberg, onde passou toda sua vida. Sua ascendência paterna, segundo acreditava, era escocesa. As primeiras influências que recebeu foram pietistas. Em 1755 começou a lecionar na universidade de sua cidade. Foi lento o seu desenvolvimento. A princípio, ateve-se h escola de Leibniz e de Wolff, mas começou a questioná-la após estudar Hume, ainda que náo tenha se tornado discípulo dele. Rousseau influenciou-o sobremaneira com a "descoberta da natureza do homem profundamente escondida". Em 1781 surgiu a obra de Kant, que marcou época, Critica da Razão Pura - um golpe disparado principalmente contra a então dominante filosofia de WoIff. Rapidamente se seguiram seus tratados formativos e seu pensamento logo se tornou poderoso na Alemanha. Cerca de 1797 sua força física e mental começou a declinar e terminaria em iamentável ruína. Homem de estatura fisica pequena, jamais casou, de retidáo moral severa, dedicou-se à sua tarefa com singular simplicidade e fidelidade.
O sistema de Kant é, em muitos aspectos, uma teoria do conhecimenro. Como Locke e Hume, ele sustentava que algo em nosso conhecimento, ou algum estímuio - a "percepcáo"
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vinha de fora da mente. Como Leibniz e Woiff, ele assegurava que
a mente possui certas qualidades intuitivas, transcendentes no sentido de que não
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llt~TORl.4 OA IGREJA CRISTi
procedem da experiência, e quc condicionam e dáo forma ao que vem de fora. Tempo e espaço constituem a estrutura na qual as percepqóes são ordenadas. A mente classifica o que lhe vem de fora de acordo com suas próprias leis, que sáo as "categorias". Portanto, o conhecimento é o produto de dois elementos - percepçáo vinda de fora, a quaI recebe forma segundo as leis da mente. Esres dois elemenros fornecemnos experihcia; fornecem-nos porém, conhecimento iiáo do que as coisas são em si mesmas mas somente daquilo que nossas mentes fazem do que lhes veio de fora. É intelectualmente iinpossível deinons[raçóes a partir da "razáo pura", como Wolff procurara Fazer, de Deus, da religiáo natural e da constituição do universo. Náo podemos demonstrar a natureza destas existências rais como são em si mesmas. A natureza pode ser estudada como o reino da lei exata, mas a lei é simplesmente aquela do riosso próprio pensamento. Conquanto o conhecimento absoluto daquilo que esrá além da experiência seja inatingível por processos meramente intelectuais, o ser humano tem consciência de um sentimento de obrigação moral quando pergunta o que deve fazer. Este terna ff Quando o ser humano responde Kant abordou em Critica da RazZo P ~ d t Z ~(1788). à pergunta sobre como se conduzir, ele sente dentro de si um "imperativo categári-
co" - imperativo porque C urna ordem; categbrico porque é incondicional. É agir de ta1 modo que os princípios da acáo possam se tornar em princípios de lei universal; numa frase, "Faze o que deves". Esra lei moral inrerna é a mais nobre das possessóes I-iumanas, interpretando os seres humanos como personalidades e náo como máquinas. Nesse "iniperativo categórico" estáo unidos três postulados, ou pensamentos inseparáveis. O mais evidente é que, se o ser humano deve cumprir seu dever, é porque ele pode. Conseqüentemente, tem que ter liberdade. E a liberdadc nos dá um vislumbre de um reino supra-ser-isorial de propósito moral - uma esfera de ordem moral. O segundo pos[ulado é o da imortalidade, para conceder oportunidade total para o eu alcancar o bem mais elevado. Intimamente ligado a este está o tercciro postulado. A virtude deve resultar em felicidade, mas a experiência náo produz esta uniáo. Conseqüentemente, sua realizaçáo exige um poder que possa unir os dois. O terceiro postulado, por conseguinte, é Deus, cuja existência na "razáo pura" é apenas uma hipótese; nos postulados da razáo prática, porém, se rorna uma convicqáo. Quando Kant apresentou suas idéias reIigiosas, baseando-se na razáo prática ao invés de basear-se na razáo pura o u teórica, era a conilecida fé racionalisra d o Iluminismo que estava apresentando. Sua Xeligizo Dent~odos Limites d ~ Razúo i So-
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O CRISTIANISMO MODERNO
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mente (1793), enfatizou a moralidade como o primeiro conceúdo da razão prática e reduziu a religião praticamente à ética ceísta. O ma1 e o imperativo categórico lutam pela obediência do homem. Quem é governado por este princípio do bem moral - o imperativo categórico - agrada a Deus, é um filho de Deus. O mais belo exemplo desta &liação é Cristo. A igreja irivisiveI é a união ideal de todos quantos obedecem à lei nloral. A igreja visível é uma união para desenvolver esca obediência. Sua completa racionalizaçáo será o reino de Deus. A c o n t r i b ~ ~ i ~deá oKant à teologia cristã iiáo foi sua interpretação racionalista das doutrinas, mas sua vindicaçáo dos profundos sentimentos do homem como bases da convicgáo reIigiosa prática e conduta moral. Os românticos logo desenvolveram este pensamento em rumo bastanre diferente do de Kant.
A interpretaqáo histbrica da Bíblia recebeu um impulso drcisivo por parte de Johann Gottfried von Herder (1744-1803),que na juvenrude foi amigo chegado de Goethe, e que sofreu, em concato pessoal com Kant, a influência deste. Herder foi valoroso defensor do movimento romhtico. Desde 1776 até sua morte foi prepdor da corte em Wcimar. Scu Eqirito da Poesia Hebi-aicu surgiu em 1782- 1783. Sua
Filosofix dn HHói*iu dn H~~mnnidade, em 1784-179 1. A religião, especialmente o cristianismo, é a corporificacáo do que é mais profundo nos sentimentos da humanidade. As Escritiiras devem ser enteiididas iluz das idtias e sentimentos das épocas em que foram escritos os vários livros. Elas são, por coiiseguinte, essencialmente literatura religiosa. Nas Escrituras deve ser distinguido o verdadeiro e permanente do temporário e Iocal. Dcscc movimento romântico surgiu o teólogo alemão mais influente do início do século dezenove e cuja obra tem modelado o pensamenro religioso muito alkm dos limites de sua terra natal - Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834). Filho de um cape150 do exército da Prússia, foi educado pelos inorávios, caiu sob a influência das idéias de Wolff e Semlei; e depois foi grandemente impressioliado por Platáo, Spinoza, Kant e o romantismo. Em 1796 tornou-se capeláo hospitalar em Berlim, eiltáo centro do Iluininismo, e ali publicou, em 1799, seu notive1 L)i.i~.z~i-so~
sobre a Religzao. Tais discursos eram endereyados aos "desdeiihadores cultos" da religião. Nclcs apresentou seus pensamentos fundamentais, profundamente influenciados pelas correntes românticas. De 1804 a 1807 foi professor em Halle, quando se escabeleceu uina vez mais em Bcrlirn, tornando-se, pouco depois, psscor da Igreja da Trindade. Em 18 10, ao ser fundada a U~iiversidadede Berlim, foi nomeado profes-
HISTOAIA DA IGREJA CRI SI^
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sor de teologia, posro que ocupou até falecer, em 1834. Em 1821- 1822 apresentou suas idéias enráo amadurecidas em A Fé Cristn' Segundo os PrincQior da Ipqa Evnngé-
lica; a segunda edição definitiva apareceu em 1830. A significaçáo principal de Schleiermacher está em que incorporou em seu próprio sistema os resultados de tendências anteriores, deu à teologia nova base e i pessoa de Cristo um significado em grande parte desconhecido em sua Cpoca. Tanto a or~odoxiacomo o racionalismo tinham tornado a religiáo essencialmente a aceita+O
de um sistema intelectual e uma regra de conduta externamente irnpositiva. Para
os ortodoxos, a religiáo se baseava na aceitaçáo das verdades da revelaçáo e na obcdiência à vo~itadede Deus. Para os racionalistas, era o assentimento da teologia natural e da moralidade universal determinada pela razão. Ambos os grupos, no século dezoito, consideravam a religião e a moralidade principalmente como meios para assegurar a felicidade na imortalidade; também para Kant, a religiáo era um tipo de acáo moral. Para Schleiermacher, a religiáo pertence ao reino do "sentimento", não como emoçáo mas como um sentido, gosro e intuicáo para o infiniro. Em si mesma, a religiáo não é nem um corpo de doutrinas, reveladas ou racionalmente abonadas, nem um sistema de conduta, ainda que ranto a crença como a conduta nasçam da religião. Schleiermacher romou muito de Spinoza, Leibniz e Kane. Em nossa experiência as antíteses do múltiplo e cambiante contra um princípio cie unidade e permanência. Estas antíteses nos dão o Absoiuto e eterno - Deus, sem o qual tudo seria caos - e o mundo, sem o qual tudo seria vazio. O Absoluto está em tudo. Deus está, portanto, imanente em seu mundo. O homem é, em si mesmo, como para Leibniz, um microcosmo, um reflexo do universo. Quando concrastado com o que é universai, absoluro e eterno, sente-se finito, limitado, temporário - numa palavra, dependente. Este sentido de dependência é a base de toda religiáo. Schleiermacher ensinava que a piedade subjacente aos grupos religiosos não é nem conhecimento nem aqáo, mas uma deterrninagáo de sentimento ou de autoconsciência imediata.'
O alvo de todas as religiões é lançar uma ponte sobre o abismo entre o uiiiversal e o finito, colocar o homem em harmonia com Deus. O valor de cada religiáo reside no grau de realizacáo deste resulrado. Conseqüentemente, as religióes náo devem ser
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O CRISTIANISMO MOOERAD
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divididas em falsas e verdadeiras, mas quanto aos seus relativos graus de eficiência. Todos os progressos em religiáo na história são reve1ai;ões em um sentido verdadeiro, uma plena manifestacão à consciência humana do Deus imanente. De todas as religiões já conhecidas pelo homem, o cristianismo 6 a rnelior, pois é a cjue mais cabalmente alcança o alvo de todas elas. Seus
são os mais fundariienrais de
todas as religiões: pecado e perdão, separaqáo e reconciIiaçáo. Na religião cristá, a pessoa de Cristo é o elemento central. Ele mesmo é a reconciliacão do finito com o universai, do temporal com o eterno - a uniáo de Deus com o homem. E ele, entáo, o Mediador desta reconciliação com outros. Consequentemenre, Schleiermacher foi profundarne~itecristoc6ntrico. A vida assim unindo o temporal e o eterno - hurnanidade e Deus - agora é imortal. Uma imortaIidade eni duraçáo é uma grande esperali$a, mas a verdadeira imortalidade é uma
de vida mais que uma simples
questão dc duracáo. As doutrinas sáo relatos das afcicóes religiosas expressas em discurso; elas sáo definições e interpretacóes de experiências religiosas fundamentais, mas estas explicacóes têm apenas um valor relativo e secundário. Elas sc tem modificado e podem modificar-se novamente. Sáo simplesmente as formas pelas quais a verdade duradoura se expressa de tempo em tempo. Segundo as idéias de Schleiermacher, a moralidade é o resultado da compreensão correta daquilo de que cada ser humano é parte - a família, a comunidade, o estado, o mundo. Tal visão mais ampla da parte humana nestas relauóes expulsará o egoísmo e o egocentrismo. A moralidade não é religião, nem a religião é moralidade; mas a religião é a amiga indispensável e defensora da moralidade. Ela faz insistentemente a pergunta: "O que deve ser, à luz da consciência crisrãi" Schleiermacher foi condenado pelos ortodoxos da sua época como muito radical e pelos racionalistas como muito visionário, mas ningiiém influenciou tanto, ou mais diversamente, o pensamento religioso nos círculos protestantes no século dezenove.
O sistema de Kant continha duas dificuldades evidentes. Negava o poder dos processos intelectuais em fornecer o conhecimento das coisas como elas são em si mesmas, e nRo explicava como os processos mentais sáo nccessariamence os mesmos em todos os indivíduos. Johann Gottlieb Fichte (1762-18 14), Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775- 1854) e principalmente Georg Wilhelm Friedrich Hegcl
(1770-1831), procurando, sob a influência do romantismo, esclarecer estas duas
dificuldades, desenvolveram a corrente filosófica denominada idealismo. Hegel era natural de Stuttgart e educado em Tubingen. Lecionou em Jena, com poucos resultados, de 1801 a 1807. De 1 808 a 18 16 foi diretor do gymriasium de Nurnberg Em 1818 foi indicado para o professorado em Berlim, onde sua fama cresceu rapidamente até ser considerado o maior fiibsofo de seu tempo na Alemaiiha. Morreu de cólera, no auge de sua reputaçáo e atividade. Para Hegel, o universo é um desenvolvimento constante do Absoluco - isto é, Deus - por meio de luta e esforço. O Absoluto é Espírito, e seu desenvolvimento está de acordo com as leis pelas quais a Mente pensa de si mesma logicamente. Simultaneameilre um pensador dialético que buscava permancntemenre a reconciliaçáo de contrários eili uma unidade mais elevada e um filósofo preocupado com padróes tríades, que ele desenvolveu de maneiras diversas e complexas, Hegel ocasionalmei~te urilizava a terminologia tese-antítese-síntese, que era muito mais utilizada por Fichte.
Um dado movimento, a cese, procede numa direção até encontrar oposiçáo ou sua limitação, a antítese. As contradições náo são simplesmente aparentes ou acidentais, mas necessárias.' A tensáo dialética é superada quando tese e antítese se juntam em uma uniáo mais elevada, a síntese. Por exemplo, concra "idéia", a tese, está "natureza" como a antítese - mas as duas se juntam em síntese mais elevada na "humanidade", que é a uniáo da mente com a matéria. Posro que tudo o que existe C o Absoiuto desenvolvendo-se de acordo com as leis de todo pensamento, as leis do pensamcnto sáo as leis das coisas; e visto que nosso pensamento é um fragmento daquele do Absoluto, a medida que for verdadeiro nos fornecerá verdadeiro conhecimento das coisas fora dc nossas mentes e 6 o mesmo em rodas as mentes, uma vez que é parte do único Absoluto. Visto sermos porcóes do Absoluto aicariçando consciência, o dever do espírito finito é perceber sua relaçáo com o Absoluto, e cal percepçáo é a religiáo. De fato, a rcligiáo pode começar no sentimento, como dizia
Sclileiermacher; mas para ser verdadeira, deve [ornar-se em conhccirnento verdadeiro. Assim, toda religiáo é uma tentativa para conhecer Deus. Dentre as diversas religióes o crisrianismo é a percepçáo mais cornpleca. Deus está sempre se esforçando em se revelar, mas este esforço externo sempre tem que ser efetuado através dos três estágios t~eçessáriosdo desenvolvimento. Assim, o Pai é a unidade divina - a tese. Ele se objetiva no Filho - a antítese. O amor que os une é o Espírico Santo - a síntese. O qbid., pp. 88-91
PIRIOBO YII
O ERISTIANISMO MODERNO
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processo completo nos dá a Trindade. Assim também com a encarnaçáo: Deus é a tese; ele se distingue da humanidade finita, a antítese; ambos se juntam na síntese mais elevada, o Deus-homem. O sistema de Hegel muito fez para substituir a antiga distincáo aguda entre o divino e o humano pelo sentimento de sua unidade fundamental, táo predominante na teologia protestante do século dezenove.
A amplitude, o poder e a engenhosidade da síntese de Hegel granjearam-lhe grande popularidade; seu sistema se tornou o mais influente nos meios filosóficos do seu tempo e causou grande impacto no mundo do pensamento em geral. Embora Hegel tenha sido filósofo da religião e não reólogo, sua abordagem influenciou profundarnencc a teologia. Suas idiias logo foram fortemente desafiadas, mas concinuaram a atrair intérpretes, csyecialmente na Inglaterra e na América, por toda a última mera-
de do século dezenove. A teoria do desenvolvirnen~ode Hegel teve importante aplicacão na crítica do Novo *I-estamentona obra de Ferdinand Christian Baur (1792-1860), professor em Tubingen de 1826 até sua morte e fundador da escola de teoIogia deTubingen. Baur contribuiu sobremaneira para a hi~torio~rafia e história da igreja e para o desenvolvimento da teologia histórico-crítica. Ele rejeitou a escolha entre racionalisrno e sobrenaturalismo e buscou ao invés superar a antítese entre eles. Os tracos essenciais dc sua interpreta~áobíblica foram esboçados em sua apreciaçáo dos partidos na igreja de Corinto, ~ublicadaem 1831, e foram ~ubse~uenrerneiire desenvo~vidosnuma
série de brilhantes estudos que conquistaram muito discípulos. Suas pesquisas prepararam-no para aceitar muito da obra de Hegel por volta de 1835; ele interpretou o progresso hisrórico através dos três estágios da tesc, antítese e sintese. Semler (ver
VI1:l 1) j5 ensinara a exisdncia dos partidos petrino (judaizantc) c paulino na igreja pri~iiitiva.Estes se tornaram os elemer-iros da tríadc hegeliana. O cristianismo, assim ensinou Baur, coineçou essencialmcnte como judaísmo messiânico. Esta - a tese - era a posiçáo dc rodos os apóstolos originais. A antítese necessária surgiu na forma do
cristianismo paulino. As perspectivas pctrina e paulina lutaram aré meados do segundo século. A síntese inevieávcl veio eventualmente com a primitiva igreja católica, que reverenciava tanto a Pedra quanto a Paulo, inconsciente do quanto eles esti\-eram em séria oposicáo.
O uso mais debatido feito por Raur desta reconçrrugão da histhria inicial da igreja foi iluina revisão na datacáo dos livros do Novo Testanlento. Eles tinham que rcvelar os preconceitos dos vários aspectos desse desenvolvimento - ou seja, tinham
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HISTORIA DA IGREJA CRISTÁ
que demonstrar "tendências". Aplicando esse teste, Baur considerori somente Romanos, Gáiatas e Coríntios como cpíscolas genuinamente paulinas, pois eram as únicas a apresentarem resquícios do conflito. As demais não revelam a luta e conscquentemente devem ser datadas posteriormente, quando cal luta já era uma história esquecida. O Livro do Apocalipse era do início e judaizante. Em 1847 Baur direcionou sua pesquisa para os Evangelhos, uriiizando o mesmo método. Mateus revela tendências judaizanccs e portanto é o mais antigo. Lucas provavelmente é uma reelaboraçáo do evangelho de Marciáo (ver I1:2). Marcos tentou ocultar o conflito e é pos~crior, segundo Baur, enquanto Joáo é náo só irênico como também revela familiaridade com as coiltrovérsias da segunda metade do segundo século. A maior parte do Novo Testamento, portanto, foi escrita no sezundo sécu1o.
A discussáo de Baur suscitou inúmeros defensores e antagonistas. Seu efeito último sobre a pesquisa neotescamentária foi muiro frutífero. Estes debates aumentaram sobremaneira o conhecimento da igreja primitiva e de sua literatura. Seus resultados, poi-em, rêm sido a melhor resposta às próprias teorias de Baur. Ele não tinha uma compreensão adequada do significado de Cristo no desenvolvimento da igreja primitiva. Houve diferenças importantes encrc o cristianismo judaico e o paulino, mas reduzir as reações intelectuais do cristianismo nascenrc a rais diferencas apenas é muito simplismo. Houve muiras outras instâncias de diferenqa. Acima de rudo, um crescenrc conhecimento do segundo seculo e uma apreciaçáo de sua armosfera, impossível ao tempo de Baur, tornam inconcebível que os livros que ele atribuiu ao segundo sCculo possam,
elo menos na sua maior parte, ter sido escritos naquela
época. Eles não são daquele s&culonem de seu ambiencc. No tempo em que Baur cornecou seu trabalho, e durante a geração seguinte, os terílogos alemáes escavam divididos em crês grupos principais. Num extremo se cnconcravam os racionalistas, conrinuasáo do tipo do fim do século dezoito. Dentre eles, nenhum tcvc maior infl~iênciaque Heinrich Eberhard Gocelob Paulus (1761-
1851), professor em Jena desde 1783, e depois, na parte final de sua longa vida, como professor em Heidelberg (1 8 1 1-1 844). Inimigo de todo sobrenaturalismo, sua
Vicia deJesus (1 828), é típica da dureza do racionalismo daquele período. Ele explica a caminhada de Crisro sobre as águas como um engano dos discípulos, que o viram no meio da névoa andando as margens do lago. A alimenraçáo dos cinco mil foi possível gracas à generosa liberalidade com que Cristo distribuiu o pouco alimento que tinha, assim despertando a generosidade dos que entre a rnultidáo possuíam
despertado por um terremoto, retomando aos seus discípulos.
A ortodoxia confessional do modelo mais inflexível teve notável representante em Ernst Wilhelm Hengstenberg (1 802-1 869), professor em Berlim desde 1826 até falecer. De início, esteve sob a influência racionalista, depois foi líder, por algum tempo, nos meios pietistas. Em 1840 se tornou vigoroso defensor da ortodoxia luterana, enfatizando teorias mais antigas da inspira~áoe autoridade da Bíblia. Resistindo tanto às perspectivas idealistas como às racionalistas, a ortodoxia confessional procurou restaurar a doutrina e ordem característica da primitiva ~grejaluterana, ou seja, "repristiná-la". Frequentemente o movimento esteve aliado com o conservadorismo político; em Bcrlim, a influência de Friedrich Julius Stahl (1802-
186I), professor de direito, conduziu vigorosamei~tenessa direçáo. E m Mecklenburg, l h e o d o r Kliefoth (18 10- 1895) e F. A. I'hilippi (1809- 1892) afirmavam que pureza de doutrina é o sinal da verdadeira igreja e que, uma vez que a igreja luterana tem em suas confissões de fé a verdade completa, ela é tal igreja. Entre os dois extremos havia uma escola "mediadora", pofundamente iiifluenciada por Schleiermacher, partilhando de sua calorosa inclinagáo para o sentimento cristão, talvez até mais intensificada e, como ele, dedicada forternence ao Cristo pessoal, porém disposta a aceitar muitos dos resultados da crítica, e~~ecialinence com referência i inspiracáo e narrativas bíblicas. Um dos mais influentes dentre estes teólogos "mediadores" foi Johann August Wilhelm Neander (1789- 1850). De origem israelita, seu nome original era David Mendel. O nome pelo qual é conhecido ele o tomou ao ser batizado, em 1806, para indicar seu novo nascimento. Aluno de Schleiermacher, em Halle, foi pela influência de seu mestre que chegou ao professorado, em Berlim, em 1813, o qual desempenhou com distinqáo até a data de sua morte. Neander voltou sua atençáo para a história da igreja, escrevendo uma série de notáveis monografias. Em 1826 p~iblicouo primeiro volume de sua Históriu da Re-
lkiáo e da Igreja C~zsrás,obra em que trabalhou até o fim da vida. Notável pelo exaustivo uso das fontes, a cotlccp~áode Neander de história da igreja era a de uma vida divina em crescente domínio sobre a vida dos homens. Esta vida se manifesta em indivíduos. Por isso a obra de Neander foi uma série de admiráveis retratos biográficos. Sua fraqueza estava na demasiada ênfase sobre a influência de indivíduos e sua pequena apreciaçáo da vida insritucional ou corporativa da igreja. Mesmo assim, colocou a história da igreja sob nova perspcctiva. 'I'áo significativos quanto seus
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HISTÕRIA DA IGREJA
ERISTI
escritos foram a influência do interesse pessoal de Neander por seus alunos e sua confianca cristã ingênua, inocente. "O coracáo faz o teólogo", frase com frequência em seus lábios, expressa seu caritcr. Poucos homens foram pessoalmente mais prestimosos ou mais queridos. Semelhante influência pessoal teve Friedrich August Gortreu Tholuck (17991877), que em 1823 tornou-se professor em Berlim, e então ocupou a críredra em Halle desde 1826 até sua morte. Embora simpatizatite do pietismo, aceitava o criticismo bíblico em muitos de seus aspecms. Tholuck conseguiu levar Halle do racionalismo dominanre desde a época de Wolff para o evangelismo que a caracterizou no século dezenove. Foi notável pegador. Sua gentileza para com os estudantes ingleses e americanos era inesgothel. Teologicamente, ele resistiu 2s influências filosóficas idealistas e enfatizou a experiEncia especificamente cristá do pecado e da regeneracáo e as doutrinas da queda e do pecado original.
Um terceiro representanre proeminente da escola "mediadora", teologicamente o mais importante, foi Isaac August Dorner (1809-1884), estudante em Tubingen de 1827 a 1832 e instrutor ali, em 1834. Depois de prestar servicos em várias universidades alemás, encerrou sua carreira como professor em Berlim, de 1862 até sua morte. Dentre suas primeiras publicaçóes, a mais imporcante foi Doutrina da Pessoa de
Gisto (1839). Sua teologia completa foi formulada na totalidade no fim de sua vida, em Sisnrnu
dizs Doutri~ia~ da Fe'(1879-1881). Teologia e filosofia são consanguineas,
mas ambas se corporificam lium desenvolvimento histórico progressivo. A crença cristá encontra assim sua ~ o n f i r m a ~ ána o consciência cristá, a qual, por sua vez, reconhece a validade da experiencia espiritual registrada nas Escrituras e tem tido sua progressiva clarificaçjo na história cristã. A doutrina central do cristianismo é a encarnaçáo. Nela Crisro C a revelaçáo do que Deus C e do que a humanidade pode tornar-se. Dorner também teve muita influência na Crá-Bretanha e na América. Uma forma distintiva da escola mediadora foi a teologia de Erlangen. No conrexto de um reavivamento religioso na Francônia e do t-ieopietismo de Tholuck, Adolf von Harless (1 806-1 879), que fora educado sob Tholuck em Halle e que passara por profunda experiência de conversão, comecou a cnsinar em Erlangen em 1833. Três fatores estavam encrelacados em seti ensino: experiéncia, Escritura e confessiondisino. Esta postura ganhou plena expressão com seu sucessor em Erlangen em 1845, Johann Christian Konrad von Hofmann (1810-1877), que buscwa afirmar velhas verdades de uma no.ipa marieira, misrurando teolo~iareavivalisra e o experimentalisrno de
PERIOIIO VII
O CRISTIANISMO MODERNO
74;
não era possível solucionar as diferenças do cristianismo primitivo em dois partidos profundamente antagônicos; havia muitas nuanças de opiriiáo. O cristiai~ismonáo veio a um mundo vazio, mas a um contexto cheio de idéias religiosas, filosóficas e institucionais. As verdades simples, primitivas do cristianismo foram profundamente modificadas por estas idéias, principdinente entre os gentios, resultando nas instituiçóes e teologia da primitiva igreja católica. Ritschl defendeu o pleno uso dos instrumentos da crítica histórica para a compreensão da comunidade primiriva cristã e do Jesus histórico. Acentuando a centralidade de Jesus e a natureza da igreja do primeiro século, Ritschl conseguiu muitos seguidores entre os eruditos protestantes, canto na Europa como na América. Ritsclil comecou a ensinar na universidade de Bonn, em 1846. Em 1864 se tornou professor cm Gorringen, onde ficou até o fim de sua vida. Ali publicou sua e Rec~ncilia~iío ( 3 volumes, principal obra teológica, A Dozltrirza CizstJ dajztstzjcac~?~
1870-1874). Ritschl teve poucos discípulos pessoais, mas a irifluência propagadora de seus escritos foi enorme. Ritsclil foi muito influenciado pela afirmação de Kant do sentimento moral como base da certeza prática e de sua i-iegacáodo conhecimento intelectual absoluto, e pela asserqáo de Schleiermacher de que a consciência religiosa é o fundamenro da convicçáo. Porém, no seu entender, a afirmacão de Schleiermacher do valor normativo da consciência religiosa era por demais individual. A verdadeira consciência não é a do indivíduo, mas a da comunidade cristá, a igreja. Esta consciê~iciatambém não é fonte de conheciinento especulatii~oabstrato. Ela trata de reiacioiiamentos eminentemente práticos, pessoais - aqueles com Deus e a comunidade religiosa, pecado e salvação. Conseqüentemente, a teologia filosófica especulativa ou "natural" não tem valor algum. A filosofia pode fornecer, como com Aristóreles, uma "causa primeira", mas está longe de ser um Pai amoroso. lá1 revelação prática 110s é feita somente através de Cristo. Esta revelaçáo nos chega por intermédio da consciência dos primeiros discípulos. E por isso, o Antigo Testamento, revelando a base religiosa deles, e especia1ment.c o Novo Testamento, regisrrando a consciêncja que eles tiveram de Cristo e seu Evangelho, são de supremo valor. Para afirmar a cuilsciência religiosa registrada no Antigo e no Novo Testamento, não C preciso nenhuma teoria da inspiracáo, apenas a pesquisa histórica normal. Ainda que R~tschltenha assim rejeitado a metafísica como auxiliar da verdade cristá, ele utilizou basrante uma teoria do conhecimento advogada pelo filósofo Rudolf
PER~OUUYII
U CRISTIANISMO MODER110
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Na década de 1890, no entanto, a abordagem ritschliana foi desafiada pela escola
da "história das religióes". Esta escola procurou u~iiversalizara abordagem histórica i religiáo coIocando o cristianismo em seu contexto com as outras religiões do antigo Oriente Próximo. O que Ritschl fizera táo eficazmente tra5ando o desenvolvime~zto histórico da doutrina cristã ela procurou fazer com os começos do cristianismo mesmo, acusando Rirschl de provincialismo, por náo seguir totalmente seu próprio método. Seu expoente mais notável foi Ernst Troelrsch ( I 865-1923). Sua obra histórica foi brilhante, cspecialmenre seu Ensinos SocidLs dds Igi-ejds GistJs ( 1 9 1 2), mas o relativismo da escola ReligionsgPschichtliche contribuiu para a crise do Iiberalisiilo.
Capítulo 1 3
O Protestantismo Inglês no Século Dezenove A vida religiosa inglesa nos primeiros anos do sécuIo dezenove foi dominada pelo despertamento espiritual do reavivamento evangélico, o qual provocou muita separa@ da igreja oficializada (ver VII:7). Nessa igreja, o zelo reavivado era representad o pelo partido evangélico, que no século dezenove tornou-se o partido cia "igreja baixa", cm oposição às ênfases reavivadas da "alta igrejan. Os evangélicos, como os metodistas, estavam ativamente entregues a obras de atividade prárica e missionária (ver VII:9). 0 s anglicanos evangélicos aumentaram sua importância em assuntos eclesiásticos alcançando seu primeiro bispado em 1815 , e por volta da metade do sEculo formavam o principal partido da igreja, com .grande vitalidade entre os leigos. Mas o século dezenove também presenciou o surgimentu de um novo movimento liberal, o da "igreja ampla", e o reavir7amento da tradicáo da alta igreja.
O impulso do movimento da igreja ampla surgiu da insatisfação com as elaborações teológicas da época. Iiitelectualme~ite,todos os partidos lia igreja da Inglaterra, no inicio do século, permaneceram presos às discussóes deveras provincianas do século anterior. A teologia era encarada na mesma forma racionalista-um sistema de demonsrraçáo inrelectual, ou de revelacáo impositiva, ou ambas combinadas. Entrecanro, as agitações das novas forças intelectuais já se faziam sentir. A poesia inglesa
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HISTORIR DA IGREJA GRISTA
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florescia magnificamente no dealbar do século. O romantismo, táo forte como na Alemanha (ver VII: 12j, estava comecando a produzir uma atmosfera intelectual inteirameilce diversa daquela da tpoca precedente. As novelas de Sir Walter Scotr são exeniplos conhecidos dessa nova sit-uaçáo. Desenvolvia-se um novo humanitarisrno, em grande parte devido ao reavivarnento merodista, que se manifestaria em múltiplos movimentos reformistas. Seguramente, todas as tendências afetariam o pensamento teológico e os ideais religiosos. Provavelmente, a força mais estimulante no pensamento religioso do primeiro quarcel do século dezenove foi Samuel Taylor Coleridge (1 772-1834), eminente como poeta, crítico literário e filósofo. No início inclinado para o iieoplatonismo, ao eFudar na Alemanha em 1798-1799 familiarizou-se náo apenas com os mesrres da literatura gerniânica nias ta~iibémcom o pensamento de Kant, Fichte e Sclielling e com um panorama filosófico entáo bastante desconhecido na Inglaterra. Cloleridge jamais formulou um sistema cornplero. Sua obra de maior valor foi Auxílios à ReAexáo
(1825). Contra o racionalismo de raley (ver V11:3), afirmava uma disrinçáo entre "razáo" e "eiitendimento". Para ele, "razáo" era um poder de percepqáo iricuiriva, uma "introspeçáo", pela qual as verdades religiosas sáo percebidas diretamente. Essa "razáo moral" tem a "consci2nciaMcomo sua associada, a qual t um mandato incondicional, e rem conio postulados a lei moral, um legislador divino e urnavida futura.
A certeza religiosa esti portanto baseada náo em provas externas mas na consciência religiosa. É por isso que ele foi denominado o "Schleiermacher inglês". Sob muitos aspectos, Coleridge foi o precursor da maneira de pensar da igreja ampla; mas com sua ênfase na igreja como uma instituiçáo divina, mais elevada e mais nobre do que qualquer coisa "estabelecida por lei", ele preparou o caminho para o parcido da alta igreja.
A obra de Coleridge em seus aspeccos religiosos foi continuada por Thomas Arnold (1795-1842), que iniciou seu famoso rnagisttrio em Rugby em 1828. Homem de fé crisd
e simples, sua disposicão em auxiliar seus pupilos era enorme. Suas
idéias eram muito semelhantes as de Herder (ver VII:12). A Bíblia é uma lireratura que deve ser entendida à luz das épocas em que foi escrita. No encanto, sua verdade divina chega até nós.
A crítica bíblica foi impulsionada, de forma muito moderada, por Henry Hart Milman (179 1-1868), deão desde 1849 da catedral de São Paulo, Londres. Ele aplicou os métodos críticos ao Antigo Testamento em sua História dos judeus (1829).
~ r ~ i o eviro
O CRISTIANISMO MODEANO
7 51
Sua obra mais valiosa foi História do cristianismo latino (1855). Mesmo náo querendo ser contado entre os da cscoia da igreja ampla, John Frederick Denilson Maurice (1805-1 872) deveras contribuiu para sua expansáo. Filho de um ministro unitário, aceitou a igreja oficial e se tornou capeláo do hospital Guy, em Londres. Em 1840 foi nomeado para uma cátedra no King's College, da qual foi retirado por causa de suas idéias, em 1853. Um ano depois fundou o Colégio dos Trabalhadores, e foi promotor do surgimenro de um movimento socialisca criscáo.
Em 1866 foi nomeado professor em Cambridge. Segundo o pensainenro de Maurice, Cristo é o cabeça dc ~ o d a humanidade. Ninguém está sob a maldiçáo de Deus. Todos sáo seus filhos, os quais não necessitam de qualquer reconciliaç.áo senão a de reconhecerem a paternidade divina, com o amor e o serviço filiais a que tal reconhecimento naturalmente leva. Presumivelmente todos serão, em última instância, levados ao lar de Deus e ninguém se perderá para sempre. Não muito distante da teologia de Maurice encontramos Frederick William Robertson (1816-18531, pregador notável. Educado sob influência evangélica, ao passar por um periodo de intenso questionamento deslocou-se para a posicáo da igrcja ampla. De 1847 até sua prematura morte foi ministro ein Brighton. Nenhum sermáo inglês do século dezenove exerceu canta influência em ambos os lados d o Atlântico quanto os dele. A verdade espiritual deve ser discernida espiritualmente em vez de comprovada intelectualmente. A nobreza da humanidade de Cristo atesta e conduz à fé em sua divindade. Charles Kingsley (1 8 19-1875), romancista e reitor de Eversley, influenciou sobremaneira a difusão das idéias da igreja ampla. Da mesma forma Arthur Penrhyn Stanley (18 15- 188 I ) , deáo dc Westminster; Frederic William Farrar (183 1-1903), deáo de Cantuária; e AIfred Lord Tennyson (1809-1 892), cuja obra In Memoriam
(1850), é por inteiro um poema da igreja ampla. Em 1860 dois eventos causaram grande cornoçáo. O primeiro foi a publicação de Ensaios e Estudos, nos quais um grupo de eruditos de Oxford procurava apresentar o cristianismo à luz da ciência e do criticismo histórico contemporâneos. O segundo foi o processo de John William Colenso (1814-1883), bispo de Natal, África do Sul, por sua crítica do Pentateuco, publicada em 1862. 'lkês eruditos de Cambridge, Brooke Foss Westcott (1825- 190 I ) , Joseph Barber 1,ightfoot (1828- 1889) e Fenron John Anthony Hort (1 828-1 892), deram importante contribuiçáo a erudiçzo bíblica. A critica textual do Novo Testamento grego de Westcott e Hort, publicada em 188 1, depois de cerca de trinta anos
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HISTIIRIA DA IGREJA C R I S I I
de estudioso labor, se tornou padrão. O movime~itoda igreja ampla nunca foi, estritamente falando, um partido, e seus seguidores não eram muitos, mas sua influência sobre o pensainenro religioso inglês foi enorme. Movimento altamente significativo, profundamente devoto e intensamente autoconsciente dentro da igreja da Inglaterra, nesse período, foi o de Oxford,* que deu surginiento ao partido anglo-católico. Tal movimento deu nova vida e direção à tradição da alta igreja, que se tornara um tanto árida. Nos primeiros anos do segundo quarto do sécuio dezenove ocorreram várias importantes rupturas nos priviltgios exclusivos da igreja oficial. Os Atos de Prova (ver VI:16) c de Corporacão foram abolidos em 1828. Os catcílicos romanos puderam, entáo, ser eleitos para a Câmara dos Comuns e para a maioria dos cargos públicos, em 1829. A revo1uc;áo de julho de
1830, na França, estimulo~ia r e i v i n d i ~ a ~ por á o reformas na representação parlamentar; estas triunfaram após acirradas lutas, em 1832, transferindo assim o poder da pequena nobreza rural para a classe média e deste modo aumentando a influência náo-conformista. Para muitos clCrigos conservadores pareceu que os alicerces da igreja e do estado estava111 sendo abaiados. Eles se dispuseram a levantar a própria questão
da natureza da igreja. Ela ií: uma instituição divina essencialmente inalterável, ou pode ser alterada, como ocorreu muitas vezes depois da Reforma, por determinacóes governamentais? A forma que sua resposta Tomou seria determinada, em grande parte, pelo reavivamento romântico de interesse no primitivo c medieval. Durante essas discussóes, virios clérigos jovens, em sua maioria ligados ao Oriel College, Oxford, foram levados a dar os passos que inauguraram o "Movimento de Oxtòrd", como é geraIrnente chamado. Provavelmente, o mais influente do grupo, enquanto sua breve vida náo findou, foi Richard Hurrell Froude (1803-1 836). Para ele, a igreja está de posse da verdade, da qual foram repudiados pelos reformadores importantes elementos concedidos no período primitivo. Pareciam-lhe imperiosos o reavivamento do jejum, do celibato clerical, da reverência pelos santos e dos "costumes católicos". Inrimamenre associado com Froude estava John H e ~ i r yNewman
(1801-1890), homem de grande capacidade inrelectual e oratória, cujo preparo inicial fora evangélico, mas que passara a compartilhar dos sentimentos de Froude. Um terceiro do grupo de Oriel foi John Keble (1792-1866), de ascendência "nonjuror", e já conhecido como autor do volume mais popular de poesia religiosa publicado no século dezenove, O Ano Cristáo (1827). Cordialmente simpatizava com o movimenro um erudito de Cambridge, Hugh James Rose (1795-1838), fundador do
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British Magazine, em 1832, para itlcremeiltar a fé na autoridade divina e iniurabiiidade da igreja. Para rodos eles o curso dos recentes fatos políticos parecia amearador. O começo formal do movimento é geralmenre associado com o sermão de Keble em Oxford, em 14 de julho de 1833, intitulado "Apostasia Nacional". Em setembro desse ano Keble formulou os princípios que ele e seus companheiros afirmavam. O meio para a salvação C a recepçáo do corpo e sangue de Cristo na eucaristia, a qual só é validamente administrada por aqueles que se encontram na sucessão apostólica.
