I NT RODUÇÃ ODUÇÃ O À
FILOSOFIA CRI STÃ Uma Introdução à Filosofia na Tradição Reformacional Reformacional
Prof. Guilherm e Vilela Vilela Ribeiro de Carvalho ENTRO E NTRO K UYPER DE E STUDOS S TUDOS C R IS IS T Ã O S C
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ÍNDICE
I. O que é a Filosofia Reformacional? p. 3
II. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Pensamento Teórico T eórico p. 6
III. As Condições Transcendentais do Pensamento Pen samento Teórico p. 22
VI. As Raízes Religiosas do Pensamento Ocidental p. 33
V. A Idéia Cosmonômica do Pensamento Teórico p. 47
V. Teoria Geral das Esferas Modais p. 53
VII. Teoria da Estrutura das Entidades Temporais p. 100
VIII. Teoria das Inter-relações Estruturais p. 107
IX. Teoria do Conhecimento p. 112
X. Teoria da Ação p. 120
Apêndice 1: Excerptos de Dooyeweerd (Glenn Friesen) Fr iesen) p. 128
Apêndice 2: Glossário de Filosofia Reformacional (A. Wolters) p. 141
Bibliografia: p. 152
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ÍNDICE
I. O que é a Filosofia Reformacional? p. 3
II. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Pensamento Teórico T eórico p. 6
III. As Condições Transcendentais do Pensamento Pen samento Teórico p. 22
VI. As Raízes Religiosas do Pensamento Ocidental p. 33
V. A Idéia Cosmonômica do Pensamento Teórico p. 47
V. Teoria Geral das Esferas Modais p. 53
VII. Teoria da Estrutura das Entidades Temporais p. 100
VIII. Teoria das Inter-relações Estruturais p. 107
IX. Teoria do Conhecimento p. 112
X. Teoria da Ação p. 120
Apêndice 1: Excerptos de Dooyeweerd (Glenn Friesen) Fr iesen) p. 128
Apêndice 2: Glossário de Filosofia Reformacional (A. Wolters) p. 141
Bibliografia: p. 152
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I.
O QUE É A FILOSOFIA REFORMACIONAL?
Primeiramente, é claro, precisamos saber o que é filosofia. Mas há tantas definições de filosofia quanto existem filósofos; cada um tem um projeto filosófico diferente tornando quase impossível uma definição universal de filosofia. Isso, por um lado, não nos impede de fazer tentativas para encontrar algo comum às diversas filosofias. Por outro lado, nos dá liberdade para fazer novas propostas. De um modo geral, podemos dizer que uma tarefa básica da filosofia é a crítica. No tempo dos Sofistas e de Sócrates, foi posto no centro da filosofia o questionamento, a pergunta crítica. Não se trata aqui apenas da pergunta pelo saber, como encontramos na ciência moderna, mas a pergunta crítica crítica pelo saber; a pergunta que se volta sobre as respostas e as tornam objeto de perguntas. Foi assim que Sócrates nos ensinou a filosofar. Mas antes dele, os pré-socráticos perguntavam sobre o cosmo. Eles queriam saber totalidade, pelo sentido qual a sua estrutura, sua constituição básica. Essa pergunta pela totalidade, total do cosmo, utilizando a razão é mais antiga que Sócrates, e foi através dela que a filosofia ocidental teve início. De um modo ou de outro, mesmo quando estamos ocupados com a crítica de qualquer coisa, o fazemos a partir de uma visão de mundo, e esse ponto de partida deve, finalmente, ser objeto de análise e compreensão. Ninguém crítica a partir do “nada”; para colocar algo “entre parêntesis” e realizar uma análise, é preciso ter algo “fora” dos parêntesis; é preciso um sistema para realizar a análise, an álise, uma base de comparação. Origens da Filosofia Reformada A filosofia reformada ou reformacional , é um movimento que teve origem na Holanda, no início do século XX, através do trabalho de Herman Dooyeweerd e de seu cunhado, D. T. H. Vollenhoven. Ambos foram professores na Universidade Livre de Amsterdam, e desenvolveram sistemas de filosofia cristã inspirados no pensamento neocalvinista de Abraham Kuyper, teólogo, jornalista, e estadista cristão holandês. A característica básica do pensamento reformacional é a negação de toda autonomia humana em relação a Deus. Kuyper disse certa vez que “não há um único centímetro, em todos os departamentos da vida humana, sobre o qual Cristo, o Senhor de todos, não diga: é meu”. Segundo Kuyper, o cristianismo não seria um “culto” ou uma “doutrina”, meramente, mas um sistema total de vida e pensamento, uma “biocosmovisão”. Com essa compreensão ele dedicou sua vida à reforma da vida cultural holandesa a partir do evangelho. Influenciados pelo ideal de Kuyper, um sem-número de intelectuais, filósofos, cientistas e políticos cristãos dedicaram-se a reformar a cultura. Dooyeweerd e Vollenhoven dedicaram-se à filosofia, procurando empreender uma ampla reforma do pensamento teórico. Esses filósofos perceberam que o domínio do humanismo sobre a intelectualidade ocidental precisava ser quebrado, se o cristianismo pretendesse se articular como um sistema total de vida, e isso não seria possível se os cristãos continuassem lutando com as mesmas armas do inimigo, utilizando sistemas filosóficos contrários à cosmovisão cristã. Assim dedicaram-se à reforma radical do pensamento teórico, procurando reconstituir a filosofia desde suas bases, de forma coerente com a cosmovisão Bíblica. Surgiu assim a filosofia reformacional , distinguindo-se da filosofia humanista e da filosofia
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escolástica católica, comprometida com a correção permanente do pensamento a partir do evangelho. Kuyperianismo e Filosofia A perspectiva Kuyperiana ofereceu uma orientação bem definida para a filosofia cristã. Em primeiro lugar, naturalmente, mostrou a necessidade de uma nova crítica do pensamento filosófico. A filosofia ocidental ignora a crença em Deus sistematicamente, não simplesmente negando sua existência, mas evitando pressupor essa existência ao tratar dos problemas filosóficos, isto é, considerando-o irrelevante para a filosofia. Uma vez que na perspectiva bíblica todas as dimensões da vida devem operar Coram Deo, diante de Deus, esse estado de coisas é inaceitável ao cristão, não somente porque não está de acordo com a sua religião, mas porque não está de acordo com a estrutura da própria realidade! Portanto, é necessária uma nova crítica de tudo o que a mente secular tem produzido desde os gregos. Mas, além disso, é preciso lembrar, não há crítica sem ponto de partida, sem visão de mundo. Isso implica, portanto, a necessidade de articular uma visão de totalidade, procurando explicar racionalmente a estrutura básica do cosmo, e localizando, inclusive, o lugar da razão no cosmo. Uma das características mais importantes do pensamento reformacional é esse compromisso com uma explicação da totalidade do cosmo. E aqui se encontra a principal contribuição do pensamento Kuyperiano para o cristianismo contemporâneo: a idéia de tomar a cosmovisão cristã não como o resultado de uma reflexão filosófica e científica, para convencer os incrédulos usando a cosmovisão deles, mas como o ponto de partida para realizar toda reflexão filosófica e científica, trazendo os incrédulos para a nossa cosmovisão. Afinal de contas, para salvar alguém num barco furado, é muito melhor trazê-lo para o nosso barco, do que entrar no barco dele para ajudá-lo a tirar a água! Essa nova perspectiva é geralmente denominada pressuposicionalismo. A proposta filosófica dos gregos, tanto em seu estágio mais primitivo, “cosmológico”, como em sua forma “socrática”, não está errada do ponto de vista formal. Sua falha está no dogma da autonomia religiosa da razão. Esse dogma foi adotado no pensamento humanista moderno e contemporâneo, sendo pressuposto acriticamente pela maior parte dos pensadores seculares – e até pelos cristãos! Kuyper e Dooyeweerd desafiaram esse dogma ao sustentar que a filosofia pode e deve ser conduzida pelos cristãos trocando a centralidade da razão pela centralidade da religião. Nosso Caminho Nosso caminho nesse estudo será a apresentação da filosofia reformacional, desenvolvida por pensadores reformados a partir da cosmovisão bíblica expressa no pensamento de AGOSTINHO, CALVINO e ABRAHAM K UYPER . O estudo será basicamente uma exposição do pensamento de HERMAN DOOYEWEERD, o principal filósofo reformado do século XX, mas tomaremos liberdades apresentando idéias de outros filósofos e também algumas idéias próprias. A primeira parte trata da crítica transcendental do pensamento teórico; a segunda oferece uma apresentação sistemática da filosofia reformacional. Ao fim do estudo o leitor tem um apêndice com alguns trechos de Dooyeweerd em inglês e um glossário de filosofia reformacional.
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PARTE 1: A CRÍTICA TRANSCENDENTAL DO PENSAMENTO TEÓRICO
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II.
A IDÉIA DE UMA CRÍTICA TRANSCENDENTAL DO PENSAMENTO TEÓRICO
É comum, quando alguém começa a estudar filosofia, ou uma disciplina mais abstrata, como a teologia ou a sociologia, a emergência de uma sensação de desânimo, ou mesmo de desespero, à medida em que fica evidente a grande multiplicidade de teorias e a profunda divergência existente entre as diversas escolas de pensamento. Na introdução de uma de suas obras Dooyeweerd faz uma interessante observação; é que todas essas escolas “... professam serem fundadas unicamente em princípios puramente teóricos e científicos; em outras palavras, que todos são aderentes da assim chamada autonomia da razão na ciência. Agora, se isso for verdade, parece um pouco estranho que elas não tenham sucesso em convencer uma à outra por argumentos puramente científicos.”1 Para determinar a natureza das diferenças mais fundamentais entre as diversas escolas filosóficas é necessário determinar a natureza de seus respectivos pontos de partida. E para isso precisamos examinar as condições básicas que tornam qualquer pensamento filosófico possível. Conhecendo essas condições básicas, poderíamos identificar e descrever diferentes filosofias a partir de seu ponto de partida, e assim teríamos uma base para discussão frutífera entre as várias escolas de pensamento.2 VINCENT BRÜMMER observou que esse mesmo problema foi encarado por K ANT. Este também buscou uma crítica da faculdade da razão com tal, para lidar em definitivo com as contradições da metafísica. DOOYEWEERD tem um projeto semelhante, mas também essencialmente diverso. Para Dooyeweerd Kant caiu num dogmatismo teórico, falhando em fazer da própria atitude teórica do pensamento um problema teórico, e simplesmente pressupondo a autonomia do pensamento. Esse dogmatismo mascara o verdadeiro ponto de partida do pensamento e ao mesmo tempo controla seu modo de lidar com os problemas teóricos.3 Assim sendo Dooyeweerd defende que uma crítica realmente radical do pensamento deve não somente abandonar o dogma de que o pensamento teórico é autônomo, mas também deve demonstrar que este dogma contradiz o verdadeiro caráter do pensamento teórico em si mesmo. Seria intrínseca à estrutura do pensamento teórico a dependência de pressuposições supra-teóricas. Além disso, era a intenção de Dooyeweerd demonstrar que essas pressuposições seriam de um caráter religioso, introduzindo assim a discussão a respeito da relação entre a religião e a filosofia, bem como lançando as bases para uma filosofia cristã.4 Orientação importante: a próxima seção do texto (p. 7 a 21) é uma revisão de Kant um tanto complexa. Aqueles interessados em um conhecimento mais preciso da origem da crítica transcendental de Dooyeweerd podem continuar a leitura do capítulo. Se você deseja conhecer mais rapidamente a crítica de Dooyeweerd, pode passar à página 22. Finalmente, se você sentir dificuldades para ler as parte I (Crítica Transcendental) comece diretamente da parte II (Filosofia Sistemática, p. 53) voltando mais tarde à parte I. 1 DOOYEWEERD,
Herman, Transcendental Problems of Philosophic Thougth. Grand Rapids: Eerdmans,
1948, p. 16. 2 BRÜMMER, Vincent, “Transcendental Criticism”, p. 14. 3 Ibid, p. 14. 4 Ibid, p. 15.
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1. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Conhecimento em Kant e Dooyeweerd5 É a posição de Brümmer, e vamos seguí-la nessa parte do estudo, de que a crítica de Dooyeweerd só pode ser compreendida “... à luz da forma como ele a distingue da crítica de Kant.”6 O próprio Dooyeweerd reconheceu a ligação histórica com Kant, especialmente quanto à noção de uma “crítica transcendental”. Desse modo vamos começar com Kant. 1.1. A Crítica Kantiana do Conhecimento Kant viu-se em certo momento confrontado por duas escolas de pensamento: no continente a filosofia era dominada pelo racionalismo de Leibniz e de seu seguidor Christian Wolff, enquanto na Inglaterra a cena era dominada pelos empiristas britânicos, especialmente David Hume. A primeira corrente era denominada por Kant como “dogmatismo”, e a última como “ceticismo”. O dogmatismo começa da convicção de que o pensamento pode conhecer a realidade. Ele não hesita em aplicar aos objetos da experiência os princípios universais do pensamento sem o qual nenhum sistema conectado de conhecimento científico é possível. Essa confiança nos princípios estruturais da razão era justificável quando lidando com objetos dos sentidos, mas tão logo os dogmatistas tentaram aplicar esses princípios à esfera supra-sensível da metafísica (onde surgiram problemas a respeito da liberdade e imortalidade do homem, a origem e limites do mundo, e a existência de Deus), eles chegaram a conclusões que contradiziam umas às outras. A partir disso Hume concluiu que a realidade supra-sensória seria um fruto da imaginação, e limitou a realidade à esfera da experiência sensória. Todo conhecimento é obtido da experiência e não contém nenhum elemento a priori, tal como os princípios universais e necessários que os dogmatistas aplicaram à realidade. Assim todo conhecimento científico no sentido de um sistema coerente é negado pelo ceticismo. Kant concordou com os céticos de que todo conhecimento começa com a experiência; entretanto, diz Kant, isso não implica que todo conhecimento se origina da experiência. Pois pode ser que a experiência contenha dois elementos: um recebido através dos sentidos e o outro suprido por nossa faculdade de conhecimento no momento dessas impressões dos sentidos. Como os dogmáticos, Kant sustentava que o conhecimento também inclui um elemento “a priori” que é suprido pela compreensão. Mas ele adiciona que a razão deve conhecer seus próprios limites: as formas a priori da razão não podem ser aplicadas à realidade supra-sensória sem gerar contradições. Assim Kant divide a realidade em duas esferas: a esfera supra-sensória, denominada noumenal , que é a esfera das coisas em si mesmas, e a esfera da experiência sensória, denominada fenomenal . As realidades de Deus, da liberdade e imortalidade da alma, e a origem e totalidade do cosmos também pertencem à esfera noumenal que apenas pode ser conhecida na fé racional da razão prática, e nunca pela razão teórica. Para esta última a esfera noumenal pode apenas Ter um significado meramente negativo, e não pode produzir nenhum conteúdo positivo para o nosso conhecimento teórico.
5 Toda 6 Ibid,
essa seção é uma tradução adaptada de Brümmer, p. 16-39. p. 15.
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O conhecimento é limitado aos fenômenos, isto é, à realidade experienciada, que contém um elemento sensório e um elemento a priori suprido pela compreensão. Aqui Kant anunciou uma descoberta surpreendente: ao invés de nosso conhecimento se conformar aos objetos da experiência, esses objetos é que são conformados ao nosso conhecimento, desde que é a nossa faculdade cognitiva que fornece os princípios universais e necessários pelos quais as impressões dos sentidos são organizadas e “formatadas” como objetos de experiência. Kant compara esta descoberta à de Copérnico, que moveu o ponto fixo do sistema solar da terra para o sol. Hume mostrou que as sensações em si mesmas são sempre realidades particulares e não implicam logicamente nenhuma estrutura necessária. Elas nos fornecem uma massa caótica de impressões que não constituem conhecimento. Já que os princípios a priori, fornecidos pela compreensão, é que constituem as estruturas universais e necessárias que tornam o conhecimento possível, esses princípios podem ser considerados as condições transcendentais do nosso conhecimento. Em contraste com a negação do conhecimento feita pelos céticos, Kant busca essas condições transcendentais que tornam o conhecimento possível; em contraste com a aplicação ingênua dos princípios racionais pelos dogmáticos, ele exige uma avaliação crítica dos limites dentro dos quais tais princípios se aplicam. Assim ele descreve sua filosofia como uma investigação crítico-transcendental do conhecimento. Esse é o seu projeto na obra “Crítica da Razão Pura.” Desde que se diz a respeito do conhecimento que ele tem duas fontes, a investigação é dividida em duas partes: a estética transcendental, que busca os elementos a priori na sensação, e a lógica transcendental, que busca esses elementos na compreensão. A primeira procura as condições a priori da percepção através das quais os objetos são dados a nós, enquanto que a última procura as condições de concepção através das quais os objetos são pensados. 1. A Estética Transcendental . A Estética transcendental começa quando isolamos a sensibilidade (Sinnlichkeit) de tudo o que a compreensão adiciona a ela por meio de seus conceitos. Essa sensibilidade ou percepção empírica (empirische Anschauung) estudada na estética transcendental, consiste de um elemento material (as impressões caóticas dos sentidos) e um elemento formal (as meras formas de percepção que são chamadas percepções puras). A “matéria” ou “conteúdo” da percepção empírica é inteiramente a posteriori e é causada pelas coisas em si mesmas que estimulam nossos sentidos. Por si mesmas essas impressões sensórias (Empfindungen) são meramente consciências de estímulos. Nós temos consciência de um sabor na língua, um som no ouvido, um toque na pele, etc. Essas são apenas os princípios ainda crus da experiência, mas como tais eles são os dados primários de todo conhecimento. Nós os moldamos como percepções que por seu turno são moldadas como conceitos pela compreensão. A impressões dos sentidos são tornadas em percepções empíricas segundo as formas de percepção, isto é, as “percepções puras” de espaço e tempo. O espaço é a forma das percepções externas: todas os objetos externos são espaciais, desde que as impressões externas são formadas como objetos sob a forma do espaço. O tempo, por outro lado, é a forma da percepção interna por meio da qual nós organizamos nossas impressões internas em uma ordem temporal fixa. Como os objetos externos podem apenas ser conhecidos quando transformados em representações internas (Vorstellungen) que são
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também por seu turno organizadas sob a forma de tempo, esta forma é aplicada a todas as percepções no processo cognitivo. O espaço e o tempo, assim, não são percepções no sentido usual, mas modos de percepção ou regras a priori de acordo com as quais a percepção opera. Desde que Kant argumenta que elas são as condições transcendentais da percepção, e nós não temos qualquer conhecimento sem conteúdo perceptual, elas são as formas transcendentais de todo o conhecimento. Kant conclui que nenhum conhecimento é possível sem conteúdo perceptual, e que todos os nossos pensamentos são vazios sem percepções. Por outro lado, meras percepções sem a atividade conceptual da compreensão são cegas e ininteligíveis. Assim o conhecimento emerge apenas da atividade combinada de percepção e concepção. Isso nos leva à próxima parte da crítica de Kant, a lógica transcendental, que busca determinar os elementos a priori produzidos pela compreensão. 2. A Lógica Transcendental . Qual é a diferença entre a lógica transcendental e a lógica formal geral? Ambas lidam com as formas do pensamento e com a prioris. A lógica geral lida com as relações entre os elementos lógicos do conhecimento. Ela considera como a compreensão combina conceitos com o propósito de produzir julgamentos corretos. Já a lógica transcendental lida com a relação entre o conhecimento e seus objetos; ela considera como a compreensão combina percepções de modo a formar conceitos que possam ser aplicados a objetos do conhecimento, e isso determina quais elementos a priori são fornecidos pela compreensão em sua atividade de conceptualização. Como todo conhecimento é conceptual, essas formas a priori são ao mesmo tempo os meios necessários e universais pelos quais os objetos da experiência são constituídos. Kant denomina essas formas “categorias”. Kant divide a lógica transcendental em duas partes, a analítica transcendental e a dialética transcendental. A primeira lida com as categorias e a última com as idéias da razão pura. Enquanto as categorias tem uma função constitutiva em nossa experiência, as idéias são meramente princípios regulativos. (a) As Categorias. Desde Aristóteles, as formas da lógica geral, sob as quais os conceitos são combinados para formar julgamentos, tem sido conhecidas e distinguidas. Todos os julgamentos podem ser arranjados de quatro diferentes pontos de vista, e para cada um deles Kant posteriormente distingue três diferentes tipos de julgamentos: (1) (2) (3) (4)
Do ponto de vista da quantidade um julgamento pode ser universal (todo A é B), particular (algum A é B), ou singular (este A é B). Do ponto de vista da qualidade um julgamento pode ser afirmativo (A é B), negativo (A não é B) ou infinito (A é não-B). Do ponto de vista da relação um julgamento pode ser categórico (A é B), hipotético (se A, então B) ou disjuntivo (A é B ou C). Do ponto de vista da modalidade um julgamento pode ser problemático (A é possívelmente B), assertivo (A é realmente B) ou apodídico (A é necessariamente B).
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Sob essas doze formas, assim, os conceitos são sintetizados para obter julgamentos. Desde que Kant argumentou que a mesma atividade sintética da função lógica da compreensão forma tanto os conceitos como os julgamentos, ele concluiu que as categorias devem corresponder às várias formas de julgamento, e deduziu as seguintes doze categorias: (1) (2) (3) (4)
Categorias de quantidade: unidade, pluralidade e totalidade. Categorias de quantidade: realidade, negação e limitação. Categorias de relação: substância, causalidade e reciprocidade. Categorias de modalidade: possibilidade, existência e necessidade.
Essas doze categorias são os elementos a priori fornecidos pela compreensão na constituição do mundo dos objetos sensíveis. Elas não são objetos em si mesmas, mas meras formas de pensamento que tem sua origem na compreensão independentemente da sensibilidade; formas lógicas por meio das quais as percepções são sintetizadas em objetos do pensamento. Mas como essa síntese é efetuada? (b)O Problema da Síntese. Onde nós vamos encontrar o princípio unificador por meio do qual a diversidade da experiência é unificada e plasmada em objetos? Desde que os objetos em si mesmos pressupõe esse princípio, não se pode dizer que eles produzem isso. Nem podem as sensações produzir isso, desde que a sensação apenas fornece a diversidade da experiência, e não sua conjunção. Com o propósito de encontrar esse princípio, diz Kant, nós temos que procurá-lo além da diversidade da experiência e praticar a auto-reflexão, uma vez que todas as formas de síntese são atos espontâneos da compreensão. Essa atividade sintética da compreensão é a condição transcendental primária de toda a unidade no mundo dos fenômenos e assim de toda unidade em nosso conhecimento. Ela é até mesmo pressuposta pela análise lógica que parece ser seu oposto, pois a compreensão não pode analisar aquilo que ela não sintetizou previamente. Nessa atividade unificadora, a compreensão trai sua unidade, pois apenas uma compreensão única e unificada pode reconhecer sua experiência diversificada como sendo o conteúdo da mesma consciência coerente. Apenas porque eu posso compreender a variedade das minhas representações em uma única consciência é que eu as considero como minhas representações. Apenas porque todas as representações são pensadas pela mesma compreensão, elas podem ser sintetizadas em um todo unificado. Kant chama esse princípio unificador que reúne toda a consciência de “eu transcendental”, ou unidade transcendental da apercepção. Desde que essa unidade é a condição transcendental de toda a experiência, ela não pode ser derivada da experiência e deve ser distinguida do eu empírico que nós conhecemos na experiência – o “self” do qual nós somos conscientes em nossa auto-consciência empírica. Essa última auto-consciência não é a consciência do que realiza a percepção e o conhecimento, mas daquilo que é conhecido – que é o fenômeno. O eu conhecedor transcendental pertence à realidade noumenal é portanto permanece desconhecido. O fato de que todo o nosso conhecimento pressupões o eu transcendental como uma unidade de apercepção não implica em que nós tenhamos qualquer conhecimento dele.
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Como pressuposição do conhecimento, a unidade transcendental da apercepção não é mais que uma proposição analítica, uma forma lógica de compreensão. A unidade transcendental da apercepção é a condição necessária para todos os tipos de síntese: a síntese de conceitos para formar julgamentos, das várias representações para formar objetos e do material perceptual para formar representações. Essa última síntese Kant denominou síntese figurativa ou síntese transcendental da imaginação, com o propósito de distinguí-la da síntese intelectual ou síntese da compreensão. Essas duas sínteses estão relacionadas como se segue: desde que todos os objetos da consciência, incluindo aqueles que implicam extensão espacial, devem apresentar a si mesmos na sensação interior, a forma universal de todos os objetos sensíveis é tempo, a forma que se aplica à sensação interna. Kant chama de imaginação a função da compreensão através da qual os elementos da percepção são sintetizados sob a forma do tempo com o propósito de formar imagens ou representações. Essas representações formadas pela imaginação são meramente o material perceptual preparado para a ação de compreensão na síntese intelectual na qual eles são sintetizados para formar objetos. Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant argumenta que a imaginação é uma terceira função ao lado da sensação e da compreensão. Essa terceira função parece ser o elemento sintetizado a partir dos outros dois. Entretanto, isso estaria em contradição com a tese da introdução da “Crítica” de que a sensação e a compreensão são as duas únicas fontes do conhecimento. Na Segunda edição, Kant remove essa discrepância interpretando a atividade sintética da imaginação como uma função da compreensão. Embora a imaginação sempre opere sobre o material dos sentidos, a síntese que ela produz não é essencialmente diferente da síntese da compreensão. Pelo contrário, a síntese da imaginação é a atividade inconsciente ou cega da compreensão sempre que essa age diretamente sobre os elementos sensíveis dados na percepção interna. Esta síntese, sendo uma função da compreensão, é também possível apenas na base da unidade transcendental da apercepção. Sobre a mesma base nós temos agora explicado a síntese dos conceitos para formar julgamentos (síntese lógica formal), a síntese das representações para formar conceitos ou fenômenos (síntese intelectual), e a síntese das impressões sensórias para formar representações (síntese da imaginação). Há ainda uma síntese que necessita de explicação: como é possível para o eu pensante sintetizar o material puramente sensório com as categorias que são formas não-sensórias da compreensão? Kant explica isso por meio de sua teoria do esquematismo. Desde que um conceito ou categoria pura não tem absolutamente nada em comum com a percepção, surge o problema de como é possível submeter legitimamente um objeto sob uma categoria. Obviamente, diz Kant, deve haver uma terceira coisa cuja natureza é simultaneamente similar à categoria e ao fenômeno, como propósito de mediar a aplicação do primeiro ao segundo. Kant chama esse elemento mediador de esquema transcendental . Na medida em que o tempo é do mesmo tipo que as categorias, é uma forma a priori universal; por outro lado, na medida em que o tempo é homogêneo com o fenômeno, está incluído em cada representação empírica da diversidade da experiência. Cada categoria tem uma relação específica com o tempo. Essa relação é o seu esquema. Assim o esquema da substância é a permanência, o da causalidade a sucessão temporal , etc. Conseqüentemente uma categoria em sua relação com o tempo
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(uma categoria esquematizada) pode ser aplicada a cada sensação em sua relação com o tempo – isto é, em uma representação. De acordo com Kant, a sensação e a compreensão são as únicas fontes do nosso conhecimento. Se este é o caso, então o problema epistemológico refere-se à forma com que nós sintetizamos esses elementos em um sistema unificado que é o objetivo final de todo o nosso conhecimento. Com isso nós apresentamos a resposta de Kant a essa questão e apontado como, de acordo com ele, o mundo fenomenal da experiência é constituído na atividade sintética da unidade transcendental da apercepção. À parte das categorias como elementos constitutivos na estrutura sintética, a estrutura da razão em si mesma implica idéias por meio das quais o processo inteiro da síntese do conhecimento é regulado e recebe direcionamento. Essas são denominadas idéias da razão pura. (c) As Idéias da Razão Pura. A compreensão é a faculdade de formar conceitos e combiná-los em julgamentos. A faculdade de combinar julgamentos para obter conclusões é chamada de “razão” por Kant. Todos os julgamentos podem ser premissas das quais a razão pode tirar conclusões e essas conclusões são então condicionadas pelas premissas. Alguém pode perguntar se este processo da razão não poderia ser revertido, desde que cada premissa pode também ser vista como uma conclusão tirada de outras premissas e assim também condicionadas por elas. Se assim for, não poderia esse processo reverso eventualmente levar a um julgamento incondicionado? Kant nega isso, desde que o processo seria de um regresso infinito. Isto é dificilmente surpreendente, porque todo o nosso conhecimento é limitado a fenômenos que são necessariamente condicionados pelas categorias. O infinito incondicionado é apenas possível como uma idéia – um ideal infinito implicado na razão mas nunca alcançado, desde que transcende a esfera dos fenômenos. A tarefa dessa parte da Crítica da Razão Pura é demonstrar que tais idéias transcendem os limites do pensamento teórico e assim não constituem conhecimento, mas são meros ideais de acordo com os quais os processos do conhecimento são regulados. Porque essas idéias estão implicadas na própria estrutura da razão, surge a ilusão de que nós podemos tratá-las como objetivamente reais e fazer julgamentos empíricos a respeito delas. Tais julgamentos que transcendem a esfera dos fenômenos devem necessariamente acabar em contradições. Kant chama esses julgamentos de ilusões transcendentais. Em sua totalidade, nossas idéias se referem ao sujeito, ou ao objeto, ou à unidade de sujeito e objeto. Assim Kant distingue entre três classes de idéias: a unidade incondicionada do sujeito pensante (a idéia da alma); a unidade incondicionada das condições dos fenômenos (a idéia de totalidade cósmica); e a unidade incondicionada das condições de todos os objetos do pensamento (a idéia do absoluto, isto é, Deus). Seguindo-se a ilusão transcendental, essas idéias são feitas os objetos de três ciências metafísicas: a psicologia racional, a cosmologia metafísica e a teologia natural. Psicologia Racional . Como nós temos viso, a atividade sintética da compreensão implica a unidade transcendental do eu pensante. Esse ego transcendental não deve ser confundido com o ego empírico que é um fenômeno e como tal objeto de uma psicologia empírica. O ego transcendental é uma realidade noumenal. Como condição transcendental para a atividade sintética da compreensão, ele não é mais que uma forma lógica de pensamento – o eu penso que acompanha todas as minhas concepções se elas
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realmente são minhas. A psicologia racional comete o engano de tomar essa forma meramente lógica como um objeto. Desde que ela é pressuposta por todos os objetos, é tomada também como se fosse um objeto. As categorias são conseqüentemente aplicadas à idéia da alma e quatro paralogismos ou falsas conclusões são produzidas. Elas são falsas porque estão baseadas na ilusão transcendental. A alma é concebida como uma substância, simples, unitária, e relacionada aos possíveis objetos espaciais (p.ex. o corpo). Esses paralogismos estão na raiz do perene problema da psicologia racional, isto é, o problema da relação mente-corpo, a substância imaterial da alma e o corpo (ego empírico) como substância material. Kant mostra que esse é um falso problema que se segue da ilusão dialética. Cosmologia Metafísica. Os paralogismos da psicologia metafísica seguem uma ilusão dialética completamente unilateral com respeito à idéia de nosso sujeito pensante, desde que nenhuma evidência contrária a esses paralogismos pode ser deduzida da pura idéia transcendental da alma. No caso da idéia cosmológica do universo, nós encontramos uma situação completamente diferente. Se a razão busca desafiar essa idéia como um objeto de pensamento, ela deve necessariamente se envolver em antinomias, e conclusões igualmente válidas mas contraditórias são obtidas. Kant demonstrou que quatro dessas antinomias correspondem às quatro classes de categorias. Essas são divididas em duas antinomias matemáticas (correspondendo às categorias de quantidade e qualidade), e duas antinomias dinâmicas (correspondendo às categorias de relação e modalidade). As antinomias matemáticas são as que se poderia provar que o mundo é, com respeito à quantidade, tanto limitado como ilimitado no espaço e no tempo, e , com respeito à qualidade, tanto composto como simples. As antinomias dinâmicas são, com respeito à relação, que pode ser provado que a liberdade é possível como uma primeira causa e que ela está excluída por uma cadeia infinita de necessidade mecânica, enquanto, com respeito à modalidade, um ser supremo necessário poderia tanto ser provado como “des- provado”. Kant rejeita ambas as conclusões alcançadas nas antinomias matemáticas, uma vez que elas se baseiam sobre a ilusão dialética. Entretanto, no caso das antinomias dinâmicas, Kant aceita as teses como aplicáveis ao mundo noumenal, porque a moralidade pressupõe as realidades da liberdade e de Deus. Como tanto as teses como as antíteses são igualmente válidas, Kant aceita as antíteses como aplicáveis ao mundo dos fenômenos. Disso se segue que as antinomias dinâmicas não são contraditórias, desde que elas sejam vistas em seus contextos apropriados. Isso não implica que a razão teórica está aqui aplicando suas categorias à esfera supra-sensória. Essas conclusões são tomadas puramente na base da razão prática como postulados necessários da moralidade. Isso é posteriormente substanciado na crítica Kantiana da teologia natural , onde ele demonstra que as várias provas para a existência de Deus são todas baseadas em ilusões dialéticas. Que um ser supremo existe não é negado por Kant; o que ele nega é que a existência de tal ser possa ser teoricametne deduzida da idéia transcendental de Ser Supremo. Nós podemos concluir que embora Kant não atribua às idéias transcendentais uma significância mais que regulativa com respeito ao conhecimento, ele aceita sua realidade na esfera noumenal como postulados da moralidade e da religião. 1.2. A Crítica Dooyeweerdiana a Kant
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De acordo com Dooyeweerd, Kant foi o primeiro filósofo a distinguir entre a atitude crítica e a atitude dogmática de pensamento, e a ver que a filosofia crítica precisa examinar as condições transcendentais que tornam a filosofia possível e determinam seus limites. Entretanto, diz Dooyeweerd, tal investigação transcendental deve ser completa para ser crítica. Ela não deve deixar nenhuma de suas pressuposições intocadas, ou elas poderão dominar a investigação e roubar-lhe o caráter crítico. E justamente nesse ponto a crítica de Kant falha. Ele não examina até o fim as condições que tornam o pensamento filosófico possível, e dogmaticamente assume certas posições básicas que determinam toda a sua filosofia. Kant foi o primeiro a ver o problema epistemológico como um problema de síntese teórica. Entretanto ele assumiu que essa síntese era meramente uma síntese lógica, e assim firmou a questão epistemológica sobre uma base muito estreita. Isso teria ocorrido porque ele tentou resolver o problema epistemológico antes de fundar sua epistemologia sobre uma teoria de coerência cósmica a partir da qual a relação gnoseológica teria seu lugar definido. Em sua teoria das idéias transcendentais, Kant de novo abre a porta para transcender a estreita base lógica em que ele formulou o problema, mas o motivo filosófico básico que dominava seu pensamento impediu que ele aprofundasse essa linha de pensamento. Assim Dooyeweerd conclui que a crítica Kantiana não foi crítica o suficiente. O “método crítico” teria de ser mais crítico, se ele quisesse manter sua reivindicação à honra auto-assumida de “pensamento crítico”. A crítica de Dooyeweerd a Kant pode ser apresentada em quatro pontos básicos: (1) sua epistemologia não tinha uma base cosmológica; (2) ele consequentemente falhou em prover um tratamento satisfatório do problema da síntese epistemológica; (3) as fraquezas de sua teoria das idéias e (4) o motivo básico que domina sua filosofia. 1. A Base Cosmológica para a Epistemologia. “Na Estética Transcendental, por conseguinte, primeiro isolaremos a sensibilidade separando tudo o que o entendimento pensa nela mediante seus conceitos, a fim de que não reste senão a intuição empírica.”7 Com essas palavras Kant abre a primeira parte de sua crítica isolando o material sensório da experi6encia em sua recepção mais primitiva nas “formas transcendentais do espaço e do tempo.” Este isolamento levou Kant a distinguir entre a “percepção” (Anschauung) e a “compreensão” (Verstand) como as duas únicas fontes de todo o conhecimento, e a manter assim que a realidade experimentada consiste de um aspecto sensório recebido através da percepção e um aspecto lógico produzido pela compreensão. Isso determina a divisão principal de sua crítica em estética transcendental e lógica transcendental. Dooyeweerd mostra que essa divisão é uma evidente abstração que falha em fazer justiça à complexa estrutura de sentido cósmico que nós conhecemos através da experiência. Na experiência ordinária a realidade se revela como uma unidade coerente composta de coisas individuais e eventos. Este é o datum primário de todo o nosso conhecimento. Na reflexão teórica vários aspectos ou modalidades estruturais podem ser distinguidos no cosmos; mas desde que eles foram teoricamente abstraídos da estrutura cósmica de sentido, eles podem apenas ter significado quando vistos à luz 7 KANT, Immanuel, Crítica
da Razão Pura. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 72.
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dessa coerência. Isto implica que cada aspecto deve ter uma estrutura que expresse essa conexão interna entre ele e todos os outros aspectos. Ignorando essa coerência intermodal, Kant começa com uma tentativa de isolamento do aspecto sensório da experiência, e então procede a uma posterior abstração dentro desse aspecto. Espaço e tempo são isolados como formas de percepção das impressões sensórias caóticas que são seu conteúdo. Como Hume, Kant toma essas impressões como sendo os dados primários de todo conhecimento, ignorando a abstração envolvida para “recuperá-los”. Isso implica seguinte contradição: o resultado da abstração é interpretado como o datum primário de todo o nosso conhecimento. Essas impressões, diz Dooyeweerd, nada mais são que abstrações teóricas dos dados primários que são a coerência de sentido systática da realidade como nós conhecimentos em nossa experiência ordinária ou ingênua. Esta é a primeira abstração feita por Kant. Nossa experiência é mal interpretada e restrita à função sensória teoreticamente abstraída, e o dado primário do conhecimento é reduzido às impressões caóticas dos sentidos. Sendo caóticas, essas impressões não tem nenhuma estrutura de sentido fixa, e não constituem conhecimento. Daí a necessidade da compreensão de sintetizar essas impressões tornando-as estruturas fixas. Depois dessas impressões terem sido sintetizadas sob as formas do espaço e do tempo para formar representações, as representações são sintetizadas sob as categorias para formar objetos de conhecimento. Essas formas sob as quais as sínteses são realizadas são fornecidas pela compreensão. Assim Kant vê a estrutura da realidade como sendo dada em nossa experiência como uma estrutura meramente lógica, produzida pela compreensão. Esta é a segunda abstração manifesta sobre a qual Kant baseia sua filosofia. O aspecto lógico da realidade é abstraído de sua coerência com outros aspectos e feito absoluto. A totalidade da estrutura de sentido da realidade é reduzida à estrutura de um dos aspectos do sentido cósmico, enquanto a síntese lógica da compreensão substitui a systasis de sentido cósmico e a compreensão se torna a fonte da lei para o cosmos. Kant ignora o fato de que essa absolutização da síntese lógica apenas é possível porque o aspecto lógico da realidade foi previamente abstraído da coêrência de sentido cósmico. A síntese lógica absolutizada – que é o resultado da análise lógica – é vista por Kant como o pré-requisito para toda análise lógica! “O que a compreensão não combinou anteriormente”, diz ele, “ela não pode dissolver ou analisar.” A crítica de Dooyeweerd a Kant quanto a esse primeiro ponto pode ser sumarizada como se segue: Kant falha em dar conta da estrutura cosmológica que é pressuposta em todo pensamento filosófico. Por isso ele baseia sua epistemologia sobre uma abstração cosmológica que ele acrticamente aceita como dado, isto é, os aspectos sensório e lógico da experiência, abstraídos da totalidade do sentido cósmico. Com respeito ao aspecto sensório, isso resulta na contradição de considerar as impressões sensórias abstraídas como o dado primário do conhecimento. O aspecto lógico, por outro lado, é feito absoluto e, como resultado, a estrutura cósmica de sentido é reduzida a uma estrutura lógica e a compreensão feita a fonte da lei e da ordem do cosmo. Alguém poderia perguntar se é possível formular e resolver o problema da síntese epistemológica sobre tal base cosmológica insuficiente. Isso nos leva à próxima parte da crítica de Dooyeweerd.
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2. O Problema da Síntese. Embora Kant tenha corretamente interpretado o problema do conhecimento como um problema de síntese, a base cosmológica insuficiente de sua epistemologia impediu Kant de vê-la como uma síntese entre os vários aspectos da experiência que foram teoricametne abstraídos da coerência de sentido cósmico e distinguí-los entre si. Porque ele reduziu a coerência de sentido a uma coerência lógica, a síntese epistemológica não poderia ser para ele nada mais que uma síntese com um aspecto do sentido cósmico. Entretanto Kant tentou demonstrar como um ponto de referência fixo poderia ser econtrado à luz do qual a síntese epistemológica seria obtida. Ele argumentou que tal ponto não poderia ser encontrado entre os objetos do conhecimento, mas apenas através da auto-reflexão no pensamento teórico. Dooyeweerd considera isso um caminho bastante promissor, pois, como ele diz, “é indubitável que, enquanto o pensamento teórico em sua atividade lógica permanece em estado de oposição aos aspectos modais da realidade temporal que constituem seu “Gegenstand”, eles permanecem numa diversidade teórica. Apenas quando o pensamento teórico é dirigido ao ego pensante, pode ele adquirir a direção concêntrica em direção a uma unidade última da consciência que se encontra na raiz de toda diversidade modal do sentido.”Dooyeweerd, N.C., I, p. 51. Como Kant assume que as funções lógica e sensória teoreticamente abstraídas são as únicas fontes do conhecimento, a unidade transcendental da auto-consciência deve em sua opinião ser encontrada em uma dessas fontes. A sensibilidade pode apenas nos fornecer conhecimento de nosso eu empírico, isto é, o eu que é feito objeto de pensamento, e não do sujeito transcendental do pensamento. Assim, se todos aqueles momentos que podem ser tratados como objetos da função lógica do pensamento são eliminados do eu individual concreto espaço-temporal, nós ficamos com o ego lógicotranscendental, que é uma mera forma de pensamento lógico, a forma da representação, “Eu penso”. Como tal, ele não transcende os limites da função lógica, mas permanece o polo subjetivo universal do pensamento em oposição à realidade da experiência, que passa a ser considerada o seu contra-polo objetivo. Teria Kant alcançado um ponto de referência fixo nesse ego transcendental à luz do qual a síntese epistemológica pode ser realizada? Tem essa reflexão transcendental realmente penetrado no ego pensante, o autor da síntese? Dooyeweerd aponta, em primeiro lugar, que a redução total do ego concreto à unidade lógico-transcendental de apercepção é uma abstração executada pelo ego pensante e o último não pode, assim, ser identificado com o resultado dessa abstração. A unidade transcendental da apercepção não é nada mais que o conceito de uma unidade lógica subjetiva de pensamento e como tal pressupõe o ego pensante. O eu empírico é também uma abstração. Nem um eu lógico-transcendental nem um eu puramente empírico-psíquico podem existir. O eu tem funções psíquicas e lógicas mas e si mesmo ele permanece o ponto transcendente de referência desses e de todas as suas outras funções nas várias modalidades do cosmo. Apenas este ego central pode ser o ponto de referência para a síntese epistemológica. Em segundo lugar, Dooyeweerd mantém que se o eu pensante é limitado à função lógica do pensamento, o conhecimento se torna impossível. Se o eu pensante fosse apenas de um caráter lógico, ele naturalmente resistiria a todos os aspectos não lógicos da realidade - incluindo o aspecto sensório - como se eles fossem algo que não pertence ao ego central; algo que não é próprio de mim, ou meu. Desse modo a possibilidade de
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uma síntese de sentido entre a função lógica de pensamento e o material sensório da experiência é cancelada, e a crítica Kantiana do conhecimento se auto-destrói. Dooyeweerd conclui que a profunda unidade da auto-consciência que sozinha torna o conhecimento possível, não pode ser limitada a uma de suas funções, mas deve transcendê-las como o ponto de referência em que elas encontram sua unidade. A unidade transcendental da apercepção de Kant é meramente a unidade imanente da função lógica e não a unidade última do ego pensante. O fato de que ele funda sua epistemologia nessa abstração é evidenciado por sua redução da síntese epistemológica a uma síntese de uma diversidade meramente lógica. Entretanto, a crítica de Kant permite pelo menos um tipo de síntese intermodal: a síntese entre os aspectos lógico e sensório da realidade. Não teria Kant encontrado talvez um ponto de referência nessa síntese que transcenda a ambos os aspectos? A distinção Kantiana entre lógica formal e transcendental, sua doutrina da imaginação transcendental e sua doutrina dos esquematismos pode prover indicações disso. (a) Lógica Formal e Transcendental . Na crítica Kantiana, a lógica formal lida com as formas lógicas sob as quais os conceitos são combinados para formar julgamentos, enquanto que a lógica transcendental lida com as categorias que são formas sob as quais o conhecimento é relacionado aos objetos dos sentidos. Poderia ser dito que no pensamento de Kant a lógica formal lida com as formas lógicas enquanto a lógica transcendental lida com as formas epistemológicas. A distinção entre lógica formal e transcendental parece implicar que as categorias não são meras formas lógicas, mas que elas são formas que implicam uma síntese a prior entre as formas lógicas de pensamento e o material sensório. Se não for possível demonstrar que as categorias são mais do que meras formas lógicas, diz Dooyeweerd, então a distinção entre lógica formal e transcendental seria sem sentido. Entretanto, um exame cuidadoso mostra que nenhuma síntese intermodal está implicada nas categorias, desde que Kant ressalta que é a mesma função lógica que está ativa na analítica formal e no pensamento sintético transcendental. Além disso Kant orienta as categorias dentro de uma tábua de julgamentos lógicos formais, porque eles são realmente de uma natureza lógica. Ele os distingue como conceitos sintéticos porque eles são aplicados a experiências possíveis. Entretanto ele não considera a síntese em que eles são fundados como intermodal, mas como uma síntese puramente lógica. Daí se segue que as categorias são formas meramente lógicas e que não implicam qualquer síntese intermodal. Dooyeweerd aponta que se elas fossem realmente formas transcendentais de conhecimento objetivo, e não meramente formas de pensamento, então elas não deveriam ter sido discutidas em epistemologia, mas na análise dos vários aspectos modais da experiência que deveria preceder qualquer discussão de epistemologia e que determina as condições cosmológicas do conhecimento. Nesse ponto Kant não atinge nem uma síntese intermodal, nem um ponto de referência que transcenda a diversidade modal. (b) A Imaginação Transcendental . Na primeira edição de sua Crítica da Razão Pura, aparentemente Kant interpreta a imaginação como uma terceira função ao lado da compreensão e da percepção. Essa terceira função deve então ser o fator de síntese atrás dos outros dois. Entretanto, a idéia de uma terceira função contradiz a visão apresentada na “Introdução” de que haveria apenas duas fontes de conhecimento; assim, na Segunda edição, Kant removeu a contradição declarando enfaticamente que a imaginação é uma função da compreensão e que a síntese figurativa seria um ato da
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compreensão. Assim nós concluímos que a imaginação não fornece um ponto fixo além da função lógica. Nem é a síntese figurativa uma síntese intermodal. (c) A Doutrina do Esquematismo. O problema de uma síntese intermodal entre o material sensório e as categorias não é realmente tratado por Kant antes de sua discussão da doutrina dos esquematismos. Para demonstrar como as categorias podem ser aplicadas aos fenômenos sensórios, Kant formulou sua doutrina na qual o tempo é visto como “uma terceira coisa de natureza similar às categorias, por um lado, e aos fenômenos, por outro”, que media a síntese entre os dois. Por um lado, o tempo é a forma universal da sensação, e por outro lado é o meio pelo qual as categorias são esquematizadas com a ajuda da imaginação transcendental. Como Dooyeweerd mostrou, isso não é uma solução para o problema, mas uma petitio principii. Afirma-se que o problema da síntese entre as categorias e os fenômenos sensórios é resolvido pelo esquematismo das categorias. Mas isso é apenas uma reafirmação do mesmo problema de uma outra forma: como podem as categorias e a forma sensória do tempo serem sintetizadas? Desde que as categorias são formas puras de pensamento, elas são atemporais e assim estão em oposição irreconciliável tanto ao material sensório como à forma sensória do tempo. Segue-se que a doutrina dos esquematismos contradiz as próprias visões de Kant sobre o caráter lógico das categorias e o caráter do tempo como uma forma de percepção. Consequentemente Dooyeweerd conclui que “do capítulo sobre os esquematismos temos a impressão de que Kant deve ter visto a insuficiência de sua concepção da unidade da auto consciência para explicar relação entre as “categorias de pensamento” e os “fenômenos sensórios”. A crítica de Dooyeweerd a Kant sob este segundo ponto pode ser sumarizada como se segue: (1) Devido à insuficiente base cosmológica de sua epistemologia, Kant reduz a síntese intermodal do conhecimento a uma síntese meramente lógica. (2) Embora a crítica de Kant deixe espaço para ao menos uma síntese intermodal – aquela entre os aspectos lógico e sensório – ele não dá uma solução para o problema nem em sua doutrina das categorias como formas de lógica transcendental, nem na doutrina da imaginação transcendental, nem na dos esquematismos. (3) Desde que Kant absolutiza a função lógica, ele reduz o ego pensante, como ponto transcendental de referência para todas as sínteses, a uma unidade meramente lógica de consciência. Ele falha em transcender a diversidade modal do sentido no ponto de referência que ele escolheu para a síntese teórica; como resultado, a direção transcendental do pensamento teórico para o ego pensante é desviada e limitada à função lógica. Teria Kant buscado transcender à função lógica em sua doutrina das idéias transcendentais? Isso nos leva á próxima parte da crítica de Dooyeweerd. 3. A Doutrina Kantiana das Idéias. A atividade sintética do conhecimento, portanto, implica um ponto de referência que transcende os diferentes aspectos do sentido cósmico. Nosso ego pensante deve ser capaz de participar desse ponto, desde que é o ego pensante que realiza a síntese. Entretanto, o pensamento teórico não pode transcender a diversidade dos aspectos de sentido do cosmo, desde que é justamente essa diversidade que torna o pensamento teórico possível. Assim o pensamento teórico não pode fazer mais do que desenvolver idéias regulativas que no uso teórico permaneceriam presas aos limites imanentes do conhecimento teórico, mas seriam capazes de se referir à totalidade absoluta do sentido, proporcionando um ponto de referência transcendente para a síntese teórica do conhecimento.
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Dooyeweerd chama a tentativa de encontrar tal ponto de referência transcendente por meio de idéias transcendentais de “a direção transcendental do pensamento teórico”. Essa direção transcendental não aparece na obra de Kant antes de sua discussão das idéias transcendentais na dialética transcendental . Essas idéias apresentam as características básicas do que seria o ponto de referência necessário a uma síntese intermodal. Primeiro de tudo, elas apontam para uma totalidade absoluta que de acordo com Kant transcende os limites imanentes da “experiência objetiva”. Esta última é sempre limitada aos dados dos sentidos que são condicionados pelas categorias, de modo que o absoluto, como o incondicionado, deve transcender esses fatores condicionantes. Em segundo lugar, em seu uso teórico, essas idéias permanecem presas aos limites imanentes do conhecimento e não podem receber um conteúdo positivo pelo pensamento teórico. Seu conteúdo pode apenas ser encontrado na esfera transcendente à qual elas se referem. Kant distingue três dessas idéias transcendentais: as idéias do universo, da unidade última do ego humano, e da Origem absoluta. Dooyeweerd considera essas em sua triunidade como o verdadeiro ponto fixo pelo qual nós estamos procurando, e como a verdadeira hipótese transcendental de qualquer filosofia. Como o seu conteúdo transcende a esfera do pensamento teórico, ele deve depender de pressuposições suprateóricas. Como nós veremos, Dooyeweerd tenta demonstrar em sua própria crítica que essas pressuposições são de natureza religiosa. Entretanto, Kant recusou-se a dar o último passo na direção transcendental do pensamento teórico e não aceitou essas idéias como a hipótese última de sua crítica do conhecimento. Assim ele apenas lida com elas depois de ter completado sua discussão da síntese epistemológica. Ele não dá a elas mais que um significado puramente lógico-formal em sua teoria do conhecimento; elas teria apenas uma função regulativa sistemática com respeito ao uso das categorias, indicando à compreensão a direção que ela deve seguir para trazer unidade às suas regras. Kant falhou em ver que mesmo em seu uso teórico essas idéias devem ter um conteúdo real que é supra-teórico e determinado por pressuposições religiosas. Ele procurou elaborar sua crítica do conhecimento à parte de qualquer atitude religiosa, como um produto puro da reflexão. Na verdade, Kant deu a essas idéias um conteúdo positivo em sua crítica da razão prática, e este conteúdo é determinado por um motivo básico que, de acordo com Dooyeweerd, determina toda sua filosofia – incluindo sua crítica do conhecimento. Isso nos leva à última parte da crítica de Dooyeweerd. 4. O Motivo Básico da Crítica de Kant . Ao revisar a história da filosofia, Dooyeweerd descobriu que cada período da história parece ser dominado por algum motivo básico (“grond-motief”) que constantemente se manifesta nesse período. Assim, a filosofia grega foi determinada pelo motivo forma-matéria, enquanto na filosofia medieval nós encontramos o motivo natureza-graça recorrendo constantemente. Este último motivo foi uma tentativa de síntese entre o motivo grego e o motivo cristão criação-quedaredenção. Estes motivos são todos de um caráter religioso, implicando que todas as filosofias parecem ser basicamente determinadas por um fator religioso. Este é também o caso do motivo natureza-liberdade do humanismo que subjaz à crítica kantiana. Os motivos grego, medieval e humanista contém cada um uma polaridade entre dois elementos componentes. No motivo humanista, esses elementos são a natureza e a liberdade, que são representados respectivamente pelo ideal de ciência natural e o ideal de personalidade autônoma. Kant tenta resolver a luta entre esses dois ideais dividindo a
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realidade em uma esfera de fenômenos sensórios e uma esfera noumenal supra-sensória. O ideal de ciência reinaria supremo sobre os fenômenos, que são determinados pelas categorias – especialmente a da causalidade. E para dar espaço à personalidade livre do homem, o ideal de ciência foi limitado aos fenômenos e foi criada a esfera noumenal, como a esfera da liberdade moral. Dooyeweerd argumenta que a revolução copernicana de Kant é significativa apenas à luz do novo relacionamento que ele estabeleceu entre o ideal de ciência e o ideal de personalidade. Já desde o tempo de descartes, a filosofia humanista foi caracterizada pela tendência de buscar os fundamentos da realidade apenas no sujeito conhecedor. Se Kant “não fez mais do que proclamar o sujeito conhecedor lógico-transcendental como a fonte da lei para a realidade empírica, sua obra Copernicana pode não Ter sido nada mais do que a realização da tendência básica do ideal humanista de ciência ...”8 O aspecto realmente revolucionário da crítica de Kant foi remoção das “coisas em si mesmas” da dominação do ideal matemático de ciência e sua limitação de todo conhecimento teórico aos fenômenos dos sentidos. Dessa forma o ideal de personalidade livre foi emancipado das determinações da ciência matemática e foi criada uma esfera supra-sensória na qual a personalidade pudesse ser autônoma. Vê-se, então, que Kant sustentou o dualismo do motivo humanista mas enfatizou o primado do ideal de personalidade. Este primado ganharia crescente importância no desenvolvimento do idealismo após Kant. À luz do equilíbrio entre os ideais de ciência e de personalidade – um equilíbrio inclinado em favor do último – Kant deu conteúdo a suas idéias transcendentais e elaborou sua crítica do conhecimento. A forma com que Kant deu conteúdo às idéias transcendentais é claramente expresso em sua discussão das antinomias dinâmicas quando ele diz: “Que meu ego pensante tem uma natureza simples e indestrutível, que o eu ao mesmo tempo é livre em seus atos volicionais e elevado acima da coerção da natureza, e que finalmente a ordem total das coisas se origina de um Ser Primeiro do qual todas as coisas derivam sua unidade e conexão apropriada: estes são fundamentos da moral e da religião.” Aqui o “eu” é liberado do domínio da natureza e mesmo da morte, e é identificado com o eu moral autônomo do ideal humanista de personalidade. Esta idéia do eu e o motivo que lhe confere conteúdo subjaz à teoria do conhecimento de Kant. Sem uma base cosmológica para a sua epistemologia, a suposição de Kant de que há apenas duas fontes de conhecimento é determinada por seu motivo base dualista. “Sua concepção da autonomia e espontaneidade da função lógico-transcendental do pensamento é indubitavelmente governada pelo motivo humanista da liberdade, e o motivo base da natureza encontra clara expressão em sua concepção do caráter puramente receptivo da função sensória da experiência, e de sua sujeição às determinações causais da ciência.” Na epistemologia de Kant, a síntese entre liberdade e necessidade natural é dada no conceito da conexão das categorias à experiência sensória. Entretanto, devido ao dualismo a partir do qual Kant começa seu pensamento, todas as suas tentativas de explicar a síntese foram infrutíferas. O fato de que a sensação e a compreensão lógica são opostos dualisticamente um ao outro é perigosa tanto para o ideal de ciência como para o de personalidade. A despeito da proclamação da compreensão lógica como a fonte da lei da natureza, a soberania do pensamento teórico é seriamente desafiada porque a sensibilidade como uma instância 8 Dooyeweerd,
NC, I, p. 355.
