NOVA HISTÓRIA
Jacques
Le Goff
O NASCIMENTO , DO PURGATORIO
Jacques Le Goff
o NASCIMENTO , DO PURGATORIO 2~ edição
1995
EDITORIAL ESTAMPA
o Purgatório,
que grande coisa!'
SANTA CATARINA DE GÉNOVA
o
Purgatório ultrapassa em poesia o céu e o inferno, porquanto representa um futuro que falta aos dois primeiros.
CHATEAUBRIAND
FICHA TÉCNICA: Título do original: La Naissance du Purgatoire Tradução: Maria Fernanda Gonçalves de Azevedo Capa: José Antunes Ilustração: A Ascensão para o Paraíso Celestial (pormenor), de Hieronymus Bosch, Veneza, Palazzo DucaJe. l~ edição: Editorial Estampa, 1993 Composição: Interouro, Lda, Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n? 64058/93 ISBN 972-33-0884-3 Copyright: © Editions Gallimard, 1981 © Editorial Estampa, Lda., Lisboa, para a língua portuguesa
ÍNDICE
o terceiro lugar............................................................................ O Purgatório e o que ele põe em jogo..................................... Antes do Purgatório O espaço - é bom pensar nele................................................. Lógica e génese do Purgatório Pensar o intermédio................................................................ As imagens penais: o fogo Solidariedades: os vivos e os mortos O processo do Purgatório............ Teologia e cultura popular...................................... Notas
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PARTE I O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO
I - Os imaginários antigos
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As três vias hindus.................................................................. No Irão: o fogo e a ponte.. No Egipto: o imaginário infernal........ A descida aos infernos na Grécia e em Roma......... Uma filosofia da reencarnação: Platão.................................... Um precursor: Eneias nos Infernos Gilgamesh nos infernos........................................................... Um além neutro e tenebroso: o shéo/ judaico.. As visões apocalípticas judaico-cristãs..................................... Uma fonte: o Apocalipse de Paulo................... Os judeus descobrem um além intermédio............................... 9
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o
Purgatório cristão estará contido em embrião na Sagrada Escritura? . A descida do Cristo aos Infernos . Orações pelos mortos . Um lugar de consolo: o «refrigerium» . A primeira imaginação de um Purgatório: a visão de Perpétua Notas .
11 - Os pais do Purgatório . Em -:'.l~xa~dria: d?is gregos «fundadores» do Purgatório . O cnsnamsmo latino: desenvolvimentos e indecisões do além. O verdadeiro pai do Purgatório: Agostinho . A morte de Mónica: orai por ela . Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento para aqueles que não são inteiramente bons . Agostinho e os espectros . O fogo purgatório e a escatologia de Agostinho . Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles . Hist?~as do .Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande, último paI do Purgatório . Notas . .....................................................
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111 - A.1It~ ~dade Média. Estagnacão doutrinária e empolamento VlSlonarlO
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O além agostiniano de três espanhóis Outros 'além' «bárbaros» . Na Irlanda
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Na Gália Na Germânia Na Grã-Bretanha
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Indiferença e tradicionalismo carolíngios e pós-carolíngios O além e a heresia A série visionária: as viagens pelo além
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Heranças
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O «fundador» das visões medievais do além: Bêde
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A visão de Drythelm: um lugar reservado à purgação Um sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti Politização do além: a visão de Carlos, o Gordo A liturgia: perto e longe do Purgatório A celebração dos mortos: Cluny Notas ..................................................................................... 10
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PARTE 11 O SÉCULO XII: O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO . .
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IV - O fogo purgatório . No início do século XII: aquisições e indecisões . Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis . O fogo: no meio monástico . Entre os teólogos urbanos . Na literatura vernácula . Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos tempos derradeiros . Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor . Um cisterciense: S. Bernardo . Um monge canonista: Graciano de Bolonha . Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo . Testemunhos menores ····· ·..·· ·· Elaborações parisienses . Notas .
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V - «Locus Purgatorius»:
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Entre 1170 e 1180: autores e datas . Um falsário do Purgatório . Os primeiros a passarem pelo Purgatório: S. Bernardo . Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e Simão de Tournai . A Primavera parisiense e o Verão cisterciense . O Purgatório e a luta contra a heresia . O atraso dos canonistas . Cerca de 1200: o Purgatório instala-se .
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O século da grande explosão Notas
um lugar para a purgapão
Uma carta e um sermão de Inocêncio Ill Purgatório e confissão: Thomas de Chobham O antigo e o novo vocabulário do além
Notas
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VI - O Purgatório entre a Sicília e a Irlanda Visões monásticas: as aparições Quatro viagens monásticas ao outro mundo
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1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent . 2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati . 3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal . 4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick»
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A tentativa siciliana A «infernização» do Purgatório Notas
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VII - A lógica do Purgatório . O além e os progressos da justiça . Novas concepções do pecado e da penitência . Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais . De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores . Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descentrado . Mutações nos quadros mentais: o número . O espaço e o tempo . A rendição ao mundo e ao momento da morte individual.. . Notas .
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e os seus limites
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PARTE III O TRIUNFO DO PURGATÓRIO VIII - O ordenamento escolástico . Um triunfo atenuado ; . O Purgatório, continuação da penitência terrena: Guillaume d'Auvergne . O Purgatório e os mestres mendicantes . Entre os franciscanos . 1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além: Alexandre de Hales. . 2B. oaventura e os fi'tns u'I'ttmos ao do b omem . Entre os dominicanos . 1. A depurapão escolástica do Purgatório: Alberto, o Grande. 2. Um manual de vulgarização teológica . 3. O Purgatório no centro da intelectualidade: Tomás de Aquino e o regresso do homem a Deus . A recusa do Purgatório . 1. Os hereges . 2. Os Gregos . A primeira definição pontifical do Purgatório (1254) . O segundo concílio de Lyon e o Purgatório (1274) . O Purgatório e as mentalidades: Oriente e Ocidente . Notas . 12
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IX - O triunfo social: a pastoral e o Purgatório O tempo contado Novas viagens pelo além O Purgatório celebrado: os «exempla» Um precursor: Jacques de Vitry Dois grandes divulgadores do Purgatório 1. O cisterciense Cesário de Heisterbach O usurário de Liêge: Purgatório e capitalismo O Purgatório é a esperança 2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infernizapâo» Purgatório Dominicanos no Purgatório O Purgatório e as beguinas O Purgatório e a política O Purgatório na «lenda dourada» Uma santa do Purgatório: Lutgarda Os vivos e os mortos: testamentos e obituários O Purgatório em língua vulgar: o caso francês , As indulgências para o Purgatório: o Jubileu de 1300 A persistente hostilidade ao Purgatório Notas
X - O triunfo poético: a «Divina Comédia» O sistema dantesco do Purgatório A montanha da purgação A lei do progresso O Purgatório e os pecados O antepurgatório O fogo Purgatório e Inferno: o arrependimento A esperança A ajuda dos vivos O tempo do Purgatório A caminho da luz Notas
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A razão do Purgatório Notas
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Apêndice Apêndice Apêndice Apêndice
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I: Bibliografia do Purgatório lI: «Purgatorium»: história de uma palavra III: As primeiras imagens IV: Trabalhos recentes
Agradecimentos
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o TERCEIRO
LUGAR
Nas acesas discussões entre protestantes e católicos do século XVI, os primeiros reprovam vivamente aos seus adversários a crença no Purgatório, a que Lutero chamava «o terceiro lugar»l. Esse além «inventado» não estava nas Escrituras. Proponho-me seguir a formação desse terceiro lugar desde a antiga fé judaico-cristã, dar a conhecer o seu aparecimento no momento da explosão do Ocidente medieval na segunda metade do século XII e o seu rápido sucesso no decurso do século seguinte. Tentarei por fim explicar por que razão ele está intimamente ligado a esse grande momento da história da cristandade e como contribuiu de maneira decisiva para ser aceite - ou, entre os hereges, recusado - no seio da nova sociedade saída do desenvolvimento prodigioso dos dois séculos e meio que se seguiram ao ano mil.
o Purgatório
e o que ele põe em jogo
É raro poder seguir-se o desenvolvimento histórico de uma crença mesmo se - e é o caso do Purgatório - ela inclui elementos emanados dessa noite dos tempos onde a maioria das crenças parece ter a sua fonte. E no entanto, não se trata de um apêndice secundário, de um acrescento menor ao edificio primitivo da religião cristã, tal como evoluiu até à Idade Média e depois sob a sua forma católica. O além é um dos grandes horizontes das religiões e das sociedades. A vida do crente transforma-se quando ele pensa que nem tudo fica perdido com a morte. Esta emergência, esta construção secular da crença no Purgatório supõe e provoca uma modificação substancial das perspectivas do espaço-tempo do imaginário cristão. Ora essas estruturas mentais do espaço e do tempo são o esqueleto da maneira de pensar e de viver de uma sociedade. Quando essa sociedade está totalmente impregnada de religião, como a 15
cristandade da longa Idade Média que se prolongou da Antiguidade tardia até à revolução industrial, mudar a geografia do além, do universo portanto, modificar o tempo do após vida, portanto a ligação entre o tempo terrestre, histórico e o tempo escatológico, o tempo de existência e o tempo de espera, significa operar uma revolução mental lenta mas essencial. À letra, é mudar a vida. É evidente que o aparecimento de uma tal crença está ligado a alterações profundas da sociedade em que se produz. Que relações mantém este novo imaginário do além com as mudanças sociais, quais as suas funções ideológicas? O controlo estrito que a Igreja exerce sobre ele, chegando mesmo a uma partilha do poder sobre o além entre ela e Deus, prova que o que estava em jogo era importante. Porque não deixar os mortos vaguear ou dormir?
