LA VIE: L´EXPÉRIENCE ET LA SCIENCE Dits et écrits II , pp. 1583-1595
1 - Lógicos x historiadores da ciência. Dentre estes, é singular o trabalho de G. Canguilhem. Este exerceu grande função sobre todos aqueles que tiveram uma formação filosófica na França, na geração à qual pertenceu Foucault. 2 – Mesmo resguardando-se voluntariamente a um pequeno domínio da história da ciência, G. C. viu-se presente em meios intelectuais nos quais jamais quis figurar. 3 – Separação entre uma filosofia da experiência, do sujeito, do sentido (Merleau-Ponty, Sartre; Bergson, Lachelier, Biran) x uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito (Cavaillès, Bachelard, Koyré, Canguilhem; Poincaré, Couturat, Comte). Ambas as vertentes filosóficas tiveram nascimento na leitura por Husserl das Meditações cartesianas. A primeira a radicalizou na direção do sujeito e encontrou-se com Heidegger ( A transcendência do Ego); a segunda concentrou-se nos problemas fundadores de seu pensamento, aqueles do formalismo e do intuicionismo Método axiomático e A formação da teoria dos conjuntos ). Pensamentos até então na ( Método
França heterogêneos. 4 – A segunda, mais reservada à especulação e aparentemente mais afastada das questões políticas imediatas, foi aquela que, durante a guerra, combateu o exército alemão de maneira mais direta “como se a questão do fundamento da racionalidade não pudesse ser dissociada da interrogação sobre as condições atuais de sua existência” (p.
1584). O que se deu também nos anos 1960 e além. – A “história das ciências” opera com a questão da história e da geografia do 5 – A
pensamento, suas condições de exercício, seu momento, seu lugar e sua atualidade, o que remete ao texto célebre de Kant Was ist Aufklärung . 6 – A Aufklärung mostrou-se a figura determinante de uma época, a nossa, em que a razão se emancipou perante o mundo, época que deve então colocar isso como problema e perguntar perguntar pelas suas suas condições de possibilidade. – “A história se torna então um dos problemas maiores da filosofia” (p. 1585). 7 – “A
A interrogação pela Aufklärung tomou caminhos muito distantes na Alemanha (Feuerbach, Marx, Nietzsche, Max Weber, Lukács, Escola de Frankfurt), na França e nos países anglo-saxões. anglo-saxões.
8 – Apesar de as obras de Cavaillès, Bachelard, Koyré e Canguilhem recaírem sobre domínios regionais da história das ciências, e cronologicamente bem determinados, se desenvolvem como lugares de elaboração filosófica importantes, pois põem em questão nos diferentes campos em que se desempenham a questão da Aufklärung em relação com a filosofia contemporânea.
9 – O correlato à história das ciências francesa na Alemanha é a Escola de Frankfurt, apesar das diferenças de estilo e dos domínios tratados, uns assombrados pela lembrança de Descartes, outros pela de Lutero: “Na história das ciência s
na Franca,
como na Teoria Crítica alemã, o que se trata de examinar, no fundo, é uma razão cuja autonomia de estrutura traz consigo a história dos dogmatismos e dos despotismos – uma razão, por consequência, que só possui o efeito de libertação sob a condição de que ela chegue a libertar- se de si mesma” (p. 1586). 10 – Ambivalência da razão que pode agir como luz e como despotismo. 11 – Lugar dado por Canguilhem à história das ciências nos debates contemporâneos. 12 – Relação entre a história das ciências e a filosofia. 13 – Pontos essenciais do problema: 14 – 1) O tema da descontinuidade: formação de certas ciências “do nada”, sem parentesco com saberes anteriores, com um progresso extremamente rápido. É necessário pesquisar a ordem do verdadeiro e do falso: “O
erro não é eliminado pela
força surda de uma verdade que pouco a pouco sairia da sombra, mas pela formação de uma nova forma de „dizer a verdade‟” (p. 1589).
15 – 2) “História do discurso verídico” é sinônimo de método recorrente. “Em suma, a história das descontinuidades não é adquirida de uma vez por todas; ela é „impermanente‟ por si mesma, ela é descontínua; ela deve incessantemente ser retomada novamente” (p. 1589)
16 – Fazer história da ciência é fazer ciência, e vice-versa. 17 – O CONCEITO COMO ALGO PROVISÓRIO Para tanto, deve-se tomar o ponto de v ista da epistemologia: “os processos de eliminação e de seleção dos enunciados, das teorias, dos objetos, se fazem a cada instante em função de uma certa norma; e esta não pode ser identificada a uma estrutura teórica ou a um paradigma atual, pois a verdade científica de hoje não é senão um episódio dela; digamos, no máximo: o termo provisório” (p. 1590).