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puramente receptiva impõe limites insuportáveis sobre ela. A compreensão é feita a fonte da lei meramente em um sentido formal . O conhecimento material permanece um produto a-lógico do Ding an sich. Este Ding an sich metafisicamente construído limita seriamente a autonomia do ideal de ciência. Entretanto, ele também desafia a autonomia do ideal de personalidade porque, como uma realidade noumenal, ele não é compatível com a autonomia do homo noumenon na esfera supra-sensória. Em sua crítica da comologia metafísica, Kant tentou retificar isso rejeitando o Ding an sich natural como uma construção metafísica. “Não pode ser negado”, diz Dooyeweerd, “que na dialética transcendental, ao introduzir as idéias transcendentais da razão teórica, Kant tomou um importante passo na direção tomada por Fichte. Este último eliminou completamente o “ Ding an sich” e proclamou a razão prática, o lugar do ideal ético de personalidade, como a raiz mais profunda de todo o cosmo.
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III.
AS CONDIÇÕES TRANSCENDENTAIS DO PENSAMENTO TEÓRICO
Na primeira edição de sua magnum opus em 1935, em holandês, Dooyeweerd procurou criticar o pensamento ocidental começando com a pressuposição de que a filosofia, por natureza, se dirige à totalidade do sentido da realidade temporal, passando daí a considerar o problema do ponto arquimediano do pensamento e o problema do Arché. Essa abordagem não teve, no entanto, o alcance esperado, basicamente porque, como Dooyeweerd reconhece, essa definição de filosofia não tem aceitação universal. Assim Dooyeweerd procurou aprofundar sua crítica do pensamento teórico focalizando “a atitude teórica de pensamento como tal”.9 Sua nova abordagem apareceu primeiramente, segundo BRÜMMER , em dois artigos escritos em 1941 para a revista Philosophia Reformata,10 e foi publicada em 1948 na obra Transcendental Problems of Philosophic Thought .11 A forma final do argumento é encontrada no capítulo 1 da edição inglesa de sua obra magna: A New Critique of Theoretical Thought .12 Neste capítulo vamos nos concentrar na exposição da forma final do argumento, que Dooyeweerd chama de “A Segunda Via para uma Crítica Transcendental do Pensamento Teórico.”
1. A Base Cosmológica da Crítica Transcendental Como vimos no capítulo anterior, Dooyeweerd apontou como uma das falhas principais da crítica Kantiana a ausência de uma base cosmológica adequada para a epistemologia. Kant partiu da pressuposição de que as fontes do conhecimento se reduzem aos dados dos sentidos e as categorias da compreensão, e esse erro básico comprometeu todo o restante do edifício. Desse modo, a Nova Crítica de Dooyeweerd começa com o estabelecimento de uma base cosmológica mais ampla e de uma concepção de pensamento teórico coerente com essa base cosmológica.
2. O Primeiro Problema Transcendental Básico: “Relação-Gegenstand” versus “Relação Sujeito-Objeto”. O primeiro problema transcendental do pensamento teórico por ser formulado como se segue: “Como a atitude teórica de pensamento é caracterizada, em contraste com a atitude pré-teórica da experiência ingênua?”13 Em nosso exame da base cosmológica da epistemologia, vimos que a atitude teórica de pensamento se caracteriza pela análise e conseqüente separação dos strata da experiência. Já na atitude pré-teórica experimentamos na coerência integral do tempo cósmico, percebendo não esferas modais, mas estruturas 9 Dooyeweerd,
NCTT, I, Prolegomena, p. 35. Transcendental Criticism, p. 43. 11 Dooyeweerd, Herman, “Transcendental Problems of Philosophical Thought”. Grand Rapids: Eerdmans, 1948, 80 pp. 12 A edição holandesa de 1935 continha apenas a “primeira via” da crítica transcendental. Já a edição inglesa de 1953 trouxe na introdução a “primeira via” e no capítulo 1 a “Segunda via” contendo seu argumento mais elaborado. Devido a essa e a várias outras modificações, a edição inglesa foi considerada por muitos como uma obra praticamente nova e original. 13 Dooyeweerd, NCTT, I, p. 38. 10 Brümmer,
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completas de individualidade. Vamos começar analisando melhor a atitude teórica do pensamento. A Estrutura Intencional do Pensamento Teórico e a Origem do Problema do Pensamento Teórico A atitude teórica sempre envolve uma tentativa de analisar e de reconstituir as realidades de um determinado strata da experiência de forma lógica, conceptualizando essa dimensão da experiência. A atitude teórica tem assim uma estrutura antitética, caracterizando-se por uma antítese entre a nossa função lógico-analítica e uma outra função ou dimensão não-lógica da experiência. Essa função não-lógica é denominada por Dooyeweerd como a “Gegenstand” no sentido de “oposto”. Desse modo o pensamento teórico não tem uma estrutura ôntica, mas apenas intencional .14 Ou seja, “a antítese teórica não corresponde à estrutura da realidade empírica”15, sendo apenas uma abstração teórica de um certo aspecto da experiência. Por outro lado, o ato real de pensamento teórico, o ato da abstração, e si, é real e concreto, de modo que só pode existir como uma estrutura de individualidade integral e temporal participando de todos os strata. O processo intencional da abstração encontra resistência nos aspectos da experiência, na dificuldade de conceptualizá-los. Essa resistência nasce do fato de que mesmo ao ser abstraída, “a estrutura modal do aspecto não-lógico X que é tratado como “Gegenstand” continua a expressar sua coerência (de sentido) com os aspectos modais Y que não foram escolhidos como o campo da inquirição.”16 É que uma vez que os diversos aspectos existem numa coerência inquebrável de sentido, não há como definir um aspecto a não ser em referência aos outros. Segue-se que, embora a abstração seja fundamental para atingirmos um insight teórico na diversidade do sentido cósmico, o resultado da abstração não pode jamais ser tratado como um dado básico da experiência, ou como um “dado não problemático”. A Relação Sujeito Objeto na Experiência Ordinária Vamos passar agora ao exame da atitude ingênua ou ordinária do pensamento. Nessa atitude pré-teórica a função lógica do pensamento permanece plenamente integrada e acomodada à coerência cósmica. Ao invés de isolar aspectos da experiência, nós captamos a realidade em estruturas totais de individualidade: objetos, acontecimentos, ações, indivíduos – todo tipo de estrutura é percebida na sua integralidade. Assim o processo ordinário de formação de conceitos se dirige a coisas e eventos concretos. O aspecto lógico não surge oposto a outros, mas como um componente implícito da realidade, assim como o aspecto estético, ou sensório, ou histórico. Essa experiência ordinária pode ser descrita como uma relação sujeito-objeto, na qual funções e qualidades objetivas são atribuídas às coisas e eventos, dentro daqueles aspectos da experiência nos quais se percebe que essas coisas e eventos não aparecem como
14 Ibid,
p. 39. p. 40. 16 Ibid, p. 40. 15 Ibid,
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sujeitos.17 Nós sabemos muito bem, por exemplo, que a água não tem vida biológica, mas nós a tratamos como tendo a função objetiva de ser necessária à vida; que a pena do pássaro não vive, mas é um objeto que tem significado apenas na relação com a vida subjetiva do pássaro, como um objeto da vida. Assim a relação sujeito-objeto é vivida como uma parte estrutural da realidade, tendo assim o caráter ôntico que falta à relação Gegenstand.18 O conceito metafísico de “substância”, e o conceito de uma “coisa em si” (Ding na sich) como uma espécie de matéria ou essência pura sem significado é ausente da experiência ordinária, surgindo da abstração e “substancialização” de uma das esferas da experiência. Na experiência ingênua o foco está nas estruturas totais de individualidade e em suas relações sujeito-objeto, e nunca na tentativa de definição de “essências” isoladas. Uma vez que a relação sujeito-objeto tem caráter verdadeiramente ôntico e não intencional, jamais buscando essências do real ou dividindo abstratamente suas propriedades, podemos dizer que a experiência ingênua deixa as estruturas da experiência do real intactas. Efeitos da Falha em Considerar a Relação entre Experiência Ordinária e Pensamento Teórico A distinção entre as relações “gegenstand” e “sujeito-objeto” nos ajuda a compreender um dos erros fundamentais da atitude dogmática de pensamento como a que encontramos em Kant. Nessa posição a atitude teórica de pensamento é considerada como ôntica, e os resultados da relação gegenstand como um datum não problemático. Com essa interpretação somos levados a identificar a relação sujeito-objeto com a relação gegenstand e finalmente ao erro de interpretar a experiência ordinária como se fosse uma teoria ingênua sobre a realidade: a teoria acrítica do realismo ingênuo ou teoria da cópia/representação.19 Muito ao contrário, a experiência ordinária toma a realidade como é dada: “Ela é em si mesma um datum ou antes o datum supremo para toda teoria da realidade e do conhecimento. Toda teoria filosófica que não dá conta disso deve ser necessáriamente errônea em seus fundamentos.”20 Outro efeito dessa falha é a tendência originada no pensamento grego e transmitida à teologia cristã de conceber o homem como um composto de alma racional e corpo material. Assim em Aristóteles a atividade teórica do pensamento, capaz de formar conceitos lógicos, deveria ser totalmente independente do corpo material. Isso é a hipostatização da função lógica do ego, hipostatização essa um resultado de se tratar a estrutura intencional da relação gegestand como uma estrutura ôntica. Assim temos mais tarde Descartes dizendo: “Penso, logo existo”, definindo assim o ego central existente como um centro racional puro e incorpóreo.
17 Ibid,
p. 42. “As funções objetivas pertencem às coisas em si mesmas na relação com possíveis funções subjetivas que as coisas não possuem nos aspectos da realidade envolvidos.” Ibid, p. 42. 19 “Assim, em aliança com a moderna ciência natural e a teoria fisiológica das ‘energias específicas dos sentidos’ a moderna epistemologia assume a tarefa de refutar esse ‘realismo ingênuo’!” Ibid, p. 43. 20 Dooyeweerd, “Transcendental Problems”, p. 35, 36. 18
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Conclusão A formulação mais extensa do primeiro problema transcendental feita por Dooyeweerd é esta: “O “O que, na atitude antitética de pensamento teórico, nós abstraímos das estruturas da realidade empírica como nos são dadas na experiência ingênua? E como é essa abstração possível?” possível?”21 Ou seja, o que buscamos é definir a relação gegenstand relação gegenstand e estabelecer seu verdadeiro relacionamento com a experiência ordinária. A resposta a essa pergunta é que na atitude teórica isolamos um aspecto específico da experiência e o confrontamos com o aspecto lógico, de tal forma que essa estrutura intencional surge da abstração teórica de uma dimensão da experiência. Evidentemente, assim, o produto intencional do pensamento teórico não pode conter a realidade e não corresponde aos objetos reais; as estruturas da realidade empírica não são integralmente transmitidas a nós na abstração, mas apenas um dos strata dessa estrutura. estrutura. Ao mesmo tempo, o produto intencional da atividade teórica nunca é absolutamente isolado das estruturas da realidade empírica, pois seu sentido é dado pela totalidade do real; assim o strata abstraído nunca é transmitido a nós na abstração independentemente independent emente das estruturas da realidade empírica. empírica.
3. O Segundo Problema Transcendental Básico: O Ponto de Partida da Síntese Teórica A colocação do problema da “Relação Gegenstand”, isto é, da antítese entre o aspecto lógico e os outros aspectos da experiência não soluciona o problema do pensamento teórico, pois o processo de conceptualização só se completa quando é alcançada uma síntese entre os pólos lógico e não-lógico da relação gegenstand relação gegenstand . Surge daí um segundo problema transcendental que foi assim formulado por Dooyeweerd: “ A partir de qual ponto de referência nós podemos reunir sinteticamente os os aspectos lógico e não-lógico da experiência que foram colocados em oposição um ao outro na antítese teórica?” teórica?”22 A Necessidade da Unidade Radical entre o Lógico e o Não-Lógico para a Síntese Teórica Um pouco de atenção ao problema nos fará perceber que não é possível encontrar esse ponto de referência em um dos dois pólos da antítese. O que o ego pensante busca na relação gegenstand é conceptualizar uma realidade não-lógica. O problema é como podemos saber se o conceito teórico produzido após essa conceptualização é uma imagem lógica adequada daquela realidade não-lógica. Ora, se essas duas dimensões são essencialmente distintas, distintas, isto é, se a conceptualização é realizada justamente porque há a função lógica e uma função oposta cuja característica essencial é ser não-lógica, então elas permanecem mutuamente insolúveis, insolúveis, como água e óleo.23 Na verdade, não pode haver esperança de que uma explicação lógica de uma realidade não-lógica seja verdadeira, a não ser que exista uma unidade profunda entre o 21 Dooyeweerd, 22 Ibid,
NCTT, I, p. 41.
p. 45. “Pois uma coisa é certa: a relação antitética, com a qual a atitude teórica de pensamento fica de pé ou cai, não oferece em si mesma nenhuma ponte entre o aspecto do pensamento lógico e seu “Gegenstand” não lógico”. Ibid, lógico”. Ibid, p. 45. 23
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lógico e o não-lógico. Essa unidade seria algo mais do que lógico. Isso pode ser ilustrado com uma experiência comum que todos conhecemos: a linguagem. Podemos dizer que “José ficou muito irado repentinamente”. Ou podemos usar uma metáfora e dizer que “José sofreu uma explosão de ira”. É claro que José não “explodiu” literalmente. Estamos usando uma metáfora física para descrever um processo psíquico. Mas como isso é possível? Não é porque seja possível demonstrar uma conexão etimológica entre “explosão” e “ira repentina”. A metáfora funciona porque sentimos que há uma semelhança entre uma explosão e uma ira violenta e repentina. Essa semelhança, que fundamenta o uso linguístico da metáfora é de natureza pré-linguística. Porque sentimos a semelhança, criamos a metáfora. Outro exemplo nessa linha é o da tradução. Para traduzir uma sentença de outra língua para a nossa, precisamos de algo em comum entre as duas línguas. Por exemplo, se vamos traduzir a frase “I need water”, precisamos encontrar uma expressão de sentido equivalente no português. A expressão “Eu preciso de água” preenche as condições. Mas é interessante notar que não há conexão linguística clara entre essas duas frases; não só as palavras tem raízes diferentes, diferentes , como a sintaxe das orações é diferente. Mas de algum modo, as duas línguas/culturas desenvolveram estruturas linguísticas para expressar uma realidade comum de base biológica que todos os seres humanos compartilham: a necessidade de água. Assim a unidade mais profunda da experiência humana torna possível um intercâmbio entre linguagens estruturalmente diferentes. O que buscamos expressar por meio dessas pobres analogias é que para formularmos um conceito lógico sobre uma coisa que em sua essência é estranha à lógica – lógica – daí o nosso desejo de conceptualizá-la – conceptualizá-la – precisamos precisamos sentir que o lógico e não-lógico são coerentes de algum modo. modo. Essa coerência não pode ser lógica porque se assim fosse, o aspecto que está sendo conceptualizado não seria realmente não-lógico! Nesse caso não haveria qualquer antítese teórica e a atitude ordinária do pensamento nos daria conceitos lógicos espontâneos de todos os aspectos da experiência. Não haveria qualquer diferença entre o pensamento teórico-científico e o pensamento ordinário. Se isso fosse verdade, porque a necessidade de “conceptualizar” como atividade a tividade intencional? Do fato de que a atitude teórica é intencional e antitética, fica óbvio que a síntese que finalmente nos fornece um conceito lógico sobre a realidade não-lógica deve relacionar esses dois aspectos a uma unidade radical , mais profunda do que ambos; nessa unidade radical estaria a coerência entre os dois aspectos, e percebendo essa coerência profunda é que somos capazes de formular conceitos lógicos sobre a realidade não-lógica que façam justiça a essa realidade. O Impasse do Pensamento Imanentista e a Fonte das Antinomias Teóricas A impossibilidade de se proceder a uma síntese teórica sem pressupôr uma visão da unidade profunda entre os diversos aspectos da experiência é a causa de uma distorção fundamental dentro do pensamento imanentista: os diversos “ismos” na interpretação da realidade. Sempre que o pensamento busca a totalidade do sentido cósmico – a “unidade profunda do sentido” de que falamos há pouco – dentro do próprio cosmo, inevitavelmente absolutizará uma das dimensões de sua experiência temporal que foi abstraída teoreticamente. Assim o ponto de partida teórico para a conceptualização das diversas
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esferas da experiência fica sendo uma conceptualização específica que foi absolutizada e tratada como a totalidade do sentido. Vários exemplos disso poderiam ser apontados. Por exemplo, na matemática: como devemos compreender a relação entre a lógica, o número, o espaço, a sensação e os sinais linguísticos usados na matemática? A síntese matemática é originada no pensamento lógico, na percepção dos sentidos, numa intuição do tempo, ou num complexo de símbolos baseados na “convenção” entre as pessoas? Das diversas divers as respostas respos tas a essa questão surgiram sur giram o logicismo matemático, o formalismo, o empirismo e o intuicionismo matemático. 24 O logicismo matemático, especificamente, que foi uma forte tentativa de fundamentar a matemática na lógica. Suas origens estão em GEORGE BOOLE (1815-1864), fundador da lógica Booleana, passando por GOTTLOB FREGE (1848-1925), que se esforçou por eliminar a intuição e os laços com as línguas naturais para basear a matemática totalmente na lógica,25 e chegando ao empirismo lógico de BERTRAND R USSELL USSELL (1872-1970). O projeto logicista entrou em colapso a partir da década de 20, quando ficou evidente que a matemática transcende os limites da lógica.26 Dooyeweerd aponta outros exemplos. Na biologia temos o neo-vitalismo, o mecanicismo e o holismo. Um dos problemas no neo-darwinismo é se a vida pode realmente ser descrita como uma forma complexa de organização da matéria. Esse tipo de explicação reducionista se estende a todos os campos do conhecimento. Temos assim o psicologismo, o sociologismo, o historicismo, o materialismo, o logicismo, e outras variedades de reducionismo nas quais uma síntese entre o aspecto lógico e um aspecto específico é absolutizada como se fosse a origem da totalidade do sentido e utilizada para realizar todas as outras sínteses, ou seja, para explicar todas as coisas. Esses ““-ismos” são acríticos por duas razões principais. Em primeiro lugar, eles não podem ser justificados teoricamente, uma vez que a própria estrutura antitética do pensamento resiste à tentativa de reduzir um aspecto do pensamento a outro. Assim a tentativa de absolutizar um aspecto cria antinomias e contradições ao explicarmos um outro aspecto. Nunca há uma “fusão” entre os dois pólos da antítese; o que temos é uma mistura parcialmente lógica e parcialmente não-lógica. Além disso a ciência não pode ser praticada sem uma visão teórica da realidade. Cada distinção de um aspecto em relação aos outros supõe um insight em seu mútuo relacionamento e sua coerência total. Em outras palavras, palavras, “... supõe um denominador básico, sob o qual os aspectos não-lógicos podem ser postos em ordem e comparados uns com os outros. outros. Pois eles não podem ser distinguidos, a não ser que tenham alguma coisa em comum.” comum.”27 Desse modo, não há uma única ciência que não precise de uma visão teórica da totalidade. Isso torna a absolutização de um aspecto do sentido bastante acrítica, pois ela busca definir o sentido da totalidade a partir de seu foco científico específico, negando e ignorando a legitimidade das outras dimensões da experiência na constituição do sentido do real. Isso nos leva a um importante ponto de Dooyeweerd; é que nenhuma ciência especial pode se declarar autônoma com respeito à filosofia pretendendo apresentar uma teoria da realidade a partir de seus resultados. Uma ciência especial não pode lidar com a 24
Dooyeweerd, “Transcendental Problems”, p. 39.
25 Delacampagne, Christian, História da Filosofia no Século XX, p. 26 Ibid,
p. 45.
27 Dooyeweerd,
NCTT, I, p. 47.
24.
28
totalidade do sentido, mas apenas com alguns de seus fragmentos. Portanto ela deverá derivar da filosofia a visão de totalidade que dará sentido à sua linha específica de investigação.28 O Problema do Ponto de Partida e o Caminho da Auto-Reflexão no Pensamento Teórico Na crítica Kantiana do conhecimento surgiu o problema explicar a relação entre a função lógica do pensamento e a percepção sensória. Essa relação foi explicada como um evento psíquico que por si mesmo poderia se tornar o “Gegenstand” do “cogito” lógicotranscendental. Já este seria inacessível ao pensamento teórico. Na verdade, essa explicação pressupõe que o eu pensante é puramente lógico e transcende a estrutura da experiência. Mas há o reconhecimento de que existe um ponto no homem a partir do qual é realizada a síntese teórica. Dooyeweerd concorda com Kant em que algum ponto da consciência do homem participa da totalidade do sentido, e que precisamos determinar que ponto é esse. Mas opondo-se à solução de Kant, Dooyeweerd argumentou que a relação Gegenstand é uma relação intencional no interior de um ato real de pensamento, e esse ato real em si mesmo não pode ser objeto “Gegenstand” da função lógica, desde que esta só existe dentr o de um ato real da consciência. Esse ato inclusive não pode ser reduzido a um evento psíquico; trata-se de uma realidade que envolve todas as funções humanas. Assim o “sujeito lógicotranscendental” como uma consciência pensante pura nada mais é que a absolutização da função lógica do pensamento, e não pode ser o ponto de partida dos atos sintéticos de pensamento. A crítica de Dooyeweerd acaba por introduz um problema: se o pensamento teórico está preso à relação gegenstand, como poderemos explicar a relação “Gegenstand” e a própria síntese teórica? Fica evidente, aqui, a necessidade de um outro tipo de reflexão para descrever a atividade teórica. Aparentemente há limites naturais para o pensamento teórico, e estes limites não podem ser transcendidos pelo pensamento teórico de forma autônoma. Assim, em primeiro lugar, precisamos nos concentrar no aspecto central do processo, que é a oposição entre a função lógica e a não-lógica, sem prejuízo das outras dimensões do ato real de pensamento. Além disso, precisamos buscar o ponto de partida da síntese além do pensamento lógico (contra Kant). O pólo lógico da Gegenstand precisa de um ponto de partida para a síntese com o pólo não-lógico, e essa síntese não é fornecida por nenhum dos pólos. Como podemos atingir esse ponto de partida em nossa crítica transcendental? Kant argumentou que para ir além da Gegenstand precisamos exercitar autoreflexão crítica. De fato, enquanto o pensamento teórico na função lógica se dirige a um Gegenstand, ele permanece disperso na diversidade teórica do sentido – ele só pode examinar aspectos abstraídos da experiência. Para atingir a unidade última da consciência na qual participamos da totalidade do sentido e a partir da qual realizamos a síntese teórica, precisamos dirigir o pensamento para o ego pensante. Dooyeweerd chamou essa forma de reflexão de direção concêntrica do pensamento teórico.29 A psicologia, a biologia, a etnologia, a sociologia, e as diversas ciências que estudam o homem podem dizer muitas coisas sobre a sua vida temporal, mas não podem alcançar seu centro interno de unidade a partir do qual são realizados os atos sintéticos de pensamento. Somente a auto-reflexão 28 Ibid, 29 Ibid,
p. 49. p. 51.
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pode nos levar a esse ponto de partida interno. Segundo Dooyeweerd, Sócrates teria percebido essa necessidade quando deu à inscrição no oráculo de Delfos – “Conhece-te a ti mesmo” – um sentido introspectivo e elevou-a a pré-requisito da filosofia. Isso nos leva ao terceiro problema transcendental.
4. O Terceiro Problema Transcendental Básico: A Auto-Reflexão Crítica O terceiro problema transcendental pode ser formulado como se segue: “Como a auto-reflexão crítica, isto é, a direção concêntrica do pensamento teórico para o eu (“I ness”) é possível, e qual é o seu verdadeiro caráter?”30 A Atitude Antitética é Indissociável do pensamento Teórico O terceiro problema transcendental nasce do reconhecimento de que a atitude teórica de pensamento é antitética, envolvendo a oposição do lógico com o não-lógico. Dooyeweerd observa que esse fato, apontado por Kant, não é superado no pensamento fenomenológico, fundado por EDMUND HUSSERL. Na fenomenologia o pensamento teórico é visto como fruto da oposição do “cogito” absoluto (no sentido de “consciência transcendental”) ao mundo como seu “Gegenstand” intencional, que é dependente do primeiro.31 Também no existencialismo, que tem raízes na fenomenologia, a existência humana é o ex-sistere histórico cuja liberdade se reduz à antítese teórica à “natureza ‘dada’ da realidade”. Em HEIDEGGER , o “Dasein” é o modo ontológico do ser contra o mundocomo-é-dado ao Dasein, como o “ôntico”.32 O que se vê é que essas formulações filosóficas pós-kantianas não conseguem romper com o fato de que o pensamento teórico introduz uma oposição polar entre o ego pensante e o “gegenstand” do pensamento. A Resposta Kantiana Apenas Ignora o Problema Na formulação Kantiana, temos um pólo subjetivo de pensamento oposto a toda a realidade empírica. Esse pólo subjetivo, como a unidade lógico-transcendental da apercepção, é o ponto de partida de todos os atos sintéticos de pensamento. Esse eu lógicotranscendental seria a condição universalmente válida do conhecimento científico, evitando-se naturalmente confundí-lo com o eu empírico e com o ato real de pensamento. Trata-se de um ponto de unidade meramente lógico. Como vimos anteriormente, o eu lógico-transcendental de Kant permanece preso no pólo lógico da relação Gegenstand, não sendo capaz de possibilitar a síntese teórica. Assim seu axioma de que a síntese procede da função lógica do pensamento não solucionou, mas apenas eliminou dogmaticamente o problema da síntese. O verdadeiro ponto de partida da síntese permaneceu oculto em sua teoria. Assim podemos dizer que o terceiro problema transcendental é ignorado por Kant.
30 Ibid,
p. 52. p. 52. 32 Ibid, p. 53. 31 Ibid,
30
A Origem da Direção Concêntrica do Pensamento Teórico Uma vez que não há, no pensamento teórico, um ponto de partida para a síntese intermodal, a direção concêntrica do pensamento não pode ter origem teórica. Ou seja: a auto-reflexão crítica não está baseada na relação Gegenstand, mas nasce do próprio ego transcendental , como centro da existência humana. Para dar ao pensamento teórico essa direção concêntrica, o eu precisa deixar o foco na diversidade do sentido cósmico (que se realiza por meio da “Gegenstand”) e se concentrar na unidade absoluta do sentido.33 Nessa nova atitude o pensamento não busca analisar e abstrair, mas identificar a fonte do significado. Naturalmente, essa direção concêntrica não é a direção do pensamento, meramente, mas do ego transcendental, o centro da existência, e seu foco é a origem absoluta do sentido; e esse sentido é também o sentido do próprio eu. Podemos dizer que tanto o auto-conhecimento como o conhecimento da origem absoluta transcendem os limites do pensamento teórico, e estão enraizados no coração. Mas isso não significa que eles não penetrem em nossa consciência. Pelo contrário, é justamente porque tal conhecimento da totalidade do sentido é impresso sobre a nossa consciência que somos capazes de realizar a síntese teórica. Assim o pensamento teórico pode focalizar essa impressão e reconhecer a direção concêntrica da síntese teórica. Dooyeweerd explica esse fato se utilizando da noção bíblica de que o autoconhecimento do homem é dependente do conhecimento de Deus. O ponto é que a análise da diversidade do sentido por meio da antítese teórica só pode nos dar descrições abstratas e desconexas da experiência temporal do homem, porque a totalidade do sentido não pode ser encontrada em uma única esfera da experiência. A totalidade do sentido está na origem absoluta do sentido; igualmente a totalidade do sentido do homem depende da origem absoluta do sentido. Se o pensamento teórico é uma das dimensões do sentido humano, como pode ele conter a totalidade? Portanto o pensamento teórico não pode por si mesmo nos levar ao autoconhecimento. Precisamos conhecer a Deus para conhecer a nós mesmos. O argumento como um todo não prova num sentido absoluto que o conhecimento religioso da origem do sentido (Deus) é necessário para o pensamento teórico, mas apenas que “... a direção concêntrica do pensamento em sua auto-reflexão não pode se originar da própria atitude teórica do pensamento, e que ela deve vir do ego como um centro individual supra-teórico da existência humana.”34 Ele não torna assim necessário que aceitemos um determinado conteúdo a respeito desse auto-conhecimento, um conjunto específico de pressuposições religiosas. Esse conteúdo pode ser debatido, mas não sua necessidade. O ponto é que a síntese teórica é estruturalmente dependente de um ponto de partida suprateórico. A Natureza Religiosa do Pensamento Teórico Do fato de que o conhecimento do ponto de partida da síntese teórico depende do conhecimento da origem absoluta do sentido, Dooyeweerd chega a uma importantíssima conclusão: o homem é um ser essencialmente religioso. Por “religião” aqui não devemos entender o fenômeno temporal da fé, meramente; não se trata aqui da linguagem religiosa, ou do sentimento religioso, ou daqueles aspectos 33 Ibid, 34 Ibid,
p. 55. p. 56.
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da prática “religiosa” que podemos descrever fenomenologicamente, mas daquele impulso inato do homem de se dirigir em busca da origem absoluta da diversidade temporal do sentido, que está focalizada concentricamente no próprio homem.35 Trata-se de uma definição filosófica de religião que não pretende esgotar a realidade, mas apenas oferecer uma aproximação conceitual. É evidente que a religião, nesse sentido totalizante, não pode ser capturada num conceito ou ser objeto de investigação direta, sendo antes o ponto de partida de toda atividade humana, incluindo a própria investigação filosófica/científica. Religião é absoluta auto-entrega; todo ser humano, incluindo aquele que se considera “secular” ou “irreligioso” precisa definir a si mesmo a partir de uma Origem absoluta do sentido, seja ela verdadeira ou não. O homem apóstata o fará absolutizando uma realidade relativa, uma falsa Origem, mas devido ao seu caráter ex-sistente jamais poderá definir-se de forma autônoma. O homem regenerado reconhecerá em Deus a Origem absoluta do sentido, e reconhecerá a si mesmo, em relação a Deus, como o ponto de concentração do sentido, irredutível a uma única dimensão de sua experiência temporal. Os diversos “-ismos” a que nos referimos anteriormente devem ser considerados ídolos teoréticos. A absolutização de certo aspecto da experiência temporal tornando esse aspecto a Origem absoluta do sentido é uma operação supra-teórica, na qual o ego transcendental busca definir sua identidade a partir do ídolo. Uma vez realizada a absolutização, uma síntese entre o aspecto lógico e o aspecto não-lógico absolutizado é tratada como o ponto de partida da síntese teórica, de modo que todo o resultado do pensamento teórico passa a ser determinado reducionisticamente a partir desse ponto de partida artificial. Assim a direção concêntrica do pensamento teórico é de uma origem religiosa; pois o coração (o “ego transcendental”), no qual participamos do ponto de partida supra-teórico da síntese teórica, tem um caráter ex-sistente, buscando definir-se a partir de uma Origem absoluta do sentido: o Arché do cosmo e do homem. O conhecimento do Arché dá ao homem o autoconhecimento. Segue-se também daí que a auto-reflexão crítica pode apenas apelar para o autoconhecimento, mas não estabelecê-lo. E é inútil tentar fundamentar teoreticamente o caráter religioso desse autoconhecimento, pois qualquer prova teorética de qualquer tipo sempre pressupõe um ponto de partida central para o pensamento, que nada mais é além de uma autocompreensão específica baseada num determinado Arché.36 O Caráter Supra-individual do Ponto Arquimediano do Pensamento A crítica transcendental nos levou a estabelecer a natureza intrinsecamente religiosa do ponto de partida, ou ponto Arquimediano do pensamento teórico, e o caráter exsistente do “ego transcendental”. Mas seria esse ego individual o ponto Arquimediano do pensamento teórico? Nesse ponto Dooyeweerd chega ao que ele considera o “estágio final e decisivo da nossa crítica transcendental”.37 O ego transcendental, para realizar os atos sintéticos de pensamento, deve participar do ponto Arquimediano, onde obtém o insight na unidade profunda do sentido cósmico. Mas esse ego individual meramente concentra o sentido de nossa existência individual, não de todo o cosmo temporal, não podendo ser identificado 35 Ibid,
p. 57. p. 59. 37 Ibid, p. 59. 36 Ibid,
32
com o ponto Arquimediano. Esse ponto é algo acessível a muitos indivíduos, e não apenas um. Assim é de um caráter comunitário, supra-individual. Desse modo o verdadeiro autoconhecimento envolve não apenas o reconhecimento do caráter ex-sistente do ego em relação ao Archv , mas também em relação aos outros egos que vem da mesma Origem e compartilham do mesmo ponto Arquimediano. Nosso “eu” está assim “enraizado na comunidade espiritual da humanidade”38, existindo dentro do “nós” e em relação ao Tu divino. Nesse sentido o mandamento central do amor (“Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e com todas as tuas forças, e ao teu próximo como a ti mesmo”) tem um sentido religioso profundo que transcende a própria dimensão ética da sociedade. Ele envolve o reconhecimento do próximo como um membro da comunidade religiosa humana em seu relacionamento radical com Deus, como um ser criado à sua imagem. O reconhecimento da natureza religiosa do homem e do caráter comunitário do ponto Arquimediano exigem uma nova concepção da comunidade humana. Somos levados assim a considerar as comunidades humanas como comunidades espirituais, no sentido de que elas são movidas por um poder espiritual interno, ligado à sua forma de conceber a Origem da vida humana e do cosmo. O exame desse problema nos leva à última etapa da crítica transcendental de Dooyeweerd.
38 Ibid,
p. 60.
33
IV.
AS RAÍZES RELIGIOSAS DO PENSAMENTO OCIDENTAL
Uma comunidade espiritual é unida por um espírito comum, um duvnami que controla ativamente a vida dessa comunidade. Dooyeweerd denomina esse poder o motivobase religioso (“religious ground-motive) da cultura. Os motivos-base são as forças motivadoras que dominaram a evolução da cultura, da ciência e da filosofia ocidental. Cada um deles estabeleceu uma comunidade espiritual entre aqueles que o iniciaram, e permaneceu oculto como o princípio espiritual subjacente de toda a produção cultural. Nesse sentido, os pensadores ocidentais muitas vezes foram dominados por um determinado motivo-base sem nem mesmo terem consciência disso; na verdade, o sentido religioso dos motivos base está além do alcance desses pensadores justamente porque toda explicação histórica em si mesma pressupõe um ponto de partida central e supra-teórico que é dado justamente por um motivo-base religioso!39 As Duas Cidades Assim como AGOSTINHO propõe em sua obra “A Cidade de Deus” (Civitas Dei), Dooyeweerd afirma que existem duas orientações religiosas fundamentais, correspondendo a dois poderes espirituais centrais que estão operando no coração do homem. A primeira é a dinâmica do Espírito Santo, que direciona o homem e com ele toda a criação para a reconciliação com Deus. Por meio dessa dinâmica o coração do homem é levado à Origem transcendente de todo sentido. A segunda é o espírito da apostasia, que distancia o homem de Deus e direciona seu coração para o horizonte temporal da experiência, para que ele adore a um ídolo. Esses dois poderes caracterizam as “duas cidades” que coexistem em luta até à consumação dos séculos: a cidade de Deus, que é a comunidade espiritual dos regenerados, sob o poder do Espírito Santo, e a cidade do homem, ou a comunidade espiritual apóstata, sob o poder do espírito de apostasia. Os dois poderes se revelam em motivos religiosos fundamentais, que são os motivos-base da cultura ocidental. Provavelmente com base no trabalho de DIRK T. H. VOLLENHOVEN, Dooyeweerd descreveu o desenvolvimento histórico da cultura ocidental como sendo governado por quatro grandes motivos-base, que adquiriram poder sócio-cultural e assim dominaram a evolução da cultura ocidental40. Esses motivos-base não devem ser confundidos com temas filosóficos ou “motifs”, como se eles fosse de um caráter teórico; meros conceitos ou idéias inspirativas. Para Dooyeweerd eles seriam realmente motivos, no sentido de princípios dinâmicos, poderes capazes de controlar a cultura por meio do centro religioso do homem.41 O motivo-base bíblico criação-queda-redenção é o motivo que caracteriza a cidade de Deus. Os outros três são motivos-base apóstatas, de caráter dualista, que caracterizam a cidade do homem. São eles: (1) o motivo-base forma/matéria, da filosofia grega antiga, (2) 39 Ibid,
p. 61. Dooyeweerd, “Twilight”, p. 35. 41 Brümmer, “Transcendental Criticism”, p. 92. “Assim também o motivo -base bíblico não é um motivo teórico elaborado através da teologia dogmática e exegese teórica da Bíblia. Pelo contrário, Dooyeweerd o chama de “chave para compreender a Sagrada Escritura”, a condição a priori para toda exegese correta da Bíblia.” Ibid. 40
34
o motivo-base natureza/graça, da síntese escolástica medieval, e (3) o motivo-base natureza/liberdade, da cultura moderna e contemporânea. O Caráter Dialético dos Motivos-Base A diferença fundamental entre o motivo-base bíblico e os motivos-base apóstatas é que o primeiro tem um caráter integral, do ponto de vista ontológico, e os últimos são irrecuperavelmente dualistas.42 A razão disso é que eles são frutos da composição de dois motivos base contraditórios, num processo permanente e insolúvel de tensão. Há basicamente dois tipos de dialética: aquela que é produto da absolutização de uma dimensão relativa da experiência e aquela que é produto da tentativa de síntese entre o motivo bíblico com um motivo apóstata. No primeiro caso, o que ocorre é que, desde que o significado modal de cada aspecto da experiência só pode se revelar numa correlação inquebrável com todos os outros aspectos, a tentativa de absolutizar um aspecto do sentido cósmico encontrará firme resistência dos outros. Assim, “todo ídolo que foi criado pela absolutização de um aspecto modal evoca seu contra-ídolo”43, isto é, uma oposição polar permanente e insolúvel. O segundo tipo de dialética não é exatamente fruto da absolutização de um aspecto da experiência, mas da tentativa de fundir uma concepção desse tipo com o motivo-base bíblico integral. Nesse caso a tensão também é insolúvel, pois o motivo bíblico, sendo integral, resiste a ser interpretado a partir de um motivo idólatra e reducionista. É importante destacar que a dialética religiosa que caracteriza os motivos-base é diferente da dialética teórica. Na atitude teórica do pensamento, há uma antítese intermodal que é fruto da abstração, mas essa antítese é superada quando o ego transcendental usa o ponto de partida religioso como referência para a síntese intermodal. Mas pontos de partida religiosos opostos, dividindo o próprio ego central, não podem ser sintetizados. Conseqüentemente, o dualismo que eles produzem no interior do pensamento teórico não pode ser superado teoreticamente; pois não resta um ponto de concentração único do sentido cósmico para que o ego realize a síntese teórica! A primazia alternada dos motivos base opostos gera uma competição permanente entre sucessivas escolas de pensamento sem que haja solução, pois a antítese religiosa é insolúvel. O Motivo-Base Matéria/Forma A filosofia grega foi dominada pelo motivo-base da dialética matéria X forma. Essa oposição polar, presente desde o início da filosofia grega, era fruto do encontro, ocorrido por volta do século X A.C. da religião pré-homérica da vida/morte com a jovem religião cultural dos deuses olímpicos. A religião pré-homérica era uma forma primitiva de culto à natureza, ou à “mãe terra”. Essa religião cultuava o fluxo orgânico da vida e da morte deificando a dimensão biológica/sexual da experiência. O motivo central dessa religião era “... a fonte informe da vida fluindo eternamente através do processo de nascimento e declínio de tudo o que existe em uma forma corpórea.”44 Assim as formas definidas de criaturas individuais são 42
Dooyeweerd, “Twilight”, p. 35. p. 36. 44 Ibid, p. 39. 43 Ibid,
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realidades secundárias, temporárias, sendo o fluxo da vida orgânica a realidade última. Dooyeweerd ilustra essa visão de mundo com as palavras de A NAXIMANDRO: “A Origem (divina) de todas as coisas é o apeiron (isto é, aquilo que não tem uma forma limitante, definitiva). As coisas retornam àquilo que as originou conforme o seu destino. Pois elas pagam uma à outra a penalidade e a retribuição de sua injustiça na ordem do tempo.”45
A existência individual numa forma limitada é uma “injustiça”, desde que essa existência é sustentada ao custo de outra; desse modo a vida de um é a morte do outro. Temos assim a religião da matéria, ou hyle, da qual nascem todos os elementos da diversidade cósmica, todos eles secundários e temporários, sujeitos às forças cegas de Anangke, o “destino”, que as submergirá finalmente na hyle, de onde vieram.46 O motivo da forma (morphé) é o centro da religião Olímpica. Segundo HESÍODO em sua Teogonia, o motivo-base da forma nasceu da dialética anterior do caos e do cosmos. A religião Olímpica era centrada na harmonia, na beleza e na permanência eterna. Essa é a situação dos deuses, que tem uma forma eterna idealizada. Essa visão dos deuses teria se originado na deificação do aspecto cultural da vida grega – daí o fato de a religião Olímpica ser a religião oficial do Estado, como forma de sustentar a vida política. O motivo base da “forma” tentou absorver o antigo motivo da “matéria”, mas essa assimilação não foi bem sucedida, porque a partir da religião olímpica não era possível tratar adequadamente vários problemas da vida que transcendiam à razão e ao poder cultural (como a morte, a vida e a moral). Assim surgiu uma tensão dialética insolúvel dentro da cultura grega.47 Os pensadores gregos revezavam-se dando primazia ora ao motivo da “forma”, ora ao motivo da “matéria”. Os filósofos Jônios anteriores (TALES, A NAXIMANDRO e A NAXÍMENES) buscavam encontrar na matéria informe o arché de todas as coisas. Assim identificaram a hyle como physis (natureza), a totalidade de todas as coisas. A escola pitagórica favoreceu a “forma”, identificando o número com a essência da realidade. Demócrito, criador da teria atômica, favoreceu a “matéria”. Os eleáticos (XENÓFANES, PARMÊNIDES) favoreceram a forma, e HERÁCLITO tentou sintetizar o motivo da matéria com o conceito de logos. PARMÊNIDES desenvolveu uma metafísica da forma na qual há uma oposição entre o ser e o devir, sendo a theoria o elemento fluido do ser que está no devir e leva ao conhecimento da realidade última do ser. Os sofistas introduziram o conceito de nomos em oposição ao de physis, enfatizando com isso a “ordem” em oposição ao “caos”. E assim, sucessivamente, fizeram-se tentativas de explicar a realidade que não puderam escapar da dialética religiosa fundamental que dominou a cultura grega. 45 Ibid,
p. 39. GOUVEIA observa aqui a existência de uma outra dialética religiosa anterior à matéria-forma, detectada, segundo ele, por V OLLENHOVEN: “Esta outra dialética, anterior à própria filosofia grega, é a dialética entre o poder divino estável representado pelo fluxo de energia da Mãe-terra e o poder instável e incontrolável de Anangke, o fado, a fatalidade que nos carrega pela vida. Estabilidade e instabilidade, equilíbrio e desequilíbrio, aqui se contrapõe. A filosofia Jônia da physis já surgiu sob o estigma da necessidade de uma síntese satisfatória para esta dialética.” Gouveia, “Fundamentos de Filosofia Reformacional”, p. 4. 47 “É por isso que a jovem religião Olímpica era apenas aceita como a religião pública da polis grega, a cidade-estado. Mas em sua vida privada os gregos continuavam a sustentar os velhos deuses terrenos da vida e da morte.” Dooyeweerd, “Twilight”, p. 40. 46
R ICARDO
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Somente em PLATÃO e ARISTÓTELES a polaridade entre os motivos da “matéria” e da “forma” chega a uma estabilidade com a assimilação do motivo da “matéria” no da “forma”. A matéria deixa assim de ser considerada divina, e a forma passa a ser considerada a realidade última e divina. Naturalmente nesse momento a filosofia grega abandonou totalmente as formas mitológicas, herdando apenas a estrutura da idéia de forma. Daí o surgimento da metafísica, como uma ciência do “ser -em-si” invisível e imutável, em oposição à realidade visível e mutável. Assim em PLATÃO temos o mundo das formas, as realidades ideais que são percebidas pela mente e que estão variadamente presentes na matéria. Esta é considerada ontologicamente inferior. Assim o homem é composto de alma racional e matéria, sendo sua essência básica de natureza ideal. Em ARISTÓTELES essa cosmovisão é mais desenvolvida. Temos assim que a substância natural se dirige para a perfeição, que é a sua forma e que a substância já possui potencialmente. Deus é o ato puro porque ele é a forma totalmente realizada, “presente”. A substância não-divina é aquela na qual a forma não está totalmente realizada. Assim os seres se diferenciam pelo diferente grau de participação na sua forma potencial. A forma é o arché, a realidade última e divina, e a matéria é o devir, passando pela transformação em busca da realização do potencial. É notável como o fluxo orgânico da natureza passou de divindade a imperfeição dentro do pensamento grego! No entanto, como fica evidente, permanece uma oposição entre a matéria e a forma, sendo a primeira imperfeita e mutável e a última divina e eterna. O conceito grego de physis traz dentro de si essa compreensão dualista da realidade, interpretando a natureza como uma cadeia-do-ser na qual a perfeição da existência varia do não-ser ao ser pelos graus de participação na “forma” divina. Essa forma seria em si mesma racional. O Motivo-Base Bíblico Criação-Queda-Redenção O motivo-base bíblico nasceu da revelação redentiva de Deus ao homem, consumada na pessoa de Jesus Cristo e aplicada pelo Espírito Santo. Essa revelação nos fornece as estruturas fundamentais de uma cosmovisão cristã. Em primeiro lugar, ela reconhece todo o cosmo como criação de Deus. Deus é a única origem absoluta, tendo uma diferença qualitativa infinita em relação à sua criação. Essa criação é ordenada pela vontade do Criador e reflete a sua glória, de modo que em sua estrutura há uma ordem de leis, ou cosmonomia, uma ordem de desenvolvimento, ou cosmocronologia, e uma coerência-nadiversidade de seus elementos. Essa criação é completa e intrinsecamente boa. O homem, como parte da criação, está sujeito à cosmonomia, mas em seu centro a transcende em direção a Deus, e foi posto na terra com a função de glorificar a Deus revelando pelo trabalho os potenciais que Ele colocou na criação. A queda do homem alienou toda a criação de Deus. Isso não destruiu a própria estrutura da criação, nem tornou nenhum de seus aspectos essencialmente maligno, mas a colocou numa direção de apostasia. O homem pecou rejeitando o culto a Deus e elegendo criaturas como seus deuses. Desde que a queda foi total, o homem distorce todas as suas ações e pensamentos tendo em vista a idolatria: tornou-se uma fabrica idolorum. A redenção, consumada por Jesus Cristo, envolve a recriação do homem, como novo Homem em si mesmo, e, com isso, o redirecionamento da criação para Deus. A redenção não significa o acréscimo de uma graça especial, mas simplesmente, em sua essência, a reconstituição do propósito original de Deus. Tudo o que foi criado é objeto do amor redentivo de Deus, que tem um alcance integral. A missão da igreja é, ao lado de
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Cristo, realizar o plano criacional de Deus numa Nova Criação, e esse propósito deve se manifestar desde já na cooperação da igreja com Cristo para o desvelamento das riquezas que ele pôs na criação, por meio da atividade cultural em todos os níveis da vida, a partir da fé no evangelho. O Motivo-Base Escolástico Natureza/Graça Na primeira fase do pensamento cristão, quando a influência de Agostinho ainda era dominante, o motivo base bíblico era adequadamente compreendido, mas ficou restrito à teologia dogmática. AGOSTINHO rejeitava a autonomia religiosa do pensamento teórico, mas identificou errôneamente a teologia com a filosofia cristã. Assim a teologia funcionava como a “regina scientiarum”, a rainha das ciências. Segundo Dooyeweerd, a idéia de colocar a teologia como a rainha das ciências teria se originado da metafísica aristotélica.48 Numa segunda fase, iniciada com o escolasticismo e, principalmente, com a teologia de TOMÁS DE AQUINO, a filosofia e a dogmática foram distinguidas. Entretanto, a teologia escolástica mantinha uma compreensão deficiente da queda; segundo eles, no estado de perfeição original o homem trazia uma natureza boa e além isso um dom sobrenatural. Na queda o homem teria perdido o dom sobrenatural da graça, mas sua natureza teria permanecido capaz. Assim a redenção não era vista essencialmente como uma recuperação da natureza, mas como um retorno da graça original; uma espécie de donnum supperaditum. Desse modo devemos entender o famoso dito escolástico: “Gratiam naturam non tollit, sed perficit” (a graça não cancela a natureza, mas a aperfeiçoa). Com base nessa cosmovisão, os escolásticos acreditavam que a razão natural, a despeito da queda, continuava com suas capacidades originais, sendo incapaz apenas de refletir sobre realidades divinas, que devem ser recebidas na revelação, por meio da fé. Desse modo, a fé deve orientar a razão para que essa compreenda as verdades do evangelho, mas tal orientação não é necessária para que a razão compreenda a natureza!
Graça Natureza
Esfera sobrenatural Esfera natural
Revelação, fé, teologia Fatos naturais, razão, filosofia
A interpretação tomista da relação entre razão e fé estava pois profundamente ligada à uma visão sobre a queda e a redenção que não fazia justiça ao motivo-base bíblico. Nessa visão não há um ponto de contato real entre a esfera “natural” e a esfera “sobrenatural”, que é a esfera da graça. A esfera da natureza é vista como uma realidade autônoma. É verdade que na síntese Tomista a razão natural não deveria contradizer explicitamente as verdades sobrenaturais da doutrina da Igreja, baseadas na revelação.49 Entretanto, tratava-se 48
Dooyeweerd, “Twilight”, p. 43. “Certamente, a Igreja Católica Romana não podia incorporar o motivo bas e grego em sua própria visão da natureza sem revisão. Desde que a igreja não poderia aceitar uma origem dual para o cosmos, ela tentou harmonizar o motivo grego com o motivo escriturístico da criação. Uma das primeiras consequências dessa acomodação foi que o motivo forma-matéria perdeu seu sentido religioso original. Mas devido à tentativa de reconciliação com o motivo grego da natureza, o catolicismo Romano roubou do motivo bíblico da criação o seu escopo original.” “Para a mente grega nem a matéria do m undo nem a forma pura invisível poderiam ter sido criados. No máximo alguém poderia admitir que a união de forma e matéria foi possibilitada pela razão divina, o arquiteto divino que formou o material disponível. De acordo com Tomás de Aquino, o doutor medieval da igreja, a matéria concreta dos seres perecíveis foi criada simultaneamente com sua forma concreta. Entretanto, 49
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de uma mera acomodação exterior, uma vez que os pressupostos religiosos fundamentais já haviam sido comprometidos. Como resultado dessa compreensão, Tomás de Aquino buscou como interpretação da realidade criada uma idéia de natureza derivada da razão natural, considerada competente para a obtenção de tal idéia. Essa idéia foi encontrada na metafísica de Aristóteles. Assim Tomás adaptou a idéia grega de physis à idéia bíblica de redenção, introduzindo um novo dualismo polar: o dualismo natureza/graça. Esse dualismo se carateriza pela tentativa de síntese entre o dualismo grego matéria/forma com a cosmovisão bíblica. Essa síntese criou dois problemas fundamentais: (1) em primeiro lugar, as tensões do dualismo grego foram introduzidas dentro da teologia cristã, trazendo uma série de distorções; (2) a ausência de ponto de contato entre a natureza e a graça, e a visão inadequada de queda conferiram à “natureza” uma autonomia em relação à graça. Assim o motivo da “criação” foi lançado num processo de secularização no qual as estruturas criacionais – da natureza – foram progressivamente desvinculadas de seu significado bíblico, gerando-se concepções secularizadas da arte , da filosofia, da política, etc. Francis Schaeffer descreve esse processo com uma figura sugestiva: segundo ele, quando deixada autônoma, “a natureza devora a graça”. Um exemplo do impacto do dualismo grego no interior do pensamento escolástico é a doutrina de que o homem seria composto de “alma racional” e “corpo material”. A característica essencial da alma seria a racionalidade. Isso favorecia o desprezo pelas dimensões “corporais” da vida humana, e por essa razão encontramos na idade média uma atitude negativa dentro do cristianismo para com o prazer, o cuidado do corpo, as atividades artesanais e técnicas, e uma supervalorização das atividades contemplativas. O estereótipo de espiritualidade era o monge, aquele indivíduo isolado da vida “material” e dedicado à contemplação. O motivo base natureza/graça continha em seu interior uma dialética insolúvel. Essa dialética poderia levar à negação de um dos termos: a natureza poderia “devorar” a graça, com uma total negação do evangelho, ou a ênfase na graça poderia levar ao desprezo pela natureza e à busca mística das formas puras, ou a um equilíbrio instável no qual todos os pontos de contato entre a natureza e a graça fossem rompidos, de tal modo que as duas esferas se tornassem inteiramente independentes uma da outra. Segundo Dooyeweerd, a única força capaz de manter esse síntese aparente foi a autoridade doutrinal da Igreja, sendo que constantemente a síntese foi negada por “heresias”.50 A “Grande Síntese” medieval começou a se desintegrar no século XIV, ao final da idade média, quando se iniciou um movimento liderado pelo franciscano inglês WILLIAM DE OCKHAM (1280-1349). O movimento é geralmente chamado de “nominalismo”, e marcou o princípio do período moderno da cultura ocidental. Ockham negou a existência de qualquer ponto de contato entre a natureza e a graça. Ele estava consciente de que a visão grega da natureza estava em contradição com a Bíblia. Enquanto Tomás acreditava que Deus ordenou o mundo a partir de formas eternas que estavam em sua mente, Ockham enfatizava que tudo foi criado pela soberania de Deus, que ele entendia como uma arbitrariedade despótica: a potestas absoluta. Por exemplo: enquanto que Tomás via o nem o princípio da matéria (o princípio do eterno nascimento e decadência) nem o princípio puro da forma (o princípio da perfeição) foram criados. Eles seriam dois princípios metafísicos de toda existência perecível, mas com respeito à sua origem Tomás ficou em silêncio.” Dooyeweerd, “Roots of Western Culture”, p. 118. 50 Ibid, p. 137.
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decálogo como uma verdade ideal, que podemos descobrir pela luz natural da razão, e que estaria na mente eterna de Deus, Ockham acreditava que os dez mandamentos não tinham qualquer base racional; eles teriam sido simplesmente estabelecidos pela vontade de Deus. O que se vê é que Ockham negou a existência de qualquer ponto de contato entre a natureza e a graça. Não se pode partir da luz natural da razão e explicar a graça. Assim ele rejeitou totalmente o projeto de uma “teologia natural”, caro a Tomás. Rejeitou também que a sociedade humana devesse ser organizada conforme o ensino sobrenatural da igreja católica. A posição de Ockham foi muito combatida pelo papa João XXII, mas ele já estava muito enfraquecido pelo exílio em Avignon e por sua dependência do rei da França. Assim muitos pensaram que a síntese católico-romana tinha sido destruída para sempre. Isso criou um novo momento para a cultura ocidental: “O futuro apresentava apenas duas opções: alguém poderia retornar ao motivo -base escriturístico da religião cristã ou, em linha com o novo motivo da natureza separado da fé da igreja, estabelecer uma visão moderna da vida concentrada na religião da personalidade humana. O primeiro caminho levou à Reforma; o segundo levou ao moderno humanismo. Em ambos os movimentos os efeitos do motivo católico romano da natureza/graça continuaram a ser sentidos por um longo tempo.” 51
A Reforma Protestante FRANCIS SCHAEFFER observa que “o rei que levou Leonardo (da Vinci) para a França no final da sua vida foi Francis I, o mesmo rei a quem Calvino endereçou suas Institutas. É assim que chegamos a um cruzamento entre o Renascimento e a Reforma.”52 A reforma nasce dentro do renascimento, mas tem um ethos bastante diferente. Em primeiro lugar, os reformadores repudiavam a noção católica e humanista de uma queda incompleta. Para os reformadores, a queda havia sido total. Não havia assim qualquer possibilidade de autonomia para o ser humano. Não havia autonomia na questão da autoridade final para a fé; eles negavam que a Palavra de Deus devesse estar sujeita à razão ou ao magistério da igreja católica. A salvação também dependia totalmente de Deus, para que ele recebesse toda a glória. Mas isso não significou de modo algum que a dignidade da criação e do próprio homem foi negada. Para os reformadores “tudo o que Deus criou é bom”, de tal modo que o cristianismo não poderia ser isolado da vida comum. Tanto Lutero como Calvino afirmaram que a vida cristã não poderia mais ser vivida dentro de mosteiros. O cristianismo monástico não poderia ser superior ao cristianismo do sapateiro, porque não havia uma esfer a ideal “superior” à esfera “natural”. O cristianismo não é um dom sobrenatural, mas a renovação da própria natureza. Podemos dizer com isso que a reforma significa tanto uma ruptura com o dualismo escolástico natureza/graça, para uma visão integral da criação e da salvação, como um visão bíblica do homem, como um ser digno, criado à imagem de Deus, mas também caído, incapaz de existir em autonomia. O humanismo foi muito além, afirmando a singularidade humana, mas secularizando essa noção e separando-a das idéias de imago Dei e de queda. A natureza radicalmente bíblica do pensamento reformado é revelada na atitude dos reformadores para com a filosofia grega. Sabe-se que todos manifestavam certa reserva 51 Ibid, 52
p. 139. Schaeffer, “A Morte da Razão”, p. 31.