Foi como «terceiro lugar» que o Purgatório se impôs. Das religiões e das civilizações anteriores, o cristianismo herdara uma geografia do além; entre as concepções de um mundo dos mortos uniforme - tal o shéo/ judaico - e as noções de um outro universo depois da morte, um assustador e o outro venturoso, como o Hades e os Campos Elísios dos Romanos, ele escolhera o modelo dualísta. Reforçara-o mesmo singularmente. Em vez de relegar para debaixo da terra os dois espaços dos mortos, o mau e o bom, durante o período que se estenderia desde a Criação ao JuÍZo Final, ele situara no Céu, desde a entrada na morte, o descanso dos justos - pelo menos dos melhores, entre eles, os mártires, e a seguir os santos. Localizara mesmo na superficie da terra o Paraíso terrestre, dando assim, até à consumação dos séculos, um espaço a essa terra da Idade de Ouro à qual os Antigos apenas tinham concedido um tempo, horizonte nostálgico da sua memória. Lá o vemos nos mapas medievais, no Extremo Oriente, para lá da grande muralha e dos povos inquietantes de Gog e Magog, com o seu rio de quatro braços criado por Yahvé «para regar o jardim» (Génesis lI, 10). E sobretudo a oposição Inferno-Paraíso foi levada ao cúmulo, baseada no antagonismo Terra-Céu. Embora subterrâneo, o Inferno era a Terra e o mundo infernal opunha-se ao mundo celestial como o mundo ctónico se opusera, entre os Gregos, ao mundo astral. Apesar das belas aspirações ao Céu, os Antigos - Babilónios e Egípcios, Judeus e Gregos, Romanos e Bárbaros pagãos - haviam temido as profundezas da terra mais do que ansiado pelos infinitos celestes, aliás muitas vezes habitados por deuses coléricos. O cristianismo, pelo menos durante os primeiros séculos e a barbarização medieval, não chegou a limitar ao Inferno a sua visão do além. Elevou a sociedade em
direcção ao Céu. O próprio Jesus dera o exemplo: depois de ter descido aos Infernos subira ao Céu. No sistema de orientação do espaço simbólico, lá onde a Antiguidade greco-romana dera um lugar proeminente à oposição direita-esquerda, o cristianismo, mesmo conservando um valor importante a esse par antinómico presente, aliás, no Antigo e no Novo Testamento/, privilegiara desde muito cedo o sistema alto-baixo. Na Idade Média, este sistema irá orientar, através da «espacialização: do pensamento, a dialéctica essencial dos valores cristãos. Subir, elevar-se, ir mais alto, eis o aguilhão da vida espiritual e moral, enquanto a norma social é ficar no seu lugar, lá onde Deus nos pôs na terra, sem ambicionar escapar à nossa condição, tendo o cuidado de não nos diminuirmos, de não descermos:'. Quando, entre o segundo e o quarto séculos, o cristianismo, menos fascinado pelos horizontes escatológicos, se pôs a reflectir na situação das almas entre a morte individual e o Julgamento Final e quando os cristãos pensaram - é, com os cambiantes que se verão, a opinião dos grandes Padres da Igreja do século IV, Ambrósio, Jerónimo e Agostinho - que as almas de certos pecadores poderiam talvez ser salvas durante esse período, sofrendo provavelmente uma provação, a crença que assim surgia e faria aparecer o Purgatório no século XII não conseguiu localizar com precisão essa situação e essa provação. Na Idade Média este sistema irá orientar, através da «espacialização» do pensamento, a dialéctica essencial dos valores cristãos. Até ao fim do século XII, a palavra purgatorium não existe como substantivo. O Purgatório não existe". É extraordinário que o aparecimento da palavra purgatorium que exprime a tomada de consciência do Purgatório como lugar, o acto do nascimento do purgatório, para falar com propriedade, tenha sido negligenciado pelos historiadores, e primeiro pelos historiadores da teologia e da espiritualidade". Sem dúvida, os historiadores não dão ainda a importância suficiente às palavras. Fossem realistas ou nominalistas, os clérigos da Idade Média sabiam bem que entre as palavras e as coisas existe uma união tão estreita como entre o corpo e a alma. Para os historiadores das ideias e das mentalidades, as palavras - certas palavras -, fenómenos a longo prazo vindos lentamente das profundezas, têm a vantagem de aparecer, de nascer e de trazer assim elementos cronológicos sem os quais não há verdadeira história. É verdade que não se data uma crença como um acontecimento, mas devemos afastar a ideia de que a história a longo prazo é uma história sem datas. Um fenómeno lento como a crença no Purgatório' estagna, palpita durante séculos, repousa nos ângulos mortos da corrente da história e depois, repentinamente ou quase, é arrastado na massa da onda não .para nela se perder mas, ao contrário, para emergir e para dar testemunho. Quem fala do purgatório - nem que seja erudi.a-
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Antes do Purgatório
Quando o Purgatório se instala na crença da cristandade ocidental, entre 1150 e 1250, mais ou menos, de que se trata? É um além intermédio onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada
pe~ossu~rágios - a ajuda espiritual - dos vivos. Para se ter chegado aqui f01 preciso um longo passado de ideias e de imagens, de crenças e de actos, de debates teológicos e, provavelmente, de movimentos no interior da sociedade, que dificilmente apreendemos. A primeira parte deste livro será consagrada à formação secular dos elementos que no século XII se estruturarão para se transformarem no Purgatório. Podemos considerá-Ia uma reflexão sobre a originalidade do pensamento religioso da cristandade latina, a partir das heranças, das rupturas, dos conflitos externos e internos em cujo seio ele se formou. A crença no Purgatório implica antes de mais a crença na imortalidade e na ressurreição, em que algo de novo para u~ ser humano pode acontecer entre a sua morte e a sua ressurreição. E um suplemento de condições oferecidas a certos homens para que alcancem a vida eterna. Uma imortalidade que se atinge através de uma única vida. As religiões como o hinduísmo ou o «catarismo» - que acreditam em reencarnações sucessivas, na metempsicose, excluem portanto o Purgatório. A existência de um Purgatório baseia-se também na concepção de um julgamento dos mortos, ideia esta bastante difundida nos vários sistemas religiosos, mas «as modalidades deste julgamento variavam muito de uma civilização para outras". A variedade de julgamento que compreende a existência de um Purgatório é muito original. Apoia-se, com efeito, na crença de um julgamento duplo, o primeiro no momento da morte e o segundo no fim dos tempos. Institui nesse intervalo do destino catológico de cada ser humano um processo judicial complexo de mitigacão das penas, de encurtamento dessas penas em função de factores diversos. Supõe, pois, a projecção de um pensamento de justiça e de um sistema penal muito sofisticados. Está também ligada à ideia de responsabilidade individual, de livre arbítrio do homem, culpado por natureza por causa do pecado original, mas julgado segundo os pecados cometidos sob a sua responsabilidade. Há uma estreita ligação entre o Purgatório, além intermédio, e um tipo' de pecado intermédio entre a pureza dos santos e dos justos e a imperdoável culpabilidade dos pecadores criminosos. A ideia durante muito tempo vaga de pecados «ligeiros», «quotidianos», «habituais», bem captada por Agostinho e depois por Gregório, o Grande, só a longo prazo conduzirá à categoria de pecado «venial» - quer dizer, perdoável-, que precedeu de perto o crescimento do Purgatório e foi uma das condições do seu aparecimento. Mesmo se as coisas foram um pouco mais complicadas, como veremos, no essencial o Purgatório surgiu como o lugar de purgação dos pecados veniais. Crer no Purgatório - lugar de punição - supõe esclarecidas as relações entre a alma e o corpo. Com efeito, desde muito cedo a doutrina da Igreja disse que, no momento da morte, a alma imortal deixa o corpo e os dois
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mente - desde o Império Romano até à cristandade do século XIII, de Santo Agostinho a S. Tomás de Aquino, e assim situa o aparecimento do substantivo entre 1150 e 1200, deixa escapar aspectos capitais dessa história, se não o essencial. Deixa escapar, ao mesmo tempo que a possibilidade de esclarecer uma época decisiva e uma profunda mutação da sociedade, a oportunidade para descobrir, a propósito da crença no Pur-. gatório, um fenómeno de grande importância na história das ideias e das mentalidades: o processo de espacializacâo do pensamento.
