Indústria cultural e cultura de massas “O espectador olha (...) Tudo se desenrola diante de seus olhos, mas ele não pode tocar, aderir corporalmente àquilo que contempla. Em compensação, o olho do espectador está em toda parte (...) sempre vê tudo em plano aproximado (...) mesmo o que está mais próximo está ifinitamente distante da imagem, sempre presente, é verdade, nunca materializada. Ele participa do espetáculo, mas sua participação é sempre pelo intermédio do corifeu, mediador, jornalista, locutor, fotógrafo, cameraman, vedete, herói imaginário” (Edgar Morin. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. p. 74)
Homens em tempos sombrios. Esse é o título de um livro sobre importantes intelectuais contemporâneos que entre si partilharam, na primeira metade do século XX, um tempo de desordens, guerra, nazismo, perseguições, fome e massacres que em um de seus poemas Bertolt Brecht chamou de tempos sombrios. O livro, cujo prefácio data de 1968, foi escrito ao longo de doze anos pela filósofa alemã Hannah Arendt (19061975), de origem judia, e teve sua primeira edição em 1955. Entre os homens e mulheres de quem nos fala Hannah Arendt estão os escritores e poetas Bertolt Brecht (1898-1956) e Walter Benjamim (1892-1940) que serão citados neste texto. Não figuram, mas poderiam estar entre eles, dois filósofos e sociólogos alemães, Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor Adorno (1903-1969) que exilados e igualmente vítimas do nazismo, testemunharam o cenário de escombros de uma Alemanha derrotada e dividida pela guerra e pela intolerância. Esses dois teóricos, integrantes da Escola de Frankfurt1, conceberam em 1947 escrever uma teoria geral da história e da sociedade. Dessa obra, terminaram por escrever apenas um fragmento do que seria a sua introdução que ficou conhecido com o título de O iluminismo como mistificação de massas: um texto que se tornou uma das mais importantes referências teóricas quando o assunto é cultura. É nesse texto que, pela primeira vez, aparece a expressão indústria cultural que desde então passou a ser sistematicamente utilizada para designar a forma de produzir e consumir cultura nas sociedades industrializadas. Considerando que a palavra cultura tem diferentes definições, é importante compreender em que sentido ela foi empregada pelos teóricos alemães e segue sendo empregada ainda hoje quando falamos em indústria cultural.
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A designação Escola de Frankfurt não diz respeito a uma construção, um lugar, mas a um grupo de intelectuais marxistas que nos anos trinta do século passado pensaram e produziram uma teoria crítica da sociedade capitalista.
É comum a palavra cultura figurar como antônimo de natureza. Nesse sentido, tudo o que a humanidade cria, inventa, produz, pertence ao reino da cultura, em oposição ao reino da natureza. Essa idéia, da cultura como tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza, transformando-a certamente, é decorrente do seu significado original que, como nos ensina Hannah Arendt (1972:265), vem da palavra romana colere que significa tomar conta, cuidar, preservar, preparar a terra. Assim, quando surgiu, o termo cultura queria significar agricultura. Esse sentido, referente à terra que foi cultivada, que o trabalho fez produzir alimentos e que recebe os mortos como recebe as sementes nela plantadas, foi fazendo cultura se tornar praticamente sinônimo de memória. Assim, tem cultura um “povo” que se fixa em um determinado lugar e cultua seus antepassados, que preserva sua memória, faz e conta sua história. Com o passar do tempo como extensão desse significado, outros significados, mais específicos, foram sendo associados ao termo cultura. Entre estes, aquele relacionado ao mundo das expressões artísticas, literárias, científicas, religiosas... Trata-se de uma decorrência do sentido original da palavra que não é difícil de compreender. Da mesma maneira que cultura é o cultivo da terra, o que se pode notar é que agora a palavra passou a se referir igualmente ao ato de se cultivar o pensamento, as idéias, o espírito. Por essa razão é frequente ouvirmos certas frases como, por exemplo: Fulano é uma pessoa muito culta ou ainda, Sicrano não tem cultura. Um equívoco já que mesmo sem ter recebido qualquer instrução escolar, qualquer um de nós tem cultura (diferente de ter uma educação formal). Não é possível traçar um limite preciso entre o sentido genérico da palavra cultura, que relacionamos a todo conjunto do campo simbólico e material das representações humanas (valores, tradições, crenças, habilidades, realizações, criações) e o seu sentido mais restrito, relacionado à divisão do trabalho e identificado com certas áreas do conhecimento e da criatividade humanas e cujo núcleo, mais ou menos invariável, sobre o qual costuma repousar é o das artes: aquilo que resulta do “ato” de quem se apodera da realidade para traduzi-la em cores, palavras, ritmo, sons, dimensões, formas... Aquilo que resulta da “ação” de quem se apodera do mundo, real e imaginário, das coisas palpáveis e difusas, experimentadas ou imaginadas, para traduzilas por meio de uma realidade com regras próprias e que também chamamos cultura (MONTAGNARI, 1995).