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contra a filosofia, principalmente pelo reconhecimento de que a fusão escolástica da teologia com a filosofia foi prejudicial à igreja. Um exemplo dessa atitude é o próprio Lutero: “É um erro dizer que um homem não pode tornar -se teólogo sem Aristóteles. A verdade é que não pode tornar-se teólogo sem se livrar de Aristóteles. Em resumo, comparado com o estudo da teologia, o todo de Aristóteles é como a escuridão para a luz.” 53
Assim também Calvino rejeitava a especulação metafísica escolástica, e especialmente sua aplicação à teologia. Essa atitude, no entanto, não deve ser compreendida como uma espécie de isolacionismo cultural. Os reformadores tinham uma grande preocupação com o modo dos cristãos viverem no mundo, desenvolvendo orientações para a vida política, profissional, financeira, etc. Naturalmente, a reflexão reformada sobre esses assuntos não foi uniforme, havendo nítida diferença entre as posições anabatista, luterana e calvinista. O exame dessas posições mostra que elas estão ligadas à influência de diferentes motivos-base. Lutero esteve, no princípio de sua peregrinação teológica, sob a influência do Ocamismo, tendendo assim a distinguir e a polarizar vida natural e vida espiritual. 54 Lutero admitia a realidade e profundidade da queda, mas era difícil encaixar a doutrina no esquema teológico ocamista, que radicalizava a polaridade entre as esferas da natureza e da graça, tratando a esfera da “graça” como totalmente separada da natureza. Isso refletiu-se de diversas formas no pensamento de Lutero. Por exemplo em sua concepção da Lei. Lutero tendia a tratar a lei como uma espécie de “mal necessário”, ou como uma realidade que não podia ser reconciliada com a graça. Daí o dualismo entre Lei e Graça dentro da teologia luterana.55 Igualmente, Lutero não desenvolveu nenhuma visão de reforma integral da sociedade a partir do evangelho. Em sua concepção de poder político, por exemplo, Lutero chega a definir os limites entre igreja e estado, em oposição às concepções católicas e anabatistas56, com a doutrina dos “dois reinos”: “Pois Deus estabeleceu dois tipos de governo entre os homens. Um é espiritual; não tem espada, mas tem a palavra, por meio da qual os homens devem tornar-se bons e justos, para que, mediante essa retidão, possam alcançar a vida eterna. Ele administra essa retidão mediante a palavra, que confiou aos pregadores. O outro tipo é o governo mundano, que 53
George, Timothy, “A Teologia dos Reformadores”, p. 59. “Os epítetos dados por Lutero à razão eram tão severos – a Meretriz do Diabo, a besta, a inimiga de Deus, Frau Hulda – que seus críticos muitas vezes o rotularam de irracionalista.” Isso não é exato , no entanto. O que Lutero negava era o uso da filosofia para resolver os problemas teológicos. 54 “Lutero deu os primeiros passos teológicos com os escritos do teólogo nominalista Gabriel Biel, de cujos discípulos havia aprendido em Erfurt. Biel encontrava-se numa tradição bem estabelecida, que incluía Guilherme de Occam e Duns Scotus.” Ibid, p. 67. 55 Na teologia luterana a vida sob a graça é considerada como independente da lei, no sentido de que a lei deixa de ser o princípio orientador da vida. Se o cristão ainda pratica a lei, é para expressar o amor ao próximo, mas não porque a lei seja fundamental à existência sob a graça. “Sob a influência de Occam, Lutero roubou da lei como a ordenança criacional o seu valor ...” Dooyeweerd, “Roots”, p. 140. 56 “Se os católicos confundiam os dois reinos na direção de uma teocracia papal, os anabatistas separavam muito precisamente os reinos em nome do separatismo religioso. Considerando literalmente a injunção de Cristo à não-resistência (Mt 5.39), os anabatistas recusavam-se a participar dos poderes coercitivos do Estado. Em oposição aos reformadores pacifistas, Lutero insistia na origem divina do Estado, nos limites de seu poder e na base para a participação do cristão em sua atividade coercitiva.” Timothy, “Reformadores”, p. 100.
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opera por meio da espada, a firme de que os que não desejam tornar-se bons e justos para a vida eterna sejam forçados a tornar-se bons e justos aos olhos do mundo. Ele administra essa retidão mediante espada.”57
Embora haja uma nítida e adequada distinção entre o poder da igreja e o poder do Estado, não há em Lutero qualquer reconhecimento de uma estrutura criacional sob ou no Estado, de tal modo que a atividade política seja vista como uma das dimensões da prática evangélica. Antes, o Estado é uma realidade paralela, a “mão esquerda de Deus”, com a qual Ele trata o mundo. Assim, “se o mundo inteiro fosse composto de cristãos, não haveria necessidade de príncipes, reis, espadas ou leis.”58 Os cristãos deveriam aceitar responsabilidades cívicas pelo bem do próximo, mas essas atividades não seriam reguladas diretamente pelo evangelho, consistindo numa responsabilidade “paralela”. Observou-se posteriormente que na tradição luterana a influência da fé cristã sobre a atividade política declinou progressivamente, emudecendo sua voz profética.59 Essa aversão à atividade política é vista, também na eclesiologia luterana. Para Lutero coisas como uma “lei eclesiástica” e “disciplina eclesiástica” pareciam mundanas. Afinal, o assunto do evangelho é a graça, a fé, e o amor, realidades difíceis de reconciliar com a “Lei”. Assim Lutero definia a igreja verdadeira a partir da presença da Palavra de Deus e dos Sacramentos, deixando a organização estrutura da igreja e as questões disciplinares para o Estado. A perspectiva Calvinista sobre o assunto era nitidamente diferente. TIMOTHY GEORGE, apoiando-se em Heiko Oberman, afirma que “o elemento relativamente mais progressista no conceito reformado de Estado podia ser remontado à visão de Calvino acerca de Deus como Legislador e Rei; disse ainda que a lei de Deus não estava limitada à congregação apenas, mas estendia-se também etiam extra ecclesiam: mesmo além da igreja.”60 De fato, como um elemento fundamental do pensamento calvinístico, está a noção da reforma do Estado, a partir das Escrituras, praticada pelos calvinistas holandeses e principalmente pelos puritanos ingleses. Essa perspectiva diferente refletiu-se também diversamente na teologia de Calvino. Assim, ao contrário de Lutero, ele considerava a Lei um aspecto fundamental da vida sob a graça, e a disciplina eclesiástica uma das marcas indispensáveis da verdadeira igreja. O que exatamente diferenciava esses dois Reformadores? É certo que ambos rejeitaram a filosofia escolástica e procuraram construir a doutrina cristã partindo unicamente da Bíblia. Entretanto, Lutero não foi totalmente consistente com o motivo-base bíblico, permitindo que o dualismo escolástico natureza/graça condicionasse a sua teologia. Assim ele deixava os aspectos “mundanos” da vida para serem guiados pela “luz natural da razão”. Já Calvino, livre do background ocamista, aplicou consistentemente o motivo-base bíblico, exigindo que as Escrituras guiassem todas as dimensões da vida, incluindo a vida política. Desse modo, em Calvino, a “graça” não fica separada da “natureza”, negando-se qualquer base para a autonomia humana. A fraqueza básica do pensamento Luterano é vista nos acontecimentos que se sucederam à reforma. FELIPE MELANCHTON (1497-1560), discípulo de Lutero, foi um dos principais sistematizadores da teologia luterana. Melanchton era um pensador humanista, 57
“Luther Works” 46, p. 99. Citado por: Timothy, “Reformadores”, p. 99. p. 100. 59 Ibid, p. 101. 60 Ibid, p. 242. 58 Ibid,
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amante da cultura clássica e, em especial, de Aristóteles. Insatisfeito com o dualismo ocamista entre a natureza e a graça, ele propôs uma nova síntese, utilizando as categorias aristotélicas para elaborar a teologia de lutero. Sua obra deu início a uma nova fase da reforma denominada “escolasticismo protestante”, paralelamente ao escolasticismo medieval. Perpetuando dentro do protestantismo o motivo-base católico natureza/graça, o escolasticismo logo se veria em crise com o surgimento de diversas teorias diferentes a respeito do que seria a natureza. O progressivo abandono do aristotelismo na filosofia européia, e a universalização do novo motivo-base natureza/liberdade finalmente conduziram a uma nova síntese no pensamento cristão, quando, à semelhança de Tomás de Aquino, teólogos protestantes procuraram sintetizar o motivo-base humanista com a teologia evangélica. Dessa síntese surgirá a teologia liberal européia, a partir do final do século XVIII . Podemos dizer assim que a aceitação, dentro do protestantismo, do dualismo escolástico, foi a principal responsável pela secularização da cultura européia. No calvinismo o motivo-base bíblico existiu por muito tempo numa tensão mortal com o dualismo escolástico católico e com o dualismo humanista, assumindo uma função essencial para a constituição da cultura ocidental moderna. Embora o calvinismo tenha permanecido íntegro por mais tempo que a teologia luterana, ainda no século XVII tem início a síntese com Aristóteles, em FRANCIS TURRETIN, e mentalidade humanista começa a afetar as dimensões política e econômica das sociedades calvinistas. Somente na metade do século XIX, na holanda, o espírito integral do calvinismo começa a ser recuperado com GROEN VAN PRINSTERER e ABRAHAM K UYPER . O Motivo-Base Humanista Natureza/Liberdade Após a ruptura da grande síntese, surgiu a possibilidade de uma nova interpretação do homem e de sua relação com o cosmo. A Renascença, enquanto movimento cultural, tinha como preocupação básica o “renascimento” do homem de uma forma exclusivamente natural. O “novo tempo” envolvia o surgimento de um “novo homem” que “tomaria o seu destino em suas próprias mãos e não mais seria fielmente devotado às autoridades.”61 Inicialmente não era claro que o humanismo renascentista teria tendências anticristãs. Homens como ERASMO (1466-1536), R ODOLPHUS AGRÍCOLA (1443-1485) e HUGO GROTIUS (1583-1645) representavam uma variedade cristã de humanismo, prestando homenagem às Escrituras. Entretanto seu impulso básico envolvia um intenso diálogo com a cultura Greco-romana rejeitando-se os danos ocorridos pela acomodação ao cristianismo na idade média. Os humanistas “bíblicos” viam o cristianismo mais como um código moral do que como um caminho de redenção do pecado; assim colocavam a dignidade humana no centro da atenção religiosa. É verdade que tal visão do homem recebeu inspiração na noção bíblica do homem como imago Dei; mas essa noção foi abstraída do contexto bíblico e do motivo bíblico triádico, sendo interpretada a partir de uma concepção grega do homem como ser racional. Assim nasceu o motivo humanista da liberdade, como a natureza essencial do homem, que Dooyeweerd denominou ideal de personalidade.
61 Ibid,
p. 149. “A raiz religiosa mais profunda do movimento da Renascença era a religião humanística da personalidade humana em sua liberdade (de cada fé que reivindica compromisso) e em sua autonomia (isto é, a pretensão de que a personalidade humana é uma lei para si mesma).” Dooyeweeerd, “Roots”, p. 149.
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O novo motivo religioso estava inseparavelmente ligado a uma nova visão da natureza.62 O humanismo renascentista separou sua concepção de natureza da idéia grega do destino ou fado, presente na idéia grega de physis, e da doutrina cristã da depravação radical da natureza. Profundamente consciente de sua autonomia, o homem moderno passou a ver a natureza como a arena das explorações e realizações de sua personalidade livre, o campo de possibilidades no qual a liberdade humana poderia ser realizada. Assim o homem passa a se ver como o dominador da natureza, tendo o poder de controlá-la para sua realização. Além disso, a libertação do controle da “graça” tornou possível que novas concepções a respeito da “natureza” fossem desenvolvidas, a serviço da liberdade do homem. A teoria heliocêntrica de Copérnico desbancou o geocentrismo aristotélico, mas esse continuou a ser sustentado pela Igreja como se fosse necessário para a fé, e os defensores do heliocentrismo foram perseguidos. Isso gerou uma reação apaixonada do humanismo contra o escolasticismo e a autoridade da Igreja. E quando, com Galileu e Newton, foram lançadas as bases para a física matemática e começou a tomar forma a possibilidade de um controle efetivo da natureza por meio da ciência, o humanismo, guiado pelo ideal de personalidade livre, elevou o método científico a posição de veículo definitivo de realização humana. Surge assim o ideal de ciência, que deveria ser adotado como critério de pensamento e ação em todas as áreas da vida. O motivo religioso da autonomia humana não permitia ao pensamento científico fundamentar sua atividade em uma concepção dada de ordem da criação, pois isso significaria a negação da autonomia absoluta. A crença no poder criativo da ciência exigia a busca dos fundamentos para a interpretação da realidade na própria atividade científica. Surge assim uma concepção de autonomia da ciência segundo a qual jamais seria aceita a visão escolástica de que haveria um setor no qual a razão dependeria da fé para operar (o setor da “graça”). Nessa nova concepção cessa totalmente a tentativa de adaptar os resultados da ciência à doutrina católica ou à metafísica grega. Como os outros motivos-base não bíblicos, o motivo humanista apresentou um caráter dialético. O ideal humanista de personalidade gerou uma noção de natureza cujo motivo religioso interno é o controle. Quando esse motivo do controle científico emergiu a partir da nova religião da liberdade, começou a se esboçar um novo conflito entre a nova noção “natureza” e o ideal de “liberdade”. A razão disso é que o motivo do controle científico exigia a possibilidade de uma plena apreensão e sujeição da natureza por meio da matemática; e para que a liberdade do homem pudesse se estender a toda a natureza, seria necessário negar a validade de qualquer limitação do alcance do método científico. O novo ideal de ciência buscou captar toda a realidade como uma cadeia fechada de causas e efeitos, totalmente determinada pelas leis do movimento mecânico descritas pela matemática. Ele não reconhecia a validade de qualquer coisa que não se encaixasse nesse cadeia mecânica.63 Assim, enquanto os gregos baseavam a reflexão teórica nas formas eternas do ser , e o agostinianismo baseava-se na idéia de ordem da criação, o motivo da liberdade somente reconhecia o próprio pensamento matemático e naturalista como fontes
62 Ibid,
p. 150. “O impulso para dominar a natureza por um pensamen to científico autônomo requereu uma imagem determinística do mundo, construído como uma cadeia ininterrupta de relações funcionais causais, a serem formuladas em equações matemáticas.” Dooyeweerd, “Twilight”, p. 49. 63
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de certeza científica. E exatamente aqui ergueu-se a dialética insolúvel dentro da religião humanista: “Quando se tornou aparente que a ciência determinou toda a realidade como uma cadeia contínua de causa e efeito, ficou claro que nada na realidade oferecia um lugar para a liberdade humana. O querer, pensar e agir humanos requeriam as mesmas explicações mcânicas que as exigidas para explicar os movimentos de uma máquina. Pois se o próprio homem pertence à natureza, então ele não pode plausivelmente ser livre e autônomo. A natureza e a liberdade, o ideal de ciência e o ideal de personalidade – se tornaram inimigos. Uma genuína reconciliação interna entre esses dois motivos antagônicos seria impossível, desde que ambos são religiosos e assim absolutos.”64
Assim o humanismo não teve escolha senão atribuir a primazia a um ou outro motivo sucessivamente. Do século XVI até parte do século XVIII o novo ideal de ciência teve a primazia, como o meio privilegiado de realização da libertação total do homem e, assim, do ideal de personalidade. Vamos examinar dois exemplos nessa primeira fase. Em DESCARTES (1596-1650) a razão autônoma rejeita toda ordem não estabelecida ou confirmada por ela mesma. Ele separou o corpo material e a alma racional considerando apenas o corpo como parte da “natureza”, e tratando a alma racional como uma realidade independente do corpo, auto-suficiente. Nessa alma, onde o homem seria livre e autônomo, Descartes localizou a fonte do pensamento matemático-geométrico, afirmando que os conceitos matemáticos, adequados para explicar o “material” não se originavam dos sentidos. Assim sua antropologia procurava estabilizar a tensão do motivo natureza/liberdade dando primazia ao ideal de ciência. A posição cartesiana foi desafiada por THOMAS HOBBES (1588-1679). Hobbes foi além de Descartes buscando aplicar o novo ideal matemático de ciência à própria vontade humana, que era considerada o centro da liberdade. Hoobes, que conheceu Galileu e procurou aplicar seu pensamento às áreas da moral, da política e da própria alma, acreditava que todo fenômeno natural poderia ser explicado em termos de movimentos mecânicos. Assim ele rejeitou a divisão cartesiana de “alma” e “corpo”, procurando explicar as funções da “alma”, incluindo o próprio pensamento matemático, como produtos do corpo material. Nesse momento surge no cenário moderno a versão humanista do materialismo, no qual o ideal de ciência começa a se voltar contra seu criador, negando o ideal humanista de personalidade.65 O choque inicial entre o racionalismo cartesiano e o materialismo hobbesiano nos ajudam a compreender o problema introduzido pelo dualismo humanista. Em primeiro 64
Dooyeweerd, “Roots”, p. 153. destaca que o materialismo Hobbesiano não deve ser confundido com outras expressões materialistas como a do antigo materialismo grego. “Na filosofia grega da natureza, “matéria” significa o rio informe e eternamente fluido da vida. Dando nascimento a tudo o que possuía forma e padrão individual, esse rio da vida era compreendido como a origem divina das coisas. O conceito moderno de uma lei mecânica da natureza era inteiramente desconhecido para os gregos. Enquanto o moderno conceito de lei natural se originou do motivo humanista natureza/liberdade, o conceito Grego era governado inteiramente pelo motivo da “forma” originado da religião da cultura. Antes que o conceito humanista de leis naturais pudesse se levantar era necessário que a visão moderna da n atureza fosse descoberta; a “natureza” deveria ser libertada tanto da idéia grega de destino como da idéia cristã da queda no pecado. A “natureza” deveria ser separada de sua “alma” antes de ser sujeitada ao controle humano.” Ibid, p. 155. 65 Dooyeweerd
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lugar, o que dá à natureza sua unidade? Na posição de Hobbes, trata-se da matéria e do movimento. Mas essa pergunta poderia ter outras respostas. A segunda questão fundamental era: onde deve ser encontrada a base da liberdade autônoma do homem? Descartes procurou localizar essa liberdade na “res cogitans”, no eu pensante do qual flui o raciocínio matemático. Mas, começando por Hobbes, as sucessivas investidas do cientificismo obrigariam os filósofos a tentarem outras explicações. Essas duas perguntas consistem num dilema que poderia ser formulado da seguinte maneira: como deve ser vista a relação entre a personalidade livre e autônoma do homem e a natureza, de tal modo que o homem permaneça livre e ao mesmo tempo possa controlar a natureza? As respostas ao dilema humanista se seguiram numa ênfase materialista até o século XVIII, quando a primazia é transferida para o motivo da liberdade. Assim, em R OUSSEAU, a fonte da liberdade é localizada no sentimento. Essa importante transformação, que antecipou o movimento romântico, revela a insatisfação com o fato de que a razão científica estava corroendo a liberdade humana.. Com IMMANUEL K ANT (1724-1804) essa insatisfação culmina com uma síntese teórica que procura resolver de vez o problema. Kant fez uma aguda separação entre as esferas da natureza e da liberdade. O ideal matemático e mecânico de ciência foi restringido ao mundo empírico dos fenômenos sensórios, estes organizados pelas categorias lógicas transcendentais da compreensão. Quanto à liberdade humana, Kant removeu-a da esfera sensória da natureza; o eu “empírico”, que é aquele perceptível e sujeito a descrição psicológica foi desligado do “eu transcendental”, supra-sensório. Esse eu profundo seria livre, pertencendo a uma esfera supra-sensória da ética, governada não por leis naturais, mas por normas racionais. A religião foi localizada nessa esfera “superior”, da liberdade e dos valores morais. Aparentemente Kant procurou por um fim ao processo de autodestruição que o humanismo instaurou. A afirmação de que a razão autônoma estaria além do alcance da ciência empírica foi considerada uma expressão filosófica idealista. No idealismo pós-kantiano a ênfase na autonomia da razão continuou a ser mantida. Mas em HEGEL ela é levada ao extremo, quando ele sustenta que o espírito (Geist), o princípio racional do qual a mente humana é uma expressão, é uma força divina que controla toda a história humana e progride em direção ao absoluto. A história seria, assim, a história do espírito; e não haveria verdade “absoluta” atemporal, pois toda verdade seria nada mais que um estágio da evolução do Geist . Como se pode ver, essa variedade de idealismo é também historicista, porque nega a presença de uma verdade absoluta acessível por meio de uma ciência naturalista. O historicismo seria “... uma guinada irracionalista e universalista dentro do motivo humanista da liberdade”66, o qual estava ganhando espaço desde Kant. Outra expressão da nova ênfase no ideal de personalidade livre foi o movimento romântico, que se opunha à interpretação racionalista da liberdade apresentada no iluminismo e em Kant. Nesse último, por exemplo, a liberdade deveria estar sujeita à lei moral descoberta racionalmente. Os românticos interpretavam a autonomia da pessoa de tal modo que o nomos seria encontrado no próprio autos, ou seja, que a própria personalidade deveria seguir a “lei do seu coração”, buscando na inclinação de sua personalidade a orientação para suas decisões. Essa nova atitude gerou, entre outras coisas, uma glorificação do amor sexual livre, “guiado
66
Dooyeweerd, “Twilight”, p. 51.
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unicamente pela harmonia das inclinações sensuais e espirituais do homem e da mulher individual.”67 Na metade do século XIX o idealismo alemão e a ênfase no ideal de liberdade encontraram uma forte reação no positivismo naturalista. O pensamento social de COMTE ganhou espaço explicando a sociedade como uma espécie de mecanismo passível de descrição científica à maneira das ciências da natureza. K ARL MARX virou o idealismo Hegeliano de cabeça para baixo e fundou o materialismo dialético, conforme o qual a base da civilização humana seria o modo econômico de produção, e as outras dimensões da vida (religião, política, arte, etc) seriam a “superestrutura”, totalmente condicionados pela base econômica. Essa base seria passível de descrição científica, de tal modo que a liberdade humana estaria totalmente reduzida ao processo histórico e às “condições materiais da existência”. A negação da liberdade prossegue com o evolucionismo de DARWIN, que explica o ser humano em seu todo a partir da evolução biológica e, na passagem para o século XX, com a psicanálise Freudiana, que explica o comportamento humano deterministicamente a partir das condições do inconsciente. O século XX viu crises terríveis com as ideologias anti-humanistas como o nazismo e o stalinismo, originadas diretamente da modernidade. O ideal de ciência encontrou certa resistência o movimento existencialista, inspirado principalmente na filosofia de HUSSERL, que afirmou tenazmente o ideal de personalidade. Mas o existencialismo não foi capaz de fortalecer espiritualmente a cultura ocidental. Mais recentemente, a crise da modernidade tem levado a uma afirmação irracionalista da liberdade humana em movimentos como o desconstrucionismo, no qual a liberdade é obtida pela negação do ideal de ciência como critério adequado para governar a vida humana. O problema é que a pós-modernidade, como um todo, pretende negar o ideal de ciência e o próprio ideal humanista, desfazendo-se da própria noção de “homem”; pode-se questionar se isso não é uma ênfase libertária extrema dentro do ideal de personalidade. Assim, estamos entrando no século XXI com duas ênfases polares: por um lado, um veloz progresso tecnológico com uma crença ilimitada no poder da ciência para garantir o futuro do homem, associado ao poder econômico, e por outro lado, uma crítica radical de toda “verdade absoluta”, tendo como finalidade a constituição de uma sociedade politicamente pluralista, livre de “metanarrativas” e ideais culturais totalizantes. O homem atual é tanto um animal evoluído, determinado pela natureza, como um ser político, absolutamente livre para estruturar sua vida social e legislar sobre seu futuro. O que virá agora? Um novo desequilíbrio nessa tensão polar ou a superação do motivo-base humanista?
67
Dooyeweerd, “Roots”, p. 177.
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V.
A IDÉIA COSMONÔMICA DO PENSAMENTO TEÓRICO
Os motivos-base religiosos são as forças controladoras que, a partir do centro religioso do homem, determinam o curso de seu pensamento filosófico. Isso pode ser verificado, como vimos, a partir de um exame da história do pensamento ocidental, tendo como chave a orientação espiritual das diversas escolas de pensamento. Entretanto, precisamos ir além dessa análise e buscar uma correlação entre o processo histórico e a crítica transcendental. Precisamos perguntar: “De que modo podem os motivos religiosos mencionados acima dominar o processo interior do pensamento teórico?”68 Segundo Dooyeweerd, esse controle se dá por meio de um conjunto elementar de idéias teóricas, mas de um tipo singular: um conjunto de idéias que refletem a consciência supra-racional do arché em cada motivo-base religioso. Nessas idéias temos a resposta subjetiva teórica do homem à influência espiritual fundamental que transcende ao próprio pensamento teórico, de tal modo que essas idéias tem um caráter transcendental . Elas teriam “a função necessária de fixar o pensamento teórico sobre os seus pressuposita.”69 Fica assim perceptível a diferença entre um conceito teórico comum e um conceito teórico transcendental. Enquanto o conceito teórico tem a função de discriminar os diferentes aspectos da realidade, a idéia transcendental tem, ao contrário, a função de concentrar o pensamento teórico sobre sua unidade radical e Origem final. A Idéia-Base Transcendental Em sua crítica transcendental Dooyeweerd concluiu que existem três problemas transcendentais básicos que são as condições de possibilidade de qualquer filosofia. Vamos relembrá-los: (1) A estrutura antitética do pensamento teórico implica o primeiro problema transcendental básico: “o que nós abstraímos, na atitude antitética de pensamento, das estruturas da realidade empírica como são dadas a nós na experiência ordinária?” (2) A estrutura da síntese teórica, por meio da qual a antítese teórica é superada implica o segundo problema transcendental básico: “A partir de qual ponto de partida nós podemos reunir sinteticamente os aspectos lógicos e não-lógicos da experiência que foram colocados em oposição mútua na antítese teórica?” (3) A estrutura da auto reflexão crítica, através da qual encontramos o ponto Arquimediano do pensamento, nos leva ao terceiro problema transcendental básico: “Como esta auto-reflexão crítica, como a direção concêntrica do pensamento teórico em busca do ego central, é possível, e qual é o seu verdadeiro caráter? Através desses três problemas transcendentais básicos implicados na atitude teórica de pensamento, podemos chegar às três condições necessárias que são os pré-requisitos para a possibilidade do pensamento teórico. São elas: (1) a coerência de sentido da ordem cósmica temporal; (2) o ego supra-temporal que participa na comunidade religiosa supratemporal da humanidade e, assim, da totalidade do sentido do cosmos que se concentra nela; (3) o Arché de todo o significado, ao qual todo o significado se refere o cujo 68
Dooyeweerd, “Transcendental Problems”, p. 75. p. 76.
69 Ibid,
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conhecimento é pré-requisito para o auto-conhecimento. Dooyeweerd chama a primeira condição de condição transcendental, e as outras duas de condições transcendentes do pensamento. As três idéias estão conectadas de tal modo que juntas compreendem uma unidade indissolúvel.70 Pois a visão que alguém tem a respeito da coerência do sentido (de como das diversas modalidades da experiência se inter-relacionam) é dependente do ponto Arquimediano que alguém escolhe para a síntese teórica, e a escolha desse ponto arquimediano é determinada pela concepção que alguém tem do Arché. Toda filosofia implicita ou explicitamente responde a essas três questões de algum modo, pois essas idéias são estruturalmente necessárias ao pensamento teórico. Conforme BRÜMMER , esse aspecto da crítica transcendental vinha, desde Kant, sendo tratado pela metafísica teórica. Essa metafísica estaria dividida em três áreas denominadas por Kant, respectivamente, de cosmologia metafísica, psicologia metafísica e teologia metafísica. A primeira teria como objeto a coerência de sentido do cosmo, a segundo o ego, e a terceira Deus como a Origem absoluta e Causa primeira do cosmo.71 Kant tentou demonstrar que esses conceitos seriam ilegítimos simplesmente porque transcendem os limites imanentes da experiência objetiva, empírica, e portanto também estariam além dos limites da conceptualização. Assim o pensamento teórico poderia apenas se aproximar dessas realidades por meio de idéias transcendentais, mas tais idéias não eram para ele condições do pensamento teórico. Dooyeweerd concordou com Kant de que essas três realidades não poderiam ser captadas plenamente num conceito teórico, mas apenas aproximadas por meio de idéias transcendentais, nas quais o pensamento filosófico apontaria para além de si mesmo, para suas condições apriori. Essas idéias permaneceriam tendo um caráter teórico, enquanto presentes na estrutura imanente do pensamento teórico, mas teriam raízes supra teóricas, fixando o pensamento teórico sobre suas bases transcendentes.72 O pensamento filosófico teria condições de refletir sobre os seus limites e se referir para além deles por meio das idéias transcendentais. Pois essas idéias, que se referem a condições transcendentes que superam a própria filosofia, tem um conteúdo de caráter supra-teórico. É o ego que fixa o pensamento teórico sobre certas idéias transcendentais e assim imprime ao pensamento filosófico um caráter transcendental. E porque no ego, nós transcendemos os limites do pensamento, em nosso ego nós podemos refletir críticamente sobre os limites do pensamento filosófico. Mas sempre, necessariamente, a direção transcendental da filosofia é determinada pelo ego em comunhão com a comunidade espiritual à qual ele pertence, tendo uma natureza religiosa. As idéias transcendentais são determinadas pela orientação religiosa do ego. Assim, os motivos-base religiosos fornecem ao ego o conteúdo religioso supra-teórico
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“Pois a questão de como alguém compreende a relação mútua e a coerência de sentido dos aspectos modais como separados teoreticamente e opostos um ao outro, é dependente da questão de se alguém aceita ou não a unidade religiosa integral e radical desses aspectos, que leva sua totalidade de sentido a uma expressão concêntrica. Finalmente, essa última questão é dependente do seguinte: como a idéia de Origem de todo o sentido é concebida, se essa idéia tem um caráter integral ou antes um caráter dialeticamente quebrado, i.é., se apenas um Arché é aceito, ou se dois princípios de origem são opostos um ao outro.” Dooyeweerd, NCTT, vol 1, p. 69. 71 Brümmer, “Transcendental Criticism”, p. 102. 72 Ibid, p. 102.
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das idéias transcendentais, e desse modo controlam o curso imanente do pensamento filosófico.73 Uma vez que os motivos religiosos variam entre si, as idéias transcendentais que dão a eles expressão teórica não podem ser mais que hipóteses subjetivas, que assumem conteúdos diversos em diferentes filosofias. Esse conteúdo teórico transcendental não pode ser confundido com as condições estruturais do pensamento teórico, nas quais ele existe exatamente como conteúdo. Como hipótese, ele necessariamente vai variar. Mas a despeito desse caráter subjetivo, a hipótese transcendental é necessária para que uma filosofia funcione. As três idéias transcendentais podem juntas ser consideradas três dimensões de uma única idéia-base transcendental. Dooyeweerd denomina essa idéia-base com o termo Wetsidee, ou idéia-de-lei. Para língua inglesa cunhou-se a expressão Cosmonomic Idea, em português, Idéia Cosmonômica: “Desde o início, eu introduzi o termo holandês wetsidee (idea legis) para a idéia base transcendental ou idéia básica da filosofia. O melhor termo inglês correspondente me parece ser “Idéia cosmonômica”, desde que a palavra “lei” usada sem qualificação poderia evocar um sentido jurídico especial que, obviamente, não está em vista aqui. Este termo foi cunhado por mim, quando eu estava particularmente preocupado com o fato de que diferentes sistemas de filosofia antiga, medieval e também moderna (como o de Leibiniz) orientavam expressamente o pensamento filosófico para a Idéia de uma ordem-cósmica divina, que era qualificada como lex naturalis, lex aeterna, harmonia praestabilita, etc. Nessa Idéia cosmonômica, que implicava uma Idéia transcendental de subjetividade, uma posição apriorística era escolhida com respeito aos problemas transcendentais básicos do pensamento filosófico. Nos sistemas que nós temos em mente essa Idéia cosmonômica era geralmente concebida em larga medida de um modo racionalista e metafísico. Assim veio a se tornar uma tarefa bastante atrativa para mim mostrar que cada sistema autêntico de filosofia está realmente baseado em uma Idéia cosmonômica deste ou daquele tipo, mesmo quando seu autor não está consciente disso; e a execução dessa tarefa estaria destinada ao sucesso. Pois não é possível que o pensamento filosófico, que é intrinsecamente sujeito à ordem cósmica temporal, não receba a carga de uma visão apriori sobre a origem e totalidade do sentido dessa ordem cósmica e seu sujeito correlato. E a filosofia deve ter uma visão apriori com respeito à relação mútua e coerência dos diferentes aspectos do sentido em que a ordem divina e seu sujeito se revelam.” 74
A Idéia Cosmonômica da Filosofia Cristã Qual seria a idéia cosmonômica cristã, a partir do motivo-base bíblico criaçãoqueda-redenção? Ou seja, qual é o princípio de coerência cósmica de sentido, o ponto arquimediano do pensamento, e o Arché de todo o sentido para a filosofia cristã? 73
“Fica claro assim que os motivos religiosos são para Dooyeweerd as pressuposições religiosas fundamentais que subjazem cada filosofia. Eles determinam o conteúdo das idéias transcendentais que são as hipóteses fundamentais do pensamento filosófico. Dessa forma as idéias transcendentais podem também ser chamadas de expressões teoréticas dos motivos religiosos aos quais elas se referem por seu conteúdo e às quais elas dão expressão significativa.” Ibid, p. 103. 74 Dooyeweerd, NCTT, p. 93,94.
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Seguindo o motivo-base bíblico, Dooyeweerd identifica o Arché como “a vontade santa e soberana de Deus Criador, que se auto-revelou em Jesus Cristo.”75 Como a Origem absoluta de todo o significado, o próprio Criador não é em si mesmo sgnificado, mas o Ser auto suficiente. Só Deus é “Ser” nesse sentido absoluto. Todas as criaturas são derivadas e estruturalmente dependentes de Deus. O limite entre o ser de Deus e suas criaturas é dado na lei de Deus, que tem um caráter universal. A distinção essencial entre Deus e as criaturas fica evidente em sua relação com a vontade divina, ou Lex: “Como a Origem soberana, Deus não está sujeito à lei. Pelo contrário, a sujectibilidade ( subjectedness) é a verdadeira característica de tudo o que foi criado, cuja existência é limitada e determinada pela lei [...] Calvino expressou a mesma concepção sobre o relacionamento de Deus com a lei em sua declaração citada anteriormente: ‘ Deus legibus solutus est, sed non exlex’; no qual ele procurou ao mesmo tempo refutar qualquer noção de que a soberania de Deus seja o mesmo que arbitrariedade despótica.”76
Toda absolutização das realidades criaturais, que por natureza são relativas, ignora este limite e eleva aquilo que está sujeito à lei ao status de Origem absoluta, como algo que está acima da lei. Isso leva a um dualismo dentro da idéia de Arché, pois a absolutização de uma dimensão do sentido encontra resistência de outras dimensões. Assim, eventualmente, surgem dois ou mais princípios relativos e opostos simultaneamente elevados ao absoluto, tornando-se impossível manter uma idéia integral de Origem. Já na idéia cosmonômica cristã não há lugar para duas Origens absolutas; Deus é a única e integral origem de todo o sentido, da lei divina bem como de tudo o que está sujeito a ela. A segunda idéia transcendental é a da totalidade do sentido, na qual se encontra o ponto arquimediano do pensamento. O conhecimento do ponto arquimediano pressupõe auto-conhecimento, que por seu turno é dependente do conhecimento de Deus. Isso se deve ao fato de que o homem foi criado à imagem de Deus. “ Assim como Deus é a Origem de toda a realidade criada, assim o ego é a unidade radical e integral de todas as suas funções temporais.”77 No próprio homem, em seu âmago, a totalidade do sentido cósmico está concentrada, numa relação similar à de Deus com a criação, que está ontologicamente dirigida concentricamente para Deus. Essa concentração do sentido cósmico não se dirige meramente ao homem individual, mas ao homem como um ser coletivo. Assim, Adão, como o primeiro homem coletivo, concentra em si a totalidade do sentido cósmico. Isso implica que a criação não tem sentido independentemente do homem; a raiz religiosa de todas as criaturas se encontra no homem, e só nele a criação é completa. De fato, as dimensões pós-psíquicas da natureza só tem sentido quando relacionadas a um sujeito humano.78 As três idéias transcendentais se expressam portanto como (1) na idéia de coerênciana-diversidade do sentido cósmico, garantida pelo tempo cósmico, (2) na visão do homem 75
Brümmer, Transcendental Criticism, p. 105. NCTT, vol 1, p. 99, 100. 77 Brümmer, “Transcendental Criticism”, p. 106. 78 “As funções subjetivas dessa experiência não podem ser atribuídas a Deus, mas são fo calizadas no ego humano como seu centro religioso. Em outras palavras, a Idéia transcendental de Origem implica uma Idéia transcendental do ego humano como o centro religioso do mundo empírico.” Dooyeweerd, NCTT, vol 2, p. 53. 76 Dooyeweerd,
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como o centro religioso do cosmo e do seu coração como o ponto arquimediano do pensamento teórico, e (3) na visão de Deus como Arché do cosmo criado. Essas três idéias se fundem como uma explanação total da noção de que o sentido cósmico vem de Deus, pelo homem, numa ordem temporal divinamente estabelecida.
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PARTE 2: FILOSOFIA SISTEMÁTICA
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VI.
TEORIA GERAL DAS ESFERAS MODAIS
1. O Fundamento de uma Ontologia Cristã Tendo como motivo religioso fundamental o esquema triádico criação-quedaredenção, o pensamento filosófico cristão precisa ter a sua própria agenda, tratando os problemas filosóficos na ordem e sentido que lhe são dados pela cosmovisão cristã. Assim, sendo, não podemos falar de problemas como a teoria da ação, a epistemologia, a hermenêutica ou a ciência sem começar com a visão escriturística da realidade. Antes de falar sobre as “coisas”, incluindo nós mesmos, os sujeitos, precisamos considerar a indispensabilidade de uma pré-compreensão das “coisas”. Tendo isso em mente, reconhecemos que a primeira e mais básica distinção ontológica que o pensamento teórico pode atingir é a distinção entre Deus e a criatura. A Bíblia começa declarando “No princípio criou Deus os céus e a terra”. Deus é eterno, autosuficiente, auto-existente. O cosmo é temporal, dependente do criador, existindo apenas dele e para ele. Essa distinção ontológica fundamental foi classicamente denominada diferença qualitativa infinita criador-criatura. Nenhuma criatura pode ultrapassar esse limite. Mesmo na teologia cristã, a reflexão se processa dentro dos limites da revelação bíblica, e não se supõe que a natureza divina possa ser capturada teoricamente. Esse limite de que falamos não deve ser interpretado como uma espécie de impedimento arbitrário que Deus estabeleceu. Trata-se antes de um limite “necessário”, ligado à própria ordem das coisas. O ponto é que uma criatura jamais poderá exceder sua criaturidade. Negar isso é pôr em dúvida a própria doutrina bíblica da criação. D.T.H. VOLLENHOVEN examinou as diversas cosmovisões e teorias filosóficas do ponto de vista de sua interpretação da relação entre a “divindade”, no sentido de princípio originante ou Arché, e o cosmo, e desenvolveu uma forma de classificar essas concepções. Segundo ele, as duas opções básicas são o reconhecimento da distinção criador-criatura e a negação dessa distinção. Vollenhoven chamou os primeiros de dualistas e os segundos de monistas. Haveriam quatro tipos de monismo: (1) o ateísmo nega a existência de Deus; (2) o acosmismo nega a existência do cosmo; (3) o pancosmismo subordina Deus ao cosmo e (4) o panteísmo identifica Deus com o cosmo.79 Entre os dualistas haveriam o cosmismo parcial, que identifica parte do ser divino com a criaturidade, o teísmo parcial, que identifica parte da criaturidade com Deus. O ponto aqui é que a diferença criador-criatura é reconhecida de modo inconsistente. Surge assim a tendência de distinguir uma esfera inferior e uma esfera superior dentro da própria criação. Exemplos desse tipo de inconsistência se encontram na adoração a Maria dentro do Catolicismo Romano, na doutrina Luterana da deificação da natureza humana de Cristo na ascensão, e na teoria da kenosis, segundo a qual o verbo teria abandonado a natureza divina ao se tornar homem. A idéia de que a imagem de Deus no homem é a racionalidade, porque Deus seria um ser “racional” também transgride os limites da diferença criador -criatura. Uma cosmovisão plenamente teísta precisa reconhecer a diferença qualitativa infinta criador-criatura. O segundo princípio ontológico fundamental é o da coerência última da diversidade e da unidade cósmica. Conforme as Escrituras, Deus criou o mundo de tal 79
Spier, “Christian Philosophy”, p. 34.
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modo que sua glória é revelada na criação, e tanto no ato de criação como no de redenção as três pessoas da trindade participaram ativamente, com diferentes funções. Conforme a doutrina cristã da trindade, Deus é três unidos em um único Deus. Essa unidade-nadiversidade é refletida na própria estrutura da criação (cf. 1Coríntios 12), havendo uma coerência de ambas em Deus, que é igualmente e ultimamente um e muitos. Isso significa que não podemos tratar o cosmo como se fosse inteiramente composto de uma substância específica, ou como se a diversidade cósmica fosse insuperável e impossível de ser elaborada, cientificamente, como pensavam os chineses na antiguidade. Não podemos negar a unidade em favor da diversidade, e vice versa. O terceiro princípio ontológico fundamental é o caráter significante de toda a realidade criada. Tem sido uma tendência do pensamento ocidental tratar a realidade como sendo composta de uma “substância” básica, uma espécie de material “metafísico”. Esse é o caso da metafísica aristotélico-tomista, que descreve Deus como o “ser -em-si”, que se faz presente na criação aperfeiçoando aquilo que é meramente “potencial”. Essa concepção oblitera a diferença qualitativa criador-criatura, atribuindo o “ser” como realidade última a criaturas. O pensamento reformacional rejeitou essa tradição negando que o “ser” das criaturas seja o mesmo “ser” de Deus. Para enfatizar a natureza derivada de toda a criação em relação a Deus, Dooyeweerd propôs uma tese revolucionária: “o significado é o ser de tudo aquilo que é criado”. Com isso Dooyeweerd quis dizer que a criação é, em sua essência, expressão, não tendo o mesmo status ontológico que Deus; ela existe sempre como revelação da vontade divina, carregada com a glória de Deus. Como resultado disso, nenhuma das dimensões do cosmo tem significado por si mesma. Isto é; quando tentamos “capturar” uma das dimensões da experiência, percebemos que essa dimensão sempre se refere a todas as outras, sem que haja qualquer “descanso metafísico”, sem que encontremos aquela substância básica da qual o cosmo recebe ordem e concretude. A revelação do caráter significante do cosmo nos leva necessariamente a buscar a origem do ser do cosmo fora do próprio cosmo, naquilo que não é o cosmo. E aquilo que não é criatura é o Criador , o “Eu Sou”, do qual todas as coisas vieram a existir e do qual tudo adquire significado.
2. Cosmonomia Deus é o legislador soberano diante da sua criação. Tudo está sob a sua vontade. Não são apenas os dez mandamentos que expressam o governo de Deus, mas toda a ordem cósmica. Isso é facilmente perceptível em Gênesis 1 e 2: Deus ordena todo o cosmo por sua vontade, estabelecendo os espaços e os limites de suas criaturas, diferenciando-as de dandolhes “mandamentos”. Calvino empregou a expressão “Deus legibus solutus est, sed non ex-lex” como forma de enfatizar que Deus é livre da lei, não “sujeito” a ela. Isso não signifique que Deus não respeite a lei que ele mesmo estabeleceu; o ponto é que, embora ele certamente esteja ligado ao cosmo por meio dela e zele por sua aplicação, ele mesmo não está contido em suas leis. Deus sustenta as leis que governam a criação. Dooyeweerd descreveu essa relação dizendo que a lei é o limite (boundary) entre Deus e o cosmo. Dooyeweerd cunhou o termo cosmonomia, e a expressão cosmic law-order para expressar o fato de que toda a criação está sujeita à vontade soberana de Deus, que se expressa numa multiplicidade de ordenamentos ou leis divinas. Essa multiplicidade é a cosmonomia, o limite entre Deus e a criação.
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Nem toda a lei é da mesma natureza. Para diferenciar as múltiplas formas do governo de Deus sobre a criação, os pensadores reformados criaram a expressão “esferas de sober ania”, que discutiremos mais à frente. Dooyeweerd as chamou de “law-spheres”, ou “esferas de leis”. Para a esfera analítica, temos as leis lógicas; para a esfera material/energética temos as leis físicas, e assim por diante. As esferas de soberania são aprioris ontológicos, ou aspectos irredutíveis do sentido cósmico, elementos fundamentais da estrutura da realidade empírica. Sobre este fundamento ocorrem todos os fenômenos concretos. Todas as criaturas são sujeitas à cosmonomia. Ser “sujeito” é a natureza intrínseca de tudo o que é criado. Assim, uma pedra, por exemplo, está sujeita à lei da gravidade, e um vegetal é sujeito às leis bióticas. O homem é sujeito a todas as leis: psíquicas, lógicas, históricas, etc. De um modo geral, dizemos que toda criatura é sujeita a Deus de um modo diferente. Além disso, uma outra distinção faz-se necessária; um vegetal, por exemplo, não possui uma função subjetiva psíquica. Ele não funciona como sujeito na esfera psíquica. Mas ele existe como objeto da nossa percepção sensorial. Desse modo, toda criatura existe no lado subjetivo da cosmonomia, ou como sujeito modal, ou como objeto modal de um sujeito. Na experiência ingênua ou ordinária nossa consciência é sintonizada para perceber entidades concretas. Nos relacionamos com pessoas, objetos, sinais, sons, idéias, tarefas, etc. A cosmonomia fica implícita, como o sistema que permite a existência de todas as entidades e nos capacita a diferenciar essas entidades. Já no pensamento científico, nós buscamos focalizar a própria cosmonomia, isto é, os diferentes aspectos da experiência que intuímos em nossa experiência ordinária. Através da abstração teórica, isolamos esses aspectos e constituímos diversas ciências fundamentais para examinar as entidades reais tendo em vista sua estrutura modal. Temos assim a biologia, a matemática, a física, a lingüística, a lógica, a economia, etc. Desse modo, “A ciência não cria as esferas de lei.”, nem elabora sua estrutura arbitrariamente.80 Antes, é sua tarefa compreender as leis que estruturam a dimensão da realidade que ela focaliza, e positivizar essas leis de tal modo que o conhecimento científico tire proveito delas. A idéia de encontrar estruturas cosmonômicas precisas parece a muitos uma tarefa arbitrária e esquematizante, pois, segundo eles, a realidade é “unificada”. Sem dúvida, isso é verdade. Mas porque tratar a “unidade” como algo mais importante que a “diversidade”? A negação da diversidade modal introduz problemas complexos; em que base podemos explicar nossa experiência da diversidade do sentido cósmico? Por quê percebemos em nossa experiência que as coisas são diferentes, e, ao mesmo tempo, que estão interrelacionadas de forma indissolúvel? Tanto as teorias monistas como as teorias pluralistas não podem explicar o fato, pois tratam a realidade última como sendo singular ou plural. A perspectiva cristã, segundo a qual Deus é Um e Três, permite aceitarmos que exista uma coerência ontológica entre o um e o muitos além do próprio cosmo, em Deus. Assim uma ontologia cristã deve buscar na experiência uma estrutura de diversidade coerente, procurando descrever essa diversidade teoreticamente. Além disso, deve reconhecer, por trás dessa diversidade, a existência de uma vontade divina que governa o cosmo. Isto é, uma diversidade cosmonômica instituída por Deus, expressando sua vontade.
80 Ibid,
p. 39.
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3. Descrevendo a Arquitetura da Ordem Modal Vamos voltar à nossa reflexão sobre a relação entre experiência ingênua e ciência: a realidade se nos apresenta na percepção ingênua como uma totalidade. Na maior parte do tempo experimentamos por nossos sentidos que tudo está interconectado, e não damos atenção às dimensões da realidade. Assim, nossa atenção se volta principalmente para as entidades da realidade. Percebemos uma criança, uma bicicleta, o céu, os sons, e tudo o mais como objetos concretos e inteiros. Na observação científica o tratamento da realidade é muito diferente. Ao invés de apreender a realidade como uma totalidade, buscamos deliberadamente examinar aspectos específicos da realidade. Por exemplo: o biólogo focaliza a vida biológica, sua origem, dinâmica, etc. O matemático examina o aspecto numérico da realidade. Obviamente a “vida” não existe “sozinha”, voando por aí. O que existe são organismos vivos. Mas organismos vivos são mais do que a vida; eles tem aspectos físicos, espaciais, psíquicos, etc. Os números também não existem “soltos”. O que há são coisas que existem numericamente. Existem os cinco dedos em cada mão humana, mas não existe o número cinco “por si mesmo”, como um objeto invisível. Isso indica então que na observação científica nós “quebramos” a realidade em componentes, ou abstraímos certos aspectos ou modos da realidade para examiná-los melhor. Esses aspectos abstraídos só existem assim em nossa mente, dentro da nossa reflexão. O número um, por exemplo, não existe como realidade independente. O que existe são coisas em número de um. Igualmente não existe “a vida”, mas seres vivos. Por outro lado, não seria possível que fizéssemos a abstração, por exemplo, do aspecto numérico da realidade, tratando-o matematicamente, se esse aspecto não existisse. Assim, ele existe, mas inseparavelmente conectado a todos os outros aspectos da experiência. A realidade pode ser vista, do ponto de vista ontológico, como um espectro de esferas ou modos que se relacionam para compôr as entidades da realidade. Essa forma de descrever a realidade é geralmente chamada de ontologia de campos, ou de esferas modais. Muitos filósofos, como NICOLAI HARTMANN, HUSSERL em sua fenomenologia, o filósofo da ciência MICHAEL POLANYI e o filósofo reformacional HERMAN DOOYEWEERD, cuja ontologia seguimos nesse texto, buscaram elaborar ontologias de campos. Cada esfera se refere a um campo ou um modo da realidade, que no entanto só existe conectado aos outros. Identificando as Esferas Modais Como é que descobrimos quais são, e qual é a ordem correta das esferas modais? Naturalmente, para isso precisaremos usar a nossa função analítica, que nos capacita a diferenciar as coisas. Abstraindo o que nos parecem ser propriedades universais dos objetos, e colocando essas “propriedades” em oposição à nossa função analítica, podemos confirmar se tais propriedades são de fato universais e procurar conceptualizar essas propriedades, de modo a isolar filosoficamente sua natureza. Chamamos essa atividade de epoché. Realizando a epoché, como recurso de isolamento das modalidades, e procurando o padrão de inter-relacionamento entre essas modalidades, torna-se visível que elas se estruturam numa escala de complexidade crescente, observando-se a existência de relações definidas entre elas. A esfera numérica é a mais simples, consistindo na “quantidade” ou
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“magnitude”. O “espaço” consiste em “extensão”. Podemos pensar em “números” sem ter a noção de “espaço” na consciência; mas não podemos pensar em “espaço” sem ter nenhuma noção de “magnitude”. O mesmo se pode dizer do movimento e da matéria-energia. Para pensar em movimento, precisamos de noções de magnitude e de espaço. Para pensar em matéria, precisamos das noções de magnitude, extensão e movimento. Outro exemplo, mais adiante na escala, é a esfera social. Não há como existir sociedade sem comunicação, e comunicação pressupõe linguagem. Esse padrão se repete em todas as esferas. Não podemos, por exemplo, pensar em nenhuma esfera modal sem as noções de tempo e de espaço presentes, mesmo que implicitamente, para compor nossas imagens mentais. Por meio da epoché os filósofos reformacionais geralmente reconhecem 15 esferas modais: Esfera Modal 15. Fiduciária 14. Ética 13. Jurídica 12. Estética 11. Econômica 10. Sociológica 9. Linguística/semiótica 8. Histórica/Formativa 7. Lógica 6. Psíquica/Sensória 5. Biótica 4. Física 3. Cinemática 2. Espacial 1. Numérica
Núcleo de Sentido
Exemplos de Ciências Relacionadas Certeza transcendental quanto Teologia Fundamental, à Origem de todas as coisas Teologia Sistemática Amor tica Social, Bioética Julgamento/harmonização Direito, Ciência Política jurídica Harmonia, Alusividade Estética, Teoria Harmônica, Arquitetura Conservação de Economia, Ciências Contábeis valor/Mordomia Intercurso social Sociologia, Urbanismo, Ciências Gerenciais Significado simbólico Semiótica, Filologia Realização cultural História, Antropologia Cultural Diferenciação racional Lógica Sensação Psicologia da Educação Vida Biologia, Ecologia, Bioquímica Matéria\Energia Física, Química Movimento Cinemática Extensão Geometria Espacial Quantidade discreta Matemática
Todas as criaturas físicas participam como sujeitos nas esferas 1 a 4. Os seres vivos participam também da esfera 5, e os animais, da esfera 6 (alguns animais experimentam antecipações de esferas posteriores, como alguns símios). Mas apenas os seres humanos participam como sujeitos nas esferas 7 a 15. Nos homens encontramos o raciocínio lógico, a ação histórica, a linguagem verbal, a sociedade organizada, as relações econômicas, a arte, a moral, o direito e a fé religiosa. O Princípio da Irredutibilidade Modal Cada esfera modal se distingue das outras por seu núcleo de sentido, ou momento nuclear, que garante a soberania interna daquela esfera em relação às outras. Nessa perspectiva a realidade é irredutivelmente complexa, e não podemos explicar as
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propriedades de uma esfera a partir das leis de outra esfera da realidade. O pensamento lógico, por exemplo, não pode ser explicado como um mero produto psíquico; ele não se fundamenta nos sentimentos, mas nas leis da esfera lógica. A partir dessa ontologia se estabelece o que denominamos princípio da irredutibilidade modal. Esse princípio é um instrumento teórico para detectar o reducionismo e proteger nossa percepção do real da invasão e distorção teórica que as ciências promovem quando se tornam imperialistas. O princípio da irredutibilidade é uma forma de garantir a soberania das esferas modais. O princípio das esferas de soberania foi desenvolvido inicialmente pelo teólogo e estadista holandês ABRAHAM K UYPER . Kuyper acreditava que a soberania de cada esfera da vida é um princípio estrutural normativo que Deus estabeleceu para conduzir os homens na construção de seus relacionamentos sociais e tarefas. Ele encontrou a base nas Escrituras para isso, não tanto em textos explícitos, mas no fato de que, em diversas situações diferentes, os personagens bíblicos reconheciam limites divinamente ordenados entre funções e esferas de vida, como nos ofícios de apóstolo, profeta e rei, no Antigo Testamento, ou a concentração de Jesus e dos apóstolos nas atividades eclesiais, evitando envolvimento direto com questões políticas a partir de sua posição religiosa, ou na afirmação de Paulo em Romanos 13 de que toda autoridade vem de Deus. Como base nessa visão de que a autoridade de Deus se expressa de forma diversificada, em esferas diferentes de soberania, Kuyper se opôs àqueles que perdiam de vista a diferença e independência essencial entre a igreja, a ciência, o estado, a escola e a indústria, afirmando que cada esfera possui suas próprias leis, estabelecidas por Deus. Assim, as capacidades de uma esfera não poderiam ser transferidas ou apropriadas por outra esfera. A igreja, por exemplo, não deveria tentar realizar o trabalho do estado, ou estabelecer por meio da confissão de fé a administração da justiça pública. Igualmente, uma empresa não deveria funcionar como uma família, negando-se a admitir a livre concorrência de preços. Quando uma esfera de soberania se sobrepõe às outras, somos lançados numa situação de tirania, como aconteceu por exemplo nos países socialistas nos quais o estado dominava as igrejas, o sistema educacional, a mídia, as pesquisas científicas, obrigando-as a se conformarem com a ideologia do partido comunista. Herman Dooyeweerd deu um passo além de Kuyper e tornou o princípio das esferas de soberania em uma lei cosmológica, distinguindo filosoficamente uma diversidade modalidades no horizonte da experiência humana. Conforme esse desenvolvimento, é impossível explicar plenamente uma esfera a partir de outra, ou aplicar as leis de uma esfera para descrever outra. A soberania das esferas não deve ser confundida com isolamento e fragmentação. As diversas esferas modais estão interconectadas entre si, e Dooyeweerd desenvolveu um sistema para identificar essas conexões. Segundo ele, para cada esfera modal, há analogias em outras esferas. Por exemplo: falamos em “economia de pensamento”. Isso é uma analogia econômica na esfera analítica. A expressão “movimento histórico” é uma analogia cinética na esfera histórica. A enorme quantidade de analogias possíveis aponta para uma conexão profunda de todas as esferas modais. Mais tarde trataremos das analogias de modo mais profundo. O Problema do Reducionismo na Ciência A cada esfera modal corresponde uma ciência fundamental, que define a qualidade e os limites daquela esfera, e um espectro de disciplinas bastante amplo. Para a esfera
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numérica, por exemplo, temos a filosofia da matemática, e as diversas disciplinas como a estatística, a álgebra, o cálculo integral. Geralmente as ciências abrangem mais de uma esfera modal. Por exemplo: a bioquímica não focaliza apenas a esfera biótica, pois procura compreender o lugar dos processos químicos na dinâmica da vida. Podemos dizer, assim, o foco da bioquímica é um tipo específico de processo presente em um conjunto específico de entidades: os processos químicos que sustentam a vida biológica nos seres vivos. Nesse caso, trata-se ainda de biologia, pois a química é estudada para se compreender a vida biológica. Esse seria também o caso da física matemática, que examina a dimensão numérica dos fatos físicos. Há também ciências que focalizam entidades concretas em sua totalidade ao invés de processos parciais, como a espeleologia (estudo das cavernas), ou a musicologia, ou a botânica. Nesse caso muitos conhecimentos de diversas ciências são utilizados para compreender a entidade caverna, ou a música, ou o vegetal. Ao eleger uma entidade real para examinar, a atividade científica sempre traz uma pré-compreensão a respeito da natureza daquela entidade. E as pressuposições a respeito de nossos objetos de estudo estão interligadas com a nossa visão total da realidade. A tarefa de examinar criticamente uma cosmovisão em sua totalidade, bem como as definições, procedimentos e resultados de cada ciência pertence à filosofia. Assim, além do tradicional tratamento sobre a natureza do conhecimento, cabe como introdução a toda atividade científica 1) uma reflexão sobre a natureza da realidade como um todo; 2) uma reflexão sobre as esferas modais que serão focalizadas, e, particularmente, 3) a análise modal dos objetos daquela ciência específica. Essa análise dos conceitos científicos torna-se preemente quando nos tornamos conscientes do problema do reducionismo. Cada esfera modal traz tanto o seu núcleo de sentido como os momentos analógicos das outras esferas. É como se a totalidade do sentido cósmico estivesse presente de forma analógica dentro de cada esfera. Esse fato foi denominado princípio da universalidade modal. A filosofia imanentista não é capaz de capturar a natureza da universalidade modal porque, ao buscar o arché do cosmo dentro do próprio cosmo, é obrigada a desrespeitar o princípio da irredutibilidade modal, tratando um ou mais aspectos do cosmo como mais básicos que os restantes. Conseqüentemente, produz uma interpretação do real que não faz justiça à sua diversidade. Daí surgem os “ismos”, isto é, a exaltar a universalidade modal acima da irredutilidade modal . Desse desvio surgem os reducionismos cosmológicos: o materialismo, que “... absolutiza as leis válidas para a modalidade física e as eleva à posição de leis eternas da natureza.”81; o vitalismo, o logicismo, o historicismo, o sociologismo, são todos manifestações de reducionismo cosmológico decorrente da absolutização de uma esfera e de suas leis. O reducionismo não somente impede o diálogo entre as várias ciências, na busca de um conhecimento mais integral; ele envolve realmente distorções na nossa descrição da realidade. Contra isso Dooyeweerd e Vollenhoven desenvolveram o princípio da antinomia excluída, que vamos tratar ao abordar o tema dos conceitos analógicos.