o espaço
- é bom pensar nele
Numerosos estudos acabam de mostrar no campo científico a importância da noção de espaço. Ela rejuvenesce a tradição da história geográfica, renova a geografia e o urbanismo. É sobretudo no plano simbólico que ela manifesta a sua eficácia, A seguir aos zoólogos, os antropólogos sublinharam o carácter fundamental do fenómeno de terrttôrio". Em La Dimension cachée', Edward T. HaU demonstrou que o território é um prolongamento do organismo animal e humano, que essa percepção do espaço depende muito da cultura (talvez ele seja demasiado culturalista sobre este ponto) e que o território é uma interiorização do espaço organizada pelo pensamento. Existe nele uma dimensão fundamental dos indivíduos e das sociedades. A organização dos diferentes espaços: geográfico, económico, político, ideológico, etc., onde se movem as sociedades, é um aspecto muito importante da sua história. Organizar o espaço do seu além foi uma operação de grande alcance para a sociedade cristã. Quando se aguarda a ressurreição dos mortos, a geografia do outro mundo não é uma questão secundária. E pode esperar-se que exista uma relação entre a maneira como essa sociedade organiza o seu espaço aqui em baixo e o seu espaço no além, pois os dois espaços estão ligados através das relações que unem a sociedade dos mortos e a sociedade dos vivos. Entre 1150 e 1300, a cristandade entrega-se a uma grande remodelação cartográfica, sobre a terra e no além: Para uma sociedade cristã como a do Ocidente medieval, as coisas vivem e movem-se ao mesmo tempo - ou quase - sobre a terra como no céu, aqui em baixo como no além.
Lógica e génese do Purgatório
só voltam a encontrar-se no fim dos tempos, quando da ressurreição dos corpos. Mas a questão da corporalidade ou da incorporalidade da alma não me parece ter constituído problema a propósito do Purgatório ou dos seus começos. As almas separadas foram dotadas de uma materialidade sui generis e as penas do Purgatório puderam assim atormentá-Ias como que corporalmente",
Pensar o intermédio
rio, efémero não tem a eternidade do Inferno ou do Paraíso. E, no entanto, difere do tempo e do espaço de «cá de baixo», obedecendo a outras regras que fazem dele um dos elementos desse imaginário a que na Idade Média se chamava «maravilhoso». O essencial está talvez na ordem da lógica. Para que o Purgatório nasça é necessário que a noção de ponto intermédio ganhe consistência, que os homens da Idade Média passem a gostar de pensar nele. O Purgatório faz parte de um sistema, o dos lugares do além, e não tem existência nem significado senão em relação a esses outros lugares. Peço ao leitor que não o esqueça; mas como o Purgatório, entre os três lugares principais do além, foi o que levou mais tempo a definir-se, e como o seu papel foi o que pôs mais problemas, pareceu-me possível e desejável tratar o Purgatório sem entrar no pormenor das coisas do Inferno e do Paraíso. Estrutura lógica, matemática, o conceito de ponto intermédio está ligado a mutações profundas das realidades sociais e mentais da Idade Média. Não deixar mais sozinhos cara a cara os poderosos e os pobres, os religiosos e os laicos, mas antes procurar uma categoria mediana, classes médias ou ordem terceira, é tudo a mesma tentativa e reporta-se a uma sociedade transformada. Passar de esquemas binários para esquemas ternários é dar aquele passo na organização do pensamento da sociedade, cuja importância Claude Lévi-Strauss sublinhou'".
Lugar intermédio, o Purgatório é-o em muitos aspectos. No tempo, no intervalo entre a morte individual e o Julgamento Final. O Purgatório não se fixará neste espaço temporal especial sem longas hesitações. Apesar do papel decisivo que foi o seu neste contexto, Santo Agostinho não amarrará definitivamente o futuro Purgatório a esta fresta do tempo. O Purgatório oscilará entre o tempo terrestre e o tempo escatológico, entre um começo de Purgatório aqui em baixo, que seria então preciso definir em relação à penitência, e uma espera pela purificação definitiva, a qual se situaria apenas no momento do Julgamento final. Encurtaria então o tempo escatológico e o Dia do Julgamento passaria a ser não um momento mas um espaço de tempo. O Purgatório é também um intervalo propriamente espacial que se insinua e se amplia entre o Paraíso e o Inferno. Mas a atracção dos dois pólos actuou longamente também sobre ele. Para existir, o Purgatório deverá substituir os pré-paraísos do refrigerium, lugar de refrigério imaginado nos primeiros tempos do cristianismo, e do seio de Abraão, representado pela história de Lázaro e do mau rico no Novo Testamento (Lucas, XVI, 19-26). Deverá sobretudo destacar-se do Inferno do qual será por muito tempo um departamento pouco diferenciado, o martírio máximo. Neste conflito entre Paraíso e Inferno, adivinha-se que a aposta do Purgatório não foi pequena para os cristãos. Antes de Dante dar à geografia dos três reinos do além a sua mais alta expressão, a preparação do Novo Mundo do além foi longa e dificil. Finalmente, o Purgatório não será um verdadeiro, um perfeito ponto intermédio. Reservado para a purificação completa dos futuros eleitos, inclinar-se-á para o Paraíso. Ponto intermédio deslocado, não se situará no centro mas num intervalo, exilado para o alto. Entra assim nesses sistemas de equilíbrio descentrado tão característicos da mentalidade feudal: desigualdade na igualdade, que se encontra nos modelos contemporâneos da vassalagem e do casamento em que, num universo de iguais, o vassalo está mesmo assim submetido ao senhor, a mulher ao marido. Falsa equidistância do Purgatório entre um Inferno a que se escapou e um Céu a que já se está amarrado. Falso ponto intermédio, enfim, porque o Purgatório, transitó-
Ao contrário do shéo/ judaico - inquietante, triste, mas desprovido de castigos - o Purgatório é um lugar onde os mortos sofrem uma (ou algumas) provação(ões). Estas provações, como se verá, podem ser múltiplas e assemelhar-se às sofridas pelos condenados, no Inferno. Mas duas delas aparecem mais frequentemente, o ardente e o gelado; e uma delas, a do fogo, desempenhou um papel de primeiro plano na história do Purgatório. Antropólogos, folcloristas, historiadores das religiões conhecem bem o fogo como símbolo sagrado. No Purgatório medieval e nos esboços que o precederam, o fogo surge sob quase todas as formas apontadas pelos especialistas da antropologia religiosa: círculos de fogo, lagos e mares de fogo, anéis de chamas, muralhas e fossos de fogo, fauces de monstros lançando chamas, carvões ígneos, almas com forma de labaredas, rios, vales, e montanhas de fogo. O que é, então, este fogo sagrado? «Nos rituais de iniciação», diz G. Van der Leeuw, «é o fogo que apaga o periodo da existência já vivida e que torna possível uma outra» 11. Ritual de mudança, pois, bem colocado
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As imagens penais: o fogo
neste lugar transitório. O Purgatório faz parte daqueles rituais de margem, como lhes chamava Van Gennep, cuja importância escapou por vezes aos antropólogos demasiado ocupados com as fases de separação e de agregação que abrem e fecham os rituais de transição. Mas o significado desse fogo é ainda mais rico. Carl-Martin Edsman bem mostrou, com contos, lendas e espectáculos populares das épocas medievais e modernas, a presença de fogos regeneradores idênticos aos que na Antiguidade se encontram entre os Romanos, os Gregos, e ainda entre os Iranianos e os Indianos onde esta concepção de um fogo divino Ignis divinus - parece ter tido origem'f, Assim, o Purgatório manifestar-se-ia nesse ressurgimento da base indo-europeia da qual a cristandade dos séculos XI a XIII parece ter sido o palco. O aparecimento (ou o reaparecimento?) do esquema trifuncional recentemente assinalado por Georges Duby e por outros investigadores é contemporâneo do nosso fenómeno. Fogo do forno, fogo da forja, fogo da pira. Deve colocar-se ao lado destes o fogo do Purgatório do qual, aliás, a cultura popular também se assenhoreou. Este fogo é um fogo que rejuvenesce e imortaliza. A lenda da Fénix é a sua mais célebre encarnação que o cristianismo medieval retomou desde Tertuliano. A Fénix torna-se o símbolo da humanidade chamada para a ressurreição. Um texto erradamente atribuído a Santo Ambrósio aplica, aliás, a essa lenda a frase de S. Paulo «o fogo porá à prova a obra de cada um» (Coríntios, IH, 13) que é a base principal das Escrituras onde se apoiou todo o cristianismo medieval para construir o Purgatório. A luz desta herança ficam esclarecidas, parece-me, três características importantes do fogo expurgador que teve um papel primordial na construção do Purgatório na Idade Média. A primeira é que o fogo que rejuvenesce e torna imortal é um fogo «através do qual se passa». São Paulo interpretou bem este ritual quando, na mesma passagem famosa da primeira epístola aos Corintios (IH, 15), disse: «Ele será salvo mas através do fogo» (quasi per ignem). O Purgatório é bem um lugar (ou um estado) transitório e as viagens imaginárias dentro dele serão, repito-o, percursos simbólicos. Esta passagem pelo fogo será tanto mais valorizada pelos homens da Idade Média quanto o modelo do Purgatório se desenvolverá como um modelo judicial. A prova do fogo é um ordálio. É-o para as almas do Purgatório e para os vivos a quem foi permitido percorrer o Purgatório, não como simples turistas mas com todos os riscos e perigos. Vê-se bem como este ritual pôde seduzir homens que às tradições vindas de uma antiguidade longínqua, passando pela Grécia e por Roma, herdeiras do fogo indo-europeu, juntaram a herança das crenças e das práticas bárbaras. Compreende-se também porque, nas tentativas de localização do Purgatório na terra, ou pelo menos dos seus acessos, um elemento geográfico