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Assim, ainda que a idéia de memória aqui também esteja presente é a “esse mundo”, ao mundo das expressões artísticas e literárias em geral que Adorno e Horkheimer se reportam quando falam em indústria cultural. Particularmente, à forma como “esse mundo” é produzido e consumido: filmes, rádio, semanários etc. O que isso quer dizer? Que para os teóricos alemães não interessam as explicações de quem gosta de ver na indústria cultural apenas o avanço tecnológico. Para eles, a verdade que recobre a tecnologia tem apenas um nome: negócio. Um negócio que esconde por detrás da explicação em termos do avanço tecnológico o mundo em que a técnica encarna o poder dos grupos e das classes dos economicamente mais fortes sobre o resto da sociedade. A racionalidade técnica encarna assim a própria racionalidade do domínio que chega à estandirzação (Adorno apud Lima, 1978:15960). E o que isso significa? Significa padronização. Significa que as criações artísticas, já não são mais obras únicas. Essas obras se transformaram em objetos que a racionalidade técnica produz em série, isto é, industrialmente, como qualquer outro bem, qualquer outra coisa. Agora os objetos de arte são mercadorias. Se considerarmos que para os frankfurtianos a arte de uma obra não se mede por sua fidelidade a nada previamente existente, seu caráter único é que faz dela uma obra artística. Assim, quando tudo vira cópia, nomes como os de Picasso ou Schöenberg pertencem a um tempo que já não existe mais. Para os alemães, nada escapa à lógica implacável do mercado que permeia todas as relações humanas. Para os teóricos da Escola de Frankfurt no capitalismo tudo vira mercadoria. Desse ponto vista, que soa um tanto nostálgico, na trilha do conceito de indústria cultural, já é possível entrever o que vem a ser a cultura de massas ou de massa e o seu estreito vínculo com os chamados meios de comunicação de massas. Teixeira Coelho, escritor brasileiro dedicado ao estudo de questões envolvendo arte e cultura, lembra que a união dos termos indústria e cultura indica que não se pode falar em indústria cultural e em cultura de massa antes da Revolução Industrial e de uma economia de mercado baseada no consumo. É a industrialização, através das transformações que ela produz no modo de produção da vida e na forma do trabalho humano, que determina um tipo particular de indústria, a cultural, e de uma cultura, a de massa. É a industrialização que implanta em uma e na outra os mesmos princípios que vigoram na produção econômica em geral: “o uso crescente da máquina e
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da submissão do ritmo humano de trabalho ao ritmo da máquina: a exploração do trabalhador; a divisão do trabalho” (COELHO, 1983:10). Produzida de acordo com os critérios de fabricação industrial e propagada pelas técnicas de difusão maciça (televisão, revistas, internet etc.) a cultura de massa, que para Edgar Morin (1969:16) um estranho neologismo anglo-latino batizou de massmedia, destina-se “a uma massa social, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, família etc.)”. Morin considera que cultura de massa é em princípio um termo bastante limitado. Equivalente aos termos sociedade industrial ou sociedade de massa, trata-se de um termo que privilegia apenas um dos núcleos da vida social já que as sociedades modernas podem ser consideradas não apenas industriais e maciças, mas também técnicas, burocráticas, capitalistas, de classes, burguesas, individualistas... A avaliação de Morin, que ressalta a insuficiência dos conceitos genéricos, nos faz lembrar como media, palavra latina que quer dizer meio, terminou “americanizadamente” se transformando em mídia: uma generalização ideológica, uma representação, que paira poderosamente sobre tudo e sobre todos nós e à qual nos referimos com uma intimidade e naturalidade que parecem dispensar qualquer consideração mais crítica sobre o seu significado e suas consequências. Expressão máxima do pensamento liberal da sociologia norte-americana o conceito de cultura de massa traduz um otimismo teórico-político que é oposto ao niilismo do conceito alemão de indústria cultural. Como explica a filósofa brasileira Marilena Chauí (1986:25-6), graças às idéias de cultura e sociedade de massa, o conceito cultura de massa imaginou nos idos dos anos 50 e 60, do século passado, “poder livrar-se definitivamente do fantasma que atormentava a explicação científica social, isto é o marxismo e seu mais perigoso conceito, a luta de classes”. A noção de massa, explica a autora, queria significar o fim das classes sociais, das contradições e da luta sócio política e, por consequência, o fim da luta de classes. Era a massa tornando real o sonho da democracia liberal norte-americana: as divisões sociais ficando reduzidas a divergências de interesses particulares de grupos e indivíduos que assim podem chegar ao consenso político à maneira do mercado que se auto-regula (e que parece ter vida própria). Assim, pode-se dizer que na trilha da sociedade de massa vem a cultura de massa: conceito maior da democracia-ideologia cultural criada pelos modernos e maciços meios de comunicação de massa.