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Kaalsbek, “Contours of a Christian Philosophy”, p. 110.
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4. O Tempo Cósmico Na filosofia de Kant as formas básicas da percepção sensória eram o tempo e o espaço. Para ele essas duas dimensões não existiam além dos limites da percepção sensória, mas apenas na consciência do sujeito que ordena as impressões empíricas caóticas. Dooyeweerd tomou um caminho bastante diferente. Uma rápida olhada na escala modal mostrará o tempo não figura na escala como uma modalidade distinta da experiência. Para ele, tempo e espaço são realidades ontologicamente distintas. Enquanto o espaço é uma das dimensões da experiência, o tempo é um princípio transmodal e transestrutural. Não se trata de uma modalidade, mas de um princípio que abrange e penetra todas as esferas modais e todas as estruturas temporais de individualidade. Por essa razão, Dooyeweerd sustentava que nós não podemos definir o tempo; sendo ele uma realidade transmodal, estaria além da definição conceptual. O máximo que poderíamos ter é uma espécie de idéia-limite, a partir de uma série de reprsentações analógicas do tempo, conforme sua expressão em cada modalidade da experiência. Uma possível aproximação seria que a temporalidade é a ordenação divina para a criatura; a distensão temporal (uma analogia espacial!) da criatura é sua ordenação dentro de um esquema que expressa o propósito eterno de Deus. Dooyeweerd propôs que assim como o cosmo se divide em um lado de lei e um lado de entidade, o tempo poderia ser dividido assim também, em numa expressão normativa e noutra subjetiva. No lado de lei do cosmo o tempo é ordem, e no lado de entidade, ou lado subjetivo, o tempo é duração. No caso de um vegetal, por exemplo, ordem significa nascimento, amadurecimento, envelhecimento e morte. A duração da vida vai variar para diferentes indivíduos, mas sempre existe como uma distensão da existência daquele indivíduo. Um dos aspectos centrais da ontologia de Dooyeweerd é a idéia de que o cosmo é uma realidade significante. A plenitude do sentido cósmico está na vontade de Deus, o criador de todas as coisas. O tempo cósmico é a ação divina de distender e diversificar esse sentido em uma estrutura ordenada de dimensões e entidades individuais. Essa “organização” da criação é invisível a nós, em sua totalidade. Nós percebemos que há uma ordem cósmica que diferencia e coordena as criaturas, mas não percebemos a totalidade do sentido cósmico que está expressa nesse ordenamento. Somente a passagem do tempo revela a nós a direção e o significado das coisas. Dooyeweerd comparou o tempo a um prisma. Quando a luz passa pelo prisma sofre uma decomposição e aparece como um espectro de raios coloridos. Assim a criação, como totalidade de sentido, é decomposta numa diversidade de sentidos que são profundamente coerentes. Essa diversidade do sentido é vista por nós como uma diversidade coerente de esferas modais e de estruturas individuais. A cosmonomia é, assim, uma cosmocronologia. A forma como o tempo se manifesta em cada modalidade varia com a estrutura significante daquela modalidade. Assim o tempo se desdobra em uma diversidade de sentidos modais. (1) Na esfera numérica, o tempo se expressa na ordem seqüencial numérica: 1, 2, 3. Magnitudes se diferenciam numa ordem fixa. (2) Na esfera espacial o tempo se revela como uma ordem de simultaneidade no espaço. Dois círculos que se tocam são simultâneos. (3) Na esfera cinética o tempo é a ordem de sucessão dos movimentos. (4) Na esfera física o tempo é revelado na irreversibilidade dos processos químicos e físicos de transformação. Temos assim uma ordem de variação. Das esferas cinética e física surge nossa consciência de presente temporal e de fluxo temporal linear,
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com assimetria de passado e futuro.82 (5) Na esfera biótica temos uma ordem de gerações, ou ordem genética, conectando seres vivos pela descendência, na qual se transmite a carga genética.83 Temos também a ordem do desenvolvimento biológico de organismos individuais. (6) Na esfera psíquica o tempo se expressa no sentimento de duração que existe em conexão com a tensão psíquica, como quando aguardamos alguma coisa. (7) Na esfera analítica o tempo é experimentado na noção de simultaneidade e ordem lógica. Num raciocínio qualquer, por exemplo, percebemos que as pressuposições são anteriores à conclusão. Num silogismo, as premissas necessariamente antecedem as concluões. Há, portanto, não só uma duração, mas também uma ordem necessária no pensamento. (8) Na esfera histórica o tempo se revela no sentido do desenvolvimento cultural e nas mudanças que introduzem períodos diferentes nesse desenvolvimento. Quando encontramos uma sociedade que mantém as mesmas estruturas sem modificação há séculos, dizemos que ela “parou no tempo” – não no tempo num sentido total, mas no tempo histórico! Falamos assim numa ordem de evolução cultural. (9) O tempo na esfera lingüística não só na duração do discurso, mas também na estrutura ordenada da linguagem. O significado não é transmitido pontualmente e isoladamente, mas numa estrutura simbólica de sinais lingüísticos sobre os quais ele é distendido. Temos assim uma estrutura gramatical e sintática, e uma rede de vocábulos que comunicam sentido claro quando são ordenados dentro de um padrão descritivo-expressivo com sujeito, predicado, verbos com diferentes tempos, adjetivos, preposições, relações subordinativas e coordenativas, etc. (10) Na esfera social temos uma ordem relacional, estabelecendo-se compromissos diferenciados e escalonados entre os indivíduos e as comunidades. Aqui se inclui, por exemplo, a ordem hierárquica. É por isso que, dependendo da situação social na qual estamos, e com quem estamos, temos ou não temos tempo. (11) Na esfera econômica o tempo se expressa na ordem de valores. Noções como, por exemplo, de conservação de valor e de rentabilidade expressam temporalidade: “tempo é dinheiro”. O valor existe com duração e com ordem dentro de uma escala de valores econômicos que pode ser mais ou menos complexa, mas é sempre necessária para a existência de processos econômicos. (12) Na esfera estética o tempo se revela na ordem harmônica. Uma expressão estética pode ser mais ou menos harmônica, e o grau de beleza sempre obedece a essa ordem. (13) Na esfera jurídica temos a ordem do juízo, que obedece necessariamente à hierarquia das leis no julgamento de uma situação. Essa hierarquia afeta as prioridades jurídicas de um tribunal, por exemplo. Se ele julga uma situação sem ter base jurídica adequada, há uma desobediência ao tempo jurídico. (14) Na esfera moral temos a experiência da hierarquia moral, quando percebemos que uma determinada atitude tem precedência sobre a outra, escalonamos as prioridades éticas. Temos muitas vezes a experiência de ter a consciência do dever moral num determinado momento, que precisa ser cumprido naquele momento, antes de outras coisas, isto é, a experiência da prioridade moral. Há assim uma ordem moral. (15) Na esfera fiduciária o tempo se expressa na vida de fé, nos tempos próprios em que ela se desenvolve. Certas crenças são mais fundamentais do que outras, de modo que diferentes aspectos da vida de fé tem diferentes valores e ocupam tempos diferentes. Temos assim uma ordem de crenças. 82
Stafleu, Marinus Dirk, “Cosmochronological Idea”, p. 96. afirma que os biólogos identificam corretamente uma conexão genética entre todos os seres vivos. De fato, mesmo que se admita a criação especial do ser humano enquanto organismo vivo, é notório o parentesco genético entre o homem e os outros seres vivos. Ibid, p. 96. 83 Stafleu
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Dooyeweerd considerava o coração, como raiz religiosa da existência humana, uma realidade transcendente em relação ao tempo. Para ele o tempo não abrange o coração, pois este funciona em todos os aspectos mas não é exaurido por nenhum eles. Além disso, ele se relaciona com Deus, como a origem do sentido cósmico. Não é que o coração seja eterno; para Dooyeweerd o eterno é Deus, aquele que é auto-existente. O coração seria supratemporal no sentido de, como núcleo do homem, ser capaz de transcender os limites da ordem cósmica em direção a Deus. Sem essa “abertura transcendental”, o homem não poderia atingir a origem da totalidade do sentido, porque esta é extra-temporal . Essa extratemporalidade confere também ao homem a sua liberdade em relação à criação. Para descrever esse núcleo supratemporal do homem, Dooyeweerd usou o termo aevum. O termo indicaria um estado intermediário entre o tempo e a eternidade. “Como um estado real, o aevum é a concentração das funções criaturais num ponto no qual o temporal é dirigido na direção do eterno, numa transcendência religiosa de todos os limites temporais.”84 É exatamente esse aevum que sobrevive à morte do corpo físico.
5. Transcendente e Transcendental Dois conceitos importantes para entender a filosofia cosmonômica são os conceitos de “transcendente” e “transcendental”. (1) O termo transcendente se refere àquilo que se encontra do outro lado do limite cosmonômico, àquilo que excede os limites do tempo cósmico. Deus é transcendente. (2) O termo transcendental se refere àquilo que está dentro da cosmonomia e ao mesmo tempo é uma condição para a existência temporal, transcendendo a individualidade de coisas concretas. É o caso do tempo cósmico, das funções modais, as estruturas de individualidade em sua unidade (o horizonte “plástico” da experiência). O homem tem duas “aberturas transcendentais”, ou seja, aberturas para a transcendência: a sua concentração religiosa em direção à origem ou arché, e sua função de fé, que aponta para a transcendência por meio da revelação da origem recebida dentro do tempo.
6. Sujeito e Objeto As discussões sobre epistemologia é comum encontrar como vocabulário básico os termos “sujeito” e “objeto”. Associado a isso temos um debate histórico. Um dos grandes problemas filosóficos na história do pensamento tem sido o dualismo objetivismo versus subjetivismo. Geralmente denominamos sujeito o ente conhecedor, e objeto, o ente conhecido. Os objetivistas tendem a pensar que as propriedades das coisas nascem delas mesmas, de sua essência. Assim, a forma e a ordem que vemos no mundo procede do próprio mundo. Já os subjetivistas pensam que a mente do ente conhecedor, isto é, do sujeito, é que impõe uma ordem nos dados da experiência. Nesse caso, as propriedades do mundo não são “reais”; são antes criações da nossa mente para tornar a experiência inteligível. Podemos dizer que ambas as posições absolutizam ora o mundo, ora o indivíduo, tratando-os como as fontes da ordem, ou, falando de outro modo, das leis cósmicas. O problema com essas formas de explicar a realidade é que elas abrem a porta para o reducionismo. O reducionismo, como nós já vimos, ocorre quando tentamos explicar a 84
Spier, “Christian Philosophy”, p. 54.
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natureza básica de alguma coisa a partir de um conjunto específico de propriedades. Por exemplo: muitos biólogos tentam provar que a vida biológica é meramente uma forma de organização da matéria. Assim, eles tentam demonstrar que a vida pode ser totalmente explicada por processos químicos. Supõe-se que as propriedades do aspecto físico são a essência da realidade – um reducionismo objetivista. Outra forma de reducionismo é a idéia de que a beleza física é algo “da nossa cabeça”, e que as coisas não são belas em si. Nesse caso, trata-se de um reducionismo subjetivista. A filosofia reformacional opõe-se à prática do reducionismo por meio do princípio da irredutibilidade. Levando em conta as Escrituras, seguiremos uma terceira opção. Toda a realidade é governada por Deus por meio de seus decretos, ou leis. Assim, há objetos, e há o sujeito, mas há também a lei divina, ou nomos, como o terceiro elemento, que conecta e relaciona sujeito e objeto, e faz as coisas funcionarem como funcionam, com as propriedades que apresentam.85 Assim a realidade tem dois “lados”: o lado de “lei”, e o lado de “entidade”, ou “sujeito”. Dooyeweerd chamava esses dois lados de law-side e subject-side. Dentro do lado subjetivo, estariam tanto o sujeito como o objeto. Cada esfera teria um lado de lei e um lado subjetivo. O que é um sujeito? Nesse esquema, o sujeito não é apenas o homem como ser consciente. Sujeito é aquilo que funciona subjetivamente dentro de uma esfera modal específica, e objeto é aquilo com o qual o sujeito se relaciona sob as leis de uma de suas funções subjetivas. Assim, um objeto é também, de certo modo, um sujeito, e os “objetos” concretos são objetos para nós funcionando sob as normas de uma modalidade específica.
7. Os Conceitos Analógicos A Idéia de Analogia Todos nós conhecemos a experiência de admirar um sermão no qual o pregador conseguiu falar claramente e concisamente sobre o seu assunto. Mas porque achamos isso importante? Não é suficiente que o pregador tenha fé? Aparentemente, valorizamos muito a economia de palavras. A noção de “economia de palavras”, ou, num problema de matemática, de “economia de pensamento”, envolve duas modalidades: a econômica e a lingüística, ou a analítica. Vamos tomar o primeiro caso. A noção traz em si algo do sentido das duas esferas. Além disso, podemos dizer que a esfera principal do conceito é a analítica, pois o termo “economia” é subordinado ao termo “pensamento”. Que tipo de conceito é esse? O que ocorreu é que encontramos dentro da modalidade lógica um momento de sentido que traz grande semelhança (analogia) com a frugalidade, que é o núcleo de sentido da esfera econômica. O mesmo ocorre com a noção de “economia de palavras”: uma analogia lingüística dentro da esfera analítica. A analogia econômica dentro da esfera lógica é um tipo de antecipação do núcleo de sentido da esfera econômica; trata-se de um conceito semelhante, mas não do original. Quando a noção de frugalidade acontece em outros aspectos, ela é sempre caracterizada ou qualificada pelo núcleo de sentido daquele aspecto não-econômico. Há também momentos de sentido dentro de uma esfera que são análogos ao núcleo de sentido de aspectos anteriores. A noção de “espaço econômico”, por exemplo, é um 85 A
esse complexo de leis cósmicas que regem a real idade denominamos “cosmonomia”.
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análogo do núcleo de sentido da esfera espacial. A esse outro tipo de analogia damos o nome de retrocipação. As analogias podem se tornar bastante complexas. Quando a analogia se refere ao núcleo de sentido de um aspecto imediatamente próximo na escala modal, dizemos que a analogia é direta; é o caso da “linguagem lógica”, por exemplo, ou do sentimento ou percepção sensória, que é uma analogia sensória da esfera biótica. Mas se falamos de “vida de fé”, por exemplo, a analogia é indireta, pois há varias esferas entre a biótica e a fiduciária. Quando a analogia é indireta, ela não pode existir sem a participação das esferas que estão “no meio”. Essas analogias indiretas se tornam, assim, analogias complexas. Um exemplo de analogia complexa é a noção de “movimento numérico”. Temos um conceito análogo do movimento dentro da esfera numérica, apontando para a progressão numérica. Embutida na noção de movimento numérico está a noção de espaço, dentro do qual um movimento pode ocorrer. A complexidade de uma analogia cresce com o número de aspectos entre a esfera principal e a esfera para a qual a analogia aponta. A primeira e a última esfera da escala modal (numérica e fiduciária) são casos especiais. O aspecto numérico não tem retrocipações, apenas analogias, por ser o primeiro, e o aspecto fiduciário não tem antecipações, por ser o último. Na verdade ele manifesta uma direção antecipatória pelo fato de se dirigir para o horizonte transcendente da experiência, para a Origem, mas não apresenta conceitos analógicos antecipatórios. A Natureza Analógica da Experiência e a Universalidade Modal Como vimos anteriormente, é impossível captar o núcleo de sentido de uma esfera modal em um conceito racional. Isso ocorre porque os modi da experiência são aprioris transcendentais do conhecimento, dentro dos quais a própria conceptualização se insere. Desse modo, esses núcleos representam os limites de significado para qualquer conceptualização, até mesmo as tentativas de descrever esses conceitos. Por essa razão, qualquer conceito, por complexo que seja, pode ser recomposto em termos de conceitos analógicos. Se tomarmos, por exemplo, a definição que Dooyeweerd dá para o núcleo de sentido da esfera jurídica: “uma bem balanceada harmonização de uma multiplicidade de interesses”. O que temos aqui? Uma analogia econômica (“bem- balanceada”), uma analogia estética (“harmonização”) e uma analogia numérica (“multiplicidade”). Além disso, se quisermos definir o significado da palavra “interesse”, vamos precisar de uma série de conceitos. Em um dicionário encontramos, por exemplo, “lucro”, “proveito”, “vantagem”, “simpatia”. Os primeiros termos tem nítidas conotações econômicas. Quanto ao termo “simpatia”, traz consigo a noção de “união”, e de estar “junto com”, que seriam analogias espaciais (simultaneidade) e físicas (interação). Se dissermos que interesse é “estar dirigido para uma finalidade”, “estar dirigido” é uma analogia espacial, e “finalidade” uma analogia histórico-formativa, na idéia de telos. Por quê as analogias permeiam e penetram tão profundamente em nossas idéias e linguagem? Dooyeweerd apontou o conceito de universalidade modal. Com isso ele se referiu ao fato de cada esfera espelhar, dentro de si mesma, a totalidade do sentido cósmico disperso na escala modal. Em cada modalidade temos conceitos analógicos de todas as outras modalidades. Assim, a cosmonomia pode ser descrita, como propõe Stafleu, como um mapa tridimensional, no qual cada modalidade constitui numa “grade” com todas as outras modalidades atravessando essa grade perpendicularmente. É o fato da universalidade
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modal que permite ao pensamento imanentista a prática do reducionismo teórico, pois há uma semelhança estrutural entre as diversas modalidades da experiência. Esse estranho fenômeno na realidade aponta para a natureza significante do cosmo criado. O ser do cosmo é significado, e todas as esferas do sentido cósmico referem-se “incessantemente” umas às outras, sem descanso, até que a plenitude do sentido seja encontrada em sua fonte, seu Arché. Além disso, a estrutura analógica da experiência nos mostra que não podemos formular qualquer concepção sobre qualquer dimensão ou objeto da nossa experiência sem que nossas visões sobre a totalidade do sentido e sobre as outras dimensões que não estamos considerando nesse momento estejam conosco determinando nossa forma de pensar e agir . Antinomias Intermodais A filosofia cosmonômica ensina que Deus não estabeleceu leis contraditórias para a realidade temporal. Por essa razão, uma antinomia, isto é, uma contradição de leis, é impossível. Este princípio foi denominado principium exclusae antinomiae, ou princípio da antinomia excluída. Quando uma antinomia emerge no pensamento teórico, temos um sinal evidente de que ocorreu uma falha na diferenciação entre as esferas modais e as leis de uma esfera estão sendo procuradas em outra esfera. Um dos melhores exemplos de antinomias intermodais são os paradoxos de ZENO (500 A.C.). Influenciado por PARMÊNIDES, o fundador da escola Eleática, Zeno tentou mostrar que de o verdadeiro ser é eterno, indivisível e imutável, e que a mudança seria uma ilusão dos sentidos. Um dos paradoxos é o de Aquiles tentando ultrapassar uma tartaruga na corrida. Embora a experiência nos diga que Aquiles vencerá a corrida, o pensamento nos diz que não. Pois quando Aquiles chega aonde a tartaruga começou, ela já está mais à frente; e quando ele alcança essa nova posição, ela já andou mais um pouquinho, e assim por diante, de tal modo que, teoricamente, Aquiles jamais alcançará a tartaruga! Outro exemplo é o pássaro voando; no exato momento presente, o que vemos é um pássaro imóvel no ar, e no próximo momento, ainda o vemos imóvel no ar. Desde que o tempo é composto de uma série de momentos indivisíveis, durante os quais o pássaro está em descanso no ar, podemos concluir que o pássaro esteve imóvel durante todo o tempo. O que temos aqui são antinomias entre a percepção e o pensamento, como se um contradissesse o outro.86 Com base nisso, Zeno argumentou que a essência do real é imóvel, e o mundo da percepção é o “não-ser”, a ilusão. Qual teria sido o erro básico de Zeno? O seu raciocínio, formalmente falando, estava correto, mas ele pressupôs, desde o princípio, a inexistência do movimento, negando que ele fosse um aspecto irredutível e assim tentando examiná-lo a partir das leis da esfera espacial, tratando assim o movimento como seqüências de posições no espaço. Isso não é o movimento, mas o substrato espacial do movimento! Uma outra antinomia interessante citada por K AALSBEK é o mecanicismo de JEAN DE LA METTRIE, exposto em sua obra “O Homem como Máquina” (1747). La Mettrie argumentou que somente encontramos no homem operações mecânicas. Sendo um autômato, o homem não poderia, por exemplo, ser responsabilizado moralmente por suas 86
Kaalsbek, “Contours”, p. 115.
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ações. Temos aqui uma antinomia entre a esfera física e a esfera normativa moral. A “demonstração” simplesmente pressupõe a si mesma. Quase todo reducionismo é auto-referencialmente incoerente, pois implica na negação das condições necessárias para a sua própria existência. Uma dessas condições é a validade das leis lógicas. A absolutização de esferas não-lógicas traz por implicação a negação da independência das normas lógicas, e portanto de sua validade para justificar a teoria reducionista. Podemos dizer que essa é a expressão lógica da antinomia intermodal. O princípio da antinomia excluída tem um valor heurístico, nos ajudando a determinar se nós localizamos corretamente o núcleo de sentido de uma esfera modal. Além disso, podemos testar uma teoria para perceber se ela nos leva a antinomias intermodais, o que significaria que essa teoria é reducionista. Kaalsbek cita Dooyeweerd: “Caso nós estejamos em dúvida se os conceitos fundamentais de jurisprudência, economia, ciência histórica, e assim por diante, estão relacionados a aspectos modais específicos da experiência humana e da realidade empírica, nós podemos tentar reduzi-los a conceitos fundamentais de outras ciências cujos campos modais de pesquisa já foram bem definidos. Quando essa tentativa leva a antinomias insolúveis específicas, temos uma prova negativa de violação teórica dos limites modais entre esferas mutuamente irredutíveis. “Aplicando este método à teoria do direito eu fui capaz de estabelecer que os conceitos jurídicos fundamentais de causalidade, vontade, poder, interpretação, etc., devem ter um sentido modal jurídico irredutível, desde que elels não permitem a si mesmos serem reduzidos a conceitos analógicos de outras ciências sem envolver o pensamento jurídico em antinomias.”87
8. Análise das Estruturas Modais do Sentido A. A Esfera Numérica Esta é a primeira esfera na ordem temporal. O momento nuclear dessa esfera é a “quantidade discreta”. Números se referem a quantidades ou magnitudes diferentes: dois é mais que um, três é mais que dois, etc. A transição de um número para o outro é sempre um salto, não havendo continuidade total. Assim a razão 99/100 é próxima de 2, mas há ainda uma distância definida. O momento nuclear numérico apresenta analogias antecipatórias, mas nenhuma analogia retrocipatória, uma vez que não há modalidades mais básicas que a numérica. Assim essa é a mais simples de todas. Ao mesmo tempo, é a base de todas as outras modalidades. Não há nada no mundo que exista sem “quantidade”. Para termos uma noção de espaço, por exemplo, precisamos da intuição da quantidade em termos de dimensões, e na geometria descrevemos o espaço em termos numéricos. A noção de movimento também implica em quantidades: velocidade, deslocamento, aceleração, etc.; e a noção de corpo implica em uma série mais complexa de “quantidades”. Organismos vivos possuem quantidades de vários tipos: físicas (dimensões, movimento, força, composição, etc.), genéticas, fisiológicas, neurológicas, etc. As percepções também existem em quantidades, e no pensamento há multiplicidade de conceitos, bem como a noção de “magnitude” de pensamento. 87 Ibid,
p. 118.
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O lado subjetivo da esfera numérica são os números. O lado normativo são as leis que Deus estabeleceu para governar a “lógica” da quantidade. Dois vezes dois é sempre quatro: os números nunca se livram desses padrões transcendentais. Alguém pode errar uma conta de matemática, mas não pode tornar o erro um acerto. O tempo cósmico é expresso nessa esfera através da seqüência numérica. B. A Esfera Espacial O momento nuclear da esfera espacial é a extensão. Trata-se de uma realidade distinta da “quantidade”. Isso pode ser notado quando percebemos que, enquanto as quantidades existem discretamente, isto é, como fatos “pontuais”, separados entre si, o espaço implica em continuidade, ou extensão. Assim espaços bidimensionais e tridimensionais não são experimentados por nós como séries de quantidades ou seqüências justapostas, mas como extensões contínuas, ainda que nós usemos números para representálas. A esfera espacial apresenta uma analogia retrocipativa numérica, no fato de que podemos pensar no “espaço” dos números, ou no “espaço matemático”. Além disso ela apresenta várias antecipações. Não se pode, por exemplo, pensar o movimento sem a noção de espaço, pois o movimento exige uma extensão espacial sobre a qual ele ocorre. Corpos materiais ocupam espaço. A vida orgânica também implica espaço de várias formas diferentes: animais precisam de um meio-ambiente e de uma “área” dentro dele para se sustentarem; os processos bióticos se distribuem no organismo de tal modo que cada um tem o seu “lugar”. A própria noção de “esferas modais” é uma analogia espacial dentro das diversas modalidades: “esfera jurídica”, “esfera cultural”, etc. Objetos reais estão sujeitos às leis espaciais na sua função subjetiva espacial. Assim, por exemplo, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo. Dois estados não podem governar o mesmo território ao mesmo tempo. O tempo cósmico se expressa nessa esfera na noção de simultaneidade. Duas coisas podem estar próximas uma da outra no espaço ao mesmo tempo. A ciência que estuda as duas primeiras esferas é a matemática. C. A Esfera Cinemática O núcleo de sentido do aspecto cinemático é o movimento. O aspecto cinemático é imediatamente anterior ao aspecto físico, sendo a última esfera que não qualifica nenhum objeto real. Isso poderia levar alguns à impressão de que a ordem estaria invertida, uma vez que alguns objetos aparentemente existem sem movimento, isto é, em repouso. Essa linha de raciocínio reproduz a noção aristotélica de que os corpos são postos em movimento pela ação de forças. A visão aristotélica clássica foi desafiada por GALILEU e NEWTON, que mostraram que o efeito real de uma força não é retirar do estado de repouso, mas alterar a velocidade de um corpo. Na verdade, todo corpo está em movimento, e a impressão do repouso está relacionada à velocidade do observador. Essa percepção é perfeitamente coerente com o pensamento reformacional, segundo o qual o movimento seria uma dimensão irredutível da realidade. O ponto é que “... é a mudança de movimento e não o movimento em si mesmo que precisa de uma causa.”88 A 88
Esse é o significado da “lei da inércia”. Strauss, Daniel F.M., “The Significance of Dooyeweerd’s Philosophy for the Modern Natural Sciences.”, p. 132.
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existência de uma ordem cinemática é indicado pela constância da velocidade da luz. Isso levou DANIEL STRAUSS a postular que a forma mais apropriada de falar sobre a ordem temporal, ou ordem cosmocronológica dessa esfera seria a noção de constância. A mudança, envolvida em toda alteração de movimento, só faz sentido na base de algo constante. O aspecto cinemático nos dá um sistema de referência para compreender qualquer tipo de movimento. O movimento só pode ser concebido se aquilo que se move permanece idêntico a si mesmo durante o movimento. Isso introduz a noção de “presente temporal”, como aquela identidade que atravessa o tempo. Conforme destaca STAFLEU, a teoria da relatividade mostrou que o presente não é universal, dependendo da velocidade do sistema de referência; o presente só pode ser concebido em relação a uma determinada individualidade, consistindo num ponto de referência no qual alguma coisa permanece ela mesma. Assim, o presente é determinado pelo ponto de vista de alguém, e é o mesmo apenas para sistemas que não se movem com uma diferença de velocidade muito grande entre si. De modo que, o “agora” temporal, que é o “agora” de um ponto de referência individual, é baseado no aspecto cinemático. Esse “agora” divide a experiência em “passado” e “futuro”, separados pelo ponto de referência individual.89 Portanto, é partir do aspecto cinemático que a noção ordinária de tempo é constituída. As três primeiras esferas, como observamos antes, são fundamentais para todas as outras, embora não exista nenhum objeto real que seja sujeito apenas nessas três esferas. As três, juntas, constituem a idéia básica de tempo que nós utilizamos: “A associação do tempo com o lado de ordem do s três primeiros aspectos modais não é nova. Os três universais que Descartes chamou duratio, ordo e numerus, reapareceu de uma forma revisada no reconhecimento por Kant dos três modos do tempo: sucessão, co-existência e duração. Desde os tempos antigos a medição do tempo esteve intimamente relacionada aos três modos do tempo distinguidos por Kant, desde que a sucessão (antes e depois), simultaneidade (co-existência) e duração (fluxo de tempo) são todos geralmente relações aceitas do tempo.” 90
D. A Esfera Física/Energética O núcleo de sentido da esfera física é a interação. O aspecto físico implica em que tudo no cosmo interage com tudo o mais. Se alguma coisa não interage com outras, então ela não existe no sentido físico. Matéria e energia fluem e interagem permanentemente, e essa interação se caracteriza pela irreversibilidade. A irreversibilidade dos processos físicos e químicos estabelece uma discriminação entre o passado e o futuro. Assim, o sentido das interações permite a existência de conexões causais, com a causa sempre precedendo o efeito.91 Assim as noções de “mudança” e de “transformação” são introduzidas pela esfera física/energética. Naturalmente, a mudança pressupõe a constância; fica claro assim que a 89
Stafleu, Marinus Dir k, “The Cosmochronological Idea in Natural Science.”, p. 95, 96. Strauss, “Significance of Dooyeweerd”, p. 133. 91 “A irreversibilidade é altamente relevante para a idéia de individualidade, coisas e eventos como sendo sujeitos às leis da probabilidade. A atualização das possibilidades que constituem o presente é irreversível. Assim o passado é determinado, deixa traços, e pode ser relembrado, e o futuro está aberto e pode ser influenciado. Portanto a assimetria do passado e do futuro é baseada no aspecto físico.” Stafleu, “Cosmochronological Idea”, p. 96. 90
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esfera cinemática precede à física numa “lógica cosmológica”. A relação das duas esferas seria o intercâmbio entre constância e dinâmica.92 A leis que governam a interação físicoenergética são as leis da esfera física. Aqui estão por exemplo a força gravitacional, a força nuclear forte e fraca, e a força eletromagnética. Objetos físicos são qualificados pela esfera físico-energética, caracterizando-se pela existência da interação física. A sua “materialidade” está ligada a interações moleculares, atômicas e subatômicas, não existindo a “matéria” como uma espécie de substância ou essência independente. Transformações químicas pertencem a essa modalidade. A esfera físico-energética pressupõe as esferas numérica, espacial e cinética, não sendo possível conceber a noção de matéria/interação sem supor quantidades e magnitudes, espaços ocupados/desocupados e simultaneidades, e inércia. A esfera física apresenta antecipações analógicas das esferas superiores. O materialismo ou naturalismo filosófico é a deificação da esfera físico-energética da experiência. O naturalismo procura reduzir todo acontecimento no horizonte da experiência humana a uma causalidade material, e aplica as leis físico-químicas para explicar realidades biológicas, psíquicas e até mesmo mentais. E. A Esfera Biótica O núcleo de sentido da modalidade biológica é, naturalmente, a vida. Os seres vivos tem uma função subjetiva na esfera biótica, diferenciando-se assim dos objetos inanimados, cuja última função subjetiva é a física. Entre os seres vivos, vários funcionam subjetivamente em outras funções, como a psíquica. Já os vegetais e bactérias, por exemplo, tem na esfera biótica a última função subjetiva, sendo assim qualificados bioticamente. Segundo SPIER , essa modalidade é freqüentemente denominada como “orgânica” devido à sua forma singular de organização física, diferenciando-se dos objetos físicos. Estes últimos são compostos de partes intrinsecamente homogêneas, não havendo sistemas heterogêneos interdependentes. No organismo, as partes são insubstituíveis, contribuindo conjuntamente para a totalidade viva com funções diferentes e organicamente significativas. Não é, entretanto, inteiramente correto identificar a “vida” biótica com a “organicidade”, uma vez que é possível encontrar padrões “orgânicos” de organização em outras esferas modais posteriores. Isso traz o perigo de reduzir modalidades pós-bióticas à esfera biótica, como se fossem formas mais complexas de “vida”.93 É reconhecidamente difícil definir a vida. Definições como “movimento”, ou “processo”, ou “padrões de informação”, além de serem evidentemente insuficientes, são na verdade analogias de outras esferas (cinética, histórica, analítica, por exemplo). A origem 92
“Talvez a mais óbvia conseqüência da coerência fundacional entre o aspecto físico e o aspecto cinemático seja vista quando procuramos pela retrocipação do primeiro no segundo: constância energética (energyconstancy). Mas a expressão “constância energética” pode apenas ser uma retrocipação cinemática dentro da estrutura modal do aspecto físico. A formulação tradicional usada para explicar a primeira lei da termodinâmica é conhecida como a “lei da conservação da energia”. A noção de conservação , entretanto, é mal entendida. Conservar alguma coisa requer uma entra de energia (energy-input), contrariamente à intenção do enunciado da lei. Para capturar a verdadeira intenção da primeira lei, a expressão “constância energética” deve ser usada – vista como uma analogia cinemática no lado normativo do aspecto físico.” Strauss, “Significance of Dooyeweerd”, p. 133, 134. 93 Spier, J.M., “An Introduction to Christian Philosophy”, p. 68.
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da dificuldade é o fato de que qualquer definição precisa colocar o objeto definido dentro de uma categoria mais ampla e então diferenciá-lo de outros objetos dentro dessa categoria. E aqui está o problema: o que distingue a vida é justamente o que a tira de outras categorias, como matéria, movimento, informação, etc! Assim, a vida não é algo que possa ser captado num conceito teórico. A origem da dificuldade, segundo Dooyeweerd, é que a vida não é, em si mesma, um fenômeno derivado de outra realidade, que possa ser adequadamente explicado como, por exemplo, um padrão de organização da matéria. Igualmente, não é uma “essência” independente, como acreditaram os vitalistas. Isso é evidenciado por dois fatos óbvios: (1) jamais alguém observou a vida biológica meramente emergindo da matéria e, (2) jamais alguém pôde detectar a vida como uma substância ou energia independente. Tudo isso favorece a interpretação reformacional da vida: ela seria um dos modi da realidade, um aspecto da experiência. MAGNUS VERBRUGGE94 defende habilmente essa posição: “Uma longa batalha a respeito da origem da vida foi iniciada há muito tempo po r cientistas que rejeitam o criador. Sendo “limitados pela terra”, eles buscam encontrar a origem da “primeira coisa viva” na terra, isto é, dentro da criação, com a ajuda da teoria da abiogênese. Devido à importância fundamental desse tema para qualquer trabalho científico posterior a respeito das origens, o autor devotou um estudo mais longo às teorias propostas para explicar a natureza e origem da vida em seu livro Alive, an enquiry into the origin and meaning of life (“Vivo: uma investigação sobre a ori gem e significado da vida). 95 Muitos cientistas modernos aceitam a teoria de que todas as entidades atômicas e moleculares sempre se movem e interagem umas com as outras ao acaso. Se por exemplo, moléculas em uma solução se alinham entre si para formar um cristal, isso ocorre de um modo fortuito, segundo sua crença. Eles concordam que todos os seres vivos apresentam funções não encontradas em matéria inanimada. Eles também reconhecem como uma das principais características dos seres vivos que todos os seus componentes materiais, átomos e moléculas, não se movem ao acaso, mas estão sob a direção do ser vivo como um todo. Concordam também que uma célula viva move seus componentes materiais de modo coordenado, regulado e temporizado de tal forma que a integridade da célula permaneça intacta; ela os direciona num modelo absolutamente não-casual. Entretanto eles concluem, conforme as teorias geralmente aceitas, que as partículas físicas sempre interagem ao acaso, exceto quando elas não o fazem. Nós temos assim a situação de que todas as moléculas são iguais, mas algumas são mais iguais que as outras, para parafrasear George Orwell. Este é um exemplo típico do que Dooyeweerd denominou como a inevitável antinomia (afirmação auto-contraditória) na qual alguém fica enredado quando tenta reduzir um aspecto da realidade a outro. Os biólogos moleculares, que investigam as interações físicas e químicas que ocorrem numa célula, não podem compreender por quê as coisas acontecem dessa forma, e como uma entidade viva pode causar processos materiais. Não há explicação de como uma coisa viva pode ultrapassar a barreira entre o que vive e o que está morto e fazer com que coisas mortas se tornem componentes do que vive – afinal, a matéria morta nunca é vista fazendo isso. Este enigma é não apenas solucionado mas facilmente abolido quando alguém aceita o fato, como o fez Dooyeweerd, de que aspectos ou esferas modais como a física e a biótica não são “coisas” que fazem algo, mas estruturas normativas abstratas, como a cor e a 94
Verbrugge, Magnus, “A New Look on Scientific Inquiry”. Verbrugge: Alive, an enquiry into the origin and meaning of life. Valecito Calif.: Ross House Books, 1984. 95 Cf. M.
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gravidade, que não “fazem” nada. É o portador desses aspectos, como a molécula morta ou a célula viva, que “faz” alguma coisa. A objeção tem sido feita de que ninguém pode provar que a abiogênese não pode acontecer, o que é verdadeiro. Ninguém pode provar que alguma coisa que nunca aconteceu possa acontecer no futuro. Mas uma coisa não pode ser verdadeira e não ser verdadeira ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Isso seria irracional. O principal argumento contra a teoria da abiogênese é que ela afirma que, em algum tempo no passado moléculas não se moveram ao acaso (com o propósito de dar origem à primeira coisa viva), enquanto ao mesmo tempo sustenta a teoria de que as moléculas sempre se movem ao acaso. Isso é obviamente irracional. Assim a teoria da abiogênese deve ser descartada. Ninguém sabe o que a “vida” é, mais do que sabe o que o número é, ou o que o espaço é, ou o que o movimento é, ou o que a energia é. Um dos mais proeminentes advogados do materialismo e da abiogênese nesse século foi o químico russo A. I. Oparin. Ele admitiu enfaticamente que ninguém sabe o que a vida é. Mas, ele adicionou com injustificável otimismo: “nós vamos descobrir o que ela é quando fabricarmos a primeira coisa viva em nosso laboratório.” Sendo um aspecto, a vida não é uma “coisa”, mas uma forma das coisas funcionarem; ela indica um tipo particular de propriedade que as coisas vivas apresentam e que as coisas não-vivas não tem. Não é uma coisa que nós possamos manufaturar, colocando sobre uma mesa, adicionando partículas de matéria, e então declarando que elas estão vivas. A vida não é uma coisa real com uma entidade individual, mas um modo de existência que algumas entidades possuem. Assim nós podemos concluir que não podemos reduzir a vida a nenhuma outra realidade.
Como Verbrugge deixa claro, a perspectiva reformacional implica que a vida não flui da matéria. R OBERT K NUDSEN, filósofo do Westminster Seminary denominou a tradição científica que procura explicar a origem das formas de vida a partir da evolução transformismo. Segundo ele, que segue nesse ponto o paleontólogo cristão J. DUYVENÉ DE WIT, o ideal humanista de ciência exigia uma explicação do universo “... em termos de uma cadeia de relações causais funcionais.”96 A pressão do ideal de ciência leva a um esforço por estabelecer uma continuidade cósmica na qual a vida emerge da matéria e as formas mais complexas de vida emergem das mais simples, num fluxo único de evolução, de modo a preservar uma cadeia de causalidade imanente. Essa idéia de continuidade é uma noção puramente especulativa, mas poderosa, ao ponto de levar os biólogos a ignorarem os sinais de diversidade e complexidade irredutível que são encontrados na natureza. Assim ignoram a inexistência de evidência a favor da abiogênese; ignoram também a existência de “saltos” evolutivos, ou intervalos no registro fóssil (“elos perdidos”) que contradizem a noção clássica da evolução, a dificuldade de explicar como mutações genéticas causais (“randômicas”) podem de fato ter beneficiado as espécies ao invés de destruí-las, a existência de sistemas biológicos irredutíveis, especialmente em nível molecular que a bioquímica mais recente tem destacado. Segundo K NUDSEN e DE WIT, a pesquisa empírica dos seres vivos não conduz diretamente à teoria da evolução; antes, “a tendência dogmática dentro da estrutura do ideal de ciência criou uma tensão entre a verdadeira arquitetura da natureza, como tem sido descrita pela pesquisa científica, e a imagem teórica da natureza que é construída de acordo com o ideal de ciência.”97 96 Knudsen, Robert, Biology: 97 Ibid,
p. 22.
“The Encounter of Christianity with Secular Science.”, p. 21.
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Contrariamente à posição transformista, na posição cristã a descontinuidade na estrutura da natureza é aceita como uma realidade básica. Uma vez que o cosmo, em todas as suas dimensões, depende da vontade de Deus para seu funcionamento, não é necessário nem próprio explicar todas as coisas a partir de alguns princípios elementares e independentes. Isso não significaria, necessariamente, a negação de qualquer tipo de hipótese evolucionista; mas certamente implica a negação do neodarwinismo, da abiogênese, e da noção de que todas as formas de vida procedem de um único organismo unicelular original; além disso, não faz sentido dizer que a vida “se originou” e “evoluiu”, pois o que nasce, vive, se transforma e morre é o indivíduo real, não a “vida”, que em si ela não é uma coisa mas um dos modi da realidade. Outro ponto da posição cristã é a busca de evidência de desígnio inteligente, nas estruturas biológicas irredutíveis que são indispensáveis à vida. O biólogo não estuda, assim, a “vida” como uma espécie de entidade independente, mas os seres vivos: estruturas de individualidade que funcionam subjetivamente na esfera biótica. Estuda fenômenos qualificados bioticamente, classificando as coisas vivas e analisando sua estrutura. Em si mesma, a vida não pode ser capturada num conceito, e muito menos analisada pelos instrumentos dos biólogos. A idéia de vida tem um caráter transcendental, fornecendo uma estrutura ontológica para guiar a teorização científica definindo o significado adequado dos termos. É a filosofia a disciplina que examina cientificamente a idéia de vida e os termos a ela relacionados A vida biótica envolve uma dimensão quantitativa. Temos assim a relação entre o todo e as partes como uma analogia numérica. O conceito de espaço vital é uma analogia espacial; o de movimento vital, uma analogia cinética; o de “biomassa” de uma região é uma analogia física. Essa modalidade também antecipa esferas posteriores. Podemos falar assim de uma “sensação de vida”, de uma “lógica da vida”, ou de um “poder formativo” da vida sobre a matéria. Todas as criaturas vivas estão sujeitas às leis da esfera biótica, como as leis da reprodução, hereditariedade, crescimento, etc. O tempo cósmico se revela nessa esfera como o desenvolvimento orgânico, que obedece a uma ordem de gerações, ou geracional. F. A Esfera Psíquica O naturalismo filosófico manifesta uma forte tendência de reduzir as esferas pós bióticas à esfera biótica e físico-energética. Essa tendência, originária do ideal de ciência humanista, encontrou resistência em pensadores como WILHELM DILTHEY e MAX WEBER , para quem as ciências do espírito (Geisteswissenschaften) investigavam uma dimensão distinta da experiência humana, devendo diferenciar-se metodologicamente das ciências naturais ( Naturwissenschaften). Essa distinção, embora importante, não é suficiente para nos livrar do reducionismo, como se pode ver nos diversos funcionalismos recorrentes nas ciências humanas: logicismo, historicismo, psicologismo. O erro do psicologismo, ou sensorialismo, introduziu-se freqüentemente, por exemplo, na epistemologia, quando filósofos tentaram provar que a base de todo o conhecimento seriam sensações empíricas. Torna-se assim, importante definir melhor essa modalidade. Eu mesmo cometi esse erro numa correspondência com o filósofo R ICARDO GOUVEIA, que transcrevo abaixo:
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O momento nuclear da esfera psíquica é o sentimento, a sensação. Essa dimensão não é meramente um efeito da esfera biótica, uma vez que podemos abstrair a idéia de sensação da idéia de vida. Nem toda criatura viva tem “sensações”, como é o caso das plantas. Animais tem sentimento; eles recebem impressões sensórias e tem “emoções”, embora não sejam capazes de racionalidade. Nessa modalidade incluímos os sentidos (visão, tato, audição, olfato) e os sentimentos. A esfera psíquica tem um susbstrato modal de cinco esferas. Assim não podemos pensar em sentimentos sem pensar em magnitudes, em espaço, em movimento/constância, em corpos e processos físico-energéticos, ou vida biológica. As sensações de magnitude, de espaço, de movimento e da matéria, por exemplo, são retrocipações da esfera sensória nas quatro primeiras modalidades. A “diferenciação perceptual”, isto é, a discriminação dos tipos de sensações e a “influência” ou “condicionamento” do comportamento pelos sentimentos são antecipações das esferas analítica e histórica. Quanto a sentimentos específicos, como medo, alegria e tristeza, não devemos confundí-los com momentos analógicos; eles são antes realidades ontológicas, entidades reais, podendo ser decompostos pela análise modal e tendo dimensões em todas as esferas. O tempo se expressa nessa modalidade como um sentimento de duração. A leis da esfera psíquica são aquelas que governam o processo da percepção e da organização dos sentimentos. Essa esfera é estudada pela psicologia empírica. Nesse ponto é importante diferenciar essa “psicologia pura” da psicologia como estudo do “ser humano” de forma total, como às vezes se vê, no qual o estudioso na verdade não focaliza apenas o sentimento, mas toda a relação entre o biótico, o psíquico propriamente, e outras dimensões da pessoa: a social, a ética, a lógica. Essa “psicologia ampla” talvez devesse ter outro nome, para se evitar o reducionismo psíquico.98 G. A Esfera Analítica Seguindo-se à esfera psíquica temos a esfera analítica. Assim temos muitas criaturas que possuem sentimento mas não raciocinam; por outro lado, não há seres que raciocinam mas têm sentimentos! Isso que a esfera analítica está apoiada sobre a psíquica. O momento nuclear da esfera analítica é a análise racional, ou, a observação da diversidade.99 Há um nível ordinário de atividade analítica no qual a pessoa não se concentra na abstração teórica de esferas da experiência, mas nas entidades concretas da experiência (os “objetos” reais), distinguindo-as e estabelecendo relações conceptuais entre elas. Através da análise e síntese são formados conceitos, julgamentos e argumentos a respeito das coisas, e de sua relação mútua. Naturalmente, dentro da experiência ordinária há níveis variados de profundidade, e usa-se conceitos originados no pensamento científico, mas não se pratica aquele tipo de abstração mais sofisticado que é próprio da ciência. O que distingue o modo científico de pensar do modo ordinário ou comum, é a presença da abstração modal: a entidade concreta passa a ser percebida não em sua totalidade, como um sistema unificado, mas como uma composição de várias dimensões 98
“Se nossa visão é correta, a tendência de identificar psicologia com antropologia, a ciência que estuda a estrutura da individualidade humana, deve ser enfaticamente rejeitada. Tal identificação necessariamente leva ao psicologismo, que por absolutizar o aspecto psíquico da realidade é incapaz de manter o caráter transcendente do coração humano e é incapaz de reconhecer que o último foi criado à imagem de Deus.” Ibid, p. 71. 99 Spier, “Introduction”, p. 72.
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que são estudadas separadamente, para se produzir uma imagem teórica de uma ou mais de suas dimensões. A esfera analítica apresenta também suas analogias. A noção de “sentido lógico”, ou percepção lógica é uma analogia psíquica retrocipativa na esfera lógica. As idéias de “vida intelectual” ou de “organicidade num sistema conceptual” são analogias bióticas. A noção de progresso de uma idéia a outra, ou seja, de “movimento de pensamento”, é uma analogia cinética na esfera analítica, e a idéia de síntese e “interação conceptual” é uma analogia físico/energética. O “espaço intelectual” é uma analogia espacial, a “multiplicidade de conceitos” é uma analogia numérica. Quanto às analogias antecipatórias, temos a “formação de conceitos” antecipando a esfera histórica, a “economia de pensamento” antecipando a esfera econômica, a “harmonia no pensamento” antecipando a esfera estética, as noções de “juízo lógico”, “evidência suficiente” e a “justificação epistêmica” antecipando a jurídica, o conceito deontológico de “dever de ser racional” antecipando a esfera ética e a “certeza lógica” antecipando a esfera fiduciária. As leis do pensamento pertencem ao lado de lei ou lado “nômico” da realidade, e governam a atividade intelectual. Diferentemente, no entanto, das primeiras seis esferas, na esfera analítica as normas do pensamento não são aplicadas ao lado subjetivo automaticamente. Até à esfera psíquica essa aplicação é automática: uma pedra não pode evitar o “espaço”, e um animal não pode evitar a “percepção”, mas um homem pode evitar pensar, ou pensar erradamente. Isso levou Dooyeweerd a considerar todas as esferas pós psíquicas, começando com a esfera analítica, como modalidades normativas. Os sujeitos da esfera analítica (os homens) e todos os objetos que aparecem como objetos numa esfera pós-psíquica estão sob as leis da análise, mas o homem pode desobedecer a estas leis e analisar erradamente qualquer objeto. O mesmo se aplica às esferas seguintes: histórica, econômica, estética, etc. Nessas modalidades pós-psíquicas é necessária a atividade humana para especificar e positivizar as normas, criando princípios que possam ser seguidos pelos homens.100 Quais seriam as leis da esfera analítica? SPIER identifica quatro leis básicas do pensamento, baseando-se principalmente na obra de D. T. H. VOLLENHOVEN, um filósofo reformacional do círculo de Dooyeweerd que se dedicou ao assunto. (1) A primeira delas é o principium identitatis, ou o “princípio da identidade analítica”. Conforme este princípio o que é analisado permanece idêntico a si mesmo dentro da análise. Não se trata de uma identidade ontológica, no sentido de que o elemento não pode ser alterado, mas de uma 100
“Há uma diferença básica entre as modalidades normativa s e as pré-analíticas ou não-normativas. As coisas que são sujeitas às leis de esferas pré-analíticas são controladas diretamente por elas. As leis dadas por Deus são aplicadas concretamente nessas esferas. Qualquer coisa que tenha uma função subjetiva na esfera física, por exemplo, está diretamente sujeita à lei da gravidade, mesmo se está inconsciente da existência dessa lei. Toda realidade física obedece à lei da gravidade independentemente do homem, e este não torna essa lei concreta a partir de um princípio. As leis das modalidades normativas, em contraste, não são diretamente aplicadas por Deus. Deus colocou certos princípios dentro da estrutura das esferas normativas, mas o homem deve descobrir sua existência. E o conhecimento que o homem tem desses princípios normativos não deve ser igualado aos próprios princípios. Estes exigem ação e desenvolvimento humano. Eles devem ser concretamente aplicados pelo homem. É o trabalho humano que os torna concretos e positivos.” O amor, por exemplo, é um princípio normativo, mas o princípio do amor não nos diz sozinho o que devemos fazer numa certa situação. Ele nem sempre dá aos pais uma solução imediata para os problemas concretos que surgem ao lidar com as crianças. Igualmente um código legal, embora normativo, não livra o juiz da tarefa de chegar a um veredito.” Ibid, p. 76,77.
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identidade lógica, como um princípio de pensamento. Se nós confundimos conceitos lógicos não é possível obter clareza de raciocínio. Um determinado conceito, dentro de um momento reflexivo, deve conservar seu conteúdo de forma fixa, não sendo permitido empregar o mesmo conceito dentro do momento com sentidos diferentes. Esse princípio é geralmente formulado com a expressão A é A. Uma vez que essa expressão não distingue identidade analítica de identidade ontológica, nem revela a possibilidade de desobediência da norma, VOLLENHOVEN propôs outra formulação: “distiguir o A analisável (qualquer que seja) como o A analisável do que todo o restante que é analisável mas que desse ponto em diante é não-A, porque na totalidade que é analisável, apenas A é A.”101 Com essa formulação em mente, Vollenhoven propôs um outro nome para a primeira norma: o principium identitatis indiscernibilum, ou princípio da identidade indiscernível, expressando o lado positivo da norma analítica. (2) A segunda norma é o principium excludendae contradictionis, o famoso princípio da não-contradição, que formula o lado negativo da norma. A formulação clássica é A não é igual a não-A. Na formulação de Vollenhoven: “distinguir o A analisável que sozinho é idêntico a si mesmo, do não-A analisável restante, ao qual A não é idêntico.” Segundo SPIER , o princípio da identidade indiscernível e o princípio da nãocontradição seriam um único princípio básico, em sua expressão negativa e positiva. A formulação positiva do princípio da identidade seria uma analogia retrocipativa numérica na esfera analítica, a partir da noção matemática de 1=1. Já a formulação negativa seria uma antecipação da esfera lingüística, a partir da noção de contradição (dizer o contrário). Uma idéia que contradiz uma idéia verdadeira é falsa. (3) A terceira norma analítica é o principium exclusi tertii, ou princípio do termo médio excluído. Segundo este princípio, se nós dividirmos um grupo de elementos em duas classes, A e não-A, segue-se que o elemento do grupo que não pertence a A, necessariamente pertence a não-A, não havendo outra possibilidade, isto é, um “termo médio”. O princípio do termo médio excluído é conseqüência do princípio da nãocontradição, dependendo dele para sua formulação. Além disso, o princípio do termo médio excluído é válido apenas numa esfera limitada. Ele se aplica quando o pensamento é posto num dilema, quando precisa escolher entre duas opções. Nos casos em que há mais de duas opções ele não funciona (exceto, naturalmente, se por eliminação dividirmos o grupo em subgrupos sucessivamente). Nada disso anula, contudo, a validade desse princípio, apenas indica que ele não pode ser considerado uma lei analítica independente da primeira lei. (4) O quarto princípio é o principium rationis sufficientis, ou princípio da razão suficiente. Conforme este princípio, o resultado de uma reflexão só pode reivindicar veracidade se está apoiado sobre um conjunto suficiente de verdades conhecidas. Não havendo essa base, o raciocínio perde a validade como raciocínio. Como se pode ver, o princípio da razão suficiente não se aplica a toda atividade de pensamento. Há crenças que se apóiam em outras, devendo apresentar “razão suficiente”, mas há crenças muito básicas que não se apóiam em “razões”. “A validade do princí pio da razão suficiente é limitada exclusivamente aos resultados do pensamento em sua relação com o que é conhecível.”102 Assim este princípio também deve ser considerado uma regra de pensamento mas não uma norma analítica independente.
101 Ibid, 102 Ibid,
p. 73. p. 75.