natural atraiu especialmente a atenção: os vulcões. Tinham estes a vantagem de r~unir, como montanhas providas de crateras, quer dizer de poços que cuspiam fogo, três elementos essenciais da estrutura fisica e simbólica do Purgatório. Veremos como os homens que procuravam uma cartografia do Purgatório andaram à volta da Sicília, entre o Stromboli e o Etna. Mas não houve na Sicília maneira de aproveitar esta oportunidade como fizeram os Irlandeses, os seus vizinhos ingleses e' os Cistercienses com o Purgatório de S. Patrick e a peregrinação bem organizada e controlada que rapidamente passou a realizar-se. A Sicília de Frederico 11,entre um soberano suspeito de heresia e monges gregos e muçulmanos, não pareceu s~fi~ientemente «católica» para conter o Purgatório; ou um dos seus principais acessos, o Etna, não conseguiu desembaraçar-se da sua imagem propriamente infernal. A segunda característica é que o fogo expurgatório medieval, mesmo tendo ocupado um lugar proeminente e, por fim, exclusivo, fazia, no entanto, parte de um par: o fogo e a água. Nos textos medievais que se situam na pré-história da Idade Média, este par aparece a maioria das ve.zessob a forma da justaposição de um lugar ígneo e de um lugar húrmdo, de um lugar quente e de um lugar frio, de um elemento ardente e de um elemento gelado. E a provação principal sofrida pelos mortos do Purgatório não é a simples passagem pelo fogo, é a passagem alternada pelo fogo e pela água, uma espécie de «duche escocês» probatório. Carl-Martin Edsman recordou judiciosamente os textos da Antiguidade romana clássica onde se vêem ascetas do Cáucaso que vivem nus tanto nas chamas como no gelo. Cícero fala dos «sábios que vivem nus e suportam sem dor as neves do Cáucaso e o rigor do Inverno e depois se lançam no fogo e se deixam queimar sem queixumes»l3. Valere Maxime evoca também «aqueles que passam toda a vida nus, ora exercitando os corpos no !feIo rigoroso do Cáucaso, ora expondo-os às chamas sem queixumes» 4. O par fogo-água (fria) encontra-se num ritual evocado nos primeiros tempos do cristianismo, e que deve ter desempenhado um certo papel na pré-história do Purgatório: o baptismo pelo fogo. Para os cristãos este ritual surge nos evangelhos de Mateus e de Lucas, a propósito de João-Baptista. Mateus atribui ao precursor estas palavras: «Por mim, baptizo-V?S ~om ~gua para que vos arrependais; mas aquele que vem a seguir a m,l~ e mais forte do que eu, que nem sou digno de lhe descalçar as sandahas; ele baptizar-vos-á no Espírito Santo e com o fogo» (Ma teus, 111, 11). Lucas (111, 16) põe o mesmo discurso na boca de João-Baptista. Esta concepção do baptismo pelo fogo, oriunda das velhas mitologias indo-europeias do fogo, concretizou-se na literatura apocalíptica judaico-cristã. Os primeiros teólogos cristãos, os gregos sobretudo, foram-lhe sensíveis. Orígenes, comentando Lucas, 111,16, declara: «Deve-se bapti-
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zar primeiro com água e pelo espírito para que, quando o baptizado chegar ao rio de fogo, mostre que conservou os recipientes de água e de espírito e que merece receber então também o baptismo de fogo em Jesus Cristo» (in Lucam, homilia XXIV). Edsman reconhece na pérola evocada por Mateus (XIII, 45-46: «O Reino dos Céus é semelhante a um negociante em busca de pérolas finas; tendo encontrado uma de alto preço, foi vender tudo o que possuía e comprou-a») o símbolo do Cristo que reuniu a água e o fogo. No cristianismo «ortodoxo» o baptismo pelo fogo foi metafórico. Mas o mesmo não aconteceu em certas seitas (baptistas, messianistas, certos ascetas egípcios) e até entre os cátaros, a quem um contraditor «ortodoxo» Ecbert reprovará ironicamente, no século XII, não baptizarem verdadeiramente «no fogo» mas «ao lado» do fogo. Nas mitologias e religiões antigas, o fogo tem uma natureza múltipla e variada. É o que vemos no simbolismo judaico-cristão do fogo, e em definitivo nas diferentes funções e significados do fogo do Purgatório. Nestes diversos aspectos do fogo, «ao mesmo tempo deificado r e vivificador, que castiga e destrói», Edsman vê «as diferentes faces do próprio ser da divindade» e reconduz, pois, à unidade na pessoa divina a multiplicidade dos rostos do fogo. Este modelo pode servir para explicar a variedade das interpretações cristãs do fogo expurgatório, desde a Antiguidade até ao século XIII. Pode ter-se a impressão de que não se fala do mesmo fogo mas esta diversidade explica-se pela polissem ia do antigo fogo divino. Ora aparece sobretudo como purificador, ora antes de tudo como punitivo, ora ainda como probatório; parece por vezes actual e por vezes futuro, a maioria das vezes real mas algumas vezes espiritual, interessa a certos homens ou a toda a gente. Mas trata-se de facto sempre do mesmo fogo, e o fogo do Purgatório, na sua complexidade, é o herdeiro dos rostos múltiplos do fogo divino, do fogo sagrado das origens indo-europeias. Agostinho parece ter captado a continuidade que, apesar das mudanças de sentido fundamentais, liga ce.tas concepções antigas do fogo a concepções cristãs: «Os estóicos, diz de em a Cidade de Deus (VIII, 5), acreditavam que o fogo, quer dizer, um corpo, um dos quatro elementos que compõem este mundo sensível, está vivo, é sábio e criador do próprio mundo e de tudo o que ele contém; que, em resumo, esse fogo é Deus.» De facto, no cristianismo, o fogo mais não é do que uma criatura, como dirá magnificamente Francisco de Assis. Mas, segundo a fórmula exacta de Edsman, «Toda a complexidade do fogo do além nas suas formas gerais ou essenciais - por exemplo, o rio de fogo - explica-se como sendo representativas das diversas funções de um mesmo fogo divino.» Isto serve também para o fogo do Purgatório. Mas deste passado pleno de sentido do fogo expurgatório, os homens da Idade Média não tinham consciência; e nem as massas nem sequer os religiosos, com excepção
O Purgatório é pois um além intermédio ou a provação que se sofre, talvez encurtada pelos sufrágios, as intervenções dos vivos. Foi, parece, pela crença dos primeiros cristãos na eficácia das suas preces pelos mortos - como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e depois, no começo do século m, a Paixão de Perpétua, primeira das representações espacializadas do futuro Purgatório - que começou um movimento piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório. É significativo o facto de Agostinho, nas Confissões, esboçar pela primeira vez uma reflexão que o levará ao caminho do Purgatório, quando experimentou determinados sentimentos após a morte de sua mãe Mónica. Esta confiança dos cristãos na eficácia dos sufrágios só tardiamente se uniu à crença na existência de uma purificação depois da morte. Joseph Ntedika mostrou claramente que, em Agostinho por exemplo, as duas
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dos textos das Escrituras, tinham a garantia necessária e suficiente da tradição sagrada. Pareceu-me, no entanto, necessário lançar alguma luz sobre esta longa herança. Ela esclarece certos aspectos desconcertantes da história medieval do Purgatório e permite que se compreenda melhor as hesitações, os debates, as opções que se manifestaram nessa história, pois uma herança propõe tanto quanto impõe. Sobretudo ela explica, parece-me, uma das razões do êxito do Purgatório - o facto de ter retomado certas realidades simbólicas e muito antigas. Aquilo que se apoia numa tradição tem mais probabilidades de êxito. O Purgatório é uma ideia nova do cristianismo que tirou das religiões anteriores uma parte dos seus acessórios principais. No sistema cristão, o fogo divino muda de sentido, e o historiador tem, antes de mais, de ser sensível a essas transformações. Mas a permanência de um certo material de longa duração sob a maior ou menor rapidez das mudanças deve também prender a sua atenção. As revoluções raramente são criações, são antes mudanças de sentido. O cristianismo foi uma revolução ou o motor essencial de uma revolução. Recolheu o fogo divino que rejuvenesce e imortaliza mas fez dele não uma crença ligada a um ritual, mas um atributo de Deus, cujo uso é determinado por uma dupla responsabilidade humana: a dos mortos que devem, segundo o seu comportamento na terra, ser-lhe ou não submetidos; a dos vivos, cujo maior ou menor zelo pode alterar-lhe a duração de actividade. O fogo do Purgatório, continuando a ser um símbolo portador de sentido, o da salvação pela purificação, tomou-se um instrumento ao serviço de um sistema de justiça complexo, ligado a uma sociedade completamente diferente daquelas que acreditavam no fogo rcgenerador.