Esse é o tesouro da igreja - igreja esra que dcvc ser restaurada em todas as formas à pureza dos seus indivisos sécuios iniciais.
No mesmo mês Newman iniciou a publicaqáo dos famosos Panfletos para a Época. Em 1835 esses associados já haviam conquistado o apoio de alguém que, junto com Nelvman, e sozinho após a desercio deste, seria n líder, Edward Bouverie Pusey (1800-1882). Homem de grande zelo e piedade, Pusey estava táo absol~ita~nente ligado ao movimento anglo-católico como seu cabeça que esse movimento cambém foi denominado "puseismo". Para ele, era o reavivamento do cristianismo primitivo. Foram publicados novenca desses Panfletos, dos quais Newman escreveu ou edi[ou pelo menos vinte e oito. Keble, Pusey, Froude e outros também colaboraram. Para Newman, a igreja da Inglaterra era a ponte áurea, a via media, entre o prorescantismo e Roma. Mas à medida em que os panfletos iam aparecendo, os escritores enfatizavam cada vez mais aquelas doutrinas e práticas que, ainda que cercamente anrigas, csráo popularmente identificadas com Roma. Assim, Pusey ensinou a natureza regeneradora do batismo e o aspecto sacrificial da ceia do Senhor. A confissáo era recomendada, mas deveria haver reservas quanto ao riso da Bíblia e da proclamação das verdades religiosas. Foi o nonagésimo Panfleto, de autoria de Newman, publicado em 1841, que levantou a maior controvérsia. Newman afirmava que os Trinta e Nove Artigos não procuravam ensinar outra coisa além da f t catblica e não estavam em conflito com o catolicismo romano genuíno, mesmo em sua forma tridentina. Poucos cruditos ou clérigos podiam aceitar essa interpreraçáo, que parecia totalrncntc equivocada, e o bispo de Oxford proibiu a continuaçáo dos Panfletos. Newman estava no ápice de sua influência quando foi publicado o nonagésimo panfleto. O movimento anglo-católico contava com centenas de seguidores entre o clero. Newman, no encanto, tinha dúvidas quanto à catolicidade da igreja da Inglaterra e, em 9 de outubro de 1845, submeteu-se a Roma. Centenas de clérigos e leigos o seguiram na comunháo romana, dentre os quais o mais nocável era Henry Edward
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HISTÓRIA DA IGREJA CRIST%
Atanning (1808-1892), que passou para Roma em 185 1 e foi feito cardeal em 1875.
O restabelecimento do episcopado diocesano católico romano na Inglaterra, em 1850, $0 papa Pio IX, vago desde a Reforma, causou g a n d e agitaçáo. Manning tornouse defer-isor ultramontano extremado das pretensões papais, diferentemente de Newman, que sempre foi moderado e que, mesmo sendo o mais eminente dos catjlicos romanos ingleses, só chegou ao cardinalato em 1879. Estas passagens para Roma terminaram o Movimento de Oxford como tal, mas o parrido anglo-católico que dele emergiu resistiu à tempestade sob a capaz lideran~a de Pusey, e rapidamente amadureceu tornando-se um elemenro importante dentro da igreja oficial. Conforme suas modificaçóes doutrinárias eram aceitas, preocupava-se cada vez mais com o "enriq~lecimentoV da liturgia por meio da introduçáo de costumes que o
abandonara. Estas mudanças encontraram muita
oposicáo popular e legal, mas as modificações desejadas pelos ritualistas foram largamente asseguradas. Qualquer avaliagáo do movimento anglo-católico será equivocada se deixar de reconhecer seu profundo zelo religioso. Ele náo apenas trouxe uma nova ênfase católica ao culto e à teologia da igreja, mas também demonstrou genuína dedicacão aos pobres, aos abandonados e aos sem igreja. Ele muito fez para reconquistar a presenq da igreja nas classes inferiores. Em 1860 foi organizada a Uniáo da Igreja Inglesa, para apoiar a fé e ea prática da alta igreja e para expandir a influência desse significativo movimento de despcrtamenro dentro da igreja da Inglaterra.
A igreja oficial protestante da Irianda, paralela à da IngIacerra, sempre uma anomalia, pois o governo apoiava uma igreja da minoria da população, perdeu a posicáo de oficializada em 1869. Sua marcha, porCm, não foi muito alterada pela mudança.
O século dezenove foi marcado por firme expansão e crescente proliferaçáo do náo-confor~nismo,para o que a influência evangélica foi forte. Provavelmente, logo no início do século o número de náo-conformistas arivos passou a ultrapassar o de angiicanos praticantes. O metodismo, por exemplo, quadruplicou de 1800 a 1860, ainda que tenha perdido gente com as faccóes cismáticas. Os outros grandes e crescentes grupos não-conformistas eram os congregacionais e os batistas, enquanto os quacres e os unitirios permaneciam como pequenas minorias e o presbiterianismo era reavivado, principairnente por causa dos migrantes oriundos da Escócia. A vita-
lidade náo-conformista estava nas classes médias. Os náo-conformistas produziram pregadores de grande poder e tinham seus eruditos e trabalhadores sociais, mas foram menos importantes que a igreja da Inglaterra em erudiçáo e no trabalho entre os
sem igreja.
De grande importância na vida inglesa foi a firme diminuicáo das proibicóes que pesavam sobre os náo-conformistas. Em 18 13 os unicários foram beneficiados pela aboli~áode atos penais contra os que negavam a Trindade. Como já foi mencionado, os Atos de Prova e de Corporacáo caíram em 1828. Em 1836 foi permitido realizar casamentos em lugares de culto dissidente. Os não-conformistas livraram-se das taxas em benefício da igreja oficial em 1868. Em I871 foram abolidas todas as provas religiosas nas universidades de Oxford, Cambridge e Durham, excero para os crirsos de teologia. Em 1880 foram permitidos cultos durante sepultamentos em terreno
eclesiástico. Na última metade do século os não-conforinistas se beneficiaram do que tem sido denominado "Segundo Grande Desperramento Evangélico" e cujo principal ttaqo foi a obra do evangelista americano Dwighc L. Moody (1837-1899). Os anglicanos evangélicos também se beneficiaram desses despertamentos posteriores, e seus centros em Mildinay e Keswick os auxiliaram.
O s náo-coriformistas náo somente se expandiram nesse século, mas raitibém produziram rnuicos novos grupos. Três movime~itostêm interesse especial. Edward Inring
(1792-1834),era um pregador presbiteriano escocês em Londres de eloqüência e tendências místicas. Por volta de 1828 se convenceu dc que os "dons" da era apostólica seriam restaurados se houvesse fé sufkie~ite.Ainda que não os reivindicasse para si, dois anos depois pensava que suas esperanqas escavam sc cumprindo cm outros. Em 1832 foi deposto de seu ministério presbiteriano. Logo depois, sur,'0iu a convicçáo entre seus seguidores de que seis apóstolos tinham sido chamados por profecia, e
em 1835 o r-iúnlero foi elevado para doze. Esse grupo assini liderado tomou o nome de Igreja Católica Apostólica. Em I842 foi adotado um ritual elaborado. O s apóstolos eram considerados como órgãos do Espírito Santo. Durante muito tempo foi aguardada a iminente vinda de Cristo, mas o último apóstoio morreu em 1901. A igreja se espalhara para a Alemanha e os Estados Unidos. Um segur-ido movimenro surgiu da reaçáo contra a falta de espiritualidade na igreja oficial, nos primeiros anos do século. Reuniram-se na Irlanda e no oeste da Inglaterra grupos de "irmáos" dizendo que os úiiicos vínculos entre eles eram a ft e o amor cristáo. Seu crescimento considerável foi devido ao empenho de John Nelson
(1800-1882), ex-clérigo da Igreja da Irlanda (anglicana). Ele rrabdhava nos arredores de Plyrnouth, por volta de 1830, e por isto seus seguidores são geralmente deno-
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HISTORIA UA IGREJA CRISTh
minados "Irmãos de PlymouthV.Julgam eles que todos os crentes sáo sacerdotes e, dai, devem ser rejeitados todos os ministérios formais. Os credos devem ser abolidos.
O Espírito Santo guia todos os verdadeiros crentes e os une na fé c no culto segundo o modelo apostólico. Os Irmáos eram guiados por um sistema de interpretaçáo bíblica miienarista conhecido como dispensacionalismo, no qual o tempo era dividido em uma sCrie de dispensaçóes (normalmente sete). Embora houvesse variaqóes em detalhes, a úitima dispensaçáo, imediatamente vindoura, era geralmente compreendida como o miIênio, no qual Cristo retomaria e a monarquia davídica seria 1-maurada em Israel. Ainda que declaradamente rejeirassem todo denominacionalismo, os "irmãos" logo se viram compelidos a criar aros de discipiina e se dividiram em pelo menos seis grupos. Darby foi um propagandista infatigável. Por seus esforços os "irmãos" foram implantados na Suíça, França, Alemanha, Canadá e nos Estados Unidos. Entre seus preemincnrcs seguidores estavam George Muller (1 805- 1898), cujos notáveis orfanatos em Bristol eram sustentados, segundo sua própria opiniáo, principalmente pela resposta direta às orações; e Samuel Prideaux Tregelles (1 8131875), eininentc estudioso do texto grego do Novo Testamento.
O mais importante destes novos grupos foi o Exército da Salvação. Seu criador, William Booth (1 829-1912), era ministro da Nova Conexáo Metodista e, depois de bem sucedida obra de reavivamento em Cardifc iniciou trabaího semelhante em Londres, em 1864. Disso rcsultou, em 1878, uma orgatiizaçáo de aspccIo militar, com obediência militar, que em 1880 recebeu o nome de Exército da Salvaçáo. Sempre engrijado decididamente na filantropia prática tanto quanco na evangelizaçáo de rua, a obra filantrópica se desenvolveu em p n d e escala a partir de 1890, quando Booth publicou A Saída na Trevosa Inglarerra. Apesar de sua forma milirar autocrática, o Exército da Salvação é, sob vários aspectos, unia igreja. Acusado de ocasionais arbitrariedades, tem feito imensa obra beneficente a favor dos necessitados e delinqucntcs e tem abrangido todos os ~ a í s e sde língua inglesa, assim como a França, Alemanha, Suíga, Itália, países cscandinavos e Oriente. Na segunda metade do século dezenove, cristáos ingleses de várias denominações e tradições ficaram cada vez mais preocupados com os agudos problemas sociais da época. Os evangélicos h; rnuiro estavam envolvidos em atividades beneficentes e movimentos reformistas, enquanto eclesiásticos como Maurice e Kngsley foram pioneiros do socialismo cristáo em meados do século. Mas ao se aproximar o fim do século, foi surgindo amplo interesse por justiça social e pelas questões sociais. Nos
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HISTDRIA IIA IGREJA CRISTÃ
Estado uma terceira parcela, e a mais ativa. No entanto, o exemplo dos separatistas acabou provocando o despertamento do zelo na própria igreja oficial. Em 1874, foram abolidos por lei os direitos do patronato, que eram a origem das divisões.
O vigor do evangelicalismo britânico se refleriu tanto na igreja oficial como na
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náo-conformista na grande onda inissionária do protestantismo do século dezenove.
mt.:
Os evangilicos de língua inglesa foram os lideres nas missóes protestantes no fim do século dezoito e mantiveram essa liderança por todo o "Grande SCculo"' da expansáo missionária protestante. A rápida expansáo das missões no estrangeiro no século dezenove levou o prorestantismo praticamente a todas as naçóes do globo, tornandoo de alcance verdadeiramente universal. Esta campanha missionária teve como centro a Inglaterra, com os Estados Unidos logo a seguir. Seu início ao apagar das luzes do século dezoito j5 foi assinalado (ver VI1:9). No decorrer do século seguinte a cruzada cresceu firmemente em extensáo e complexidade, e continuou a organizacáo de agências missionárias dos mais ~ariadostipos.
O movimento foi dirigido por um grupo de famosos missionários pioneiros, seguidores do exemplo de Wiiliam Carey, o primeiro dos missionários mociernos. Aqueles oriundos da Grá-Bretanha se dirigiram principalmente, embora de forma alguma exclusivamente, para aquelas regiões do mundo onde o império britânico possuía territórios. Na Índia, o anglicano Henry Marryn (178 1- 18 12), esforçou-se tanto no trabalho missionário que veio a falecer prematuramente. O primeiro missionirio no estrangeiro da igreja da Escócia, Alexander Duff (1806-1 878), se devotou cspecialmente à obra educacional, procurando atrair as classes cultas da Índia. Samuel Marsden (1764-1838), outro anglicano de formacão evangilica, trabalhou por mais de quatro décadas visando a implantar o cristianismo na Austrália, Nova Zelândia e ilhas do I'acffico. ~ a & r i c a ,Robert Moffat (1795-1883) e David Livingscone (1 8131873), ambos escoceses a serviço da Sociedade Missionária de Londres, levaram o evangelho ao sul daquele continen~e.Esta mesma sociedade também enviou Robert Morrison (1782-1834), em 1807, como o primeiro missionário protestante a Cl-iina. Os esforEos desses pioneiros, embora heróicos, num primeiro momento náo parece Terem dado muitos frutos; sua incumbência era abrir as portas, fundar escolas e pontos de apoio e, sobretudo, rraduzir as Escrituras. Foram seguidos, porém, por C) [ermo f;>ipop~ilarizadopclo prcçrniner~reIiistorisdi~rde missões, Kcnnçih Scott Latour-crtç. Na sua obra de srre voli~niri,A Historq' ofthe Expunsio?~of Chi-iitil~ni~ (NovaIorquc, 1337-4í),rle ronia tr?s volumes par:$ clicgar até 18 15. e enráo trCs para cobrir o pcríodo 1815-19 1.4, o "Grande Siculo".
Capitulo 14
O Protestantismo Continental no Século Dezenove Aquilo que provavehente foi o desenvolvimento mais significativo no protestantismo continental no século dezenove - os movimentos do pensamento cristão na Alemanha
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já foi apresentado. Mas também houve importantes [endências na vida
das igrejas, pois nesse tempo ocorreram manifestacóes de vida que, ultrapassando consideravelmente os limites confessionais e nacionais, estenderam-se pelas igrejas
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HISTÓRIA DA IGREJR CRISTA
cristás no continente europeu. Esse despertamento no século dezenove teve diversos aspectos. De in-iportância especial, no inicio do século, foi o "Réveil", ou seja, o emergir de correnres evangélicas c pieristas remanescentes de despertamenros anrcriores. Mas ao lado dessa ressurgência também podem ser observados movimenros de renovaçáo enfatizando eiemeritos românticos, sacramentais e confessionais. Os diversos aspectos do despertamento do século dezenove podem ser classificados como igreja baixa, igreja ampla, alra igreja e confessional.
Na Alemanha, o despertamento comeqou no estado central da Prússia, durante a ocupaçáo napoleônica. O teólogo Schleiermacher, pregador na Igreja da Trindade, em Berlim, Icvou o povo a sc aprofundar na tradicão cristá de há muito obscurecida. Nas décadas de 1820 e 1830 se tornou influenrc um movimen~omais pietista, langado
elo Evurzgelische Kzrche~/zeitzingde Hengstenberg. Este defendia firmemente a
infalibilidade da Bíblia e a aliança, na polícica alemá, dos cristáos com o partido conservador feudal (ver VII: 12). Outra corrente dentro do despertamento foi intensainenre confessional. Em parte foi uma reaçáo contra a Uniáo Prussiana de 1817, na qual as igrejas luterana e reformada foram unidas segundo a voncade do rei Frederico Guilherme I11 (1797-1840). Uniões semelhantes foram criadas em alguns outros cstados alemães. Mas os luteranos ortodoxos fiCis, que alimentavam forte hostiIidade contra os calviniitas, recusaram-se a participar em tal uniáo. Esses "Velhos Luteranos" foram muico perseguidos e náo foi senão na década de 1840 que obtiveram permissáo para emigrar. Quando porém, ~ u d e r a msair, muitos se dirigiram para os Escados Unidos com o objetivo de formar sínodos conservadores como os que estabeleceram em Buffalo c Missouri. No cnranto, nem todas as tendências fortemente confessionais podem ser encontradas entre os Velhos Lureranos. O próprio Hengstenberg rompeu com o movimenro piecista por volm de 1840 e se fez defensor da ortodoxia Iuterana estrita. E era comum semelhante atitude. Em conexão com tal rendência confessional havia um movimento de alra igreja. Nele encontramos como vultos centrais Wilhelm Loehe (1808-1872), da Baviera, e Theodor Kliefoth (ver VII: 12), de Mecklenberg. Esses "Novos Luteranos" buscavam acentuar a transmissão objetiva da graca salvífica de Deus através de pessoas e instituiçóes e reviver antigas rradi~óeslitúrgicas.
A viralidade emanada dessas correntes de desperrarnentos encontrou aplicacão na "missão interna", múltiplos esforços de evangelizaçáo e beneficentes remanescentes das atividades em Halle nos primeiros dias do pierismo. Johann Hinrich Wichern
(1808-188 I), educado sob auspícios pietistas, fundou em 1833 um lar para meninos
~tuionovil
O CRISTIANISMO MOOEANO
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abandonados. Devido a sua capacidade organizacional expandiu-se uma vasta rede de centenas de agências para alcan~armaririheiros, desempregados, prisioneiros e crianças abandonadas. Foram feitos, sobretudo, strios esforços para alcanFar as massas por meio de escolas dominicais, missões urbanas, albergues e distribuiçáo de literatura. Muitos leigos ingressaram no movimento e foram organizadas ordens de diaconisas. A missáo interna foi apoiada por protestantes influenciados por vários dos elementos do despcrtamcnto, mas seu caráter pietista permaneceu forte. Ela também encontrou incisiva resposta no sul da Alemanha e na regiáo do baixo Reno, onde a tradiqáo reformada continuava força ponderável. C ) desperramento tambéíil atingiu o protestantismo escandinavo. Na Dinarnar-
ca, a resposra aos vários aspectos do reavivamento estimulou uin período genuinamente criativo. A ênfase pietista com sua "missão interna" foi bem acolhida na igreja luterana oficial. A tendência mais aberta aos motivos româ~iticos,mais "igreja ampla", foi representada pelo bispo J. P Mynster (1775-1854), pregador da corre, profcssor de ceologia c primaz da igrcja da Dinamarca. O aspecto "alta igreja" foi represeritado por Nicolai Frederick Severin Grundrvig (1783-1872), que tomou como base o Credo dos Apóstolos e acentuou a tradicáo viva e o foco sacramental da igreja.
Um dos produtos desse período criativo - Soren Kierkegaard (1813-1 835) - reagiu fortemente contra o cristianismo que conhecia. Eilfatizando os aspectos paradoxais e existenciais da fé cristá, Kierkcgaard causou pouca impressão em seu tempo, mas foi redescoberto no século vinte.
O aspecto pietista do despertamenro se fez sentir especialmente na Noruega. Hans Nielsen Hauge ( 1771- 1 824), evangelista leigo itinerante, atacou a frieza da igreja oficial e por causa disto ficou preso por quase uma dtcada. Mais tarde, o it-iovimento que inspirara foi levado pelos esforqos de Gisle Johrison (1 822-1894) à intinia rejaçáo com a igreja luterana oficial. Tanto a ênfase confessional quanto a clerical estive-
ram evidentes na obra deste professor de teologia da universidade de Christiana. O reavivamento também teve uma diversidade de aspectos na Suécia, mas a influência de Henrik Scharrau (1757-1825), pasror na cidaiie de Lund, foi especiaimente importante. No princípio sob influência morávia, ele desenvolveu uma tendência sacramental e de alta igreja, enfatizando a antiguidade da tradiSáo da igrcja c a presença real na eucaristia.
A influência do despertamenro protestante do século dezenove foi também senrida fortemeilte nas igrejas reformadas do continente. No final do século dezoito, o
impacto do racionalisrno fora muito grande nas comunhóes calvinistas da Suíça, Franca e Holanda. O início do reavivarnento pode ser traçado, ern parte, ao movimento evangélico na Escócia, pois Robert Haldane foi instrumenro esrimulador de um despertamento na França e na Suíça francesa, em 18 16. Um notável converso hs novas ênfases foi H. A. César Malan (1787-1864), que se tornou importante evangelista itinerarite e escricor de muitos hinos. Nos Países Baixos, Isaac de Costa (1798-1860), um judeu convertido, foi vulto importante do reavivamcnto. Como na Inglaterra, as correnres reavivalistas produziram uma rede de sociedades voluntárias para a realizacáo de empreendimentos e.r~angelísticos,missionários e beneficentes. E em todos esses países, os expoentes do "Réveil" encontraram a oposiçáo dos líderes eclesiásticos de tendências racionalistas e assim ficaram afastados das posições
de comando. Na Holanda, a rensáo entre o racionalismo e o despertamento, neste caso representado por um jovem pastor, Hendrik de Cock (1801-1842), que também defendia o alto caIvinismo e a adesão estrita às afirmações do sínodo de Dort (ver VI:I5), levou a uin cisma. Q ~ i a n d odc Cock foi deposto, em 1834, muitas congregaçóes deixaram a Igreja Reformada Holandesa oficial e fundaram a Igreja Reformada Cristã. Muitos evangélicos, no entanto, permaneceram na igreja oficial. Outra separaçáo da igreja oficial ocorreu sob Abraham Kuyper (1837-1920), um pastor que por voita de 1870 era o Iíder do grupo dos calvinistas estritos. Quando as tentativas para o retorno da igreja oficial à condiçáo estabelecida pelo sínodo de Dort fracassaram, Kuyper liderou a formacáo daquela que foi popularmente denominada Igreja Reformada Livre (1886). Ele 11áo foi apenas um notável pregador e profícuo escritor, mas também político e estadista acivo no governo (primeiro ministro de 1901 a 1905). Ele foi professor de teologia sistemática na Universidade Livre de Amsterdá durante os últimos quarenta anos de sua vida. Na Suíca, Alexander Vinet (1797-1847), o "Schleiermacher do protestantismo francês", liderou uma separação. No início Vinet não se agradara do que considerava a imperfeiçáo do Réveil, mas foi atraído pela ênfase dos evangélicos mais moderados e pelas correntes românticas e ficou perturbado pelo empenho dos racionalistas em reprimir os evangélicos. Assim, esposou o Réveil e tornou-se sincero defensor da separaçáo entre igreja e estado. Em 1846 desempenhou papel principal arrebanhando separatistas da igreja oficial, entre os quais encontrava-se a maioria dos ministros e muitos dos professores de teologia de Lausaila, para formar a Igreja Livre de Vaud.
As igrejas do conrinente, estimuladas pelas correntes de despertamento, muito
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HISTÓRIA DA 16REJA CRISTÃ
para os luteranos aceitarem as conseqiiências políticas de uma ética social e abdicou do ministério. Entrernen~es,Lim "evangelho social", de natureza algo acadêmica, era defendido por certos tedlogos liberais como Harnack e Hermann (ver VII:12).
O cristianismo social encontrou solo mais fértil nas igrejas reformadas. Destacaram-se como líderes do movimento Leonhard Ragaz (1868- 1945), defensor do pacifismo, das cooperarivas e das escolas e estabelecimentos populares; e Hermann Kutter
(1863- 193I), autor de Elrs Devem! (1905), uma interpretacão teológica do socialismo que também influenciou o desenvolvimento do cristianismo social na Inglaterra e nos Estados Unidos. Embora o interesse das massas cristãs nas questões sociais nunca tenha ~ l c a n ~ a do ograu que os líderes cristáos sociais esperavam, ocorreram mudancas significativas na maneira em que os protestantes confrontavam os problemas sociais, e desde entáo as formas de pensar estritamente individualistas foram permanentemente alteradas.
Capítulo 13
O Protestantismo Americano no Século Dezenove Assim como a história do prorescancismo no século dezenove na Grã-Bretanha c no continente comeqou com um de~~ertamentci evangklico, ig~ialmentea história da religiáo nos Estados Unidos, no mesmo período. Na América, as correntes de reavivarnento pierisra, evangelísrica c de igreja baixa tornarain-se amplamente dominantes 11a vida da igreja. Embora I-iou~essealgumas evidências indicadoras dos outros aspectos do seavivamento britânico e do continental, e ainda que algumas comunhóes tenham resistido à maré reavivalista, no geral uma concepção evangélica da
fé cristá cuja knfase característica era a conquista de almas deu o tom ao prorescanrismo americano. Sob a influência de líderes articulados que partilhavam das tradiqóes pietista e evangélica, Lima experiência de conversão consciente c frcquentemeiite emocional passou a ser vista, em larga inedida, coino a maneira normal de ingresso
na vida cristá. A simação interna - a vida da igreja esteve relativamente em maré
r~iloiovii
O CRISTIANISMO MOOERNO
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baixa durante o período revolucionário, e na abertura do novo século os membros da igreja perfaziam menos de dez por cento da populaqáo - enfatizava a necessidade de despertamento. A situação externa - um país que aproximadamente tripIicara seu território e quintuplicara sua população em cinqüenta anos
-
desempenhava sua
parte em atrair a atençáo cristá para a conquista de conversos. Comeqando bem no fina1 do século dezoito, um poderoso despertamento do interesse religioso agitou o país. Na Nova Inglaterra, o que por vezes tem sido chamado o "Segundo Grande Despertamento", deu seus primeiros sinais já em 1792. Em 1800 o despertamento estava no auge. Líderes congregacionais resolveram que certos excessos que provocaram o declínio do Grande Despertamento anterior não se repetiriam. Em suas igrejas, portanto, estes novos reavivamentos eram um tanto restringidos, rçalizando-se principalmente segundo os padrões normais da vida da igreja. O brilhante presidente de Yale, T i m o t h ~Dwighr (1752- 1817), se destacou na lapidaçáo da teologia que sublinhou as novas cruzadas re.avivaIiscas. Ljirnan Beecher
regador congregacional, e Nathaniel W. Taylor (17861858), teólogo de YaIe e protegido de Dwight se destacaram na execuqáo da obra. O
(1755-1863), o agressivo
dcspertamento de forma alguma ficou limitado às igrejas congregacionais, pois os batistas floresceram na atmosfera do despertamento, e os mctodistas, buscando uma base segura na Nova Inglaterra, utilizaram livremente práticas reavivalistas.
O despertamento também empolgou os estados do meio da cosra atlântica, o sul e a fronteira. Os habitantes da costa leste fizeram sua parre visando à expansáo do reavivamento para o oeste. Em 1801 a Assembléia Geral Congregacional de Cnnnecticut e a Assembléia Geral Presbireriana formaram um "Plano de Uniáo", promoveiido a fusão virtual destas denominacóes nas áreas de fronteira. Logo as outras associaçóes congregacionais da Nova Inglaterra aderiram ao plano e foram implantadas muiras igrejas "presbigacionais", principaImenre em Nova Iorque e Ohio. Mas frequentemente os moradores rio oeste ficavam impacientes diante das remicóes do reaviva~nentono leste e ressentidos com a ênfase no clero culto. Foi nos estados froi~teiri~os do Tennessec e do K c n t u c k ~que ocorreram as manifestaçóes mais eniocionais e espetaculares do despertamento. Ai comeqaram, em 1800, as "reunióes de acampamento", e ali os reavivamentos, especial~nenteno início, foram marcados por grirarias emocionais e manifestaçóes físicas. No geral, porém, o novo movimento de reavivamento, que por dtcadas continuou enrre altos e baixos, foi menos marcado pcir esses sintomas de exalta$áo exagerada do que os despertamentos
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HiSTdRiA DA IGREJA CRISIÃ
do século dezoito. O impacto do reavivamerito ficou evidente no declinio da "infidelidade", na elevaçáo do nível moral na fronteira e no firme crescimento das igrejas batista, metodista e presbireriana. Um produto do despertamento, fadado a se tornar o expoente maior d o reavivamento através de uma longa carreira, foi um jovem advogado do interior do estado de Nova Iorquc, Charles Grandison Finney (1792-1875). Convcrrido em 1821, dedicou-se a viagens evangelísticas, e apesar da falta de preparo universitário ou teológico formal, foi ordenado pelos presbiterianos. Logo ocorreram grandes reavivamen~ossob sua intensa e fervenre pregaçáo. Ele organizou os métodos reasrivalistas em um modelo ordenado que ficou conhecido como os "novos meios". O s meios - tais como "horas impróprias" para culcos, reuniões "prolongadas", uso de linguagem acre e coloquial, referência por tiome a indivíduos nas oraçóes e nos sermóes, reuriióes dc exame, o "banco dos aflitos" - obviamente, náo eram realmente novos. 4 novidade era a integração deles em um sisecma desenhado para dar resultados. A eficlícia dessa abordagem foi demonstrada espetacularmente no reavivamento de 1830-1 83 1 em Rochester, Nova Iorquc. hpcsar da oposi~áodaqueles que temiam ' as o emocionaiismo da fronreira e os "novos meios" de evangeiizaqao, Finney i111'a d lu cidades do leste. Seus métodos já testados logo foram amplamente aceitos e copiados. A intensidade e frequêlicia dos reavivamentos declii~ouna década de 1840, mas reacendeu-se novamente num crescendo em 1857-1858, quando um reavivamenro de arnplirude rlacional arrastou milhares para as igrejas. Reuniões diárias para oraqáo, frequentemente em horas incomuns, e liderança leiga foram traços característicos desse ápice na história dos rea~ivamentos. Entrementes, a partir do início do século, as energias produzidas pelos reavivamentos eram canalizadas para causas evangélicas por intermédio de uma rede cm conseance expansão de sociedades voluntárias. Frequentemente a organizaçáo começava no nível local, depois as pequenas unidades se reuniam em sociedades eseaduais e, por fim, as grandes sociedades nacionais completavam o modelo. Quer a preocupação destas sociedades voluntárias fosse por missóes nacionais ou por missóes estrangeiras, elas frequentemente seguiam linhas denominacionais. Assim, qua~ido um grupo de estudantes do Williams College, sob a liderança de Samuel J. Milis (1783-18 18), ofcreccu seus serviços às autoridades congregacionais como missionários na Índia, foi precipitada, em 18 10, a formacáo da Junta Americana de Comissários para Missões Estrangeiras. Era uma sociedade basicamente congregacional, ain-
PERIODO YII
O ERISHANISMO MODERNO
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da que presbiterianos e reformados tenham-na apoiado por algum tempo. Ela enviou seus primeiros cinco missionários em 1812. No caminho para a Índia, dois deles, Adoniram Judson (1788- 1850) e Luthcr Rice (1783- 1836), concluíram que o batismo de adultos por imersáo era a maneira bíblica. Isto, por sua vez, precipitou a organizaçáo da Convenção Missionária Geral da Denominacáo Batista nos Estados Unidos para Missóes Estrangeiras. Outras denominações também fundaram sociedades missionirias: os presbiterianos em 18 17, os metodistas em 18 18, os episcopais
cm 1820. A Sociedade Missionária Nacional Americana foi instituída em 1826 para implemcntar o Plano de União. Também foram organizadas sociedades voluncárias para a discribuiçáo de bíblias e folheeos, para a promocão de interesses educacionais e escolas dominicais e para a direção de esforcos reformistas e beneficentes. As sociedades nacionais geralmente eram iiáo denominacionais, buscavam o apoio de evangélicos de diversas origens. Dentre elas se contavam a Sociedade Americana de Educacáo (fundada em 1815), a Sociedade Bíblica Americana (em 18 16), a União Americana de Escolas Dominicais (em 18 17-1824), a Sociedade Americana de Folhetos (em 1825). Seu modelo de organizaçáo foi conscientemente influenciada pelo exemplo britânico. Na década de 1 830 tais agências cresceram rapidamente em ramanho e aumentaram sua assistência e eficácia. Suas reunióes anuais, os "aniversários de maio", passaram a ser realizadas
simultaneamente, na cidade de Nova lorque. Seus membros e diretores eram em parte os mesmos, de modo a formarem o que foi denominado "império benevolente". Seu controle estava em grande parte nas mãos de um grupo de leigos abastados, predominantemente presbiterianos ou congregacionais, dentre os quais se destacavam os irmãos Arthur (1786-1 865) e Lewis (1788-1873) Tappan. Tais pessoas reconheceram o poder de Finney engajaram-no em suas cansas e quando sua má saúdc exigiu a diminuicáo de suas viagens, chamaram-no para um pastorado em Nova Iorque. Ein 1834 e 1835 Finney publicou suas Cozfivências sobve Reuvivamentos Re-
ligiosos, apresentando seus comprovados métodos de promover reavivamentos. Em 1835 ano ele foi para o novo Oberlin College, em Ohio, onde, como professor de ceologia e depois presidente, se tornou, sem demora, o principal expoente e o maior teórico do reavivameilto americano. Sua volumosa obra, Confirências sobre Teologia
Sistemá~ica,publicada pela primeira vez em 1846-1847, apresentou uma teologia de reavivamento, na qual a prova para qualquer dourrina seria se ela contribuía ou não para a salvacão. Finney foi um líder com muitos seguidores - exércitos de reavivalistas
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HISTbRIA DA IGREJA CRISTA
congregacionais mais antigas e de vários homens ilustres do leste de Massachusetts. Mas os ortodoxos, estimulados pelo ativo Lyman Beecher, que em 1826 sc rornou pastor da Hanover Street Church, em Boston, renovaram o uso dos reavivamencos e conseguiram restringir o avanco dos unitários e limitá-los, em grande medida, ao leste da Nova Inglaterra. Náo houve nenhuma separa~áoaberta em Connecticur, mas os calvinistas conservadores remiam que a teologia de New Haven tivesse ido longe demais na modif i c a @ ~do calvinismo para adequá-lo ao reavivamento e confrontar as objeçóes unitárias. Dai, em 1833 foi organizada uma nova associaqáo ministerial "orrodoxa", e no ano seguinte foi fundado um novo seminário em Hartford. No entanto, ambos os grupos em Connec~icutcontinuaram a usar reavivamentos. Horace Bushneli (1802-
1876), pastor brilhante, criticou ponderadamente o sistema de reavivamentos na sua publicacáo mais influente, aparecida pela primeira vez em 1847, Educayáo Gistá. Nela ele insistia no suave desdobrar da natureza cristá da criança, sob influências apropriadas, como a maneira normal de ingresso no reino de Deus, em vez da conv e r s á ~esfotcada que as tradiqóes pietista e merodista consideravam como a única experiência legítima. Teólogo capaz, Bushnell muico fez para mudar a ênfase do dogma exato, demonstrável ao intelecto, para o sentimento religioso, agitando o coraqáo e a mente das pessoas. Tais idéias, influenciadas pelo romantismo e refletindo a obra de Samuel Taylor Coleridge (ver VII:13), foram apresentadas em livros como Deus em Clj-isto (1849) e A Aidtu~rvezne o Sobrenaturul(1857).
Os presbiterianos também foram lacerados pela controvérsia. Aqueles que, frequentemente oriundos de conrexto escoro-irlandês, defendiam firmemente os padróes confessionais e as tradicóes de um ministério culto, ficaram preocupados com os reavivalistas da fronteira, cujas posturas doutrinárias e padrões de ordenaçáo eram mais frouxos. As tentativas para refreá-los, porém, apenas conduziu ao cisma. Em 1803, Barton W. Stone (1772-1844) levou um grupo de presbiterianos evangélicos a abandonar o sínodo do Kentucky. Essas "Novas Luzes" Iogo abandonaram qualquer denorninaçáo "sectária", desejando ser conhecidos simplesmente como "crisráos". Alguns anos mais tarde, tenrativas para disciplinar reavivalistas presbiterianos de Cumberland (Kenrucky) provocaram um rompimento
explícito e a formaçáo do
que veio a ser a Igreja Presbiteriana de Cumberland. Alguns dos grupos presbirerianos menores também foram atingidos pelo cisma. Thomas Campbell (1763-1854),ministro presbiteriano da separacáo do norce da Irlanda, foi para a América em 1807 e
vtnroon vil
O ERISTIANISMO MODERNO
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começou a trabalhar no oeste da Pennsylvania. Sua disposiçáo em acolher à comunhao presbiterianos de rodos os matizes provocou críticas e ele foi disciplinado pelo Presbitério Separado de Chartiers. Campbell sentiu-se no dever de protestar contra tal sectarismo e afirmar como
de todo discipulado cristáo apenas os ccrnios
Iircrais da Bíblia, conforme ele os entendia. Ele rompeu com os presbiterianos separados mas continuou a trabalhar no oeste da Pennsyl~ania,anunciando como seu princípio: "Onde a Escritura fala, nós iamos os; onde ela cala, nós calamos." Ele não planejara uma nova denominacáo, mas a união de todos os criscáos sobre essa base biblica, sem provas adicionais de crença ou rito. Em agosto de 1809 Campbell orgaiiizou a Associagáo Criscá de Washington - assim chamada pois se originou no condado de Washiilgton, na Penn~~lvania - e preparou para ela a "Declaraçáo e Aiocuçáo", que desde entáo rem sido considerada como um documento f~indamentaldaquilo
que seria conhecido como o movimento dos Discípulos. No mesmo ano, o filho de Campbell, Alexander (1788-1866), foi para a América e logo superou seu pai em fama, como defensor dessas idéias. A despeito de seu desprezo para com o sectarismo, os Campbcll organizaram uma igreja eni Brush Run, P e n n ~ ~ l v a n iem a , maio de 181 1. Desde o inicio celebravam a ceia do Senhor todos os domingos. Mas surgiram dúvidas quanto aos fundamentos bíbIicos do batismo infanril. Em 1812 os Canipbell e alguns de seus acompanhantes foram batizados por irnersáo. Um ano depois a igreja de Brush Run se filiou à Associaçáo das Igrejas Batistas de Redstone. Porém, logo surgiram pontos de desacordo com os batistas. O s C:ampbell discordavam do calvinis~noestrito dos baristas. Para eles, o Antigo Testamento tinha muito inenos autoridade que o Novo. Para os batistas o batisino era u m privilégio do pecador já perdoado; para os Campbell era uma coildiÇáo para o perdáo. Ademais, os Can~pbell,sem serem sob nenhum aspecto uni~ários,foram influeiiçiados até certo ponco pelo pensamento d o Iluminismo, e se recusavam a empregar outras expressões que náo as bíblicas com refcrgncia ao Pai, ao Filho e ao Espírito Sa~ito.O resulrado foi se afastarem dos batistas, afastamenro que se pode dizer foi complerado c n ~1832, quando os seguido-
res dos Campbell se fundiram com a massa dos acompanhantes de Barton Stone para formarem os Discípulos de Cristo. Talvez fossem na época virite c cinco mil, mas
antes
do fim do século já passavam de u m 1niIháo.