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De um modo geral, a análise nos leva a concluir que não existem “várias” leis de pensamento. O princípio da razão suficiente só é válido para julgar o resultado de um pensamento, mas não governa seu processo em si; o princípio do termo médio excluído é derivado do princípio da não-contradição, e este é, por seu turno, a formulação negativa do princípio da identidade. Assim, os quatro princípios são realmente positivizações mutuamente complementares de uma lei analítica única.103 Essa norma analítica pode ser expressa da seguinte forma: diferenciar o analisável corretamente. Chegamos pois de volta ao núcleo de sentido da esfera analítica: diferenciação. A ciência que investiga a esfera analítica é a lógica, baseando-se também na “filosofia primeira” que é a ontologia. Qualquer tentativa de tratar a lógica como uma realidade independente da estrutura do cosmo e assim filosoficamente neutra, aplicável a todos os problemas filosóficos deve ser considerada equivocada. A absolutização da esfera analítica, seja como uma esfera independente, seja como o princípio ordenador do cosmo, é uma forma de filosofia idólatra. Um exemplo disso é o logicismo, que procurou demonstrar todos os princípios da matemática a partir da lógica. H. A Esfera Histórica Sobre a esfera analítica temos a esfera histórica. A história é realizada por pessoas capazes de pensar logicamente, não existindo história entre animais e vegetais. Isso indica que a ela é uma esfera pós-analítica. Além disso, a história é feita por pessoas capazes de realizar ações resultantes de julgamento racional e livre escolha. As aves constroem ninhos desde antes do seres humanos, mas sua ação se baseia no instinto animal, não envolvendo planejamento racional nem intencionalidade. Por isso as ações de animais se dão dentro de uma estrutura bastante estática, sem produção de cultura ou desenvolvimento de cultura. Já as ações humanas refletem um poder criativo, de transcender as estruturas presentes de vida e constituir novas estruturas de modo intencional, gerando um processo dinâmico de desenvolvimento cultural. O momento nuclear da esfera histórica não é, como muitas vezes se pensa, a transformação ou mudança. Como observa SPIER , a mudança se origina na esfera físicoenergética, como produto da interação entre entidades. Considerar a história como sendo meramente a mudança dentro do tempo colocaria eventos como a história da floresta Amazônica, ou do sistema solar, ou da formação dos continentes no mesmo nível da história humana, o que percebemos intuitivamente ser improdutivo. História humana e história natural são realidades distintas. Mas o que seria exatamente a história? Fica mais fácil responder quando percebemos que nem todo acontecimento ou ato humano é histórico. Todos os dias o brasileiro almoça por volta das 12 horas. Isso não é um acontecimento histórico. Mas quando a nação se uniu pelo Impeachment do presidente Fernando Collor, tivemos um acontecimento histórico, por que esse acontecimento influenciou decisivamente a vida e a cultura da nação brasileira. Desse modo, o histórico é aquilo que molda ou constitui uma cultura alterando-a estruturalmente. O momento nuclear da modalidade histórica seria assim o poder formativo, ou a formação cultural. Justamente esse núcleo distingue a “história natural” da história humana. Na definição de Dooyeweerd: “ A formação controlada de uma certa aptidão, estrutura ou situação tornando-a algo que não poderia 103 Ibid.
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ter vindo a existir de outra forma. É a realização livre e normativa de uma coisa dentro do processo da cultura.” cultura.”104 A esfera histórica precede as esferas da linguagem, da sociedade, da economia, da estética, da justiça, da ética e da fé. Todas elas, por conseguinte, contém em seu substrato o momento do poder formativo. A linguagem é formada, bem como as formas sociais, os padrões estéticos, as leis, a ética. A própria fé tem um momento de formação. Existe portanto um núcleo de verdade na frase “tudo é história”. De fato, cada objeto, ação humana, evento, instituição social e produto cultural tem um aspecto histórico que “quebra a condição estática da existência e o ciclo monótono das coisas naturais, dando à existência humana a forma do desenvolvimento linear .” .”105 Mas se dissermos que “tudo é história”, isso não implicaria que não há qualquer histórica, absoluto dentro da cultura humana? O surgimento no século XIX da consciência histórica, como vemos no pensamento de R ANKE ANKE, HEGEL e DILTHEY , envolveu uma grande crise epistemológica. O problema que surgiu era justamente a possibilidade de qualquer estrutura normativa ou universal na experiência humana. Será que tudo o que existe em nossa cultura, num determinado momento, é meramente um resultado da criação humana livre, dentro de certa etapa do processo histórico? Se assim for, cairíamos num fluxo constante de transformação no qual a verdade é apenas o processo, e tudo o que é verdadeiro hoje não será mais amanhã. É desnecessário dizer que tal perspectiva nos levaria à negação da realidade de qualquer revelação divina intra-histórica, uma vez que tudo o que é intrahistórico é relativo; Jesus Cristo não poderia ser considerado o clímax da revelação de Deus. Essa absolutização, que considera todas as dimensões da experiência humana como meras construções históricas, frutos do poder formativo do ser humano sobre sua própria cultura, denomina-se historicismo: “O historicismo historicismo radical faz do ponto de vista histórico aquele todo-abrangente, absorvendo todos os outros aspectos do horizonte da experiência humana. Mesmo o centro religioso da experiência humana, o ego humano ou o “eu” (selfhood), é reduzido ao fluxo dos mome ntos históricos da consciência. Todos os nossos padrões científicos, filosóficos, éticos, estéticos, políticos e religiosos, bem como nossas concepções são vistos como a expressão da mente de uma cultura ou civilização particular. Cada civilização tem se levantado e caído no curso todo-abrangente do desenvolvimento histórico. Uma vez que sua florescência termina, ela está destinada ao declínio. E é meramente uma ilusão dogmática pensar que o homem poderia ser capaz de ver seu mundo e sua vida de outro ponto de vista que não seja histórico. A história não tem janelas para a eternidade. O homem está completamente contido por ela e não pode se elevar a um nível supra-histórico de contemplação. A história é ser total e o fim total da existência humana e de suas faculdades de experiência. E tudo isso é governado pelo destino, o inescapável Fado.” 106
É um erro no entanto absolutizar a dimensão histórica da experiência de tal modo que não somente a positivização humana das normas modais seja considerada um produto histórico, mas também que a própria crença na existência de tais normas seja considerado um mero produto transitório dentro do processo histórico. Dizer que “tudo é história” no 104 Ibid,
p. 80. p. 79. 106 Dooyeweerd, “Twilight”, p. 62. 105 Ibid,
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sentido de que tudo tem uma dimensão histórica, é algo bem diferente de dizer que “a história é tudo”, como se tudo fosse meramente construído pelo homem. O erro dessa concepção é visível, em primeiro lugar, (1) quando nos lembramos que toda absolutização de uma esfera da experiência ocorre quando elevamos uma síntese do aspecto lógico com um não-lógico (no caso, o histórico) à condição de arché, isto é, de princípio originante e normativo de todo o cosmo. O historicismo desconsidera que o próprio conceito de história, sendo um conceito teórico, é fruto de abstração, abstração, não correspondendo ontologicamente, portanto, à realidade concreta. O conceito de história é um produto intelectual, devendo sempre manter o caráter relativo de todos esses produtos. Forçar uma sujeição da própria realidade concreta a uma teoria limitada da realidade é contraditório. (2) Uma vez que toda absolutização do relativo envolve uma contradição interna, devemos destacar que o próprio conceito historicista de cultura é fruto de um determinado processo histórico, vindo à luz com a crise do iluminismo e o impacto do movimento romântico. Se o historicismo é verdadeiro para toda a história, então toda concepção teórica e relativa ao momento histórico. Mas o próprio historicismo é uma concepção teórica relativa, pois surgiu dentro da história; nesse caso, ele não pode ser verdadeiro para toda a história. Vemos assim, que o historicismo é uma teoria auto-referencialmente incoerente, isto é, implica em sua própria negação. (3) O historicismo gera também antinomias intermodais. Ele implica, por exemplo, que não podemos usar as leis da lógica para explicar fatos passados, pois as leis da lógica são relativas à história. Isso tornaria impossível a conceptualização da experiência histórica e a constituição de qualquer ciência histórica verdadeira. (4) Mais óbvio ao senso comum é o fato de que há estruturas na experiência humana que são universais. Assim, o sentimento do numinoso, a moralidade (não importa de qual tipo), a linguagem e a família biológica aparecem de modos diferentes em diferentes contextos, mas sempre aparecem, como dimensões fundamentais da existência humana. Se tudo fosse meramente “construído”, não haveria qualquer semelhança entre diferentes culturas. (5) Finalmente, a análise modal das ações humanas revela que elas são multidimensionais. Não existe ação que seja puramente histórica. Além da base formativa, as ações humanas mostram-se nas outras modalidades, tendo caráter jurídico, estético, econômico, fiduciário, etc. Do fato de que a história é realizada por meio do poder formativo do homem, seguese que nem todo indivíduo tem o mesmo poder de moldá-la. A história é feita primariamente por aqueles indivíduos que possuem poder histórico. histórico. Líderes da vida nacional, educadores, líderes eclesiásticos, economistas e cientistas que lideram o desenvolvimento cultural e alteram as estruturas da vida humana podem ser chamados de “personagens históricos” nesse sentido. Isso, naturalmente, não significa que as pessoas comuns estão fora do processo histórico; os líderes culturais só tem impacto porque outras pessoas se sujeitam a esse impacto. Além disso, um líder numa esfera da cultura pode ser um seguidor em outra. Portanto, de um modo ou de outro, todo indivíduo participa da história exercitando poder formativo. O chamado para formar a história é um chamado divino, dado a toda a raça humana e também ao indivíduo, onde quer que ele esteja. Esse chamado repousa sobre o fato de sermos portadores da imagem de Deus, sendo assim capacitados a atuar de forma criativa, expressando por meio do trabalho a natureza criativa de Deus. Mas sua declaração explícita se encontra em Gênesis 1.28, quando Deus ordena ao homem que “encha a terra e a domine”, atuando no ofício de rei da terra. O chamado divino à formação da história pelo trabalho é geralmente denominado mandato cultural.
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Devido à queda, foi introduzida no mundo uma antítese entre o homem natural, por um lado, e Deus, juntamente com os regenerados, por outro lado. A antítese se manifesta dentro da história na constituição de diferentes padrões e eventos culturais que refletem ou o espírito do mundo, ou o espírito de Deus. A atuação do espírito do mundo no homem natural produziu a cidade do mundo, ou civitas mundi, mundi, e a atuação divina gerou a civitas Dei. Dei. Essas duas comunidades humanas se misturam na terra mas cada uma exercita o poder cultural conforme o espírito que a anima. Assim os cristãos são chamados a seguir o Espírito de Deus e aplicar os princípios cristãos no exercício do poder cultural, para expressar na história a presença do Reino de Deus. O poder histórico, que muitos cristãos chegam a alcançar, deve ser considerado um “poder vocacional”, que implica uma tarefa para a pessoa que detém o poder.107 E o impacto do Reino de Deus no mundo depende da existência de indivíduos com poder cultural que moldam a história sob o poder do Reino. Reino . Se passarmos a discutir o law-side law-side da esfera histórica a primeira coisa a fazer é tentar identificar os princípios normativos aos quais os formadores históricos estão sujeitos, e que eles positivizam em sua ação formativa. (1) O primeiro princípio é o princípio do trabalho cultural, o chamado para dominar e formar os objetos naturais da criação, por meio da atividade técnica. Quanto a isso, Marx corretamente descreveu o ser humano como homo faber. (2) Outro princípio é o princípio da continuidade, o progresso ininterrupto do desenvolvimento cultural. O formador da história não pode ignorar o passado e buscar fazer algo completamente novo. Ninguém cria algo completamente novo, exceto Deus. Não há, portanto, ação histórica que não esteja inserida no fluxo linear da história humana. (3) Uma terceira norma é o princípio da integração, que se expressa na atualização e expressão daqueles recursos que Deus colocou no mundo como potenciais de produção. A progressiva recuperação desses potenciais e agregação ao capital cultural do homem torna possível uma cultura cada vez mais rica. (4) Ao lado do princípio de integração estão os princípios de diferenciação e individualização. Essas normas estimulam o desvelamento da tendência individual de pessoas, grupos humanos e nações inteiras, na constituição de estruturas culturais mais ou menos complexas. Sendo a esfera histórica uma esfera normativa, os princípios históricos precisam ser positivizados, isto é, aplicados concretamente em todos os relacionamento humanos que tem um aspecto histórico. Isso significa que esses princípios tanto podem ser corretamente aplicados, como podem ser desobedecidos. A atitude reacionária, reacionária, por exemplo, que valoriza o passado e se opõe a todo e qualquer progresso cultural, impede o enriquecimento da cultura, a reforma social e o cumprimento do mandato cultural. A atitude revolucionária, revolucionária, que nega totalmente o passado e busca um “novo começo” também é antiantinormativa, quando leva o homem a romper totalmente com o passado e rejeitar conquistas culturais valiosas em nome de um ideal utópico. A esfera histórica também apresenta analogias. A diversidade e pontualidade de acontecimentos históricos é uma analogia retrocipativa numérica. A noção de “espaço histórico”, ou de “esfera cultural” é uma analogia espacial. O movimento histórico é uma analogia retrocipativa cinética. A relação de causalidade na história é uma analogia físicoenergética. A noção de desenvolvimento ou progresso histórico é uma analogia sutilmente diferente da noção de movimento histórico, pois envolve a presença de uma evolução orgânica, consistindo numa analogia biótica. A noção de “senso histórico” é uma analogia psíquica, e a de “lógica da história” (incluindo aqui a positivização filosófica das normas 107
Kaalsbeek, “Contours of a Christian Philosophy”, p. 99.
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históricas) é uma analogia analítica. Os símbolos culturais (estátuas, documentos, etc) são analogias antecipatórias da esfera lingüística. O tempo cósmico se expressa nessa esfera nos períodos históricos, conforme o domínio de um determinado motivo cultural. A ciência histórica estuda, não somente a “esfera histórica”, mas toda realidade humana sob o ponto de vista histórico. I. A Esfera Linguística Por linguagem, não nos referimos aqui somente à fala e à escrita, mas também a todo tipo de intenção expressa simbolicamente, incluindo gestos, números, notas musicais (partituras), bandeiras, estátuas, sons, etc. O núcleo de sentido da esfera lingüística é o significado simbólico. Por isso, talvez, a expressão “esfera semiológica” também seja adequado. O lingüista reformacional P. A. VERBURG, de Groningen, desenvolveu o pensamento cosmonômico à teoria lingüística. Ele propõe que denominemos os atos lingüísticos, isto é, aqueles atos que envolvem significação lingüística, como atos delóticos (gr. Delòun), atos originados do desejo humano de clarificação.108 A função delóticolinguística seria uma dimensão inata ao homem, e uma faculdade específica, diferente da faculdade analítica, ou da sensória, ou da faculdade noética. Essa faculdade é uma das que diferencia o homem de outros seres, ao lado da racionalidade e de outras funções. A esfera lingüística, que também já foi denominada esfera semiótica, ou semiológica, ou delótica, ou comunicacional, se segue à esfera histórica. Estando baseada nessa esfera, a linguagem contém um momento formativo, o que pode ser observado diretamente no processo de formação de línguas primitivas feito por lingüistas, e também na capacidade formativa que o homem tem sobre a língua, especialmente os escritores e, atualmente, a mídia. Além disso, muitos pensadores perceberam a existência de uma íntima conexão entre linguagem e pensamento. Isso se mostra no fato de que o pensamento se desenvolve por meio de proposições, que invariavelmente aparecem com forma lingüística, mesmo dentro da mente, e também no fato de que os significantes sempre trazem dentro de si pensamentos. Embora essas observações sejam importantes, Verburg notou que as discussões em lingüística muitas vezes se prendem à relação entre essas duas únicas funções. Ao examinar a estrutura da linguagem, ele elaborou uma teoria triádica composta de três elementos: o evento de discurso, a pessoa que discursa e o tema do discurso.109 (1) O evento de discurso, ou “speech event”, é um ato concreto do sujeito tendo status de entidade real e, como tal, passível de decomposição pela análise modal. Superando a tendência das discussões de se concentrarem na relação entre fala e pensamento, Verburg afirma que a linguagem envolve muitas outras funções, que se organizam numa escala de
108
“O termo grego ‘delosis’, que está sendo usado aqui como um termo para abranger e caracterizar a atividade linguística em sua autenticidade e inteireza, foi sugerido pela seguinte sentença no Kratylos, de Platão: ‘Suponha que nós não tenhamos voz ou língua, e que nós, entret anto, busquemos clarificar ( dèloun) coisas (ta pragmata) um ao outro; não deveríamos nós, como surdos mudos, tentar fazer sinais ( sèmainein) com as mãos e a cabeça e o resto do corpo?’ Linguagens orais e gestuais, audíveis e visuais podem ser consideradas atos delóticos, como atos originados do desejo humano por clarificação (ou revelação no caso de auto-clarificação).” VERBURG, P.A., “Delosis and Clarity”. Em: “Philosophy and Christianity”, p. 78. 109 Ibid, p. 95.
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níveis crescentes de complexidade.110 Essas funções, que para cada expressão ele chama de delemas, corresponderiam às esferas modais de Dooyeweerd. Verburg começa sua análise denominando (n) o nível da linguagem propriamente dita, ou o nível delótico do discurso. Nesse nível se concentra o momento delótico da experiência que é a significação, o sentido, o qual é governado pela norma da clareza. Verburg critica a identificação de palavra e símbolo realizada a partir de HOBBES, DESCARTES e LEIBINIZ. Esses pensadores, começando com uma noção de analogia, chegaram a resolver as palavras na idéia de símbolos matemáticos. Assim toda palavra simbolizaria alguma realidade “objetiva”. Isso motivaria, posteriormente, a tentativa do empirismo lógico de negar a validade a qualquer discurso cujos símbolos-palavras se referissem a objetos não-empíricos, isto é, “irreais”. Na verdade a simbolização é uma atividade intelectual, envolvendo a diferenciação, sendo e permanecendo sempre analítico ou noético, como veremos mais à frente. Entretanto, o símbolo tem uma qualidade delótica apenas como um momento analógico antecipatório da esfera semiológica ou delótica.111 A significação, em si mesma, é uma realidade que transcende não só as palavras (delema n-2) mas também a gramática (n-1), situando-se na clarificação da intenção discursiva, na dimensão ilocucionária do ato de fala (speech-act).112 O nível imediatamente inferior seria o nível técnico-formativo (n-1), isto é, aquele substrato formativo da linguagem, no qual o poder cultural trabalhou constituindo estruturas gramaticais e sintáticas. A gramática constitui assim uma subdisciplina que lida com uma das dimensões do fenômeno lingüístico.113 Sob o nível formativo estaria o nível semântico-analítico (n-2), no qual se encontram os elementos básicos utilizados pela técnica gramatical, as palavras ou lexemas. A discriminação ou diferenciação analítica é, como vimos, o núcleo de sentido da esfera analítica. Assim os lexemas, que encontramos em nossos dicionários, são identificadores cognitivos, discriminadores intelectivos, envolvendo tanto palavras auxiliares, passando por termos com referente definido até denotadores metafóricos. Esses identificadores se diferenciam entre si dentro da langue assumindo significados potenciais diferenciados que podem ser usados no nível gramatical. Abaixo desses níveis temos o nível da percepção ou “fonêmico” (n-3), que fornece as memórias, associações, imagens, afetos e sensações que tornam possível a diferenciação dos identificadores cognitivos. Para explicar melhor esses quatro delemas, Verburg apresenta uma interessante matriz:114 110 Ibid,
p. 81. Kevin Vanhoozer chama de “letrismo” a idéia de que o significado esteja presente nas palavras como tais. O significado é uma propriedade emergente que aparece encarnada na letra do texto, mas que transcende a essa letra. 112 “É natural equacionar o significado literal de uma palavra com sua definição no dicionário. O problema com essa posição é duplo. Primeiro, um dicionário é simplesmente um compêndio de como as pessoas usam palavras ordinariamente; definições não são, entretanto, imutáveis e absolutas. Segundo, e mais importante, a unidade básica do significado é o ato de fala (speech-act), não as palavras individuais. O sentido literal da declaração de Jesus “Eu sou a Porta” é uma função de seu speech -act (uma asserção metafórica), não o das palavras tomadas individualmente (e, assim, fora de contexto). Onde, então, está o sentido literal: na langue ou na parole? Antes de serem usadas em atos comunicativos particulares, palavras tem apenas um potencial (i.é., um número limitado de possibilidades) de significado. Assim, é apenas no nível do ato-sentença que nós podemos falar de sentido literal. O sentido literal é sempre um produto composto: de semântica e pragmática, de langue e parole, de convenção e intenção.” Vanhoozer, “Is There a Meaning in This Text?”, p. 311. 113 Verburg, “Delosis”, p. 85. 114 Ibid, p. 87. 111
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Delemas (n) (n-1) (n-2) (n-3)
Lexema 1 Vai! + + +
Lexema 2 João! + +
Lexema 3 Ai! +
Como se pode ver nessa matriz, a decomposição funcional revela que o discurso sempre se dá dentro da estrutura normativa das esferas modais, como qualquer entidade concreta. Seguindo o mesmo procedimento, Verburg identifica ainda o nível da fonética orgânica (n-4), que abrange a dimensão biótica-fisiológica e a base biológica da linguagem humana; o nível da fonética física (n-5), que descreve o desempenho físico-mecânico do organismo no evento discursivo, o nível fonético-quantitativo (n-6 ) que examina o discurso enquanto evento acústico no espaço, e a numeralidade e distribuição (n-7 ), que observa construções lingüísticas do ponto de vista da quantidade de elementos significantes, individualmente ou em conjuntos. Teríamos assim, no total, sete subníveis funcionais necessários para compreender a arquitetura de um “fato locucional”, de um objeto lingüístico qualquer. Além desses níveis fundamentais, Verburg acrescenta os níveis aderentes, todos pós-linguísticos. Assim um ato de significação pode acontecer dentro de uma comunicação entre pessoas, e pode ser realizado de modo respeitoso e honroso. Nesse caso o fato locucional tem uma função social, ou “sócio dignativa” (n+1). O discurso pode também buscar economia de palavras (n+2), ou ser composto de modo elegante e artístico, por exemplo (n+3)115; esses níveis aderentes constituem analogias antecipatórias das esferas pós-linguísticas.
(2) A pessoa que discursa é outro ponto importante para Verburg. Um ato de fala se origina de um agente, emergindo de uma pessoa que se responsabiliza por suas ações. Desse modo, o fator pessoal deve ser considerado um postulado necessário no modelo delótico. Essa posição tomada por ele é de grande significado no momento atual, em que o pensamento filosófico tende a dissolver a pessoa humana e os atos lingüísticos numa base naturalista. K EVIN VANHOOZER , trabalhando a partir da teoria dos speech-acts de J. AUSTIN e J OHN SEARLE, observou que a teoria hermenêutica pós-moderna tende a eliminar o papel do sujeito na constituição do significado, negando que textos e discursos tenham sentido fixo baseado na intenção autorial. VANHOOZER chama essa abordagem de materialismo semiótico, que desvincula totalmente a significação do significador: 115
“Na linguagem que procura cumprir propósitos estético -artísticos nós encontramos outro exemplo de uma funcionalidade adicional. Essas atitudes e propósitos estão intrinsecamente além da linguagem, i.é., além da delosis porque, em princípio, eles são indiferentes ao fim próprio que é a clareza ótima. Eles parecem como aderência contingentes, podendo inclusive surgir algum tipo de antinomia entre a norma autêntica (da linguagem, n.d.t.) e a norma adicional.” Ibid, p. 83.
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“Críticos pós-modernos tendem a reduzir o estudo das sentenças (e pessoas) a categorias apropriadas unicamente à langue . Sentenças não são simplesmente produtos do sistema da linguagem, entretanto; não são meros sinais de um código impessoal, mas antes ações pessoais significativas. Nós podemos assim dizer de uma determinada sentença que ela é uma promessa (ou um comando ou uma asserção), e não apenas que está na língua inglesa, ou que tem substantivos e verbos, ou que manifesta uma ideologia patriarcal. Uma promessa é um particular básico – um ato de fala de um agente comunicativo responsável – que resiste a todas as tentativas de reduzi-lo a leis causais, sejam da física ou da sóciolinguística. Resumindo, o destino da sentença e o destino da liberdade e responsabilidade humanas permanecem de pé ou caem juntos.”116
Esse é exatamente o ponto de Verburg. Para ele a teoria lingüística precisa de uma re-humanização, deixando de tratar o fenômeno delótico meramente como uma questão de estímulos nervosos ou de ações de um robô, mas como algo ligado à intencionalidade, à criatividade humana, a propósitos, à iniciativa. É justamente essa ação criativa do sujeito que o transfere para dentro de seu discurso ou produto delótico, tornando sua estrutura intencional uma portadora da intenção do sujeito. O poder formativo do sujeito sobre as palavras ao moldar o produto delótico é que torna possível a significação, a delosis. Assim, podemos dizer, quanto a isso, que todo elemento delótico é também um elemento poiético (gr. poiesis, formação); sobre a estrutura poiética do discurso repousa a significação.117 Verburg destaca que não existe liberdade absoluta, mas sempre a liberdade relativa, dentro de certos limites. Na linguagem os limites tem a ver com a situação. A escolha do tema do discurso é a menos afetada pela situação, mas o grau de explicidade do agente do discurso é bastante afetada. Numa situação, por exemplo, podemos dar um recado da forma mais explícita possível, e em outra podemos apenas “dar a entender”. Assim, seria ilógico falar do discurso sem falar sempre, necessariamente, da situação do discurso, mas isso não deve implicar na negação da liberdade: “A expressão lingüística supõe a auto-orientação, no mundo, daquele que fala; ele projeta, por assim dizer, seu tema sobre a tela da situação. Por causa do seu impacto a situação em si mesma se torna relacionada à linguagem: o ator lingüístico estrutura a situação em vista construindo dentro dela seu propósito delótico. Há uma grande variedade de formas em que isso ocorre. Se nós tomarmos uma expressão como “três refrigerantes, pro favor”, dita num cabelereiro, a reação imediata será: “o bar é na próxima porta”. Isso mostra que os delemas são tão ligados a situações que chegam a evocar a situação apropriada mesmo quando são ditos num ambiente inadequado. De um modo diferente, no caso de um acidente, uma dor repentina ou uma agonia, a situação parece impactar o agente discursivo. Assim, embora o holandês grite “Au!”, o francês “Aie!”, o inglês “Ow!” (e o brasileiro “Ai!”, n.d.tr.), eles aplicam um elemento convencional de sua própria língua à situação como um ato delótico. Ele emerge, sutilmente como possa ser, da decisão pessoal. Assim, mesmo no último caso, a iniciativa e impacto humano deve ser mantidos.” 118 116
Vanhoozer, “Is There a Meaning in This Text?”, p. 204. Mais à frente, Vanhoozer afirma que “A desconstrução, ao recusar tomar a sentença e o agente discursivo como pontos de partida irredutíveis, trai uma tendência materialista de reduzir a mente à matéria.” Ibid, p. 213. 117 “O que fala decide livremente a respeito e inicia livremente os tipos de sentença que alcançarão seu telos, objetivo, intenção, propósito, fim; i.é., o que ele quer deixar claro, o que tem para dizer ...” Verburg, “Delosis”, p. 95. 118 Ibid, p. 82.
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(3) O tema do discurso é o terceiro elemento da teoria de Verburg. O tema, ou assunto, ou “o que é falado” não seria exatamente “o significado por trás da coisa”. Essa definição de significado trata a expressão locucional como uma representação ou espelhamento do tema que em si seria independente, como pensamento puro, sendo uma espécie de intelectualismo. Na verdade o tema está presente no discurso, simultaneamente ao discurso, e não existe como uma realidade externa que está sendo representada. Como realidades livres, poiéticas, os temas podem ser algo existente ou não existente, possível ou não, passado ou futuro: “Temas são infinitos e impredizíveis.”119 A delosis tem um lado normativo e um lado subjetivo. No lado subjetivo temos o sujeito do discurso e o próprio evento discursivo, como objeto moldado pela ação do sujeito. No lado normativo temos a lei delótica básica: uma vez que tema do discurso precisa ser elucidado, e não apenas “apresentado”, indentificamos a norma delótica como a clareza ótima. O tema do discurso é o “clarificandum”, que Verburg denomina deloteon. O deloteon, que podemos isolar teoricamente como a significação, o sentido, sempre é apresentado concretamente, como um sentido discursivo passível de decomposição modalfuncional. O sucesso de qualquer ação discursiva se encontra na obediência à norma da clareza. Mas o que seria, exatamente, a “clareza”? “Pensadores da linguagem como Platão, Erasmo, Leibiniz, Peirce e Wittgenstein, inter alios, trabalharam com essa idéia. Entretanto, quando há um desafio por definição, a única resposta pode ser: a noção está além da definição, é uma idéia-norma transcendental. Mas a despeito da indefinibilidade dessas normas inatas e intuitivas, nenhuma cultura humana se desenvolveu sem essas preocupações e aspirações fundamentais.” 120
J. A Esfera Social O momento nuclear da esfera social é o intercurso social, ou a comunhão. Não se trata meramente da interação entre elementos; interação é o núcleo de sentido da esfera físico-energética. Podemos dizer que a “dinâmica social ”, isto é, a interação e a transformação, dentro da vida social, é um momento analógico retrocipatório da esfera social . O intercurso social também não é a mesma coisa que a experiência social que encontramos no reino animal. As “sociedades” animais não são constituídas pela “vontade” animal, mas pelo instinto, tendo uma finalidade estritamente biológica e, no máximo, psíquica. Trata-se de um nível mais alto de simbiose.121 Nas sociedades humanas há também a simbiose, de tal forma que falamos no “organismo social ”, mas isso é meramente um momento analógico biótica na esfera social . Já o intercurso social, de que falamos, é o relacionamento intencional entre indivíduos no qual se constitui a comunhão e co participação numa “vida comum” que supera a própria individualidade. 119 Ibid,
p. 95. Ibid, p. 99. 121 Stafleu discorda de Dooyeweerd e Spier na tese de que os animais não funcionam de nenhum modo nas esferas pós-psíquicas. Os animais superiores muitas vezes desenvolvem raciocínio, capacidade de comunicação e níveis elevados de organização social. Segundo ele, seria melhor dizer que animais funcionam como sujeitos de modo retrocipatório, referindo-se sempre a suas necessidades bióticas e psíquicas. O comportamento animal nunca é antecipatório como o do homem, que sempre se refere ao transcendente. Stafleu, “Cosmochronological Idea”, p. 106. 120
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Além das analogias dinâmica e biótica, podemos ressaltar também a analogia lingüística; todos os atos sociais realizam-se por meio do significado intencional, isto é, da delosis. Tudo, na vida social, está cheio de significado e se processa por meio de símbolos. Num casamento, um anel e um beijo são importantes atos sociais que carregam em si o significado. Há também uma “lógica social”, e uma “sensibilidade social”. Passando às analogias antecipatórias, podemos apontar a tendência das sociedades de se organizar conforme as condições existentes como uma analogia econômica, e a harmonia social como uma analogia estética. Para que o intercurso social ocorra é necessária a constituição de pontos de contato, de zonas de troca e de participação; é preciso que ocorra o “público”, ou melhor, o “comunitário”. Todo tipo de ato social se realiza dentro dessas zonas de participação comum, ou de comunhão, nas quais o indivíduo, em graus variados, torna-se um com os outros. Podemos dizer assim que a norma básica da esfera social é a comunhão no sentido de co-participação. Nenhuma comunidade humana pode funcionar se tais zonas de comunhão não são claramente estabelecidas e aceitas pelos indivíduos da comunidade; e as relações comunitárias se rompem quando o espaço comum é fragmentado. Assim como, ao falar da esfera lingüística, tratamos dos atos discursivos, que existem como entidades muti-aspectuais ainda que especialmente qualificadas pela modalidade delótica, ao falar da esfera social, passamos a considerar as estruturas da vida social. Essas estruturas incluem não só atos sociais e eventos sociais, mas também aquelas entidades que tem como característica básica o intercurso social: as comunidades. A primeira distinção que podemos fazer ao examinar as comunidades humanas é diferenciar entre instituições e organizações. A instituição é uma comunidade na qual (1) os membros estão unidos num grau intenso, (2) a participação tem intenção de ser permanente, (3) a participação não é inteiramente livre. As comunidades que se encaixam nessa classe são o casamento, a família, o estado, e a comunidade religiosa. Nas organizações a participação é menos intensa e o compromisso é mais livre. Aqui podemos incluir empresas, hospitais, sindicatos, partidos e escolas.122 A segunda distinção importante entre as comunidades é o tipo de função humana que fundou a comunidade, ou função fundante. Conforme esse segundo critério, chegamos novamente a dois tipos: as comunidades naturais e as comunidades históricas. Comunidades naturais são aquelas originadas de nossa natureza biológica e governadas por leis bióticas. Aqui se encontram o casamento e a família; ainda que sejam realidades que transcendem o aspecto biológico, incluindo, por exemplo, a dimensão ética, o processo através do qual essas instituições foram fundadas é biológico. Isso se vê, por exemplo, no fato de a criança ser completamente dependente dos pais por muitos anos, e da mãe permanecer por anos impedida de se proteger adequadamente de perigos e obter alimentos por ocupar-se do filho, sendo necessária assim a presença e proteção paterna. Outras instituições, como o estado, a igreja e uma escola são fundadas por meio do poder formativo do homem. Assim sua função fundante é histórica. A terceira diferenciação básica que podemos fazer é distinguir os diversos tipos de comunidades conforme o tipo de zona de participação que é estabelecido. Essa zona de participação no qual é “negociado” o intercurso social estabelece o propósito estrutural , que chamamos de função guia (leading function). A função guia de cada instituição corresponde à sua qualificação modal, isto é, a última esfera na qual ela funciona como 122
Clouser, Roy, “The Myth of Religious Neutrality”, p. 228,229.
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sujeito. Do ponto de vista modal, portanto, toda instituição tem pelo menos três qualificadores modais: a função social, a função fundacional, e a função guia. O exame das instituições sociais feito por sociólogos padece muitas vezes de uma atitude acrítica para com a pré-compreensão da realidade que todo pensamento teórico traz necessariamente. Uma dessas distorções é a noção de que as estruturas sociais são meramente construtos culturais, não havendo qualquer norma absoluta que governe as diversas formas de vida comunitária. O que temos, nesse caso, é uma absolutização da esfera formativa ou cultural da experiência; é como se todas as comunidades tivessem apenas a função fundante e não tivesse outro tipo de qualificação modal. Há, naturalmente, outros tipos de reducionismo que podem afetar a interpretação sociológica. De um modo geral, no entanto, “uma visão reducionista da realidade vai sempre superestimar aquelas normas intimamente associadas com o aspecto que se supõe ser o fundamento da realidade, e, correspondentemente, vai subestimar ou negar a realidade daqueles aspectos menos compatíveis com sua visão redutivista.”123 Esse é o caso, por exemplo, da sociobiologia de EDWARD WILSON, que procura explicar os fenômenos sociais como subprodutos biológicos. É a absolutização de uma norma específica na interpretação dos fatos, seguida de uma contraposição entre esses fatos já interpretados e as outras dimensões da vida social que gera a impressão de que as normas das outras dimensões são meramente construções arbitrárias e, portanto, que não fazem parte da estrutura do real. Esse erro cria a oposição ilusória entre norma e fato. O pensamento reformacional deve resistir a esse tipo de desvio. Desde que se identifique a função guia de uma comunidade humana, então sabemos que, além das normas da esfera social e da esfera fundacional, essa comunidade depende, para seu funcionamento ótimo, de uma sujeição a todas as normas modais e, especialmente, às normas da esfera guia. Podemos pensar, por exemplo, numa empresa: sua função fundacional é histórica, e sua função guia é econômica. Ele deve seguir as normas históricas: diferenciação, continuidade, etc. Além disso, deve seguir, por exemplo, as normas éticas e jurídicas. Mas a esfera que deve orientar sua atividade catalisando o poder formativo dos indivíduos dentro de uma zona de participação comum é a esfera econômica. O objetivo do trabalho é a produção de riqueza econômica. Se a empresa tenta guiar suas atividades a partir, por exemplo, da esfera estética, com certeza vai “quebrar”. Um outro exemplo seria a igreja: suas atividades devem ser guiadas pela esfera fiduciária; na confissão de fé se encontra a zona de comunhão dessa comunidade. Quando vemos uma igreja sendo guiada por interesses econômicos, imediatamente nos sentimos horrorizados; não porque a esfera econômica seja ruim, mas porque uma igreja é uma igreja, e uma empresa é uma empresa – isto é, há normas que determinam como diferentes comunidades humanas devem funcionar. Isso não significa, no entanto, que exista uma forma única possível para certo tipo de comunidade humana, como se fossemos forçados a uma doutrina estática e dogmática a respeito das estruturas sociais; não há contradição entre norma e contexto. A normas devem ser positivizadas diferentemente, conforme o contexto histórico em que a comunidade emerge. Assim, para diferentes situações, a igreja ou o estado devem se estruturar diferentemente, desde que não violem as leis modais. Podemos assim dizer que a situação ótima para as comunidades humanas é a situação em que há uma correta positivização das leis modais e a máxima adaptação ao contexto de vida. 123 Ibid,
p. 237.
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A teoria social reformacional nos leva a uma visão estruturalmente pluralista da sociedade, afirmando que as diversas comunidades humanas são irredutíveis e não podem ser solucionadas em um único padrão. Há várias esferas irredutíveis de vida social nas quais os seres humanos comungam. Esse princípio, formulado inicialmente pelo estadista reformado ABRAHAM K UYPER , pode ser melhor definido como “O princípio social segundo o qual comunidades cujo propósito estrutural é qualificado por um aspecto devem ser especialmente protegidas da interferência de comunidades qualificadas por outro aspecto.” 124
Assim como as modalidades são distintas e mutuamente irredutíveis, as esferas da vida social, cuja estrutura reflete a coerência cósmica do sentido são também distintas e mutuamente irredutíveis. Não há instituições mais básicas ou importantes do que outras, e para cada instituição há um tipo específico de governo que se fundamenta na cosmonomia, isto é, na vontade divina para o cosmo.125 A sociologia, como ciência, não lida meramente com a esfera sociológica, mas com todo fato social, ou seja, toda entidade socialmente qualificada. Fatos sociais, no entanto, são mais do que sociais, envolvendo sempre uma série de dimensões. Assim o cientista social precisará lançar mão de outras ciências para interpretar esses fatos, mantendo-se consciente da visão de mundo e de sociedade que essas ciências apresentam. Além disso, a linguagem que ele usa para descrever esses fatos não é puramente sociológica. Donde o cientista social deve criticar seus conceitos sobre a realidade total e social antes de proceder a investigações de caráter empírico, do contrário pode interpretar os resultados obtidos, os “fatos” a partir de uma interpretação reducionista da cosmonomia. Os conceitos sobre “lei”, “causa”, “história”, “linguagem”, “espaço”, “vida”, “liberdade”, “indivíduo”, etc, empregados para descrever os fatos sociais precisam passar por uma crítica filosófica de modo a revelar sua carga de sentido e perceber como a pré-compreensão sobre a realidade afetará sua reflexão. Podemos distinguir assim entre a filosofia social, como análise heurística da dimensão social da experiência e crítica dos conceitos sociológicos, e a sociologia empírica, como descrição científica dos fatos sociais. K. A Esfera Econômica Spier define o momento nuclear da esfera econômica é a conservação de valores calculados. Sem dúvida, as coisas não tem valor a não ser que estejam disponíveis numa quantidade limitada. A areia, por exemplo, não tem valor, a não ser que tenha alguma qualidade especial ou não esteja disponível. Desse modo, a economia surge quando há a necessidade de administrar parcimoniosamente o bem escasso. O dinheiro é a medida de valor empregada nas transações econômicas nas sociedades mais avançadas. 124 Ibid,
p. 249. A doutrina das esferas de soberania levanta a questão a respeito das culturas que não desenvolveram formas complexas e diferenciadas de vida social. Em sociedades tribais, por exemplo, há freqüentemente uma mistura de relações familiares, religião e governo. Se olharmos para as Escrituras, encontraremos essa situação, por exemplo, na sociedade patriarcal (Abraão, Isaque e Jacó). Segundo Dooyeweerd, uma das leis do desenvolvimento histórico é a diferenciação. A inexistência de estruturas sociais diferenciadas em culturas tribais é fruto da paralização do processo histórico, havendo algum tipo de impedimento à atividade cultural formativa. Mas discutir melhor o assunto ao falar do conceito de A BERTURA MODAL. 125
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Desde que o intercurso social é indispensável para a existência da dimensão econômica, podemos dizer que a base imediata da esfera econômica é a esfera social. Assim falamos necessariamente de “relações econômicas”. Além disso, do fato de que o intercurso social de estrutura em diversos tipos diferentes, temos também diferentes tipos de economia: a economia política, economia doméstica, economia empresarial, etc. A expressão do valor em termos de “preços” de produtos é uma analogia lingüística. O processo de formação de preços e agregação de valor é uma analogia histórica. Podemos falar também da “lógica econômica”, do “desenvolvimento econômico” e do “espaço econômico”, por exemplo. Quanto às analogias antecipatórias podemos citar a harmonia nas relações econômicas, ou da justiça na atividade econômica. Como uma esfera pós-analítica, a esfera econômica tem caráter normativo. Ela não opera como uma necessidade natural; depende da ação formativa e da positivização do princípio da conservação do bem escasso Por isso é possível violar as leis da esfera econômica. Isso pode ser feito com intervenção estatal, desonestidade na competição, usura, etc. Um exemplo de lei econômica é a lei da oferta e da demanda, que determina os preços no mercado, quando não há algum tipo de intervenção externa ao mercado. Durante a idade média a vida econômica não pode se desenvolver conforme o seu próprio caráter porque a Igreja condenava o lucro e a competição, formulando uma teoria filosófico-teológica de preço que não permitia o funcionamento do mercado. Além disso, o sistema feudal bloqueava a evolução da vida econômica. A renascença e as revoluções burguesas liberaram a vida econômica, primeiro do controle das Igreja, depois do controle do Estado. Bem mais recentemente, nos Estados socialistas, a vida econômica foi submergida no controle estatal, trazendo graves problemas de pobreza. Como se pode ver, a posição reformacional aceita a soberania da esfera econômica, e não vê realidades como a propriedade, o dinheiro e o mercado como inerentemente maus. Isso não significa que aprovamos as práticas do capitalismo moderno. R OLAND HOKSBERGEN, economista reformado do Calvin College, fez uma comparação entre o pensamento econômico católico, como expresso na encíclica “Centesimus Annus” e a posição neo-calvinista. HOKSBERGEN cita com aprovação as palavras de JOÃO PAULO II na crítica ao fato de que a vida econômica absorve as outras esferas da vida, tanto na interpretação materialista-economicista do Marxismo, como no capitalismo moderno: “... a sociedade de consumo ... busca derrotar o Marxismo no nível do materialismo puro mostrando como uma sociedade de livre mercado pode obter uma maior satisfação de necessidades humanas materiais do que o comunismo, enquanto exclui igualmente os valores espirituais. Na realidade, enquanto por um lado é verdade que este modelo social mostra a falha do Marxismo em contribuir para uma sociedade melhor e mais humana, por outro lado ele nega a existência e o valor autônomo da moralidade, da lei, da cultura e da religião, concordando assim com o Marxismo, no sentido de que reduz totalmente o homem à esfera econômica e à satisfação das necessidades materiais.” 126
As palavras de João Paulo II concordam substancialmente com a posição reformacional, especialmente na observação de que o capitalismo moderno envolve a absolutização da esfera econômica e a superioridade das leis do mercado sobre as leis morais, jurídicas, sociais, etc. O consumismo é uma das expressões dessa absolutização. Hoksbergen observa, no entanto, que o Papa foi muito influenciado pelas idéias do 126
Hoksbergen, Roland, “Centesimus Annus: A Neo -Calvinist Critique”, p. 6.
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economista MICHAEL NOVAK , tendendo a localizar as normas que devem conduzir a vida econômica fora da esfera econômica, econômica, na dimensão jurídica e ética. Essa posição tende a tratar o mercado como se fosse uma dimensão intrinsecamente a-moral, como se fosse “natural” que o mercado operasse de forma descontrolada e deletéria para outras esferas da vida, devendo ser assim controlado “de fora”. Embora haja uma parcela de verdade nisso, se aceitamos a idéia bíblica da queda, e seja perfeitamente correto que as normas éticas e jurídicas devam ser respeitadas pelo mercado, não podemos aceitar que exista uma dimensão anti-normativa na vida humana. Contrariamente a isso, HOKSBERGEN cita o filósofo político reformado PAUL MARSHALL, que identifica a mordomia como princípio central interno da própria esfera econômica: “Ao enfatizar a mordomia, eu não estou oferecendo uma crítica ‘moral’ da economia. Nem estou dizendo que questões ‘éticas’ devem ser consideradas ao lado das questões ‘econômicas’. Eu estou dizendo que custos e benefícios são em si mesmos questões econômicas reais, atuais, concretas e intrínsecas. Eu estou dizendo que praticar qualquer outra coisa diferente de mordomia é anti-econômico, oneroso e ineficiente. Nós não devemos adicionar ‘ética cristã’ à economia. Ao invés disso nós devemos lutar por uma economia em si mesma inspirada no cristianismo; uma economia enraizada na visão bíblica de mordomia.”127
O problema do capitalismo moderno não é a “existência” do mercado, como se ele fosse uma estrutura intrinsecamente perversa, como diz a teoria Marxista; nem é que devemos “fazer o bolo crescer para depois dividir” (Delfim (Delfim Neto), isto é, que o mero crescimento econômico resolverá o problema da probreza. Mas além desses erros, segundo Marshall, devemos evitar o erro de tratar o mercado como um “monstro caótico” que precisa ser sempre “controlado”. Precisamos de uma reforma interna da vida econômica, porque o capitalismo moderno, neoliberal, não está, de fato, positivizando as normas econômicas. econômicas. A forma atual do sistema é cancerosa, produzindo os elementos de sua própria negação que cedo ou tarde irão se manifestar. O que falta é uma compreensão e aplicação da norma da mordomia, com o bem escasso acumulado sendo administrado socialmente, para uma ampla inclusão econômica e uma maior produção de riqueza. Mas o que seria exatamente essa norma? PAUL MARSHALL nos apresenta a lei da mordomia numa forma acessível: “Dado que nossa atividade econômica deve ser a mordomia amorosa da terra e de tudo o que há nela, nós devemos ter uma idéia clara do que é requerido por essa mordomia. Primeiro, deve ser dito que nós não somos mordomos apenas de coisas naturais como a terra, o solos, as árvores, os oceanos e os minerais. Nós somos os mordomos de todas as coisas – incluindo o tempo, a energia, a saúde, a organização, a vida familiar, tipos de trabalho, edifícios – edifícios – tudo tudo o que existe na vida humana. Em segundo lugar, administrar todas essas coisas é tratá-las da forma que Deus nos chamou para tratá-las, sendo cuidadosos para considerar todas as formas em que nós podemos expressar amor – através da justiça, da beleza, da preservação, do uso, da fidelidade. Ser mordomo de alguma coisa é antes de tudo estar consciente do lugar que isso ocupa na criação de Deus, ser sensível a todas as formas em que isso pode ser corrompido e todas as formas em que isso pode trazer benefício a outras coisas criadas, e então preservar e tornar isso frutífero – cuidar cuidar de tal forma que haja 127 7.
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preservação e uso buscando abençoar os outros elementos da criação. Isto é o que a mordomia significa, e, assim, é o que a economia propriamente significa.” 128
L. A Esfera Estética Spier segue Dooyeweerd definindo o momento nuclear da esfera estética como a harmonia ou a beleza de proporção.129 A harmonia reflete a coerência na diversidade cósmica, e traz um tipo de prazer esteticamente qualificado, o prazer diante do belo. O supérfulo, tanto na obra de arte altamente desenvolvida, como na arte primitiva, diminui sua beleza. Esse fato é uma analogia econômica que indica a base imediatamente econômica da esfera estética. Além disso, a expressão artística só é significativa se ocorre um compartilhamento de concepções estéticas com outras pessoas. Temos assim uma analogia social. A arte também tem um momento lingüístico, no fato de as imagens, palavras, sons e cores expressarem a subjetividade do artista. O momento analógico histórico é o que nos capacita a distinguir entre a beleza da natureza, que é dada a nós na criação, da beleza propriamente artística, que é formada pelo poder humano em certo contexto histórico. Há também uma racionalidade no estético, e falamos do “senso estético”, da “percepção do belo”, o artistic feeling que que são analogias sensórias. As leis estéticas também são normas que podem ser violadas pelo homem. Essa violação dá origem à desarmonia e à “feiúra”. Outra forma bastante comum de violação da esfera estética é o não reconhecimento da soberania dessa esfera. Na comunidade evangélica, é comum, por exemplo, encontrar a noção de que a música que glorifica a Deus é a música que trata de temas religiosos como a adoração, a santificação, o evangelho, a fé, etc. Músicas que não falam explicitamente de Deus ou que tratam de temas mais “seculares” (como o namoro) são vistas como pouco espirituais. O resultado disso é que os evangélicos tem produzido muita arte sacra no sacra no campo musical, mas tem dado pouquíssima contribuição ‘a reforma reforma da arte per arte per se. se. Um exemplo semelhante é a arte “engajada” de artistas de orientação política esquerdista, que procuram produzir uma arte comprometida com o socialismo, com a crítica da injustiça social, etc. Muitas vezes é possível encontrar artistas que produzem obras “interessantes”, que põe em questão a prática política, econômica, e mesmo os valores da sociedade, mas é comum notar que boa parte dessa produção é, do ponto de vista propriamente estético, de má qualidade; simplesmente feia. Não é qualquer obra de arte, mesmo aquela politicamente correta, corr eta, que é boa arte. Há normas que precisam ser respeitadas. Experimentos que tentaram mostrar que o gosto estético é meramente uma construção cultural, como a música dodecafônica, fracassaram miseravelmente porque não reconheceram a harmonia como uma norma estética universal. De qualquer modo, como disse Hans Hookmaaker, “a arte não precisa de justificativas”. Isto é, sendo sen do uma esfera soberana, sob erana, ela não tem que se legitimar por meio de temas sacros, políticos, ou éticos. Arte é arte, e isso reflete a vontade de Deus para a sua criação. Um outro tipo de desvio seria a tentativa de julgar entidades que não são esteticamente qualificadas a partir das normas estéticas, isto é, o esteticismo. Assim, por exemplo, a qualidade de um ato de adoração ou de um sermão não pode ser julgada 128 129
Marshall, Paul, “Thine is the Kingdom”, p. 99. Spier, “Christian Philosophy”, p. 87.
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meramente por sua dimensão estética. Também um prato de comida deve ser “julgado” por seus nutrientes, não pela beleza. Isso, naturalmente, não impede que nos voltemos para qualquer objeto real com um olhar estético. Significa apenas que não podemos encontrar a legitimidade de realidades não artísticas na esfera estética. CALVIN SEERVELD, o importante filósofo da arte do Institute do Institute for Christian Studies fez algumas críticas às idéias estéticas de Dooyeweerd. Enquanto louvou a percepção de Dooyeweerd de que a esfera estética era uma dimensão soberana da vida humana, e que deveria ser investigada por uma ciência autônoma, ao invés de ser absorvida pela semiótica, sociologia da arte, psicologia, etc,130 observou que a noção de “harmonia” seria um conceito analógico numérico-geométrico, denotando proporcionalidade.131 Assim ela não serviria para descrever adequadamente a idéia transcendental que seria o núcleo de sentido da esfera estética. Como alternativa, Seerveld propôs a noção de alusividade, ou de “qualidade de nuance” (“nuancefulness”) como o conceito nuclear. A harmonia permaneceria como um momento analógico de sentido.132 Embora essa modificação seja aceitável, precisamos observar que a solução de Seerveld parece ser uma analogia lingüística na esfera estética. Isso, no entanto, não é um problema; qualquer descrição dos momentos nucleares das esferas modais é necessariamente analógico, pois eles estão sempre além da conceptualização. M. A Esfera Jurídica O núcleo de sentido da esfera jurídica é o julgamento, não propriamente no sentido de punição, mas de harmonização balanceada de múltiplos interesses. interesses. Como se pode ver, nessa definição temos pelo menos três analogias. A harmonização aponta para a esfera estética; o “balanceamento”, no sentido de ausência de excesso e a proteção contra a priorização de um interesse face a outro, refere-se à esfera econômica (mordomia), e a mutiplicidade de interesses é uma analogia social. Quanto à multiplicidade de interesses na sociedade, SPIER aponta aponta como distinção principal os interesses de relacionamentos sociais autoritativos (referindo-se autoritativos (referindo-se às instituições sociais) e os interesses de relações sociais livres (organizações). Essa divisão corresponde a uma distinção que Dooyeweerd aplicou às instituições sociais. A injustiça surge quando um interesse substitui ilegitimamente outro interesse. Quando isso ocorre, torna-se necessária a reparação. A harmonia deve ser restaurada e o interesse injusto ou ilegal deve ser limitado de tal forma que o interesse suprimido encontre novamente o seu espaço. A justiça seria assim a norma da esfera jurídica. Toda estrutura de individualidade tem uma dimensão jurídica. Se considerarmos por um momento as estruturas sociais, seremos levados a crer que diferentes tipos de comunidades tem dimensões jurídicas, variando juridicamente conforme a qualificação modal da comunidade. Podemos falar, portanto, em várias estruturas jurídicas: família, estado, igreja, etc. Na igreja, por exemplo, há uma lei eclesiástica, embora isso não seja comumente considerado de modo explícito. Questões de governo e questões disciplinares, por exemplo, são questões jurídicas dentro da igreja. 130
Seerveld, Calvin, “Dooyeweerd’s Legacy for Aesthetics”, p. 67. Em: Mcintyre, editor, “The legacy of Herman Dooyeweerd, p. 67. 131 Ibid, p. 66. 132 Ibid, p. 68.
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A instituição social que lida especificamente com a esfera jurídica da sociedade, ou seja, que é qualificada juridicamente, é o estado. O estado tem a função de administrar a justiça pública e exigir o cumprimento das leis. Assim, é função do estado intervir quando uma instituição social invade outra ou procura impor suas leis sobre outra esfera da vida, protegendo a soberania das esferas da vida. Mas o estado não tem poder para estabelecer as leis próprias de outra esfera da vida social, como a família, por exemplo. As leis para a esfera familiar são estabelecidas pelas autoridades familiares, isto é, pelos pais. O mesmo ocorre com a igreja, com uma sociedade científica, etc: as normas jurídicas são tarefa da autoridade própria daquela esfera. Quando o estado começa a interferir nas normas e desrespeitar as autoridades de outras esferas instala-se a tirania, fazendo-se necessário que a sociedade se levante e o obrigue a retornar para o seu lugar próprio. A concepção Dooyeweerdiana do estado tem a interessante característica de superar o realismo político tão característico da filosofia política moderna. Segundo DAVID T. K OYZIS, na teoria reformacional as diversas instituições sociais tem poder para realizar-se conforme sua função principal, e uma das funções possíveis é a jurídica, isto é, a administração da justiça. Desse modo, a política não é uma questão de poder e egoísmo, numa interpretação Hobbesiana da atividade política, mas do uso do poder para justiça; isso seria a própria essência do político como dimensão da vida.133 A polaridade poder X justiça emergiria da tendência de reduzir a função do estado ao outra, como no caso da esfera econômica, no pensamento liberal e no pensamento marxista. Isso nos leva à questão da teoria dos direitos. PAUL MARSHALL explica que a teoria das esferas de soberania pode ser interpretada como uma teoria de direitos institucionais.134 A liberdade para ter seu próprio governo e leis é de fato uma atribuição de direito. Esse direito não seria propriamente uma aquisição histórica, mas algo enraizado na própria estrutura da sociedade, a partir da base ontológica das comunidades sociais. Esse direito seria muito mais básico que os direitos do homem individual, como expresso nos ideais da revolução francesa, pois este só surge mais tarde no processo de abertura modal, não devendo ser compreendido isoladamente. O estado teria a função de positivizar a norma jurídica em leis as relações jurídicas entre diferentes entidades sociais, sendo que essas relações obedecem à estrutura sujeitoobjeto do lado entitário da realidade. Essas relações sujeito-objeto são exatamente os direitos, sendo que o sujeito tem um direito subjetivo em relação ao objeto. O que é um sujeito jurídico? Qualquer entidade social, tanto o indivíduo como as comunidades. Essa concepção de direitos rompe com o individualismo radical que tem controlado as concepções de direitos humanos na cultura ocidental , estabelecendo uma igualdade entre direitos de pessoas e de comunidades, associações e instituições, bem como as teorias coletivistas e estatistas como o socialismo e o fascismo. Famílias e igrejas, por exemplo, também tem direitos. Outro mérito apontado por Marshall é o fato de que a especificação dos direitos em leis positivas é considerada um resultado da atividade jurídica, obedecendo-se à norma da justiça e ao princípio das esferas de soberania. Assim sendo, os direitos de pessoas e instituições não são propriamente reconhecidos pelo estado, mas adquiridos pela atividade jurídica, exigindo-se assim o exercício do julgamento. Eles tem significado político. Nas teorias de direito natural, uma vez que o estado meramente reconhece o direito, a atividade 133 134
Koyzis, David T, “Introductory Essay to Herman Dooyeweerd’s Political T hought”. Marshall, Paul, “Dooyeweerd´s Empirical Theory of Rights”, p. 127.