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Esse otimismo dos adeptos da chamada aldeia global, hoje uma metáfora corriqueira, cunhada e professada pelo norte-americano Herbert Marshall MacLuhan (1911-1980), simboliza o oposto da visão sombria que os teóricos alemães tinham da sociedade contemporânea, da sociedade de consumo. Marcados pela experiência da Guerra, do Nazismo, o eclipse da razão, professado no título de um dos livros de Horkheimer, reflete um olhar que não vislumbra qualquer possibilidade de arte, de originalidade, em um mundo que transforma tudo, rapidamente, em mercadoria. MacLuhan, um dos principais teóricos norte-americano da comunicação, que cunhou a famosa expressão a mensagem é o meio, ao contrário, fez a apologia dos modernos meios de comunicação vendo-os como extensões do homem e considerou que o meio é a causa e o motivo das estruturas sociais e das novas formas de perceber o mundo, inauguradas pelas tecnologias da informação. Para ele não interessa as consequências ideológicas provocadas pelos modernos meios de comunicação. Mensagem e meio são vistos por Marshall MacLuhan como sendo a mesma coisa. MacLuhan professa não ser possível separar forma de conteúdo enquanto que Adorno e Horkheimer acreditam que o “poder do capital” faz da arte na sociedade contemporânea apenas uma obra de mimese, uma cópia. Não sendo mais uma negação do que existe, o que a arte provoca é o reconhecimento do público naquilo que o público julga ser. O imaginário administrado pelo cinema, pela televisão, pelas revistas, pela publicidade enfim, faz que “imaginemos que estamos imaginando”, uma vez que tudo já está dado, pronto, acabado. Trata-se de um olhar apocalíptico, conforme designação do escritor italiano Humberto Eco em seu livro Apocalípticos e Integrados. Eco chama de apocalípticos os partidários do pensamento dos alemães enquanto os integrados (ao sistema) são os partidários de Marshall MacLuhan. Niilistas os primeiros, otimistas os segundos. Os niilistas vendo nos meios de comunicação e na cultura de massa um mundo de consumismo que decreta o fim da própria cultura e os otimistas vendo na cultura de massa a difusão democrática da produção cultural. Os niilistas vendo na reprodução (fabricação) das obras de arte o fim da própria arte e os integrados vendo no processo reprodução cultural uma possibilidade real de todos os interessados terem agora acesso a um universo anteriormente facultado a uma minoria privilegiada. Mas também existem os que percebem a questão de forma relativa. Walter Benjamim e Bertolt Brecht, por exemplo, igualmente alemães e contemporâneos de Adorno e Horkheimer, vítimas do mesmo terror que tomou conta da Alemanha durante 5
o Nazismo – Benjamim se suicidou na fronteira da França com a Espanha quando fugia da perseguição nazista - não enxergam no avanço da indústria cultural, necessariamente, “um mal” capaz para despojar as obras de arte de seu valor e de sua força política transgressora, contestatória. Bertolt Brecht, que se refugiou do Nazismo nos Estados Unidos da América onde terminou novamente como vítima do Macartismo2, fez de seu teatro um espaço público para o exercício estético da política e da razão. Fascinado com o avanço da ciência e da tecnologia, Brecht entendeu que a arte na sociedade industrial deve se beneficiar igualmente do espírito científico e do avanço tecnológico. Walter Benjamim, por sua vez, argumentou que na época da sua reprodutibilidade técnica, o que é atingido na obra é sua aura, isto é, o seu caráter único já que “as técnicas de reprodução atingiram um tal nível que estão agora em condições não só de aplicarem a todas as obras de arte do passado e de modificarem profundamente seus modos de influência, como também de que elas mesmas se imponham como formas originais de arte” (BENJAMIN apud Lima, 1978:212). Walter
Benjamim
vê
na
reprodução
técnica
a
possibilidade
de