A perda dos reavivalistas mais extremados dos principais grupos presbicerianos de forma alguma encerrou a tensão quanto ao reavivamento dentro daquela cornu-
RlSTÓRlA DA IGREJA CRISTA
7.72
nháo. O s presbiterianos da "Nova Escola" que simpatizavam com a teologia de New Haven e trabalhavam sem restrições com o império benevolente, foram fortalecidos pela aplicaçáo do Plano de União, que trouxe pessoas de formação congregacional à jurisdiçáo presbiteriana. Em 1837 os presbirerianos da "Velha Escola" estavam suficientemente fortes para expulsar da igreja os presbitérios suspeitos, assim dividindoa em duas. A tensáo teológica e a controvérsia qlianto às sociedades voluntárias, as quais náo se encontravam sob o controle direro da igreja, foram motivos centrais na divisáo.
A Sociedade dos Amigos também se dividiu. Joseph John Gurney (1788-1846), um quacre inglês, lidcrou um movimento evangélico favorecendo algumas ênfases e técnicas reavi\raIistas. Elias Hicks (1 745-1830), de Long Island, foi a figura central da reação liberal. A "Grande Separagáo" ocorreu em 1828-29, terminando em grupos isolados - "ortodoxos" e "hicksistas".
A ressurgência do reavivamento também produziu controvérsia nos círculos luteranos. A principal voz no luteranismo na primeira metade do século dezenove foi Samuel Simon Schmucker (1739-1873). Ele favorecia um "luteranismo americano", no qual caberiam algumas práricas reavivalisras. O s luteranos de inclinasáo cotifcssional ficaram perturbados, e o Sínodo Geral (ver VII:10) no qual Schmucker era preeminente, padeceu com dissensões e rompimentos, especialinentc quando as ondas de imigrantes alemães e cscandinavos traziam muitos lutcranos que julgavam estarem as igrejas americanas afastadas da verdadeira tradi~áoluterana. Como a imig r a ~ ã ofortaleceu a reapari~áoconfessionai, declinou a influência de Schmucker. Em 1867 o Sínodo Geral eilconrrou rivai no Concílio Geral, e o semiiiário de Schmucker em Gettysburg (fundado em 1826) foi igualado pelo de Mounc Airy, Pennsylvanilia
( 1 864). O vulto central no desenvolvimento posterior foi Charles Porterfield Krauth (1823-1 883), aumr de A Rrfirilzo Co~zsei.vado~-a e szia Yéoiogin (1871). Ern algunias denominacóes náo ocorreu cisma declarado por causa do reavivamento, mas houve considerável tcnsáo interna. Nas igrejas reformadas alemás houve fori-eresistência por parte dos expoentes cio "sjsierna do cacecisrno" a expansáo do "sistema do rea~livarnenro".Preeminentes entre aqueles cram o teólogo lohn X! Nevin (1803-1 886) e o historiador eclesiástico Philip Schaff (18 19- 18931, do seininário de hlercersburg, Pennsylvania. Mas a teologia de Mercersburg fez pouca cuntribuiçáo direta; sua significação mais ampla foi redescobcrta somenre
110 século
vinte. Na Igreja Episcopal Protestante homre pouco reavivamento do tipo vigente,
PERIOIO YII
O CRISIIARISMO MOOERMO
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mas havia um forte partido da rendência igreja baixa, evangélico. Nesse p r t i d o , o bispo Alexander Viets Griswold (1 766- 1843), da diocese do leste, foi muito importante. O s primeiros anos do século assistiram ao ressurgimento do partido da tendência alta igreja, sob a liderança do bispo John Henry Hobarr (1775-1830), tendência que se fortaleceria com o surgimento do anglo-catolicismo (ver VII:13). A Igreja Episcopal era pequena nesse tempo, mas cresceu continuamente no decorrsr do século dezenove, especialmente nos centros urbanos. O s cismas denominacionais mais sérios do século dezenove ocorreram em conexáo com a luta concra a escravidáo. A crescente antipatia para com a escravidáo conduziu à orgairizaçáo da Igreja Me~odistaWesleyana da América em 1843, baseada rio princípio de que nenhum membro poderia possuir escravos. A questão estava porranto no primeiro plano quando a Conferência Geral da Igreja Metodista Episcopal se reuniu em 1844, e logo surgiu uma disputa sobre a rnanutengáo de um bispo possriidor de escravos. O s sentimentos nortista e sulista estavam irremediavvelmente divididos. A conferência adotou um relatorio permitindo a divisáo da igreja, resultaildo disso a constituição, em 1845, da Igreja Metodista Episcopal do Sul. Na mesina época, uma divisáo sernelhai~reseparou os batistas do norte e do sul. A Convetqáo Batista do Estado do Aiabarna exigiu, em 1844, que a Junta de Missóes Estrangeiras não fizesse discrimina~áocontra os possuidores de escravos na nomea-
çáo de missionários. A Junta declarou que não tomaria neiihu~iiaatitude que implicasse apoio à escravidáo. O resultado foi a divisão das igrejas r a formação da Convenção Batista do Sul, em 1845. Conforme a Guerra CiviI (1 861-1865) se aproximava, outras igrejas sc dividiam.
A Içrcja Presbiteriana da No7.a Escola se dividiu em 1857 e a Velha Escola eni 1861. As duas alas s~llistasse fundiram em 1864 sob a designac;áo de Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, e as duas alas nortistas se u~iirariiem i 869-70 sob o nome de
Igreja I'resbiteriana 110s Estados Unidos da Amtrica. A Igreja Episcopal Protestante esteve dividida apenas durante a guerra, tornando a se unificar quando ela terminou. As igrejas auxiliaram suas respectivas regiões durante a gucrra. Ap6s a luta, a grande maioria dos cristáos negros se tornaram membros de seus próprios grupos organizados independentemente,
a Convenção Batista Nacional e as igrejas
Metodista Episcopal Africana e Mtrodista Episcopal Africana dc Sião, um pouco menores. hlçunias das priiicipais deriornina~óesbrancas possuíam expressivas minorias negras, c houve corisiderivcf aumento n(i nú~iierode seitas negras, especialmerite
nas áreas merropolicanas.
A fundacão de muitos novos seminários e faculdades foi estimulada pelo despertamento religioso, pelas controvérsias e pelo surgimento de novas denomina-
cões. O séciilo dezenove presenciou o início de c e n t e n a s d e faculdades denominacionais, inuiras de vida efêrnera. O propósito principal destas escolas era auxiliar no preparo de homens para o ministério. Mas a necessidade por preparo para o ministério ainda mais especializado era sentida cada vez mais. Em 1784 a Igreja Reformada (Holandesa) instituiu o preparo ministerial, o qual mais tarde desenvolveu-se em um seminário teolcigico em New Brunswick, New Jersey. E m 1794 os Presbiterianos Associados (depois Unidos) começaram a instrucáo teológica n u m seminário que mais tarde se fixaria em Xenia, Ohio, de onde tirou seu nome, e finaIrnente em Pittsburgh. Os luteranos fundaram uma insrituiçáo similar em 1797, localizada cm Harnvick, Nova Iorque. Em 1807 os rnorávios fundaram uma escola teológica em Nazareth, Pennsylvania, posteriormente transfcrida para Bethleliem. O seminárici teológico melhor equipado e, em ~niiitosaspectos, o iniciador dc uma nova era, foi aquele fundado e m 1808 pelos congregacionais em Andover, Massachusetts. Quatro anos depois os presbiterianos fundaram u m seminário em Princeton, Nova Jersey Os congregacioriais fufuiidaram o Seminário Teológico de Bangor, no Maine, em 18 14, e cinco anos depois, sob a influência unitária, foi aberta a EscolaTeolbgica da Universidade Harvard. O s bacisras iniciaram um seminário em Hamilton, Kova Iorque, em 1820, enquanco os presbiterianos fundaram uma escola cm Auburn, Nova Iorque, na mesma tpoca. Em 1822 os congregacionais abriram a
Escola ?eológica da Univrrsidade E l e . Assim as ilistituicóes para o prcparo ministeria1 se multiplicaram rapidamente e por volta de 1860 haviam aumentado para cinqüenta. Na primeira parte d o século dezenovc, no clima emocional estimulado pelo dcspertamcnco, surgiram vários movimentos que representavam signiiica~iirosafastamentos ou distorcóes d o modelo protestante evangklico. Uni desenvolvimento peculiar da interpretaqáo profttica foi o de William Millcr (1782-1849), fazendeiro batista de 1.05s. Hampton, Nova Iorquc. Iniciando em 1831, ele pregou assiduamente, afirmando, baseado em cálculos feitos no livro de Dunicl, que a segunda vinda de Cristo e a inauguracáo do seu reino milenário ocorreria entre 1843-44. Ele conquistou milhares de seguidores. A despeito do fracasso de sua prediçáo, em 1845 seus discípulos realizaram uma conferência geral de adventisras, como a si mesmos se
rriloeo vil
O CRISTIANISMO MODERNO
775
denominavam. Grupos de seus discípulos perduram aré hoje, alguns deles aderindo à observância do sétinio dia. O mais notável dentre estes foi formalmente organizado
em 1863 como Adventistas d o SPtimo Dia. A fé adventista, muitas vezes combinada com ênfases pentecostais ou perfeccionistas (santidade), teve papel importante na formação de novas seitas na América, no fim do século dezenove e início do sécuio vinte. O movimento que posteriormente se tornou conhecido comoTesternunhas de Jeová, fruto peculiar do ensino adventista, começou no final da década de 1870, sob a liderança de Charles Taze Russell (1852-1916). Um movimento nutrido na atmosfera reavivalista do "super ardente" interior d o estado de Nova Iorque, mas que logo assumiu seu próprio e altamente peculiar rumo foi o mormonismo. Foi fundado por Joseph Smith (1805-1 844), que dizia ter desenterrado nas ~roximidadesde Manchester, Nova Iorque, em 1827, um volume de folhas de ouro, o Livi-o de Mármon. Tal livro era um complemcnco da Bíblia, escrito com letras misteriosas que Smith pode traduzir utilizando óculos mágicos, mas cujo original foi arrebatado por um anjo. Nesse livro Smirh é proclamado profeta. A primeira igreja mórmon foi organizada enl 1830, ein Fayette, Nova Iorque. Mais tarde a maioria de seus membros foram recrutados nas cercanias de Kirtland, Ohio, onde Brigham Young (1 801 -1877) se filiou a essa igreja. Em 1838 os líderes mórrnons se mudaram para Missouri, e em 1840 fundaram Nauvoo, Illinois. A despeito do
Livra de Mó~monprescrever a monogamia, Smith proclamou ter recebido uma revclaçáo, em 1843, estabelecendo a poligamia. A hos~ilidade~ o p u l a rculminou com seu assassinato no ano seguinte, pela multidão enfurecida. Então a igreja ficori sob a liderança de Brigham Young, organizador e líder da maior capacidade. Sob seu coniando os mórmons seguiram para Salt Lake, em Utah, e ali estabeleceram uma comunidade de g a n d e ~ r o s ~ e r i d a dmaterial. e Em rirtude da pressáo governamental, a poligamia foi oficialmente abandonada em 1890. Os mórmons têm-se revelado missionários infatigáveis, recrutando muitas pessoas na Europa e implailrando sua igreja 110s mais diversos países. Seu sistema de supervisáo econômica e social tem sido nocável. Seu sistema teológico ímpar está baseado em três fontes de r e ~ e l a ~ áao : Bíblia, o Livro de Mórmon e os livros registrando as revelaçóes progressivas diretas, alegadas como tendo sido recebidas de Deus por Joseph Smith, especialmente o "Doutrinas e Pactos". Além da principal Igreja de Jesus Crisro dos Santos dos Últimos Dias, com sede em Salt Lake City, Utah, há um grupo muito menor com sede
em Xndependence, Missouri.
HISTÓRIR DA IGREJA C R I S I I
'-6
N o período entre a Guerra Civil e a Primeira Guerra Mundial, a ênfase reavivalista d o protestantismo americano continuou vigorosamente. O evangelisca leigo Dwight
L. Moody (1837-1899) foi seu expoente mais notável. Organizador infatigável e pregador agressivo, Moody foi uma força poderosa na vida protestante. Scus mCtodos de reavivamei~toforam largamente copiados e seu entusiasmo missionário contribuiu
significativamente para o crescime~itocorirínuo da obra missionária n o
es-
trangeiro. hlas a atmosfera intelecrual d o final d o século dezeiiove era de rápidas m u d a n ~ a s ,e muitas novas opinióes desafiavam frontalinente as idiias acalcritadas pelos protestanres conservadores. O impacto das re\~oluçóesno pensamento cieritífico e histórico estava reE~zetidoos concei~osdominantes da natureza do mundo e de
sua história. Aqueles que foram educados nas noçóes bíblicas tradicionais sobre a Criação foram ahaIados pelas novas idiias oriundas dos geólogos por um lado c, por outro, d a crítica bíblica. Muitos protestances reagiram apegando-se com rigidez ainda maior às suas noqóes de infalibilidade bíblica. Eles esrabelecerzm uma série de iniporrantes conferencias bíblicas para defendererii suas opiniões: Niagara, Winoria e RockY Mouritaiii. C m i-csuriiu popular de suas nocóes tornou-se conhecido como a i Escritura, a divindade os "cinco pontos d o Lndanieiitalisrno": a iilerrância ~ ~ c r bda de Jesus, o nascimento virginal, a expiaqáo subsíieutiva e a ressurrei~áofísica e o retorno corpórco de Cristo. A causa conservadora foi forcalccida por conferencias profhicas, pela fiindacáo de cscolas bílilicas e pelas atividades de inúmeros rcavil. I'iscas itineranres. No final do século de7eno~ee início do vinte, surgiram diversos movimentos ~eolo,rricarncntecoriseri~adoresque engendraram novas famílias denominacionais nos Esrailos Unidos e, por irirerr-nédio de seus empreer-idirnentos n~issionários,rambém cni outros países. A rradiqao merodista no início afirmava a possibilidade de perteicão na vida cristá (lrer VII:?); conforme esra ênfase declinava no stculo dezenove, eriirii forriiadas diversas reunióes de acampamento para santit:cacáo
[iinliness],
enfarizando rigor moral e o p o s i ~ á oàs tendkncias libcrais. K a década de 1850, virios dos merodisras da sanrificaqáo [inetudistas h o l i i i t j ~ ]junramctit-e , com oucros di: contcsros denominacioliais diferentes, forrnarani corigregacóes separadas que se fundiI-am em várias combirlagóss fòriliaildo um arco de dcnominaçóes de santificayao, sendo a mais numsrosa a Igreja d o Kazareno. O Exército da Salvaçáo (ver VII:13), que chegara aos Estados Cnidos pro.i~enientcda Inglarerra eir1 1880, foi outro notável grupo de sa~itifica~áo, engajado principalnie~ireno ministério aos moradores em
~ ~ n i o v11 oo
O CRISIIANISMO MODERNO
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favelas. As igrejas da santificaçáo forneceram, no início do século vinte, muitos dos líderes de outro movimento, o penrecostal. O s dois movimentos eram semelhantes em configuracáo - biblicismo conservador, pré-milenarismo, moralidadc rigorosa e cura
fé - mas a doutrina pentecostal peculiar da descida do Espírito Santo evi-
denciada pela "glossolalia", ou falar em línguas, rapidameilce distinguiu nitidamente o novo movimento. Rapidamente, também, o movimento pentecostal ultrapassou numericamente as igrejas de santificaçáo. Uma série de reunióes de reavivamenco conduzidas por um evangelista negro, William J. Seyinour (?-1923),na rua Azusa, em Los Angeles a partir de 1906, forneceu um i n ~ p u l s opara a escalada d o pentecostalismo em um fenômeno dc ahrangência mundial. Ali muitos receberam o que sinceramente acreditavam ser o batismo do Espírito Santo, uma "terceira bênç5o" além da justificaçáo e da sa~itifica~áo. O rcavivamento perdurou por três anos, e atraiu centenas e depois milhares de vários pontos dos Esrados Uilidos. Muicos que se tornariam líderes no novo movimento pentecostal receberam a terceira bênçáo ali; entre eles havia tanto brancos como negros. C o m o fora o caso ein muitos reavivamentos anteriores, os relatos do que estava acontecendo variavam consideravelmente e o iriovimenco se tornou alta~iientecontroverso. Alguns acreditavam que era obra do Espírito Santo, enquanto outros julgavam ser um absurdo emocional. Pessoas do exterior também foram atraídas para a rua Azusa e o pentecosraIismo logo se tornou um fenômeno mundial chegando 5 Europa, Ásia, hfrica e América do Sul.
Em seus primeiros anos como um movimento crescente nos Estados Unidos, o movimento náo estava nitidamente definido; muitos daqueles tocados pela agicaçáo pentecostal permaiieceram no início em suas antigas igrejas. Logo, porém, comeqaram a se formar igrejas penrecostais que depois se dividiram em um arco de denomi-
naqóes sob a influência de três controvérsias, duas teológicas e uma salientemente racial. A partir de 1910, muitos pentecostais passaram a rejeitar a doutrina da tercci-
ra bênçáo e a ensinar que a santificaçáo niío estava separada da juscificaçáo mas que ambas eram parte do ato de conversão baseado na "obra completa de Cristo
110
Calvário", de forma que o batismo no Espírito Santo era a segunda - e última
-
bênçáo. Estas novas idéias se difundiram rapidamente, e conduziram à formaçáo, em
1914, das Assembléias de Deus, que logo se tornariam no maior grupo pcnrecostal dos Estados Unidos. A nova denominaçáo Iogo foi dilacerada por uma segunda controvérsia teológica que surgiu quando alguns começaram a ensinar que os apósí.010~ batizaram seus conversos em nome de Jesus apenas, e que há apenas uma personali-
I
776'
HISTOR1A DA IGREJA CRISTd
dade ein Deus, Jesus Cristo, sendo os termos Pai e Espírito Santo somence rículos. Essc movimento Jesus Apenas, ou Nome de Jesus, cujos seguidores romperam com a trinitária Assembléias de Deus para formarem as Assembléias Pentecostais do Mundo, eventualmente se desenvolveram em uma faniília de denomina~óes.A terceira cotitrovérsia foi principalmente racial quando o movimento que no início fora bastante interracial sucumbiu aos limites de cor. Entre o crescente número de grupos pentecostais trinicários, por exemplo, as Assembléias de Deus permarieceram amplamente brancas, enquanco que a Igreja de Deus em Cristo, liderada por Charles H. Mason (1866-1961), tornou-se uma igreja negra. O primeiro entre os principais dos grupos Jesus Apenas, as Assembléias Pentecostais do Mundo, no início era interracial, mas em 1924 os brancos se retiraram para outros grupos. Enquanto muitos protestantes foram assiiri orientados para padrões religiosos conservadores, outros reagiram de maneira completamente diferente, procurando reter a orientaçáo evangélica, mas refazendo sua fé de modo a ficar em sintonia com o pensamento cicnrífico e histórico da época. Extraindo muiras de suas idtias do movimento de Ritschl na Alemanha e do movimento de igreja ampla na Inglaterra (ver VII: 12), rravaram longas batalhas para a aceitaçáo do pensamento evolucionista
e da maneira crítica de abordar a RíbIia. Muitas seminários defenderam a abordagem liberal; a "orcodoxia progressiva" de Andover, por exemplo, revelou ser apenas uma cransicáo para o liberalismo.
Unia série de julgamentos de heresias marcou o surgimento da teologia liberal. Especialmente importante foi a deposição do professor Charles A. Briggs (184 1-
1913) do Union Theological Seminary, de Nova Iorque, pela Assembléia Geral Presbireriana, em 1893. Durante a luta, o Union rompeu seus laços com os presbiterianos e se apresentou como defensor da linha liberal. No início do século vinte os liberais haviam conquistado seu lugar em muicas denomina~óes.Nas décadas seguinres, conservadores militantes fizeram um
esforce decidido para expulsj-
10s através da amarga controvérsia fundamentalista-modernista. Por volta de 1930, praticamente fracassados, procuraram se reunir em igrejas independentes e denominacóes dissidentes. O s fundamentalistas riveram como líder o professor presbiteriano
J. Gresham Machen (1881-1937) e os liberais o ministro batista Harry Emerson Fosdick (1878-1969).
O período de 1865 a 1914 presenciou crescente reconhecimento da obra feminina nas igrejas protestantes. 0 s congregacionais fundarairi, em 1868, uma Junta Fe-
P E R ~ UII ~ ~ ~ D
O CRISTIANISMO MODERNO
7 5
minina de Missóes Estrangeiras. Seguiram-nos a Igreja Metodista Episcopal, no norte, em 1869; os presbiterianos do norte, em 1870; e a Igreja Episcopal Protestarite, em 1871. Organizacóes similares para as rnissóes nacionais e esrrangeiras se tornaram praticamente universais no protestantismo ariiericano. Há muito tempo as mu-
lheres eram clcgíveis nas conirençóes representativas das igrejas batista e coligregacional.
Em 1900 elas obtiveram o direito de ser eleitas às conferências gerais mcrodistas. Algumas denominaçóes as ordenaram ao ministério, principalmen~ebatistas, congregacionais, discípulos de CIristo, unitários e universalisras, como também os novos grupos de santifrcaçáo e pentecostais.
O mesmo período também foi marcado por cresccntc atençáo por parte das igrejas à sua mocidade. O movimento não denominacional Esforco Criscáo foi fundado pelo congregacional Francis E. Clark (1852-1927), em 1881. As denomitiacóes adotaram a idéia, e em 1889 foi organizada
elos metodistas a Liga Epworth; em 1891
foi formada a União da Mocidade Batista; e em 1895 foi estabelecida a Liga Luterana, para jovens lureranos.
Um aspecto imporrante da vida religiosa depois da Guerra Civil foi o contínuo aumenro na demarida por iim ministério culto liaqueles grupos que formalmente
haviam demonstrado pouco interesse por tal preparo. Essa demanda foi acompanhada por provisáo constantemente crescente, uma vez que os antigos seminários teológicos continuamente ampliaram suas instala~óes,aumentaram o nú~ilerode seus docentes e estenderam scus currícuios. Ao mesmo tcmpo, foram fundados muitos novos seminários. Em 1900 funcionavam mais de cem cscolas teológicas protestantes.
No final do stculo dezenove, os movimentos religiosos que têm sido denornina-
dos "Novo Pensamenro", "Cura pela Mente" e "Harrnonista" exerceram considerável influência dentro de muitas igrejas protestantes, e também provocaram a formacão de alguns novos grupos religiosos.' Not3vel entre eles foi a Igreja de Cristo (Ciencista), ou Ciência Cristã. Sua fundadora, Mary Baker Eddy (1821-19 10), que fora por muito tempo assolada por enfermidade, afirmara que, após uma qucda no gelo em 1866, ela fora curada extraordinariamente e conduzida à descoberta de como estar
em boa saúde e como curar outros. Em 1875 ela publicou a primeira ediçáo de
'Ver Sydney E. Ahlsrroni, A Re(fior4i Hi~toryIlftbeA~n?ricniaPeopir ( L \.olumes, Gardrn Civol. 2 , cap. 60, pp. 528-548, "Harmonia1 Rcligion since the Larer Ninetrenth Crncury".
NY,1375),
780
HISTÒRIA DA IGREJA CRISTn
Ciê~cidr Sadde com Chave para as E~ci.zturas.Naquele mesmo ano foi organizada uma sociedade Cisncia Cristá e em 1879 a nova igreja recebeu alvará de funcionamento em Boston. Ela espalhou-se para outras cidades e nações, alcançando um tamanho estimado em cerca de cem mil membros quando da morre de sua fundadora. Surgiram diversos outros movimentos algo similares, alguns deles ramifrcacóes da Ciência Cristá. Em 1889 Charles e ~ M ~ r tFillnlore le fundaram a Escola de Unificaçáo do Cristianismo, em Kansas Ciry, Missouri. Buscando aprofundar a vida de oração e sua eficácia nas igrejas c na sociedade maior, a Unificaqao no início resistiu se desenvolveu em uma a se tornar rima nova igreja; não obstante, ela ~a~arosarnence denominacão autônoma. O s anos finais do século dezenove presenciaram o despertar de profundo interesse social por parre de muitos cristáos. O "evangelho social" foi promovido por líderes como os ministros liberais Washington Gladden (1 836-191 8) e Wdter Rauscheiibuscl~
(1 861- 19 18). Ele valeu-se do cristianismo social da Grá-Rretanha e do continente europeu (ver VII: 13, 14), como tambim do perisarnento social de vanguarda americario. No começo do século dezenove o proces[antismo expressara suas preocupacões sociais principalmente e m termos individuais, insistindo ein beneficência e reforma moral. O evangelho social, porém, centrou-se nos aspectos corporarivos da vida moderna c na consecução da justiqa social. Dedicava g a n d e atençáo às relaçóes entre capital e trabalho, c o movimento influiu na diminuigo do número de horas diárias de trabalho. Devotado à edifrcaqáo do reirio de Deus na terra, o evangelho social foi especialmente imporrante na vida e obra dos presbiterianos, batisras e metodistas do norte e entre os congregacionais e episcopais. Devido iinfluência do cristianismo social, foram adicionados cursos de Crica social aos currículos dos seminários e cstabelecidos nas denominacóes departamentos de acáo social. Foram estabelecidas, sob auspícios protestantes, diversas instituiçóes sociais em áreas marginalizadas; foram construídas muitas igrejas insritucionais para prestarem senriço social às massas urbanas. A ênfase social foi fortemente sentida no campo missionário, onde as missões agrícolas, médicas e educacionais se expandiram.
PER~OUOYII
O EAISTIANISMO MODERMO
Capítulo 1 6
O Catolicismo Romano no Mundo Moderno Nos meados do século dezessete a Contra-Reforma perdera sua força. Tal força residira no poderio espanhol e no zelo dos jesuítas. A Espanha saíra da Guerra dos Trinta Anos despojada de seu poderio. 0 s jesuítas, embora mais poderosos que nunca nos conselhos da igreja cacólica romaria, haviam se tornado mais mundanos e
conservado pouco do seu primitivo zelo espiritual. Nenhum dos papas dos séculos dezessete e dezoito foi homem com capacidade de iiderança. Diversos, como Inocêncio
Xi (1676-1 689), Inocêncio XII (1691-1700) ou Bento XIV (1740-1758) possuíam excclçnte caráter e intenção, mas náo sabiam liderar. A vida da igreja católica era de debilidade crescente diante das pretensóes cada vez maiores dos governas ci1.i~católicos. Não era mais possível um ataque realmente eficaz ao protestantismo, exceto quando este existia em países predominantemente católico-romanos, como na Fran-
ça. Na Franca do século dezessere, a posiçáo catblica foi fortalecida pela consecucáo de um alto nivel de piedade carólica. Em 161 1, Pedro dc Bérulle (1 575-1629) fundou a Congregacáo do Oratório francesa, p n d e inspiradora de espiritualidade. A obra de BérulIe influenciou hndadores de novas ordens e uiitores de escritos espirituais como Sáo Francisco de Sales (1567-1622) e São Vicenre de Pauln (1576?-1660). Sob Luís XIV (1643-1 71 5 ) a monarquia francesa buscou uma polírica ditada pelo absolutismo real. Contrariamente i s pretensões papais, Luís XIV reivindicou a posse pela coroa de toda renda dos bispados vacances e favoreceu, em 1682, a proclamaçáo das "Liberdades Galicanas"
elo clero francês. Segundo elas os governantes
civis tinham plena autoridade em assuncos temporais, os concíIios gerais eram superiores ao papa, os costumes da igreja francesa limitavam a interferência papal e o papa não era infalível. Isso provocou uma controvérsia que foi resolvida em 1693, e com tal sabedoria que o rei manreve as rendas discutidas, mas concordando em ser menos insistente na afirmaÇáo das liberdades galicanas, embora ~ u d e s s e melas ser mantidas e ensinadas. Com respeito a seus próprios súditos, a política de Luís XIV foi determinada por sua concepçáo de unidade nacional e pela influência jesuita, especialment-e após seu casamento com Madame de Maintenon, em 1684. Um ano depois ele revogou o
AISTORIR DA IGREJA CRISTI
782
edito de Nantes (ver VI:12) e declarou ilegal o protestantismo, sujeito hs mais severas
penas. O resultado final disso foi desastroso para a França. Milhares de seus cidadáos mais industriosos emigraram para a Inglaterra, Holanda, Alemanha e América. As antigas aliancas coni potências protestantes foram rompidas, o que contribuiu sobremaneira para os fracassos milirares dos últimos anos do reinado de Luís XIV.
A influêricia jesuíta provocou desasrre semelhanre ao opor conjuntamente o rei e o papa ao jansenismo. Cornelius Jansen (1585-1638), bispo deYpres, católico sincero, era agostiniai~oextremado e estava convicto de que as interpretaçóes jesuítas sen~ipela~ianas com referência ao pecado e i graça deveriam ser combatidas. Sua obra principal, Augustinus, foi publicada em 1640, após scu falecimento. O livro de Jansen foi condenado pelo papa L'rbano Vi11 (1623-1644), em 1642. As idiias de Jansen, no entanto, tiveram muitos defensores enrre os católicos mais prof~~ndamente religiosos da França, principalmente no convento de monjas de Port Royal, perto de Paris.
C)
adversário mais influenre dos jesuítas foi Blaise Pascal (1623-1662),
especialmente com suas Cartas Provinciais (1656-1657). Luís XIV apoiou o combate dos jesuítas ati jansenismo c perseguiu seus seguidores. Em 1710 foram derribados os edifícios de Port RoyaI. O jansenismo encontrara novo líder de capacidade em Pasquier Quesnel (1634-1719), que teve de procurar refúgio na Holanda. Seu comenrário devocional, Reflexóes Morais no Novo Testamento (1687-1692), levantou forte oposição jesuíta. Devido aos esforcos dos jesuítas, em 1713 o papa Clemente
XÍ (1700-1721). através da bula Lrnigenirus, condenou cento e uma das afirmacóes de Quesnel, algumas tiradas literalmente de Agostinho. Louis de Antoine de Noailles (1651-1729), cardeal arcebispo de Paris, protestou e apelou para um concílio geral. Esta oposicáo, porém, foi em váo. 0 s jesuítas, apoiados pela monarquia francesa, acabaram triunfando.
Em parte de~ridoa esta conrroxrérsia jansenisca e em parte por causa das querelas entre os jesuítas c o clero romano mais antigo, ocorreu uma divisáo em Utrecht, Holanda. Dela resultou, em 1723, uma pequena igreja independente, denominada Igreja Católica Jansenista, ainda hoje existente, com um arcebispado em Urrecht e bispados em Haarlem e Devcnrer. Para a França a expulsáo dos huguenores e o triunfo dos jesuítas foram grandes iilfelicidades. Enquanto na Inglaterra, Alemanha e Holanda era possí~~el grande diversidade de inrerpreraqóes religiosas, dentro dos limites d o cristianismo, na Franca do século dezoito a escolha era apenas entre o romanismo do estreito cipo jesuíta,
~ t i l o n ovil
O GRISTIRNl~MOMOOERNO
7~7-3
que muitos dos seus mais nobres filhos condenavam, e a maré rapidamente crescenre do novo racionalismo de um Voltaire e seus acompanhantes (ver VIX:3). Milhares preferiram este último, e as conseqüências destrutivas ficariam e\'1'd entes no tratamento recebido pela igreja durante a R e v o l u ~ oFrancesa. No século dezoito, em ourras partes nos meios católicos europeus, se desenvolvia um sentimento correspondente ao espírito galicano francês. Na Alemanha tomou forma conciliar, e foi denominado "febronianismo", do pseudfinimo "Justinus Febronius" adotado pelo seu expoente mais articulado, Nicholas von Honrheim (170 1-1 790), bispo auxiliar de Trier. N a Áustria, mmou forma monárquica, e foi denominado "iosefismo", nome oriundo da política cclesiástica do imperador José 11 (1765-1790). Na úItima metade do século dezoiro ocorreu a maior catástrofe dos jesuítas. Ainda que proibido por sua própria constituição, eles haviam se engajado sobremaneira no comércio colonial; sua influência poIítica era notória e enfrentavam a hostilidade
do racionalismo radical da época. E nesse racionalismo tiveram o inimigo mais determinado. O poderoso ministro do rei José de Portugal (1750-1777), o marquês de Pombal (16'99-1782), simpatizava com o racionalismo. Ele ficou irritado com a resist6ncia dos jesuítas à sua política no Paraguai e se opôs ao princípio jesuíta do livre comércio. Em 1759 determinou a deporcaçáo, com máo de Ferro, de todos os jesuítas dos ecrrirórios portugueses. Também na França aumentava o sentimento conrra
os jesuítas. A força dominante no governo francês era a do duque de ChoiseuI (1719-
1785), simpatizante do iluminismo. Contava ele com a ajuda de Madame de Pompadour, a amante de Luís XV (17 15-1774). Uma grande parte do clero francês também era hostil aos jesuítas. Em 1764 foram suprimidos na França. Espanha e Nápoles os expulsaram em 1767. Os governantes desses territórios forçaram o papa Clemente XIV (1769-1774) a abolir a ordem, em julho de 1773. Esres fatos atestavam a debilidade do papado. O s jesuítas continuaram existindo na Rússia não católica romana e na Prússia protestante. Quando irrompeu a tremenda tempestade da Revoluçáo Francesa, eIa varreu muitos dos privilégios da igreja, da nobreza, do trono e antigas instituiçóes análogas. O s líderes revolucionários estavam tomados do espírito racionalista. Consideravam as igrejas como clubes religiosos- Em 1789 as terras da igreja foram declaradas propriedade nacional. Os mosteiros foram abolidos em 1790. Neste mesmo ano a Constituiqáo Civil do Clero derribou as antigas divisóes eclesiásticas, tornou cada "depar-
784
HISTORII D A IGREJA CRISIA
tamenro" um bispado e estabeleceu que as eleiçóes de todos os sacerdotes seriam feitas pelos eleitores legais de suas comunidades. A constituic5o de 1791 outorgou liberdade religiosa. Encáo, em 1793 ocorreu em La Vendée um levante rcalista e católico; en-i represália os lideres jacohinos pediram a extinçáo do cristianismo. Foram decapitados cenrenas de clérigos. Dcpois que passou o "Terror", em 1795, mais uma vez foi proclamada a liberdade religiosa, ainda que o estado, como tal, não civesse reiigiáo. Ele era, na reaIidade, forrcrnenre anticristáo. Com as conquistas fran-
parcr
cesas, esra situagáo se estendeu aos Países Baixos, ao norce da Itália e h Suíça. Em
pros:
1798 os exércitos franceses fizeram de Roma uma república e o papa Pio VI (1775-
adz
1799) foi levado prisioneiro para a França, onde morreu. O s fatos militares de 1800 levaram ieleigáo de Pio VI1 (1 800-1 823) e à restauraqáo dos Estados da Igreja (ver 1V:4).Napoleáo, ao subir ao poder, ainda que ele
cão
mesmo fosse desprovido de sentimento religioso, reconheceu que a maioria do povo
o ir.:
francês era católica romana e que a igreja poderia ser usada por ele. O resultado foi,
pul: I
em 180 1 , a Concordaca com o papado c os Artigos Orgânicos de 1802. Pela primei-
aníi:
ra, a igreja entregava todas as terras confiscadas ainda não em poder do governo.
$0
Aquelas em posse do governo lhe foram restituídas. As i~omeaçóesde bispos e arce-
r2.r.
bispos seriam feitas pelo papa, mas por indicasão do estado. O baixo clero seria
nac :
nomeado pelos bispos, inas o estado tinha o poder de veto. O clero seria pago pelo
taci.
tesouro público. Pelos Artigos Orgânicos, nenhum decreto papal seria publicado
rai-
nem nenhum sínodo francês se reuniria sem aucoriza~ãogovernamental. Ao mesmo
red~..
tempo, foram garantidos aos protestantes plenos direitos religiosos e assumidos pelo estado o pagamento de seus ministros e o controle de seus negócios. Napoleáo, que se coroou imperador em 1804, logo entrou em questão com Pio VII, anexou os Estados da Igreja em 1809 e manteve o papa em prisão desde essa data até 1814. A Concordata de Napoleáo governaria as relações da França com o papado por mais de um século. Desenhada para submeter a igreja católica francesa ao controle do governo, o que foi conseguido no período de Napoleáo, ela também acabou fazendo com
que o clero francês considerasse o papa como seu único apoio contra o estado. Ao ignorar os antigos direitos locais, ela na verdade arruinou as pretensóes galicanas i liberdade parcial e abriu a porta jquele espírito ultramoncano que caracterizou o catolicismo francês por todo o sécuIo dezenovc. As guerras dos períodos republicano e napoieônico resultaram em importantes m u d a n ~ a sna Alemanha. Em 1803 os antigos territórios eclesiásticos praticamente
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Chrr cor.
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~ ~ n l o ov11 o
O CRISTIANISMO MOOERNO
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deixaram de exisrir, e foram divididos entre os estados seculares. Em 1806, Francisco 11 (1792-1835) abdicou do título de Sacro Imperador Romano. Já tornara o de Imperador da Áustria. Foi o desaparecimento de uma venerável insrituiyáo, o Sacro Império Romano, que, na realidade, desde muito era apenas uma sombra, mas que esrava ligada às lembranças medievais da relaqáo entre estado e igreja.