Solidariedades:
os vivos e os mortos
crenças se formaram em separado, sem praticamente se encontrarem. Os sufrágios pelos mortos supõem a formação de longas solidariedades de um lado e de outro da morte, relações estreitas entre vivos e defuntos, a existência, entre uns e outros, de instituições de ligação que pagam os sufrágios - como os testamentos - ou fazem deles prática obrigatória como as confrarias. Também estes laços levaram tempo a estabelecer-se. Que acréscimo de poder para os vivos, este domínio sobre a morte! Mas também, aqui em baixo, que reforço da coerência das comunidades - famílias carnais, famílias artificiais, religiosas ou confraternais - que extensão, após a morte, de solidariedades eficazes! E para a Igreja, que instrumento de poder! Ela afirma o seu direito (parcial) sobre as almas do Purgatório como membros da Igreja militante, pondo à frente o foro eclesiástico em detrimento do foro de Deus, o detentor da justiça no além. Poder espiritual mas também muito simplesmente, como se verá, lucro financeiro de que beneficiarão, mais do que os outros, os irmãos das ordens mendicantes, propagandistas ardentes da nova crença. O «infernal» sistema das indulgências encontrará nelas finalmente um alimento revigorante.
manidade luta pela sua sobrevivência fisica e espiritual. Entre o Paraíso e o Inferno, na convicção em que se está da iminência do fim do mundo, o Purgatório seria quase um luxo que mora nas profundezas. A génese do feudalismo deixa em suspenso, num quase imobilismo da teologia e da prática religiosa, os esboços de Purgatório entre os séculos VIII e XI; mas o imaginário monástico explora, num claro-escuro com clareiras de luz, os recantos do além. O grande século criador, o século XII, é também o do aparecimento do Purgatório que só se explica no seio do sistema feudal então já aperfeiçoado. Depois da época da explosão vem a da ordem. O domínio sobre o além que o Purgatório proporciona acrescenta os mortos ao quadro geral da sociedade. O suplemento de possibilidades oferecido pelo Purgatório à nova sociedade integra-se no sistema global.
Teologia e cultura popular
Convido o leitor a abrir comigo o processo do Purgatório. Só este gesto me parece susceptível de o convencer, pelo contacto com textos de grandes teólogos ou de compiladores obscuros, por vezes anónimos, de alto valor literário, ou meros instrumentos de comunicação, mas muitos deles interpretados pela primeira vez e possuindo quase sempre em graus diversos o encanto do imaginário, o calor do proselitismo, o frémito da descoberta de um mundo interior e exterior. Sobretudo, é a melhor maneira de ver construir-se lentamente, nem sempre seguramente mas em toda a complexidade da história, a crença num lugar, e esse lugar em si mesmo. Estes textos são frequentemente repetitivos mas assim se constitui um corpus, assim se constrói a história. O jogo de ecos que encontraremos muitas vezes neste livro é a imagem da realidade. Eliminar essas repetições da história seria deformá-Ia, falseá-Ia. Veremos como fica a geografia do além e o que está em jogo nas fases principais do dealbar da Idade Média onde foram elaboradas as bases do nosso mundo ocidental moderno. Conhecemos hoje melhor e apreciamos mais justamente a originalidade dessa longa mutação do século III ao VII, a que se chamava dantes Baixo Império e Alta Idade Média e a que chamamos hoje com mais propriedade Antiguidade tardia: as antigas heranças aí se decantam, o cristianismo aí modela novos hábitos, a hu-
Devo ainda ao leitor dois esclarecimentos. O primeiro diz respeito ao lugar dado à teologia neste estudo. Não sou nem teólogo nem historiador de teologia. E evidente que, tratando-se de uma crença que se tomou dogma, o papel da elaboração teológica nesta história é importante. Espero fazer-lhe justiça. Mas penso que o Purgatório como crença impôs-se também por outras vias, e essas vias interessam-me particularmente porque informam mais sobre a relação entre crença e sociedade, sobre as estruturas mentais, sobre o lugar do imaginário na história. Não ignoro que, para a teologia católica moderna, o Purgatório não é um lugar mas um estado. Os Padres do concílio de Trento, ansiosos neste ponto como nos restantes, por evitar a contaminação da religião pelas «superstições», deixaram de fora do dogma o conteúdo da ideia de Purgatório. Assim, nem a localização do Purgatório nem a natureza das penas que lá se sofrem foram definidas pelo dogma e antes foram deixadas à liberdade das opiniões. Mas espero mostrar neste livro que a concepção do Purgatório como lugar e as imagens que lhe estão ligadas desempenharam um papel capital no êxito desta crença'". Isto não se aplica somente à massa dos fiéis mas também aos teólogos e às autoridades eclesiásticas dos séculos XII e XIII. Quando entre os laicos apareceu um homem de génio que era também muito sábio, esse exprimiu melhor do que os outros- a todos os níveis o que foi para os homens da segunda Idade Média, depois de 1150, o Purgatório. O melhor teólogo da história do Purgatório é Dante. O segundo esclarecimento tem a ver com o lugar da cultura popular no aparecimento do Purgatório. Esse lugar é seguramente importante e será aqui evocado por várias vezes. Por trás de certos elementos essenciais
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o processo do Purgatório
do Purgatório em formação, a tradição popular - não no sentido vulgar de cultura de massas mas no sentido eficaz de cultura folclórica específica - está presente e actuante. Para dar três exemplos: o fogo expurgatório, como demonstrou Carl-Martin Edsman, participa dos ritos e das crenças que os contos, as lendas e os espectáculos populares deixam compreender; as viagens no além pertencem a um género onde elementos eruditos e elementos folclóricos estão intimamente misturados'"; os exempla sobre o Purgatório são muitas vezes provenientes de contos populares ou são aparentados com eles. Desde há vários anos, com alguns colegas e amigos dedico-me, no quadro dos meus seminários na Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais, a investigações sobre a relação entre cultura erudita e cultura popular na Idade Média. Não procurei, porém, ir muito longe nessa pista. Sobre um tema como este há demasiadas incertezas para que se possa precisar, aprofundar e interpretar com facilidade o papel inegável da cultura popular. Mas é preciso que se saiba que essa cultura teve a sua função no nascimento do Purgatório. O século desse nascimento é também aquele em que a pressão do folclore sobre a cultura erudita é mais intensa, em que a Igreja mais se abre a tradições ~ue na Alta Idade Média, ela mesma destruíra, escondera ou ignorara 1 • Este empurrão também contribuiu para o aparecimento do Purgatório.