democratização estética, desde que essa reprodução conserve as características do seu original. O melhor exemplo aparece quando o escritor considera o caso da fotografia que pode ser reproduzida a partir de um único negativo. Para ele ninguém pode distinguir uma primeira das demais fotografias, ao contrário de Adorno e Horkheimer que entendem que a reprodução contribui apenas para a perda de identidade da originalidade através de cópias que são feitas em série e que terminam com a mesma característica massificante, mercadológica. Benjamim acreditava que, observadas as técnicas de reprodução, as mesmas não impedem o olhar crítico. Amigo e contemporâneo de Benjamim, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht, um dos mais importantes nomes do teatro no século XX, acreditava que tanto a arte quanto a ciência têm em comum, o fato de existirem para simplificar a vida do homem, a primeira ocupada com sua subsistência, a segunda em proporcionar-lhe diversão. Brecht se recusava a pensar a obra de arte “fora das condições de sua produção e difusão”. Nesse sentido, são esclarecedoras suas considerações conforme aponta um estudioso do seu teatro, o francês Bernard Dort. De acordo com esse autor, para Brecht 2
Joseph MacCarthy, senador norte-americano, foi o responsável por medidas e ações que no final dos anos 40 e meados dos anos 50, do século passado, resultaram na perseguição de milhares de pessoas acusadas de comunistas. O termo Macartismo, chamado também de “caça às bruxas” fez vários artistas e intelectuais de vítimas, entre os quais Charlie Chaplin e Bertolt Brecht.
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“seja qual for a maneira como é concebida a obra de arte e seja qual for seu destino, ela é de agora em diante uma coisa que se vende, e esta venda desempenha, no sistema global das relações humanas, um papel inteiramente novo. A venda, que se tornou quantitativamente tão forte, não somente regula as antigas relações humanas aos meios adaptados à época mas também introduz finalidades totalmente novas no consumo e, portanto, igualmente na fabricação (...), é a arte inteira, sem exceções, que está mergulhada numa situação nova. É enquanto totalidade, e não como se estivesse cortada em mil pedaços, que a arte sofre um confronto, é enquanto totalidade que se torna ou não um mercadoria” (BRECHT apud Dort, 1977:339). Essa noção, da cultura nas sociedades de consumo como mercadoria é, portanto, o ponto central da questão embutida nos conceitos de indústria cultural e cultura de massas. E qual seria a pergunta central dessa problemática toda? Que tudo isso é necessariamente algo negativo? Se for essa a questão central, uma resposta que não soluciona e nem pretende selecionar essa problemática é a de que “em si mesmo” nada é negativo ou positivo, isoladamente. As coisas não têm tanta autonomia e tudo deve ser analisado de forma contextualizada, isto é, levando-se em conta o chamado processo cultural e histórico. Pensemos, como um breve exercício de reflexão, a realidade atual brasileira nestes nossos tempos de globalização, mesmo correndo o risco das generalizações. Pensada assim, genericamente, a sociedade brasileira, depois dos anos 50 do século passado, passou a produzir, importar e a divulgar cada vez mais, mais produtos no mercado sedutor da publicidade e do consumo. Fortalecida pela rapidez do mercado consumidor e do avanço sem descanso da tecnologia tudo virou cultura! Com a entrada maciça de capitais e de empresas multinacionais, o impulso da indústria cultural de que nos fala Adorno e Horkheimer, passou, particularmente a partir dos anos 60, mas com certeza já anteriormente a isso, a se aperfeiçoar e a difundir cada vez mais, através dos meios de comunicação de massa, uma gama variada de produtos e de idéias (que também são produtos). Assim, a sociedade do prazer a prazo que se instalou entre nós, passou a ser louvada por um mercado onde circulam igualmente cigarros, remédios, bebidas, drogas, violências, carros, viagens, revistas, cursos, cursinhos, semanários, seminários, livros, revistas, xérox, cassetes, disquetes, discos, vídeos, cds, dvds, celulares, moda, estilos de vida, hábitos, expressões, eletrônicos etc. Entre redes computadorizadas, com uma 7