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jurídica não passa de um exercício de geometria, e o juiz não precisa considerar de fato a situação para determinar o que é justo e o que não é. O direito passa então a ser mais importante do que a própria justiça. Na visão reformacional, a justiça não pode se subordinar aos direitos. N. A Esfera Ética O núcleo de sentido da esfera ética é o dever moral, em relação a alguém. A lei dessa modalidade é o amor. Essa lei é percebida intuitivamente na experiência ingênua, na “consciência e nos pensamentos” (Romanos 2.14,15). Uma vez que o amor temporal obedece a diferentes proporções, conforme a natureza do ser amado, temos um substrato modal do amor; ele envolve o julgamento visando o comprimento do dever de amar de forma justa, conforme os objetos. Envolve também sentimentos e razões, como vimos. O amor não pode ser reduzido a uma outra esfera. Ele não é, por exemplo, o sentimento de afeto, que é uma dimensão do amor. O movimento romântico reduziu o amor ao sentimento entre dois seres, interpretando o amor sexual como paixão erótica que ultrapassava o valor dos costumes, caindo num psicologismo ético. Não se pode também reduzir o ético ao jurídico; a lei pode, por exemplo, obrigar um Pai a enviar seu filho para a escola, mas não pode obrigar o Pai a educar seu filho com amor. Assim se vê que direitos e obrigações jurídicas não são o mesmo que o dever moral. A tentativa kantiana, também denominada enciclopédica devido às suas relações com o ideal iluminista, de fundamentar a moral sobre razões é uma variedade de logicismo ético. A posição perspectivalista de Nietzsche e Derrida, que procura descrever as moralidades genealogicamente como subprodutos culturais é um reducionismo historicista, ou historicismo ético. Outra forma de reducionismo moral, como aponta GUENTHER HAAS, é aquele presente no movimento da “ética da virtude”, em ALAISDAIR MACI NTYRE e STANLEY HAUERWAS que vem ganhando influência nos últimos anos. Esse movimento pretende combater o enciclopedismo e a genealogia, e tem conseguido algum sucesso por fornecer uma concepção mais realista e útil de moralidade. Entretanto, ao localizar a gênese da moralidade meramente na tradição e na comunidade, torna-se um reducionismo sociológico, ou um sociologismo ético, enfatizando uma das dimensões da moralidade. Haas destaca que na concepção neo-calvinista a moral envolve três facetas: a motivação religiosa central, a cosmonomia e a positivização concreta das leis.135 Portanto numa ética reformacional começamos reconhecendo que não pode haver uma concepção ética verdadeira sem uma idéia adequada da origem do cosmo. Além disso, é preciso captar numa idéia a lei moral e procurar positivizá-la examinando o contexto real e procurando elaborar princípios morais fiéis ao espírito da Lei. A leis bíblicas seriam exemplos dessa positivização (que precisariam ser re-contextualizados) e em sua essência expressam a norma ética da cosmonomia. Como se vê, na posição reformacional não se pode nem absolutizar leis morais, nem relativizá-las, como faz a pós-modernidade. O amor não deve ser jamais confundido com a função fiduciária, como se a moralidade fosse a “essência da religião”. Essas esferas são distintas, e tentar estabelecer a fé pelas normas da esfera ética conduz ao colapso da fé. No caso, seria um exemplo inverso de reducionismo moral: um moralismo religioso, ou eticismo. 135
Haas, Guenther, Kuyper’s Legacy for Christian Ethics”, p. 339.
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O. A Esfera Fiduciária Uma das grandes preocupações dos teólogos tem sido a relação entre a fé e a vida. Duas soluções tem sido muito populares: a compartimentalização e a absolutização. Na primeira, considera-se que a religião e a fé constituem uma esfera distinta do restante da vida. Há assim um espaço “secular” e um espaço “religioso”, sendo que um luta contra o outro. Na segunda, considera-se que a religião e a fé não tem uma esfera própria, mas são toda a vida: nesse caso as práticas e instituições de fé passam a restringir as outras áreas da vida. Na perspectiva reformacional, fé e religião não são a mesma coisa. A religião ou espiritualidade é tão ampla quanto a vida; mais do que uma atividade que se desenrola em alguns momentos e contextos específicos, a religião é o sistema total de vida de alguém. Já a fé é uma dentre as formas básicas da existência religiosa.136 Essa distinção tem o valor fundamental de considerar todas as esferas da vida como sendo modos de viver a religião preservando ao mesmo tempo um espaço da vida para a as crenças, práticas e instituições de fé. A fé não é algo peculiar aos cristãos; é antes uma dimensão essencial da vida humana, sendo comum a todos os homens. O que muda é o conteúdo e a direção da fé, que pode ser orientada para Deus ou para um ídolo.137 Essa visão se distingue da visão católicoromana da fé como um dom especial da graça, bem como da posição de Karl Barth, da fé como dom da nova criação, totalmente ausente nos não-cristãos. Essas concepções distinguem uma esfera da natureza e uma esfera da graça, considerando essa última como um donum supperaditum, uma espécie de “acréscimo”, que acaba por atribuir autonomia à natureza. Na visão reformacional a redenção restaura a própria natureza; assim a fé deve ser parte da criação original, tendo seu lugar como uma das esferas da vida que todos os homens partilham; a queda teria tornado essa fé obscurecida e apóstata, e a redenção incluiria a purificação e redirecionamento dessa fé para Deus.138 Entretanto, a esfera da fé tem uma posição especial entre todas as outras. Sendo a última esfera da escala modal, ela aponta para além do horizonte temporal, em direção a Deus. Essa orientação para além do tempo, dá à fé um foco transcendental .139 Todo ser humano tem uma orientação fundamental em seu coração em direção à origem – isso é a religião. A orientação religiosa fundamental de cada indivíduo tem um modo distinto de expressão em cada esfera da existência.140 Na esfera da fé essa orientação é expressa como uma confiança ou certeza sobre o que é “Deus” e o que ele significa para mim. Desse modo, na esfera pística ou fiduciária a orientação religiosa fundamental de uma pessoa encontra expressão em termos de fé em Deus, ou o que popularmente e 136 OLTHUIS,
James H., Dooyeweerd on Religion and Faith. Em: McINTIRE, C. T., editor, The Legacy of Herman Dooyeweerd: Reflections on Critical Philosophy in the Christian Tradition. Lanham: University Press of America, 1985, p. 21. 137 KALSBEEK, L., Contours of a Christian Philosophy. Toronto: Wedge, 1975, p. 102. 138 “Criação e redenção não constituem conjuntos competido res ou complementares de realidade. Eles são antes duas profundamente interrelacionadas formas de conhecer a mesma e única realidade: uma do ponto de vista da obra criativa de Deus, a outra do ponto de vista de sua obra redentiva.” SPYKMAN, Gordon J., Reformational Theology: A New Paradigm for Doing Dogmatics. Grand Rapids: Eerdmans, 1992, 584 pp. op.cit., p. 89. 139 Assim, para Dooyeweerd, a fé teria o papel fundamental de guiar o desenvolvimento de todas as esferas modais na existência humana, possibilitando sua operação plena e harmoniosa. O processo de “desvelamento” e evolução guiado pela fé recebeu o nome de “abertura modal”. 140 OLTHUIS, p. 26.
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imprecisamente chamado de “religião”. A concepção reformacional de religião e fé nos leva a algumas conclusões interessantes. Embora o natural seja que a religião da pessoa encontre expressão em sua fé, é possível que alguém pratique um culto ou confesse uma “fé” de forma exterior, mas sua verdadeira religião seja algo diferente. Por outro lado, mesmo um ateu professo, que não crê em Deus, na verdade expressa em sua fé invertida uma orientação religiosa fundamental em direção a algum ídolo. Nesse ponto precisamos de uma definição filosófica de fé. Seguindo Dooyeweerd, podemos dizer que em si mesma, a fé do cristão é a certeza transcendental a respeito do fundamento da sua existência, originada da revelação de Deus como o fundamento de todas as coisas quando esta atinge o coração da sua existência.141 Isso significa que a fé é uma segurança ou certeza que vai além de todas as esferas (inclusive a analítica), apontando para além do tempo, em direção à origem de todas as coisas; essa certeza tema ver com aquilo que dá sentido à minha existência como um todo, isto é, aquilo que para mim é a fonte da vida, do significado, do existir. Finalmente, essa certeza sobre mim mesmo está ligada à visão interior, no coração, desse fundamento de todas as coisas. Se eu sou um incrédulo, vejo um ídolo como esse fundamento, e assim minha confiança sobre a fonte da minha vida se dirige a esse ídolo. Se eu recebi em meu coração a revelação de Deus em Jesus Cristo, tenho a certeza de que o Deus de Jesus é o fundamento de todas as coisas, e tenho a certeza de que ele é o fundamento da minha vida. Como todas as outras, a esfera da fé não existe sozinha, “em estado puro”, mas conectada às outras esferas. Assim, a confiança em Deus como salvador sempre vem acompanhada de um substrato modal : na esfera ética, a adoração amorosa ao objeto da fé; na esfera jurídica, o reconhecimento da culpa e a aceitação da justiça de Deus; na esfera estética, a harmonização e equilíbrio da existência de fé; na esfera econômica, o sacrifício ou comprometimento dos recursos, incluindo a própria vida, pela fé; na esfera semiótica, a linguagem “religiosa”; na esfera social, a identificação e integração com Deus e com outros crentes numa experiência comunitária, bem como o eventual rompimento de outras relações sociais; na esfera histórica-formativa, a expressão da fé numa determinada situação cultural; na esfera lógica, a aceitação de um sistema proposicional de crenças que descreve o conteúdo da crença; na esfera psíquica, o sentimento religioso, como a alegria da fé, a sede de justiça e o ódio ao pecado. Esses elementos presentes na fé são denominados analogias modais da fé. O reconhecimento da complexidade da fé é importante para nos guardar de concepções demasiadamente estreitas da natureza da fé. Não se pode por exemplo identificar a fé com o momento psíquico do “sentimento” da certeza ou segurança, ou com o momento analítico da “crença intelectual”. A fé é um estado da pessoa que se manifesta em todas as esferas do ser de forma coerente. Toda a realidade, como vimos, apresenta um lado normativo e um lado de entidade. Podemos pensar que em cada esfera há o sujeito e o objeto no lado de entidade, e a norma no lado normativo. Por exemplo; na esfera psíquica ou sensória, o sujeito é aquele que sente alguma coisa. O objeto é o foco do sentimento, que pode ser qualquer coisa: uma experiência, uma idéia, um ser vivo, etc. Finalmente, temos as leis que governam a vida psíquica. Na esfera fiduciária temos o mesmo esquema: O sujeito da fé é o que exercita a 141
A definição de Dooyeweerd é a seguinte: “uma certeza original transcendental, dentro dos limites do tempo, relacionada a uma revelação do ‘Arché’ que captura o coração da existência humana.” (DOOYEWEERD, H., A New Critique of Theoretical Thought, vol II: The General Theory of the Modal Spheres. Philadelphia/Amsterdam: Uitgeverij H. J. Paris/Presbiterian and Reformed, 1955, p. 304).
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fé, o que crê. Temos também o objeto da fé, que pode ser qualquer coisa. Se a fé se dirige a um ser criado, é uma fé idólatra. Mas se a fé é dirigida a Deus, ela tem uma orientação verdadeiramente transcendental, apontando em direção à origem de todas as coisas. É óbvio, no entanto, que Deus não é um objeto no sentido comum, pois não está sujeito às leis modais que governam a criação. A fé se dirige a Deus por meio da Palavra escrita de Deus, que é a revelação de Deus dentro do horizonte da experiência humana, sujeita às leis modais. O paradigma dessa revelação é o próprio Jesus Cristo: Deus, sim, mas encarnado no homem e assim sujeito às leis que governam o homem enquanto criatura. O que seria, então, a norma da esfera da fé? Que leis governam a fé? Vamos nos voltar para o núcleo de sentido da fé. Em si mesma, ela não é uma “coisa”, ou uma “substância” que exista por si mesma. Ela é uma função do sujeito sob uma lei modal. Podemos nos lembrar aqui da vida biológica, por exemplo. A vida não é uma espécie de “fluido”, mas um modo de funcionamento de alguns seres. Assim, a fé é um modo de ser do sujeito. O sentido nuclear da fé pode ser descrito como a confiança ou certeza quanto ao fundamento último da existência. Como se pode ver nessa definição, a fé é um movimento do sujeito para fora de si mesmo, em direção à sua origem. Esse direcionamento ou rendição à origem pode ser considerado a norma do aspecto pístico. Em outras palavras, podemos dizer que na fé o sujeito se dirige à sua origem e se identifica com ela numa relação de confiança absoluta e incondicional. Um resultado interessante dessa solução é que a norma da fé implica num outro tipo de norma que não está implicada nas outras esferas modais. É que a norma da fé é uma rendição e uma identificação com a origem que implica numa dependência total da origem; na fé o sujeito se rende a uma realidade transcendental.142 Ora, confiança do sujeito em direção à origem depende da Revelação da origem. Assim, a revelação da origem torna-se necessariamente a norma que governa a fé do sujeito.143 Se a fé é colocada sobre um ídolo, como o mercado, por exemplo, toda a existência passa a ser governada pela esfera econômica, e as outras esferas da vida são forçadas a se submeter às leis do mercado, distorcendo toda a existência. Mas se a fé é dirigida Deus, temos uma situação muito diferente. Não há uma lei modal que governe a Deus; ele não está em uma esfera modal. Embora a Revelação de Deus tenha se dado dentro do horizonte da experiência humana, ela transcende esse horizonte. Assim, a norma da fé em Deus se torna a própria Palavra de Deus. Nenhuma outra lei modal pode governar a fé; a única lei da fé é a sua própria sujeição à norma transcendente da Palavra de Deus. A Teologia como Ciência da Fé Geralmente se pensa que o objeto específico da teologia é “Deus”, e que a teologia é o estudo de Deus. Mas é claro que uma análise científica de Deus é impossível, e a teologia 142 Por
isso mesmo Dooyeweerd destaca a dificuldade de se definir o núcleo de sentido da fé. A orientação transcendental da fé implica em que seu sentido não pode ser desconectado do próprio “objeto” transcendente da fé, que em si mesmo está além da compreensão. 143 “Se a ‘pístis’, como a função transcendental terminal do cosmos, tem uma esfera modal própria, ela deve ter um lado normativo e um lado subjetivo (ou de entidade). E o lado normativo pode apenas ser a norma prescrevendo a sujeição da nossa crença à Revelação Divina, como a garantia última de certeza ... Essa revelação da Palavra dentro do aspecto da fé garante a norma e contém o principium da fé Cristã.” DOOYEWEERD, ibid, p. 305.
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nesse sentido é impossível. Na prática, o que encontramos é antes o exame crítico interno da fé. Quando estudamos teologia, na verdade estudamos nossas crenças sobre Deus. Esse discurso não é vazio, porque o próprio Deus tornou-se, por meio da revelação e das Escrituras, um agente de discurso, falando sobre si mesmo e sobre o mundo em linguagem humana. O discurso sobre Deus é portanto, em sua fonte, pré-científico; a verdadeira teologia como discurso sobre Deus é pré-científica. Na teologia científica temos um discurso de “segunda mão”, que tem como objeto o discurso religioso da igreja, que é expressão da sua fé em Deus. Daí um autor ter proposto que a teologia deveria se chamar “pistologia”, ou “pisteologia”, isto é, o estudo da pístis, da crença religiosa.144 Essa percepção nos ajuda a compreender a natureza e o lugar da teologia no espectro das ciências. O campo ou modo da realidade que a teologia contempla é a crença religiosa, especificamente. A fé religiosa existe como parte da realidade, conectada a todas as outras esferas. Como introdução ao que poderíamos chamar de “ciências da fé” precisaríamos examinar a função fiduciária de uma forma completa. Isso exigiria uma espécie de “fenomenologia” da fé na qual cada momento analógico da fé é descrito de forma precisa. Isso abriria a porta para diferentes campos de estudos. Algumas ciências se desenvolveram em torno de momentos analógicos específicos da fé. Por exemplo: a História Eclesiástica trata especificamente das expressões históricas da fé cristã; a sociologia da religião, da dinâmica social que rege as igrejas e sua interação com a sociedade;145 alguns estudiosos da religião a estudaram do ponto de vista da percepção religiosa, como R UDOLF OTTO em “O Sagrado”; e recentemente filósofos analíticos como WILLIAM ALSTON e ALVIN PLANTINGA tem examinado a crença religiosa do ponto de vista de sua formação e justificação racional. Uma série de ciências da fé pode ser constituída em torno desses momentos analógicos. Na teologia dogmática o foco do estudo é o momento analítico da fé; buscamos refletir cientificamente sobre o conteúdo credal da fé religiosa, que é a doutrina, ou o dogma. Buscamos compreender sua natureza básica e sua relação com os outros aspectos da realidade. Isso funda um espectro das ciências propriamente teológicas:146 na teologia bíblica, que serve à sistemática, buscamos compreender o fundamento bíblico da crença; na teologia histórica, procuramos compreender o progresso histórico da crença; na teologia da cultura, buscamos refletir sobre a relação entre a crença e a cultura; na teologia filosófica examina-se o processo de formação, a coerência, a justificação, e a inserção da crença no sistema geral de crenças. Em todo o processo de reflexão teológica, a sujeição da crença à Palavra de Deus é a norma. É claro que a nossa compreensão a respeito da Palavra de Deus terá grande influência sobre todo o processo de reflexão teológica, não só no nível mais teórico, mas também na teologia prática: Como observou GERALD HAWKES: “A forma como
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John C. Vander Stelt, citado por SPYKMAN, p. 104. Stelt argumenta que a teologia é uma ciência por seu próprio mérito, ao examinar uma dimensão concreta da vida humana, que é a fé religiosa. Realidades como Deus e a revelação não são restritas à teologia, mas afetam toda a existência. 145 Deve-se observar, no entanto, que a sociologia e a psicologia da religião geralmente não são muito conscientes de seu próprio ponto de partida religioso e, assim, de seu próprio comprometimento pístico. Diferentes orientações fiduciárias originarão diferentes “sociologias” e “psicologias” da fé religiosa. 146 De fato, historicamente, a dogmática foi a primeira das “ciências teológicas”.
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compreendemos a auto-revelação de Deus a nós afetará o papel que damos à teologia em nosso ministério, e no estudo do ministério, que é o campo da teologia prática.”147 Fica claro então que a teologia científica é algo bastante diferente da ciência da religião no atual establishment acadêmico. Nessa última busca-se compreender o fenômeno religioso de forma científica, em suas diversas expressões, mas geralmente não se toma a fé como ponto de partida e realidade fundante da pesquisa. A teologia científica, mesmo ao praticar a crítica doutrinal, ainda pressupõe a fé e aceita a doutrina como expressão válida, ainda que imperfeita, dessa fé. Ela surge justamente como movimento da fé para dentro de si mesma, com o auxílio da lógica, na busca de uma compreensão científica de sua natureza e de seus próprios fundamentos. É a fé buscando a compreensão da própria fé. Num certo sentido, a ciência da religião também examina a fé; mas não a sua própria; trata-se de uma tentativa de compreender científicamente o fenômeno religioso num sentido geral, sem assumir a crença estudada como ponto de partida, e geralmente pressupondo a neutralidade religiosa do pensamento teórico. Isso não significa que o cientista da religião não tenha religião e fé; na verdade, o cientista da religião também tem uma orientação religiosa fundamental em direção a um Arché, e seu instrumental científico pressupõe uma determinada forma de crer que pode ela mesma se tornar objeto teológico, isto é, de um exame interno em busca de autocompreensão, e pouco importa se tal forma de crer envolve ou não um teísmo – as crenças mais fundamentais de um ser humano estão sempre além da justificação teórica expressando a orientação fundamental de sua vida; e isso é o que há de mais essencial na religião. Desse modo, na teologia todo cientista da religião é um dogmático, queira ou não; pois suas crenças mais fundamentais, que constituem suas razões mais fundamentais, tem suas fontes além da razão científica na existência concreta, no ser, e o próprio cientista poderá dobrar-se sobre essas crenças, para explicitar seu sentido. Mas algumas vezes, devido à aceitação acrítica do dogma da autonomia religiosa do pensamento teórico, os cientistas da religião não tem consciência de sua espiritualidade intrínseca e não tem consciência do aspecto fiduciário ou pístico de sua vida. Por isso mesmo, as ciências da religião tem sido principalmente uma tentativa acrítica do humanismo racionalista ocidental de compreender as outras fés religiosas a partir de sua própria fé antropocêntrica, como se essa não fosse também uma expressão religiosa.148
9. Abertura Modal As esferas modais, como vimos, existem de forma coerente e entrelaçada. Devido ao tempo cósmico, elas tem uma natureza dinâmica, orientada para o desenvolvimento e o desdobramento do significado. Assim como em Deus temos a plenitude do sentido, na plenitude do tempo cósmico temos a plena realização do sentido cósmico, de tal modo que o desenvolvimento cósmico no tempo em direção a um clímax revela progressivamente a vontade de Deus; Deus e o sentido cósmico, estão no futuro cosmocronológico. Dooyeweerd observou que, sob certas condições, os momentos antecipatórios de certa modalidade se desvelam de tal modo que o sentido dessa modalidade é enriquecido. 147 HAWKES,
Gerald, The Role of Theology in Practical Theology. Journal of Theology for Southern Africa, vol 49/01, p. 38, 39. 148 Empregamos o termo “religião” aqui no sentido reformacional como “a vida humana em sua expressão total a partir de um Arché”.
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Por outro lado, pode haver um fechamento desse sentido. Assim os momentos antecipatórios podem estar num estado estático e restritivo, ou num estado dinâmico e expansivo. Por exemplo: um animal só pode sentir dor de uma forma limitada às suas funções subjetivas. Mas um homem pode sentir dor e associar a ela um sentido social, econômico, ou jurídico, sentindo a dor como uma injustiça, e pode inclusive procurar ver a dor dentro de sua fé. Assim, o homem não tem simplesmente “dor” como um fenômeno psíquico. Isso significa que sua função psíquica está operando de uma forma expansiva. Uma modalidade é aberta ou expandida quando um momento antecipatório de uma esfera inferior aponta para uma função que se torna a função guia ou diretiva. Em sociedades mais primitivas e socialmente indiferenciadas, como algumas sociedades tribais, algumas esferas podem estar totalmente fechadas do ponto de vista modal, ignorando, por exemplo, a norma da justiça e não tendo em sua estrutura uma adequada tentativa de positivização da norma jurídica. A base para a abertura modal numa sociedade é a modalidade histórica. Somente quando as normas históricas são positivizadas de tal modo que surjam movimentos criativos dentro da cultura é que se torna possível a diferenciação modal e a individuação entitária. A esfera que guia o processo de abertura modal, fornecendo a orientação transcendental do processo e definindo a inter-relação de modalidades e entidades é a esfera da fé, que fornece uma visão de totalidade e um ideal de cultura. A fé bíblica produziu um processo de abertura modal que possibilitou o nascimento da cultura ocidental moderna. Mas uma fé apóstata pode bloquear o processo de abertura e até mesmo faze-lo regredir.
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VII. TEORIA DA ESTRUTURA DAS ENTIDADES TEMPORAIS Tanto a teoria das esferas modais como a teoria das entidades temporais investigam a realidade temporal como criação de Deus, a partir de suas leis. Mas no primeiro caso, a abordagem é por segmentos, transversal. Já no segundo caso, procuramos examinar as coisas como totalidades, estudando sua coerência funcional. Na teoria das entidades temporais nos concentramos no fato de que Deus criou individualidades, ou estruturas individuais: uma pedra, um vegetal, um fenômeno físico ou cultural. Cada uma dessas estruturas possui uma unidade típica, própria, que as distingue de outras coisas. Não são meramente “fenômenos” da consciência, como em Kant, mas objetos reais. As estruturas de individualidade pertencem ao que é chamado de horizonte plástico da experiência. Nesse horizonte conhecemos a diversidade e a unidade de um modo diferente da análise modal: temos diversidades típica, e totalidades estruturais. Podemos distinguir ainda a análise modal e a análise entitária descrevendo-as como visões funcionais e individuais da realidade.
1.
O Conceito de Substância
Antes de avançar na análise entitária, precisamos lidar o problema do conceito de substância. O termo, presente em muitos sistemas filosóficos, se originou na antiguidade. A principal objeção reformacional ao conceito, em suas diversas formas, é que ele trata a realidade como composta de uma essência metafisicamente informe e autônoma. No fundo, a concepção implica em que há um ponto de descanso dentro do cosmo criado, um limite de sentido imanente, intra-cósmico. O termo grego hypostasis tem o sentido de “estar sob”. Em seu uso metafísico, denota o ser que subsiste ou descansa sobre si mesmo. Os filósofos jônicos da natureza procuraram descobrir uma essência primordial que servisse para explicar todo o cosmo, uma espécie de arché. TALES, A NAXIMANDRO e A NAXÍMENES procuraram essa “essência” na água, no infinito e no ar, respectivamente. Foi com PARMÊNIDES , fundador da escola Eleática, que a experiência da “mudança” foi considerada ilusória, e a verdadeira realidade considerada um “ser -em-si” eterno, imutável, estático, acessível à razão. Em oposição ao pensamento de Parmênides, HERÁCLITO de Éfeso acreditava que a realidade última é o fluxo permanente da natureza. PLATÃO considerou este mundo a cópia do mundo real, de natureza ideal. Localizou o “efêmero” (o fluxo de Heráclito) na matéria e o “permanente” (o “ser” de Parmênides) no mundo das idéias. ARISTÓTELES, ao contrário, procurou a “substância” essencial na própria estrutura do mundo, mas não rejeitou o dualismo platônico. Ele tratou a realidade como uma combinação de formas eternas e matéria, sendo a matéria a potencialidade para a atualização e realização. A mudança ou processo dentro do real ocorreria porque a matéria “se move em direção à forma”, em busca da realização plena, a perfeição da forma. Assim tudo é a correlação entre matéria e forma. Nessa teoria, a essência do real é uma realidade mais alta que as coisas individuais em si mesmas. A essência da justiça, por exemplo, é uma substância metafísica, a forma eterna da justiça. A essência de uma árvore também é algo mais que conceptual; trata-se de uma substância metafísica. A materialidade seria o princípio de individuação. Assim “a individualidade de uma coisa e seu princípio estrutural seriam basicamente opostos e
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mutuamente estranhos.149 Como se pode ver, na linha de raciocínio do pensamento grego há uma tendência de procurar por uma substância essencial que confere realidade a todas as entidades temporais, mas essa busca, quando chega à maturidade em Aristóteles, acaba por desenvolver uma concepção das entidades temporais na qual a unidade estrutural das entidades permanece metafisicamente irreconciliável com a diversidade e individualidade dessas estruturas. O “um” e o “muitos” permanecem realidades contrárias e ficamos com uma cosmologia dualista. No pensamento humanista encontramos outras concepções de substância. Descartes acreditava em duas substâncias básicas, a res cogitans e a res extensa, reduzindo todas as funções pré-psíquicas à extensão espacial e as restantes ao pensamento racional. Sua cosmologia permanece, assim, dualista, revelando seu caráter na solução cartesiana da relação mente-corpo: não haveria uma conexão “mecânica” ou “concreta” entre eles; os movimentos do espírito acompanham os do corpo simplesmente porque Deus os coloca em coordenação. Kant rejeita noções metafísicas de substância, tratando o conceito apenas como uma categoria do pensamento a partir da qual construímos a realidade. Ele retira assim o conceito da esfera metafísica e o recoloca na esfera epistemológica. A substância metafísica, como “coisa em si” ( Ding an Sich) é considerada inacessível. Entretanto, permanece como princípio básico de sua cosmologia o sujeito pensante, o “ego” metafísico. A esse ego lógico atribui-se a independência metafísica, ainda que não se use o termo “substância”. O problema básico com o conceito de substância é que ele é funcionalista. Ele manifesta uma dificuldade crônica de reconhecer a diversidade cósmica, procurando dentro do cosmo uma realidade não significante, isto é, algo que seja a origem do sentido, a realidade última. Essa busca sempre leva à hipostatização de uma função modal. A identificação de um dos aspectos dessa diversidade com a essência do real gera uma tendência de reduzir o horizonte plástico da experiência ao horizonte modal . Isso se vê, por exemplo, no culto neo-pitagórico, que após desenvolver conceitos matemáticos a partir da abstração numérica, atribuiu ao número uma natureza divina e independente, ou no vitalismo, que acredita na existência de uma “força vital” como uma substância independente. Para reconhecer que o ser do cosmo é significado, e que nada no cosmo subsiste por si mesmo, é mais apropriado abandonar a noção de substância e encontrar uma outra concepção para descrever entidades reais.
2.
O Princípio Estrutural de uma Entidade Individual
Entidades temporais são realidades percebidas diretamente na experiência ingênua, como “coisas”. Falamos de pedras, árvores, imagens, sentimentos, família, pensamentos, automóveis, etc. Com o termo “automóvel” não nos referimos a um objeto físico, meramente, mas a uma entidade total, ainda que possamos distinguir sua existência nas várias esferas modais. Um carro não é meramente um objeto físico; ele tem significado econômico, social, etc. A experiência ordinária percebe o automóvel como uma totalidade coerente, sem distinguir suas funções. Para expressar esse tipo de percepção, falamos da sistasis de sentido. A experiência ordinária percebe entidades reais sistaticamente (gr. systasis), isto é, como um sistema 149
Spier, “Christian Philosophy”, p. 164.
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integrado, simultâneo, com todas as funções reunidas lado a lado. Em oposição a isso, na ciência temos a distásis de sentido, isto é, a decomposição da estrutura modal original para examinar uma função específica. Na filosofia procuramos, dentro do possível, recuperar teoricamente a sistasis perdida na atividade científica; isto é: procuramos formular uma concepção integrada das entidades reais combinando os resultados da ciência e respeitando a base sistática fornecida pela experiência ordinária. Para formar um conceito sobre a estrutura de uma entidade temporal, é preciso inicialmente penetrar pelo pensamento científico naquela entidade, considerando-a do ponto de vista funcional. É muito importante manter, nessa fase, a resistência contra a hipostatização de uma das funções modais para tentar “capturar” a totalidade do objeto dentro de uma única modalidade, caindo assim no reducionismo. Conceitos que expressão a noção de substância devem ser criticados. A essa penetração na estrutura modal de um objeto denominamos análise modal . Análise Modal Antes de passarmos à análise, algumas definições são importantes. Um dos grandes problemas filosóficos na história do pensamento tem sido o dualismo objetivismo versus subjetivismo. Geralmente denominamos sujeito o ente conhecedor, e objeto, o ente conhecido. Os objetivistas tendem a pensar que as propriedades das coisas nascem delas mesmas, de sua essência. Assim, a forma e a ordem que vemos no mundo procede do próprio mundo. Já os subjetivistas pensam que a mente do ente conhecedor, isto é, do sujeito, é que impõe uma ordem nos dados da experiência. Nesse caso, as propriedades do mundo não são “reais”; são antes criações da nossa mente para tornar a experiência inteligível. Podemos dizer que ambas as posições absolutizam ora o mundo, ora o indivíduo, tratando-os como as fontes da ordem, ou, falando de outro modo, das leis cósmicas. O problema com essas formas de explicar a realidade é que elas abrem a porta para o reducionismo. O reducionismo, como nós já vimos, ocorre quando tentamos explicar a natureza básica de alguma coisa a partir de um conjunto específico de propriedades. Por exemplo: muitos biólogos tentam provar que a vida biológica é meramente uma forma de organização da matéria. Assim, eles tentam demonstrar que a vida pode ser totalmente explicada por processos químicos. Supõe-se que as propriedades do aspecto físico são a essência da realidade – um reducionismo objetivista. Outra forma de reducionismo é a idéia de que a beleza física é algo “da nossa cabeça”, e que as coisas não são belas em si. Nesse caso, trata-se de um reducionismo subjetivista. A filosofia reformacional opõe-se à prática do reducionismo por meio do princípio da irredutibilidade. Uma das mais fortes tendências na análise filosófica do pensamento imanentista é a tendência de explicar a natureza de um objeto a partir de uma noção de substância. Na posição reformacional, para descobrir a verdadeira natureza de um objeto, precisamos descrever como as leis divinas o constituem como ele é. Assim, o objetivo de uma análise científica de um objeto não é tentar descobrir a essência básica daquele objeto, que estaria em um conjunto específico de propriedades. Antes, o objetivo é descobrir como as leis cósmicas definem aquele objeto. Um objeto qualquer é definido por dois tipos de leis. Em primeiro lugar, temos as leis modais. São as leis que determinam as propriedades de cada esfera modal. Por exemplo: existem as leis físicas, próprias das esferas cinemática e física, ou as leis lógicas,
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próprias da esfera lógica, e leis morais, da esfera ética. Em segundo lugar, temos as leis típicas (type laws), que regulam como as propriedades de vários aspectos devem se combinar para formar coisas e eventos de tipos particulares, isto é, as coisas individuais. Para descrever a natureza de uma coisa, devemos analisar seu tipo estrutural (lei típica, ou idionomia), e suas funções modais (leis modais). Todas as entidades no horizonte da experiência humana exibem todos os aspectos da escala modal. Assim, a análise modal deve começar identificando as esferas em que o objeto funciona subjetivamente e objetivamente. Além disso, as entidades temporais diferem entre si conforme o que denominamos qualificação modal. A qualificação modal de uma entidade é o último aspecto ou esfera modal na qual a entidade funciona como sujeito, ou seja, funciona ativamente, a sua “end-function” ou função terminal. Assim, por exemplo, uma rocha é qualificada físicamente, uma árvore bioticamente, um supermercado, economicamente, e uma peça de Villa-Lobos, esteticamente.150 Os atos humanos também tem qualificação modal. E uma vez que tais entidades são produtos do exercício da vontade humana, devemos procurar a qualificação desses atos em seu propósito ou objetivo imediato. Assim, um ato de compra, por exemplo, é qualificado economicamente, e um casamento é qualificado eticamente. Entretanto, a identificação do último aspecto no qual a entidade funciona ativamente não é suficiente para descrever todas as entidades. Objetos naturais, como as pedras, por exemplo, são facilmente classificados do ponto de vista modal. Um pedaço de rocha é fisicamente qualificado. A coisa não é tão simples, no entanto, quando se trata de artefatos humanos. Uma escultura feita a partir daquele pedaço de rocha sofre um processo de transformação. Além disso, torna-se, consoante ao projeto do autor, uma entidade qualificada esteticamente. Nesse caso, podemos dizer que a qualificação modal da escultura envolve pelo menos três elementos: em primeiro lugar, há a mais alta função ativa da rocha a partir da qual a escultura é feita, que é a função física. Em segundo lugar, há o processo de controle humano formativo, produzindo um objeto cultural. Finalmente, há o plano do artista que conduziu o processo com interesse estético. Assim, para artefatos humanos, podemos dizer que sua mais alta função ativa (o físico) é a função base primária, a função do processo formativo é a função base secundária, e o aspecto “cujas leis governaram o processo de sua formação”151 é sua função guia. Este modelo foi aplicado por Dooyeweerd para analisar as instituições sociais. A função base primária dessas instituições é obviamente a função social. Os tipos de instituições sociais variam ainda na função base secundária, isto é, conforme o processo formativo que lhes dá origem. Assim, a família surge como um produto biológico, e o estado como um produto histórico. Finalmente, a função guia seria a última na qual a instituição opera ativamente, indicando o propósito principal daquela instituição. No caso da igreja, temos uma instituição cuja função base primária é social, a função base secundária é histórica, e a função guia é fiduciária.
150 É
claro, entretanto, que uma pedra preciosa ou uma ave rara, por exemplo, podem ser examinadas do ponto de vista estético, ou econômico; nesse caso elas tem essas funções de forma passiva. A mais alta função ativa é que qualifica essas entidades ontologicamente. Assim, a pedra é fisicamente qualificada, e a ave bioticamente qualificada. 151 CLOUSER, Roy, The Myth of Religious Neutrality: An Essay on the Role of Religious Belief in Theories . Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1994, p. 222.
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Individualidade Própria Uma entidade real é, no entanto, mais que a soma de suas funções modais. A análise funcional não nos fornece uma explicação adequada da unidade de uma coisa, que a filosofia precisa esclarecer. Precisamos assim de mais recursos para descrever uma entidade. Para avançar na descrição, precisamos perceber antes de tudo que a função qualificante de uma entidade como uma árvore, por exemplo, é ao mesmo tempo a função guia de seu processo de desenvolvimento interno.152 O processo interno de desenvolvimento é a coerência e cooperação interna que existe dentro da árvore e que direciona suas funções subjetivas nas quatro primeiras esferas modais. Assim a função biótica guia a combinação das outras esferas de tal modo que sua evolução espacial, cinética e físico-química serve à função biótica. E desde que esse direcionamento coloca as esferas inferiores na direção da finalidade biótica, podemos dizer que “A função biótica guia o processo de desenvolvimento, resultando em que os momentos antecipatórios do aspecto biológico nas esferas anteriores trabalham de certo modo e direção.”153 Esse processo dá à entidade uma coerência estrutural. A função qualificante que denominamos end-function ou função terminal, a última função subjetiva da entidade, distingue essa entidade de todas as outras coisas que tem uma função terminal diferente. A unidade de uma coisa não pode ser encontrada em seu caráter modal, pois a análise modal nos dá uma descrição diestática das entidades temporais. É o tempo cósmico que garante a coerência intermodal entre as funções diversas da realidade temporal. Assim o princípio estrutural de uma entidade advém do tempo cósmico, que funciona como um princípio típico de totalidade. “A unidade de uma coisa não é modal em caráter, mas deve ser encontrada na continuidade do tempo cósmico.”154 O tempo cósmico, como princípio de ordem e duração é que constitui a forma estruturada de qualquer entidade, que “combina” as esferas da realidade numa totalidade. O tempo cósmico é que garante que uma árvore permanece a mesma entidade mesmo quando é transplantada. Uma implicação do fato de que o tempo cósmico confere identidade a entidades individuais, é que nós não podemos sintetizar conceptualmente essa unidade entitária sistática que foi rompida no pensamento teórico: “O pensamento teórico não pode penetrar a estrutura das coisas temporais. Essa limitação da ciência revela o fato de que ela não é auto-suficiente. A ciência deve apelar à experiência ingênua para captar a unidade de uma coisa que está na diversidade modal. A experiência ingênua é o fundamento da ciência e a ciência não pode e não deve desconsiderá-la impunemente. Mesmo a filosofia jamais poderá substituir a experiên cia ingênua.”155
3.
Tipos Estruturais
Toda entidade é um tipo estrutural de diferentes “reinos” de coisas na realidade cósmica. Cada reino é composto das entidades individuais de um certo tipo. Entidades 152 SPIER,
J.M., An Introduction to Christian Philosophy. Philadelphia: Presbiterian & Reformed, 1954, p.
169. 153 Ibid, p. 169, 170. 154 Ibid, p. 170. 155 Ibid, p. 171.
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pertencentes ao mesmo reino possuem um tipo de estrutura que difere radicalmente do tipo de estrutura das entidades de outro reino. Um animal é diferente de um vegetal e, a despeito da variação, todos os animais possuem uma estrutura de mesmo tipo. O termo “tipos-radicais” designa os tipos estruturais fundamentais de natureza elementar. A totalidade das entidades cuja função limitante está no mesmo aspecto forma um “reino”. Um tipo-radical indica a esfera modal no qual está essa função. “Plantas” e “Animais” e “Minerais” são tipos-radicais que nomeiam os reinos de entidades. Dentro de um tipo-radical podemos distinguir ainda os tipos-grupais, ou genótipos. Sob um grupo compreendemos um princípio estreito de estruturação dentro de um reino específico. Entidades pertencentes ao mesmo grupo tem peculiaridades estruturais que são estranhas a outros grupos do mesmo reino. Essas peculiaridades não dependem de fatores externos, mas são garantidas pela sua estrutura interna. Um jacaré, por exemplo, não pode mudar suas condições externas e deixar de ser um réptil. Dentro de um reino, há ainda esferas de variação em que um tipo de estrutura se modifica sob a ação de fatores externos. Falamos assim dos tipos variáveis. Assim, plantas e animais, por exemplo, desenvolvem características externas fenotípicas, conforme o meio ambiente. Dentro dos vários reinos os genótipos se dividem em sub-tipos até que finalmente chegamos à subjetividade individual da entidade específica. As estruturas individuais de primeira ordem podem ser descritas como foi proposto até agora, identificando-se a sua função limitante para determinar o reino na qual ela se encaixa. Há, no entanto, estruturas individuais de segunda ordem, cujo reino é determinado não por uma função subjetiva, mas por uma função objetiva. A pena de uma ave, por exemplo; embora sua última função subjetiva seja física, é impossível compreender esse objeto sem considerar a função limitante do pássaro, que é a sensória, como a qualificação modal da pena. A pena pertence ao reino das entidades objetivas da natureza. Situação similar é a de entidades formadas pela atividade humana como obras de arte, computadores, alimentos, etc. Nesses casos a função limitante não é meramente a física, a última na qual eles tem função subjetiva. A função limitante desse objetos está no aspecto histórico, e nessa esfera essas entidades funcionam como objetos. Finalmente, há também tipos-radicais de relações sociais, que são qualificados como objetos de segunda ordem. Estruturas Típicas e Evolucionismo Desde que os tipos-radicais e os genótipos pertencem à estrutura cosmonômica, eles são irredutíveis. Com isso Dooyeweerd rejeitou as noções evolucionistas que sugerem que os princípios estruturais nasceram de um processo de desenvolvimento. Por outro lado, no processo de criação, os tipos fizeram seu aparecimento sucessivamente: plantas apareceram após os objetos inanimados, e os animais seguiram-se às plantas. O surgimento dos três reinos (mineral, vegetal e animal) seguiu assim a ordem dos aspectos modais. Isso nos leva a uma interessante hipótese: aceitando-se uma idéia de evolução cósmica intrínseca à natureza temporal ou cosmocronológica da realidade, mas rejeitando-se consistentemente uma interpretação funcionalista/reducionista do processo evolutivo, poderíamos aceitar uma teoria evolucionista “fraca” segundo a qual a evolução teria se desenvolvido dentro dos limites típicos, segundo a ordem da escala modal, mas o surgimento de cada um dos tipos teria se dado por atos de criação especial. Ou seja, a evolução teria se processado por “saltos” nos quais novas modalidades de experiência eram integradas pelas entidades concretas. Esses saltos dependeriam de ação divina, uma vez que o princípio da
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irredutibilidade modal impede qualquer possibilidade de “emergência” de esferas superiores a partir de esferas inferiores. Em apoio a essa hipótese, destaca-se o fato de as supostas “continuidades” na estrutura do real tem permanecido sem demonstração, seja no caso de hipóteses filosóficas (como a abiogênese) seja no caso de evidência paleontológica (os famosos “elos perdidos”). A Estrutura das Entidades Culturais Outro tipo de estrutura são aquelas entidades qualificadas por uma função objetiva normativa. Um exemplo disso é a obra de arte. As obras de arte, objetos radicalmente e tipicamente qualificados pela esfera estética, compõe um reino. Este reino pode ser subdividido em grupos: arquitetura, música, literatura, pintura, escultura, etc. Cada um desses grupos pode ser dividido em tipos variáveis. Assim, para as esculturas, podemos distingui-las pelo material: mármore, plástico, pedra sabão. A última função subjetiva da estátua é física, mas o material natural sofreu transformação pela ação formativa do homem, adquirindo funções objetivas históricas, sociais, etc. e, finalmente, uma função objetiva normativa na esfera estética. Assim, como obra de arte, a escultura é qualificada esteticamente. O mesmo ocorre com todo tipo de produto cultural humano, seja material ou não: ele sempre recebe pela ação humana uma nova estrutura cuja função guia é uma função objetiva escolhida pelo homem. No caso da obra de arte, precisamos destacar ainda que, como entidade, é uma representação do objeto intencional estético que é criado pelo artista em sua “fantasia” criativa. A imagem objetiva estética do artista é produzida internamente, e projetada sobre o material, de tal modo que se torna objetificada. Por isso, em certo sentido, a obra de arte é uma extensão do espírito do artista. E justamente por essa razão a função guia da obra de arte deixa de ser sua função terminal subjetiva e se torna uma função objetiva; é que durante o seu processo de formação, o material esteve unido ao artista e sob sua função subjetiva estética.
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VIII. TEORIA DAS INTER-RELAÇÕES ESTRUTURAIS (ENCAPSE) Temos visto que as entidades temporais não possuem substância independente, devido ao caráter significante de todas as esferas modais. Isso torna qualquer explicação funcionalista da experiência insuficiente. Mas além disso, observamos em nossa experiência ordinária que as entidades temporais não existem isoladas umas das outras. Elas funcionam mais ou menos interconectadas e interpenetradas entre si. De fato, os vários tipos estruturais, embora sejam irredutíveis, são interdependentes. Uma árvore, por exemplo, não pode existir sem a terra, a água, os ventos, o sol, outros seres vivos como as bactérias, etc. A Estrutura do Cosmo e o Conceito de Encapse Uma das visões dominantes na cultura ocidental desde a antiguidade, a respeito da coerência entre as entidades, é o universalismo. O universalismo vê as estruturas individuais como partes de uma totalidade estrutural absoluta. Assim uma parte não tem significado sem o todo, que domina todas as partes. O universo é o macrocosmo, funcionando como uma totalidade absoluta, e o homem o microcosmo. Nessa linha de raciocínio, as estruturas individuais são ontologicamente inferiores, subordinadas à totalidade. Na ciência moderna, o universalismo se manifesta no naturalismo filosófico, que reduz toda a realidade à esfera física e supõe assim a existência de uma continuidade ontológica que vai da matéria mais simples ao ser mais complexo. Todos os seres seriam assim partes de um grande sistema físico podendo ser explicados por um conjunto de leis simples. No pensamento social, o coletivismo trata os indivíduos como partes do todo social. Em oposição a isso, o individualismo nega a coerência do universo. No pensamento kantiano, por exemplo, encontramos a noção de que o universo é constituído pelo sujeito racional, quando ele aplica as formas do entendimento aos dados dos sentidos; e esse sujeito é metafisicamente livre. Assim, não há unidade real entre o sujeito e o restante da realidade. Temos muitos indivíduos, sem uma unidade estrutural definida. No pensamento social o individualismo favorece a noção de que o estado é fundado é serve unicamente aos indivíduos, não podendo existir por outra razão que não a vontade dos indivíduos. Tanto o universalismo como o individualismo contém momentos de verdade, pois de fato existe o todo, e existem os indivíduos. Entretanto, nenhum dos dois é a origem da ordem cósmica; ambos dependem de Deus para receberem sua esfera de soberania. Desse modo, podemos falar num entrelaçamento e numa interpenetração de estruturas “mais amplas” com estruturas “menores”, de tal modo que, mesmo quando temos os indivíduos dentro de uma sociedade, por exemplo, o indivíduo não é ontologicamente subordinado ao todo, como se fosse uma parte dependente do todo. Segundo R OY CLOUSER , para que uma coisa seja considerada parte da outra, ela deve (1) depender da outra para sua existência, (2) funcionar na organização interna da outra e (3) ter a mesma qualificação funcional da outra. Uma pedra, por exemplo, não pode ser considerada “parte” de um jardim, rigorosamente falando, pois ela existe independentemente do jardim. O jardim é uma entidade bioticamente qualificada, mas a pedra é fisicamente qualificada. Ela pode estar incluída no jardim, mas é na verdade uma totalidade dentro de outra totalidade, uma subtotalidade, e não uma parte. A pedra está
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encapsulada no jardim.156 Falando especificamente sobre o coletivismo e o individualismo no pensamento social, Clouser diz ainda que “... indivíduos e comunidades sociais existem em uma correlação mútua na qual nenhum pode existir sem o outro. Nenhum é mais ‘básico’ em relação ao outro no sentido requerido tanto pelo individualismo como pelo coletivismo, porque nenhum é a fonte do outro. Ambos foram criados por Deus e dependem dele.” 157
Dooyeweerd rejeitou o universalismo cosmológico, isto é, a idéia de que a coerência temporal do cosmo implica que o cosmo é uma estrutura de individualidade, de tal modo que todo o restante são as partes do cosmo. Ao contrário, o cosmo seria um entrelaçamento coerente da totalidade das entidades temporais. Somos levados assim a uma outra concepção a respeito da coerência cósmica das entidades: a teoria da encapse.158 A relação encáptica distingue-se da relação parte-todo porque nesta tanto as partes como o todo tem a mesma função limitante (end-function), e o todo é mais básico que a parte. No caso da relação encáptica, temos o entrelaçamento e interpenetração coerente de duas ou mais entidades temporais no qual essas entidades retém a soberania em sua própria esfera e sua idionomia, mas tem suas funções externas ou objetivas (isto é, as funções que se situam além de sua função limitante) abertas dentro da estrutura encáptica. Com a teoria da encapse Dooyeweerd criou uma outra forma de combater o reducionismo característico da filosofia imanentista. Enquanto a teoria das esferas modais combate o reducionismo intermodal , que nega a diversidade das leis modais, a teoria da encapse combate o reducionismo entitário, que nega a diversidade das entidades individuais e a conservação de suas idionomias próprias dentro da coerência interindividual. Tipos de Relação Encáptica Podemos distinguir vários tipos de entrelaçamento encáptico na realidade. Vamos examinar o caso de uma escultura. Os doze profetas, de Aleijadinho. A matéria prima é a pedra-sabão, que já existia há muito. Em si mesmo o enorme pedaço de pedra-sabão é uma entidade fisicamente qualificada, não tendo função estética normativa. A escultura, evidentemente, é uma realidade que transcende à pedra; os 12 profetas não são a “pedrasabão”, mas estão nela. A escultura, enquanto obra de Aleijadinho, não poderia no entanto existir a não ser sobre a pedra, nela inscrita. Assim o que temos é uma interpenetração encáptica entre a pedra-sabão e a escultura, uma combinação de duas estruturas de individualidade. Como, nesse caso, é possível ter a pedra sem a escultura, mas não a escultura sem a pedra, chamamos essa combinação de (1) encapse fundacional irreversível. Outro exemplo desse tipo é a célula viva. Na célula as moléculas, que são entidades fisicamente qualificadas, estão combinados com a estrutura biótica da célula, que é o núcleo, carga genética, citoplasma, etc. Nessa combinação, a estrutura biótica existe 156
Coluser, “The Myth”, p. 245. p. 240. 158 Segundo Kalsbeek, Dooyeweerd teria aproveitado o termo cunhado pelo biólogo suíço M. Heidenhain; mas a noção da diferença entre relação parte-todo e relação encáptica não se encontrava ainda em Heidenhain, sendo uma proposta original de Dooyeweerd. Cf. ibid, p. 271, 272. 157 Ibid,
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encapticamente apoiada sobre a base das estruturas físicas; o vivo e o não vivo se unem de tal modo que “as microestruturas físico-quimicamente qualificadas formam o fundamento do entrelaçamento encáptico com as partes vivas da célula.”159 Por outro lado, a relação entre uma única célula e outras células num organismo pluricelular não é uma relação encáptica, mas uma relação parte-todo, pois as células não tem diferentes qualificações modais. Outro tipo de encapse é a (2) encapse simbiótica, na qual observamos a combinação de entidades de diversos subtipos diferentes, envolvendo plantas e animais. É o caso por exemplo das bactérias que habitam nosso intestino alimentando-se e protegendo-se dentro desse ambiente e tornando possível em troca a digestão de certos alimentos. (3) A encapse sujeito-objeto ocorre entre certos animais e suas formações objetivas. É o caso, por exemplo, do pássaro e o seu ninho. A ave é sensoriamente qualificada, e o ninho é fisicamente qualificado; mas em sua constituição o ninho recebeu uma função objetiva normativa na esfera sensória, e se tornou um objeto sensório necessário à ave. Nesse caso, a ave e o ninho se tornam um sistema encáptico. Isso vale também para abelhas e a colméia, aranhas e teias, por exemplo. Um quinto tipo de encapse é a (5) encapse correlativa. Animais, vegetais e suas relações encápticas não podem sustentar a vida sem um ambiente adequado. O ambiente fornece condições necessárias à vida, como o alimento, o ar, a água, a temperatura, luminosidade, etc. Assim a vida animal e vegetal é entrelaçada com o ambiente, ou habitat. E desde que o próprio habitat se mantém graças à atividade animal e vegetal, havendo uma verdadeira interdependência, podemos dizer que essa relação é de encapse correlativa. Esse tipo de encapse se diferencia da encapse sujeito-objeto pelo fato de, nesse caso, sujeito e objeto terem sua própria estrutura de individualidade, e no caso da encapse correlativa, o habitat não ser uma entidade distinta com sua própria estrutura. Relações Sociais Encápticas As estruturas sociais também apresentam relações encápticas. Examinando estruturas inteiramente diferenciadas, encontramos dois tipos de encapse. (a) O casamento e a família existem num entrelaçamento encáptico; a família é fundada no casamento, mas o casamento não depende da família. Este é um exemplo de encapse fundacional irreversível. (b) Uma sociedade humana, como um todo, pode ser considerada uma realidade paralela ao ambiente ou “habitat” no qual se encontram várias estruturas encápticas; o “ambiente social” se apresenta como um entrelaçamento coerente de conexões interindividuais e intercomunais constituindo-se numa grande estrutura encáptica correlativa. Encapse Territorial (6) A encapse territorial constitui um sexto tipo de encapse. A encapse territorial indireta ocorre quando há uma coerência entre duas entidades dentro de um território sem que haja contato imediato. Por exemplo, o fato de nossos impostos serem utilizados para financiar a educação pública resulta de nossa presença dentro de um território nacional e sob uma autoridade que estabelece a relação. 159
Kalsbeek, “Contours”, p. 274, 275.
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A encapse territorial direta é a que envolve o contato imediato. Um exemplo é a relação entre o estado e as estruturas que se desenvolvem dentro do seu território. Essa relação é freqüentemente confundida com uma relação parte-todo. Com essa concepção, muitos pensadores sociais interpretaram o estado como a soma das instituições sociais dentro de seu âmbito de ação, de tal modo que às instituições “inferiores”, ou subordinadas foi negada a independência e soberania. Esse tipo de reducionismo entitário é chamado de estatismo; ele suprime a soberania das outras esferas sociais ao trata-las como partes de si, como subsistemas políticos. Bem ao contrário, o estado é uma estrutura social que traz em si diversas estruturas sociais interdependentes mas soberanas. Nessa concepção, não se pode buscar a razão da existência de uma estrutura social no estado, como se ela devesse se desenvolver de modo subordinado ao estado tendo como finalidade o bem do estado, pois cada instituição tem sua própria lei interna e finalidade, não precisando ser legitimada ou estabelecida pelo estado. Assim, a relação entre o estado, em um território, e as outras estruturas sociais dentro desse território é uma relação encáptica. Totalidades Encápticas A totalidade encáptica (enkaptic structural whole) ocorre quando “... um entrelaçamento entre estruturas de um radical ou um genótipo diferente é realizado em uma e na mesma forma-total tipicamente qualificada abrangendo todas as estruturas interligadas em uma unidade encáptica real sem suspender sua esfera de soberania interna”160 A “forma-total” é uma única configuração que une duas ou mais entidades temporais em uma totalidade encáptica. Essa totalidade é uma realidade que funciona como uma entidade temporal. O exemplo clássico é a análise que Dooyeweerd faz da estrutura da molécula de água. Na combinação de Hidrogênio e Oxigênio que produz a molécula de água, há interações entre os elétrons, mas o núcleo dos átomos, que determina seu genótipo, permanece inalterado (pelo menos ao ponto de uma transformação genotípica). Os átomos combinados continuam a ser de hidrogênio e oxigênio. Desse modo, não é exato tratar esses átomos como se fossem “partes” da água, uma vez que, em si mesmos, eles não se alteraram nem adquiriam as propriedades da água. É a combinação deles que produz a água. E desde que a água depende deles para existir, mas eles não dependem da água, temos uma relação encáptica fundacional irreversível. Uma vez que na relação encáptica nem tudo se torna água, a molécula pode ser considerada uma totalidade encáptica, e essa totalidade é qualificada pela estrutura da água como molécula de água, sendo essa qualificação a norma que estabelece a estrutura. Esse tipo de encapse é encontrada também nos corpos de pessoas, animais e vegetais. No caso de uma célula, por exemplo, já vimos que nela há a encapse de estruturas físico-químicas e das estruturas bióticas da célula. Mas além disso, a célula pode ser uma totalidade encáptica, exatamente como no caso da molécula de água. Não é correto tratar a célula como uma mera soma aritmética de todas as suas estruturas bióticas e materiais; a combinação dessas estruturas nos dá uma realidade superior e unificada que é a célula. Usando uma analogia: um edifício, enquanto todo arqutetônico, não pode ser considerado meramente uma pilha de concreto, pedras, etc. Teríamos assim, num ser vivo, uma encapse tripla, na qual o desenvolvimento das estruturas materiais e bióticas do organismo é guiada 160
Dooyeweerd, APUD Kaalsbek, “Contours”, p. 282.
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por um princípio interno inerente, bióticamente qualificado mas distinto das leis da esfera biótica, um princípio interno de individuação e de desenvolvimento; uma espécie de “desenho”. Na totalidade encáptica, esse princípio interno, que também é modalmente qualificado, governa o padrão de desenvolvimento das estruturas individuais e “subencápticas”, como uma indionomia ou princípio idionômico.
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IX.
TEORIA DO CONHECIMENTO
A filosofia imanentista sofreu duas grandes viradas nos últimos duzentos anos. A primeira foi a “revolução copernicana” de Kant, que colocou o sujeito no centro da filosofia rejeitando a possibilidade de uma metafísica fundamental, e assim lançou a epistemologia para o centro da atividade filosófica. A outra revolução foi a “guinada hermenêutica” ligada ao pensamento de HEIDEGGER e H. G. GADAMER . Enfatizando a finitude e a natureza interpretada de toda a experiência humana, a filosofia hermenêutica mantém a centralidade do sujeito, mas substitui a epistemologia pela linguagem, e renuncia à tentativa de encontrar um ponto arquimediano verdadeiro para o conhecimento. A filosofia cosmonômica reconhece a importância dos insights desses e de outros pensadores modernos e pós-modernos, mas não pode aceitar a noção de centralidade do sujeito, típica do pensamento moderno, e o perspectivalismo radical de boa parte da teoria hermenêutica porque essas visões nascem de concepções cosmológicas defeituosas. A mera focalização do sujeito não livra ninguém das pressuposições cosmológicas, como vimos ao examinar o pensamento de Kant. Por outro lado, isso não nos exime de refletir a respeito do conhecimento e da interpretação, como atividades essenciais ao ser humano. Devemos portanto perguntar sobre as implicações da ontologia cristã para nossa teoria do conhecimento, ou epistemologia.
1.
O que é Conhecimento?