A queda de Napoleáo em 3 8 15 foi seguida por uma reaçáo universal. O antigo parecia de valor por causa de sua antiguidade. Passariam anos antes que o verdadeiro progresso eferuado pela época revolucionária se manifestasse. Esta reaçáo foi auxiliada pelo surgimerito do romantismo com scrr novo apreço pelo medievo e peia rejeiçáo daquele espírito do século dezoito, que dominara na rcvoluçáo. Franpis Rcné de Chateaubriand (1768-1848), em seu Gênio do Cristianismo (1802), detnonstrou como o catolicismo poderia se beneficiar das correntes românticas, e contribuiu para o início de um rcavivainen~ocatólico. O papado se beneficiou com todos esses impulsos c logo desenvolveu uma vitalidade maior do que tivera durante os cem anos anteriores. Uma evidencia caracterisrica dessa nova posicáo do papado foi a restauração dos jesuítas, por Pio V11 em agosto de 18 14, os quais rapidamente reconquistaram sua antiga ascendência nos conseihos papais e suas vastas atividades, ainda que 1150 recuperassem também seu poder político anterior. Eles têm, por sua vez, se destacado no desenvolvimento e apoio da autoridade papal. Ao mesmo tempo, a restauraqáo do poder da igreja carólica romana foi acompanhada e possibilitada por um reavivarnento verdadeiro da piedade que continuou a caracterizá-la no séc~ilovinte.
O desenvolvimento romano durante o século dezenove foi no rumo da afirmação da supremacia papal, chamada ultramontanismo - isto é, "além dos monees", do ponto de vista da Europa setentrional e ocidenral - ou seja, italiano. A p o s i ~ ã o ultramontana com sua glorificação da posicáo do papa e do rei, foi fortalecida pelos escritos dos "três profetas do t.radicionalismo": Joseph Marie de Maistre (1754-1821), Louis Gabriel Arnbroise de Bonald (1754-1840) e, especialmente, Hugues Félicité Robert de Lamenilais (1782-1854). 0 s jesuítas contribuíram poderosamente para essa tendencia de exaltar o papado acima de todo eclesiasticismo local ou nacional. Leáo XTI (1823-1829), o sucessor de Pio VII, foi reacionário, condenando, como seu predecessor, a obra das sociedades bíbiicas. Gregório XVI (1831- 1846) foi patrono da erudiçáo, mas reacionário com referência aos ideais políticos e sociais modernos. Essa postura essencialmente medieval e a recusa de encontrar-se com o mundo moderno levou à formaçáo, na primeira metade do século dezenove, de partidos cleri-
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HISTORIA DA IGREJA CRISTÁ
cais e anticlericais nos países católicos, cujas contendas grandemente determinaram a política destes países. Uma tencariva da pane do brilhante Lamennais para formar uma aliança entre o catolicisino e o liberalismo, principalmente nos países onde o
cacolicismo era minoria, somente provocou sua condenaçiáo por parte de Gregório.
O pontificado de Pio IX ( 1 8 4 6 - 1 8 7 8 ) ilustra muito bem as teridências ultramontanas. Começando seu pontificado no momento em que os Estados da Igreja escavam à beira da revolta porque os principais cargos políticos eram ocupados por clérigos, no início foi reformador político. PorCm, a tarefa mostrou-se muito elevada para ele, que adorou uma estrutura poIitica reacionária que exigia que ele buscasse o apoio de soldados estrangeiros e desagradasse o povo com seu governo político. Em matéria de religiáo, ele estava sinceramenre convencido de que o papado era uma instituição de origem divina i qual o mundo moderno poderia recorrer para a solucáo de seus complexos problemas religiosos. E desejou deixar isto evidente. Em dezembro de 1854, após consultar os bispos da igreja católica, proclamou a imaculada conceiqáo da Virgem - isto é, que Maria não partilhou da mácula do pecado original.
A questáo estivera em discussZo desde
a Idade Média, mas o balanço
da opiniáo
católica no século dezenove era esmagadoramente favorável à idéia aprovada pelo papa. E eie a elevou, com sua decisáo, a dogma de fé necessário. Em 1864, um sílabo de erros preparado sob os auspícios papais coildcnava muitas
coisas às quais muitos católicos se opóem, mas também repudiava muito daquilo
que constituía o fundamento dos estados modernos, como a separaçáo entre a igreja e o estado, a escola laica e a tolerância de diversidade religiosa, e concluía condenando a afirmaçáo de que "o pontífice romano pode e deve reconciliar-se e concordar com o progresso, o liberalismo e a civilização como ultimamente apresentada."
O fato culminante do pontificado de Pio IX foi o Primeiro Concíiio do Vaticano. Inaugurado a 8 de dezembro de 1869, com uma assistência notavelmente grande provinda de todo o mundo católico romano, seu resultado mais importanre foi a afirma@, em I8 de julho de 1870, da doutrina da infalibilidade papal, por quinhentos e trinta e três votos concra dois. Ela está longe de aiirmur que todos os pronunciamen[os papais são infalíveis. Para que um pronunciamento papal seja considerado infalivel, o papa rem que expor, em seu cargo oficial, "a revelaçáo ou depósito da fé entregue atravis dos apóstolos." "O pontifice romano, quando fala ex cathedra, isto é, desempenhando o ofício de pastor e mestre de todos os cristáos, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina referente à fé ou
P E R I O D ~v[[
O ERISTIABISMO MODERNO
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I
à moral a ser seguida pela igreja universal, pela divina assistência a ele prometida
atravis do bendito Pedro, é possuidor daquela infalibilidade com a
o divino
Redentor queria que sua igreja fosse dotada." Portanto, o concílio selou o triunfo do ultramontanismo. Foi a vitória do rnonarquismo papai e a derrota da teoria da supremacia de um concílio geral, que parecera tão grande no século quinze (ver V:14) e neo ficara sem representantes desde então. Essa definição, embora sendo, indubiravelmente, o resultado lógico de séculos de desenvolvimento papal, encontrou considerivel oposição, especialmente na Alema-
nha. O mais eminente dentre os que recusaram a se conformar foi o notável historiador de Munique, Johann Joseph Ignaz von Dollinger (1799-1890); mas náo obstante ter sido excomungado, ele náo quis iniciar um cisma. O que recusou fazer, outros realizaram, e o resultado foi a organizaçáo dos Católicos Antigos, que receberam ordenacão episcopal da Igreja Jansenista de Utrcchr. Sua difusáo tem sido principalmente na Alemanha, Suíga e Áustria, mas também podem ser ericonrrados em paíscs de língua inglesa. Entrementes, a maré da unidade nacional italiana esteve subindo. A guerra contra a Austria, travada conjuritan~entepelo reino da Sardenha, sob Vitório Emanue111 (1849-1878), e pela Franca, sob Napoleáo I11 (1852-1870), com o coricurso de italianos encusiastas liderados por José Garibaldi (1807-1882), resultou em 1861 no estabelecimento do reino da Icália, sob o governo de Virório Ernanuel, e na inclusáo nele da maior parte dos antigos Estados da Igreja. Em virtude da política uitramontana de Napoleáo 111, Roma e seus arredores foram preservados para o papa. Ao estourar a guerra entre a França e a Alemanha, em 1870, as tropas francesas foram retiradas. E em 20 de setembro de 1870 Vitório Einanuel se apoderou de Roma, e seus habitantes, por cento e trinta e três mil voros contra mil e quinhentos, foram a favor da anexacáo à Itália. O governo italiano assegurou ao papa os privilégios de um soberan o e a posse absoluta do Vaticano, Latráo e Castel Gandolfo. Assim terminaram os
Estados da Igreja, a mais antiga soberania secular sem interrupção ainda existente na Europa. Pio IX protestou e se declarou "prisioneiro do Vaticano", e excomungou Vitório Emanuel. Por meio século, ar6 que a Concordata com Mussolini resolvesse a "Questão Romana" em 1929, o papado recusou-se a aceitar a perda de suas possessóes temporais. Isto, no entanto, teve suas vantagens. Despertou simpatias para com o papa, e as coiitribui~óesvindas do mundo católico mais do que cobriram as perdas financeiras. Libertou o papado de uma tarefa secular para a qual escava mal prepara-
do e que o expunha a acusações bem fundadas de má administraçáo. Deu ao papado oportunidade desimpedida para desenvolver suas funções espirituais e, por fim, aumentou seu prestígio moral. Tais vantagens, no entanto, não ficaram logo evidentes. Por muitos anos pareceu que a igreja estava em retirada ante as forças do mundo moderno, reclusa dentro de seu próprio círculo. Na Itália, por exemplo, Pio IX proibiu aos católicos italianos participarem na vida política do reino da Itália. A conseqüência dessa política de non expedit foi em g a n d e medida forralecer a irifluência de radicais e socialistas. Na Alemanha, na década de 1870, ocorreu a KuIcurkampf,* que lançou a igreja católica contra o estado de Bismarck. Na luta, frequentemente os católicos foram afastados dos seus costumeiros contatos e fontes de rendas, e forgados a consolidar seus interesses de modo diverso. Pio IX foi sucedido por um papa estadista, Leáo XIII (1 878-1903). Este pôs fim aos conflitos enrre o papado e o govilrno imperial alemão. A igreja vencera, mas ao aparenre custo de se ter tornado algo como uma fortaleza sitiada. Leáo instou aos catGIicos franceses para que apoiassem a república, mas os efeitos do caso Dreyfus** deveras atrapalharam seus esforços, e a luta entre igreja e estado na França chegou ao clímax sob seu sucessor. Na Irália, ele continuou a buscar a restauraçáo dos Estados da Igreja, e a tensão entre estado e igreja continuou. No entanto, ele desenvolveu uma política de g a n d e significaçáo para o futuro. As reia5óes entre trabalho e capital e o interesse dos operários prenderam sua atenção. Sua famosa encíclica de 1831,
Rerum novarum, despertou profundo interesse católico com referência às questões
de justiqa social. Leáo insistiu na formacão de uma rede, sob liderança clerical, de associaçóes católicas de finalidade social, beneficente, econônlica e política. Este modelo de "Agáo Católica" se tornou importante fonte de vitalidade no século vinte. Leáo era inclinado para a erudição, recomendava o estudo das Escrituras e declarou que Tomás de Aquino
(V7)era a norma do ensino católico romano. Abriu os tesou-
N.T kírlrtrrkrrmpf't.a designacão dada ao conflito enrrr o zciverno alcmão, liderado por Bismarck, e o ~ a ~ a pd elo o controle de rscolas c tiorneaciies eclesiábticas enrrc 1872 c 1887. Bismarck apro\,ou uina legisiacáo procurando rornpt-r a autoridade e a influencia da igreja cardica no império alzmãv, mas posteriormente fòi forcado a recuar. " N.T. Em 1894 um oficial do çxi.rcito Francès, Alfred Dreyfus, de asccnd2iicia judia, foi acubadu falsameiirc de ter passado segredos militares para os alemães. Seu julgamento, sua prisão e siia posterior reabilitaçáo cm 1906 caiisaraiii g a n d e crise polirica na França, suscitando senrimcnros anrimilitlires e anrisemiras
rtiloeo v i l
fl CRISTIAMISMU MOOEANO
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ros do Vaticano aos historiadores. Procurou a reuniáo das igrejas romana e ortodoxa, embora tenha declarado, em 1896, que as ordens ariglicanas não tinham validade alguma. Foi um papa hábil e zeloso, que reinou num tempo difícil da vida da igreja. Como para as missóes protestantes, o século dezenove cambérn foi um "grande século" para as missóes católicas romanas, ainda que estas tenham demorado alguns anos mais para desabrochar e não cenharn sido ráo iniportanres. A Franca foi a principal base missionária e sua f o r p propulsora, noradamente monges e clérigos, foi fortalecida por n o t á ~ e aumento l no número de monges servindo como missionários. Muitas ordens e sociedades, algumas recém-formadas, participaram no mo\rimento.
Os jesuítas restaurados retomaram rim papel missionário de importância, seguidos oblatos, padres do Espírito Santo, lazarisras, mariscas, dorninicanos, franciscanos, capuchinhos, padres brancos e muitos outros. Novos movimentos para auxiliar as missóes, tal como a Sociedade para a Propagação da Fé, fundada em 1,yon em 1822, despertaram um novo interesse missionário da parte do laicaro. Leigos humildes foram convidados a orar por missóes codos os dias, e a contribuir semanalmente com pequenina quantia. Em 1914 já haviam sido fundadas perto de duas centenas de organizações para solicitarem auxílio do laicaco. Iniporrante desenvolvimento nas missóes católicas rio século dezenove foi um papel sobremaneira aumentado das mulheres, principalmente freiras. No fina1 da década de 1870, mulheres de cerca de scssenta congregaçóes respondiam por mais da metade dos aproximadamente sessenta mil missionários católicos. No final do século contavam-se cerca de cinqüenta e três mil mulheres encre o total, que aumentara para setenta mil. O impeto missionário reacendido, reviveu as minorias católicas na Índia, que em 1870 passavam de um milhão, conduzidas por vinte e um bispos e novecentos sacerdotes. Na Indochina, apesar da perseguicáo, o número de católicos aumentou de cerca de trezentos mil em
1800 para perto de um riiilháo, cerca de cinco porcento da populaqáo, quando da Primeira Guerra Mundial. Na África ao sul do Saara, as tribos anirnis~asprimitivas foram mais facilmente atraídas para o cristianismo do que aquelas de tradição budista, islâmica ou hindu, de forma que em 1914 havia mais de um milhão de católicos na faixa leste-oeste que corta a África central, e outros quinhentos mil rias ilhas, principalmente Madagascar e Maurício. Pio X (1903-1914) contrastou, em muitos senridos, com Leáo XI1I. Esce era nobre, Pio era de origem humilde. Leáo XIII era senhor de g a n d e habilidade diplomárica e ampla visáo. Pio X era um fiel sacerdote paroquial cuja paróquia se tornara
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HIDTORthDA IGREJA ERISTÃ
mundial. Ele foi convocado a lidar com duas questões de extrema dificuldade. A primeira era sobre as relações entre igreja e estado, na França. Apesar dos esforços de Leáo XIII, a maioria dos catúlicos franceses eram tidos como sem enrusiasmo para com a república. Há tempos as relacóes vinham piorando mais e mais. Em 1901 as ordens religiosas que não estaipanl sob o controle do estado foram proibidas de se dedicarem ao ensino. Como algumas se recusassem a obedecer, em 1903 foram extintos vários mosreiros e conventos c confiscadas suas propriedades. Em 1904 o presidente da Franca, Loubet, fez uma visira oficial ao rei da Itália, em Roma. Pio X, considerando o soberano italiano como possuidor ilegal de Roma, protestou. A França retirou seu embaixador jlinto h corce papal e logo depois rompeu toda relacáo diplomática. Em dezeiribro de 1905 o governo fi-aiicês decrerou a separaqáo entre igreja e estado. Foi suprimido todo auxílio governamental tanto a católicos como a protestantes. Todas as igrejas e outras propriedades eclesiisticas foram declaradas pcrtcnceiites ao estado, para serem arrendadas a associaçóes locais, que prestariam contas ao estado, para o culto. Seria dada preferência àquelas associa~óesrepresentantes da fé que por último tivessem ut~lizadoa propriedade em questáo. Embora niuitos bispos franceses se mostrassem prontos a formar tais associaqóes, Pio X as proibiu. O resultado foi um impasse. A manutenção da igreja teve de ser conseguida por meio de contrihuiçóes volundrias. Seria somente na década de 1920 que a igreja alcanqaria base legal na França.
O segundo problema foi causado pelo aparecimento dos "modernistas". Apesar do crescimento do ultramontanismo, a crítica histórica moderna, a investigacáo bíblica c as concep~óescientíficas de crescimento por meio de dese~ivoIvirnentotinham encontrado seguidores, ainda que poucos, na comunhão romana. A alguns homens sinceros e pensadores parecia ser imperativa alguma reinterpretacáo do catolicismo em termos do mundo intelectual moderno. Dentre eles se contaram Herman Schell (1850-1906), na Alemanha; Alfred Loisy (1857-1940), na França; George Tyrrell (1861-1909), na Inglaterra, e um grande grupo na Itália. O modernismo não esrava restrito a nenhum país. Pio X saiu a campo contra tai movimento. Por meio de
um decreto, Lamentabili, e de uma enciclica, Pascendi, ambos de 1907, o modernismo foi condenado e foram tomadas severas medidas para sua repressáo. Loisy efirrell foram excomungados. A impressão de que o cacolicismo esrava se afasrando do mundo moderno foi aprofundada.
O período da Primeira Guerra Mundial, durante o qual foi papa Bento XV (19 14-
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O ERISTIANISMO MODERNO
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1922), preseiiciou notável progresso nos destinos católicos. As instituiqóes católicas de caridade prestaram bons serviços na luta. O renovado prestígio moral e espiritual do papado entáo começou a ser levado em conta. Roma resistira ao desenvolvimento cultural do século dezenove, mas quando esse desenvolvimento entrou em crise durante e depois da guerra, a postura da igreja pareceu menos anacrônica. As organizações da Açáo Católica deram ao catolicismo romano um instrumento efetivo para crescimento e sobrevivência em sociedades pluralistas.
O poiltificado do capaz e culto Pio XI (1922-1939) foi assinalado por franco reavivamento católico. Em seu tempo se tornou claro um renovado interesse teológico, um sigilificativo movimento litúrgico e um permanente interesse missionário. A "Questão Romana" foi finalmente resolvida em 1929 pelo tratado de Latráo, pelo qual o papa aceitou a perda dos antigos Estados da Igreja, em troca de grande soma, e recebeu para si o domínio da cidade do Vaticano. A igreja procurou consolidar suas novas conquistas na Europa por meio de uma série de concordatas com diversos governos, inciuindo acordos com a Itália fascista (1929) e ahlemanha nazista (1933). Quando estes governos quebraram seus compromissos, Pio protestou com duas vigorosas encíclicas, Non abbiamo bisogno (1931) e Mit brennender Sorge (1937). Ele foi defensor da Açáo Católica, posteriormente redefinida como o "apostolado leigo".
O catolicismo romano nos Estados Unidos aumentou continuamente no decorrer do século dezenove e início do vinte, pois as ondas de i~iiigranrestraziam milhóes de católicos aos portos da América. Na primeira metade do século dezenove um dos principais problemas internos foi o desejo de algumas diretorias leigas de paróquias
católicas de terem a prerrogativa episcopal de nomeagáo e destituição de seus pastores. Este "diretorismo" ["trusteeism"] provocou cismas, que em alguns casos perduraram por vários anos, mas por fim os bispos controlaram totalmente a situaçáo. O principal problema externo foi o recrudescimento do sentimento anti-católico, agravado pela chegada na década de 1840 de católicos irlandeses sobremaneira militantes. Entrementes, foi feito um esforço vigoroso, por meio do desenvohimento de escolas paroquiais, de instituiçóes de caridade e da imprensa caróíica, para assegurar a lealdade dos imigrantes que chegavam.
A segunda metade do século foi um período de naturaiiza~áoe americanizaçáo para a igreja católica. A convocação do Primeiro Concílio Plenirio em Baltimore, em 1852, foi um passo para a consolidaçáo das conquistas católicas e para assegurar
um lugar maior na vida nacional. Naquela época os católicos somavam perto de dois mill-ióes - o maior grupo reIigioso individual no país. O vulto central nesse período foi James Gibbons (1834-1921), sagrado bispo em 1868, arcebispo em 1877 e clevado ao cardinalato em 1886. Muito fez para tornar sua igreja familiar à América e amenizar a hostilidade contra os católicos. Acreditava que a separação entre igreja e estado era o melhor para a Arnkrica e a defendeu calorosamente. Lutou pelos direitos dos trabalhadores, ao Tempo cm que o deslocamento das principais fontcs de imigraqáo para o sul da Europa lançava um número ainda maior de pessoas de formaçáo católica nos centros urbanos. Houve aqueles qut: temeram que a igreja católica romana rios Estados Unidos estava se tornando muito americana nessa época de Gibbons, e em 1899 uma carta papal -Testem benevoletlriae - advertiu contra tal perigo.
O catolicismo dcançou a maioridade na América no início do século vinte. Em 1908 a igreja americana foi tirada da jurisdicáo da Sagrada Congregaçáo para a Propagaçáo da Fé, encerrando sua condição de campo missionário. A participaçáo de caeólicos na Primeira Guerra Mundial eliminou
dúvida quanto ao seu
"americanismo" e ainda serviu para abrandar as tensões que perduravam entre grupos ttilicos. h i t m ciisso, o CoilcíIio Catdlico Nacional para a Guerra (1917) demonstrou ser instrumerito efetivo de consolidaqão e progresso e por isto foi mantido como ConferEncia Católica Nacional para o Bem-Estar, instrumento da hierarquia e o centro dinâmico da "Aqáo Católica" nos Eseados Unidos. A viealidade crescente do catolicismo romano na América foi acompanhada por certa crescente resistência da parre ranro de protestantes como de "outros" americanos.
Capitulo 17
As Igrejas Orientais nos Tempos Modernos' A impressáo de muitos ocidentais de que o cristianismo oriental tem tido uma história rotineira nos tempos modernos, por certo reflete apenas o fato de que o
'Esta s q á o está hascada subscancialmenre em material preparado para a segunda ediçáo inglesn (1959) pelo f a l t ~ i d oDr. Edwatd R. Hardy, ciirdo na Berkeley Divinity School em New Haveii.
PERIOOD VII O ERISTIANISMO MODERNO
79.3
estudo da história da igreja oriental tem sido negligenciado n o Ocidente. N a verdade, a história é de tensão e conflito, muito disto provenie~itede pressóes políticas. A "Uniáo Florentina" (ver V: 14) foi rapidamente repudiada pelas maiores igrejas orientais. O metropolita grego, Isidoro de Kici: foi expulso
tentou proclamá-la
e m Moscou, e a partir de 1448 a igreja russa se tornou totalmenre autônoma. E m Constantinopla, a Uniáo perdurara até a queda da cidade diante dos turcos em 1453, mas fora definitivamente repudiada por um sínodo em 1472. O impt'rio turco contiriuou a se expandir; em seu ápice em meados d o século dezesseis incluía a maior parte da península baIcânica, dorigava-se até a Hungria, dominava o mar Negro e abrangia a Ásia Menor, a Arrnênia, a Geórgia, o vale d o Eufrates, a Síria, a Palestina, o Egito e a maior parte da costa setentrional da Afi-ica. Devido a uma diversidacie de razóes, incluindo a compulsáo política e militar, muiros cristãos se convcrrcram ao islamismo. Eriquaiiro súditos dos sultóes, os fiéis ortodoxos foram organizados como uma comunidade serni-autônorna, a "Rum Millet" (Na@ Romana). O s patriarcas exerciam u n ~ aautoridade muito maior sobre seus rebanhos d o que no tempo dos imperadores cristáos, algumas vezes abusando de seus poderes civis. Sujeitos a pesadas exigências e frequentemente depostos, perderam urna igreja anriga após outra até se estabelecerem a partir de 1603 na igreja de São Jorge, no distrito de Pha~iar,em Istambul. Outros prelados orrodoxos se tornaram dependentes do patriarcado ecuinêilico, airida que as igrejas strvia e búIgara tenham manrido certa autonomia até seus patriarcados serem suprimidos, em 1766-1767.A partir de 1461 um parriarca armênio em Istambul ceve posiqáo semelhante como representante civil dos monofisitas. Depois de 1453 o principado moscovita substituiu o império biiantino como o maior estado orrodoxo. Certos eclesiásticos proclamaram a teoria de que, uma vez
q u e 3 Antiga Roma se fizera herética e a Nova Roma fora conquistada, Moscou, c0111 seus príncipes e prelados ortodoxos era a Terceira Roma, quc jamais cairia. Mosreiros como o p n d e Troitsky 1;avra (Mosteiro d a *li-indade),perto de Moscou, f ~ ~ n d a d o por Sáo Sérgio no séciilo catorze, tiram os principais centros de piedade, eruciiSão c
vida cclesicistiça. Uma interessante controi~érsiamtriiástica se lei-antou n o fim d o século quinze entre os "iláo possuidores", liderados por Nil Sorssk!; cliie enfarizavam a vida de oracáo e a pobreza monástica ao prec;o J c liinicarem as atividades ao que era estritarnerice religioso, e os "possuidores", chefiados por Josepli de Volokolamsk, que aceitavam respoilsabilidades sociais e políticas e acolhiam a riqueza e a propriedade
como uma maneira de cumpri-las. A concessão da categoria de patriarca aos metropolitas (1589), como a anterior tomada do tírulo de czar pelos grão-duques, apenas deu reconhecimento formal a uma situacão já existente. Nos séculos dezesseis e dezessete as igrejas orientais tiveram que chegar a um acordo com as influências ocidentais, tanto católicas como protestantes. Lutero e outros reformadores recorreram ao exemplo oriental de um catolicismo não romano. Mas quando os teólogos de Tiibingen iniciaram correspondência com o patriarca Jeremias I1 (1 574-1 584), as respossas deste demonstraram claramente a divergência da igreja grega para com o ensino luterano sobre autoridade, fé, graça e sacramentos. Sob circunstâncias obscuras, o notável Cirilo Lucar (cinco vezes patriarca entre 1620 e 1638) publicou uma confissáo de caráter fortemente reformado, enquanto na Uniáo de Brest (1596), o metropolita de Kiev e outros preIados no que era então território polonês aceitaram os terinos florenrinos - autonomia local e independência litúrgica, submissáo à autoridade romana, em última instância, em questões de doutrina e disciplina. Por causa da palavra russa unya, essa igreja da Ucrânia ("território fronteiriço") é popularmente chamada Uniata, denominaçáo por vezes aplicada (ainda que impropriamente) a outros ricos orientais católicos. Sob Pedro Mogila, que se tornou metropolita em 1632, Kiev retornou à comunháo ortodoxa. Seus Confissáo e Catecismo são documentos de importância nessa controvérsia, que terminou coni os decretos do sínodo de Belém, reunido sob a direçáo do patriarca Dositheus de Jerusalém, em 1672. Embora substancialmente ortodoxos, esses "livros confcssionais" revelam em sua forma uma influência ocidental. Mogila também empregou métodos ocidcncais em sua Academia Teológica de Kiev (que passou a ser território russo após 1665), onde o idioma em que se ministrava o ensino não era o grego nem o eslavo, mas o latim. Por todo o século dezoito as escolas teológicas russas, organizadas segundo o modelo de Kev, seguiram este sistema. Outras igrejas "uniaras" foram organizadas na esfera de influência de potências católicas iprimciro Portugal, mais tarde França e hustria, bem como a Polônia). X Etiópia esteve em uniáo formal com Roma de I624 a 1632. Na Índia, os cristáos sírios dc Malabar sofreram considerável larinizaçáo sob o arcebispo Menczes e missionários jesuítas (sínodo de Diamper, 1599). Em 1653 uma grande parte renunciou a comunhão romana e mais tarde conseguiu a sucessáo episcopal atravts dos jacobitas
sírios, uma vez que os nestorianos, com os quais estiveram ligados no passado, estavam fora de alcance. Parte dos nestorianos se uniu com Roma no século dezesseis
p ~ i i n n ava
O CRISTIANISMO MOOERNII
79s
como "caldeus", e também uma seçáo dos ortodoxos sírios (aos quais o nome árabe do grupo rodo, "Melquita", ou realista - isto é, bizantino - ficou restrito)
110
século
dezoito. Outros grupos "uniatas" paralelos emergiram no Egito, Síria e h m ê n i a . Na Rússia, a igreja foi foco de lealdade nacional duranre as guerras c invasócs no "Tempo de Angústia" que veio após a extinçáo da anriga dinastia de Rurik. A defesa de 'I'roitskj7 Lavra contra os poloneses, em 16 12, foi um dos momentos decisivos do período. Quando, em 1613, comecou a nova dinastia coiri Miguel Romanov, seu pai, que fora forcado a fazer votos monásticos durante as guerras, praticamente reinou com ele como patriarca Filareto. O patriarca Nikon (1652-1GGG), vigoroso ao ponto da violência, introduziu reformas práricas que incluíram a correcáo, a partir do grego, dos Iivros de ofício. Nikon foi deposto com a aiiu6ncia de outros patriarcas, mas as reformas permaneceram. O s opoiientes foram obrigados ao cisma, como Crentes Antigos (niais proprian~cnreRicualisras Anrigos) ou separatistas (Raskolniki).
A importância da Iiturgia na fé e na vida ortodoxa enrijeceu sua leaidade aos pormenores do rito e do cerimonial, o que representava para eles a estrita ortodoxia da Rírssia. As reformas ocidentalizantes de I'edro, o Grande, intensificaram a diferenp.
As seitas russas formam três grupos: (1) os Crcnt-esAntigos, dos quais alguns (popovtsi) aceitaram sacerdotes oriundos da igreja oficial, os quais asseguraram seu próprio episcopado de forma irregular por meio de um bispo grego, em 1849, enquanto outros (bezpopovtsi, isto é, "sem sacerdotes") afirmaram que a apostasia destruíra as ordens da igreja e se limitaram aos ritos que os leigos podem administrar, usando vinho e crisma consagrados perenizados por diluicáo; (2) uma variedade de grupos extremados ou excêntricos, alguns guardando remanescentes de paganismo ou de antigas heresias - sendo o mais conhecido o grupo dos pacifistas dukhobors ("lutadores espirituais") que migraram para o Canadá; e (3) dcsdc o século dezenove grupos protestantes que se introduziram na Rússia e agem de diversas maneiras. Planejando organizar a a d m i n i ~ r r a ~ áda o igreja nas Iinhas de um departamento governamental, Pedro deixou vago o patriarcado depois de 1700, e em 1721 o substituiu pelo "Santo Sínodo Governante". Ta1 sínodo era formado de alguns bispos e outros clérigos convocados pelo imperador, que também indicava seu secretiírio e executivo leigo, o "ober-procuror". Em inglês é geralmente chamado procuraror [procurador], mas o cítulo bárbaro, nem mesmo bom alemão, exprcssa o caráter revolucionário da instituição. O patriarca, que poderia parecer rivalizar com o czar, foi assim substituído por uma a d m i n i ~ t r a ~ claramente ão sujeita ao czar. Embora a igreja
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HISTfiRIA DA IGREJA CRISTI
oficial não estivesse sem notáveis exemplos de piedade, erudiçáo, caridade e zelo missionário, a mais profunda devoção fluiu em canais extra-oficiais. O século dezoito preseilciou uma renovação da velha tradiçáo monástica de sóbria piedade e direçáo espiritual entre os monges do Monte Aros, um dos quais, Paisi Velichkovsky (1722-1794), mais tarde abade na Moldávia, nas poximidades da fronteira russa, levou essa tradiçáo de volta para a vida da igreja russa. Dois santos canonizados pela igreja russa representam a mesma tendência, de certo modo comparável à reaçáo pietista contra o prorescantismo oficial - o bispo Tikhon Zadonsky (1724-1783) e o eremita das florescas do norte, Serafim de Sarov (falecido em 1835). Um dos "anciãos" (startsi), ou diretores espirituais, do mosteiro de Optina, perto de Moscou, é retratad o no padre Zossirna ein Irmãos Karamazov dc Dostoievsliy.
O surgimento do nacionaIisrno e movimentos intelectuais e espirituais modernos confrontaram as igrejas orientais com novas situações. A tradicional união íntima entre o povo e a igreja se expressou em novas formas. A revolução grega se originou no mosteiro de Megaspelaion, no PeIoponeso (e o patriarca Gregório V, ainda que tenha formalmenre condenado os insurretos, foi enforcado como líder grego defronte de sua residência, em Phanar, em 1821). Com a independência política, a igreja da Grécia renovou sua vida intelectual e assumiu autonomia eclesiásrica, reconhecida pelo patriarca de Constanrinopla em 1851. Atitude semelhan~efoi tomada na Sérvia, na Romênia e na Bulgária. Em 1870 o exarca búlgaro reivindicou jurisdiçzo sobre os búlgaros em todos os lugares, mesmo em Istambul; isto foi condenado como "filetismo (talvez 'supernacionalismo'), a heresia do nosso século", e produziu um cisma entre gregos e húlgaros, de 1872 a 1945. h vida da igreja nos Bálcás conrinua a estar desafortunadarnenre en\~ol\ridaem conflitos nacionais.
Na Síria, os cristãos áralies tornaram-se inquiecos sob hierarcas gregos. Desde 1898, os patriarcas de h t i o q u i a cm Damasco tèm sido sírios, mas o
de
Jerusalf rn conriilua ser controlado pela Irmalidade do Santo Sepulcro (quase inteiramente grega). O interesse missionário auxiliou a promover a educagáo moderna no Oriente T)róxi~no,mas ao preço de novas divisóes eclesiásticas. A obra dos católicos orienrais foi ampliada por riiissionários latirios, e pcquenos grupos protestantes se irirrtiduziram entre os gregos, os armênios e os sírios, c surgiu uma grande igreja evarigéiica entrc os coptas. N a fndia, os missionários a~iglicanosda Sociedade Missionária da Igreja trabalharam por algum tempo entre os crisráos sírios, sendo o resultado final de sua influhcia a separaçáo de uma ala mais evangdica com o nome
de Igreja Mar Thoma.
A reaçáo contra influências ocidenrdizanres, quer religiosas ou anti-religiosas, levou à apresentação da ortodoxia tradicional em formas mais vigorosas e acualizadas. Tendências ocidentalizantes e estritamente ortodoxas têm competido nas faculdades de teologia dos Bálcás e entre os pensadores crisráos na Rússia. No final do século passado a igreja grega foi estimulada pelo vigoroso embora excêntrico teólogo Ieigo ultra-ortodoxo, Apóstolos Makrakis. Desde então, organizações voluntárias muito têm feito para reavivar a pregação, organizar a educa~áoreligiosa e encorajar a atividade social da igreja; a Irmandade Zoe, uma fraternidade de theologoi (isro é, graduados em reologia) celibatários, formada por leigos e clérigos, é a mais conhecida delas. Na Rússia, os eslavófilos voltaram-se para as ~radiçóescorporativas e espirituais da ortodoxia, em oposição tanto à estagnaçáo da repriiriida e repressora igreja oficial (sendo a pior época sob Nicoiau I, 1825-1855) como às tendências seculares de reformadores e revoiucionários. O leigo Aieixo Khomiakov (1804-1860) f01' um dos primeiros líderes da escola. Outros foram menos eclesiásticos mas igualmente religiosos em suas preocupações, tais como o novelista Fiodor Dostoievsky (18211881) e o filósofo Vladimir Soloviev (1853-1900), c~ijoanelo pela unidade espiritual o levaram a exigir o direito de entrar na comunhão romana sem abandonar seu lugar n a rnilenar Igreja Ortodoxa. Ele acreditava que a ortodoxia russa expressava idealmente sobornost ("unidade" ou "comunidade"), que combinava a unidade e a liberdade derivadas do amor de Deus. Ao mesmo tempo mísrico, fiiósofo, teólogo, ~ r o f e t ae moralista, ele procurou inccrprccar a fé cristá de tal maneira a torná-la relevante àqueles que a haviam abandonado e dar-lhes a esperança de que a verdade de Cristo pode regenerar a humanidade e reformar o mundo. A atividade missionária serni-oficial da igreja russa, muicas vezes lierdica, foi no mínimo encorajada por causa de seu possível efeito na consolidaçáo do irnpbrio ou no alargameiiro de sua influência, corno na obra da Sociedade Imperial Palestina e o patrocínio de um mosteiro russo no monte Atos. Mas houve também trabalho missionário que foi além de coiiexóes políticas no Alasca, posto avançado russo até 1867, e sob o bispo Nicolau de Tóquio, (no Japáo, 1860-1312), fundador da Igreja Ortodoxa Japonesa. As guerras c revolu~ócsdo século vinte rrouxerairi novas alterações. Depois das guerras balcânicas, tnuiras das dioceses da "nova Grkcia" foram efetivamente transferidas da jurisdiçáo de C o n ~ t a n t i n o ~para l a a de Atenas. Um pouco mais tarde, a igreja albanesa se tornou autônoma. Depois da Primeira Guerra Mundial, sérvios e
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HISTORIA DA IEREJA E A I S T i
romenos, que esriveram sob jurisdiqóes separadas no impirio austro-húngaro, foram restaurados aos seus países de origem e igrejas ilacionais; o patriarcado sérvio foi restabelecido em 1920 e a igreja romena elevada à categoria de patriarcado em 1925.
A jurisdigáo direta do patriarca ecumênico foi reduzida aos arredores de Istambul pela troca de populaçóes entre gregos e turcos em 1923. Mas as paróquias gregas da Europa c da América per~naneceramsob sua jurisdiçáo, e seu primado indefinido entre os hierarcas ortodoxos é afirmado de tempos em tempos. Na década de 1920 houve considerável abalo (e mesmo cisma) causado pela adogão por gregos, sírios e romenos do calendário gregoriano, levemente rneIhorado, para as fesras fixas - ainda que por amor à unidade, todos ortodoxos continuem seguindo o calendário juliano para o cálculo da páscoa.