rapidez supersônica, nossas subjetividades passaram a ser orquestradas em uníssono e seduzidos pelas novidades do mercado consumidor passamos a querer a mesma coisa ao mesmo tempo a qualquer custo. Vivenciamos agora um contraditório processo que ao mesmo tempo nos aglomera e nos isola. Contraditoriamente isolados e integrados na multidão, passamos a compor a massa de que nos fala o conceito de indústria cultural e o conceito de cultura de massa. Uma massa onde cada um de nós recebe as mesmas informações e notícias num tempo em que a barbárie não significa mais retroceder ao estado dos selvagens, mas um avanço em direção a um estado de indistinção das coisas que se confundem, ficando iguais: carros, caras, roupas etc. Um estado promovido por um tempo histórico globalizado com detalhes do nosso dia-a-dia se transformando com a mesma rapidez com que as inovações culturais e tecnológicas vão sendo descartadas. Trata-se de uma visão pessimista, apocalíptica? Certamente! Mas também é possível pensar como o faz a escritora americana Susan Sontag ao considerar o que chama de a nova sensibilidade. Falando de cultura, de objetos de arte, ela avalia a diferença entre objetos únicos e objetos produzidos em massa apontando que certas obras têm valor porque são assinadas, trazem uma assinatura pessoal, individual ao contrário de outras obras que são consideradas de pouco valor porque não trazem uma marca individual. Para a escritora, muitas produções artísticas são inferiores e pretensiosas e muitas obras de arte estão reafirmando suas existências como objetos produzidos em massa inspirados nas artes populares e não como expressões pessoais, individuais. A nova sensibilidade é aquela que reflete uma maneira nova, mais aberta de olhar para o mundo e as coisas do mundo de um ponto de vista em que a beleza de uma máquina, a solução de um problema matemático, o quadro de um pintor famoso, o filme de arte ou uma obra musical, por exemplo, são igualmente acessíveis. Com certeza uma visão otimista que não impede a autora de constatar a existência de uma infinidade de músicas populares idiotas, de pinturas, filmes ou música de “vanguarda” inferiores e pretensiosos. Mas neste caso, diz ela, a questão é considerar que existem novos modelos, novos padrões de beleza, estilo e gosto. A nova sensibilidade provocadoramente pluralista está voltada não apenas para a produção em série, mas também para o divertimento, a ironia, a nostalgia e para a voracidade com que nossos entusiasmos são rapidamente substituídos pelas mais novidades
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tecnológicas que o poeta Carlos Drummond de Andrade reflete de forma exemplar em seu poema Eu, etiqueta. A “velha sensibilidade” de Drummond, sem querer fazer jogo de palavras e já o fazendo, cuja arte não se deixa sufocar pelo mundo da publicidade e do consumo, reúne os predicados da nova sensibilidade de que nos fala Susan Sontag, em especial a ironia: Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório, um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida que jamais pus na boca, nesta vida. Em minha camiseta, a marca de cigarro que não fumo, até hoje não fumei. Minhas meias falam de produto que nunca experimentei mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido de alguma coisa não provada por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, minha gravata e cinto e escova e pente, meu copo, minha xícara, minha toalha de banho e sabonete, meu isso, meu aquilo, desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidência, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada. Estou, estou na moda. É doce estar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado. Com que inocência demito-me de ser eu que antes era e me sabia tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário
com outros seres diversos e conscientes de sua humana, invencível condição. Agora sou anúncio, ora vulgar ora bizarro, em língua nacional ou em qualquer língua (qualquer, principalmente). E nisto me comprazo, tiro glória de minha anulação. Não sou - vê lá - anúncio contratado. Eu é que mimosamente pago para anunciar, para vender em bares festas praias pérgulas piscinas, e bem à vista exibo esta etiqueta global no corpo que desiste de ser veste e sandália de uma essência tão viva, independente, que moda ou suborno algum a compromete. Onde terei jogado fora meu gosto e capacidade de escolher, minhas idiossincrasias tão pessoais, tão minhas que no rosto se espelhavam, e cada gesto, cada olhar, cada vinco da roupa resumia uma estética? Hoje sou costurado, sou tecido, sou gravado de forma universal, saio da estamparia, não de casa, da vitrina me tiram, recolocam, objeto pulsante mas objeto que se oferece como signo de outros objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso de ser não eu, mas artigo industrial, peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente.