Na experiência comum diferenciamos entre “conhecimento” e “opinião”. O primeiro é um saber, algo que afirmamos com certeza, algo que utilizamos para tomar decisões. Já a opinião tem um valor menor para orientar a vida. É algo de que não temos tanta certeza, algo que não é seguro. É bem verdade que, muitas vezes, algo de que temos certeza é finalmente provado falso, e que algo que apenas “achamos” é comprovado verdadeiro. Nesse último caso, podemos dizer que não tínhamos conhecimento. Eu posso dizer a você que amanhã Jesus vai voltar, e isso de fato acontecer! Dificilmente, no entanto, se poderia dizer que eu tinha conhecimento disso. Igualmente, se eu acredito em alguma coisa mas a crença se mostra equivocada, não posso dizer que sabia de fato coisa alguma. Assim, podemos definir como condições básicas do conhecimento que (1) eu tenha uma crença, (2) que essa crença seja verdadeira e (3) que eu tenha alguma “razão” para acreditar que ela é verdadeira. Ou seja, quando há uma conexão entre o fato, a minha crença, e a minha consciência da crença, temos um conhecimento; uma crença verdadeira justificada. A questão principal ao distinguirmos as crenças gira em torno da justificação do conhecimento. De que forma uma crença deixa de ser um “palpite” e se torna um conhecimento? Isto é, como uma crença é epistemizada? Um exame rápido indica que temos dois tipos de crenças. Aquelas crenças que estão baseadas em outras, e aquelas que não estão baseadas em outras. Essa estrutura é necessária: se todas as crenças estiverem baseadas em outras então (a) as crenças se sucederiam numa série infinita, o que parece impossível uma vez que nenhum ser limitado pode ter infinitas crenças, ou (b) as crenças se baseiam em outras que se baseiam nas
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primeiras, num sistema fechado. Essa última posição é denominada coerentismo epistemológico. Conforme essa opção uma crença é verdadeira porque se encaixa com as outras, e só. O problema do coerentismo é que ele não atribui qualquer papel à estrutura do cosmo na justificação das crenças. É um sistema anti-realista, que explica muito mal a relação da experiência empírica com o conhecimento, e, além disso, parte de uma agenda subjetivista. Resta admitir que existem crenças básicas e crenças não-básicas. As crenças não básicas são adicionadas às crenças básicas através de julgamentos. Conforme a qualidade do julgamento, elas podem ser crenças justificadas ou não justificadas. As crenças não justificadas são as apoiadas em julgamentos errôneos. As crenças justificadas são aquelas apoiadas em julgamentos corretos, que obedecem às leis modais. No caso das crenças não básicas, parece correto admitir que elas devem ser coladas sobre crenças justificadas através de razões, que podem ser argumentos ou evidências. Mas no caso das crenças básicas, que tipo de “razão” nos capacita a ter certeza ao invés de ter uma mera “opinião”? O Colapso do Fundacionalismo Clássico161 A resposta que dominou a epistemologia ocidental desde Tomás de Aquino foi o fundacionalismo clássico. O fundacionalismo é uma teoria a respeito de como crenças podem ser consideradas conhecimento e sobre como as crenças se organizam no que é geralmente chamado de “estrutura noética”. Uma estrutura noética é “[...] o conjunto de proposições que alguém crê, junto com certas relações epistêmicas que há entre ela e essas proposições.”162 O fundacionalismo concorda que há crenças básicas, que são aquelas que não dependem de outras, e as crenças não básicas, que se apóiam em outras. Concorda também que, para serem consideradas conhecimento, essas crenças precisam ser justificadas, isto é, precisam ter “razões”. Ainda conforme o fundacionalismo, há um dever da razão em somente crer em proposições justificadas. Assim, se alguém não pode demonstrar que uma proposição “x” é básica ou está adequadamente apoiada em outras crenças já justificadas, então ele tem o dever de não acreditar nessa proposição. Qual é o critério para verificar se uma crença é básica ou não? Ela deve ser auto-evidente, incorrigível ou evidente aos sentidos. É fácil perceber como essa estrutura epistêmica afetou a teologia cristã. Conforme essa teoria, por exemplo, um indivíduo não pode crer em Deus se não puder provar que Deus existe, seja por meio de “evidências”, seja por meio da razão filosófica. Também conforme essa teoria, um indivíduo não pode ler as Escrituras pressupondo sua unidade; ele deve antes demonstrar essa unidade por meio de evidências. Muitos filósofos observaram que de acordo com o critério fundacionalista do conhecimento, uma quantidade enorme de coisas em que nós cremos são irracionais.163 Por exemplo: a existência do passado não somente não é uma crença básica, nesse critério, como também não pode ser justificada adequadamente com base em outras crenças. O mesmo se dá com crenças baseadas no testemunho de outras pessoas, como a existência de 161 Essa
seção reproduz com modificações uma parte do meu artigo “Scriptura Scripturae Interpres: Uma defesa do Princípio Hermenêutico Reformado”, publicado na revista Teologia Prática 2/2003, p. 44 -47. 162 PLANTINGA, Alvin, WOLTERSTORFF, Nicholas, Faith and Rationality: Reason and Belief in God . Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1983, p. 48. 163 Ibid, p. 59.
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pessoas na África Central ou a crença na existência de outras mentes humanas conscientes, e realidades semelhantes. Mas o problema principal, observado no fundacionalismo clássico, foi sua incoerência interna. É que o próprio critério fundacionalista de crença básica (1) não é uma crença básica e (2) não foi ainda justificado com base em outras crenças justificadas. Isso significa que o fundacionalista, para ser coerente, não pode crer no fundacionalismo.164 Com a queda do fundacionalismo clássico, o principal ponto de apoio filosófico para a sujeição da crença em Deus foi por água abaixo.165 O Movimento da Epistemologia Reformada Tem sido uma característica da pós-modernidade o desprezo generalizado – pelo menos em alguns círculos acadêmicos – pela epistemologia tradicional. Essa atitude se origina, como vimos, da crise da razão moderna que se deu na passagem do século XIX ao XX, quando a idéia de que o conhecimento é uma representação mais ou menos fiel da realidade foi abandonada e a filosofia sofreu uma “guinada hermenêutica”, deixando de ser uma crítica do conhecimento, como quis Kant e seus discípulos, para ser uma crítica das narrativas e de seu sentido político. Assim, a epistemologia está morta – ou pelo menos, era o que se pensava. Ironicamente, ao lado das filosofias da interpretação que anunciam com prazer o fim da teoria da representação, a epistemologia tem experimentado um reavivamento em muitos lugares, incluindo a terra de Rorty. O que os novos epistemólogos têm afirmado é que o que entrou em colapso no século XX não foi a epistemologia, mas um tipo específico de epistemologia, uma teoria do conhecimento antiga e dominante, ligada ao ideal humanista de racionalidade, que marginalizou por séculos outras teorias: o fundacionalismo clássico. Como brinca DAVI GOMES, foi um erro de identificação de cadáver!166 É notável que, muito antes da crise da razão moderna, Calvino e os reformadores em geral tenham sustentado que a crença em Deus não deve depender de provas ou de justificação filosófica, contrariando o fundacionalismo de TOMÁS DE AQUINO, dominante no pensamento católico.167 Depois deles, uma ala importante da tradição reformada sempre afirmou, contra o fundacionalismo Católico-Tomista, contra a apologética evangélica evidencialista, e contra o fundacionalismo protestante liberal, que o conhecimento de Deus e a autoridade das Escrituras eram crenças justificadas e racionais, dispensando a necessidade de prova filosófica ou evidencial.168 O colapso do fundacionalismo clássico deu impulso dentro da tradição reformada ao desenvolvimento de novas propostas epistemológicas que incluem a fé em Deus como um apriori, um pressuposto, ou uma “crença básica”. Uma delas é a “epistemologia reformada” 164 Ibid, p. 62,
63. Hoitenga, op.cit., p. 181-183. uma exposição mais detalhada a respeito do colapso do fundacionalismo clássico Cf. GOMES, Davi Charles, A Suposta Morte da Epistemologia e o Colapso do Fundacionalismo Clássico. Fides Reformata, V:2 (jul-dez 2000), p. 115-142. 166 Ibid., p. 115-117. 167 A tradição reformada sofreu de fato em diversas ocasiões a acusação de fideísmo. Isso apenas revela que a teologia reformada não é estruturalmente dependente da modernidade, representando uma estrutura de compreensão da realidade estranha à mente moderna. 168 Assim, por exemplo, o neocalvinismo holandês. Esse movimento se notabilizou por iniciar um rompimento consciente com concepção moderna de racionalidade sem meramente retornar à prémodernidade, começando por Abraham Kuyper e seguindo com Herman Dooyeweerd, Cornelius Van Til, e mais recentemente, com os articuladores da epistemologia reformada. 165 Para
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de ALVIN PLANTINGA, NICHOLAS WOLTERSTORFF, ex-presidentes da American Philosophical Association, e WILLIAM ALSTON. A epistemologia reformada é um tipo de fundacionalismo “fraco”, no qual o critério de crenças básicas não é formulado de um modo dedutivo, “de cima para baixo”, a partir do dogma da autonomia da razão, mas de uma forma indutiva, a partir de um exame das condições gerais da formação das crenças. Na epistemologia reformada, as crenças básicas devem ter “bases” (grounds), e as crenças não-básicas devem ter evidências. Evidências são outras crenças já aceitas. E as bases? São condições que explicam o surgimento das crenças básicas. Por exemplo: a crença de que existem outras mentes. Olho para minha esposa e creio que ela tem uma mente racional consciente. Não tenho evidências irrefutáveis disso; não posso perceber diretamente a sua mente. Mas minha mente, de um modo muito natural, formula essa crença com base em certas condições de minha experiência: o comportamento de minha esposa, meus diálogos com ela, seu padrão de resposta a estímulos diversos, etc.169 É interessante observar nesse caso que eu estou justificado em acreditar que minha esposa tem uma mente consciente mesmo que não seja capaz de dar uma prova evidencial disso, e mesmo que eu não saiba nada a respeito de epistemologia. No caso do fundacionalismo clássico, essa crença seria irracional se eu não conhecesse sua justificação. Mas na epistemologia reformada, admite-se que uma crença é justificada mesmo que eu não saiba ainda – ou nunca – como justificá-la, se essa crença tiver, afinal de contas, uma base.170 A crença em Deus participa das crenças básicas de um modo semelhante ao exemplo. Mesmo que o crente não possa apresentar uma prova rigorosa e definitiva da existência em Deus, ele está justificado em crer em Deus uma vez que há circunstâncias ou condições nas quais a crença em Deus emerge como produto natural da mente. Condições como o senso de culpa, de perigo, da presença de Deus, da voz de Deus falando pessoalmente, da grandeza e ordem do cosmo, e também de argumentos filosóficos ou históricos em defesa da fé cristã que parecem tornar a crença em Deus significativa.171 Essas condições não são provas;172 mas são certamente bases que tornam a crença em Deus uma crença básica para a comunidade cristã.173 169
Hoitenga, op.cit., p. 187-189. idéia é de que a justificação das crenças básicas não é interna à estrutura noética, dependendo da consciência do indivíduo e, assim, de sua razão autônoma, mas externa, existindo mesmo que ele não tenha absolutamente nenhuma consciência dessa justificação. Essa posição é denominada externalismo epistemológico, e teve grande popularidade na história do pensamento até à modernidade, quando o fundacionalismo clássico, que é um tipo de internalismo epistemológico, tornou-se a opção dominante. 171 Isso não significa que seja impossível construir argumentos para defender a existência de Deus, mas apenas que tais argumentos não são necessários para fundamentar a crença em Deus. 172 Isto é, não são provas no sentido internalista-fundacionalista de certezas filosóficas absolutas e incorrigíveis baseadas na autonomia da razão. O colapso do fundacionalismo tornou esse tipo de critério para a justificação do conhecimento algo completamente inviável. O mesmo fato é apontado, de um ângulo diferente, por R.C. Sproul. Discutindo a noção de certeza c ognitiva, ele observa que “a certeza filosófica absoluta limita-se a relações formais proposicionais”, isto é, à estrutura de um raciocínio, mas em si mesmos, tais raciocínios são sempre relativos a alguma realidade externa apreendida pela experiência. Uma vez que o conhecimento dessa realidade, sendo dependente da indução, é sempre incompleto, a certeza filosófica é algo impossível a qualquer criatura. Cf. SPROUL, R. C., O Testemunho Interior do Espírito Santo. Em: GEISLER, Norman, A Inerrância da Bíblia. São Paulo: Vida, 2003, p. 412. 173 A objeção de que tal critério de “basicalidade” é arbitrário não procede, pois (1) essa objeção meramente pressupõe a possibilidade de criar um critério de basicalidade derivado da razão de forma dedutiva, o que é 170 A
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Onde exatamente está a parte “reformada” dessa teoria? Na idéia de que o processo de conceptualização pelo qual a mente, dentro da experiência ordinária, formula crenças básicas, sobre as quais construímos nosso edifício de crenças, é um processo fundamentalmente “bom”, adequado e não-ilusório. Alvin Plantinga expressa isso com a noção de função própria ( proper function). Assim como o coração foi feito para bombear sangue, e os olhos para ver, sob condições normais, assim também a mente foi desenhada para produzir crenças básicas verdadeiras sob certas condições, e essas crenças são recebidas pelo indivíduo sem a necessidade de julgamento intencional, ou seja, de argumentos e provas. Essa teoria do conhecimento pressupõe a idéia bíblica de criação. Tipos de Conhecimento Uma importante distinção que precisamos fazer dentro de uma epistemologia reformacional é entre conhecimento e pensamento. O pensamento é uma atividade intencional, qualificada pela esfera analítica, na qual a função racional domina o processo de formação das crenças, aplicando o julgamento lógico como critério de epistemização. Já o conhecimento é algo bem mais amplo. Na atividade cognitiva, a função racional coopera com outras funções na formação das crenças, mas esse processo é guiado por uma outra função humana. Por exemplo: o conhecimento de Deus sempre envolve a produção de uma série de crenças sobre Deus, mas a função que controla a formação dessas crenças não é a função lógica, mas a função fiduciária. Igualmente, o conhecimento social envolve a produção de crenças sobre as relações sociais, mas a função que controla a formação dessas crenças é a experiência comunitária. Podemos dizer, assim, que o pensamento é um tipo específico de conhecimento, qualificado analiticamente. Seguindo essa linha de raciocínio, HENDRIK HART, filósofo do Institute for Christian Studies propõe uma visão nãoreducionista do conhecimento: “... nós podemos tratar toda experiência cognitiva como multi -funcional e compreender as funções racionais-conceptuais como apenas um dos muitos tipos de funções de experiência cognitiva ... se nem todo conhecimento é predominantemente racionalconceptual em natureza, nem todas as formas de conhecimento precisam preencher os critérios para o conhecimento racional-conceptual. A necessidade por justificação e verificação de conhecimento pode se tornar uma necessidade específica apenas para o conhecimento teórico em suas formas explícitas. E isto permitirá a nós falar de outros tipos de conhecimento válidos, embora formalmente não- provados e injustificados.” 174
Esses conhecimentos válidos seriam na verdade crenças básicas, cuja justificação se encontra nas condições de sua formação, em suas bases empíricas. E como essas bases empíricas se inserem numa estrutura transcendental multimodal coerente, como veremos logo à frente, temos uma série de crenças básicas relacionadas a todos os níveis da experiência humana, que devem ser recebidas e assumidas como fundação básica do edifício epistêmico. Essa forma de compreender a questão, como destaca Roy Clouser, já se provavelmente impossível, e (2) o critério exposto claramente exclui crenças que não têm relação demonstrável com condições reais da vida humana. Cf. Hoitenga, op.cit., p. 184, 185. 174 Ou melhor, seguindo a sugestão de Plantinga, talvez possamos dizer que esses conhecimentos são justificados como crenças básicas. Hart, Hendrik, “Dooyeweerd’s Gegenstand Theory of Theory”, p. 153, 154.
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encontrava em PASCAL, de quem ele tira, numa discussão sobre a justificação da fé em Deus a seguinte citação: “Nós não conhecemos a verdade apenas pela razão, mas também pelo coração, e é nessa última forma que nós conhecemos os primeiros princípios; e a razão, que não tem parte nisso, tenta em vão impugná-los ... [por exemplo,] nós conhecemosque nósnão estamos sonhando ... embora seja impossível para nós provar isso pela razão ... o conhecimento dos primeiros princípios, como o espaço, o tempo, o movimento, o número, é mas certo que qualquer daqueles que obtemos pelo raciocínio. A razão deve confiar nessas intuições do coração, e deve basear cada argumento sobre elas ... É inútil e absurdo para a razão demandar do coração provas dos seus primeiros princípios antes de admiti-los, como se o coração também devesse demandar da razão uma intuição de todas as proposições demonstradas antes de aceita-las ... Desse modo, aqueles a quem Deus tem impartido o conhecimento religioso pela intuição são muito afortunados, e justificadamente convencidos.”175
2.
A Prioris Transcendentais do Conhecimento Humano e o Horizonte da Experiência Humana.
Aceitando-se o fundacionalismo fraco, podemos procurar as crenças básicas. A partir de que elas se formam? Se aceitamos que a existência do cosmo é a pré-condição do conhecimento, então responderemos: a partir de nossas experiências básicas do mundo. Essa forma de raciocínio levanta a questão dos aprioris transcendentais, que são as condições necessárias para que a experiência e a aquisição de conhecimento sejam possíveis. Para Kant, essas condições eram as categorias do pensamento e as formas da intuição psíquica. Dooyeweerd considerou essas condições extremamente restritas e baseadas numa base cosmológica deficiente. Partindo da ontologia cristã, Dooyeweerd apontou que o pensamento teórico e as impressões dos sentidos não podem existir sem a ordem cosmonômica e o ego central que transcende a diversidade modal. Assim, a condição transcendental do conhecimento seria a coerência do sentido cósmico na diversidade modal do sentido. E a condição transcendente seria o ego supratemporal que intui a unidade profunda do sentido. Dooyeweerd também falou sobre o horizonte da experiência humana como forma de descrever a estrutura onde se encontram os a prioris do conhecimento. O horizonte da experiência humana pode ser subdividido em quatro níveis sucessivos: (1) No primeiro nível, que também pode ser chamado de horizonte transcendental, temos o coração, que estabelece a direção religiosa de todas as atividades humanas. (2) No segundo nível temos o horizonte transcendental do tempo cósmico, onde experimentamos a diversidade e a coerência do sentido. (3) No terceiro nível temos o horizonte modal, na intuição empírica dos vários aspectos da experiência. (4) Finalmente, no quarto nível, temos o horizonte plástico da experiência, onde percebemos as estruturas de individualidade. Os níveis plástico e modal se inserem no nível temporal. Essa hierarquia dentro da estrutura apriorística do conhecimento é chamada por Dooyeweerd de estrutura perspectival do horizonte da experiência. O pensamento científico e o pensamento ordinário se distinguem conforme o horizonte da experiência que é focalizado. (1) O pensamento ordinário, não-científico, 175
Clouser, Roy, “Knowing with the Heart”, p. 95, 96.
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dirige-se ao horizonte plástico da experiência, produzindo crenças frente a entidades concretas. (2) Segundo Dooyeweerd, todo pensamento científico se processa por meio da antítese e síntese intermodal, sendo essa uma estrutura necessária do pensamento científico, uma condição transcendental do pensamento teórico. Ele focaliza assim o horizonte modal.176 (3) Finalmente, o pensamento filosófico focaliza a totalidade do sentido, que busca recompor teoreticamente. Assim ele se dirige ao horizonte transcendental do tempo cósmico, examinando a coerência na diversidade do sentido. (4) Poderíamos falar ainda de um quarto nível de reflexão; aquela que se dirige para além dos limites da cosmonomia, tendo um caráter transcendente. Os dois pontos em que o homem chega a um limite na temporalidade são a fé, que tem uma direção transcendental, e o coração, que tem uma abertura transcendental. Assim a auto-reflexão concêntrica e a reflexão teológica focalizam o horizonte transcendente da experiência.
3.
O Processo de Formação de Crenças Básicas
Partindo da base cosmológica cristã, o conhecimento não teria apenas aquelas duas fontes, como propôs Kant. As fontes seriam várias, em dois níveis: no nível temporal, teríamos uma diversidade de experiências com diferentes qualificações modais. A diversidade modal e a qualificação modal das entidades temporais seria captada pelo sujeito intuitivamente. O datum fundamental de todo o conhecimento seria a intuição do mundo, no qual os objetos da experiência são conhecidos como seus pelo sujeito. Essa intuição fundamental, repetimos, não seria meramente “psíquica”. Dizer que todo material cognitivo recebido na consciência é “psíquico” é uma psicologização do conhecimento, um sensorialismo. A psicologização da intuição significaria que as funções modais restantes não podem ser feitas próprias do sujeito, “suas”; elas seriam realidades estranhas e incompreensíveis ao sujeito. Isso claramente contradiz nossa experiência, pois não há nada na criação que seja estranho ao homem.177 Ao contrário, podemos falar de intuição moral, intuição jurídica, intuição social, intuição lógica, etc. A intuição não se restringe a uma esfera modal. No nível religioso, a idéia de totalidade e de origem governariam a interpretação dada à intuição do mundo, afetando a forma como o indivíduo transporta os data da intuição para o seu edifício epistêmico. As crenças básicas são formadas a partir dessas intuições fundamentais. É por isso que essas crenças não dependem de uma justificação por meio de julgamento filosófico ou evidencial; a base dessas crenças está na intuição, se essa é aceita como fonte de conhecimento pelo indivíduo. Se o indivíduo tem uma idéia cosmonômica reducionista – ele pensa, por exemplo, que os padrões morais devem ser fundados em juízos racionais – ele poderá: (a) procurar fundamentar as crenças induzidas por sua intuição moral sobre crenças não-básicas, ou (b) poderá rejeitar as crenças induzidas pela intuição moral. Em qualquer caso, isso afetará a estrutura de crenças básicas do seu edifício epistêmico. Há portanto três falhas (segundo percebemos até aqui) possíveis no processo de epistemização: (1) falha por uma distorção na intuição empírica, como uma cegueira; (2) 176 Podemos
dizer que no pensamento ordinário e científico a direção é exterior. Hendrik Hart observa que a teoria de Dooyeweerd é uma versão da teoria clássica de “substâncias particulares” e “propriedades” ou atributos. Às “substâncias” correspondem as entidades, e às propriedades, as modalidades do sentido. Hart, “Gegenstand”, p. 148. 177 Spier, “Christian Philosophy”, p. 144, 145.
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falha por uma idéia cosmonômica distorcida, que afetará a atitude do indivíduo para com certa intuição e assim a constituição da crença básica; (3) falha no julgamento racional, que afetará a forma como outras crenças não-básicas são epistemizadas. O julgamento racional tanto pode falhar por uma influência deletéria da falha (2) como por uma desobediência às leis do juízo, isto é, as leis da esfera lógica.
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X.
TEORIA DA AÇÃO
1. A Análise Modal dos Atos Humanos Segundo o filósofo reformacional J. M SPIER , os atos humanos são a atividade interna do homem, pela qual, sob a influência das normas das esferas modais pós-psíquicas, ativo para com a realidade e a torna sua relacionando-a a si o homem é intencionalmente ativo para mesmo, ao seu eu ou alma.178 Esses atos são qualitativamente diferentes daqueles movimentos e processos que ocorrem independentemente da vontade, como a respiração. Como qualquer entidade real, todas as ações humanas operam em todas as esferas da escala modal, podendo assim ser submetidas à análise modal. Um ato sexual, por exemplo, existe ativamente nas esferas numérica, espacial, cinemática, física, biológica; além disso, ele tem para muitos seres vivos uma dimensão sensória. Para o ser humano human o o sexo tem um sentido lógico, um sentido histórico que varia temporalmente e culturalmente, uma dimensão simbólica e um lugar na sociedade; tem conexões econômicas, beleza ou feiúra estética e pode ser juridicamente regulado; r egulado; falamos em “ética sexual” ao refletir r efletir sobre como a lei do amor deve governar a prática sexual, e como o sexo pode ser usado contra o ser humano, e finalmente, tem um significado teológico, como reflexo da glória de Deus. A essa presença das entidades reais em todas as esferas modais denominamos princípio da universalidade modal. Em cada ato o ser humano em sua existência total e corporal e engajado, não havendo a possibilidade de atos atos puramente “espirituais”, num sentido dualístico. Se todas as entidades existem em todas as esferas, como podemos definir os diferentes atos humanos? Antes de tudo, é preciso observar que os atos humanos não existem em “estado puro”, isto é, já com uma qualificação qualificação modal natural, como é o caso de uma pedra, que é fisicamente qualificada antes mesmo de ser manipulada pelo artista. Cada ato humano é uma expressão do coração humano sendo constituído livremente; assim, “atos humanos podem assumir todas as qualificações qualificações possíveis dos aspectos normativos”179. Cada ato é imediatamente qualificado pela função humana que lhe dá origem. Assim, um pensamento é um ato lógico, um discurso é um ato lingüístico, o ato sexual é um ato biótico, conforme aquele conjunto de habilidades e percepções pe rcepções do d o agente. a gente. Spier S pier acrescenta acresc enta ainda que a qualificação de um ato particular é determinada pela qualificação modal da instituição social na qual o ato emerge.180 Mas até um exame superficial mostrará que há outros fatores envolvidos. O ato de pensamento pode focalizar um problema matemático; o discurso pode ter um interesse político; e o ato sexual pode ser expressão de amor entre duas pessoas. Parece então que podemos falar também aqui em função base, e função guia. No caso do pensamento, por exemplo, podemos ter a lógica como função base, e diversas funções guia: a numérica, a espacial, a lingüística, a ética, etc. Vamos nos voltar para o exemplo do discurso. O discurso, em si, é um ato lingüisticamente qualificado. Mas o discurso pode ter um interesse político; de promover uma concepção política, por exemplo. Além disso, o discurso pode lançar mão de uma série de funções para consumar seu propósito político; ele pode se concentrar na argumentação 178 Ibid,
p. 256.
179 Ibid, p. 258. 180 Ibid.
Aspectos normativos são aqueles pós-psíquicos.
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lógica, ou pode buscar o despertamento das emoções dos ouvintes, ou mostrar-se esteticamente belo. Talvez possamos dizer, então, que além da função guia (jurídica) e da função base primária (lingüística), o discurso político pode apresentar funções base secundárias de caráter instrumental. Na verdade, essas funções sempre estarão necessariamente presentes, mas podem ser utilizadas e transformadas à vontade do agente. Um discurso político pode assim, legitimamente, ser uma construção filosófica, ou uma obra de arte do ponto de vista retórico. Nesses casos, um outro aspecto é transformado em função instrumental pela intenção do agente que constitui assim o ato. Vamos pensar num exemplo de ato pístico-religioso. A execução de uma canção evangelística, como “Jesus Cristo Mudou meu Viver”, de B.J. Thomas. Thomas. É claro que o propósito máximo de uma ação como essa é fiduciário; seu interesse é promover a conversão. A função base primária dessa ação é a lingüística, pois tem o interesse de comunicar uma mensagem de forma compreensível. A arte musical entra como uma função instrumental, como um recurso para potencializar a comunicação. Um sermão do Padre Vieira é um exemplo da mesma classe: temos, antes de tudo, um discurso; sua orientação é fiduciária, e o sermão se constitui numa maravilhosa composição literária. É claro que o sermão pode ser visto por outros ângulos, podendo ser avaliado eticamente, ou logicamente, etc, mas essas funções, conquanto presentes no ato fiduciário, não constituem função base, se não são intencionalmente constituídas como tais naquele ato pela vontade do agente. De modo que um ato humano simples tem no mínimo duas funções: a função base primária e a função guia, podendo ter outras funções adicionais conforme a vontade do agente.
2.
A Análise Modal dos Atos Fiduciários
Os Atos Os Atos fiduciários são fiduciários são aqueles atos que se caracterizam pelo propósito fiduciário, isto é, pela intenção de expressar ou promover a confiança em Deus. Deus. Todos os atos humanos expressam a crença religiosa; mas nem todos os atos tem como intenção principal a expressão dessa crença, em termos de fortalecimento, aprofundamento, propagação ou reforma. Esses atos específicos são os atos fiduciários, objetos específicos da teologia prática. Alguns atos fiduciários comuns são descritos descr itos na tabela abaixo: Atos
Função Base Primária Fiduciária Conversão Emocionada Ética Ação Social Eclesial Social Ecumenismo Evangélico Suspensão da comunhão por Jurídica prática pecaminosa Estética Cântico de adoração Econômica Entrega dos dízimos Social Encontro de casais Linguística Pregação apologética Reforma litúrgica: alteração Formativa na participação leiga
Função Base Auxiliar (possível) (possível) Psíquica Econômica Ética tica, social
Função Guia Fiduciária Fiduciária Fiduciária Fiduciária
Lingüística tica Social Lógica Social
Fiduciária Fiduciária Fiduciária Fiduciária Fiduciária
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Plantação de igreja Catequese Aconselhamento Bíblico
Formativa Lógica Psíquica
Social, Jurídica Lingüística Lógica
Fiduciária Fiduciária Fiduciária
A partir da tabela podemos observar que diferentes atos humanos que tem como propósito principal a expressão da fé diferenciam-se em sua função base. Por um lado, a função guia (a fé) determina a forma e os limites em que aquele ato deve operar; as leis da esfera fiduciária governam a realização daqueles atos. Por outro lado, a função base também determina os limites que diferenciam entre diferentes tipos de atos. A oferta, por exemplo, sendo apresentada como expressão de fé, deve ser dada conforme as normas da fé. Não pode haver, por exemplo, a incoerência de se ofertar buscando reconhecimento, o que seria uma contradição com a fé. Mas além disso, a oferta tem natureza econômica, quando é uma soma ou bem conferido. As leis da esfera econômica é que definem o significado econômico da oferta, não a fé em si. Entretanto, se a soma tem origem ilegal ou imoral, não terá também valor fiduciário.
3.
Construindo Modelos de Ação
Vamos usar como exemplo a Teologia Prática. Como ciência teológica aplicada, ela deverá se concentrar na construção de modelos de atos fiduciários que aumentem sua eficiência. A análise que fizemos acima nos ajudará a estabelecer um método para a construção desses modelos. Toda ação humana, como entidade real, envolve a intencionalidade do sujeito, o objeto da ação e as normas da escala modal, especialmente as normas que qualificam aquela ação: NORMAS SUJEITO
OBJETO
O planejamento racional de uma ação ou de um conjunto de ações deve considerar todos os três elementos: 1) Primeiramente, é preciso refletir sobre o objeto da ação, ação, que é a situação-objeto a ser processada por meio m eio da atividade prática; precisamos compreender o contexto con texto da ação, as pessoas envolvidas, as necessidades, os recursos, etc. 2) É preciso considerar também a intencionalidade do sujeito sujeito em dois sentidos: primeiramente no seu sentido religioso, isto é, sua situação espiritual. (a) É por meio do sujeito, como agente movido por fé, que Deus realiza suas obras. Assim o sujeito precisa estar em condições de agir; (b) em segundo lugar, o sujeito precisa estar consciente de sua direção ideológica. Toda ação humana faz parte de uma práxis, como um conjunto de ações que tem como finalidade última a constituição de um tipo de comunidade humana. A visão desse projeto “civilizatório”, que pode e deve passar pela
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crítica das várias ciências, é a chave ideológica da práxis. Assim, o sujeito precisa perguntar a respeito de como sua ação individual se insere na práxis. 3) Finalmente, o sujeito precisa sujeitar-se às leis modais para garantir o sucesso da ação. Ele deve estar consciente da qualificação modal de sua ação, bem como de suas funções de base, e sujeitar-se às leis dessas esferas modais. Se ele pretende realizar um ato fiduciário, precisa sujeitar-se às leis da esfera fiduciária. Se esse ato envolve a comunicação verbal, ele deve sujeitar-se às leis da esfera semiótica; e assim por diante. Essa sujeição precisa ser consciente, pois ao contrário das esferas pré-psíquicas, nas esferas pós-psíquicas é possível até certo ponto desobedecer às leis modais. O sujeito precisa compreender racionalmente essas leis e lançar mão delas para planejar suas ações. Podemos dizer assim que uma ação bem planejada ocorre no cruzamento desses três elementos: a situação-objeto, a intenção do sujeito, e sujeição às leis modais. Podemos ser mais específicos. Quanto à compreensão da situação-objeto, precisamos realizar uma análise dessa situação. No caso de um projeto missionário, por exemplo. A análise da situação humana será algo complexo. Precisaremos compreender a situação dessas pessoas. Isso envolverá estudos antropológicos; precisamos de informações sobre a presença religiosa no lugar, envolvendo análises estatísticas; precisamos também conhecer as leis do lugar, para saber como enviar um missionário. Ou seja; para “ver” o que está acontecendo e compreender a situação-objeto, precisamos de algo mais que “intuição”. Mas obviamente, o ponto principal dessa análise é a situação pística das pessoas. Como é a sua fé? Qual a sua situação diante de Deus? Essa análise é o primeiro momento teológico da Teologia Prática. Quanto às normas, é necessário antes de tudo decidir a respeito da norma da fé, e de seu conteúdo doutrinal.181 Mais especificamente, para cada tipo de ato fiduciário, é preciso perguntar sobre como a fé deve se expressar naquele ato. O que as Escrituras dizem a respeito? Quais as implicações da dogmática cristã para aquela dimensão da realidade e para aquele ato? E como aquele ato pode funcionar como expressão da fé? Esse é o segundo momento específicamente teológico da Teologia Prática.182 Desde que os atos humanos são qualificados também por sua função base, é preciso perguntar por essas funções. Mas não é suficiente a mera identificação. O planejamento dos aspectos do ato referentes a essa função deve respeitar as leis modais que correspondem a essa função buscando orientar-se por elas de forma mais consciente. Isso exigirá, portanto, o auxílio das ciências que lidam com aquela esfera modal específica, que estabelecerão os parâmetros para o planejamento do ato.
181 Sendo
a fé a esfera guia nos atos de fé, a teologia dogmática deverá ter função normativa na teologia prática. Isso é a garantia principal contra a secularização da teologia prática. Curiosamente, Gerald Hawkes nega essa prioridade da teologia na teologia prática. Pergunta-se então porque falar em teologia prática, ou não de outra coisa qualquer. Cf. HAWKES, op.cit., p. 48. 182 É preciso destacar que as Escrituras são a norma da fé não somente quanto à sua essência, mas também quanto à sua forma de expressão. Por exemplo; as Escrituras estabelecem a pregação como meio normativo de comunicação do evangelho. Isso não significa que não possamos usar outros meios; mas que a reflexão sobre a comunicação do evangelho deve em algum momento tratar a ação inteira – a pregação do evangelho – como objeto de uma reflexão teológica.
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Por exemplo: suponhamos que alguns de nós se envolvam na preparação de um evento para casais. O propósito desse evento pode ser o fortalecimento do compromisso desses casais com Deus, de tal modo que eles busquem a sua Vontade para a vida conjugal. Nossa função guia é, portanto, fiduciária. As crenças religiosas deverão estar presentes na determinação da visão quanto à natureza, ao propósito, e ao modo de viver o casamento à luz do evangelho; mas principalmente, a busca do fortalecimento da fé deve ser o princípio controlador das atividades. Mas um encontro de casais, por sua natureza, é um evento social. Para compreender não só a dinâmica do casamento, mas de encontros como este, será preciso recorrermos à sociologia e à psicologia, que poderão nos fornecer informações científicas sobre as condições ótimas e as leis que governam os relacionamentos humanos.
O Princípio de Direção Finalmente, temos a questão da intencionalidade. Qual a direção dessa atividade prática? Nicholas Wolterstorff dedicou um estudo especial à comparação do pensamento reformacional e a teologia da libertação, buscando uma apropriação crítica dos insights dessa última. Wolterstorff identifica dois tipos básicos de reflexão teórica: a reflexão nomológica busca uma compreensão científica das leis que governam a realidade. Dizemos que é uma atividade mais “teórica”. O segundo tipo é a reflexão orientada para a práxis (práxisoriented). O pensamento reformacional tradicional tem o mérito de colcar a fé cristã como princípio controlador interno da ciência; mas seu caráter mais nomológico a tornou às vezes irrelevante para a mudança das condições sociais. Para tornar o pensamento teórico relevante para a situação humana de pecado, pobreza, ignorância e opressão, Wolterstorff propõe que, além de um princípio controlador interno de aceitação de idéias (acceptance governance), a teoria tenha uma espécie de princípio controlador externo, dando a direção da reflexão (direction governance).183 O que seria esse princípio de direção? Uma compreensão bíblicamente informada a respeito da existência humana. Seria algo como a ideologia, que sempre orienta a práxis e a reflexão de um grupo de pessoas: uma espécie de projeto civilizatório, uma compreensão do que seria a cidade humana “ideal”; uma utopia. No caso dos cristãos, essa “utopia” seria a visão religiosa da Cidade de Deus. Essa visão tem uma origem pré-teórica, sendo dada por meio da fé. Mas ela poderia ser elaborada teoricamente, sob a orientação da teologia (pois a visão vem pela fé), mas com o auxílio de todas as ciências. O ponto é que essa visão ideológica deve ser o princípio direcionador da práxis no seu sentido geral, incluindo todo o conjunto das ações humanas. Seguindo Wolterstorff, poderíamos descrever essa condição ideal como a “Shalom”, a Paz divina, que envolve não só a paz com Deus, mas também a justiça social, a paz entre os homens e a prosperidade do homem. A reflexão sobre a prática em qualquer nível da experiência precisa sempre considerar, de um modo amplo, se e como aquela prática contribuirá para a realização da Shalom de Deus no mundo.
Interdisciplinaridade e Práxis
183 WOLTERSTORFF,
Nicholas, Until Justice and Peace Embrace. The Kuyper Lectures for 1981, delivered at the Free University of Amsterdam. Grand Rapids: Eerdmans, 1983, p. 170.
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Como deve ter ficado claro acima, a Teologia Prática exige uma grande cooperação com outras ciências. Essa conexão é tão importante que levou Hoch à seguinte afirmação: “A Teologia Prática adquire, portanto, o seu perfil próprio como disciplina teológica na medida em que se entende como o ponto de intersecção entre a teologia e as ciências empíricas que lhe são afins.”184 Ou seja, a Teologia Prática até se define como disciplina a partir da intersecção. O mesmo ocorre com outras ciências aplicadas. Na utilização de outras ciências para criar seus modelos de ação de fé, a Teologia Prática deverá estar atenta ao problema já mencionado do comprometimento religioso de todo pensamento teórico. Por exemplo; se vamos refletir a respeito do governo da igreja de um modo científico, precisamos recorrer ao direito e à teoria política. Obviamente, não se trata aqui de “copiar” estruturas de poder do estado para a igreja, mas de chegar a uma compreensão científica a respeito da natureza da lei no sentido jurídico, e de compreender analogicamente a dimensão política do governo eclesiástico. A verdade é que a influência das concepções “seculares” sobre a igreja ocorrem sem qualquer reflexão. Por exemplo: é comum encontrar entre os cristãos a noção de que o governo da igreja deveria ser democrático. Mas será que a democracia é realmente um sistema coerente com a fé cristã? Além disso, esse sistema vale também para outras instituições como a família e a igreja? Assim, a utilização do instrumental de outras ciências para refletir a respeito da prática da fé exige simultaneamente uma reflexão crítica sobre essas ciências, de um ponto de vista cristão, buscando identificar seu ponto de partida apóstata, e suas incompatibilidades estruturais para com a fé cristã. Essa reflexão reformacional sobre as ciências é o pressuposto da interdisciplinaridade na Teologia Prática. Mas como exatamente se dá essa comunicação entre a teologia e a ciência auxiliar? Christian Schwarz criou um modelo interessante para correlacionar o uso de métodos científicos e de recursos humanos na edificação da igreja com a ação divina. Para ele a edificação da igreja não pode nem precisa ser tratada como uma realidade mecânica, pois o próprio Deus coloca em suas obras uma lei de auto-organização, que ele denomina theopoiesis. Na verdade, o ponto principal é que a edificação da igreja é uma obra do próprio Deus (cf. 1Co 3.5-9). Desse modo, “A nossa tarefa não é produzir crescimento da igreja, mas liberar o potencial natural que Deus já colocou na igreja. Cabe a nós, portanto, manter a resistência do ambiente tão baixa quanto possível, ou seja, limitar os fatores de influência tanto internos quanto externos.”185 Nosso problema é, então, como construir modelos de ação que promovam a fé sem substituir mecanicamente a ação divina pela obra humana. Aparentemente isso só pode ser feito de forma negativa, isto é, planejando as ações de tal modo que os obstáculos à expressão da fé sejam reduzidos ao máximo. Isso significa que as ciências auxiliares devem ser utilizadas para otimizar nossas ações em suas funções secundárias, de tal modo que a dimensão pística dessas ações seja evidenciada da forma mais intensa possível. Mas nesse processo, a soberania das diferentes ciências é mantida, não havendo qualquer confusão de categorias. Ao propôr um modelo de ação social, por exemplo, não podemos confundir a promoção humana com a salvação do pecado e da morte; são realidades interrelacionadas mas distintas. 184
HOCH, Lothar Carlos, Reflexões em Torno do Método da Teologia Prática, em: SCHNEIDERHARPPRECHT, op.cit., p. 66. 185 SCHWARZ, Christian A., O Desenvolvimento Natural da Igreja. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1996, p. 10.
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Um exemplo do uso de recursos não-teológicos em ações de fé é o uso da música na adoração. Geralmente a música estimula uma resposta emocional por parte da congregação. Mas a música em si não pode produzir as analogias psíquicas da fé, que são a alegria, a segurança, a paz da fé, etc. A música é apenas um apoio para a expressão dos sentimentos de fé, que em si mesmos são fruto da ação divina. Assim a música deveria ser usada para abrir um canal de expressão da fé, sem a pretensão de substituir os meios de graça estabelecidos por Deus para despertar a fé. Caso a aplicação de qualquer recurso não-teológico em nossa prática de fé implicar numa restrição de um elemento do substrato modal da fé, isso indica que aquele recurso está corrompendo a fé. Por exemplo: se a música é usada para estimular emocionalmente a congregação, ao ponto de obliterar a dimensão analítica da fé, que é a crença doutrinal, temos possivelmente um abuso na utilização da música. Finalmente, a aplicação de qualquer teoria científica que trate de forma reducionista a fé ou uma de suas analogias modais milita contra a fé. Por exemplo: uma teoria que compreenda os sentimentos da fé como meros produtos de condicionamentos externos não será capaz de promover a fé de modo genuíno.
O Critério da Funcionalidade Um outro ponto importante em todo o processo é a verificação empírica. Não podemos dizer que nossa reflexão sobre a prática da fé teve sucesso se ficamos apenas nos modelos teóricos. Assim, a aplicação prática dos modelos com posterior análise é um passo fundamental para a identificação dos erros e aperfeiçoamento da prática. Podemos dizer assim que a funcionalidade é o critério final da prática da fé. Isso não é meramente pragmatismo; não estamos negando a importância e centralidade da Palavra de Deus.186 O ponto é que muitas vezes não alcançamos os objetivos bíblicos porque ainda não compreendemos bem e não praticamos adequadamente a Palavra de Deus em nossas ações planejadas. A percepção da importância da prática na teologia é um dos méritos da teologia latino-americana: “... não existe só o movimento da fé para a prática, mas também o ‘retorno dialético’ da prática para a fé. Ou seja: a fé ilumina a vida, mas também a vida ilumina a fé. É a ‘interpelação recíproca’ ... Na verdade é esta ‘dialética com dominante’ que é uma das maiores contribuições epistemológicas da Teologia da Libertação à metodologia de toda a teologia.”187
Clodovis Boff vê a “fé- palavra” como o “pólo dominante” na relação fé/prática. Mas ele sabe que a prática é anterior à teologia, a sua “precondição epistemológica”.188 O reformado David Schuringa diz algo muito semelhante; embora afirme a prioridade lógica da teoria teológica sobre a práxis, reconhece que “... a formação da teoria teológica deve ser
186
A reflexão de Chris Schwarz, por exemplo, a respeito da “funcionalidade pneumática”, segundo sua definição, acaba por absolutizar totalmente a funcionalidade como critério para a própria crença, numa espécie de radicalização do pragmatismo. Cf. SCHWARZ, Christian A., Mudança de Paradigma na Igreja. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2001, especialmente p. 64 -73. 187 BOFF, op.cit., p. 182. 188 Ibid, p. 172.
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compreendida em si mesma como um ‘momento reflexivo’ da práxis.”189 O ponto é que na teologia damos forma ao conteúdo doutrinal da nossa fé, e até mesmo obtemos recursos para decidir sobre a nossa fé e a nossa prática; mas é na prática que testamos concretamente essa teorização.
Schuringa propôs um círculo hermenêutico no qual a teoria e a prática são colocados como dos momentos polares na construção da práxis cristã. Conforme o círculo, na análise crítica da nossa prática e de seus efeitos temos um momento de ressonância, de feedback, no qual podemos reconsiderar e aperfeiçoar nossa prática, comparando seus resultados com nossa visão bíblicamente informada da Shalom, e especialmente da vida de fé; e nossa teoria “refinada” teoricamente retorna à prática onde é testada e reenviada para a análise. Essa tensão bipolar evitaria tanto o tradicionalismo como o pragmatismo em nossa teologia e prática pastoral. Essa reflexão se aplica a qualquer tipo de prática cientificamente mediada; é necessário criticar os conceitos teóricos e refletir sobre a estrutura da interação entre as diversas ciências, mantendo-se ao mesmo tempo a orientação teleológica para o cumprimento da Missão no mundo.
APÊNDICE 1
EXCERTOS DE DOOYEWEERD Herman Dooyeweerd: De Wijsbegeerte der Wetsidee The Philosophy of the Law-Idea (Amsterdam: H.J. Paris, 1935-36) Translation [Excerpts] and Meditational Study Guide by Dr. J. Glenn Friesen Volume I: The Law-Idea as Foundation for Philosophy
189 SCHURINGA,
op. cit., p. 159.
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Foreword Notes on the Foreword Now that what I regard as my life’s work– the foundation and systematic development of the “Philosophy of the Law-Idea”– has reached its first provisional conclusions, and I am able to let this extensive work appear in its present form, I want to first give thanks to God, who has permitted me to finish this work, in spite of what often appeared to me at first to be insurmountable difficulties. Second, I want to acknowledge my gratitude to the Directors of the Dr. Kuyper Foundation ['Kuyperstichting'], who helped make possible the publication of this work, which in today’s difficult circumstances brings with it an especially great risk for the publisher. It was only after much hesitation and after numerous revisions of the whole project that I decided to let this new systematic philosophy appear publicly. The first, still very rudimentary conception of this philosophy had already ripened before I arrived at the Kuyperstichting in the Hague [fall of 1922]. At first I was strongly under the influence of neo- Kantian philosophy, and later of Husserl’s phenomenology. The great turning point in my thought was the discovery of the religious root of thought itself. This discovery shed a new light on the continuing failure of all attempts, including my own, to bring an inner connection between Christian belief and a philosophy that is rooted in the belief of the self-sufficiency of human reason. I came to understand the central significance that Holy Scripture repeatedly places on the “heart” as the religious root of all human existence. From out of this central Christian viewpoint, it appeared to me that a revolution was necessary in philosophic thought, a revolution of so radical a character, that, compared with it, Kant’s “Copernican revolution” can only be qualified as a revolution in the periphery. For what is at stake here is no less than a relativizing of the whole temporal cosmos in both its so-called “natural” sides as well as its so-called “spiritual” sides, as against the religious root of creation in Christ. As against this Scriptural Ground-Thought, of what significance is a revolution in a view of reality that relativizes the “natural” sides of temporal reality with respect to a theoretical abstraction such as Kant’s “homo noumenon” or his “transcendental subject of thought?” In the light of Scripture, the whole attitude of that kind of philosophic thought that proclaims thought to be self-sufficient, appears to be one that takes its standpoint in a falling away [af-val] from our true human selfhood, since it essentially withdraws human thought from the divine revelation in Jesus Christ. The first result of the Scriptural viewpoint in relation to the root of the entire temporal reality was a radical break with the philosophic view of reality rooted in what I have called the 'immanence-standpoint.' The discovery of the philosophic Ground-Idea, which lies at the foundation [grondslag] of all truly philosophic thinking, made it possible to see the dependence on a supra-theoretical, religious a priori in the various theoretical views about the structure of reality, as they have developed in the prevailing immanence-philosophy. It also allowed criticism of these theoretical views to be made on a much deeper lying plane than is possible on the immanence-standpoint. Temporal reality cannot itself be regarded as neutral with respect to its religious root. In other words, the whole thought of a fixed temporal reality “an sich” [in itself and unrelated to our human subjectivity] rests on a fundamental misconception. If temporal reality is not neutral, how can we continue to seriously believe in the religious neutrality of theoretical thought?
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The development and carrying out of the cosmological Ground-Principle of sphere sovereignty, which plays such a fundamental role in the Law-Idea of this new philosophy, was totally dependent on this newly won Christian-religious Ground-Attitude in philosophy. This Ground-Principle is intrinsically foreign to immanence-philosophy, and was first formulated by Kuyper. On this foundation rests the general theory of the law-spheres, developed in Volume II. The first conception of this theory was obtained after the discovery of the inner structure of the temporal meaning-modalities. I could already explain this in my inaugural address [“The Significance of the Cosmonomic Idea for Jurisprudence and Philosophy of Law” (1926)]. Unforeseen difficulties arose in the working out of this theory. This was not only due to the fact that nowhere was there a point of contact in the prevailing philosophy, but also because it could not become fruitful without a close contact with the particular theory of the law-spheres, which investigates the fundamental problems of the various special sciences in the light of the Christian Law-Idea. This is also the reason why in my earlier publications I connected the theory of the law-spheres to the particular fundamental problems of my own special field of science, i.e. jurisprudence. I wanted to first assure myself that this philosophical theory has a value in principle for the special sciences, before I drew any provisional systematic conclusions. I admit at once that it was just this omission of a systematic-philosophic development that made it difficult for observers to appreciate the true reach and extent of these publications. I have also had many difficulties in working out the theory of the individuality-structures of reality, which is found in Volume III. In The Crisis in the Humanistic Theory of the State (1932), I had already given account of the new view that this theory offers of the structure of naïve experience, and especially its groundbreaking significance for so-called sociology and jurisprudence. But this theory, too lacks its own further working out in a systematic-philosophical way. Its significance is not limited to special sciences, since it touches the fundamental structure of reality itself. In all of this I had the strong feeling that it is impossible to give a truly fruitful working out of the Philosophy of the Law-Idea for today’s level of scientific thinking without a staff of colleagues who are at home in special scientific disciplines. It is vital for this young philosophy for it to find acceptance by Christian scientific workers, and for a circle of adherents to be formed that is able to independently think through its Ground-Motives in relation to the special sciences, and to develop them further. I am very grateful that from the beginning my colleague Dr. Vollenhoven has been at my side. Vollenhoven taught general philosophy at the Free University, and his name has become indissolubly connected with mine. It was also for us a great joy to find an enthusiastic independent colleague in Prof. Dr. H.G. Stoker, who in various publications has made known the Philosophy of the Law-Idea, and whose very keen, constructive criticism has called attention to various points that require a more precise working out. Although I can not yet follow the full reach of Stoker’s own expansive ideas, and although I initially have certain reservations against them, this does not prevent me fr om rejoicing over the fact that he wants to offer the services of his philosophic talents, which he already showed in Scheler’s circle, in the further independent extension of this new philosophy. I regard his assistance of great value, especially in the field of psychology, his own specialty. And finally there is the happy circumstance that among the younger scientists, a circle of adherents is gradually, although modestly, beginning to form. Each of these scientists is trying to make this new philosophy fruitful in his or her own specialty. This first circle of scientific workers has formed
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around the Philosophy of the Law-Idea. They are connected by the same Christian belief, and they all similarly experience the electrifying effect that flows out from the Christian vital root to the practice of science. God grant that this modest circle may grow to become a large group and that many who should be our adherents, but who still out of an inner opposition resist the idea of a Christian science, will become convinced that it is not just a question of a “system” (subject to all the faults and mistakes of human thought) but much rather the foundation and the root of scientific thought as such. In conclusion let me make two further remarks. First a remark that I intend in good will towards my main opponents. I am fully aware that a method of criticism that tries to follow a certain philosophic train of thought to its deepest religious foundations is something that must stir up the most extreme emotional reactions in an individual. I have repeatedly observed that an opponent feels personally attacked by this, or that the impression is formed that a judgment is being made by me in an excathedra style by someone who wants to elevate himself above his opponents and continually exalts himself. No one can be unhappier about such misunderstandings than myself. A judgment about the personal religious situation of an opponent would be human arrogance, an attempt to exalt oneself to the judgment seat of God. I have continually emphasized in this work that the Philosophy of the LawIdea always remains within the objective framework of principles, even when it delivers sharp penetrating criticism on immanence-philosophy. A self-satisfied scientific attitude in relation to immanence-philosophy hardly goes together with a Christian view of science and a Christian attitude towards knowledge. Whoever does not understand that the extensive criticism of the humanistic immanence-philosophy, which is given in Part Two of Volume I, is essentially intended as self -criticism, does not understand the intentions of the Philosophy of the Law-Idea. It is like a legal case that the Christian thinker pleads with himself . I would not be able to make such sharp judgments about immanence-philosophy were it not for the fact that I have myself gone through it. I have personally experienced its problematics. And I would not have made such a sharp judgment over the attempts to accommodate immanence-philosophy and Christian beliefs had I not myself lived through the inner tension between both of them, and had I not myself wrestled with such attempts of synthesis. My second remark is of a more formal nature. I have frequently noticed that many of those who study this new philosophy are scared off by its supposed obscurity and complicated nature. The new terminology also scares of many of those who are interested. They want a popular form that speaks to them immediately without much effort. To this I can give only one answer: the Philosophy of the Law-Idea is in fact difficult and complicated, just because it breaks with all traditional philosophic views. Whoever wants to really make this philosophy his or her own must try to follow its turns of thought step by step and penetrate behind the theoretical structure to the religious Ground-Attitude of this whole way of philosophizing. This philosophy will not open its meaning if people are not prepared to read it in a way that frees themselves from traditional ontological and epistemological views, or if they only read isolated parts of its system. But no one can ignore this philosophy. Just as Christian thought cannot close itself off from immanence philosophy in an attitude of negation, immanence philosophy cannot close itself off in such an attitude with respect to the Philosophy of the Law-Idea.
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It has always been a law of human knowledge, that truth is won only in the conflict of opinions. May then the conflict regarding the Philosophy of the Law-Idea be fought only for the sake of truth and thus in a chivalrous manner. I do not consider it a disadvantage if this philosophy is not granted a quick and easy success. No one less than Kant explained in the Foreword to his Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik : I flatter myself that I could have given popularity to my discourses if all I had had to do was to develop a plan and to then commend its completion to others, and if the welfare of science, which has occupied me for so long had not been so dear to my heart; for otherwise much perseverance and self-denial is required in order to disregard the temptation of an early favourable reception for instead the prospect of an admittedly later, but permanent approval.[1] If Kant deemed his transcendental philosophy worthy of this self-denial, then it is also proper for those who do not just merely want to set up a “new system,” but rather are concerned with the Christian foundations of theoretical thought. A quickly obtained but purely personal and therefore worthless success should not be preferred to what is required – a lengthy difficult work in silence, carried out in the belief that thereby something permanent can be obtained in the realization of the Christian idea of theory. For in fact, no precarious and changing valuation by our fellow humans can count in the slightest as against the inner joy and happiness that is given by the practice of a science that seeks its standpoint in Christ, who is the Way, the Truth and the Life! The Author [1935] Herman Dooyeweerd: De Wijsbegeerte der Wetsidee The Philosophy of the Law-Idea (Amsterdam: H.J. Paris, 1935-36) §3 The Philosophical Ground-Idea as Law-Idea. Origin of this Terminology [WdW I, 57] Study Notes I have at the outset used the term Law-Idea for the philosophic Ground-Idea, with its religiouscosmically determined apriori attitude with respect to the understanding of the Arché, of the totality of meaning, of the diversity of meaning, and of the temporal coherence of our cosmos in its lawside and subject-side. I formed the term ‘law-Idea’ when I was struck by the fact that many systems of philosophy expressly orient themselves to the idea of a divine world order, which is qualified as lex aeterna, harmonia praestabilita, etc. This is so in the great systems of ancient, medieval and certain great systems of modern philosophy (such as that of Leibniz). In this Idea of the law, in which the idea of subjectivity was included, there was in fact an apriori position chosen with respect to the central preliminary questions of philosophic thought: What is the deepest origin, the supratemporal unity-totality and the mutual relation and coherence of all particular laws that rule the various meaning-sides of the reality of our world, and how does subjectivity relate to the law in origin, supratemporal unity and diversity of functions ? In the systems of philosophy I have referred to, this law-Idea was usually conceived of in a large measure in a rationalistic-metaphysical manner. It was therefore a very attractive task to
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demonstrate that in fact each authentic system of philosophy must be grounded in a law-Idea of this or that type. This is so even where that philosophy itself gives no account of such a law-Idea. And the carrying out of this task must succeed. It is certainly impossible that philosophic thought, which must itself follow a regular [wetmatig] course, is not itself burdened by an apriori understanding of origin and totality of meaning of the law, and the subjectivity correlated to the law, and the mutual relation and coherence of the distinguished aspects in which law and subjectivity reveal themselves. It then came about that Calvinism, which I acknowledge as my Christian life and worldview, in accordance with Scriptures,has from the outset placed all emphasis on the law as the boundary between Creator and creation, a boundary that cannot be overcome. And without falling into an absolutizing of the law, Calvinism’s central-religious view of the Sovereignty of God over all of creation has been concisely carried out in its view of the law. [WdW I, 58] Study Notes Objections against the term ‘law-idea’ and why I maintain this term Yet it is not to be denied that the choice of the term ‘law -Idea’ as the Ground-Idea for philosophy has the possibility of being misunderstood as being only an apriori conception of the meaning of ‘law.’ That was the opinion of Prof. Dr. H.G. Stoker in his noteworthy work The New Philosophy at the Free University (1933) and The Philosophy of the Idea of Creation (1933). Stoker thought that law-Idea was a narrower Ground-Idea than the Idea of creation (which he saw as all-embracing). But I have my particular reasons for maintaining the term ‘ law-Idea.’ First, in pointing to the preliminary questions of philosophic thought, the Ground-Idea of philosophy must be framed in such a way that it in fact catches the eye as the necessary condition for each philosophic system. To define this Ground-Idea in terms of the Christian-religious choice of position r especting our cosmos, or in other words, to determine the content of the Ground-idea, is a later step. A law-Idea does in fact lie at the foundation of each philosophic system. An Idea of creation on the other hand would be rejected as the Ground-Idea of philosophy by each thinker that denies creation or who otherwise supposes that the creation must not be brought into play in philosophic thought. Second, the term ‘law-Idea’ has the advantage that at the outset it gives expression to the limiting character of the philosophic Ground-Idea, in its focus on the origin and the meaning of the law and its relation to subjectivity. For the law is ex origine the limit-ation of a subject. Reflection on the law-Idea means reflection on the limits of philosophy, regardless of whether a self-limitation of philosophic thought is intended or whether one acknowledges the God of revelation as the origin of all limitation in accordance with law. Seen in this way, the law-Idea, by its critical focus on the preliminary questions concerning meaning (including origin, totality and particularity in the diversity) in the relation of law and subject, is in fact the central criterion for the distinguishing in principle of the various standpoints and currents in philosophy. The law-Idea gives a boundary between immanence philosophy in all its variations, and the Christian standpoint of transcendence in philosophy. Here is the criterion to distinguish the truly transcendental philosophy (which acknowledges its immanent limitations of law), and speculative metaphysics ( which supposes that it can exceed these limits). Here is the criterion to distinguish within immanence philosophy between rationalism (which absolutizes the law at the cost of individual subjectivity) and irrationalist (that conversely tries to derive the law as a non-self-sufficient function of the individual creative subjectivity.