A transformacão da Rússia de impçrio ortodoxo para escado marxisra foi um golpe na igreja co1npar5vel aqueIc da conquista islârnica. Em 19 17 uma assemblf ia eclesiástica reunida em Moscou reviveu o patriarcado e, por outro lado, planejou a Iibcrdadc da igreja. Mas a mudanga de igreja oficial para igreja perseguida foi rápida sob o regime bolchevisra. Ainda que, em princípio, o governo soviético tolerassc "a profissão religiosa e a propaganda aliti-religiosa", ele ativamente promoveu esta e quase não pernliciu aquela. Muitos bispos e sacerdotes desapareceram na prisão ou
no exílio, moscciros foram dissolvidos e a maioria das igrejas fechadas, a adrninistra-
çáo eclesiástica foi dificultada c durante alguns anos os grupos reformistas radicais, comumente chamados "Igreja Viva", receberam relativo encorajamento como mais um fator de divisão. Mas a igreja sobreviveu no coração dos fiéis e seus líderes conse~ u i r a mmanter alguma forma de organização. Em 1923 o patriarca Tikhon proçlamou sua lealdade política ao regime e lhe foi permitida certa liberdade até sua morte em 1925, apbs a qual o metropolita Sirgio se tornou o guardiáo do trono patriarcal. Seguiram-se períodos de pressão anci-religiosa alternados com outros de relativa calma, atC que a indubiclivel lealdade dos orrodoxos russos para com seu país na Segunda Guerra h,íundiai levou a uma relacáo mais acomodada. Em 1943 foi permitida uma eleição patria~cal,e sob Sérgio e seus sucessores Meixo (1944-1970) e Pimen
(1 971- ), a igreja russa tem funcionado mais normalmente. Sáo fornecidas instaiacões para suas atividades denrro da esfera estritamente religiosa (culto, e instrução nos lares, quando solicitada) e foram restabelecidas certas institui)óes - alguns mosteiros e conlrentos, seminários e as academias teoiógicas em Troicsky Lavra, Leningrado e Kiev. Obviamenre, espera-se da igreja e de seus líderes manifesta lealdade
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O CRISTIhHISMO MOOERNO
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política, e os líderes marxistas ainda esperam que a religião desapareça com o tempo, mas abandonaram os ataques frontais. A igreja da Geórgia foi absorvida pela russa depois que o país foi anexado em 1801 (é devido parcialmente a esta situação, que trouxe ressentimento, o descontentamento encontrado em suas escolas eclesiásticas, como naquela em que o futuro José Stálin estudou), mas em 19 17 ela novamente se tornou autônoma, sob seu próprio patriarca católico [universal] e como tal foi reconhecida pela igreja russa, em 1944. Outras igrejas na Uniáo Soviética têm posição semelhante à do patriarcado ortodoxo - os Crentes Ancigos (pelo menos os popovtsi), os armênios (cujo patriarca católico [universal] reside em Etchmiadzin, na ArmGnia Soviética), os batistas russos e os Luteranos das repúblicas bálticas. Na década de
1920 as igrejas ortodoxas de áreas formalmente russas mas entáo independentes foram reconhecidas como autônomas pelo patriarca ecumênico. Tal auronomia foi extinta na Escônia (exceto para as congregaçóes no exílio) e Letônia, mas sobrevive na Polônia e na Finlândia. Na Ucrânia, uma igreja autocéfala (isto é, que pode escolher seu próprio líder) se formou durante o breve período de independência durante a revoluçáo, e essa igreja hoje sobrevive apenas entre os ucranianos dos Estados Unidos e Canadá. O s russos ortodoxos fora da Rússia podem ser classificados em três grupos principais. Alguns permanecem leais ao patriarcado eni assuntos eclesiásticos. Outros seguem a orientação de um grupo de bispos exilados, inicialmente encabeçados pelo metropolita Antônio de Kiev, que afirmam que T k h o n e seus sucessores sáo escravos do regime soviético e que a Igreja Ortodoxa Russa fora da Rússia é a verdadeira herdeira de suas tradiçóes. Seu sínodo ficou por muito tempo estabelecido em Karlovcsi, na Iugoslávia, mas após a Segunda Guerra Mundial transferiu-se para Munique e depois para os Esrados Unidos. O terceiro grupo procura evitar erivolvimento político insistindo na autonomia em assuntos de administração e de governo eclesiástico, pelo menos no momento presenre, enquanto permanece leal às tradiçóes da ortodoxia russa. O principal grupo de russos ortodoxos nos Estados Unidos, cujo nome no passado era Igreja Católica Grega Ortodoxa Russa da h é r i ca do Norte mas a parrir de 1965 passou a se chamar Igreja Ortodoxa na América, pertence a este grupo, como também uma importante seqão da igreja russa na Europa Ocidentai. Nesta última, foi estabelecido em Paris, em 1925, um importante centro teológico e eclesiástico, a Academia de São Sérgio, liderada durante muitos anos pelo notável teólogo Sérgio Bulgakov (1 871- 1944).
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O CRISTIANISMO MODERNO
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organizacionalmente. Também há uma prelazia armênia na América e grupos de paróquias assírias e sírias jacobitas.
Um notável representante ecumênico da ortodoxia no Conselho Mundial de Igrejas e no Conselho Nacional de Igrejas Cristãs dos Escados Unidos foi o teólogo e histo-
riador Georges Florovsky (1893-1979). Nascido na Rússia, ele ensinou por mais de vinte anos na Faculdade Teológica Orcodoxa de Paris antes de ir para os Estados Unidos em 1948, onde ensinou no Seminário Ortodoxo Sáo Vladimir, no Union Theological Seminary (Nova Iorque), universidades Columbia e Harvard e Princeton Thcological Seminary Autor e conferencista prolífico, desempenhou um importante papel ecumênico ao representar sua tradiçáo para outras. Até recentemente, o maior grupo de católicos orientais eram os remanescentes da Uniáo de Brest na Galícia (depois da partilha da Polônia, a Gdícia ficou austríaca, mas voltou a ser território polonês em 1918) e os aparentados rutenos carpatianos (anrigarnente na Hungria, mas na Checoslováquia a pareir de 1918). As dioceses uniatas na Polônia russa foram reunidas à igreja russa em 1840 e 1875. Famoso líder entre os ucranianos da Galícia foi André Szepticky (metropolita de Lvov, 19001944), um dos catdlicos orientais que se esforçou em representar dentro da obediência papal o espírito menos formalizado da piedade cristá oriental. A ocupaçáo soviética destes territórios em 1946 foi acompanhada pela reunião dos ucranianos e rurenos carpatianos ao patriarcado de Moscou, e a "Unia" ucraniana sobrevive principalmente nos "exarcados apostólicos" estabelecidos nos Esrados Unidos e no Canadá por imigrantes da Galícia e da Rutênia carpatiana que a ela permaneceram leais. Confiantes na verdade de suas próprias tradiçóes, os cristáos orientais, náo obstante, têm sido capazes de estabelecer contatos fraternos com outros sempre que a relaçáo riáo seja turbada por controvérsia ou proselieismo. Intercâmbios amistosos de várias espécies têm sido efetuados desde o skculo dezessete - mais frequentemente, embora de forma alguma exclusivamente, com a comunhão anglicana, e desde 1870 com os Católicos Antigos, que chegaram por via diferente à posicáo muito semelhante das igrejas ortodoxas. As igrejas orientais têm participado do movimento ecumênico desde as conferências de Estocolmo e Lausana de 1925 e 1927 - passo preparado pela encíclica sinodal de 1920 (publicada pelo sínodo de Constantinopla durante vacância no patriarcado), que instava uma conferência entre as igrejas sobre assuntos de interesse prático. A igrqa russa infelizmente não pôde participar em tais discussóes nas dicadas de 1920 e 1930. Mas seu interesse ficou patente na conferência de Mos-
cou, em 1948, na celebraçáo do quinto centenário de sua autocehlia, e na qual participaram muitas das igrejas ortodoxas não gregas - embora as imediatas decisóes tenham tido aspecto rígido, sendo os itens mais importantes a denúncia da polírica do Vaticano, a negaçáo em cooperar com o Conselho Mundial de Igrejas e a reserva de juízo sobre as ordens anglicanas, que haviam sido reco~ihecidascondicionalmente pelo patriarcado ecumênico e por diversas outras igrejas ortodoxas entre 1922 e 1935.
Em 1961, entretanto, a Igreja Ortodoxa Russa tornou-se membro do Conselho Mundial de Igrejas, de forma que quase todas as principais igrejas ortodoxas nacionais amodfalas entraram em plena filiaçáo naquela organização ecumênica.
Capítulo 18
O Movimento Ecumênico A história da igreja cristã tem sido permanentemente marcada por dois grandes impulsos - expansáo e integraçáo. No século dezenove, especialmente no mundo protestante, expansáo foi o rema dominante. No século vinte, porém, os movimentos no rumo da integraçáo e consolidacáo têm sido os mais importantes. O interesse na reintegraçáo da cristandade se tem manifestado de muitos modos. O termo "movimento ecumênico" é genérico, e se refere a um conjunto de movimentos e tendências visando a reuniáo, nem todos inteiramente consistentes uns com os outros. Da maior importância nos assuntos protestantes, o movimento ecumênico também tem envolvido a maioria das igrejas ortodoxas orientais. A Igreja Católica Romana por muito tempo náo tomou nenhuma parte oficial em discussóes ou atos ecumênicos.
A encíclica Mortalium Animos (1928) declarou que o único caminho pelo qual a união da cristandade poderia ser fomentada seria "pela promoçáo da volta à única verdadeira Igreja de Cristo daqueles que dela estáo separados", o que implicaria na aceitaçáo por parte destes da "infalibilidade do pontífice romano no sentido do Concílio Ecumênico Vaticano com a mesma fé com que crêem na encarnaçáo de Nosso Senhor". Essa atitude intransigente manteve fechada a porca à participacão católica no movimento ecumênico até que ocorreu uma dramática reversão durante o pontificado de Joáo XXIII (ver VII: 19).
~ ~ n í n vil oi
O GRISTIANISMO MODERNO
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O movimento ecumênico se tornou notável no século vinte, mas suas raízes históricas vêm de mais longe. Na verdade, começam no século dezesseis. Foi no século dezenove, entretanto, que foram iniciados movimentos específicos em meia dúzia de áreas d a vida e pensamento protestante q u e desabrocharam e m agencias interdenominacionais mundiais e estimularam algumas unióes orgânicas de igrejas no século vinte.
A primeira, e de certo modo a mais importante dessas áreas, foi a esfera missionária. Nos campos missionários, os males das competi~óesdenominacionais e a nçcessidade de coordenaçáo se tornaram especialmente óbvios. O ímpeto missionário do século dezenovc desde o comeqo teve muitas feições interdenominacionais, pois muitas das sociedades missionárias recebiam auxílio de crisráos por intermédio de canais supradenominacionais. Desenvolveram-se, desde cedo, reuniões de missionários VIsando à cornunháo e à discussáo. AS primeiras dessas reuniões em escala mundial se realizaram em Nova Iorque e em Londres em 1854, seguidas por outras a intervalos irregulares. A oitava na série de reunióes foi a Conferência Missioniria Mundial, reunida em Edimburgo em 1910. No entanto, o rema diferiu das anteriores, porquanto muitos dos que deIa parciciparam não o fizeram apenas como indivíduos profundamente interessados, mas também como delegados oficiais das várias sociedades missionárias. Um dos aspectos da assembléia foi sua rota1 preparagáo com antecedência, incluindo a c i r c ~ l a ~ ãpreliminar o de volumosos estudos cuidadosamente preparados. Representantes de igrejas missionárias ou mais jovens estiveram presentes, dando boa impressáo de si mesmas. Em Edimburgo, muitas pessoas que desempenhariam importantes papéis em várias áreas do desenvolvimento ecumênico no século vinte receberam inspiraçáo e direção. Aquela conferência assinalou o momento decisivo na história ecumênica. Seu comitê de continuaçiio, criado para preservar as conquistas alcançadas em Edimburgo, desenvolveu-se até chegar ao Conselho Missionário Internacional, e m 1921. Seu primeiro presidente foi o leigo metodisca norte-americano que presidira Edimburgo, John R. Mott (1865-1955). O s membros do Conselho eram principalmente organizaçóes missionárias interdenominacionais nacionais e regionais, tais como o Comitê das Missóes Evangélicas Alemás (fundado em 1885), a Conferência de Missóes Estrangeiras da América do Norte (1893), e a Conferência de Sociedades Missionárias da Grá-Bretanha e Irlanda (19 12). Ela encorajou o desenvolvimento de conselhos cristáos nacionais nos países das igrejas mais jovens, especialmente na Ín-
dia, China, Japão, Congo e no Oriente Próximo. Esse período de crescente coopera~ á missionária o foi também período de rápida transrnissáo de incumbência no empreendimento missionário, de forma que em meados do século vinte cerca de noventa por cento do pessoal em campos missionários protestantes eram nacionais do país em que a missáo estava operando. A crescente significação das igrejas mais jovens se refletiu nas conferências do Conselho Missionário Internacional emJerusalém (1928) e Madras (1938). Na primeira, os líderes destas igrejas constituíam cerca de um quarto dos delegados, na segunda já eram pouco mais da metade.
A segunda área de crescente atividade ecumênica foi aquela referente ao trabalho com a mocidade e a educagáo cristã. Agência pioneira, náo denominacional, de considerável significaçáo ecumênica foi a Associacão Cristá de Moços, fundada em Londres por George Williams ( I 821-1905) em 1844, e que desde entáo se espalhou pelo mundo. A Alianp Mundial das ACMs foi organizada em 1855. Naquele mesmo ano também foi criada, em Londres, a Associaçáo Cristá Feminina, e sua Aliança Mundial formada em 1894. Outro importante movimento entre os jovens foi o Movimento de Esrudanres Voluntários para Missóes Es~ran~eiras, originado em 1886, numa t Massachusetcs. das conferências de veráo de Dwighr L. Moody em M o u i ~ Hermon, john R. Mott foi seu organizador, e por muitos anos seu presidente. Sob sua direqáo, foi criada ern 1895 a Federa$áo Mundial de Estudantes Cristáos, na Suécia. Os movimentos de estudantes cristáos de vários países se caracterizaram pelos aspecros profético e pioneiro; eles serviram como campo de preparo para homens e mulheres que mais tarde se tornariam importantes nas várias áreas da vida ecumênica. Tais organizações mundiais de estudantes eram predominantemente movimentos leigos, e o movimento Educação Cristá Mundial teve também fortes características leigas. As convencóes mundiais de escolas dominicais começaram a se reunir regularmenre a partir de 1889. E a Associa$io Mundial de Escolas Dominicais se formou em 1907. Em 1 9 2 4 se transformou numa federacáo de agências nacionais e interdenominacionais de educaçáo crisrã, e, posteriormente, foi rebatizada primeiro como Conselho Mundiai de Educação Cris~ã(1947) e depois como Associa~áode Escolas Dominicais (1950). A terceira área de desenvolvimento ecumênico foi a da federação para serviço cristáo e acáo ética comum; área que veio a ser denominada "Vida e Obra". Pioneiro nesse rerreno foi Samuel S. Schmucker (ver VTT: 151, que publicou em 1838 seu
Apelo Fmterno hs Igej~fi Americanas: Com um Plano pm-rr U7ziáo Católica sob Princlrpi-
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O GRISTIIINISMO MODERNO
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os Apostólicos. Era um plano nacional no qual as denominações existentes, praticamente intactas, se tornariam ramos da Igreja Apostólica Protestante. Embora a época náo estivesse nem um pouco madura para uma séria discussão de planos como esse, eles contribuíram para o anelo por alguma unidade maior. Uma das primeiras expressóes organizacionais nessa área, embora composta inteiramente de indivíduos interessados, foi a Aliança Evangélica, organizada em Londres em 1846. Ela parrocinou conferências mundiais e serviu como porta-voz da opinião evangélica. Foi ativa especialmente na defesa da liberdade religiosa, e muito fez nesse terreno. Mas não tinha relações oficiais com as comunhões e o decorrer do século mostrou serem desejáveis tais relaçóes. O último importante secretário do ramo americano da Aliança Evangélica (organizado em 1867) foi Josiah Strong (1847-1 916), mas ele resignou em 1898 pata tomar parte ativa na organização d o Conselho Federal das Igrejas
de Cristo na América. Finalmente fundado em 1908, tinha como membros cerca de trinta denominaçóes americanas, incluindo multos dos principais grupos cristáos.
Os objetivos proclamados do ConseIho Federal eram: (1) expressar a comunhão e unidade católica da igreja cristã; (2) unir os grupos criscáos da América em servi~o por Cristo e pelo mundo; (3) encorajar a comunhão devocional e o conselho mútuo relativo à vida espiritual e às arividades religiosas das igrejas; (4) conseguir uma influência maior conjugada das igrejas de Cristo em todos os assunros referentes is condições morais e sociais do povo, de forma a promover a aplicação da lei de Cris~oem todas as reiacões da vida humana; e ( 5 ) cooperar na organizacão de ramos locais d o Conselho Federal a fim de promover seus objetivos nas comunidades locais. Em
1950 ele se fundiu com aIgumas das oucras agências interdenorninacionais dos Estados Unidos - aquelas interessadas nas missóes nacionais e estrangeiras, na educafáo religiosa e missionária, na educacão superior, na administração e n o trabalho feminino - para formar o Conselho Nacional das Igrejas de Cristo nos Esrados Unidos. Foram formadas organizações similares em outros países, como, por exemplo, em
1905, na Franqa; em 1920, na Suíça; em 1942, na Grá-Bretanha; e em 1944, no Canadá. No cenário mundial, a abordagçm federativa teve como seu maior de[ensor Nathan Soderhfom (1 866-1931), pastor e erudito luteraiio sueco, posteriormente arcebispo de Uppsala. Veterano d o Movimento de Estudarices Cristáos, estaira convicto de que as igrejas podiam servir junras em ações iticas comuns a despeiro de
dife-
renqas doutrinárias. Sua energia impulsionadora conduziii a primeira Conferência
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HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA
Universal Cristá de Vida e Obra, em Estocolmo, em 1925. A conferência fez rápido reconhecimento das necessidades sociais do mundo, apelou à consciência cristá mundial e indicou possíveis rumos de progresso. O comicê de continuaqáo rransformou-se no Conselho Mundial Cristáo de Vida e Obra, em 1930. Este convocou uina segunda reunião mundial, a Conferência sobre Igreja, Comunidade e Estado, reaIizada em Oxford, em 1937. As bases teológicas de ação ética, que tinham sido consideradas por alto em Esrocolrno, foram cuidadosamente examinadas, e foi dada atericão ao específico papel da igreja no mundo.
A quarta área da atividadc ecumênica foi, em certo senrido, a mais precária, por envolver o confronro franco nas diferencas doutrinárias cruciais. Normalmente não é necessário ral confronro direto nas demais áreas. As primeiras discussóes ecurnênicas
protestantes no século dçzesseis fracassaram em questóes como "fé e ordem", e havia hesitação em retomá-las novamente. Porém, nenhum propósito específico para a unidade cristã, em qualquer sentido amplo, poderia evitá-las. Por exemplo, quando o episcopal norte-americano IVilliam Reed Huntington (1838-191 8) procurou apresentar os "essenciais" mínimos do anglicanismo como base para encontros de discussão, ele apontou quatro itens: (1) as Santas Escrituras como a Palavra de Deus; (2) os credos primirivos como a regra de fé; (3) os dois sacramentos instituídos por Crisro; e (4) o episcopado histórico como a pedra angular da unidade de governo eclesiáscico. Aprovado com pequenas moditicaçóes pela Câmara dos Bispos da Igreja Episcopal Americana e pela Conferência Anglicana de Lambeth, na década de 1880, esse "Quadrilátero Chicago-Lambeth" demonstrou claramente o quão central eram as questões de fé e ordem nas discussões sobre unidade. Um bispo missionário episcopal americano, Charies H. Brent (1862-1929), alcanqara uma nova visáo em Edimburgo, em 19 1O - a visáo de uma igreja reunida, mas isto somente se realizaria por meio da discussão de questóes doutrinárias que ~ i n h a msido omitidas em Edirnburgo. Ele desafiou sua própria comunhão a tomar a frente na área de "fé c ordem". Após anos de preparo, a primeira Conferéncia Mundial de Fé e Ordem se reuniu em Lausana, em 1927. Acima de quatrocentos delegados representaram mais de cem grupos religiosos. Foram amplamente discutidas algumas das mais graves quesrócs existentes entre as comunhóes e, surpreendentemente, foram descobertos grandes pontos de conraro, e prevaleceu o espírito de amizade. Um comitê de continuaçáo levou avanre o movimento, coilvocando a próxima conferência para Edimburgo, em 1937. O coilclave preparou ilotávei declaracão intitulada "A Graça de Nosso Senhor
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Jesus Cristo", prefaciada com a afirmaçáo: "neste assunto náo há motivo para que se mantenham as divisões entre as igrejas." Mas em relação a ministério e sacramentos, foram reveladas divergências muito profundas, indicando assuntos que exigiam mais esclarecimentos. Não obstante, pareceu que no geral ficou aceito que, no âmbito doutrinário, as concordâncias entre as igrejas cobriam talvez oitenta e cinco por cento do terreno. Apareceram muitas sugestões para a unificaçáo de "Vida e Obra" com "Fé e Ordem'' num Conselho Mundial. As duas conferências planejaram se reunir em seqüência em 1937, e ambas votaram pela integraçáo. Assim, em 1938, foi preparada em Utrecht uma estrutura provisória para um conselho mundial. A "Base" adotada para o conselho foi: "o Conselho Mundial de Igrejas é uma comunhão de igrejas que aceitam nosso Senhor Jesus Cristo como Deus e Salvador." Na lideranca desses movimentos estava William Temple (I88 1-19441, entáo arcebispo de York e mais tarde
(1942) de Cantuária. Filósofo e teólogo, Temple tivera papéis importantes nos movimentos de estudantes cristáos, no Conselho Missionário Internacional, em Vida e Obra e em Fé e Ordem. Agora se tornava presidente do comitê provisório do ConseIho Mundial de Igrejas "em processo de formaçáo". Durante os difíceis anos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o comirê desempenhou um papel ativo a partir de sua sede em Genebra, assistindo as missóes que tiveram cortados seus lasos com suas igrejas de origem, cuidando de prisioneiros de guerra e auxiliando refugiados. Ele serviu especialmente como um elo entre as igrejas cristás da Alemanha e as de outras nações, durante o
de poderio de Hitler.
Quase imediatamente após os nazistas terem tomado o poder na Alemanha em
1933, as igrejas foram pressionadas a se conformar com as orientacóes militaristas e anti-semitas do Terceiro Reich. Muitos cristãos apoiaram o Terceiro Reich; mesmo depois que seu verdadeiro caráter ficou evidente, a oposição eclesiástica demorou a se desenvolver e ficou dividida entre aqueles que lutaram ativamente contra ele e aqueles que se engajaram em resistência passiva. Ambos os grupos participaram no movimento da Igreja Confessante, que foi apoiado por cerca de dez por cento das congregaçóes das igrejas protestantes da Alemanha e que afirmaram sua oposiqáo teológica ao nazismo na DecIaraçáo de Barmen, de 1934. O estado respondeu com restriçóes aos programas eclesiásticos e com perseguiçáo; em 1937 houve prisões em massa de líderes tanto de leigos como de clirigos, incluindo o famoso Martin Niemoller (1892-1984), pastor luterano que fora comandante de submarino na Pri-
meira Guerra Mundial. Quando a Segunda Guerra Mundial irrompeu em 1939, aumenrararn as restriçóes e perseguições conforme Hitler procurava esmagar toda oposição; a grande maioria dos pastores apoiando a Igreja Lonfessante foi convocada para o exército. O comitê provisório do Conselho Mundial de Igrejas acompanharam de perto esses desenvolvimentos e deram o apoio que podiam às igrejas sitiadas. Ele manteve elos entre aqueles engajados na luta da igreja na Alemanha e os de ourros países durante a guerra.' As semenIes para posterior cooperaçáo ecumênica entre protestantes e católicos foram acalentadas quando corajosas pessoas no clandestino movimento de resistência aos nazistas aprenderam a confiar umas nas outras e a trabalhar conjuiltamente; dianre de esmagadoras ameacas em cornum, as inimizades históricas entre estas tradicóes tornaram-se menos imporrantes.
O que fora interrompido
i ela guerra por fim chegou à realização completa em
1948, em Amsterdã, quando cento e quarenra e cinco igrejas de quarenta e quatro países participaram na finalizaçáo da organizaçáo do Conselho Mundial, aprovando a citada "Base". Deixou-se claro que o conselho náo reria autoridade constitucional sobre as igrejas que o compunham. Filiaram-se muitos dos maiores grupos protestantes da Europa e das ilhas britânicas, a maioria dos da América e da Australásia, algumas das comunhões ortodoxas e muitas das igrejas jovens da Ásia e da África. O Conselho Mundial continuou a manter ligação íntima corri as alianças mundiais da Associaçáo Cristá de M o ~ o se da Associaçáo Cristá Feminina, e com a Federasão Mundial de Estudantes Cristãos. As conferências mundiais da Mocidade Cristá reunidas em hmsterdá em 1939, em Oslo em 1947 e em Travancore em 1952 foram iniciadas conjuntamente por estas organizações mundiais.
Na segunda assembléia do Conselho Mundial de Igrejas, realizada em Evanston, Illinois, em 1954, os delegados de cento e sessenta e uma igrejas determinaram "crescer juntas", mesmo quando cerras diferencas teológicas sobre a natureza da esperança cristá ~ i e r a ma lume. A terceira assembléia, reunida em Nova Déli, Índia, em 1961, admitiu muitas novas igrejas, elevando o total de membros para cento e noventa e oito. Entre as recém-chegadas estavam a Igreja Ortodoxa Russa e outras igrejas ortodoxas eslavas, juntamente com várias igrejas de países do "terceiro mundo", incluindo dois grupos pentecoscais. Ourro importante passo naquela assembléia foi a fusão
'Ver Ruth Rousç e Stephen C. Keil, eds., A Histoij of'the Ecr~nrrí~ic/iiMoueme~t, 15 17-1948, 2a ed (Pliiladclphia, 191;7), pp. 708-711.
do Conselho Missionário Internacional com o Conselho Mundial.
A quinta área de interesse ecumênico é a da uniáo orgânica da igreja. Algumas das unióes específicas já ocorridas se deram dentro de uma mesma confissáo ou dentro de uma família denominacionai. Dencre estas, destacam-se as reunióes ocorridas dentro do presbiterianismo escocês. As igrejas Separada Unida e do Alívio (ver VII:7) se fundiram sob a denominaçáo de Igreja Presbiteriana Unida, em 1847. Em 1900 esta se uniu com a maioria da Igreja Livre da Escócia, resultado do rompimento de 1843, para formar a Igreja Unida Livre da Escócia. Uma pequena minoria da antiga Igreja Livre (os "Wee Frees") se negou a participar da uniáo. 0 s direitos de padroado, motivo original das divisões, tinham sido abolidos por lei em 1874, mas foram necessários muitos anos de discussão para abrir o caminho para uma uniáo maior. Em 1921 o parlamento aprovou uma lei permitindo à igreja autonomia legislativa em todas as questóes de dourrina e prática sem interferência do estado. Mas tal lei cambém declarava ser dever da naçáo render reverência a Deus e se esforçar para promover o seu reino. Em 1929 foi consumada a uniáo, e noventa por cento dos presbiterianos do país - provavclmente mais de dois terços da populaçáo - se tornaram membros da igreja oficial, a Igreja da Escócia. Nos Estados Unidos, têm ocorrido diversas reuniões denorninacionais. Em 1918, entre os Iuteranos, o Sínodo Geral e o Conselho Gera1 se juntaram ao Sínodo Unido do Sul para formar a Igreja Luterana Unida. Em 1930 os sínodos de Buffalo, lowa e Ohio se aglutinararn para estabelecer a Igreja Luterana Americana. Uma série de uniões no início da década de 1960 deixou praticamente todos os luteranos nos Estados Unidos em três grupos principais: a Igreja Luterana na América (incluindo as igrejas Unida e Augus~ana),a Igreja Luterana - Sínodo de Missouri e a Igreja Luterana Americana (incluindo as igrejas Americana, Evangélica e Luterana Livre). A Igreja Presbiteriana, nortista, uniu-se com a maior parte da Igreja Presbiteriana de Cumberland em 1906, e em 1958 uniu-se com a Igreja Presbiteriana Unida para formar a Igreja Presbiteriana Unida nos Estados Unidos da América. Em 1983 esta igreja uniu-se com a Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, sulista, para formar a Igreja Presbiteriana (EUA). A Igreja Metodista resultou da reuriiáo em 1939 da Igreja Merodista Episcopal, da Igreja Metodista Episcopal do Sul e da Igreja Metodisca Protestante (que
HISIÕRIA DA EREJA CRISTÃ
RIO
um século antes havia se separado do maior grupo de mecodistas). E m 1946 dois grupos de origem metodisra alemã se uniram para formar a Igreja Evangélica Unida dos Irmáos. Esta igreja, por sua vez, juntou-se com os metodistas em 1968 para formar a Igreja Metodista Unida. A Igreja Unitária uniu-se com a Igreja Universalista para formarem a Associaçáo Universalista Unitária, em 1961. Também têm ocorrido unióes de igrejas acima das linhas denominacionais, ou seja, unióes transconfessionais. No Canadá, o início do protestantismo fora múltiplo, o que provocara uma organizacáo muito complexa. O século dezenove foi um período de consolidaçáo denominacionai. No presbiterianisrno houve nove unióes, culminando em 1875, quando quatro grupos se juntaram para formar a Igreja Presbiteriana do Canadá. O metodismo assistiu a oito uniões, chegando ao auge em
1884, quando também quatro grupos se congregaram para constituir a Igreja Metodista do Canadá. Muitos pequenos grupos congregacionais se uniram quando três tendências se juntaram em 1906 e 1907. Mas num país de vasto território e esparsa populaçáo, era imperiosa a necessidade de uma uniáo prorestanre mais ínrima, e o movimento por uma igreja unida comecou na virada para o século vinte. Foi traçada uma "Base de União" a parrir dos padróes presbiterianos e dos Vinte e Cinco Artigos Merodistas, e um plano de governo que combinava características das diversas cradiçóes. De imediato ficou patente que anglicanos e batistas não podiam ser incluídos e que considerável minoria presbiteriana se opunha à uniáo. Somente após longos anos de labor e mui amargos debates foi que a Igreja Unida do Canadá se tornou realidade em 1925; um pouco mais de um tergo de presbiterianos ficando de fora. Em países de igrejas mais jovens ocorreu uma das mais relevantes unióes, envolvendo grupos congregacionais, presbiterianos e episcopais. Em 1908 a Igreja Unida d o Sul da Índia (ver VII:13) fora o fruto da uniáo de missóes presbiterianas e congregacionais. Era isto apenas o começo. Logo metodisras e anglicanos entraram em negociaçóes visando a união, negociações que levaram anos. A concordância básica que abriu caminho para a uniáo maior foi a de que todos os ministros no momento da uniáo seriam aceitos com iguais direiros e posiçáo, embora as congregacóes fossem salvaguardadas da imposição sobre si de ministros para cujo tipo não estivessem preparadas para aceitar. Daí, por trinta anos, todas as ordenacóes seriam feitas por bispos com a assistência de presbíteros. Em 1947 a Igreja do Sul da Índia foi estabelecida. Cinco bispos anglicanos foram reeleitos e nove novos bispos foram
p ~ n i o o oUII
O CRISTIANISMO MOOERRO
SI1
eleitos e sagrados. Assim, um milháo de cristãos indianos forain congregados numa comunháo independente, indígena.' Nos Estados Unidos, a formaçáo da Igreja de Cristo Unida formada em 1957 juntou quarro tradições denominacionais diferentes.As igrejas Congregaciond e Cristã (esta última originada no movimento reavivalista de fronteira do início do século dezenove) tinham se unido em 1931. Em 1934 fora a vez da Igreja Reformada Alemá e a Associação Evangélica (formada na década de 1840 quando grupos de imigrantes
germanófonos pietistas de tradiçáo l~iteranae reformada começaram a trabalhar conjuntamente) se unirem como Igreja Reformada e Evangélica. Os esforcos para trazerem essas duas uniões recentes para a formacáo da Igreja de Cristo Unida encontraram forte oposiçáo por parte de minorias, mas em 1961 a uiliáo de 1957 foi ratificada pela esmagadora maioria das congregaçóes de ambos os lados. Com o tempo, é possível que uma igreja unida ainda maior venha a se desenvolver. Em 1962, comecou a funcionar a Consulta sobre União Eclesiástica. Ao final da década esrwanl participando nove denominações, incluindo aquelas de formas de governo episcopal, conectivo e congregaciond, e envolvendo três comunhões negras de origem metodista.
A sexta área da atividade ecumênica tí: a de f o r n ~ a ~ ádeo associa~óesou comui~hóesdenominacionais mundiais.
AS
vezes, estas parecem operar na interseçáo de
propósitos de outras áreas do interesse ecumênico, mas em geral permanecem no princípio de que organizações como o Conselho Mundial de Igrejas não podem ser mais fortes do que as igrejas que as constituem. Em certos aspectos, a Conferência de Lambeth dos Bispos Anglicanos (1867) foi a primeira dessas organizacóes denominacionais mundiais, embora como uma reuniáo de bispos ela 6 bastante diferente das outras, exceto talvez a Conferência de Bispos Católicos Antigos (1889).
Em 1875 foi formado o que posteriormente seria a Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, e depois o Conselho Mundial Metodista, em 1881; o Conselho Congregacional Internacioiial, em 1891; a Aliança Batista Mundial, em 1905; a Federaçáo Mundial Lucerana, em 1923; a Convençáo Mundial das Igrejas de Cristo, em 1930; a Associacáo Internacional do Cristianismo Liberal e Liberdade Religiosa, em 1930; e o Comitê Mundial para Consulta dos Amigos, em 1937. Muitas dessas orgaliizaçóes iniciaram relações de consulta com o Conselho Mundial e têm sido
'Para uiii resumo dos diversos planos para unióçh c rcuni6ec de igrejas entre 19 10 r 1952, incluindo tanto aquelas que se coniplcraram corno aquelas ainda cm andarnçnto, ver ihid., pp. 496-505.
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AISTÓRIh DA IGREJA CRtSTh
chamadas "comunhões cristás mundiais".
O mundo protestante foi influenciado no stculo vinte não apenas pelo movimento ecumênico mas também por um reavivamento teológico. No dealbar do século vinte a atençáo prestada aos assuntos teológicos era geralmente mínima. Mas logo após a Primeira Guerra Mundial surgiu nova atençáo à teologia bíblica e sistemática na Europa. Os mais poderosos porta-vozes da nova ceologia "dialética" ou "de crise" foram H. Ernil Brunner (1889-1 966) e especialmenre Karl Barth (1886-1968), pastor e teólogo reformado, autor da influente obra intitulada Dopatica Eclejihtica (13 volumes, 1932-1967). Criticando as escolas de Schleiermacher e Ritschl por seu subjetivismo e relativismo, Barth colocou gande ênfase na diversidade de Deus, na centralidade da revelaçáo e na natureza pecadora do homem. Suas muitas obras têm provocado controvérsia, mas têm conrribuído para uma discussáo séria e ampla das questóes teológicas. O renascimento teológico foi estimulado ainda mais pela resistência da igreja ao totalitarismo nazista. Na Alemanha, a Declaracão de Barmen de
1934 iilsistiu em que Jesus Cristo é a única palavra de Deus a que os homens devem ouvir, confiar e obedecer. Nos Estados Unidos, começou uma mudança na atmosfera teológica na década
de 1930, quando o "realismo cristão" criticou o que percebia como suposicóes idealisras e ilusóes utópicas em muito da teologia americana, e mediou as novas correntes teológicas no cenário americano. As figuras centrais nesse desenvolvimento foram os irmáos Niebuhr e Paul Tillich. A busca persistente por uma base teológica sólida para a ética social levou Reinhold Niebuhr (1892-1971) a produzir obras da maior importância, especialmente A Natt~vezae Destino do Homem (194 1-1943). H. Richard Niebuhr (1894-1962) conjugou análises éticas, sociológicas e teológicas em sua vida de labor criativo; uma obra característica foi Crirto e Cultura (1951). Tillich (18861965) chegou à América como refugiado da Alemanha de Hitlcr e tornou-se influência importante nos mundos teológico e intelectual; seu pensamento maduro está apresentado nos três volumes de sua Teologia Sistemdtica (195 1- 1963).
O movimento ecumênico, especialmente quando este foi centralizado no Conselho Mundial de Igrejas, refleriu as contribuições teológicas destes e de outros teólogos biblicamente orientados, e por sua vez serviu como transmissor delas. Um renascimento litúrgico também estava ocorrendo no mundo protestante, modificando significativamente os níveis de compreensáo e prática no culto. Diversas comunhóes revisaram suas liturgias, enquanto as igrejas livres tenderam a incorporar cer-
s~nioinvir
O CRISTIANISMD MODERNO
8 13
tos elementos litúrgicos em seus cultos. O interesse de vários eruditos católicos e protestantes em estudo bíblico e reforma Iitúrgica auxiliou a preparar o caminho para uma notável contribuicáo ecumênica na década de 1960.
Capitulo 19
A Igreja no Mundo Em muitas áreas do mundo imediatamenre após a Segunda Guerra Mundial, as igrejas cristás, especialmente no Ocidente, pareciam estar institucionalmente bastante estáveis. O estabelecimento das Naçóes Unidas (1945) fornecera um fórurn internacional para lidar com as tensóes entre as naçóes e manter a paz. Embora a paz logo fora tensionada pela "guerra fria" entre o comunismo e as potências ocidentais, as igrejas estavam esperançosas de avanço contínuo.
A Igreja Católica Romana, sob a liderança de Eugênio Pacelli, que tomou o nome de Pio XII (1939-1958), manteve visivelmente sua postura centralizada e conservadora. Pio XII manteve em sua essência a postura tomada por Pio IX no final do século dezenove: a igreja permaneceria em sua fortaleza, prociamando suas verdades a um mundo em desordem, procurando evitar a fragmentaçáo diante de forças hosris. Pio XII trabalhou pela paz em rempo de guerra; sentiu-se inibido de condenar abertamente o Holocausto na Afemanha que estava destruindo milhões de judeus europeus por temer tornar a situaçáo pior para eles c para os católicos. Sua oposi~áo ao "ateísmo marxista" levou-o a recusar qualquer contato com os estados comunistas, e eie proibiu a cooperaçáo de católicos com rais regimes. Náo teve nenhum interesse no movimento ecumênico, nem permitiu que catblicos participassem no Conselho Mundial de Igrejas. Certo da autoridade magisterial da igreja católica em questões de lei natural e moralidade, falou e escreveu sobre uma ampla variedade de tópicos. Líder austero e isolado, fez uso eficiente dos meios de comunicacóes modernos, e tornou-se uma figura familiar na igreja e no mundo de sua época. A promulgaçáo em 1950 do dogma da assunçáo corpórea ao céu da Virgem Maria foi consistente com o espírito das tendências dominantes na igreja no século dezenove, ao
questionarnento das formas ocidentais de culruar a Deus, organizar igrejas e formu-
lar teologias. Emergiu bruscamente uma convicçáo no "terceiro mundo" que as nacóes ricas da Europa e da América do Norte, tanto capitalistas como comunistas, especialmente os Estados Unidos e a União Soviética, ficavam cada vez mais ricas enquanto as naçóes pobres ficavam relativamente cada vez mais pobres. O egoísmo institucional e a complacência de muitas igrejas ocidentais sofreram ataque considerável, c-anto do interior delas mesmas como do exterior, pois havia uma crescente convicção de que as igrejas deveriam demonstrar uma preocupaçáo muito maior do que até entáo com o sofrimento das pessoas mais pobres e menos poderosas do mundo, muitas das quais eram negras ou pardas ou amarelas.
A crescente sensibilidade às injustiças e desequilíbrios do mundo, combinada com a crescente irritaqáo quanto ao uso da forca militar, levou a uma crítica mais profunda das barl-eiras institucionais entre cristáos católicos, ortodoxos e protestantes, pois elas dificultavam a colaboraqáo eficiente visando ao bem-estar humano. A colaboração entre católicos e protestantes em oposiçáo ao totalitarismo na dt'cada de
1930 fornecera alguns precedentes que náo foram esquecidos. Foi frequentemente expressa uma aspiraçáo por renovaçáo e reforma em níveis mais profundos que o reavivamento da religião no pós-guerra alcançara; emergiram insatisfagóes com os estilos de piedade e organizaçáo tradicionais na igreja. Surgiu considerável crítica, tanto aberta como dissimulada, especialmente entre os leigos e os jovens.