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NOTAS
I Sobre Lutero e o Purgatório ver P. ALTHAUS, «Luthers Gedanken über die letzten Dinge» in Luther Jahrbuch, XXIII, 1941, pp. 22-28. 2 M. GOURGUES in À Ia Droite de Dieu - Réssurrection de Jésus et actualisation du Psaume CX, 1, dans le Nouveau Testament, Paris, 1978, sustenta que os textos do Novo Testamento só manifestam um interesse mínimo ao lugar do Cristo à direita do Pai. 3 Ver C. GINZBURG, «High and Low: The Theme of forbidden Knowledge in the XVIth and XVIIth c,» in Past and Present, nO73, 1976, pp. 28-41. 4 Os textos que até então evocam as situações que conduzirão à criação do Purgatório apenas empregam o adjectivo purgatorius, purgatoria, que expurga, e unicamente nas expressões consagradas: ignis purgatorius, o fogo purgatório, poena purgatoria, a pena (o castigo) purgatório ou, no plural, poenae purgatoriae, as penas purgatórias e, mais raramente,j1amma,forna, locus.flumen (chama, fomo, lugar, rio). No século XII emprega-se por vezes em subentendido o substantivo, in purgatoriis (poenis), nas penas purgatórias. Este uso favoreceu provavelmente o emprego da expressão in purgatorio subentendendo-se igne, no fogo purgatório. É provável que o aparecimento de purgatorium, substantivo neutro, o purgatório, muitas vezes empregado com a forma in purgatorio, no Purgatório, tenha beneficiado da semelhança com in (igne) purgatorio, No fim do século XII e no começo do século XIII quando se encontra In purgatorio é por vezes dificil saber se se deve entender no purgatório ou na fogo (subentendido) purgatório. Mas isso já não tem importãncia, porquanto daí em diante o substantivo, quer dizer, o lugar, e tanto uma como a outra expressão é a ele que se reportam. 5 Os raros autores de estudos sobre o Purgatório que se aperceberam do problema levantam-no em geral em nota, resumidamente e de maneira errada. Joseph Ntedika, autor de dois excelentes estudos fundamentais, diz de Hildebert du Mans: «Ele é talvez o primeiro a empregar a palavra purgatorium (A evolupão da doutrina do purgatório em Santo Agostinho, p. 11, n. 17). O sermão anteriormente atribuído a Hildebert du Mans foi-lhe retirado há muito (ver Apêndice lI). A. Piolanti em «li dogma del Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953, 287-311, notável, contenta-se com dizer (p. 300): «Neste século (o XII) aparecem os primeiros esboços do tratado De purgatorio (daqui em diante o adjectivo t.anforma-se em substantivo).» Quanto a Erich FLEISCHHAK, Fegfeuer, Die christlichen Vorstellungen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich dargestellt, 1969, escreve (p. 64): (
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carolingia tanto para a purificação como para o lugar de purificiação» sem dar referências (pudera!. ..). 6 Ver, por exemplo, numa perspectiva geográfica: J. JAKLE e outros, Human Spatial Behavior. A Social Geography, North Scituate, Mass., 1976. J. KOLARS e J. NYSTUEN, Human Geography: Spatial Design in World Society, Nova lorque, 1974; numa perspectiva zdológica, H. E. HOWARD, Territory in Bird Life, Londres, 1920; numa perspectiva linguística B. L. WHORF, Language, Thought and Reality, Nova lorque, 1956; de um ponto de vista interdisciplinar e. R. CARPENTER, Territoriality: a Review ofConcepts and Problems in A. ROE e G. G. SIMPSON, Behavior and Evolution, New Haven, 1958. H. HEDIGER, The Evolution of Territorial Behavior in S. L. WASHBURN ed. Social Life of Early Man, Nova Iorque, 1961. A. BUTTIMER, Social Space in lnterdisciplinary Perspective in E. JONES ed. Readings in Social Geography, Oxford, 1975, sem esquecer A. JAMMER, Concepts of Space, Nova Iorque, 1960, com um prefácio de Albert Einstein. 7 E. T. HALL, The Hidden Dimension, Nova lorque, 1966, trad. francesa La Dimension cachée, Paris, 1971. 8 Le Jugement des morts (Egipto, Assur, Babilónia, Israel, Irão, Islão, Índia, China e Jafão). Col. «Sources orientales», IV, Paris, ed. du Seuil, 1961, p. 9. Tomás de Aquino é especialmente sensível à dificuldade de fazer com que as almas espirituais sintam o sofrimento de um fogo corporal. Baseia-se sobretudo na autoridade das Escrituras (Mateus, XXV, 41) e na analogia entre almas separadas e demónios para afirmar que «As almas separadas podem pois sofrer por motivos corporais» (Somme théologique, supl. quest. 70, art. 3). A questão da corporalidade da alma preocupou talvez João Scot Erígenes no século IX e o seu discípulo Honorius Augustodunensis no século XII. cr. Cl. CAROZZI, «Estrutura e função da visão de Tnugdal» in Faire Croire, actas do colóquio da Escola Francesa de Roma (1979). A. VAUCHEZ, ed. Rome, 1980. Aqui não seguirei Claude Carozzi a quem agradeço pela comunicação antecipada do seu texto. 10 Cl. LÉVI-STRAUSS, «Les organisations dualistes existent-elles?» in Anthropologie structurale, I, Paris, especialmente p. 168. 11 G. VAN DER LEEUW, La religion dons son essence et ses manifestations, trad. franc., Paris, p. 53. 12 e.-M. EDSMANN, Ignis Divinus. Le feu comme moyen de rajeunissement et d'immortalité: contes, légendes, mythes et rites, Lund, 1949. Recordemos o estudo já ultrapassado mas pioneiro e clássico de J. G. FRAZER, Myths of the Origin of Fire, Londres, 1930, o belo ensaio de Gaston BACHELARD, Psychana/yse dufeu. Sobre o fogo sagrado iraniano, K. ERDMANN, Das iranisehe Feuerheiligtum, Leipzig, 1941. Os artigos «Feuer» (A. CLOSS) no Lexiconfür Theologie und Kirche, 4, 1960, 106-107 e sobretudo os artigos «Feu de l'Enfer», «Feu du Jugement» e «Feu du Purgatoire» (A. MICHEL in Dictionnaire de théologie catholique, Vf2, Paris, 1939) e «Feu» de J. GAILLARD in Dictionnaire de spiritualité, V, Paris, 1964, pouco elucidam sobre as formas arcaicas da religião do fogo. Nos Evangelhos apócrifos encontra-se o baptismo pelo fogo sob diversas formas. Em Deux livres du jeu proveniente de um original grego (do Egipto) da primeira metade do século Hl, Jesus, depois da ressurreição, dá aos seus apóstolos um baptismo triplo, pela água, pelo fogo e pelo Espírito Santo (E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER, Neutestamentliche Apokryphen, 3" ed., I, Tübingen, 1959, p. 185). Em L'Évangile de Philippe, que foi utilizado pelos gnósticos e pelos maniqueístas e que é provavelmente originário do Egipto e do século Il, encontra-se o baptismo pela água e pelo fogo (ibid., p. 198).
Tuscu/anes, V, 77. Faetorum et dictorum memorabilium libri novem, IH, 3, ext. 6. Como observou Edsman em La Flúte enchantée de Mozart, «Tamino e Pamina passam por duas grutas, contendo a primeira uma queda de água e estando a segunda cheia de fogo». 15 Sobre uma visão teológica «apurada» mas restrita, cf. por exemplo, esta opinião: «As necessidades da linguagem popular de Nosso Senhor, ao falar do dedo de Lázaro e da língua do rico mau, podiam autorizar espíritos habituados a unir alma e corpo como grupos inseparáveis a dotar as almas separadas com um corpo sui generis, como a imaginação necessariamente lhas apresenta. Outros tantos obstáculos à verdadeira filosofia do dogma» (1. BAINVEL, artigo «Âme» in Dictionnaire de théologie catholique, I, Paris, 1909, p. 1001). Argumentar assim é fechar-se à compreensão da história. 16 Heinrich GÜNTER escreveu: <
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PARTE I
O ALÉM ANTES DO PURGATÓRIO
I - OS IMAGINÁRIOS
ANTIGOS
O Purgatório medieval volta a utilizar motivos postos a circular em tempos muito antigos: trevas, fogo, torturas, ponte da provação e da passagem, montanha, rio, etc., e recusou finalmente elementos que quase acolheu: pastos, vagabundagem; ou rejeitou logo de início: reencarnações, metempsicose. Referirei, pois, primeiro esses farrapos vindos de outro lugar e de longe, por vezes de muito longe no espaço e no tempo. Trazer estas religiões antigas para o processo do Purgatório é também reintegrá-lo num conjunto de soluções para um mesmo problema: a estrutura do outro mundo, o imaginário do além como demonstração da sua função. Em certos casos esta referência a outras religiões porá em presença heranças reais, históricas: da Índia antiga ao Ocidente cristão o fogo, por exemplo, bem circulou; mas o fogo do Purgatório reuniu múltiplos fogos acendidos aqui e ali no decorrer dos tempos. O modelo egípcio parece ter pesado muito na «infernização» dos outros mundos posteriores. Por vezes também a comparação com outros «além» religiosos apenas terá um valor lógico e será somente uma manifestação dos sistemas do além e das suas diversas soluções para o problema comum. Quando se dá um encontro entre estas soluções e a solução cristã do Purgatório, não será por identidade de resposta sem certeza de influência? A angústia essencial do tempo do Inferno entre os gnósticos e a atenção inquieta mas finalmente raiada de esperança dos cristãos no tempo do Purgatório não virão de uma sensibilidade ao tempo, incluída nos dois pensamentos mas de maneira independente? Enfim, lançar luz sobre essas heranças e essas opções é mostrar que as relações entre o Purgatório cristão e os anteriores imaginários do além são as de uma história, não de uma genealogia. O Purgatório não foi engendrado automaticamente por uma série de crenças e de imagens mesmo diacrónica -, é ainda o resultado de uma história onde se misturam a necessidade e os acasos. 35
As três vias hiodus
No Irão: o fogo e a ponte
Na antiga Índia, no fim dos tempos védicos quando aparecem os primeiros Upanixades (século VI a.C.), os mortos têm três vias à sua frente conforme o seu mérito mas sem que haja julgamento. A entrada numa' destas vias faz-se através do fogo, pois os mortos são queimados na pira. Os justos passam «das chamas para o dia, do dia para .a quinzena luminosa (do mês lunar), da quinzena luminosa para os seis meses do ano em que o sol sobe, desses meses para o mundo dos deuses, do mundo dos deuses para o sol, do sol para o mundo do resplendor. Deste mundo do resplendor, aqueles (que o merecem) são conduzidos para os mundos do brâmane por um ser espiritual vindo (lá buscá-los), Nestes mundos do brâmane eles habitam lonjuras insondáveis. Para eles não há regresso». Aqueles que têm méritos suficientes «entram no fumo, do fumo passam para a noite, da noite para a quinzena sombria (do mês lunar), da quinzena sombria para os seis meses em que o sol desce, desses meses para o mundo dos manes, do mundo dos manes para a lua». Aí são comidos pelos deuses, voltam à terra e inauguram um ciclo de reencarnações e de renascimentos de perfeições, cada um dos quais é uma etapa para o Paraíso. " Os irremediavelmente maus sofrem renascnnentos de pumçao, sob a forma de «vermes, de insectos, de animais», até caírem no inferno'. A Isha Upanishad evoca esta estada infernal: «Esses mundos a que ~e chama sem sol por estarem cobertos de negras trevas: entram neles depo~s da morte aqueles que mataram a própria alma.» Mas outros textos deixam supor que a sorte desses mortos não é decidida logo de início. E conforme eles tenham ou não transposto o limiar da porta guardada por dois cães. Se o transpuserem serão acolhidos num lugar agradável, próximo dos Campos Elísios dos Romanos e do Wal~alla~germamc?, «os pastos que não mais lhes serão tirados», onde partilharão do festim de Yama, o primeiro homem, o Adão da tradição indo-iraniana, trasformado em rei dos Infernos. Se forem rejeitados, ou irão para as trevas do Inferno , ou voltarão a errar miseravelmente pela terra, vagueando como 2 uma alma penada, sob a forma de fantasmas. Estas diversas tradições apresentam elementos que iremos reencontrar no Purgatório: a ideia de uma via intermédia de salvação~ a passagem através do fogo, a dialéctica entre as trevas e a luz, melhonas de e~tado entre a morte e a salvação definitiva, a função do além como receptaculo de almas que de outro modo ficariam votadas ao vaguear dos fantasmas. Mas a ausência de julgamento e o lugar especial da metempsicose estão muito longe do sistema do além cristão.