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O retrato estampado pela arte de Carlos Drummond e que a sociologia chama de reificação, ou mais simplesmente de coisificação, tem a ver com esse processo contraditório, próprio do mundo capitalista, que ao emprestar um caráter humano às mercadorias coisificam a humanidade e as relações sociais. Trata-se de um processo que ao mesmo tempo em que coisifica nossas relações sociais naturaliza o mundo das mercadorias que nos cercam e nos comandam. Tudo como em um grande mercado de investimentos, de bens de capital e novidades que, como nos informa sem descanso os noticiários escritos e falados, ora está mal humorado, em seguida eufórico, instável num dia, depois depressivo... Sempre inconstante, como um amante traiçoeiro... Com efeito, o mercado, dotado de “humanidade” comanda agora as nossas existências de acordo com o ponto de vista do maior promotor de nossos desejos, gostos e sentimentos: a mídia. Como uma “quase conclusão” pode-se dizer que separação entre quem olha o mundo de forma pessimista ou de forma otimista não é nenhuma novidade histórica e acompanha as reflexões de importantes pensadores desde muito tempo. Importante marco dessa dualidade é, por exemplo, o Iluminismo francês que reflete um período que exaltou a razão na história, as luzes, o progresso. Mas nem naquele período todos os ilustrados, pensadores da Revolução Francesa, fizeram igualmente a apologia da civilização. Um importante pensador da época, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao contrário de seus contemporâneos, já via o progresso do mundo civilizado como manifestação de decadência da humanidade e, ao invés de glorificar o futuro, voltou seu olhar para o passado perdido, para a vida natural, para as festas, os valores e os sentimentos populares. Esta reflexão não tem intenção – trata-se apenas de uma breve introdução de resolver as consequências advindas das discussões entre quem enaltece o progresso, o avanço industrial, científico e tecnológico, fazendo a apologia do caráter democratizante da cultura de massa e quem enxerga no consumismo, na fabricação, na indústria da cultura o fim da própria cultura. De um lado, há os que apostam num processo que agora disponibiliza os recursos tecnológicos necessários à produção e circulação de “trabalhos alternativos” (gravações de cds, dvds, vídeos com qualidade técnica jamais imaginada) em rede onde qualquer “iniciado” pode trocar informações e desejos ou fazer circular digitalmente seus pensamentos e suas criações. De outro lado, há os que acreditam que nunca o processo de industrialização e do avanço tecnológico esteve tão a serviço da reprodução 10
de um “mundo desencantado”, como diria o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), em que nem mesmo os indivíduos, em especial no universo publicitário, do chamado merchandising, são mais eles mesmos mas quase sempre “um novo fulano de tal”. Uma saída possível para pensar essa dicotomia talvez esteja com os franceses Morin e Kern quando lembram que não devemos idealizar as culturas. O que eles querem dizer como isso? Que não devemos generalizar as culturas encarando-as como coisas prontas, que existem em si mesmas. Eles concluem: “é preciso saber que toda evolução implica abandono, toda criação comporta destruição, que todo ganho histórico se paga com uma perda” (s/d:67). Olhando para nosso “mundo globalizado”, que contabiliza tantos avanços e conquistas científicas e tecnológicas quantas catástrofes e violências múltiplas; que de forma tão contraditória vive de promover o individualismo descartando os indivíduos, somos levados a crer que as perdas decorrentes da forma como são tratados, cuidados o nosso planeta, os animais e nós próprios (aquela ação que originalmente queria dizer cultura) são bem mais previsíveis que as promessas de ganho propagadas sem descanso pelos cada vez mais modernos meios de comunicação de massas que aprendemos chamar de “mídia”. O debate aqui proposto é apenas uma breve introdução que merece reflexão e aprofundamento por quem nutre interesse pelo tema indústria cultural e cultura de massas. Sua compreensão pertence à maneira como cada um buscar estabelecer suas próprias conclusões. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972. ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. CHAUI, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. ANDRADE, Carlos Drummond. O corpo. Rio de Janeiro: Record, 1994, pp. 85-7. COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1983. DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977. ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1970. LIMA, Luiz Costa (org.) Teoria da cultura de massas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. MORIN, Edgar. A cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Rio de Janeiro: Forense, 1969. MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. Lisboa: Instituto Piaget, |19-|
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MONTAGNARI, Eduardo. Terceira margem (extensão cultural universitária: um conceito da prática). Tese de doutorado. UNESP-Araraquara, 1995.
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