18 – 3) O problema das ciências da vida (biologia e medicina) frente aos desenvolvimentos de outras ciências. “Pudéramos crer, com efeito, que no fim do século XVIII, entre uma fisiologia que estudava os fenômenos da vida e uma patologia votada à análise das doenças, poderíamos encontrar o elemento comum que permitiria pensar como uma unidade os processos normais e os que marcam as modificações mórbidas. De Bichat a Claude Bernard, da análise das febres à patologia do fígado e de suas funções, um imenso domínio se teria aberto o qual parecia prometer a unidade de uma fisio-patologia e um acesso à compreensão dos fenômenos mórbidos a partir da análise dos processos normais. Do organismo são esperava-se que desse o quadro geral em que os fenômenos patológicos se enraizassem e tomassem, por um tempo, sua forma própria. Essa patologia sobre fundo de normalidade caracterizou, ao que parece, durante muito tempo, todo o pensamento médico” (p. 1591).
19 – “Mas há no conhecimento da vida fenômenos que a mantém à distância de todo o conhecimento que pode se referir aos domínios físico-químicos; isso porque ela só pôde encontrar o princípio de seu desenvolvimento na interrogação sobre os fenômenos patológicos. Foi impossível constituir uma ciência do vivo sem que fosse levado em conta, como essencial a seu objeto, a possibilidade da doença, da morte, da monstruosidade, da anomalia e do erro. Podemos conhecer, com uma fineza cada vez maior, os mecanismos físico-químicos que lhes asseguram ” (p. 1591). 20 – “... se o processo de sua constituição [das ciências da vida, C.S.] se fez pelo esclarecimento dos mecanismos físicos e químicos, pela constituição de domínios como a química das células e das moléculas, pela utilização de modelos matemáticos, etc., inversamente, ele só pôde se desenvolver na medida em que era incessantemente reiniciado como um desafio da especificidade da doença e do limiar que ela marca perante todos os seres naturais. O que não quer dizer que o vitalismo seja verdadeiro, ele que fez circular tantas imagens e perpetuar tantos mitos. O que também não quer dizer que ele deve constituir a invencível filosofia dos biólogos, a qual é tão frequentemente enraizada nas filosofias menos rigorosas. Mas isso quer dizer que ele possuiu, e ainda possui, sem dúvida, na história da biologia um papel essencial como „indicador‟. E de duas maneiras:
indicador teórico de problemas a resolver (a saber, de
maneira geral, o que constitui a originalidade da vida sem que ela constitua de modo algum um império independente na natureza); indicador crítico das reduções a evitar (a saber, todas aquelas que tendem a ignorar que as ciências da vida não podem se passar de uma certa posição de valor que marca a conservação, a regulação, a adaptação, a
reprodução etc.); „uma exigência, mais do que um método, uma moral, mais do que uma teoria‟” (p. 1592).
21 – 4) O problema do “conhecimento” é colocado essencialmente pelas ciências da vida. 22 – O ELEMENTO QUE CONSTITUI A VIDA “A vida e a morte não são nunca em si mesmos problemas de física, mesmo
quando o físico, em seu trabalho, arrisca a sua própria vida, ou a dos outros; trata-se, para ele, de uma questão de moral, ou de política, não de uma questão científica. Como o diz A. Wolff, letal ou não, uma mutação genética não é para o físico nem mais nem menos do que a substituição de uma base nucleica por outra. Mas, nessa diferença, o biólogo reconhece a marca de seu próprio objeto. E de um tipo de objeto ao qual ele mesmo pertence, porque ele vive e porque essa natureza do vivente ele a manifesta, ele a exerce, ele a desenvolve numa atividade de conhecimento que é preciso compreender como „método
general pela resolução direta ou indireta das tensões entre o homem e o
meio‟. O biólogo tem de apreender o que faz da vida um objeto específico de
conhecimento e por isso mesmo o que faz com que haja, no cerne dos vivos, e pelo fato de que eles são vivos, seres suscetíveis de conhecer, e de conhecer no fim das contas a própria vida”.
23 – “A fenomenologia perguntou ao „viv ido‟ o sentido originário de todo ato de conhecimento. Mas não poderíamos ou não seria preciso buscá-lo do lado do próprio „vivente‟?”
24 – “G. Canguilhem quer encontrar, pela elucidação do saber sobre a vida e por conceitos que articulam esse saber, o que é o seu conceito na vida. Quer dizer, o conceito como sendo um dos modos dessa informação que todo vivente lança sobre seu meio. Que o homem vive num meio conceitualmente arquiteturado não prove que ele seja desviado da vida por algum esquecimento ou que um drama histórico dela o separe; mas apenas que ele vive de uma certa maneira, que ele possui, com relação a seu meio, uma relação tal que ele não tem sobre ele um ponto de vista fixo, que ele é móvel sobre um território indefinido ou muito largamente definido, que ele tem de se deslocar para recolher informações, que ele tem de mover as coisas umas com relação às outras para torná-las úteis. Formar conceitos é uma maneira de viver e não de matar a vida; é uma maneira de viver numa relativa mobilidade e não uma tentativa para imobilizar a vida;
é manifestar, em meio aos milhares de viventes que informam seu
meio e se informam a partir dele, uma inovação que se julgará como se quiser, ínfima ou considerável: um tipo bem particular de informação” (pp. 1592 -1593).