No Irão, o que mais surpreende nas doutrinas e nas imagens do além é a omnipresença do fogo. Mas certos aspectos da escatologia zoroástrica apresentam características que, não tendo decerto tido qualquer influência directa nas concepções cristãs que conduziram ao Purgatório, evocam-uas '. É em primeiro lugar a hesitação entre uma interpretação «paradisíaca» e "uma interpretação «infernal» da morada dos mortos antes do julgamento. No Veda, essa morada, o reino de Yama, é ora um paraíso de luz ora um sinistro mundo .subterrâneo, um abismo para onde se desce por um caminho em declive. E também a presença de uma ponte - como se encontra na Índia - que liga a terra ao céu e na qual o morto entra para uma prova de força e de agilidade que também tem um certo valor moral". Enfim, para as almas, cujas acções boas têm o mesmo peso que as más, existe um lugar intermédio; mas os especialistas avisam que não se deve pensar que se trata de uma espécie de Purgatório, pois é antes o inferno de Masda, que pode comparar-se com o Purgatório cristão, sen' . 5. do como eIe temporano
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No Egipto: o imaginário
infernal
A longa história do antigo Egipto também não permite resumir em algumas ideias simples as crenças sobre o julgamento dos mortos e o além, que evoluíram no decorrer dos séculos e parecem não ter sido idên: ricas segundo os meios sociais. A ideia de um julgamento dos mortos fOI muito antiga no Egipto. Como escreveu Jean Yoyotte: «invenções dos antigos Egípcios, a ideia, o temor, a esperança do Julgamento iriam conhecer depois deles um longo destino'». O inferno egípcio era especialmente impressionante e sofisticado. Era uma região imensa com muralhas e pórticos, pântanos lamacentos e lagos de fogo rodeando salões misteriosos. Maspero fez notar que o morto egípcio tinha de escalar uma montanha de vertentes escarpadas. A ~eografia imaginária do além egípcio foi tão longe que, em alguns sarcofagos, foram encontradas cartas do outro mundo. E os castigos eram muitos e muito severos. Estas penas atingiam tanto o corpo como a alma. Eram tanto fisicas como morais, marcadas pelo distanciamento dos deuses. Uma sensação essencial era a de encerramento e de prisão. Lá as penas eram sangrentas e os castigos pelo fogo numerosos e terríveis. Mas, mesmo nas suas versões mais infernais, o Purgatório cristão não se aproximará de certas torturas do inferno egípcio, como a perda dos órgãos dos sentidos e os atentados contra a unidade da pessoa. A imaginação 37
topográfica foi levada muito longe pelos Egípcios nas suas visões do inferno. Os «receptáculos» - casas, salas, alcovas, locais diversos - formavam um complexo sistema de alojamentos", Mas para os antigos Egípcios não havia Purgatório. Erik Hornung faz notar claramente que, apesar da riqueza da terminologia egípcia para designar os humanos no além, ela limita-se a duas categorias rigorosamente opostas: os «bem-aventurados» e os «malditos». Não há nem «estados ou fases intermédios nem processos de purificação no além». É preciso esperar por um relato demótico (em língua vulgar), a viagem de Osíris para o além escrito entre o século I a.c. e o século II da nossa era, para encontrar uma tripartição dos mortos: os que estão sobrecarregados de más acções, os que o estão, mas de boas acções, e aqueles em que as boas e as más acções se equilibram mas continua a haver qualquer processo de purificação. As ligeiras diferenças dos destinos individuais que se anunciam, como veremos, nos apocalipses cópticos - como os de Pedro e de Paulo - desde o segundo século da era cristã, não têm precedente no Egípto". Era preciso, porém, evocar este plano de fundo egípcio, porque o Egipto, anterior e posterior à era cristã foi, sobretudo em Alexandria nos mosteiros cristãos, o local de elaboração de numerosos textos judaicos, gregos e captas que desempenharam um grande papel no conjunto de imagens do além, principalmente do inferno. E. A. W. Budge realçou as características desta herança infernal: «Em todos os livros sobre o Outro Mundo encontramos poços de fogo, abismos de trevas, machados assassinos, correntes de água a ferver, exalações fétidas, serpentes de fogo, monstros horríveis e criaturas com cabeças de animais, seres cruéis e assassinos com aspectos diversos ... parecidos com os que nos são familiares na antiga literatura medieval, e é quase indiscutível que as nações modernas devem ao Egipto muitas das suas concepções do inferno".» O Purgatório «infernizado» que iremos encontrar com frequência na cristandade medieval sem dúvida alimentou-se em parte desta herança egípcia.
aos infernos orientais. Podemos reter alguns dos seus elementos geográficos gerais, que iremos encontrar na génese do Purgatório: uma ilha (a de Circe), uma montanha a pique sobre o mar, crivada de grutas, um episódio de descida ao Averne numa atmosfera verdadeiramente infernal, a evocação dos mortos que não encontraremos no cristianismo oficial, uma vez que só Deus fará eventualmente aparecer certos mortos do Purgatório a certos vivos!". Por sua vez, a evocação do Tártaro por Hesíodo é rápida (Teogonia, 695-700, 726-733). A contribuição da Grécia antiga para a ideia do além a longo prazo parece residir sobretudo em duas construções intelectuais cuja influência no pensamento cristão é dificil de avaliar.
Uma mosofia da reencarnação: Platão
Somente através do tema da descida aos infernos é que a Antiguidade grega e romana trouxe alguma coisa às imagens cristãs do além. Este tema - que encontraremos com Cristo - é frequente na Antiguidade grega: Orfeu, Pólux, Teseu e HéracIes desceram à morada das trevas. Uma das mais célebres destas descidas é a de Ulisses no livro XI da Odisseia. Mas sabe-se que numerosas interpolações vieram acrescentar-se ao texto primitivo que não incluía julgamento dos mortos, nem sanções morais, nem tormentos punitivos. O inferno homérico parece nobre em relação
Constitui uma aposta tentar resumir, na perspectiva de um além intermédio, o pensamento de PIatão sobre a sorte das almas após a morte. Victor Goldschmidt vai ser o meu guía!'. A doutrina platónica é dominada pela convicção de que existe na culpa uma parte de vontade, portanto de responsabilidade, e uma parte de ignorância que só pode ser anulada por um processo complexo. A sorte das almas depende, pois, simultaneamente da sua própria opção e de um julgamento dos deuses. O destino dos mortos toma normalmente a forma de reencarnações escolhidas mais ou menos livremente pelo defunto, mas pode ser alterado ou interrompido por intervenções dos deuses. Os maus podem sofrer metamorfoses degradantes, passando para o corpo de homens de vil condição social ou para o de animais repugnantes, ou serem submetidos pelos deuses aos castigos do inferno. Esses castigos são evocados no décimo livro da República (615 e) onde vemos homens de fogo acorrentarem as mãos, os pés e a cabeça dos tiranos, deitá-Ias por terra, esfolá-los e arrastá-Ias de lado ao longo do caminho, o que evoca uma passagem do apocalipse de Pedro (V, 30). Quanto aos que atingiram o ideal platónico, quer dizer, a filosofia, e a praticaram «na pureza e na justiça», alcançam a contemplação perfeita, a maioria das vezes nas «ilhas dos bem-aventurados», porque sempre esta necessidade de localização, de «espacialização» do destino no além, se impõe. Considerações diversas levaram Pia tão a procurar vias de estatutos intermédios depois da morte, de acordo com a ideia de que a pena devia ser proporcionada ao crime, conforme o exprime com vigor a República (X, 615 a-b). Mas também a concepção de um destino especial para os virtuosos medianos: continuam a atravessar o cicIo das reencarnações mas nos intervalos saboreiam recompensas não especificadas «numa morada pura e situada nas alturas da terra» (Fédon, 114 c, 1-2).