O ímpeto para renovacão e reforma na Igreja Católica Romana, entretanto, veio inesperadamente de cima. Quando Ângelo Giuseppe Roncalli foi elevado ao ponrificado em 1958 e tomou o nome de João XXIII1 (1958-1963), muitos acharam que sua administração seria "zelosa". Mas como diplomata eclesiástico, ele tivera considerável experiência com movimentos sociais e políticos de vários tipos. As f u ~ i ~ ó e s que lhe foram atrjbuídas na Bulgária, Turquia, Franga e Alemanha colocaram-no em contato com os mundos ortodoxo e não-católico e com muitos tipos de agrupamentos políticos. Como papa, ele manifestou uma determinaçáo em guiar sua igreja para uma reconciIiaçáo de seus padróes de fé e vida diante das necessidades do mundo, e também para genuínas reiagóes ecurnênicas com oucras igrejas cristãs. No início de
' Nerihilm papa utilizara o nomeloáo drsdc 1415, q u ~ n d oo primriro Joáo YXIII, um dos três papas riuais no final do grande cisma, desonrara o nome e Cora drpostii n o concilio de Consrança (ver \':14). Ao selecioná-lo, o papa Joáo restaurou para o papado um nomr que rem sido muito quçrido na história cristã e usado por mais papas do que qualquer outro tiorne.
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HISIÓRIA DA IGREJ1 CRISTA
1959 ele anunciou que convocaria o Vigésimo Primeiro Concílio Ecumênico (Vaticano 11), o qual reuniria os bispos da igreja romana de todas as partes do mundo. Em 1960, ele estabeleceu o Secretariado para a Promoqáo da Unidade Cristá e
L:-. I--:
nomeou o cardeal Augustin Bea (1881-1968) como seu chefe, criando assim um
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canal efetivo para diálogo com outras igrejas. O papa nomeou cinco observadores oficiais para atenderem a terceira assembléia do Conseiho Mundial de Igrejas, e convidou comunhóes protestantes e ortodoxas para enviarem observadores ao Vaticano
11; muitas aceitaram o convite. A preocupaçáo de Joáo XXIII com as necessidades humanas e os problemas mundiais se refletiu em duas notáveis encíclicas. Mater et mugistra (1961) foi uma atualizaçáo d o ensino social catdico na t r a d i ~ á oda Rerum novarum e
Quadmgesimo anno, publicada no septuagésimo e trigésimo aniversários, respectivamente, destes documentos. Pacem in terrts (1963) foi dedicada ao estabelecimento de condições que poderiam conduzir à paz tiniversal em verdade, justiça, caridade e liberdade. Ela declarou que "todos os homens sáo iguais em sua dignidade natural" e conclamou o final da corrida armamentista, enfatizou a crescente interdependência das economias nacionais e instruiu os católicos a trababarem com pessoas de oucras crenças para o bem-estar comum. Após riiais de três anos de preparagáo, iniciou-se o Vaticano I1 em 11 de o u ~ u b r ode 1962, na basílica de Sáo Pedro, em Roma. Logo ficou evidente que a desejada "atualiza~ão"(agiornamento) da igreja não seria fácil, pois forças progressivas e reacionárias entre os mais de dois mil bispos presentes discordavam em muitos particulares. O espírito de reforma e ecumenismo de fato irrompeu durante a primeira sessão, embora o concílio tenha sido suspenso em 8 de dezembro sem resultados finais apreciáveis. Joáo XXIII faleceu no mês de junho seguinte. Seu sucessor, Giovanni Battista Montini, Paulo VI (1963-1978), determinou-se a completar e i m ~ l e m e n t a ro concílio, que se reuniu por três sessóes mais, a cada outono. O papa Paulo não emergiu como a figura carismática que fora seu predecessor, mas seu interesse na reconciliação com outros foi dramatizada pela sua jornada à Terra Santa no inicio de 1964, duranre a ¶ual ele encontrou-se com o patriarca de Consranrinopla. Um resultado desse encontro foi a publicaçáo, em
7 de dezembro de 1965, de
declarqóes idênticas de Roma e de Conscantinopla lamentando as palavras ofensivas e gestos repreensíveis de ambos os lados quando dos tristes eventos da sepa-
raqáo de 1054, e removendo as sentenças de excomunháo.
A primeira obra completa do Vaticano I1 foi a Constituiqáo sobre a Sagrada L i ~ u r ~ iEdificando a.~ sobre o trabalho do movimento litúrgico, ela proporcionou a revisão do rito da missa colaborando para sua celebração mais comunitária. Outros dezesseis textos foram adotados pelos padres do concilio, variando em tamanho desde a Declaraçáo sobre o Relacionamento da Igreja com Religiões Náo Cristãs, que tinha pouco mais de mil palavras, até a Constituiçáo Pastoral sobre a Igreja no Mun-
do Moderno, de mais de vinte e três mil palavras. A primeira se referia primariamente à sensível área das relaqóes judeo-cristãs e tem sido criticada como parcialmente frágil e algo obscura. Ela de fato deplorou toda forma de anti-semitismo e toda discriminaçáo ou molestamente por causa de raqa, cor, condiçáo de vida ou religiáo, e encorajou o diálogo com membros de religióes náo cristãs e cooperaqão com eles visando ao bem comum. A Constituiçáo Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno foi direcionada náo apenas aos fiéis mas a "toda a humanidade", e conscientemente dirigiu a igreja ao serviço da família humana. Ela instruiu o clero e o laicato a coiaborarem em um ministério de servi~o,do qual possa emergir um mundo mais humano e misericordioso, apesar dos aspectos desumanizantes da sociedade tecnológica. Muitas nuanqas das "encíclicas sociais" ecoaram no texto. Uma das tarefas incompletas do Vaticano I fora a conclusáo de uma Constituiqáo sobre a Igreja - o fim abrupto daquele concílio deixara apenas os capítulos sobre o papado aprovados. Entrementes, foram produzidas algumas declaraçóes significativas, especialmente a importante encíclica de Pio XII, Mystici corpovis Cbrzstz' (1943). Houve muito preparo na eiaboracáo da Constituiçáo Dogmática sobre a Igreja do Vaticano 11; o rascunho foi revisado várias vezes durante as sessóes. Amplamente considerado como a obra-prima do concilio, o texto afastou-se de ênfases hierárquicas e juridicas para uma posição mais bíblica, histórica e dinâmica. De importância central foi a ênfase na colegialidade, no papel sacerdotal de rodos os bispos que, com o papa, formam coletivamente um "colégio" responsável pela direção da igreja. Um capitulo final sobre a Virgem foi colocado nesse texto de forma que a mariologia não ficasse isolada dos outros temas teológicos e eclesiológicos. Afirmando os vários títulos que têm sido concedidos a Maria pela igreja, a Constituiqáo sobre a Igreja decla-
I'ara os rrxtos adorados pelo concílio em rraduçLo inglesa, ver Ausrin Flannzry, ed., Kzticarz CounciiIL The Conciliar andPost-Conrilinu Documen~j(Wilrningtun, DE,1975).
RIR
nrsrd~inon IRREJA ciisrií
rou que "eles nem tiram nem adicionam nada à dignidade e eficácia de Cristo, o único Mediador" (111, 62)
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Pastoral e ecumênica, essa constituição abriu o caminho para diálogo frutífero
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com teólogos ortodoxos, anglicanos e protestantes. Algumas de suas posiçóes foram
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rapidamente impiementadas; no início da sessão final do concílio, Paulo VI instituiu
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um Sinodo de Bispos, no qual representantes do episcopado do mundo inteiro se
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reúnem regularmente em Roma.
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O Vacicano I1 produziu outro documento teológico fundamental, a Constituição
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Dogrnática sobre a Revelacá0 Divina. Seu texto foi muito informado pela erudiçáo
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ecumênica geral sobre a revelacão e sua transmissáo, afastando-se de atitudes anteri-
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ores para com as Escrituras e a tradijáo como "fontes de revelaqáo". Ela utilizou
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seriamente os modernos métodos de interpre~açáobíblica ao manter o tom de uma
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encíclica de visáo avançada de Pio XII, Divino aflante Spiritu ( 1943). Para ela, a
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revelaqáo é a rnanifestacáo por Deus de si mesmo, de sua vontade e intenções, publi-
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cament-e concedida à liurnanidade. A Escritura contém a revelação na forma de um
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registro escrito, juntamente com relatos de seus efeitos e das reaçóes humanas a ela.
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Os escritos bíblicos sáo lidos e interpretados pela comunidade viva da igreja em sua
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contínua tradição de compreensão e explanaçáo sob a liderança do magistério guia-
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do pelo Espírito Santo. O documento finalizou enfatizando a importância de fácil
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acesso à Escritura por [odos os fiéis, por ~raduçóescorretas e apropriadas. "E se, dada
r12 I '
a oportunidade e a aprovaçáo da autoridade da Igreja, essas traduçóes forem produ-
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zidas em cooperacão com os irmáos separados, todos os cristáos seráo capazes de
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utilizá-las" (VI, 22). Uma conseqüência desse juízo foi a aprova~áopara uso católico
ms.-.:
da Revised Stizndard Ersion [Versáo padráo revista] da Bíblia, que fora preparada
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principalmente por erudicos protestantes.
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Para o mundo não católico, o Decreto sobre Ecumenismo do concílio foi de
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cara em grande medida labor para o retorno de todos os crist-áospara a Igreja Caró-
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lica Romana, e essa comunhão não vinculou-se oficialmente a muitos aspectos do
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movimento ecumênico. O Decreto sobre Ecumenismo assinalou formalmente uma
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reviravolta e colocou a Igreja Católica Romana honestamente no movimento
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2.
PER~II~O '111
Iú. O
O CRISTIANISMO MODERIO
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ecumênico, convocando os fiéis a assumirem participaqão ativa na obra de ecumenismo. Admitindo que as divisões entre os cristáos foram o resultado de pecado em ambos os Iados, o texto referiu-se àqueles fora da igreja romana como "igrejas e comunidades separadas" que padecem de certos defeitos de doutrina, disciplina ou cstrurura mas náo obstante "iláo estão de forma alguma destituídas de significância e importância no mistério da salvação" (I, 3). A cooperaçáo dos catóIicos com elas deve ser encorajada especialmente em regiões onde está ocorrendo evolução social e técnica, e deve ser empreendido diálogo em assun[os de fé. Sob certas circunstâncias especiais, a oraçáo corporativa é considerada desejável. O comentário protestante sobre esse decreto foi geralmente favorável, embora tenha havido certa inquietação em referência à contínua tensão entre seu sincero espírito ecumênico e a pressuposição de que a Igreja Católica Romana é a única igreja verdadeira. Originariamente uma parte do rascunho do Decreto sobre Ecumenismo era uma seçáo que se tornou a Declaracão sobre Liberdade Religiosa. Ele detonou no concílio um debate incenso, vigoroso, por vezes emotivo, pois afirmava posiçóes sobre iiber-
dade religiosa que tinham sido rejeitadas em cxpressóes como o Sílabo de Erros. A declaração inequivocamente afirmou que "todos os homens devem ficar imunes à aia-
coerção da parte de indivíduos ou de grupos sociais e de qualquer poder humano, de
5cil
tal forma que em assuntos religiosos ilinguém seja forgado a agir de maneira contrá-
Lada
ria às suas próprias crenças" (I, 2). Ela declarou que a liberdade religiosa tem sua base na dignidade da pessoa, que pode ser conhecida tanro pela razáo humana através da experiência histórica como pela revelacáo. O documento contribuiu significativamente para uma nova franqueza nas relaçóes católicas com outras igrejas e nos negócios seculares. Mas ao abrir um tópico para atençáo contínua - o significado teológico da liberdade cristã - o decreto com o tempo poderá produzir ramificações inesperadas.
A maioria dos outros documentos conciliares foram decretos lidando em grande parte com assuntos prácicos da vida da igreja, tais como o ofício episcopal, a formaçáo sacerdotal, a renovaçáo da vida religiosa, o ministério e a vida dos sacerdotes, as rnissóes e a educação. Em 6 de dezembro de 1965, o concílio foi formalmente encerrado. Profeticamente, a última mensagem do concílio foi para os jovens do mundo, que nele devem viver "em um
das mais gigantescas transformaçóes jamais
realizadas em sua história." Eles foram exortados a abrir seus coraçóes às dimensões do mundo, a colocar suas energias ao serviço de seus irrnáos, a construir com entusi-
820
HISTÕAIA DA ICREJI CRISTA
asmo um mundo melhor do que o que receberam de seus pais.
O Vaticano I1 recebeu muita atençáo da imprensa; foi um grande evento no mundo como na história eclesiástica. Seu impacto rapidamente começou a ser sentido, dentro do aprisco e no movimento ecurnênico. A reforma litúrgica veio rapidamente, com o uso bastante intensivo do vernáculo na missa. As estruturas das hierarquias nacionais foram reorganizadas em várias instâncias. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi organizada em 1966 a Conferência Nacional dos Bispos Católicos; ela ficou responsável pela Conferência Católica dos Estados Unidos, a conrinuaçáo da Conferência Naciond para o Bem-Escar. -.
Mais dramática foi a rápida escalada de contatos ecumênicos entre católicos e
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outros cristáos. Em 1965 foi estabelecido um "grupo de trabalho" conjunto entre o
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Secretariado para a Promoçáo da Unidade Cristá e o Conselho Mundial de Igrejas.
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Foi iniciada a representaçáo católica na Comissáo Fé e Ordem do Conselho Mundi-
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al, e discutida publicamente a possibilidade de filiaçáo formal da Igreja Católica
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Romana ao concílio.
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Em vários países, dependendo da situação, desenvolveram-se manifestaqóes paralelas. Nos Estados Unidos, foi criado um grupo de trabalho conjunto entre o Conse-
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lho Nacional de Igrejas e o Comitê Episcopal para Assuntos Ecumênicos e Interreligiosos. Esta última agência tem sido responsável pelo início de diversos diá-
cl .r1
logos teológicos bilaterais entre católicos e representantes de outras tradicóes: batis-
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tas, discípulos, episcopais, luteranos, metodistas, reformados, presbiterianos e orto-
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doxos. Várias paróquias e dioceses católicas se junraram ou começaram a cooperar
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com conselhos regionais de igrejas, os quais algumas vezes foram reorganizados para
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responder às novas necessidades. Em níveis locais, os diálogos entre católicos e ou-
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tros leigos cristáos se desenvolveram impressionantemente.
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As mudanças memoráveis no catolicismo suscitaram, de fato, alguns problemas sérios. Muitos dos fiéis ficaram desnorteados com as mudanças e perturbados pelo
desaparecimento de costumes anrcriores. Outros tiveram suas esperanças por rejuvenescimento e liberdade elevadas tão alto que o reformismo burocrático que foi oferecido pareceu demasiadamente lento e autoritário; alguns desses derivaram para igrejas "livres" ou "clandestinas", enquanto outros abandonaram a fé.
O papa Paulo reafirmou a postura tradicional da igreja sobre controle de naralidade na encíclica Hurnanae vitae (1968), na qual foram absolutamente proscritas rodas as formas artificiais de controle de natalidade, apesar do fato de que a opiniáo
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P E R ~ O ~YIIE
O CRISTIANISMO MOOERN0
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da maioria de uma comissão especial que fora convocada para fornecer orientaçáo era a favor de mudanças. Muitos teólogos e leigos católicos objetaram fortemente contra a encíclica, argumentando que ela não estava de acordo com as expectativas geradas pela Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno. Uma nova liberdade estava sendo expressa na igreja; declaraçóes mesmo das mais altas fontes escavam sendo lidas criticamente. Também estava havendo tensáo sobre a regra do celibato clerical; alguns esperavam que a regra milenar pudesse ser relaxada. Milhares deixaram o sacerdócio e as ordens religiosas. Apesar das diferenças de opiniáo quanto a quão distante e rápido a igreja poderia ser renovada, o Vaticano 11 simbolizava que fora dado um novo passo significativo que os observadores consideravam praticamente irreversível. A determinação em focar os complexos problemas mundiais contemporâneos inevitavelmente significava que surgiriam muitas novas rerisóes. Executar um amplo programa de reforma em uma época de turbukência mundial, quando muitos desejavam a segurança do familiar e do permanente, enquanto outros estavam ansiosos para experimentar o revolucionário, provou ser difícil. A igreja ao final de uma dtcada de mudancas espantosas encontrava-se em um período de teste dos mais difíceis em sua história. De cerca forma é mais difícil resumir as tendências nos mundos protestante e or~odoxona tempestuosa década de 1960, porque náo houve nenhum centro para as diversas comunhões envolvidas - grupos com tradições e estilos bastante diferentes espalhados pelo mundo, muitos deles desdobrados em estruturas nacionais autônomas. Houve uma tendência observável durante a década para major preocupaçáo com o mundo, para o serviço àqueles em necessidade e àqueles incapazes de falarem efetivamente por si próprios. O deslocamento para um envolvimento com o mundo secular expressou-se em diferentes maneiras, muitas delas controversas. Nas reunióes ecumênicas a atenção ao mundo e seus problemas absorvia cada vez mais atençáo. Isso náo significou que questões de teologia e dc governo da igreja fossem negligenciadas.
O Conselho Mundial sempre se esforc;oupara manter os interesses de vida e obra e de fé e ordem em equilíbrio criativo. Nos primeiros doze anos de sua vida, muitos equhocos históricos entre as igrejas filiadas tiveram que ser vencidos, e foi necessária uma ênfase considerável em questões teológicas e eclesiológicas. Continuou a ser dada muita atençáo a tais assuntos na década de 1960, porém mais ainda foi dedicada às demandas de ministério e serviço ao mundo. A mudança foi sentida no início da
8.22
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ
década. Na terceira assembléia em Nova Dtli, as familiares questões teológicas sobre a natureza d a igreja e sobre a realização de unidade eclesiástica foram muito debatidas. Uma das três seçóes principais da assembléia considerou "tesremunho", e uma parte importanrc de seu relatório foi inri~ulada"Remodelando a CornunidadeTestemunhá'. A s e ~ á osobre "unidade" aprovou o famoso parágrafo que se tornou conhecido como a "Declaraç.ão de Nova Déli": Cremos que a unidade, que é tanto a vontade de Deus como uma dádiva para sua igreja é feita visível quando todos em todos os lugares q u e sáo barizados em Jesus Cristo e o confessam como Senhor e Salvador sáo trazidos pelo Espírito Santo em UMA comunháo completamente leal, defendendo a fé apostólica, pregando o evangelho, partindo o páo. reunindo-se em oragáo comum e rendo lima vida corporariva alcançando com testemunho e serviço a rodos e que ao mesmo rempo esráo unidos com a totalidade da comunhão crisrá em rodos os lugares e todas as épocas de tal forma que minisrério e membros sáo aceitos por todos, e que todos podem agir e falar conju~iramenrequando a ocasiáo assim o exigir para as tarefas às quais Deus convoca seu povo. Muitas das preocupagóes teológicas dos primeiros anos d o Conselho Mundial estavam refletidas nesse parágrafo; a seção do comentário sobre clc fazia muitas referências a discussóes eclesioiógicas anteriores.
O fato de que a terceira assembléia aconreceu na Índia ajudou a dramatizar as questóes de fome e pobreza em diversas partes d o mundo. A seção sobre "serviqo" insistiu em que muitas das formas cristãs familiares de filantropia e serviqo estavam tão ultrapassadas que eram de pouca valia na sociedade contemporânea. Foi declarado, assim, que tinham que ser encontradas novas formas de expressar a obediência da igreja serva no mundo moderno.
A inspiração teológica para muito d o impulso em direção ao "crisrianismo rnundano" n o Conselho Mundial e seus membros, foi extraída e m parte considerável da obra inacabada de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), jovem teólogo alemão que foi martirizado na prisáo nos meses finais da Segunda Guerra Mundial. Aiguns dos defensores d o "ecumenismo secular", especialmente entre os líderes mais jovens das igrejas, estavam impacientes com os estilos mais antigos das discussóes de fé e oordem. Estas foram continuadas, mas sobre uma base mais ampla e mais diversificada.
A quarta Conferência Mundial sobre Fé e Ordem foi realizada em Montreal em 1963, com a parricipaçáo plena de teólogos ortodoxos, a presença de observadores católicos e a contribuiçáo de evangélicos conservadores aos debates.
~ ~ i l e vil ao
O ERISTI/iNISMO MODERND
R23
A mudanqa na ênfase evangélica para o serviço ao mundo tornou-se mais pronunciada conforme transcorria a década. Em 1966, o departamento de Igreja e Sociedade do Conselho Mundial patrocinou uma conferência em Genebra, "Cristãos nas Revoluçóes Técnica e Social de Nossa Época." Foi uma reunião singular pois nela houve maior número de participantes provenientes da África, Ásia e América Latina do que em qualquer conferência anterior desse tipo. Também foi a primeira grande conferência ecumênica na qual a maioria dos parricipantes eram leigos. A nova postura ecumênica católica romana foi demonstrada pela presença de observadores oficiais e diversos palestrantes principais. Outras denominações não afiliadas ao Conselho Mundial se fizeram representar. A perspectiva do "rerceiro mundo", crítica d o desequilíbrio de poder pelo qual a Uniáo Soviérica e os Estados Unidos exerciam tal controle decisivo sobre o mundo inteiro, foi apresentada vigorosamente.
O vasro abismo entre as nações ricas e as nações pobres, entre os desenvoividos e os subdesenvoividos, foi dramatizado de diversas maneiras; tal situaçáo, concordou-se, náo deveria continuar, especialmente diante do fato de que agora estavam disponíveis os meios tecnolbgicos para fornecerem o suficiente para todos. Houve muita discussão sobre a relação entre a natureza revolucionária do evangelho e a revoluçáo social no mundo contemporâneo. AIguns defendiam a participaqáo cristá na atividade revolucionária, envolvendo violência se necessário. O relatório de uma seção observou que em alguns casos onde pequenas elites governam as custas do bem-estar da maioria, os cristáos devem participar em movimentos políticos que operem para a realizaçáo de uma ordem social justa o mais rápido possível. Em tais casos, declarou o relatório, os cristáos náo precisam descartar a p ~ z o roi uso de métodos revolucionários, pois "pode muito bem ser que o uso de métodos violentos seja o único recurso daqueles que desejam evitar o
da vasta violência es-
condida que a ordem existente envolve."" No geral, a conferência concordou em que a igreja deve estar do lado da revoIuçáo social contra stria injusti~a,embora ela estivesse dividida sobre o uso apropriado
de violência na revoluçáo. Foi enfatizado que o papel dos cristãos e das igrejas é trabdhar dentro das ordens seculares para humanizá-Ias, reformar a sociedade para o bem do ser humano. Eles trabalham sempre a partir de uma perspectiva cristá, sensí-
" ~ a l R. Alhrechr e M. 143.
Thomas, eds., Tbe Worfd Confirence un Church andSocieq (Genebra, 1967), p.
824
HISTORIA DA IGREJA GRISTi;
veis ao juízo divino sobre os negócios humanos. O grupo de trabalho em teologia e ética social explicou que "o discernimento pelos cristãos do que é justo e injusto, humano e desumano nas complexidades da transformaqáo política e econômica, é uma disciplina exercida em permanente diálogo com os recursos bíblicos, a mente da igreja através da história até hoje, e as melhores noçóes da análise social científica. Mas ela permanece uma disciplina que almeja náo um sistema teórico de verdade mas a açáo na sociedade humana. Seu objerivo não é simplesmente compreender o mundo mas responder ao poder de Deus que o está re~riando."~
h decisóes de uma conferência sob os auspícios do Conselho Mundial $20 de narureza basranre diferente daquelas de um ConcíIio Vacicano. As reunióes sáo, em cornparaçáo, muito breves (a conferência de Genebra durou duas semanas), e somente participam poucos oficiais de alto escaiáo das igrejas. Consequenternente, tais reunióes não
falar oficialmente pelo Conselho Mundial ou por suas igrejas
afiliadas. Mas ao falarpam elas, a conferência de Genebra revelou um forte interesse emergente nas igrejas pelos sérios problemas sociais, econômicos e políticos contemporâneos. Nas questões raciais, foram reafirmadas as declaraçiies inequívocas das assembléias e conferências anteriores do Conselho Mundial contra todas as formas de segregaçáo e [email protected]. As igrejas foram instadas a resistir, aberta e ativamente, i perpetuacáo do mito da superioridade racial que encontra expressão nas condiçóes sociais e no comportamento humano corno também nas leis e nas estruturas sociais. Um ponto alto da reuniáo foi um sermáo por Martin Luther King, Jr. (1929-
1968), proeminente líder não violento do movimento por direitos civis nos Estados Unidos. Fundador da Conferência da Liderança Cristá do Sul, King desempenhou um papel importante no aumento do apoio ecumênico e eclesiástico à comunidade negra na América em sua busca por justica. Impossibilitado de estar em Genebra por causa dos tumulros em Chicago, o sermáo de King, rejeitando a violência sem senrido e ressaltando a ironia de uma naqáo fundada no princípio da liberdade ter que passar por uma permanente luta pelos direitos humanos, foi gravado e enviado para Genebra a tempo de ser apresentado no culto. Menos de dois anos depois, King, mártir cristáo moderno, morreria no campo de batalha pelas mãos de um assassino. Uma convergência importante do interesse católico, prorestante e ortodoxo pela i
Ibid., p. 201
i ~ n i a o ouii
O CRISIIIINISMO MODERNO
825
igreja no mundo foi dramarizada pela Conferência de Beirute sobre Cooperaçáo Mundial para o Desenvolvimento, realizada em 1961. Planejada e concretizada conjuntamente pela Igreja Católica Romana e pelo Conselho Mundial de Igrejas, ela reuniu especidistas nos problemas políticos e econômicos mundiais para desenvolver uma
"estratégia para desenvolvimento" consisrenee com uma análise teológica.
As bases para discussão foram o relatório de Genebra e uma encíclica de Paulo Vi sobre desenvolvimenro e ajuda ao terceiro mundo, Popularum prog~essio(1 9671, na q u d foi defendido que "uma nova palavra para paz é desenvolvimento." As decisões da conferência inscaram os cristáos a serem politicamente ativos em uma base ecumênica de maneiras relevantes a situaçóes locais parriculares, maneiras que poderiam incluir lobies, marchas, assembléias e outras formas de pressão para realçar a responsabilidade governamental para com as nações subdesenvolvidas. Foi recornendado que fosse mantido o comitê exploratório conjunto da Igreja Católica Romana e do Conselho Mundial, fundado no ano anterior, sobre Sociedade, Desenvolvimento e Paz (SODEPAX).
A quarta assembléia do Conselho Mundial, em Uppsala, Suécia, em 1968, continuou muitas dessas linhas de pensamento e ação. Naquele momenro, o Conselho incluía como suas afiliadas muitas das maiores e diversas das menores igrejas protestantes e ortodoxas e desfrutava uma cooperação crescente com o catolicismo rornano, fornecendo assim uma arena que espelhava as várias tendências e tensóes das igrejas. A assembléia de Uppsala aceitou o relatório da conferência de Genebra de 1966 e respondeu favoravelmente as recomendações da recém-interrompida conferência de Beirute. Caracteristicamente procurando manter um equilíbrio criativo entre as preocupações teológicas e a atenção à aqáo e ao servi50 no mundo, essa assembléia dedicou mais tempo e energia a esta úrtima. Assuntos como guerra e paz, direitos hunianos, participação plena das mulheres nos negócios da humanidade, objeçáo consciente seletiva à guerra, racismo, refugiados, justiça econômica, nacionalismo e regionalismo, estruturas e taxas internacionais, fome no mundo e descnvolvimento mundial foram discuridos e destas discussócs foram esbocadas recomendacóes. Em uma declaraqáo adotada pela assembléia, uma secáo afirmava que "ser complacente diante da necessidade do mundo é ser culpado de heresia prática."Ws W o r r n a ~ C;oodall, i
ed., Thc Upprala Rrport> 1968 (Genebra, 1?68), p. 51
HISTORIA I A IGREJA CRISTA
826
membros do Conselho Mundial foram instados a cooperar ativamente em todos os
Áfri::
níveis com igrejas náo membros, grupos não eclesiásticos, representantes de outras
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religiões e pessoas de boa vontade em todos os lugares para o bem da humanidade, e
ársz;.
a contribuir sacrificialmente para o desenvolvimento. A intervençáo militar america-
te c:
na no Vietná foi criticada rispidamente, tanto por americanos oponentes da guerra
aurc;
como por outros. Os jovens participantes em Uppsala recordaram aos delegados
tas r-:
enfaticamente que estavam impacientes com os relatórios altissonantes seguidos por
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quase nenhuma açáo e cansados da timidez e da atitude "a vida é assim mesmo",
rep:,
diante do tratamento injusto e desumano despendido a grande parte da populaçáo
berii.
humana.
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A quarta assembléia foi um aconrecimento vibrante, com grande freqüência, algo tempestuoso. As assembléias anteriores não ficaram sem seu drama, mas seu
C51d-.;
odni
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tom foi mais calmo que desta vez com seus discursos francos e encontros dissonantes. Os esforços para servir às necessidades do mundo de maneiras rele-
dor
vantes introduziram algo da turbulência do mundo na vida da igreja.
UT.C
Como foi descrito, tais reuniões refletiram muitas das preocupações premen-
líder
tes e rumos dominantes da igreja cristã em todo o mundo. Em muitas áreas,
dor : .
evidentemente, as igrejas cristãs continuaram seu caminho praricamente sem ser
o
influenciadas pelo que era dito nas assembléias mundiais, pois elas estavam lu-
dc
tando com problemas peculiares de suas próprias situaçóes. Em muitas congregaçóes na Europa e na América, houve pouca conscientizaçáo real das necessidades do mundo ou mesmo dos problemas circunvizinhos; ao invés, houve uma focagem institucional interna, por vezes misturada com uma nostalgia pelos dias anteriores mais calmos. Em muitos países sob o domínio comunista, em geral a religião organizada continuou a declinar, porém revelou surpreendente persistência, frequentemente em formas menos tradicionais. Estavam-se desenvolvendo associaçóes ecumênicas regionais para lidarem com as relacões eclesiásricas em áreas particulares - a Conferência Cristá do Leste Asiático foi fundada em 1959; o comitê de continuaçáo da Conferência das Igrejas do Pacífico naquele mesmo ano; a Conferência de Igrejas da África em 1963 e a Conferência de Igrejas Européias no ano seguinte. Na África, continuou a proliferação de movimeritos proféticos independentes, alguns aparentados com as correntes dominantes da vida cristã, outros movendo-se fora de qualquer coisa reconhecidamente cristá. No final da década de 1960, foi noticiado que na
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v~ironouii
O ERISTIANISMO MODERNO
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África ao sul do Saara havia mais de duas mil igrejas independentes com mais de u m milháo de seguidores. Mas para muitas das igrejas da África, corno em outras áreas, houve crescente relac~onamentocom o movimento ecumênico, juntamente com rima clara determinação para encorajar o desenvolvimento d e padrões
autóctones de culto e organizacão cristã. No pensamento teológico, houve rnuitas novas tendências na década de 1360; algumas delas, especialmente a teologia radical da "morte de Deus", atraíram por breve tempo arençáo considerável. Mais represenrarivos foram os esforcos para estruturar teologias da esperanca e da libertaçáo. Tais esforços, informados pela longa história de reflexão bíblica e teológica e moldados nos cadinhos do encontro da igreja com o mundo moderno, estavam-se movendo no fluxo de vida que cem fluído através de alguns dos períodos criativos da história da igreja. Na década de 1970, o ressurgimento d o protestantismo evangéiico conservador com sua ênfase tradiciorial na Bíblia, em missáo e evangelizaçáo tornou-se uma das principais tendências. O aTranFo comecara em décadas anteriores; um líder destacado foi Carl F. H. Henry (1912- ), teólogo americano e editor fundador do periódico Christianip Taduy em 1956, que dez anos mais tarde presidiria o Congresso Mtindial de Evangeliza~áorealizado em Berlirn, com a participacão de perto de mil e duzentas pessoas provenientes de mais de cem nações. Depois, em 16-25 de julho de 1974, foi realizado em Lausana, Suíca, o Congresso Inrcrnacional sobre Evangelizaçáo Mundial, com o dobro de participantes, provenientes de mais de cento e cinqüenta naçóes e de cento e trinta e cinco denominaçóes protestantes, metade deles do terceiro mundo. O proeminente evangelista americano, William F. (Billy) Graham (1918- ) pronunciou a palestra de abertu-
ra sobre o tema do congresso, "Para que o mundo ouca Sua voz", e no encerramento declarou que estava satisfeito com o "Pacto de Lausana" que fora completado durante o encontro. Tal pacro afirmava "a inspiracáo, veracidade e autoridade divina das Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos em sua totalidade como a única Palavra de Deus inerrante em tudo o que afirma, e a única regra infalível de fé e prática." Expressando penitência tanto pelo triunfalismo como pela intransigência na e x e c u ~ á oda tarefa missionária n o passado e
negligên-
cia em assuntos de preocupaçáo social, o pacto declarava que " e ~ a n ~ e l i z a ç áeo envolvimento sócio-político são ambos partes de nosso dever cristáo." Ele reconhecia que se iniciara uma nova era missionária mas reafirmava que a salvaçáo
estava disponível apenas pela fé em Jesus Cristo.'
A virada conservadora foi ilustrada ainda mais peto crescimento co~itínuodas denominações pentecostais, especialmente nas Américas e África. Uma o b ~ referencial a sobre essas igrejas reportou que as Assembléias de Deus (ver V11:15) se tornaram uma grande denominaçáo, com cerca de um milháo e trezentos mil membros no final da década de 1970, enquanto que o número total de grupos pentecostais (muitos deles bastante pequenos) crescera para cento e trinm8Também se desenvolveram movimentos carismáticos ou neopentecostais dentro de muitas das igrejas mais antigas nos Estados Unidos, ~rincipalmentea episcopal, a luterana, a metodista, a presbiteriana e a católica romana.
O ressurgimento do evangelicaiismo conservador provocou um debate considerável nos círculos ecumênicos sobre a maneira em que missáo e evangelizacáo deveriam ser entendidas e conduzidas.Wiversas igrejas representadas nos encontros de Berlim e Lausana eram rambém membros do Conselho Mundial de Igrejas, onde estava evidente um espectro mais amplo de t.eologias de missão e evangeliza~ão. Quando o Conselho Mundial se reuniu no ano seguinte em Lausana, ocorreram encontros entre evangélicos conservadores e aqueles que enfacizavam mais tanro o diálogo com os seguidores de outras religióes como os movimentos e teologias de libercaçáo.
A quinta assembiéia do Conselho Mundiai de Igrejas se reuniu em Nairobi, Quênia, de 23 de novembro a 10 de dezembro de 1975, congregando seiscentos e setenta e seis delegados com direito a voto (quase a metade provenientes do terceiro mundo) oriundos de duzencas e setenta e uma igrejas afiliadas, mais um grande grupo de consultores, observadores, pessoal de apoio e imprensa. Foi dada considerável aten@o às teologias da liberta~áo,com sua preocupação com os pobres e oprimidos, e aos insuficientemente representados (incluindo as mulheres) tanto na igreja como no mundo. Particularmente, eclodiu acentuado debate sobre o Programa de Combate ao Racismo do Conselho Muníiial, desenvolvido como resultado das decisóes
L).Douglas, cd., Lct tllr Enl-ti?Heiii. Hrr I/i,a'l-r ( M i i ~ n e a ~ o l i1975). s. pp. 3-3. Arrhur Carl Piepkorn, I'rufib in Briief Tbe Rcligioro Bodirir OJIIJP (/liitrd Stater aiid C~nnda. \ 01. 3 [San Francisco, 19791,p. 1 13. C:rrtriui i)oru~izenlr,1 764- 19.76 (South l)(inald h l c G a v r ~ n cd., , Tiit Coizriliiii.-Fvil~~~ciicnl Debate; Pasadena, CA,1977): C. Rcni I'adiiia, ed., Tiie A'eio Face ofEvmlgelisn!: Ai2 I?zrel-nntionaiSyniporiuni oii t/ie Lausi~izncCovmai?t (I.ondrrs, 1976).
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O CRISTIANISMO MBDEBIO
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feitas em Uppsala. Tinham sido feitas diversas dotaçóes a várias organizaçóes envolvidas ativamente na resistência ao racismo, alguns dos subsídios indo (para propósitos humanitários) para grupos engajados em a ~ á oviolenta. Embora apenas uma pequena porcentagem dos fundos fluindo através do Conselho Mundial (aqueles doados especialmente para esse propósito) tenha ido para o programa, que fora conduzido por quatro dos duzentos e setenta e cinco funcionários do conselho, isso tornou-se uma questáo simbólica de grande importância. As tentativas feitas do plenário para limitar o fundo especial, tentativas estas que uniram pessoas representando diversas perspectivas, foram decisivamente derrotadas pela mesa condutora da assembléia. Embora o Conselho tenha perdido alguns membros por causa da maneira como ele conduziu seus interesses em libertaçáo e hurnaniza~áo,tidos por alguns como muito políticos, o número de afiliados continuou a crescer depois da assembléia, totalizando mais de trezentos em 1983, quando a sexta assembléia se reuniu em Vancouver, Canada.
Em Nairobi, foram considerados muitos outros assuntos; por exemplo, as preocupaçóes ecumênicas históricas por uma maior unidade dos cristáos receberam vigorosa expressáo, e houve muita discussáo do conceito de que "a igreja una deve ser pensada como uma comunháo conciliar de igrejas locais que estejam elas próprias verdadeiramente unidas."'O A presenqa evangélica conservadora esteve especialniente evidente na seçáo da assembléia que produziu um relatório intitulado "Confessando Cristo Hoje", relatório cuja forma final foi recebida unanimemente pela assembléia.
A reuniáo em Nairobi também aprovou a continuaçáo dos diálogos com representantes de outras religiões; naqueles travados com os judeus, por exemplo, vinha send o discutida a trágica história das relacóes judeo-cristás através dos siculos, incluindo atençáo às cruzadas, à inquisiçáo e ao holocausto. Embora as rclacóes entre o Vaticano e o Conselho Mundial tenham permanecido cooperativas na dkcada de 1970, diminuiu a possibilidade de filiacáo da Igreja Catblica Romaria ao conselho. Parte da rea~áodentro da igreja contra o que foi visro como excessivo zelo ecumênico e excessiva mudanca teológica foi liderada pelo papa Paulo VI e por muitos que tinham sido lideres proeminentes do agiornamento. A tendência não era para o ttadiciona1isrno anterior, mas ao invés, na direcáo de uma posição centralista e de uma centralização de autoridade, uma tendência que conti'O
David M . Pariin, ed., B~eakirigBdr~iers:Airiroi,;, 1975 (Loridrrs. 1376), p. 60.