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Third, there is no dimension of philosophic thought in which the law-Idea does not make valid its central apriori influence: By its focus on the universal-scientific task of philosophy, it keeps philosophy from gliding off in the path of a special science stuck within particularized meaning, even the particularized meaning of theological thought. It guards philosophy from falling back into the mere pre-scientific thought of naïve experience. Stoker may be correct that philosophy also has the task to take into account the intrinsic unity of things that do not dissolve into their meaning sides into law-side and subject-side. But as I have already argued, philosophy cannot fall back into the attitude of naïve experience which accepts things as given in their indivisible unity of creation without an explicated distinguishing of their aspects. There is also no [other] philosophic system that in fact does this. But metaphysics, which supposes that within its philosophic limiting concepts that it is able to conceive of the supratemporal essence of things, again and again tries to find a “remaining substance” behind things, just as they are experienced as indivisible individuality unities within the naïve attitude in temporal reality. By the test of the law-Idea, it appears that the metaphysical idea of substance rests on an absolutizing of abstracted meaning , and that metaphysics does not do justice to the experience of unity of the naïve, pre-theoretical attitude. For philosophic thought, the temporal unity of things is the given of naïve experience, which must become a philosophical task in the direction determined by the law-Idea. Only then do we see the transcendental limit of philosophy as over against naïve experience, and at the same time we see the irreplaceable value of naïve experience. The value of naïve experience is that all scientific thought in the last instance must again appeal to naïve experience. Only then can we see, as shall later be demonstrated in more detail, that theoretical, and philosophic thought finally has its proper ground only in an unfolding of meaning, a deepening of meaning of the pre-theoretical, naïve thought and its enstasis [instelling] within full temporal reality. Any philosophy that cannot give an account of naïve experience, and thinks that it can shove it aside with a haughty gesture, pronounces judgment against itself. And finally I want to cut off the misunderstanding over the meaning of ‘law -Idea’ by giving it more precision. Although the word ‘law-Idea’ appear s to refer only to the basic relation between totality of meaning, diversity of meaning and coherence of meaning in the law-side of reality, in fact it also does so with respect to the subject-side of reality in all its individuality. For the law only has meaning in its unbreakable correlation to the subject. The law-Idea implies the subject-Idea, which refers to the Ground-relation between totality of meaning, diversity of meaning, and coherence of meaning of the subject-side. There is no objection to choosing another term for the Ground-Idea of philosophy which would include the law-and subject-sides of reality. The terms ‘ meaning-Idea,’ cosmos-Idea,’ or ‘world Idea’ might perhaps deserve attention her e. But on the other hand, these terms miss the critical sharpness that forces the thinker in philosophic thought to self-reflection about his enstasis [instelling] in relation to the totality of meaning and the diversity of meaning of our world according to its law-and subject-sides. And these other words also miss the incisive focus on the limits of philosophic thought. For all these reasons, I give the preference to my first term, which also has the advantage that it has gradually become in common use in referring to this philosophy. But there remains the question posed by Stoker (who has in other respects and to my joy accepted the philosophy of the law-Idea) whether reality is not more than meaning .
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[WdW I, 62] Misunderstanding of the philosophy of the Law-Idea as meaning idealism. Here there is the threat of misunderstanding the the Philosophy of the law-Idea, insofar as it is focused wholly on the problem of meaning, has not drifted into the waters of a meaning-ism, an ‘idealism’ (Stoker). I am not yet able to cut off this serious misunderstanding by the roots. It is first necessary to confront our understanding of ‘meaning’ with that of immanence philosophy. [WdW I, 62b] Study Notes Meaning is the mode of creaturely being under the law At the outset, our inquiries should make clear the finite character of meaning as the mode of being reality under the law in which reality finds no rest in itself. Meaning idealism, as we have been able to note it in Husserl and Rickert, starts from a distinction between meaning that is ascribed to reality and a reality that is in itself meaningless. On this view, meaning is only ascribed subjectively to reality by the absolutized transcendental consciousness. In fact, these thinkers of ‘reality’ re fer only to the abstracted meaning of the psychical-physical natural sides of reality. In contrast to their views, our view is that meaning is universal to all created reality as its restless mode of being , because all meaning refers reality to its Origin, the Creator, without Whom the creature sinks back into nothingness. Now it may be objected that meaning itself cannot live, act , or move. But does not this life, this action, and this movement refer above themselves, in the sense of not coming to rest in themselves, all in accordance with the mode of being of creaturely reality? Only God’s mode of being is not meaning, because only He exists by Himself and through Himself. Meaning is the mode of being of all creaturely being ! From this it is also clear that philosophic thought also has its correlate in the transcendent totality of meaning in the Being of the Arché, and that each Law-Idea takes a position with respect to this Arché. In fact, no one who speaks of number, spatial figures, movement, etc., or who speaks about concrete things, can do so except in their meaning, that is in their relative mode of being with respect of pointing to each other pointing towards the origin of all. If the natural [pre-logical] sides of temporal reality in their mode of being were not sides of meaning , which stand in a relation of meaning to the mode of being of thought [the logical aspect], then thought would not be able to form any concept of these natural sides of reality. That is my preliminary justification of my terminology. [WdW I, 63] Study Notes Law-Idea, subject-Idea, law-concept and subject-concept
The concepts of law and subject depend on the law-Idea in its wide meaning, including the idea of subjectivity. Unlike the law-Idea, the concepts of law and subject do not in themselves point above the diversity of meaning to the transcendent fullness of meaning (the totality of meaning ). Rather they are limited in nature to particularized meaning and to the diversity of meaning . Whichever particular meaning the concept of law and subject may possess, depending on the aspect of reality that is comprehended by theoretical thought, it is always dependent on an apriori law Idea.
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[WdW I, 63b] Study Notes The dependence of concepts of law and subject on the law-Idea Whenever rationalistic thought identifies “nature” with a system of natural laws formed by a transcendental consciousness, of which individual events are only an exemplary “instance,” or whenever the ideal subject, the “homo noumenon (the absolutized ethical function of human personality) is put forward as being itself the moral lawgiver – in those cases the moral law is dissolved, and the subject loses its own function as against or rather under the law. Kelsen’s view “reine Rechtslehre” [“pure theory of law”] reveals a rationalistic -idealistic concept of law. But behind this concept there is a law-Idea of a specific humanistic type. He dissolves the subject of the juridical aspect into a function of the juridical norm in a normative-logical way. And that is why Kelsen’s concept of law is completely objectionable by anyone who rejects the law-Idea that lies behind it. Herman Dooyeweerd: De Wijsbegeerte der Wetsidee The Philosophy of the Law-Idea (Amsterdam: H.J. Paris, 1935-36) Volume II: The Functional Meaning Structure of Temporal Reality and the Problem of Knowledge Part II: The Problem of Knowledge in the Light of the Law-Idea Chapter II: The Structure of the Synthesis of Meaning and its Transcendental and Transcendent Conditions §1 The Theoretical Character of the ‘Gegenstand’ in Knowledge [WdW II, 399] Study Notes We have in the preceding chapter formulated the basic problem of epistemology as follows: How is theoretical synthesis of meaning possible?" From this question is born the problem, "what is it that is set-over-against [the logical aspect]?" As we have said, this essential and primary basic problem cannot be asked by immanence philosophy, even when behind Kant’s critical inquiry the attempt is made to found epistemology in a metaphysics, on a “critical ontology” or a modern phenomenology. The phenomenologist presumes that there is no problem of a ‘Gegenstand,’ since he supposed that he discovers it by his intentional consciousness in the “ strict givenness” of that which is purified by the phenomenological reduction. According to phenomenology, the world is only given to us as an “intended Gegenstand!” In the metaphysically founded epistemology, the anticheimenon is regarded as identical with the subjective reality of a substance. They suppose that this substance is independent of our subjectivelogical aspect. And for Kant, the ‘Gegenstand’ is identical with what is universally valid and “objective” in our experience. He, too, does not see the real problem of the possibility of the isolating abstraction of that which is opposed to [the logical aspect]. Because of this, the multivocal concept of ‘Gegenstand’ as it is used in immanence philosophy is totally useless for us.
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If we want to examine more closely this primary basic problem of epistemology, we must first obtain clarity about the true character of the ‘Gegenstand’ and about the structure of theoretic synthesis of meaning. [WdW II, 400] Study Notes Is it possible to speak of a ‘Gegenstand’ of knowledge? Usually we speak without suspicion about the ‘Gegenstand’ of knowledge; this follows from the assumption that the ‘Gegenstand’ is opposed to our knowledge. But over-against what in our knowledge can the ‘Gegenstand’ be opposed? If we answer, "Over -against the knowing subject ," then this answer is problematic in every respect. It does not become less problematic to define the “knowing subject” more precisely as the “transcendental consciousness,” the tr anscendentally reduced “I think.” Is it it then intended that the ‘Gegenstand’ of knowledge is set over -against our knowing selfhood ? The epistemological ‘Gegenstand’ first ari ses through the theoretical dis-stasis [uiteen-stelling] of the cosmic temporal meaning systasis. Our “selfhood” is not to be found in this temporal systasis of meaning, as we demonstrated in the Prolegomena. The correlate to the ‘Gegenstand’ must therefore be sought immanently, in the temporal coherence of meaning. The resistance [tegenstand] arises as such through the setting-over-against [tegenover-stellen] and this setting-over-against is in essence the (theoretic) dis-stasis [uiteen-stellen] of the cosmic systasis of meaning. This dis-stasis is now only possible by means of th e analytical aspect, and the ‘Gegenstand’ therefore must stand in a particular indissoluble relation with that aspect. [WdW II, 401] Study Notes The enstatic attitude and the settingover-against attitude of thought The modal function of feeling does not have a resistance [tegenstand] in an epistemological sense: its immanent subject-object relation can never be referred to in this sense of an essentially intermodal setting-over-against (in a theoretic dis-stasis). But, as we have repeatedly stated, the analytical function itself has no theoretical ‘Gegenstand” so long as it remains merely enstatically placed within temporal reality. The analytical aspect is fitted [ingevoegd] into the cosmic systasis of meaning as a necessary meaning-side of temporal reality in which all post-logical aspects are founded . In naïve experience, the analytical function of thought is in this way enstatically fitted within [ingesteld] temporal reality; it is en-statically active in the cosmic coherence of meaning. For this reason, naïve experience knows of no epistemological problem. Naïve experience has no resistance and it is not active in synthesis of meaning, but in the en-stasis of full temporal reality. In naïve experience the analytical function of thought is merely inner thought [indenken]. Naïve experience is the concrete experience of things in their relations in the full individual temporal reality that has not been subjected to dis-stasis. Also in naïve experience, the analytical subject-object relation has only a mere en-static character. Whoever sees this relation in naïve experience as a ‘Gegenstand’ (as Kant does) has cut off at the outset of a way of giving an account of naïve experience. [WdW II, 401b] Study Notes There is only a ‘Gegenstand’ of the analytical aspect in theoretic knowledge
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Only in the deepened theoretic thought does the mere en-static attitude of thought give place to the over-against and dis-static attitude. The deepened analysis executes [voltrekt zich] an inter-modal synthesis of meaning, in which the non-analytic meaning is made into a ‘Gegenstand’ of the analytic aspect. A ‘Gegenstand’ arises only in theoretic knowledge, in the synthesis of meaning and over against the deepened analytical aspect. With this it is established that the ‘Gegenstand’ in theoretical knowledge, as ‘Gegenstand’ of the theoretic analytical aspect, can never be the full temporal reality itself , nor can it be the “thing” in its cosmic systasis of meaning in reality. As long as we merely systatically grasp the “thing” of naïve experience, we have no resistance of analysis. As soon as the resistance appears, we have given up the naïve attitude of pre-theoretical thought, which is only en-static [instellende]. [WdW II, 402] Study Notes The problem of synthesis of meaning is rooted in the problem of cosmic time, in the problem of the epoché [1], and of the continuity of the temporal, cosmic coherence of meaning. The epistemological ‘Gegenstand’ can therefore not be cosmic reality itself, since the analytical function, even in its theoretical deepening of meaning, cannot break the bonds of its immanence within temporal reality. The analytical function can not transcend cosmic time in order to set itself over against the cosmos. As we know from the Prolegomena, only in the religious, transcendent root of his personality does man go beyond the temporal diversity of meaning and only there is he able choose a position over against the cosmos. But this rel igious “over -against” may never be confused with the ‘Gegenstand’ in the theoretical synthesis of meaning, which is a product of theoretical abstraction. The ‘Gegenstand,’ which is set over against the analytical function of meaning in the still problematic synthesis of meaning, is the product of a willed refraining [aftrekking] from out of the full temporal reality. We have repeatedly noted that this over-against attitude of theoretical thought must first abstract from nothing other than the continuity of cosmic time. Therefore it appears that the basic problem of the epistemological synthesis of meaning is essentially rooted in the problem of cosmic time – that is, in the possibility of a theoretical epoché [refraining from] the temporal continuity of the cosmic coherence of meaning. [WdW II, 403] Study Notes Varieties of ‘Gegenstände’ In this primary analytical epoché, the ‘Gegenstand’ may be conceived in a larger or lesser d egree of abstraction. The absolute boundary of ‘gegenständliche’ abstraction lies in the apriori basic structure of the temporal aspects. An entire law sphere with its internal modality of meaning can function as a ‘Gegenstand.’ But within such an abstracted law sphere a w hole field of mutually cohering particular ‘Gegenstände’ reveal themselves. Finally, a structural ‘Gegenstand’ can be abstracted from the things of naïve experience, and out of the real human social structures. This abstracted structure is then not merely modal or functional , but in the analytical epoché it shows the typical structural coherences of an inter-modal character. This last sort of ‘Gegenstände’ forms the field of investigation in Volume III.
Footnotes for these excerpts
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[1] This term, which has such a central function in Husserl's phenomenology, in fact does not derive from Husserl, but from Greek philosophy. It therefore does not make sense to seek for Husserlian motives behind my understanding of the epoché. I use the term exclusively in the sense of an abstraction from the temporal continuity of the cosmic coherence of meaning. Herman Dooyeweerd: De Wijsbegeerte der Wetsidee The Philosophy of the Law-Idea (Amsterdam: H.J. Paris, 1935-36) § 2 The Relation Between Synthesis of Meaning and Deepened Analysis. The Objective-Analytical Dis-Stasis and the Analytical Character of the Epoché [WdW II, 403b] Study Notes We now want to first give an account of the question why the deepening of meaning of analysis can only be done in thought that seeks a synthesis of meaning. This question deserves our special attention.Why cannot the deepening of meaning in the mode of the analytical aspect not remain at rest in the cosmic systasis of meaning? Why must the unfolding meaning of analysis abstract its ‘Gegenstand’ from out of the full temporal reality? The answer must be: because in the modal sense of analysis itself, according to its “universality in its own sphere,” the demand is given to find no rest in the mere systasis of meaning of cosmic reality. The universality in its own sphere of the logical aspect can only reveal itself in a deepening of meaning of analysis, in which the modal structures of meaning of the law spheres themselves, which are only given in the continuity of the cosmic coherence of meaning, are split apart [uiteengesteld, dis-stasis] in logical dis-continuity. The logical law sphere in its mere enstatic function can never approximate the totality of meaning in its own aspect of analytical meaning. In enstasis, it only is able to analytically distinguish things and relations between things by their sensorily founded characteristics. [WdW II, 404] Study Notes Why the naïve concept of a thing cannot be based on a synthesis of meaning. The fact that naïve analysis distinguishes things on the basis of sensory characteristics does not mean that the naïve concept of a thing is based on a synthesis of meaning of the analytical and psychical aspects. That would imply that naïve, pre-theoretical thought could be in a position to analyze the psychical modal function of meaning by taking it from out of full temporal reality and making it its ‘Gegenstand!’ The truth is that the naïve concept of a thing remains inert [traag], [enstatically] fitted within the full temporal systasis of meaning of naïve experience, of which it makes an inseparable subjective component . Because of this, pre-theoretical thought is not in a position to make an analysis of the modal aspects of the reality of a thing. Naïve analysis does not penetrate behind the objective perceptual appearance [oogenschijn] and can therefore not comprehend in a synthetic [inter-modal] sense the functional laws of the law spheres. It makes do with pre-theoretical, practically oriented distinctions, which find their touchstone in the sensory aspect of experience and are not ordered from out of a systematic-methodical viewpoint. But it is just the analytical meaning that now requires the Idea of its completion of meaning in the analytical comprehension of the totality of the modal functions of meaning themselves with their [modal] conformity to law.
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In this Idea of analysis, the cosmic given is not left in rest. Rather the functions of its own substratum [the pre-logical], and the modal analytical aspect itself, which is abstracted in the synthesis of meaning is split apart in dis-stasis. [WdW II, 405] Study Notes The analytical character of the epoché Analysis that has been deepened in the synthesis of meaning thus performs an analytical epoché from out of the continuity of the temporal coherence of meaning of reality. Naturally, the continuity of cosmic time does not allow itself realiter [in actuality] to break through this analysis. As we know, such a breaking through would mean the end of the possibility of analysis itself. The analytical epoché moves in principle within the continuous temporal coherence of meaning. Only in the concept within the synthesis of meaning is the ‘Gegenstand’ abstracted from the continuity of the coherence of meaning. As we shall later see, this insight is of fundamental importance if we want to give account of the possibility of a synthesis of meaning. [WdW II, 405b] Study Notes Unfolding of the logical anticipatory sphere in the pre-logical ‘Gegenstand.’ This deepened analytical aspect may make the pre-logical law spheres into its ‘Gegenstand.’ Thereby the concentration on a particular ‘Gegenstand’ (e.g. the numerical, kinetic, biotic or psychical law spheres) always proceeds from an actual directing of theoretical attention that cannot be explained from the analytical aspect alone. The pre-logical spheres that are made into a ‘Gegenstand’ then unfold their meaning under the functional leading of their anticipatory logical sphere. This is a state of affairs that we have already given our attention to in the General Theory of the law spheres [Part I of Volume II]. The numerical, spatial, kinetic aspects, etc., sovereign in their own sphere with their own lawconformities, follow the leading of the systematic analysis, and reveal their coherence of meaning with the logical aspect. In the pre-logical aspects, abstracted into a ‘Gegenstand’ by the theoretical analysis, the law spheres unveil themselves as “having the predisposition” to wards the systematic tendency of theoretic thought. There is an anticipatory call for systematic analysis. [WdW II, 406] Study notes Deepening of the logical object-side of reality in theoretical thought. The objective-analytical dis-stasis At the same time, the logical object-side of reality is deepened in the subject-object relation. It changes from merely being fitted into temporal reality as an objective-logical systasis to an objective-logical setting apart , to an objective dis-stasis of a functional multiplcity in the analytical aspect. In theoretic scientific thought the logical object-side is opened in the concept of function. No longer is analysis content with the sensorily founded distinction of things whose aspects have not been analysized. Rather, analysis penetrates to the setting apart of the aspects themselves. Only now are the pre-logical aspects analytically [distinctly] articulated and objectified. But this objective-analystical dis-stasis is no more a subjective creation of theoretic thought than is the objective-analystical systasis a creation of pre-theoretical thought. Rather, it belongs to the
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deepened objective-logical aspect of the full temporal reality, and it is only unveiled by theoretical analysis. In being directed to the pre-logical law-spheres, theoeretical analysis is bound to the objectiveanalytical dis-stasis of temporal reality. It is just in this inner being bound to reality that the analytical aspect finds the full weight of its non-analytical "Gegenstand." The epoché, which is characteristic of theoretic thought, therefore completes itself in the deepened analysis itself. It functions within the logical law-sphere, but it is the theoretical synthesis of meaning that relates the analytical aspect to its "Gegenstand ." Now that the modal meaning of the theoretcial epoché has been cleared up, the question of the possibility of the synthesis of meaning demands our attention. From the already theoretically abstracted analytical aspect this possibility can never be explained. Much rather, this theoeretical abstraction itself presupposes , as we have seen, the synthesis of meaning.
APÊNDICE 2
GLOSSÁRIO DE FILOSOFIA REFORMACIONAL 190 Al bert Wol ter s, ICS Tr aduzido e Expandido por Gu il herm e V. R. Carvalho, Centr o Kuyper
ABERTURA MODAL – O processo pelo qual antecipações modais latentes são “abertas” ou atualizadas. Também denominado O PENING PROCESS (“processo de abertura”). O 190 O
glossário aparece em KAALSBEK, Louis, Contours of a Christian Philosophy: An Introduction to
Herman Dooyeweerd’s Thought . Toronto: Wedge, 1975, p. 346-354.
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significado modal é então “aprofundado”. É esse processo que torna possível o desenvolvimento cultural da sociedade de um estágio primitivo (“fechado”, “indiferenciado”) para um estágio civilizado (“aberto”, “diferenciado”). Por exemplo, através do processo de “abertura” ou DESVELAMENTO da antecipação ética na jurídica, o significado modal da justiça é aprofundado e a sociedade pode se mover de um princípio de “olho por olho” para a consideração de circunstâncias atenuantes na administração da justiça.
ANALOGIA – Nome coletivo para RETROCIPAÇÕES e ANTECIPAÇÕES, equivalente de MOMENTO DE SENTIDO. ANALÍTICO – Nome para a sétima modalidade, caracterizada pela diferenciação lógica ANTECIPAÇÃO – Uma ANALOGIA ou MOMENTO DE SENTIDO dentro de uma determinada MODALIDADE referindo-se a uma modalidade mais alta na escala modal. Um exemplo é a “eficiência”, um momento de sentido que é encontrado na modalidade históricoformativa, mas que aponta para frente, para a modalidade econômica, que se encontra mais acima na escala modal. Contrasta com RETROCIPAÇÃO. ANTINOMIA – Literalmente “conflito de leis” (do grego anti, “contra”, e nomos “lei). Uma contradição lógica que surge de uma falha em distinguir os diferentes tipos de leis válidas em diferentes modalidades. Desde que leis ônticas não conflitam (ver PRINCÍPIO DA ANTINOMIA EXCLUIDA), uma antinomia é sempre um sinal lógico de um REDUCIONISMO ontológico. Exemplo: os paradoxos de Zeno, devidos a uma confusão entre o aspecto numérico e o espacial. ANTÍTESE ESPIRITUAL – Conceito usado por Dooyeweerd (seguindo Abraham Kuyper) em um sentido especificamente religioso para se referir à oposição espiritual fundamental entre o Reino de Deus e o reino das trevas. Cf. Gálatas 5.17. Desde que esta é uma oposição entre regimes, não entre realidades, ele se espalha por cada departamento da vida e cultura humana, incluindo a filosofia e o empreendimento acadêmico como um todo, e também no coração de cada crente em sua luta para viver uma vida de compromisso integral com Deus. A PRIORI – Expressão de origem latina, significando “antes de”. O termo se tornou proeminente na filosofia desde Kant para descrever aquilo que pode ser conhecido “antes” da experiência, isto é, independentemente dos dados empírico, e que está enraizado na estrutura da subjetividade humana. Antônimo de “A Posteriori”. Ver TRANSCENDENTAL. A PRIORIS TRANSCENDENTAIS – Aquelas condições necessárias para que a experiência e a aquisição de conhecimento sejam possíveis. Em si mesmas, essas estruturas não podem ser inteiramente capturadas dentro de conceitos, pois constituem a própria subestrutura da conceptualização. Isso seria algo semelhante a uma lente de contato usada por alguém: ele pode ver através da lente, mas não a própria lente. No entanto, sabe que ela está ali. ARCHÉ – O termo ter origem grega (Arché, de “arqueologia”), significando literalmente o “princípío” ou a “origem”. Dooyeweerd usou o termo para se referir ao ponto a partir do qual o indivíduo explicar toda a realidade. Sendo toda a realidade SIGNFICADO, podemos dizer que o arché é a Origem do sentido cósmico: aquilo que não significa outra coisa, mas o que todas as coisas significam. Isso é uma forma de dizer que tudo vem de Deus e depende dele para a sua existência. O pensamento imanentista, ao rejeitar a DIFERENÇA
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QUALITATIVA INFINITA entre Deus e o cosmos, procura encontrar o arché dentro do horizonte temporal da experiência, identificando-o com uma entidade concreta ou com uma das MODALIDADES da experiência. Essa ação pode ser vista como uma espécie de “idolatria filosófica”: a deificação de um dos aspectos da experiência. Sempre que ocorre o REDUCIONISMO intermodal, temos um sinal claro de que algum aspecto da realidade está sendo tratado como arché de outro aspecto no lugar de Deus, o que constitui idolatria. O arché deve ser distinguido do PONTO ARQUIMEDIANO, que é aquele ponto firme e privilegiado no homem, a partir do qual ele tem uma “visão de conjunto” da realidade de modo a julgar adequadamente as coisas.
ASPECTO – Um sinônimo de MODALIDADE e de “Esfera Modal”. CIÊNCIA – Duas coisas devem ser notadas a respeito do uso que Dooyeweerd faz do termo ciência. Em primeiro lugar, como uma tradução do termo holandês Wetenschap (análogo ao termo alemão Wissenschaft), ele abrange não apenas as ciências naturais mas também as ciências sociais e as humanidades, incluindo a teologia e a filosofia. Em segundo lugar, a ciência é sempre, estritamente falando, um assunto de abstração modal, isto é, de “destacar” um aspecto específico da coerência temporal em que ele é encontrado, e examiná-lo na RELAÇÃO GEGENSTAND. Como tal, ela deve ser distinguida da EXPERIÊNCIA INGÊNUA. Desse modo, “ciência” é um termo com aplicação mais ampla em Dooyeweerd que no sentido usual do português, que freqüentemente se refere apenas às “ciências naturais”, mas também pode ocorrer com sentido mais técnico. Ver também TEORIA. CINEMÁTICA – O nome do terceiro aspecto modal, derivando seu nome de uma palavra grega para movimento (kinema), que é o seu momento nuclear. CONCEPTUALIZAR – Procurar reconstruir um objeto ou dimensão da experiência do sujeito através de formas lógicas; dar um formato racional para uma experiência que transcende a esfera lógica. Uma forma de compreender isso é pensar num auto-retrato pintado por um artista. O auto-retrato é uma representação artística de um ser humano. O retrato, em si, não é uma pessoa, nem mesmo uma representação fisicamente exata da pessoa; é antes uma “concepção artística”. Igualmente, se alguém tenta formular um conceito teórico sobre certa pessoa, esse conceito não pode ser igualado à pessoa; trata-se antes de uma I MAGEM CONCEPTUAL, que procura expressar com conceitos lógicos coisas que transcendem à lógica. Dooyeweerd acreditava que os limites da conceptualização estavam nos A PRIORIS TRANSCENDENTAIS do conhecimento. CORAÇÃO – O ponto de concentração da existência humana, foco supratemporal de todas as suas funções temporais, a raiz religiosa unificada do homem. Dooyeweerd diz que foi a sua redescoberta do conceito bíblico de coração como a dimensão de profundidade religiosa da vida humana, subjacente a suas funções temporais (biótica, social, econômica, etc), que o capacitou a se libertar do neokantianismo e da fenomenologia. No coração, essas funções estariam concentradas numa unidade que transcende o tempo em direção a Deus, a origem de tudo. Essa unidade transcendental é que capacitaria ao homem, na atitude teórica de pensamento, a síntese entre os aspectos lógico e não-lógico da experiência. As escrituras falam desse ponto focal usando termos como “alma”, “espírito”, e “homem interior”. Termos filosóficos equivalentes seriam EGO, “eu”, I-ness, e Selfhood . É o coração nesse sentido que sobrevive à morte, e é pelo redirecionamento religioso do coração na regeneração que todas as funções temporais do homem são renovadas.
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COSMOS – Toda a realidade criada; criação. Dooyeweerd às vezes usa “cósmico” no sentido de algo que estrutura a criação, algo “cosmológico”; por exemplo: uma esfera modal cosmicamente anterior”, ou “tempo cósmico”, ou “sentido cósmico”. DATUM – No Plural Data; o termo latino, que significa “dado”, tem um uso técnico em teor ia do conhecimento para designar aqueles conhecimentos básicos sobre o real que o ego intui na experiência ingênua ou ordinária. Esses conhecimentos elementares, basais, não são fruto de comprovação ou justificação racional, tendo caráter imediato e intuitivo. Não se restringem a categorias racionais e dados sensoriais, como propôs Kant, envolvendo antes todo tipo de percepção do real que compõe a estrutura da experiência ordinária: as diversas modalidades, o horizonte plástico da experiência, e o conhecimento de Deus. DIALÉTICA – No uso de Dooyeweerd: uma tensão insolúvel dentro de um sistema ou linha de pensamento, entre duas posições logicamente polares e irreconciliáveis. Essa tensão dialética é uma característica de cada um dos três MOTIVOS-BASE não cristãos que Dooyeweerd acreditava terem dominado o pensamento ocidental. DIFERENÇA QUALITATIVA INFINTA CRIADOR-CRIATURA – Princípio ontológico fundamental da cosmovisão calvinística, originado dentro da tradição agostinianacalvinista. Esse princípio é o responsável por uma das características principais do pensamento de João Calvino, que é resistência incansável a toda e qualquer manifestação de idolatria na vida humana. O próprio homem, no estado de queda, é chamado por Calvino de FABRICA IDOLORUM, ou uma “fábrica de ídolos”. Dooyeweerd identificou o REDUCIONISMO intermodal como uma manifestações da idolatria humana dentro do pensamento teorético. Isso porque ele seria resultado da falha em diferenciar o Criador da criatura, ao tratar uma modalidade como se fosse o ARCHÉ do cosmo, isto é, Deus. DING AN SICH – “coisa-em-si”. Expressão de origem alemã usada por Kant para se referir às coisas reais, como existem fora da nossa consciência. Kant pensava que não podemos conhecer a “coisa-em-si”, isto, é, a própria realidade, mas apenas a sua “aparência” para nós. Seu pensamento é chamado, nesse ponto, de fenomenalismo. Dooyeweerd rejeitou o fenomenalismo evitando separar a “coisa-em-si” da nossa experiência dela. DISTÁSIS – O oposto de SISTASIS. A distásis ocorre quando isolamos uma propriedade ou uma dimensão de certo objeto e o analisamos por esse ângulo. O conhecimento ordinário tem caráter sistático, e o pensamento teórico tem caráter diestático. EGO – Um sinônimo para CORAÇÃO. Não há aqui qualquer conotação freudiana. ENCAPSE – Um neologismo criado por Dooyeweerd a partir do biólogo suíço Heidenhain, e derivado do grego ENKAPTEIN, “incorporar”. O termo se refere ao entrelaçamento estrutural que pode existir entre coisas, plantas, animais e estruturas sociais que tem seu próprio princípio estrutural interno e função qualificadora independente. Como tal, a encapse deve ser claramente distinguida da relação parte-todo, em que há uma estrutura interna e uma função qualificadora comum a ambos. ENTIDADE – Qualquer ser que exista dentro do horizonte temporal da experiência. Aqui se incluem seres humanos, árvores, pedras, livros, conceitos teóricos, sentimentos, imagens, animais, cidades, etc. O LADO SUBJETIVO da realidade é também chamado de lado E NTITÁRIO porque é onde se encontram todas as entidades reais.
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EPISTEMOLOGIA – Do grego episteme, “conhecimento”. Teoria sobre o “conhecimento”, incluindo sua natureza, sua origem, sua justificação, seus tipos, etc. ESFERA DE SOBERANIA – Ou Soberania Modal . A expressão inglesa Sphere Sovereignty traduz a expressão de Kuyper, Soevereiniteit in eigen kring , que significava que as várias esferas distintas da autoridade humana, como a família, a igreja, a escola, e nos negócios, tem cada uma a sua própria responsabilidade e poder decisório, que não pode ser usurpado por aqueles que tem autoridade em outra esfera, como, por exemplo, o estado. Dooyeweerd retém esse sentido kuyperiano original, mas estende o seu uso para significar também a IRREDUTIBILIDADE das esferas modais, tornando assim o princípio das “esferas de soberania” um princípio cosmológico. O princípio sociológico de Kuyper estaria na verdade baseado no princípio ontológico, desde que cada uma das esferas sociais distinguidas por Kuyper é qualificada por uma diferente modalidade na escala de Dooyeweerd. ESFERA MODAL – Um equivalente de MODALIDADE ou de L AW-SPHERE. Esse último termo destaca o fato de que cada esfera modal tem suas próprias leis peculiares. ESTRUTURA DE INDIVIDUALIDADE – Nome geral para a ordem normativa (lawful) caracterísica de cada coisa concreta, na forma como elas são dadas na criação. Também chamada de IDIONOMIA. Há uma estrutura de individualidade para o estado, para o casamento, para as obras de arte, para mosquitos, para o cloreto de sódio, etc. A estrutura de individualidade, embora sendo uma estrutura fundada nas leis cósmicas, não deve ser confundida com a ESTRUTURA MODAL. Uma análise teórica das modalidades é uma pré-condição indispensável para a análise de qualquer estrutura de individualidade. ESTRUTURA MODAL – A constelação peculiar, em qualquer modalidade específica, de todos os MOMENTOS DE SENTIDO (antecipatórios, retrocipatórios e nuclear). Contrasta com ESTRUTURA DE INDIVIDUALIDADE. ÉTICA – Nome para a décima quarta e penúltima modalidade, caracterizada de acordo com Dooyeweerd pelo “amor nos relacionamentos temporais”. Este senso técnico restrito da palavra deve ser cuidadosamente distinto do sentido mais comum, segundo o qual o ético é equivalente ao NORMATIVO. Um sinônimo seria “moral”. EXPERIÊNCIA – A totalidade do funcionamento do ser humano. Como tal, o termo tem uma aplicação bastante ampla no uso técnico de Dooyeweerd, abrangendo todas as funções modais, incluindo por exemplo a numérica, a espacial e a física. Todas as modalidades são modos da experiência humana. EXPERIÊNCIA INGÊNUA – Experiência humana na forma original, enquanto ainda não tratada “teoreticamente”. O termo “ingênua” não tem sentido pejorativo de “iludida”, ou de “ignorante”. Outros termos para descrever essa condição original são “ordinária” ou “comum”. O termo tem certa equivalência com a expressão “senso comum”, mas essa última tem sido vista em teoria social de um modo pejorativo que contradiz o sentido intencionado por Dooyeweerd. Ele se esforçou para enfatizar que o pensamento teórico está fundamentado sobre a experiência ordinária ou ingênua, não havendo possibilidade de superá-la; ao invés disso o pensamento teórico deve preservar o valor dessa experiência e não violá-la.
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FILOSOFIA – Na terminologia sistemática de Dooyeweerd, o sentido preciso de “filosofia” é o de CIÊNCIA E NCICLOPÉDICA, isto é, sua tarefa básica é a investigação teórica da integração geral das várias disciplinas científicas e seus campos de inquirição. Dooyeweerd também usa o termo em um sentido mais inclusivo, especialmente quando ele aponta que toda filosofia é enraizada em um compromisso religioso pré-teorético, e que algumas concepções filosóficas, por seu turno, se encontram na raiz de toda erudição científica específica. FILOSOFIA IMANENTISTA – Um nome para todas as filosofias não-cristãs, que procuram o fundamento e o ponto de integração da realidade dentro da ordem criada. O Cristianismo, que reconhece um criador transcendente acima de todas as coisas, pode se abster de absolutizar um dos aspectos da experiência humana. Já a filosofia imanentista, ao negar a transcendência do Criador, é obrigada a absolutizar alguma característica ou aspecto da própria criação, para que este funcione como o ponto de integração da realidade. FUNÇÃO BASE – ou “função-fundante”, é a mais baixa das duas modalidades que caracterizam certos tipos de todos estruturais. A outra é chamada de “FUNÇÃO -GUIA” ou “funçãodestino”. A função base de uma família, por exemplo, é biótica. FUNÇÃO DE DESTINAÇÃO – No inglês, “function of destination”. Tradução do termo holandês bestemmingsfunctie, referindo-se à função que caracteriza primariamente um todo estrutural. Também chamada “função qualificante” ou “end -function” (função terminal). Em certos casos, havendo duas funções qualificantes principais, a função mais inferior da escala modal é chamada de FUNÇÃO BASE (Founding Function). O estado, por exemplo, tem como função de destinação a esfera jurídica, e sua função base é histórica. FUNÇÃO GUIA – A mais alta função subjetiva de um todo estrutural (p. ex., uma pedra, um animal, um empreendimento financeiro, ou um estado). Exceto no caso do homem, também se diz que esta função qualifica o todo estrutural. Ela é chamada função guia porque ela “guia” ou “lidera” as funções que compõe seu substrato modal. Por exemplo: a função guia de uma planta é biótica. A função física de uma planta (como é estudada, por exemplo, na bioquímica) é diferente do funcionamento de outros objetos físicos não vivos, porque na planta esse funcionamento é controlado pela função biótica. Dooyeweerd também chama essa função de “leading function”. GEGENSTAND – Um termo de origem alemã para “objeto”, usado por Dooyeweerd como um termo técnico para uma modalidade quando esta é abstraída da coerência temporal e colocada em oposição à esfera analítica na atitude teórica de pensamento, estabelecendo assim a “relação gegenstand” (gegenstand-relation). “Gegenstand” é pois o termo técnico preciso para o objeto da CIÊNCIA, enquanto o termo “objeto” em si mesmo é reservado, em Dooyeweerd, para descrever as coisas como são percebidas na experiência ordinária ou ingênua. HUMANISMO – Dooyeweerd usa essa palavra num sentido religioso pejorativo que não é usual nem no inglês, nem no português. Ela denota para ele a filosofia não-cristã antnropocêntrica do período moderno e contemporâneo. O humanismo deve ser distinguido do paganismo por ser pós-cristão, incorporando assim muitas características de um cristianismo secularizado. IDÉIA COSMONÔMICA – Equivalente na língua inglesa para o termo holandês W ETSIDEE, que significa “idéia de lei”, ou “idéia legis”. O termo teria sido sugerido a Dooyeweerd por um
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dos tradutores da versão inglesa. Equivalentes ocasionais do termo são “idéia -fundamento transcendental” ( transcendental ground Idea) ou “idéia- base transcendental” (transcendental basic Idea). Refere-se às idéias fundamentais de uma cosmovisão ou filosofia a respeito do que seria o princípio ordenador do cosmo. O termo C OSMONOMIA significa a estrutura transcendental de leis que Deus estabeleceu para ordenar o cosmo.
IDÉIAS TRANSCENDENTAIS – Dooyeweerd identificou três problemas transcendentais básicos em sua crítica do pensamento teórico. Esses problemas, que Kant já havia apontado anteriormente sem compreender sua importância, indicariam as três condições necessárias e incontornáveis de todo pensamento teórico. São elas: (1) a idéia de totalidade do sentido cósmico; (2) a idéia de PONTO ARQUIMEDIANO do pensamento teórico; (3) a idéia de ARCHÉ ou da Origem do sentido cósmico. Essas três idéias juntas compõe a IDÉIA COSMONÔMICA de qualquer filosofia. Segundo Dooyeweerd, as três idéias tem um caráter hipotético: elas não são sempre as mesmas, variando conforme o MOTIVO-BASE religioso que domina certa filosofia. No caso do pensamento cristão, a partir do motivo base Criação-Queda-Redenção, a idéia cosmonômica da filosofia é (1) a noção de unidade na diversidade do sentido cósmico, (2) o coração como o ponto arquimediano do pensamento e (3) Deus como a Origem absoluta do sentido cósmico. Essas “três” idéias são na verdade uma única idéia-base transcendental . INTERLIGAÇÕES – de I NTERLINKAGES. Termo para relações interindividuais e intercomunais, como realidades opostas às relações restantes, que ocorrem dentro de estruturas sociais específicas. O termo inglês foi cunhado para traduzir o holandês maatschapsverhoudingen. IRREDUTIBILIDADE – Incapacidade de redução teorética. Esta é a forma negativa de se referir à distintividade ou singularidade das coisas que nós encontramos na criação e que o pensamento teórico deve respeitar. Desde de que cada coisa tem sua natureza e caráter peculiar, como criatura de Deus, ela não pode ser compreendida em termos de categorias estranhas a si mesma. LADO-DE-LEI – Ou LAW-SIDE. O cosmo criado, para Dooyeweerd, tem dois “lados” correlativos: um lado de lei, ou lado “cosmonômico” e um lado “entitário”, ou lado subjetivo (S UBJECT-SIDE). O primeiro é simplesmente o agregado das leis ou ordenanças de Deus para a criação. O último é a totalidade da realidade criada, que está sujeita a essas leis. É importante notar que o lado de lei não foi afetado pela queda, sendo sempre universalmente válido. LADO SIGNIFICANTE – ou MEANING SIDE; sinônimo de MODALIDADE. LADO SUBJETIVO – ou lado “entitário”. O correlato de LADO DE LEI. Desde que o pecado é a desobediência à LEI, nós encontramos o pecado apenas no LADO SUBJETIVO do cosmos. Outra característica do lado subjetivo é que apenas nele podemos encontrar as individualidades, ou entidades individuais. LEI – A noção de lei criacional é central à filosofia de Dooyeweeerd. Tudo na criação é sujeito à lei de Deus, e a lei é o limite entre Deus e a criação. Essa lei se diferencia no tempo em diversas Leis que governam as esferas modais (leis modais) e as estruturas de individualidade (as idionomias). Sinônimos escriturísticos para Lei são “ordenança”, “decreto”, “mandamento”, “palavra”, etc. Dooyeweerd enfatiza que a Lei não está em oposição à liberdade; antes é a condição para a verdadeira liberdade, porque é a Lei que habilita as diversas funções nas quais o homem pode funcionar. As leis lógicas, por
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exemplo, não são “limites” para o pensamento, num sentido negativo, mas os próprios fundamentos que possibilitam o pensamento.
MODALIDADE – Uma das quinze formas fundamentais do ser distinguidas por Dooyeweerd. Como modos de ser, elas são nitidamente distintas das coisas concretas às quais elas pertencem. Alguns sinônimos são ASPECTOS, FUNÇÕES, Law-Spheres, Modi, LADOS SIGNIFICANTES, ESFERAS MODAIS. Ver também MODUS QUO. MODUS QUO – Termo latino para “modo no qual”, ou “modo de”. Dooyeweerd às vezes usa essa frase para destacar o fato de que uma modalidade é um modo ou forma em que uma coisa existe ou funciona, em não uma coisa em si mesma. MOMENTO – Elemento, fragmento ou aspecto, como em “momento de verdade”, ou MOMENTO DE SENTIDO. MOMENTO DE SENTIDO – Um sinônimo para ANALOGIA, referindo-se a ANTECIPAÇÕES, RETROCIPAÇÕES e ao NÚCLEO DE SENTIDO. Ver também MOMENTO e SIGNIFICADO. MOTIVO-BASE – No holandês, GRONDMOTIEF, usado por Dooyeweerd no sentido de motivação fundamental, força direcionadora. Ele distingue quatro motivos-base fundamentais, os três primeiros dualistas e o último integral: o da Matéria/Forma, que dominou a filosofia grega pagã; o da Natureza/Graça, que subjaz ao pensamento cristão de síntese no período medieval; o da Natureza/Liberdade, que moldou as filosofias dos tempos modernos; e finalmente, o único integral: o motivo-base bíblico triádico da criação-queda-redenção, que está na raiz de uma filosofia radical e integralmente bíblica. [Para entender melhor esses motivos, cf. “A morte da razão”, de Francis Schaeffer.] NORMAS / NORMATIVAS – Leis pós-psíquicas, isto é, as leis modais que se incluem da esfera analítica até a esfera pística. Essas leis são normas porque elas precisam sofrer POSITIVIZAÇÃO, podendo ser violadas pelo homem. Isso distingue as normas das “leis naturais”, ou leis sub-analíticas, que são obedecidas involuntariamente (p. ex., no processo digestivo). NÚCLEO DE SENTIDO – Sinônimo de “momento nuclear”, também chamado por Dooyeweerd de MEANING-KERNEL. OBJETO – Alguma coisa qualificada por uma função objetiva, e assim correlacionada a uma função subjetiva. Uma obra de arte, por exemplo, é qualificada por sua correlação à função humana subjetiva da apreciação estética. Similarmente, os elementos de um sacramento são objetos písticos. ONTOLOGIA – Do grego ontos, “ser”. Estudo sobre a natureza da realidade e suas estruturas; do “ser” como se apresenta a nós. Difere da abordagem científica por não focalizar esferas ou entidades específicas, mas o todo da realidade e de suas estruturas. PÍSTICO – O nome da décima quinta e mais alta modalidade, derivado de pístis, a palavra grega neotestamentária para “fé”. Todos os homens tem fé no sentido de lealdade última, seja ao Deus das Escrituras ou a algum ídolo. Dooyeweerd é cuidadoso em distinguir a modalidade pística da religião, que é central e subjaz a todas as funções humanas, não apenas sua fé.
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Alguns discípulos de Dooyeweerd adotaram os termos “confessional” ou “certitudinal” ou “fiduciária” (do latim Fides) como sinônimos de “pístico”.
PONTO ARQUIMEDIANO – Um lugar seguro para permanecer; um ponto vantajoso a partir do qual todas as coisas podem ser vistas na perspectiva correta; um “mirante” para enxergar uma cidade por inteiro. Para Dooyeweerd essa é a posição que o crente tem “em Cristo”. O termo vem da história do cientista grego Arquimedes, que descobriu o princípio da alavanca, e depois disse: “dê-me um ponto de apoio, e eu moverei o mundo”. O ponto arquimediano de alguém é aquela dimensão da existência considerada a mais adequada para essa visão de conjunto da realidade. Naturalmente, então, essa escolha depende de uma visão pré-teórica do que o homem é, e de como suas “dimensões” interagem, isto é, do autoconhecimento do homem. POSITIVAÇÃO – O termo inglês (positivation) foi cunhado para traduzir o holandês Positiveren, que significa tornar POSITIVO no sentido (2). Em um sentido geral o termo se refere à implementação responsável de todos os princípios normativos na vida humana, como incorporados, por exemplo, na legislação estatal, na política econômica, nas orientações éticas, etc. POSITIVO – (1) Na ciência, aquilo que é empírico, baseado na observação de fatos; (2) Na jurisprudência, aquilo que é válido em um dado tempo ou lugar. Lei positiva é a legislação que está em vigor em um dado país em um tempo particular; ela deve ser contrastada com os princípios da justiça, que requerem POSITIVAÇÃO. PRINCÍPIO DA ANTINOMIA EXCLUÍDA – Citado por Dooyeweerd em latim: P RINCIPIUM E XCLUSAE A NTINOMIAE . Norma geral da análise teórica, que proíbe toda confusão entre diferentes tipos de leis modais, tornando inválidos os conceitos que envolvem reducionismo intermodal. QUALIFICAÇÃO MODAL – A FUNÇÃO GUIA de uma coisa é aquela função que qualifica essa coisa no sentido de caracterizá-la. Nesse sentido dizemos que uma planta é qualificada bioticamente, e um estado é qualificado juridicamente. A função qualificante é também chamada de FUNÇÃO DE DESTINO. Em um sentido diferente, uma modalidade é “qualificada” por seu MOMENTO NUCLEAR. REDUCIONISMO – Reduzir alguma coisa a outra é dar uma explicação teórica da primeira coisa em termos da segunda coisa. Em um sentido pejorativo, significa fazer isso injustificavelmente, como quando a ética é explicada em termos de emoções, ou emoções em termos químicos. O reducionismo é aquilo que William James “ nada-mais-ismo”. A insistência de que a vida, por exemplo não é “nada mais” que a interação de átomos, ou que a experiência estética não é “nada mais” que a forma como o organismo se adapta ao meio ambiente, etc. A constante ênfase de Dooyeweerd na IRREDUTIBILIDADE e nas ESFERAS DE SOBERANIA mantém oposição sem descanso às muitas formas de reducionismo que prevalecem hoje, e um pedido por reconhecimento teorético da riqueza e diversidade da realidade criada. RELIGIÃO – Para Dooyeweerd religião não é uma área ou esfera da vida, mas o todo da vida. É serviço a Deus (ou a um ídolo) em cada domínio do empreendimento humano. Como tal ela deve ser claramente distinguida da fé religiosa, que é apenas uma das muitas ações e atitudes da existência humana. A religião é um assunto do CORAÇÃO, e assim orienta todas as funções humanas.
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RETROCIPAÇÃO – Uma característica em certa modalidade que se refere a uma esfera anterior na escala modal, como uma espécie de reminiscência ou “lembrança”, mantendo a qualificação modal do aspecto no qual se encontra. A “extensão” de um conceito, por exemplo, é um tipo de espaço lógico: “lembra” a esfera espacial, apontando para o seu núcleo de sentido, mas permanece com um sentido estritamente lógico. Ver também ANTECIPAÇÃO. REVELAÇÃO VERBAL – A revelação de Deus nas Escrituras, como distinta da revelação na criação. SENSITIVO – O nome que Dooyeweerd prefere para a sexta modalidade, que é qualificada pela sensação ou sentimento como seu momento nuclear. Anteriormente ele usou o termo “psíquico”, que chegou a considerar equivocado. Isso porque o que geralmente denominamos “psíquico” realmente transcende à sensitividade, descrevendo não uma dimensão apenas, mas uma dinâmica transmodal. SIGNIFICADO – Dooyeweerd usa o termo significado num sentido não-usual. Ele quer apontar com isso para o caráter referencial, não-auto-suficiente da realidade criada que, com isso, aponta para além de si mesma, em direção a Deus como Origem. Para ilustrar, podemos pensar num fenômeno interessante da física moderna: quando a teoria atômica surgiu, buscava-se aquele elemento básico da matéria que seria indivisível (“átomo” significa “indivisível”). Entretanto, os cientistas logo descobriram que o átomo poderia ser quebrado em partículas menores. E depois, descobriram-se partículas ainda menores. Assim, o átomo mais parece com um sistema de interações do que propriamente de uma “substância material” indivisível. Semelhantemente, a análise modal indica que cada esfera da experiência aponta para as outras, sucessivamente, e nenhuma existe “sozinha”, sem depender das outras. Assim, podemos dizer que a realidade não é uma “coisa” autoexistente, mas um “símbolo”, um reflexo, ou uma imagem de algo que É. Dooyeweerd enfatiza que a realidade é significado nesse sentido, e que, portanto, não é exato dizer que ela tem significado. “Significado” é a alternativa cristã para o concei to metafísico de SUBSTÃNCIA encontrado na filosofia imanentista. “Significado” se torna quase um sinônimo para “realidade”. Note que vários conceitos são formados a partir deste: “núcleo de sentido”, “lado significante”, “momento de sentido”, “plenitude de sentido” ou “totalidade do sentido cósmico”. SÍNTESE – A combinação, em um único conceito filosófico, de temas característicos tanto da filosofia pagã como da religião bíblica. É esta a característica da tradição intelectual cristã desde os tempos patrísticos, com a qual Dooyeweerd se esforça para fazer uma ruptura radical. SISTASIS – Do grego systasis, situação na qual as propriedades de algo estão reunidas numa totalidade coerente. A experiência ingênua ocorre de tal modo que a sistasis do sentido cósmico permanece intocada; o cosmo é percebido por nós sistaticamente. O oposto disso é a DISTÁSIS. SOCIAL – Nome da décima modalidade. O termo é insuficiente, desde que ele se refere nesse contexto apenas a uma faixa muito limitada dos fenômenos e relacionamentos comumente denominados como “sociais”, sendo restrito ao campo do “intercurso social” (a forma como Dooyeweerd circunscreve o momento nuclear do social). Isso inclui coisas como polidez, maneiras, e etiqueta, normas de relacionamento, funções e limites comunais, etc.
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SOCIEDADE INDIFERENCIADA – Um estágio subdesenvolvido (“fechado” ou “primitivo”) da cultura e civilização humana, no qual as esferas distintas da vida e responsabilidade humana (cúltica, jurídica, familiar, etc) ainda não se separaram claramente. Em tal sociedade, por exemplo, uma única pessoa pode ser um patriarca, cabeça de uma tribo ou clã e sacerdote ao mesmo tempo. Ver ABERTURA MODAL. SUJEITO – Usando em dois sentidos por Dooyeweerd: (1) como aquilo que se distingue do OBJETO; (2) como aquilo que se distingue da LEI. O primeiro sentido é quase equivalente ao uso comum, e o último não é usual podendo trazer alguma confusão. Desde que todas as coisas são “sujeitas” à LEI, objetos também são sujeitos no segundo sentido. No caso de entidades específicas, dizemos que elas se encontram no LADO SUBJETIVO da realidade ( subject side). Essas entidades são sujeitos até sua função terminal ( end-function), e daí para frente são objetos em relação a outras entidades com função terminal mais elevada na escala modal. SUBSTÂNCIA – No uso de Dooyeweerd: o conceito metafísico de uma estrutura subjacente nas entidades temporais que existe por si mesma e é auto-suficiente e auto-significante. Segundo Dooyeweerd, o conceito de substância teria sua origem n a “entificação” ou “coisificação” das funções modais, como se elas não fosse “modos” de ser, mas “essências metafísicas”. A idéia de substância introduz um dualismo entre o ente individual e a essência ou forma universal, uma vez que diversos entes particulares participam em graus variados da essência formal. Em oposição à noção de substância, Dooyeweerd apresentou o conceito de criação como SIGNIFICADO, que nega a qualquer entidade uma “essência” auto-significante. SUBSTRATO – O agregado das modalidades que precedem um dado aspecto na escala modal. Os aspectos numérico, espacial, cinético e físico, por exemplo, juntos formam o substrato do aspecto biótico. Eles são também o fundamento necessário sobre o qual o aspecto biótico repousa, e sem os quais ele não pode existir. Ver também SUPERSTRATO. SUPERESTRATO – O agregado das modalidades que se seguem a um determinado aspecto na escala modal. Por exemplo, os aspectos pístico, ético, jurídico e estético juntos constituem o superstrato do aspecto econômico. TÉCNICO – Um sinônimo para HISTÓRICO ou formativo num sentido modal. TEMPO – Em Dooyeweerd, um princípio ontológico geral de continuidade intermodal, com uma aplicação muito mais ampla que nossa noção comum de tempo, que é equacionada por ele com a expressão física desse tempo cósmico geral. Ele não está assim, coordenado com o espaço compondo duas “dimensões” de tipo semelhante. Todas as coisas criadas, com exceção do CORAÇÃO do homem, estão no tempo. TIPO RADICAL – A classe de todas as estruturas de individualidade com a mesma QUALIFICAÇÃO MODAL. Por exemplo: animais, empresas e obras de arte são grupos qualificados, respectivamente, pelas esferas sensória, econômica e estética. TRANSCENDENTAL – Um termo técnico tirado da filosofia de Kant, denotando as condições estruturais A PRIORI que tornam a experiência humana (e, especialmente, o conhecimento humano e o pensamento teórico) possível. Como tal o conceito deve ser claramente
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distinguido do termo Transcendente, que significa simplesmente “aquilo que vai além”, ou que “transcende”.
UNIVERSALIDADE MODAL – A contrapartida de ESFERA DE SOBERANIA. É o princípio segundo o qual todas as modalidades estão intimamente conectadas umas com as outras em uma coerência inquebrável. Assim como uma esfera de soberania ressalta a distintividade e irredutibilidade dos aspectos modais, assim a universalidade modal enfatiza que todas as coisas dependem de outras para o seu significado. Isso é evidenciado pelas ANALOGIAS na ESTRUTURA MODAL de cada uma das MODALIDADES. WETSIDEE – O termo holandês original para IDÉIA COSMONÔMICA, literalmente “Idéia -deLei”. A filosofia de Dooyeweerd é conhecida na Holanda como a Wijsbegeerte der Wetsidee (filosofia da idéia de lei). O nome deriva do lugar central da LEI criacional no pensamento de Dooyeweerd.
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