25 – “Daí a importância que G. Canguilhem atribui ao encontro, nas ciências da vida, com a velha questão do normal e do patológico com o conjunto das noções que a biologia, no curso das últimas décadas, emprestou à teoria da informação: códigos, mensagens, mensageiros etc. Desse ponto de vista, O normal e o patológico , do qual uma parte foi escrita em 1943, e outra parte no período de 1963-1966, constitui sem nenhuma dúvida a obra mais significativa de G. Canguilhem. Aí vemos como o problema da especificidade da vida se encontrou recentemente inflectido numa direção em que se encontra alguns problemas que cremos pertencer propriamente às formas mais desenvolvidas da evolução” (p. 1593).
26 – “No centro desses problemas, há aquele do erro. Pois, ao nível mais fundamental da vida, os jogos do código e da descodificação dão lugar a uma álea que, antes de ser doença, déficit ou monstruosidade, é algo como uma perturbação no sistema informativo, alguma coisa como um “mal -entendido”. No limite, a vida – daí
seu caráter radical – é aquilo que é capaz de errar. E é talvez nesse dado ou antes nessa eventualidade fundamental que é preciso dar-se conta das mutações e dos processos evolutivos que elas induzem. Ela que igualmente é preciso interrogar sobre esse erro singular, mas hereditário, que fez com que a vida culminasse com o homem num vivente que não se encontra jamais totalmente em seu lugar, num vivente que é votada a „errar‟ e a „se enganar‟” (p. 1593).
27 – “E se admitirmos que o conceito é a resposta que a própria vida deu a essa álea, é preciso convir que o erro é a raiz do que faz o pensamento humano e sua história.
A oposição do verdadeiro e do falso, os valores que se empresta a um e a
outro, os efeitos de poder que as diferentes sociedades e as diferentes instituições ligam a essa divisão, tudo isso talvez não seja mais do que a resposta mais tardia a essa possibilidade de erro intrínseco à vida. Se a história das ciências é descontínua, quer dizer, se só se pode analisá-la como uma série de „correções‟, como uma distribuição nova que nunca libera enfim e para sempre o momento terminal da verdade, é porque o „erro‟ constitui não o
esquecimento ou o retardamento do cumprimento da promessa,
mas a dimensão própria à vida dos homens e indispensável ao tempo da espécie” (p.
1594). 28 – “Nietzsche dizia da verdade que era a mais profunda mentira. Canguilhem diria talvez, ele que está longe e próximo ao mesmo tempo de Nietzsche, que ela é,
sobre o enorme calendário da vida, o erro mais recente; ou, mais exatamente, ele diria que a divisão verdadeiro-falso, assim como o valor atribuído à verdade, constituem a mais singular maneira de viver que pôde inventar uma vida que, do fundo de sua origem, trazia em si a eventualidade do erro. O erro é para Canguilhem a álea permanente em torno da qual se envolve a história da vida e o devir dos homens. É essa noção de erro que lhe permite ligar o que ele sabe da biologia e a maneira da qual ele lhe faz a história, sem que tenha jamais querido, como se fazia no tempo do evolucionismo, deduzir esta daquela. É esta que lhe permite marcar a relação entre vida e conhecimento da vida e seguir aí, como um fio vermelho, a presença do valor e da norma” (p. 1594).
29 – “Esse historiador das racionalidades, ele próprio tão „racionalista‟, é um filósofo do erro; quero dizer que é a partir do erro que ele põe os problemas filosóficos, digamos mais exatamente, o problema da verdade e da vida. Tocamos aí sem dúvida num dos acontecimentos fundamentais na história da filosofia moderna: se a grande ruptura cartesiana pôs a questão das relações entre verdade e sujeito, o século XVIII introduziu, quanto às relações da verdade e da vida, uma série de questões cuja Crítica do juízo
e a Fenomenologia do espírito foram as primeiras grandes formulações. E,
desde esse momento, foi uma das questões da discussão filosófica: será que a consciência da vida deve ser considerada como nada mais do que uma das regiões que relevam da questão geral da verdade, do sujeito e do conhecimento? Ou será que ela obriga a colocar de outro modo essa questão? Será que toda a teoria do sujeito não deve ser reformulada, desde o momento em que o conhecimento, ao invés de se abrir à verdade do mundo, se enraíza nos ‘erros’ da vida?” (p. 1595).
30 – “Compreende-se por que o pensamento de G. Canguilhem, seu trabalho de historiador e de filósofo, pôde ter uma importância tão decisiva na França para todos aqueles que, a partir de pontos de vista tão diferentes, tentaram repensar a questão do sujeito. A fenomenologia poderia introduzir, no campo da análise, o corpo, a sexualidade, a morte, o mundo percebido; o Cogito então permaneceria central; nem a racionalidade da ciência, nem a especificidade das ciências da vida poderiam comprometer o seu papel fundamental. É a essa filosofia do sentido, do sujeito e do vivido que G. Canguilhem opôs uma filosofia do erro, do conceito do vivente, como uma outra maneira de aproximar- se da noção de vida” (p. 1595).