830
HISTORIA DA IPREJA C R I S T ~
nuou após a morte de Paulo VI em 1978. Albino Luciani, o patriarca de Veneza, foi eleito papa e tomou o nome de Joáo Paulo, mas faleceu após apenas algumas semanas no cargo. Ele foi sucedido pelo primeiro papa náo italiano em mais de quatro séculos, o polonês Karol Wojtyla, arcebispo metropolitano de Cracóvia, que tomou o nome de Joáo Paulo I1 quando de sua eleicêo em outubro de 1978. Logo ficou claro que o novo papa era um líder forte determinado a trazer nova vida e direção clara aos negócios católico-romanos. Homem capaz, brilhante, salien-
1. oi:
te, ao mesmo tempo hábil em Iínguas e em filosofia e administrador que aprendera
A. O b
tou entusiasmo entre os católicos e conquistou a admiração de multidóes que eram
BEY-i BETTI 8 R:.,-: CRO i i ed. ::'i DO'?: H.457: KIDI L17-z L .-
de outras persuasões. Náo obstante, ele procurou restaurar firmemente a ordem en-
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tre seu rebanho sobremaneira espalhado, pressionando por padróes claros de doucri-
XLIC
como guiar os fiéis em um país sob o governo comunista, Joáo Paulo II dedicou seus talentos para revigorar e estabilizar sua igreja, e ao mesmo tempo demonstrar preocupacáo pelos outros. Uma série de viagens a lugares como México, Brasil, Polônia, Irlanda, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Índia e diversos países da África e da América Latina causaram grande agitaçáo; sua personalidade carismática desper-
na e disciplina, afirmando o celibato ciericnl e opondo-se a ordenaçáo de mulheres. Suas visitas aos vários santuários da Virgem chamaram novamente a atenção para um tipo de piedade cuja popularidade desvanecera nas décadas precedentes. Sua abordagem ecumênica foi sincera mas cautelosa; sem comprometer as doutrinas católicas, ele expressou interesse pela restauraqáo pIena da unidade, demonstrando uma preocupacão particular nas relaFóes mais próximas com a ortodoxia oriental.
A longa história da igreja cristá é um panorama de luzes e sombras, de realizaqóes e fracassos, de conquistas e divisões. Apresenta a vida divina maravilhosamente rransformando as vidas de homens e mulheres. Também apresenta aquelas paixóes e fraquezas de que é capaz a natureza humana. Em todas as épocas suas tarefas têm parecido quase invencíveis. Elas jamais foram maiores do que agora, quando são confrontadas por uma interpretacáo materialista da vida, e quando a ameaça da guerra atômica póe em perigo a própria existência da civilizaçáo. No entanto, cristão algum pode contemplar o que a igreja já fez sem passar a ter confiança no seu f~lturo.Suas mudanças podem ser muitas, e grandes as suas lutas. Mas a poderosa máo de Deus que a tem guiado até aqui, levá-la-á a um serviço ainda maior na promoçáo do reino do seu Senhor, até o cumprimenro de Sua promessa de que quando fosse levantado atrairia todos a Si.
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848
HIãTORIh DA IGREJA
CRISTA
índice Abraham Kuyper 762 Abbot, Jorge, arcebispo de Cantuária 641, 643
362, 372, 381, 402, 410, 417, 419, 421, 424, 427, 428, 437, 445, 463, 481, 494,
A Cidade de Deus (Agostinho) 238, 239
495, 500, 595
Academia Genebrina 5 59, 602
Agosrinianos, Frades 372, 419, 421, 437
Adáo Woodham 420
494
adiaphora 545, 621
Agricola, Rodolfo 478
Adolf Stocker 764
Aidano, bispo de Lindisfarme 261, 262
Adolf von Harless 746
AilIy, Pedro de, cardeal 452, 454, 495
Adoniram Judson 767
Ainsworch, Henriquc 645
Adriano Saravia 644
al-Kamil 336, 367
Advenrisras do Sttimo Dia 776
Aiarico 175
Aécio de Aiitioquia 165, 166, 170
Alba, Fcrnando Álvarez, duque 61 1, 612, 614
Aécio, Flavius 165, 166, 170
Alberico, "Principe e Senador de Todos os
Aemiliani, Girolamo 592
Romanos", 295, 297, 300
Afonso IX 432
Alberico de SpoIeto 295
Miartodocerismo 21 0
Aiberr Schweitzer 748
Agapeto, papas
Alberto da Prússia 5 14
I 211 11 296,300 &ato, papa 21 6
Alberto da Saxônia 420
Aggiornamento 8 16
albigenses 349
Agnes, imperatriz 316, 318, 320
Abrechr Ritschl 748
Agostinho, bispo de Hipona 20, 87, 147
Albrecht von Wallenstein 626
170, 186, 189, 228, 230, 231, 233, 234,
Alciaii, André 553
235, 236, 237, 238, 239, 240, 241, 242,
Alcuíno 279, 280, 282, 285, 289, 290, 376
243, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 256,
Aeander, Girolamo 505, 506
257, 262, 280, 290, 321, 343, 349, 361, 371,
Aieixo, imperadores
372, 376, 380, 387, 389, 390, 394, 395,
I, 329, 330, 334 11, 336 Aieixo Ângelo 334
397, 399, 413, 417, 420, 421, 427, 461, 483, 494, 495, 522, 593, 663, 666, 7 8 2 Agosriniana, Regra 344, 372, 428 Agosrinianos (regulares), Cônegos 343, 345,
Alberto Magno 364, 396, 398, 408, 422 Alberto V, duque de Baviera, 624
Ale~xo,imperadores
I 329, 330, 334
Apologisras 71, 74, 102
Artigos de Lambeth 645
apóstolos 58,60, 62, 64, 65, 66, 67, 89, 90, 92, 100, 102, 125, 131,178, 179, 229,
Artigos de Schwabach 534, 535
26% 267, 337, 356, 366, 404, 463, 742, 756,
Arundel, Tomás, arcebispo de Cantuária 447
779, 787
Asbury, Francis 715, 726
Aquiia, colega de Paulo 41
ascetismo 142, 181, 184, 185, 187, 190,
Arrigos Orgânicos de 1802 784
Aquino, Tomás de 364, 380, 389, 393,
233, 337, 338, 339, 351, 360, 371, 426, 592
394, 395, 396, 397, 404, 405, 406,
Assembléia de Wesrminster 654
407, 408, 409, 410, 441, 412, 413, 415,
Assembléias Penrecostais do Mundo 780
416, 417, 418, 420, 422, 436, 473, 501,
Assíria, igreja da 801, 802
603, 790 Árabes 21 5, 221, 268,
Associa$io Batista da Filadélfia 676
328, 388, 389, 390, 797 Arcádio, imperador 175, 190
Associaçáo Cristã de Washington 772
Arcebispos 281, 292, 293,
Associaçáo de Escolas Dominicais 805
310, 455, 610, 640, 785
Associaçáo Evangélica 812
Aresen, Jon, bispo de Holum 547
Associaçáo Internacional do Cristianismo
Arianismo 161, 165, 166, 168, 169, 170,
Liberal e Religiosa 8 1 3
172, 178, 189, 210, 255, 560, 686, 719
Associaçáo Unitária Americana 770
Ário 144, 156, 157, 158,
Associação Universalista Unitária 8 1 1
Associação Crisxá de Moços 804, 809
159, 160, 162, 166, 167, 191 Aris~ides 71 Aristóteles 17, 21, 104, 257, 378, 379, 387, 388, 389, 390, 391, 394, 395, 396, 397, 401, 409, 438, 495, 500, 663, 749 Aristorelismo 394
Associaçáo Cristã Feminina 804, 809
Assunção de Maria 229, 8 14 Asisrolfo 276, 277 Astruc, Jean 734 Atanásio, bispo de Alexandria 162, 163, 164,
165, 167, 168, 169, 171, 179, 182, 186, 192, 193, 196, 197, 198, 199, 228, 236 Ataulfo 176
arisrotelismo
ateísmo 680, 681, 732, 813
389, 390, 394, 396, 397, 408, 409, 497
Atelesrano, rei da Inglaterra 297
Arkwrighr, Richard 700
Atenágoras 7 2
Arminianismo 633, 637, 710, 715, 717
Átila, rei dos hunos 176, 177, 180
Arminius, Jacobus (Jacó Harrnenszoon)
633, 634, 635, 636, 645 Arndt, Johann 689 Arnold, Gottfried 694, 750 Arnold, Thornas 750
.
Arnoldo de Brescia 343, 357 Arnulfo, bispo de Merz 268
Ato de Prova 657 Atos de Prova e de Corporação 756 Atos dos Apóstolos 48, 62, 91, 128 Augsburgo, confissáo de 535, 537,
546, 549, 620, 622, 623, 698 Augsburgo, ínterim de 544 Augusrinus Triurnphus 438 Augusto, eleitor da Saxônia 622
Benro X1T 437
255, 258, 260, 263, 267, 270, 275, 280, 281,
Bento XIII 454, 455, 456
282, 283, 288, 291, 292, 293, 294, 298, 299,
Bento XIV 781
309, 310, 314, 315, 317, 318, 319, 320, 321,
Benro XV 437, 792
322, 323, 324, 325, 326,339, 344, 353,
Benro, Regra de 186, 296
360, 370, 407, 429, 430, 431, 433, 435, 439, 441, 444, 454, 455, 476, 490,
Berengário de Tours 3 15 Berkeley, George, bispo de Cloyne 681, 7 9 2
502, 509, 514, 516, 533, 546, 547,
Brrnardino de Siena 467
548, 549, 553, 565, j66, 570, 573,
Bernardo de Ciaraval 332, 333, 340,
580, 581, 583, 600, 601, 602, 624,
342, 347, 377, 384, 422
640, 641, 643, 646, 649, 650, 653,
Bernardo de Saxe-Weirnar 628
655, 658, 659, 698, 725, 726, 7 8 5 ,
Berquin, Luis de 554
787, 790, 7 9 1 , 796, 799, 800, 801, 812, 816, 817, 818
Berthelier, Filiberro 551 Bertoldo da Calábria 371
Blair, James 671
BérulIe, Pedro de, cardeal 604, 605, 781
Blandina, márrir 71
Bessarion, João, arcebispo de Nicéia
Biaurock, Jorge 525, 528
458. 459, 462
Boaventura (Giovanni di Fidanza) 370, 374,
Beza, Thcodort 606, 609, 633, 634, 635
395, 396, 399, 409, 418 Boccaccio, Toáo 46 i
Bezpopovtsi 795 Biandrata, Jorge 630, 631 Bíblia de Genebra 580
Boécio 251, 252, 257, 378, 388 Boécio de Dácia 390
Bíhlia Grande i 7 4
Boemundo de Taranto 330
Bíblia Poliglota Complurense 472
Bogomilo (Teófilo) 304
Biddle, John 686
Bogomiios 304, 348, 349, 350, 351
Biel, Gabriel 495, 524
Bogue, David 722
Bilney Tomás 566, 568
Bohler, Peter 705
Bilson, Tombs, bispo de 1Vinchesrer 644
535, 537, 546, 549, 620, 622, 623, 698
Biscop, Simáo 636
Bolena, Ana 569, 570, 572
Bismarck, Otto von 788, 789
Boleslau I , rei da Polônia 308
Bispos 217, 807, 813, 818, 821
Boleslau 11, duque da Boêmia 308
bispos 63, 64, 65, 66, 67, 87, 92, 13,
Bolsec, Jerônirno 563
95, 100, 101. 102,118, 119, 120, 1 2 1 ,
Bonald, Louis Gabriel Ambroise de 786
122, 123, 136, 137, 138, 144, 1 5 5 , 156,
Bonhoeffer, Dierrich 824
158, 159, 160, 161, 162, 163, 164,
Bonifácio (Wynfrirh), bispo para a Alemanha
165, 166, 168, 172, 173, 178, 179, 180, 182, 191, 200, 204, 205, 206,
269 Bonifácio, condc da África 176
207, 211, 212, 213, 217, 218, 220, 221,
Bonifácio I1 250
239, 240, 241, 246, 247, 248, 254,
Bonifácio VITI 435
Booth, William 757
Burchard, bispo de Worms 31 1
Bora, Cararina von 5 15
Bure, Idelere de 560
Bórgia, César e Lucrécia 464, 465, 466
Buridan, Joáo 420
Bóris, czar da Bulgária 293, 302, 306
buscador 675
Borromeo, Carios, arcebispo cardeal de Miláo
Butler, Joseph, bisao de Durham. 682
Boston, Thomas 652, 673, 674, 701, 714,
cabala iudaica 462
Bothwell, Tiago Hepburn, conde de 657
Caetano de Thie~ie 59 1, 604
Bownde, Nicolau 649
Cajetano (Tomás dr Vio), cardeal 501
Bradford, Guilherme 647, 648
Calcedoniana, Defini~áo 207, 208, 209, 841
Bradshaw, Guiiherme 648
calendário gregoriano 799
Bradwardine, Tomis, arcebispo d e Cantuária
calendário juliano 799
421, 443
Calixto 11 326
Brahe, TYcho 665
Calixto 111 464, 465
Braidl, Ciauss 533
Calvinisrno 558, 606, 608, 610, 615, 616,
Bray. Thomas 672
621, 6 2 2 , 623, 634, 635, 636, 637, 645,
Brenr, Charles H. 807 Erenz, Joáo 500, 621
650, 660, 663, 709, 710, 7 1 7 , 7 1 8 , 762, 771, 772
Erès, Guy de 610
Calvino, João 342, 481, 522, 540, 549,
Brçwster, Guilherme 647, 648
553, 554, 555, 556, 557, 558, 559, 560,
Briconner, Guilherme, bispo dc Meaux
561, 562, 563, 564, 576, 585, 587, 592,
486, 549, 554
595, 596, 598, 606, 607, 620, 621, 623,
Brookç Foss Westcotc 752
Cameron, Kicardo 659
Browne, Robcrro 642, 643, 645
Cameronianos 659, 660
Bruccioli, Anrônio 595
Carnpbell, 241exandçr 772
Bruni, Leonardo 462
Carnpbell, Thonias 771
Brunner, 13. Emil 8 13
Carnpeggio, Lourenço, cardcai 514, 536
Bruno, Giordano 313, 477
Campion, Edmundo 617
Bucer, Martinhu 522, 530, 531, 532,
Cano, Melquior 473, 607, 603
534, 536, 537, 540, 541, 542, 549, 556, 559, 560, 576
Canossa 323
Budi, Guilherme 486, 5 54
633, 7 2 0
Bugenhagen, Joáo 506, 523, 547
Canuto, rei da Dinamarca e da Inglaterra 310
Bulgakov, Sfrgio 80 1
Capadócios 147, 169, 171,
Bullinger, Henrique 528, 576
172, 174, 208, 272, 305
Canstein, Carlos Hildebrando, Frcihcrr von
tI
I I
!i
I I !
I I
Capico (Wolfgang Kopfel) 522, 530
Catecismos 531, 556, j60, 562, 622,
Capreolus, Joáo 419
632, 7 7 4
Capuchinhos 593, 594, 595, 596, 790
Catecismo de Heidelberg 622, 637
Caracala, imperador 109, 117
Cacecismo Racoviano 632
Cardeais 314, 317, 318, 319, 320,
Catecumenato 121, 129, 130, 131, 223
321, 324, 385, 425, 430, 433, 436,
Cativeiro Babilônico da Igreja (Lutero) 504
437, 441, 454, 455, 456, 458, 464, 465,
Católicos Antigos 788
483, 500, 539, 594, 595 Carey, Williarn 722, 759
Cavaleiros de São Joáo (Hospitalários) 332
Carismácicos, Movimentos 830
cavaleiros teutônicos 332, 5 14, 516
Carlos, (Guise), "cardeal da Lorena" 607
Cecil, Guilherme (Lorde Burghley) 583, 589
Carlos de Anjou 433, 434
Cecil, Richard 71 1
Carlos Hildebrando, Freiherr von 693
Ceciiiano 155
Carlos 111, duque de Sabóia 551
Ceiesrino I, papa 200
Carlos Magno 277, 279, 282, 283, 284,
Ceiéstio, discípulo de Pelágio 245, 246,
286, 289, 298, 299, 300, 301, 319
247, 248
Carlos Marcelo 269, 270, 275, 276, 277
Celibato clerical 220, 317, 705, 753, 822
Carlos o Temerário, duque da Borgonha 472
Celso 72, 110, 116
Carlos, duque de Mayenne 61 9
Celtis, Conrado 478, 479, 517
CariosV 471, 476, 506, 508
Cenobitismo 184
Carmelitas 371, 605
Centúrias de Magdeburgo 604
Carnéades 20
Cesarini, Juliano, cardeal 4 58
Caroli, Pedro 560
Cesário, bispo de Arles 249, 250, 257
Carpzov, Johann Benedict 691, 692
Ceticismo 20, 235, 678, 682
Carroll, John, arcebispo de Balrimore 727
Chalmers, Thomas 758, 759
Cartuxa, Ordem 338
Chandieu, Anconio de i a Roche 607
Carrwright, Edrnund 640, 641, 642
Channing, William Ellery 770
Casamenro clerical 219, 315
Chaceaubriand, François René de 785
Cassiano, Joáo 186, 248, 249
Chauncy, Charles 7 14
Cassiodoro 187, 251, 252, 257, 280
Chemnitz, Marrinho 622
Castellio, Sebastião 564
Childerico 111, rei merovíngio 276
Catarina de Aragáo 564, 567, 572
Choiseul, Écienne François, duque 7 8 3
Catarina de Gênova 469, 591
Chrisrorokos 198
Cacarina de Siena 370, 425, 441, 468
Chrysolaras, Manuel 46 1
Cátaros 347, 348, 349, 348, 350, 351,
Cícero 20, 190, 234, 235, 461
352, 353, 354, 355, 356, 357, 358,
ciencia moderna 66 5
359, 360, 361, 373, 442 Catecismo (Moglia) 794
Cipriano, bispo de Cartago 97, 101, 102,
Cavaleiros do Templo (Templários) 33 1
114, 117, 118, 119, 122, 123, 131, 134,
856
HISTURIA DA IGREJA
euisri
Concílio de Lyon 371, 373, 395, 398
América d o Norte 804
Concílio de Nicéia 162, 164, 173, 179,
Conferência do Natal 726
191, 199, 204, 220, 222, 273
Conferência Missionária Mundial 803
Concílio cie Piacenza 329
Conferência Mundial de Fé e Ordem 807
Concílio de Pisa 347, 4 51, 455
Conferincia Nacional dos Bispos Católicos
Coiicílio dç São FiIix de Caraman 350
82 1
Concilio de Sárdica 179
Conferência Nacional para o Bcrn-Estar 821
Concílio de Sens 343, 385
Conferência sobre Igreja, Comunidade
Concílio de Soissons 38 1, 384
e Estado 806
Concílio de Toledo 178
Conferência Universal Cristá de Vida
Concílio de l l e n t o 544, 592,
e Obra 806
595, 600, 601, 611
Confirmaqáo 37, 66, 67, 247, 282,
Concílio de Verona 157 Concilio de Viena 373, 425, 429
404, 405, 505, 523, 546, 570, 650, 746 Confissáo batisrnal 88, 89
Coticilio e m Basiléia 320
Confissáo Belga 609, 637
Concílio em Cartago 247
Confissão dc Augsburgo 535, 536,
Concílio Trulano (Quinessexto) 220 Concílios Reformadores 453
537, 546, 549, 620, 622, 623, 698 Confissáo de Schleithrim 530
Concilium germanicurn 270
Confissáo de Westminster 660, 673, 714
Concordata d e 1801 784
Confissócs (Agostinho) 89, 238,
Concordata de 1929 789
358, 430, 744
Coticordara de Bolonha 469
Congall, abade de Bangor 260
Concordara d e VC'orrns 326
Congregação do fndex 602
Condé, Luís, príncipe de 607, 608, 609
Congregaçáo do Oratório 604, 78 1
cônego agostiniano 361, 387, 425, 448
Congregacionais 531, 648, 654, 656, 658,
Conexão de Lady Hiinringdon 709 Conferência Crisd do Lesce Asiático 828
662, 678, 687, 7 1 4 , 7 1 5 , 718, 7 1 9 , 7 5 5 , 7 6 5 , 767. 7 6 8 , 7 7 0 , 7 7 5 , 7 7 6 , 8 1 1, 812 CongrGgation 561
ConfrrCncia da Liderança Crisd do Sul 876
Congresso Internacional sobre Evangelizaçáo
ConferCncia das Igrejas do Pacífico 828
Mundial 829
Conferência de Beirute sobre Coopcra~áo
Congresso IMundial de Evangelizagáo 829
Mundial para o Desenvolvimenro (1961) 826
conquista normanda 320
Conferência de Bispos Católicos Anrigos 8 13
Conradino, filho de Conrad IV 434
Conferência de Iarejas da ifrica 828
Conrado de Gelnhausen 453
Conferência de Igrejas Européias 828
C o ~ r a d ode W'aldhausen 448
Conferência Católica dos Estados Unidos 821
Conferència dc Lambcth dos Bispos
Conrado Grébel 524
Anglicanos 8 13
Conrado I1 301, 3 10
Conferência de Missóes Estrangeiras da
Conrado 111 333
Conrado IV 433
Controvérsia das Vestes 583
Conselho Congregacional Internacional 813
conrrovérsia iconoclasta 272, 274, 277, 301
Conselho Federal das Igrejas de Cristo na
Controvérsia Majorisra 621
América 805
controvérsia origenisra 185, 233
Conselho Gera1 (Lurerano) 810
Con~rovérsiaOsiandra 62 1
Conselho Missionário Internacional
controvérsia "Quarrodécima." 94
803, 804, 808, 809
conrrovirsia trinitária 103, 191, 232
Conselho Mundial de Educaçáo Cristá 805
Convençáo Batista do Sui 774
Conselho Mundial de Igrejas 802, 807, 808,
Convenqáo Batista Nacional 775
809, 813, 814, 816, 821, 826, 830
convenção geral 725
Conselho Mundial Merodisca 8 13
Convençáo Missionária Geral da Denominação
Conselho Nacional das Igrejas de Crisro nos
Barisca 767
Estados Unidos 806
Corivençáo Mundial das Igrejas de Cristo 8 13
conselhos crisráos nacionais 804
conventículos 526, 69 1
Consiliurn de emendanda ecclesia 594
conventuais 374, 376, 472
Consistório (Genebra) 561, j62, 564
Cook, James, capiráo 72 1
consolamenturn 349, 351, 352, 353, 354
Coolhaes, Gaspar 634
Conspiração de Amboise 608
Coornhert, Dick 634
conspiraçáo Ridolfi 61 7
Cop, Guilherme 553
Constâncio I 148, 150
Cop, NicoIau 555
Constâncio I1 163, 165, 167,
Copérnico, Nicolau 665
168, 169, 175, 230
Coráo 390
Consrante 163, 164, 165, 216
Cordier, Maturino 553
Constante I1 216
Corpus iuris canonici 437
Constanrino IV 216
Cortese, Gregório, cardeal 592, 594
Consranrino IX 316
Costa, Isaac de 762
Conscantino V 270
Cottoti, João 652
Constantino VI 273
Courrenay, Guilherme, arcebispo de Cantuária
Consrituicáo Civil do Clero 784
446, 447
Consritui~õesde Clarendon 411
Covenanrcrs 659
Consulta sobre União Eclesiástica 8 12
Coverdale, Miles 566, 573, 574
Contarini, Gaspar, cardeal 539, 540, 592,
Cowper, Wiliiam 71 1
594, 595, 596, 598
Craniner, Tomás, arcebispo de 569, 570,
Contra-Reforma 470, 471, 589, 590,
571, 572, 573, 574, 575, 576, 577, 578,
591, 596, 600, 623, 625, 626, 781
579, 580, 581, 582
Controvérsia Adiaforista 621
280, 463, 761
i
I 1
i
1
I
1
Credos 89, 131, 164, 348, 385, 387,
Cutler, Timothy 674
D : . ~.. ~ C . .
573, 622, 687, 690, 734, 757, 807 Creighcon, James 726
Dagoberto I, rei dos francos 265, 268
Crenres Anrigos (Ritualistas Antigos)
Dale, Robert William 758
-. 635 -
795, 800 Crescente, filósofo cinico 70, 92
Dâmaso II 313
D!L=.-
Daniel Estilita 203
Crisóstomo, Joáo 179, 185, 188, 190
Dante Alighieri 434, 481
3g:. 1 d I. L;C -..
cristianismo judaico 56, 743
Darby, John Nelson 7 57
D13.1
Cristiano I1 546 547, 548
Darnley, Henrique Stuart, Lorde 588
63i.
Cristiano I11 546
Davenport, James 714
i?: -!i:
I
Cristiano IV 626, 627, 697
Davenport, João 652
D:-.-:: I<.-. . D;-..-
Cristiano Petersen 546
David, Christian 695, 697
D::.-
cristologias gnósticas 56
Dávid, Francisco 631
Di.5.
Crodegango, bispo de Metz 281
Davies, Samuei 7 15
Dic;r :
Cromwell, Oliver 655
De haererico comburendo 447
Di~s_~
Cromwell, Ricardo 655
De servo arbirrio (Lutero) 510
Di0c.t
Cromwell, Tomás 570, 571, 572, 573, 580
debate de Leipzig 506
Crotus Rubeanus 432
Decet ~onrificemromanum 506
14-. . Dia L:...
Cruzada Albigense 360
Décio (imperador) 101, 110, 117, 118,
Dior.:
Cruzada das Crianças 335
120, 138, 149
Dioz.5
Cruzadas 327, 330, 332, 333, 335, 336,
Declaração de Barmen 808, 8 13
Dias;:
348, 375, 453, 765, 768, 769 Cublai, cá mongol 429
Declaração de Indulgência (1672) 657
Di.---. ... " .
Deciaracáo de Indulgência (1687) 657, 658
dicci-..
Cuius regio, eius religio 624
Decrerais Pseudo-Isidorianas 293, 313, 322
Diíc.:
CuIco 12, 14, 15, 16, 22, 24, 27, 62,
Decretum 437
Disc -:
68, 99, 115, 124, 145, 151, 153, 154, 155,
Defenes~ra~áo de Praga 625
diiF-:
189, 218, 219, 221, 222, 226, 227, 228,
Definição calcedoniana 207, 208, 209
diss:~::
229, 273, 338, 340, 366, 430, 459, 471,
Deísmo 678, 680, 681, 682,
472, 483, 501, 507, 508, 509, 512, 516, 519,
D i ~ i :i Do-c-<.-
521, 525, 530, 549, 550, 554, 558, 577,
683, 685, 700, 722, 729 Demétrio, bispo de Alexandria 109
587, 599, 602, 606, 609, 615, 616, 623,
Demófilo, bispo de Constantinopla 173
624, 638, 639, 640, 642, 645, 650, 651, 653,
Denck, Hans 529, 530
Dot.:: do-;-. ;.
654, 657, 658, 660, G62, 663, 674, 675, 678,
denominações de santificaçáo 778
Do::--
686, 691, 696, 755, 756, 757, 766, 771,
Descartes, René 381, 666, 667
D C.--.
791, 792, 826, 829 Culro ao imperador 15
Desidério, rei lombardo 278, 480
D---
Dez Artigos (1536) 573
cultos de mistério 13, 16, 17
Dia do Senhor (Domingo) 60
D::.-. Dr- -
Cur Deus bom0 (AnseImo) 382
Diaconisas 69, 120, 121, 353, 761
,L.-..
ILL-
~
. :
7-5. -
-.
L.
-- - ~..- 3
860
BlST0RlA DA ILREJA CRISTX
Edmund Cartwiight 700
Erigena, João Escoro 290
Edmundo da Inglaterra, filho de Henrique 111
Eriangen, Teologia de 746
433 Edmundo I , rei da Inglaterra 297, 617
Erskine, Ralp h 701
Eduardo I 435
Ernst Wilhelm Hengstenberg 744
Eduardo I11 443, 444
Escápula, procônsul da África 117
Eduardo, rei da Inglaterra 336
Escola Alexandrina 106
Eduardo VI 564, 575, 576, 580,
escolas dominicais 720, 721, 761, 767, 805
582, 585, 638
escolasticismo 376, 377, 378, 379, 380,
Ernesci, johann August 734
Edwin de Deira, rei de Norrhumberland 262
383, 387, 394, 404, 409, 410, 414, 418,
Egéria, peregrina 222
419, 420, 461, 477, 497, 603, 620
Egmonr, Lamoral, conde de 610, 611
escorisras 416, 497
Eichhorn, Johannn Goctfried 734
escravidáo 71, 510, 661, 685, 719,
Einarsen, Gisser, bispo de Skáiholt 547
720, 768, 769, 774
Einhard, biógrafo de Calos Magno 282
Escrituras judaicas 28, 60, 7 8 , 80, 81,
Elias de Corcona 367, 374
84, 85, 90
Embury, Philip 715
Espínola, h b r ó s i o 626
EmIyn, Thomas 686
Espírito Santo 32, 48, 56, 88, 89, 99, 104,
Emmons, Narhaniel 7 18
124, 126, 129, 155, 164, 168, 170, 172, 173,
encarnaçáo 54, 55, 56, 81, 100, 104, 113,
224, 226 229, 243,246, 250, 256, 381, 403, 456,
144, 167, 192, 193, 194, 202, 217,
557, 620, 636, 663, 741, 756, 757, 772, 778,
222, 226, 229, 271, 272, 303, 380, 383,
779, 780, 790, 819, 823
386, 3 9 9 , 4 0 6 , 523, 593, 741, 746, 802
espirirualismo 425, 511, 531, 630
Encrarira, Movimento 14 1
esrados papais 431, 432, 437, 440, 464,
Engelbrekrsson, Olaf, arcebispo de Trondheim
465, 466
547 Enkrareia 140, 141
Estanislau de Znojmo 45 1
Ensaios e Escudos 752
Estatuto dos Provisores 439
Estáquio de Flandres 330
Epicteto, filósofo 18
Es~atutopara Liberdade Religiosa
Epicuro 17, 18
da Virginia 724
Epifania 222, 223, 224
EsriJicáo, Flávio 175
Epifinio, bispo de Salamis 76, 191, 233
esroicismo 21, 140, 251
Epiklesis 226
Estoiie, Pedro de 1' 553
Erasmo, Desidério 428, 462, 473, 478,
Erelberto, rei de Kcnt 255, 262
479, 481, 482, 483, 484, 485, 490, 495,
Etevoldo, bispo de Winehester 298
510, 511, 518, 555, 566 eremitas 183, 232, 338, 340, 371,
Euclides 104, 388
372, 425, 494
Eugênio 111 333, 343
Eudóxia, imperatriz 19 1 , 200
Eugênio IV 426, 457, 458, 459, 464
Farrar, Frederic William 752
Eunômio 170, 171, 172
Fausto, bispo de Riez 234, 249, 631, 632
Eusébio, bispo de Vercelli 186
Fausto, bispo de Riez 249
Eusébio, bispo de Cesaréia
Fé e Ordem, discussões 806, 807, 808, 821,
46, 160, 162, 232 Eusébio, bispo de Doriléia 203
823, 824 Febádio, bispo de Agennum 166
Eusébio, bispo de Nicomidia
Febroniauismo 783
144, 156, 159, 161, 162, 174
Federação Mundial de Estudantes
Eusébio, bispo de Vercelli 182
Cristãos 804, 809
Eustátio, bispo de Anrioquia 159, 162, 195
Federação Mundial Lurerana 813
Eustácio, bispo de Sebaste 184
Fell, Margarida 661
Eustóquia, Julia 233
feudalismo 298, 331
Eutiqucs 202, 203, 204, 205, 207, 208
Fichte, Johann Gortlieb 741, 750
Euriquianismo 209
Ficino, Marcilio 462, 463
Eurrópio, cortesão em Constan~inopla190
Field, João 64 1
Evágrio Pôntico 185, 186
Filareto, patriarca de Moscou 795
Evangelho de Lucas 48, 83
Filemom, carta a 41
Evangelho de Mareus 53, 137, 518
filetismo 797
Evangelho de Tomé 48, 77
filipisras 617, 61 9, 620
evangelho social 764
Fílon 26, 28, 74, 11 I , i12
evangelhos 29, 30, 31, 41, 44, 47, 48, 49,
Filosofia 251, 663, 666, 737
51, 72, 82, 90, 91, 111, 125, 141, 144,
filosofia 13, 17, 18, 72, 73, 78, 100, 106,
192, 225, 232, 272, 352, 366, 485, 487,
107, 108, 109, 110, 140, 146, 243, 251,
520, 747
Evangélicos Anglicanos 702
257, 303, 375, 379, 389, 392, 394, 395, 396, 397, 400, 401, 408, 410, 420, 461,
ex opere operato 240, 404
462, 483, 485, 539, 663, 665, 666, 667,
Execrabilis 464
597, 599
663, 680, 685, 722, 730, 735, 737, 746, 747, 749 Filoxeno, bispo de Mabboug 208
Exkrciro da Salvagão 757, 778
Finiano 260
Exomologêsis 137, 138
Finney, Charles Grandison 766, 768, 769
Exorcismo 130, 224, 577, 579
Firmin, Thomaç 686
Extrema unçáo 404, 505
Fisher, Edward 701
Exercícios Espirituais (Tnácio de Loyola)
Fisher, Joáo, bispo de Rochesrcr 567, 570, Fabiano, bispo de Roma 117, 120 Facundo, bispo de Hermiane 212
650 Firz, Ricardo 642
Farcl, Guilherme 549, 550, 551, 552, 554,
FitzRaph, Ricardo 443
559, 560
Flacius Iliyricus, Macias 545, 604, 621
II 1
I
i
i
ie
Flaviano bispo de Antioquia 173
Frelinghuysen, Theodore J. 71 3
Flaviano, bispo de C o n ~ t a n t i n o ~ l 180 a
Frequens 457
Flaviano de Consrantinopla 203
Frirh, João 566, 568
Fletcher, John William 709
Fritigerno, rei dos visigodos 175
Florovsky, Georges 802
Froben, Joáo 482
Fócio, patriarca de Con~tancino~la 293, 303,
Froment, Antônio 551
306, 308, 315 Forge, Estienne de Ia 556
Froude, Richard Hurrel 753, 754
Fórmula de Concórdia 622, 623
Fulberro, Uo de Heloisa 384
Fórmula de Reunião 201, 202, 204, 205
Fulk, bispo de Toulouse 361
fórmula nicena 162, 164, 167
fundamentalismo 778
Frumêncio, bispo da Etiópia 213
fórmula reopasquita 2 10 Fosdick, Harry Emerson 780
Gabor, Berhlen 626
Fossombrone, Ludovico e Raffaele da 593
Gabriel della Volta 500
Fox, Jorge 661, 662, 676
Gaguin, Roberto 48 1
Foxe, João 582
Galeno 104, 388, 521, 524
Franciscanos 360, 364, 368, 369, 370, 371,
Galério, imperador romano 148, 149,
375, 394, 395, 408, 409, 411, 414, 433, 442,
447, 467, 472, 597, 670
150, 151 Galieno, imperador romano 142
Francisco de Assis 356, 360, 364, 395, 429
Galileu Galilei 665
Francisco de Sales 605, 781
Galle, Pedro 548
Francisco de Vitória 473, 603
Gardiner, Lreváo, bispo de Winchester 575,
Francisco, duque de Guise 607
580, 581 Garibaldi, José 788
Francisco 11, imperador 577, 583,
586, 588, 589, 607, 608, 785 Francke, August Herrnanii 691, 692, 693, 694 fraternidades religiosas 489, 590, 591
Garrison, Wiliiam Lloyd 769 Geisa, rei da Hungria 307 Gelásio 11, papa 344 Genserico, rei dos vândalos 176
Fraricelli 442
Genrile, João Valenrino 630
Frederico da Áustria 437
Gerardo de Borgo San Donnino 375
Frederico Guilherme, eleitor de Bradenburgo
Gerardo de Cremona 389
627, 731, 760 Frederico 111, eleitor de Brademburgo 474,
Gerhardr, Paul 689
494, 622, 691, 695
Germano, patriarca de Constantinopla 271
Freeman, James 687
Gerson, João de 424, 454, 455
freiras 339, 341, 343, 356, 361, 363, 369,
Gibbon, Edward 684
Gerrnano, bispo de Auxerre 259
370, 371, 385, 424, 425, 426, 552, 572,
Giberti, Joáo Mateus 592, 594
605, 790
Giles de Roma 419, 421, 437
Hauge, Hans Nielsen 76 1
Hilário de Poitiers 165, 230
Haweis, Thornas 722
Hilda, Abadessa de Whitby 263
Hazlitt, William 687
Hildeberro de tavardin, bispo de Le Mans 347
Hegel, Georg Wilheim Friedrich 381, 740,
Hildebrando 314, 318, 320, 321, 322,
741, 742, 748 Hegius, Alexandre 478, 480
323, 324, 326 Hilron, Walter 425
Helena, mãe de Consrantino 162
Hincmar, arcebispo de Reims 290, 292, 293
Heloísa 384, 385
Hipócrates 388
Helwys, Tomás 647
Hipólito de Roma 76, 11 6, 129
Hengstenberg, Ernst Wilhçlrn 760
hipóstases 146, 164, 167. 168, 171,
Henôrikon (Zenáo) 207, 209, 221
196, 197, 242 História Eclesiástica 46, 62, 69, 93, 94,
Henrique de Langenstrin 454
104, 107, 110, 144, 153
Henry, Carl F. H . 829
história edcsiásrica 821
Hericleon 76, 82
História Eclesiástica da N a ~ á oInglesa,
Heráclio, imperador romano oriental 214,
de Beda 239,260,264
215, 216, 217
Hitler, Adolf 808, 812
HerácIiro 74
Hobarr, John Henry 774
Herbert, Edward 678
Hobbes, Thornas 669
Herder, Johann Gottfried 737, 75 1
Hochsrraten, Jacó 492
hereges 343, 346, 348, 349, 360,
Hoen, Cornélio 522
361, 362, 528, 548, 590, 603, 694 heresia 77, 303, 314, 346, 348, 349, 350,
Hofmann, Johann Chrisrian Konrad von 746
359, 360, 373, 375, 381, 408, 421, 422, 425,
holiness 778
426, 436, 442, 447, 451, 452, 486, 492,
Holland, Henry Scott 758
497, 500, 5 1 5 , 520, 524, 528, 568, 575,
Homens da Quinta Monarquia 660
576, 581, 591, 606, 610, 611, 690, 797,
Homens Essenciais 70 1
Holcot, Roberro 421
827
Hornero 28
heresia Espírito Livre 4 17
homoiousios 166
Hermann von Wied, arcebispo de Colônia 577
homoousios 160, 165, 166, 167, 168, 202
Hermas 56, 58, 59, 90, 127, 135, 136,
Hontheim, Nicolas von 783
137, 138
Hooker, Ricardo 644
Herodes Agripa 25
Hooker, Tornis 652
Herodes ("O Grande), rei da Judéia 25, 33
Hooper, João 58 1
Herrnhut 695, 696, 697, 698, 699,
Hopkey,. Sophie 705
706, 727
Hopkins, Samucl 718
hesiquasmo 304
Hormisdas, papa 209
Hicks, Elias 773
Hort, Penton John Anthony 752
866
UISTbRIA 8 1 IGREJA C R D I Ã
Igreja Metodisra Galesa 71 1
imperador Zenáo 207
Igreja Metodisra Protesrante 81 1
império benwolente 768, 769, 773
Igreja Metodista unida 8 11
Inicio de Antioquia 67, 93
Igreja Metodisra Wesleyana da América 774
independentes 255, 313, 331, 360, 377,
Igreja Morávia Americana 727
400, 426, 486, 605, 656, 660, 670,
Igreja Ortodoxa na América 800, 802
724, 726, 727, 780, 800, 815, 828
Igreja Ortodoxa Romena 798
indulgências 407, 451, 488, 489, 497,
Igreja Ortodoxa Russa 800, 809
498, 499, 500, 501, 517, 518, 601
Igreja Presbiteriana de Cumberland 771, 810
infraiapsariana 635
Igreja Presbiteriana do Canadá 8 1 1
Inquisiçáo 348, 433, 473, 474, 596,
Igreja Presbiteriana nos
610, 665
Estados Unidos 775, 810
Inquisiçáo espanhola 474, 591, 598
Igreja Presbiteriana Unida nos Estados Unidos
Instituiçáo da Religiáo Cristá (Calvino) 5 56
da América 8 10
ínterim de Leipzig 545, 621
Igreja Presbiteriana Unida (Escócia) 809
inrinçáo 405
Igreja Reformada Cristá 762
invasões bárbaras 178
Igreja Reformada e Evangélica 8 12
Invasões Germânicas 173
Igreja Reformada Holandesa 637, 675, 676,
investidura Iaica 318, 319, 321, 322, 324,
712, 762 Igreja Reformada Livre 763
325
Igreja Reformada iMenor 63 1
Ireneu, bispo de Liao 76, 82, 84, 91,
igreja separada 83, 695 Igreja Uniara da Ucrânia 794
92, 93, 94, 95, 96, 97, 100, 108, 112, 114, 116, 134
Igreja Unida do Canadá 8 1 1
Irmandade Zoe 797
Igreja Unida do Sul da fndia 812
Irmãos da Vida Comum 428, 478, 481, 634
Igreja Unida Livre da Escócia 8 10
Irmãos de Plymouth 757
Igreja Viva 799
Irmãos e irmãs do Espírito Livre 421
igrejas ortodoxas esiavas 809
Irmãos Hucreritas 533
igrejas ortodoxas orientais 80 1, 802
Irmãos Morávios 533, 694
igrejas "presbigacionais" 765
Irmáos Poloneses 632
igrejas reformadas 675, 689, 693, 713,
Irmáos Suiços 526, 530
726, 762, 764, 774, 813
Irmás e os Irmáos da Vida Comum 427
igrejas "uniatas" 795
Irving, Edxvard 756
Iltide, santo gdès 260
Isabel da Turíngia 370
Iluminismo 669, 678, 729, 731, 733,
Isabel, rainha da Inglaterra e da Irlanda
735, 737, 738, 772, 783 imaculada conceição 41 1, 787
428, 471, 472, 473, 476, 564, 567, 570,
imitacão de Cristo 181, 423, 483, 597
617, 618, 638, 645, 686
Irene, im~eradorado oriente 273, 282, 301
579, 580, 582, 583, 584, 586, 589, 590, 616,
Isabel, rainha de Castela e Aragáo 470
Joáo Capisrrano 468
Isaque, abade de Stella 334
Joáo Climaco 304
Isidoro de Kiev 793
Joáo da Cruz 605
Isidoro de Sevilha 257, 280, 290, 293
Joáo de Damasco 271
Islá 241, 268, 270, 324, 328, 336
Joáo de Gaunt 444, 446
Ivo, bispo de Charrres 325
Joáo de Jandun 438
Jablonsky, Daniel Ernst 697
Joáo de Lcyden 539
Jacob, Henrique 648
Joáo de Mirecourr 420
jacobinos 784
Joáo de Monte Corvino 429
jacobitas sítios 795
Joáo de Paris 438
Jansen, Cornelius, bispo de Ypres 782
Joáo de Parrna 374, 375, 395
jansenisrno 782
loáo de Saint-Gilles 396
Jarrai, Deveieux 71 6
joáo de Telá 2 13
Jeffeferson, Thomas 724
João Gerhard 623
Jejum 61, 126, 130, 135, 137, 281, 283,
joáo Hircano 24
222, 351, 370, 519, 753
Joáo Hooper 581
Joáo de La Rochelie 395
Jeremias 11, patriarca grego 794
loáo I1 Sigismundo, rei da Hungria 630
Jerônimo (Eusebius Hitronymus) 231,233,
João Jorge 111 69 1
563
joáo Maxsncio 209
Jerônimo de Praga 449, 453
Joáo Tzimiskes, imperador do Oriente 302
jesuíias (Sociedade de Jesus) 593, 598, 599,
joáo VI11 Palaeólogo, imperador do Oriente
600, 601, 603, 617, 623, 624, 626, 657, 670,
458
671, 781, 782, 783, 784, 786, 790, 795
Joáo, o Jejuador, patriarca de Consrantinopla
43, 44, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55,
Joaquim de Fiore 375
56, 59, GO, 62, 63, 64, 73, 74, 76, 84, 88, 89, 90, 91, 37, 95, 103, 104, 107, 113, 114, 123, 125, 126. 127, 128, 129, 132, 133, 138, 140, 141, 147, 192, 193, 196, 199, 200, 222, 223, 228, 233, 237, 244, 305, 305, 399, 411, 467,591, 598, 599, GOO, 605,
Johnson, Francisco 645
635, 668, 686, 704, 733, 744, 747, 748,
Jorge dr Brandenburgo 514, 535
749, 777, 778, 780, 807, 808, 813, 823, 830 Joana d'Arc 469 Joana da Espanha 476 Joana de Chantal 605
]os& 11, imperador do Sacro Império Rumano
Joáo Batista 29, 31, 332, 355
josefo 26
Johrison, Gisle 762 Johnson, Samiiel 674 lonas, Justo 506 Jordáo da Saxônia 363 jorge da Saxônia, duque 51 5, 54 1
783 José 11, patriarca de Consrantinopla 458 josefismo 783
Joseph d e Volokolamsk 794 Joviano, imperador romano 169 Jud, Leo j20 judaísmo 24, 25, 27, 28, 36, 37,38,
46, 47,59, 67,78, 84, 117, 126, 477, 492,742 judeus 21, 22, 24, 28, 29, 36, 39, 41, 43, 46, 68, 91, 92, 94, 133, 210, 274, 330, 331, 389, 390, 397, 399, 437, 473, 474, 480, 492, 684, 751, 813 Judson, Adoniram 767 Juliana de Norwich 425 Juliano ("o Apósrara"), imperador romano 167 Juliano, bispo de Eclana 248 Juliano de Halicarnasso 210 Júlio Africano 117
Kilwardby, Roberro 408 King, Marrin Lurher 646, 826 Kingsley, CharIes 751,758 Kirkham, Robert 703 Kljeforh, Theodor 744,760 Knox, Joáo 585, 586, 587, 588 Kopfel, Wolfgang (Capito) 522 Kramer, Henrique 488 Krauch, Charles Pocerfield 773 Krum 301 Kulrurkampf 788, 789 Kurter, Hermann 764 Kuyper, Abraham 763 LadisIau, rei de Nápoles 455 Laecencur caeli 201, 204,459
Júlio César 11
Lainez, Diogo 598,601
Júlio Constâncio 167
Lamennais, Hugues Féliciré Robert de 786
Junius, Franciscus 634
Lamenrabili (Pio X)792
Junta Americana de Comissários para Missões
Lanfranc, arcebispo de Canruária 380
Escrangeiras 767
Langton, Esteváo, arcebispo de Cantuária 432
Juntas d e missões da igreja da Escócia 722
Lardner, Nathaniel 686
Jusrina, mãe de Valenrino 189
Laski, Jan (Joáo Lasco) 578
Justiniano I, imperador do Oriente 209
Latimer, Hugo 581
Justiniano 11, imperador do Orienre 217
Laud, Guilherme, arcebispo de Canruária
Juvenal, bispo de Jerusalém 206
650, 651, 652, 653, 654 Laval, Francisco de, arcebispo de Cantuária
Kanr, Emanuel 735, 736, 737, 738,
67 1
739,740,749, 750
Law, WilIiam 680
Karlsradr, André Bodestein 497, jü2, 506.
iazarisras 790
507, 51 I , 512, 524, 546 Keble, John 753, 754 Kepler, Johannes 665 Ker, Roberto 577
Lc Clerc, Jean 733
LeFèvre d'6caples, Jacques 462, 477, 485,
Khomiakov, Aleixo 798
495,549, 554
Khoren I, católico armênio 801
Legare, Barcholornew 686
Leáo de Ochrida 3 16 Leáo, o Macemárico 303
Kierkegaard, Soren 761
Lei da Supremacia 570
Kiliano, apóstolo d a Francônia 261
Zci das Cinco Milhas 656
Marcos de Éfeso 459 Marcourt, Antônio 556 Margarida d'Angoulême 554 Maria de Lorena 584, 585 marisras 790 Marpeck, Piigram 53 1 marranos 474 Marsden, Samuel 759 Marsílio de Inghen 420 Macaulay, Zachary 720
Marrinho de Tours 186
Macedônio, parriarca de Consranrinopla 208
Martinho I, papa 216
Manchen, J. Gresham 780
Marrinho V, papa 456, 457, 465
Magnêncio, imperador romano 165
mártires 70, 97, 98, 102, 139, 155, 181,
Magni, Pedro 548
182, 227, 228, 229, 257, 529, 568, 582
Maieul, abade de Cluny 296
Martírio de Anrioquia, patriarca 206
Maimônides (Moisés ben Maimon) 389
Martyn, Henry 759
Maintenon, Madame de 782
marxismo 799, 813
Maisrre, Joseph Marie de 786
Mason, Charles H. 780
Major, Joáo 553
Massacre em Vassy 609
Major, Jorge 621
Marer er magistra 8 16
Makemie, Francis 677
Mateus de Bascio 593
Mahakis, Apóstolos 797
Mather, Ricardo 652
Mdan, H. A. César 762
Mathys, João 538, 539
maniqueísmo 147, 210, 234, 237, 349, 510
Matias de Janov 448
Manning, Henry Edward 754
Macias, imperador do Sacro Império 625
Manwaring, Rogério 65 1
Maurice, John Frederick Denilson 75 1, 758
Manz, Félix 525
Maurício de Nassau 637
Maomé 215
Maxêncio, imperador romano 150, 151,
Mar Shimum XXIII 801
152, 154
Marcela, discípula de Jerônimo 232
MaxfieId, Thomas 708
Marcelo, bispo de Ancira 159, 163, 165, 179
Maximiano, imperador romano 148, 150
Marciano, imperador romano oriental 204,
Maximila, profetisa montanista 85, 86
206, 221
Maximino Daia 150, 151
Marciáo 83, 84, 85, 86, 87, 93, 95,
Máximo, o Confessor 152, 216, 304
96, 100, 111, 133, 141, 743
Médici, Catarina de 608. 613, 619
Marcílio de Pádua 438, 453
Médici, Cósimo 458
Marco Aurélio, imperador romano
Melanchton, Filipe 480
18, 114, 115
Melécio, bispo de Antioquia 169, 173, 175
Melício, bispo de Licópolis 162
Milron, John 686
meiioramenrum 353
minisrro 187, 202, 240, 352, 367, 368,
Meiito, bispo de Sardes 72
363, 371, 372, 374, 375, 395, 453, 468,
Meiquioriras 532
472, 511, 516, 520, 530, 5G0, 567, 587, 586, 610, 628, 642, 645, 652, 656, 659,
Melville, André 650 Mernnon, bispo de Éfeso 201 Mmdigos (les G u e w ) 611
675, 686, 722, 728, 751, 757, 759, 763, 771, 780, 783
Mendigos do iMar 612
Missa AIemá 509, 516
Mendoza, Pedro Gonçado, arcebispo de Toledo
missáo interna 761, 764
472
Missáo Luterana Evangélica de Leipzig 763
Menezes, arcebispo 795
missões 258, 265, 277, 314, 360, 428, 468,
menoniras 539, 675, 676, 723 Menonitas holandeses 647
598, 600, 693, 697, 698, 718,721, 722, 758, 759, 761, 767, 774, 790, 804, 806, 812,
Mensúrio, bispo de Carrago i 55
820
Merici, &gela
593
Messias, crenças messiânicas 28, 29, 30, 5 1 ,
misticismo 208, 342, 370, 421, 422,
54, 56, 81, 126, 668, 747
425, 428, 477, 479, 484, 530, 591, 605, 689
Meródio, missionário dos eslavos 307
misticismo alemão 424
Metódio de Olimpo 144
Mit brennender Sorge 792
metadistas 678, 71 1, 715, 716, 726, 749,
mito 14,
765, 767, 770, 778, 811, 812, 821 merodistas calvinistas 702, 709
modernistas 7 9 1
16, 78, 79, 747, 826
Maffat, Roberr 759
Michaelius, lonas 675
Mogila, Pedro 794
Miguel Cerulário, parriarca de Constantinopla
Moltber, Philipp Weinrich, 707
315
monarquianismo 103, 102, 104, 105,
Miguel de Cesena 414
161, 162, 164, I66
Miguelângeio 466
monarquianismo modalista 105
milagres 632, 668, 679, 682, 683, 684,
monasricismo 181, 182, 184, 185, 186,
685, 730, 747
187, 248, 260, 261, 287, 337, 338, 343, 3 4 ,
Milcíades, bispo d e Roma 155, 179
356, 360, 371, 374, 397, 494, 571, G63, 696
Milich de Kromerzis 448
monenergismo 217
Mill, John 733
Mônica, mãe de Agostinho 233, 235, 237
Miller, Williarn 776 Mills, Sarnuel J . 767 Milman, Henry Hart 751
monofisiras 180, 205, 206, 207,209,210,
211, 212, 213, 215, 216, 274, 459, 793 monotelismo 2 16, 21 7
Milner, Isaac 71 1, 720
rnon~anismo 85, 86, 87
Milner, Jaseph
711
Miltitz, Carlos von 502
Montano 85, 86 Monrr Cassino 167, 276, 279, 293, 324, 376,
Moody, Dwighr L. 756,777,804
Mussolini, Benito 789
Moray, Tiago Sruarc, conde de 588
Mynsrer, J. P. 761
More, Hannah 485, 567
Mystici corporis Christi 8 18
More,Tomás 481, 485, 566, 568, 569, 570 Morgan, William 703
Nabucodonosor, rei da Babilônia 21, 22
Moritz, Duque da Saxônia 543, 544, 545,
Nações Unidas 8 13
600, 621
Nag Hammadi 7 7
mórmons 777
náo-conformistas 642, 702, 718, 721, 755,
Morralium Anirnos 802 Morton, James Douglas, conde de 649
756, 7 5 8 Napoleão I, imperador da França 784, 785
Moçheim, Johann Lorenz von 7 3 1
Napoleáo 111, imperador da França 788
Mott, John R. 803, 804
Natal 222, 223, 229, 726, 7 5 2
mouriscos 474
Naumann, Friedrich 7 6 4
movimento anglo-católico 703, 753,
Neander, Joachim 745
754, 755 movimento conciliar 464, 490
Neander, Johann Augusr Wilheim 740 Nebrídio, companheiro de Agostinho 235
movimento da alta igreja 644, 705, 749,
Necrário, bispo de Consranrinopla 173, 170
750, 7 5 2 , 755, 7 6 0 , 761, 762, 774 movimenco de Cluny 327
neoplaronisrno 146, 147, 208, 236, 238,
movimenco de Oxford 753, 7 54
251, 389, 392, 394, 425, 462, 485, 750 Néri, Filipe de 604
movimento de remperanca 768
Nero, impcrador romano 4 5 , 46
movimento Educafáo Cristá Mundial 804
nescorianismo 196, 203, 205
movimento Jesus Apenas (ou movimento Nome
Nestório, bispo de Constancinopla 197, 198,
de Jesus) 780
199, 200, 201, 202, 204
movimento litúrgico 792, 817
Nevin, John W. 774
movimento prisciiianista 230
Newman, John Henry, cardeal 753, 754
movimentos de estudantes cristáos 804, 808
Newton, Isaque 666, 71 1, 716
muçulmanos 328, 333, 388, 470, 473, 598
Newron, John 710
Muhienberg, Henry Melchior 716, 728
Nicéforo I, imperador romano do Oriente
mulheres 85, 221, 130, 141, 184, 190,
232, 233, 263, 337, 339, 341, 344, 345,
301, 305 Nicetas, sacerdote bogomilo 351
349, 350, 353, 358, 361, 363, 370, 372,
Nicolau de Aucrecourr 420
373, 424, 426, 427, 582, 593, 595, 707, 790, 804, 827, 830
Nicolau de Clémangcs 454
Muller, Gçorge 757
Nicolau de Hereford 446
Munrzer, Tomas 51 1, 512, 513, 529
Nicolau I, czar da Rússia 29 1, 293, 306,
Murray, John 728
315, 798 Nicolau, líder da Cruzada das Crianças 335
Murton, Joáo 647
Nicolau de Cusa 458, 463, 476, 477, 485
Niebuhr, Barthold Georg 747
Ohann Lorenz von Mosheim 731
Niebuhr, H. Richard 813
Olaf I, rei da Noruega 3 10
Niebuhr, Keinhold 813
Olaf 11, rei da Noruega 548
Nikon, patriarca russo 795
Olaf Skorkonung, rei da Suécia 310
Niniano, missionirio escocês 260
OIavo I, rei da Noruega 3 10
Nitschmann, David 697 Noero 104
Oldcastle, sir Joáo 448
Nogaret, Guilherme 436
Olevianus, Gaspar 622
Oldenbarneveldt, Joáo van 637
nominalistas 379, 418, 495
OIga, regente de Kiev 308
Nommenscn, Ludwig 1. 763
Olivéran, Pedi-o 554
Non abbiamo bisogno 792
Ornar 11, califa 270
Norberto de Xanten 344, 345
Oraçáo do Senhor 351, 352
Norfolk, Tomás Howard, duque de 575,
Oratório do Amor Divino 469, 591
577, 617 Northumberland, John Dudley 578,
Ordem de São Damiáo 364
579, 580 Nova Profecia 8 5 , 86, 87, 90, 93
Maria do Monte Carmelo (carrneliras) 371
Nova Roma 154, 793
220, 238, 245, 246, 315, 358, 404, 405,
Novas Luzes 714, 771
427, 570, 633, 695, 702, 703, 709, 726,
Novo Testamento 27, 32, 44, 45, 56, 57,
90, 91, 92, 99, 100, 140, 232, 236, 355, 358,
771, 788 ordens militares 331
375, 439, 450, 463, 473, 479, 482, 483,
Origenes 58, 76, 109, 110, 1 1 1 , 112, 113,
485, 486, 487, 490, 519, 541, 546, 547,
114, 116, 117, 118, 136, 137, 138, 140,
Ordem dos Frades da Bem Aventurada Virgem ordenação 120, 155, 161, 213, 218, 219,
548, 558, j66, 595, 632, 640, 643, 647,
144, 157, 185, 191, 195, 212, 231, 232,
686, 700, 732, 733, 734, 742, 743, 747, 749,
233, 483 origenismo 144, 185, 191, 213
752, 757, 782
Orósio, discípulo de Agostinho 247 oblatas 376
ortodoxia 112, 159, 165, 166, 168, 173,
observantes, movimento observantc 374,
174, 199, 205, 207, 209, 211, 212, 213,
467, 468, 472, 590, 594 Occam, Guilerme 410, 414, 415,
216, 217, 305, 306, 343, 346, 350, 375, 450, 473, 484, 508, 560,564, 573, 591, 617,
416, 417, 418, 419, 420, 421, 449, 495
623, 630, 686, 688, 690, 694, 729, 733,
occamisras 416, 420, 421, 497 Ochino, Bernardino 596
733, 738, 744, 760, 780, 795, 797, 798, 800, 802
Odilo, abade de Cluny 296
Osiander, André 62 1
Odo, abade de Cluny 296, 297
Osvaldo, rei da Bernícia 261
Odoacro 177
Oswy, rei da Bernícia 261, 263, 264
Oglrthorpe, general James Edward 704
ousia 160, 166, 167, 171, 196, 242
j
ii
pobres lombardos 359
281, 561, 630, 726
pobreza apostólica 325, 337, 360, 361,
Prierio, Silvesrre de 500
444, 453 Pole, Reginaldo, arcebispo de Cantuária 581,
Priesrley, Joseph 687
583, 594, 595 Policarpo, bispo dc Esmirna 57, 94, 118
Primeira Guerra Mundial 777, 79 1, 79 2,
Prim, Bernardo 359
Polícrates, bispo de Éfeso 95
798, 808, 813 Primeira Lei do ConvencicuIo 656
polis 12, 67, 68, 119, 217
Priscila, companheira de Paulo 41
política de non expedic 789
Proclo, discípulo de Plorino 389
Politiques 614
Proclus, patriarca de Constantinopla 202, 208
Pombal, marquês de 783
Procópio, o Grande 453
Pompadour, madamc de 783
profeta 29, 58, 65, 85, 86, 267, 375,
Pompeu, o Grande 24 Ponticiano, professor de Agostinho 236
469, 524, 529, 538, 776, 798 profetizantes 641
popovrsi 795, 800
Proles, André 494
Popuiorum progressio (Paulo VI) 826
prosôpon 105, 197, 596, 652, 665
Porete, Margarida 426
Próspero de Aquitânia 249
Posfírio, filósofo neoplarônico 109, 110,
Protério, patriarca de Aiexandria 206
116, 146, 236, 378, 379, 388
protcstanrismo 473, 521, 537, 540, 543,
Porrée, Gilberto de La 343
544, 549, 552, 554, 556, 565, 567, 568,
Porino, bispo de Liáo 95 Praemunire 439, 569
573, 576, 578, 580, 582, 586, 588, 589, 590, 596, 598, 602, 603, 606, 608, 609,
Práxeas, monarquiano 100, 104
610, 613, 617, 619, 623, 624, 626, 631,
Precisianismo Holandês 689
638, 639, 657, 665, 667, 688, 695, 754,
predesrinacão 248, 249, 250, 290, 401,
755,759, 761, 763, 764, 777, 781, 782,
413, 416, 420, 421, 511, 556, 558, 563, 632, 633, 635, 636, 709, 716, 770 premonsrrarenses 344 presbicerianismo 640, 649, 650, 653, 660, 676, 713, 714, 715, 755, 810, 811 presbircrianos da "Nova Escola" 773 presbiterianos da "Velha Escola" 773 Presbirerianos do Lado Antigo 713 Presbirerianos do Lado Novo 713 presbiterianos escoto-irlandeses 672 ~resbiterianospuritanos 677 ~resbítero 57, 95, 98, 105, 109, 121, 130, 144, 156, 190, 196, 208, 219, 237, 240, 245,
provisores 439, 443 Provoost, Samuel 725 pseudo-Dionísio 208, 272, 289, 342, 387,
389, 397, 425 Ptolomeu, cristão gnóstico 76, 81, 82, 92,
106 Ptoiomeus, seis do Egito 2 1, 106 Pufendorf, Samuel von 669 Pulquéria, imperadora romana do oriente
200, 204, 221 purgatório 257, 355, 358, 406, 407, 499,
520, 536, 573, 601 puritanos 581, 585, 639, 640, 641, 642,
878
IISTORIA DA IGREJA C R I S T ~
632, 778
Roberto 11, duque da Norrnandia 330
resrauraçáo 28, 32, 79, 80, 99, 1 1 1, 113,
Rohinson, Joáo 77, 647, 648
114, 117, 118, 122, 137, 138, 164, 189,
Rodolfo, duque da Suábia
209, 210, 214, 270, 293, 294, 295, 297,
323, 435, 478, 625
298, 329, 351, 403, 451, 490, 527, 533,
Rogers, Joáo ("Thomas Matthew") 573, 581
581, 602, 655, 658, 659, 662, 674, 730,
Rolando de Cremona 396
784, 786, 789
Rolle, Ricardo 425
Reuchlin, lohannes 479, 480,
Rollo, duque da Normância 285, 309
432, 495, 501
Rolos do mar Morro 26, 27
reunióes de acampamento 766, 778
Romanov., Miguel 795
reunióes denominacionais 8 10
romaniismo 735, 738, 740, 750, 758,
Réveil 760, 762, 763
771, 785
revelaçáo 27, 28, 42, 44, 57, 73, 74, 78,
Rompimento de 1843
80, 81, 82, 84, 98, 103, 107, 110, 378, 379,
Ron~ualdo,fundador da ordem CamaldoIese
386, 387, 390, 400, 401, 410, 412, 413, 419,
31 1
495, 511, 605, 660, 679, 680, 682, 683,
Rômulo AugílscuIo, imperador romano 177
684, 685, 730, 732, 733, 734, 738, 746,
Roscelino, cônego de Compiègne 38 1,
747, 750, 777, 787, 813, 819, 820 Revolra de Pencland 659
383, 384 Rose, Hugh James 753
revolra dos camponeses 5 12, 513, 514, 515,
Rothe, Johann Andreas 695
780, 8 10
527
Rorhmann, Bernr 538
revolta dos macabeus 24, 25
Roubli, Guilherme 526
RevoIuçáo .4mericana 712
Rousseau, Jean Jacques 735
revoluçáo americana 685
Roussel, Geraldo, bispo de Oli.ron 555
revoluqáo de 1688 658
Rowlands, Daniel 701
re.r~olu~áo de Julho (1830) 752
Rubeanus, Crorus 432
revolução de Münster 538
Rubrica dos Ornamentos 583
Revoluçáo Francesa 7 58, 783, 784
Rufino de Aquiliia 19 1, 23 1
Reynolds, Eduardo, bispo de Norwich 655
Rum Millet 793
Rice, Lurher 767
Russel, Charles Taze 776
Richelieu, Armand Jean du Piessis, cardeal 628
Ruysbroeck, Joáo 424, 427
hdley, Nicolau 566, 581. Riedemann, Pedra 533
Saale, Margarida von der 541
Rienzo, Cola di 441
sabelianismo 105, 384
k n k , Melquior 533
Sabélio 104, 105
Ritschl, Albrechr 748, 749, 780, 813
Sabóia, duques de 522, 549, 550,
Roberto de Arbrissel 338, 344, 345
551, 552, 605
Roberro de Courçon 392
sacerdote 21, 23, 24, 26, 27, 120, 134,
sés pa~riarcais 161, 220
Sobre a Graça e o Livre Arbítrio 248
Sexta cruzada 336
Sobre a Trindade 230, 241, 243
Seymour, Jane 572, 576
sobrenaturalismo 632, 742, 744
Seymour, Wiliiam J. 778
sobrenaturalismo racional 678
Shaftesbury, anthony Ashiey Cooper, conde de
socialismo cristão 758
669
Sociedade Americana de Educação 767
Sharp, Tiago, arcebispo de Santo André 659
Sociedade Americana de Folhetos 767
Sic et non (Abelardo) 385
Sociedade Americana para a Paz 769
Siegfried de Mainz 320
Sociedade Americana para a Promoçáo da
Sigério de Brabanre 390, 396, 408
Temperança 769
Sigismundo, imperador do Sacro Império
Sociedade Anti-escravista Americana 769
452, 455, 456, 630
Sociedade Batista para a Propagaçáo do
Sílabo de Erros (Pio IX) 820
Evangelho e 722
Silas, companheiro de Paulo 40
Sociedade Bíblica Americana 767
Símaco, prefeito romano 189, 235
Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira 720
Simão de Monrfort 360, 361
Sociedade de Folheros Religiosos 720
Simão, o Mágico 76
Sociedade Evangélica Missionária
Simeáo o Anciáo (Esrilista) 184
da Basiltia 763
Simeon, Charles 71 1
Sociedade Imperial Palrsrina 798
Simeáo, o Novo Teólogo 305
Sociedads Missionária da Igreja 722, 797
sirnonia 311, 313, 314, 315, 317, 318,
Sociedade Missionária Dinamarquesa 763
320, 321, 325, 490, 565
Sociedade Missionária do Norte
Sirnons, hlenno 539
da Alemanha 763
Simpliciano, bispo de LMiláo 188
Sociedade Missionária Metodista
Simplício, papa 207
Wesleyana da Ingla 722
sinagogas 28
Sociedade Missionária Nacional
sinergismo 620, 636
Americana 767
sínodo de bispos 144, 172, 212, 818
Sociedade Missionária Renana 763
sínodo dos Márrires 529
Sociedade para a Propagaçáo da Fé 790
Sínodo Geral (Lurerano) 773
Sociedade para a Propagaçáo do Evangelho em
Sínodo Unido do Sul (Lurerano) 8 10
Terra 672
Sirício, bispo de Roma 179
Sociedade para a Propagaçáo do
Siska, Joáo 453
Evangelho em Terras 721
sisrema paroquial 266, 280
Sociedade Promotora das Escolas
sisrema provincial 220
Dominicais 721
Smith, Joseph 776, 777
Sociedade Promotora do Conhccimcnto Cristão
Smyth, Joáo 647
672, 720
sobornost 778
sociedades de oraçáo 70 1
sociedades religiosas 698, 700, 707 sociedades volundrias 720, 762, 767, 769,
650, 753 Sumina Tkeologiae (Tomás de Aquino) 393,
773 socinianismo 630, 632, 686, 719
399, 419, 603
Socinus 631
supraiapsatiana 634
summac 376, 387, 393, 394, 460
Sócraces 17, 20, 74, 417
Suso, Henrique 423, 424
SODEPAX 827
Szeprick): Andr4, rnerropolita de Lvov 802
Soderblorn, Narhan, arcebispo de Upsda 734 Sofrônio, patriarca de Jerusalém 21 5
taboticas 453
Sol Invictus 115
Taciano 72, 91, I41
Soloviev, Vladimir 738
Tácito 45, 69
somasquis 593
Tancredo, cruzado 330, 33 1
Somerset, Eduardo Seymour, duque de
Tappan, Artur e Lewis 768
576, 577, 578 Sorssky, Nil 794
Tauler, Joáo 364, 423, 424, 496
Sozzini, Fausto (Faustus Socinus) 63 1, 632
Tausen, Hans 546
Tassilo, duque da Bavicra 279
Spangenberg, Augusr Gottlieb 697, 699, 704
raxaçáo 266, 504, 61 1
Sparks, Jared 770
Taylor, Nathanlel W. 765
Spener, Philipp Jacob 689, 690, 691,
Teelinck 689
692, 694, 695, 701
Ternpier, Brtienne, bispo de Paris 408
Spinoza, Batuque 667, 738, 739
Templários 331, 332, 437
Sprenger, Jacó 488
Temple, William, arcebispo de Canruária 808
Scálin, ]os6 800
tendências judaizan tes 743
Stanley, Arthur Penrhyn 752
Tennenr, Gilberr 713
Staupirz, Joáo 494
Tennent, William 713
Stock, Sirnáo 371
Tennyson, AiEred Lord 752
Srocker, Adolf 764
Teodoreto, bispo de Cirro 201, 204,
Stoddard, Solomon 716
208, 212
Srone, Barron W 771
7eodoric0, rei dos osrrogodos 177, 187,
Scrauss, David Friedrich 747, 748
251, 252
Strawbridge, Robert 715
Teofano, esposa de Oto I1 301
Srronç, Josiah 805
Teofilato 29j, 296
Stuarc, Tiago, conde de Moray 588
Teofrasto 104
Sturm, discípulo de Bonifácio 269
teologia
Sruwesant, Pcter 675
18, 27, 74, 98, 100, 102, 103, 156, 157,
sublapsariana 635
159, 162, 170, 171, 172, 173, 185, 188, 190,
Submissão do Clero 569
196,208, 211, 216, 229, 230, 231, 250, 272,
sucessão apostiilica 67, 92, 352, 548,
290, 304, 305, 345, 356, 370, 377, 378, 379,
380, 382, 384, 387, 391, 392, 393, 394, 395, 396, 397, 398, 399, 400, 404, 408, 409, 410,
Ticônio, teólogo donacista 230
Tiatinos 591
411, 414, 415, 417, 418, 419, 420, 421, 423,
Tikhon, patriarca russo 799
424, 427, 438, 443, 449, 450, 453, 454, 455,
Tikhon de Zadonsky 796
461, 462, 4 8 , 471, 473, 477, 481, 482, 483, 484, 485, 493, 494, 495, 496, 500, 525,
Tillich, Paul 813
Tillet, Luís du 555
548, 553, 560, 567, 591, 595, 599, 602,
Tillocson, John, arcebispo de Cantuária 679
603, 616, 633, 634, 636, 643, 663, 666, 673,
Tilly, Joáo 626, 628
689, 690, 691, 692, 716, 718, 729, 730,
Timóteo, bispo de Alexandria 64, 65, 141,
731, 737, 738, 742, 746, 748, 749, 751, 755,
206, 219
756, 758, 761, 762, 763, 765, 768, 770,
Tindal, Matthew 680
780, 797, 813, 814, 822, 825, 829
Tito, companheiro de Paulo 39, 65
Teologia alemã 424
Toland, John 679
Teologia "apofática" 305
Tito Justo 4 1
Teologia "de crise" ("didérica") 813
Tomás de Kempis 423, 597
Teologia de Erlangen 746 Teologia de Mercersburg 774
Tomás de Shtitny 448 tomistas 408, 410, 411, 419, 421, 497
Teologia de New Haven 771, 773
Torno (Leáo I ) 180, 201, 202,
Teologia "neo-calcedoniana" 2 11
203, 204, 205, 207, 208, 215, 229
reologias da libertação 830
Toplady, Augustus 71 1
Terceira Cruzada 333, 334, 431
Torquemada, Tomás de 474
terceiro mundo 809, 815, 824, 826, 829,
Tradiçáo Apostólica 129, 130, 134, 227
830
Trajano, imperador romano 56, 69
í-erciários 370, 371
transubstanciaçáo 380, 405, 433, 445,
Terra Santa 328, 329, 332, 333, 335, 336,
450, 505, 536, 539, 574, 601, 658
360, 363, 488, 817
Tratado de Cateau-Cambrésis 606
Tertuliano 7 6 , 86, 87, 97, 98, 99, 100,
Tratado de Latráo 792
101, 103, 104, 105, 106, 108, 112, 114, 116,
Tratado de Madrid 5 15
125, 129, 130, 131, 133, 136, 137, 138
Tratado de Paris 678
Testamenio de Francisco 374
Tratado de Passau 545
Testemunhas de Jeová 776
tratado de Verdun 284
Teaei, Joáo 498, 502 theotokos 197, 198, 200, 201, 228
Travers, Walter 641, 643 Traversari, Ambrósio 462
Tholuck, Friedrich August Gottreu 745, 746
Tregelles, Samuel Prideaux 757
Thomasius, Christian 692, 729
Trégua dos Doze Anos 637
Throckmorcon, J ó 644
Três Capítulos 207, 212, 262
Tiago, irmão de Jesus 46, 47, 48, 62,
Tribunal da Suprema Comissão 644, 657,659
63, 141, 424, 649, 650
Trie, Guilherme de 564
Vida e Obra, discussóes 80 5
Walter Scott 750
Vigilio, papa 180, 212, 213
Westcott, Brooke Foss 752, 758
Vinte e Cinco Arrigos 8 11
Westphal, Joaquim 62 1
Viret, Pedro 550, 552, 559
Wettstein, Johann Jakob 734
virgens 120, 141
Whatcoat, Richard 726
visitandinas 605
White, Wiiliam 724, 725
Visser'r Hoofc, Willem A. 8 14
WhirefieId, George 702, 703, 706,
Viralino, papa 263
7 0 7 , 709, 710, 714, 716, 718, 728
Vitória, Francisco de 473, 603
Whitgift, Joáo, arcebispo de Cantuária 640,
Vitorino, Mário 23 1, 236
641, 643, 644, 6 4 5 , 646, 647
virorinos 345, 394
Wichern, Johann Hinrich 761
Vitória Emanuel 11, rei da Sardenha 788
Wied, Hermann von, arcebispo de Colônia
viúvas 62, 120, 121, 135, 232, j93, 643
577
Vladimir I (São Vladimir), da Rússia 308
Wiedemann, Jacó 533
Voer, Gisbert 689
Wighrman, Edward 686
Vojtech (Santo Adalberto), bispo de Praga 308
Wilberforce, William 720
Volraire (Grancíiis Marie Arouer) 783
Wilcox, Tomás 641
volunrarismo 41 1
Wilfrido, bispo de York 263
voto 269, 329, 336, 338, 372, 450, 455,
Williams, George 804
494, 518, 560, 564, 598, 599, 639, 654,
Williams, Roger 675
830
Willibrordo, apóstolo da Frígia 269, 279
voros monásticos 332, 404, 427, 504, 520,
Winchester, Elhanan 298, 575,
536, 591, 593, 795 VouilIé, baralha de 264
Windesheimeres 427, 428
Vulgata 233, 355, 446, 463, 485, 486, 601
Winchrop, Joáo 652
580, 644, 728
Wishart , Jorge 584, 585 Wallcnsrein, Aibrecht von 626, 627,
Wolff, Christian 729, 730, 731,
628, 629
735, 7 3 6 , 7 3 8 , 745
'Walpot, Pedro 533
Wol$ang de Anhalr 535
Waiter de São Viror 345
Wolfin, Henrique 5 I7
WaItrr, o Sem Tostão 330
Wolmar, Melquior 554
Ware, Henry 770
\Valse): Tomjs, cardeal 567, 568, 569, 570
\Vat[, Jarnes 700
LVYc1if,João 422, 442, 443, 444, 445,
Warrs, I s a a ~700 W e b b Thomas 71 5
446, 447, 448, 449, 450, 451, 452, 486 Woodham, Adáo 420
\Vedgwood, Josiah 700
Woolman, Jnhn 769
Weld, Theodore Dwighr 769
Woolston, Thomas 679
886
HISTÓRIA DA IGREJA CRISTÃ
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