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A descida aos infernos na Grécia e em Roma
Tal como o Antigo Testamento, o pensamento platónico no que toca ao além é fundamentalmente dualista. Na metempsicose as almas passam quer para almas piores, quer para almas melhores. A sentença dos deuses não esquecerá homem algum e previne o seu semelhante: «Ela nunca te esquecerá, nem que sejas suficientemente pequeno para mergulhares nas profundezas da terra ou suficientemente grande para voares até ao céu» (Leis, X, 905 a), o que evoca o Salmo CXXXIX, 9: Se subo aos céus, tu lá estás, Se me deito no shêol, lá estás tu.
helenismo pagão e particularmente das doutrinas órficas 13. Se essa influência existiu, impregnou primeiro, parece-me, os meios judaicos. É nos escritos apocalípticos judaicos e sobretudo, próximo da era cristã, nos ensinamentos dos rabinos, que se irá encontrar um verdadeiro esboço do futuro Purgatório cristão. Mas, na Palestina e no Egipto, esses meios judeus e depois cristãos mergulham com efeito num ambiente grego onde as religiões de mistérios tiveram grande desenvolvimento. Considera-se um testemunho dessa tendência Píndaro que, num fragmento citado por Platão (Ménon, 81 b), avalia em oito anos a duração da purificação no Inferno e que, numa ode onde se trata de uma religião de mistérios siciliana do começo do século VI a.C., sem dúvida própria da crença órfica, diz:
«Tu pagarás aos deuses, acrescenta Platão, a pena que deves, quer fiques aqui mesmo, quer vás para o Hades ou te transportem .para qualquer lugar ainda mais inacessível» (Leis, X, 905 a). No célebre mito de Er só existem, para aqueles que se encontram num prado maravilhoso, dúas direcções possíveis. Uns vêm do céu e os outros elevam-se do seio da terra após uma viagem de mil anos. No entanto, movido pela ideia da proporcionalidade das penas sem dúvida ligada à sua filosofia mas também ao sistema judicial ateniense (encontra-se em todas as religiões em que existe um julgamento dos mortos uma certa relação entre a justiça terrestre e a justiça divina no além), Platão imagina para as almas dos homens um destino móvel que pode comportar diversas situações: «Aqueles cujos costumes apenas sofrem raras e ligeiras modificações só se deslocam horizontalmente no espaço; se caem mais frequente e profundamente na injustiça, são levados para as profundezas e para os lugares chamados inferiores que, sob a designação de Hades, e outras semelhantes, povoam os seus terrores e os seus pesadelos ... Quando a alma sofre modificações mais profundas em vícios ou em virtudes ... se é à virtude divina que ela se liga até se impregnar de divino, sofre então uma deslocação notável, sendo transportada por um caminho santo para um lugar novo e melhor. Se é ao contrário, então é para lugares opostos que ela transporta o centro da sua vida ...» (Leis, 904 c-90S a). É sobretudo a crença na metempsicose que permite escalonamentos das penas, castigos intermédios. Reencontrar-se-á esta tendência na crença órfica «que, desde a origem, parece ter admitido que as existências terrestres sucessivas são separadas por expiações no Hades'?», A influência da crença órfica no cristianismo tem sido frequentemente sublinhada. Como no judaísmo antigo, não se encontra a crença num estado intermédio entre a felicidade celestial e os tormentos infernais, e como a prefiguração do Purgatório surgiu no cristianismo grego, avançou-se que a ideia cristã de um «Purgatório», onde as almas que não são suficientemente culpadas para merecer penas eternas acabam de se purificar, viria do
É necessário agora prestar uma especial atenção à descida de Eneias aos Infernos, na Eneida de Virgílio. Há neste episódio uma evocação topográfica do além que pretende conseguir uma precisão maior do que a maioria das antigas evocações dos infernos - se exceptuarmos algumas dos Egipcios. Brooks Otis, muito recentemente, desenhou mesmo o respectivo mapa esquemático. Lá se encontra a descida por um vestíbulo que iremos encontrar muitas vezes, [untamente com o poço, no inferno-purgatório. Depois o campo dos mortos sem sepultura, o rio Estige, os campos de prantos e as últimas pradarias antes da bifurcação que, pelo caminho da esquerda, conduz ao Tártaro (Inferno) e pelo da direita e após se ter transposto as muralhas de Dis (Plutão, rei dos Infernos), leva aos Campos Elíseos, morada vagamente paradisíaca, atrás da qual há o bosque sagrado cercado por muros e por fim o rio do Esquecimento, o Letes+'. Num comentário célebre, Eduard Norden'? chamou a atenção não só para as reminiscências que encontraremos na Divina Comédia, tanto mais normais quanto Dante, guiado por Virgílio, também o tomou por modelo poético, mas também para os elementos presentes nas visões medievais que demarcam o caminho do Purgatório em formação. Por exemplo, quando Eneias está no vestíbulo:
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Ela (a opulência adornada de méritos) é o astro cintilante, o esplendor autêntico de uma vida humana. Ah! sobretudo se aquele que a possui sabe ver o futuro! se sabe que, quando a morte aqui os fere, os espíritos dos culpados logo sofrem a sua pena; sob a terra, um juiz pronuncia, contra os crimes neste reino de Zeus, sentenças ínexoráveis'".
l Jm precursor: Eneias nos Infernos
De lá vem o som de gemidos e o som de cruéis golpes de chicote: foi quando o ranger de correntes de ferro arrastadas fizeram Eneias parar ficando aterrorizado com o barulho (versos 557-559)17,
o que irá reencontrar principalmente na Visio Wettino (século IX), na Visio Tnugdali (meio do século XII, onde o Purgatório ainda não surge nítido), mas também no Purgatório de S. Patrick (fim do século XII) onde nasceu o Purgatório e, bem entendido, em Dante, em que o eco de Virgílio se reencontra no Inferno (111,22-30), enquanto no Purgatório ainda se suspira:
suplícios esses males inveterados. Umas, suspensas no ar, ficam expostas ao sopro ligeiro do ventos; outras, no fundo de um grande abismo, lavam as suas nódoas; outras purificam-se no fogo» (versos 733-743)20. Todo um conjunto de temas que terão um papel na formação do Purgatório aí está: a mistura de dor e alegria, a apreensão velada da luz celestial, o contexto prisional, a exposição a penas, a expiação misturada com a purificação, purificação pelo fogo. Eis, em compensação, uma sequência historicamente afirmada: da Babilónia ao judaico-cristianismo.
Gilgamesh nos infernos Oh! como estes caminhos por onde se vem são diferentes dos do inferno, pois aqui é entre cânticos que se entra, e lá é entre terríveis lamentos'",
Entre os Babilónios a paisagem do além é mais movimentada, mais obcecante, e aparece em relatos espantosos de viagens aos infernos. A descida aos infernos de Ur-Nammu, príncipe de Ur, é o texto mais antigo deste género no domínio dó Médio Oriente europeu (século VIII a.Ci), Apenas um relato egípcio lhe é anterior. O herói é julgado pelo rei dos infernos, Nergal, faz-se alusão a um fogo, há um rio perto de uma montanha e o outro mundo está coberto de «trevass ". Principalmente a célebre epopeia de Gilgamesh oferece-nos uma dupla evocação dos infernos. A menos concisa é a que diz respeito ao próprio Gilgamesh. Como o herói não obteve a imortalidade, os deuses concedem-lhe um lugar especial no inferno, mas este favor não parece resultar dos seus méritos, antes está ligado à sua condição social e apenas depende de uma decisão arbitrária dos deuses+'. Em compensação Enkidu, o amigo de Gilgamesh, visita o Inferno antes de morrer e faz dele uma descrição mais concisa. E o reino do pó e das trevas, a «imensa terra», «a terra sem regresso», «a terra de onde não se volta», uma terra para onde se desce e de onde sobem, quando evocados, certos mortos. Uma terra para onde se vai quando se é apanhado nas redes dos deuses, uma prisão. Talvez o mais inquietante seja o facto de os vivos e os mortos «normais» serem atormentados por mortos «exasperados». Estes, os ekimmu, cuja sombra não recebeu sepultura nem cuidados da parte dos vivos (reencontramos este apelo à solicitude dos vivos, cujo papel será tão grande no sistema do Purgatório), regressam como fantasmas para visitar os habitantes da terra, ou atormentam os outros mortos no inferno.
Também Eneias, tendo descido aos Infernos, mostra de lá de baixo os campos brilhantes de luz, em cimal". Atitude típica do olhar e do gesto lançados das profundezas para a luz do alto, que encontraremos nos apocalipses (Apocalipse de João XXI, 10, Apocalipse (apócrifo) de Pedro, V, 4 e sgs.), nas visões medievais do prê-purgatório (Visto Fursei, Visio Wettini, Visio Tnugdali) e sobretudo no episódio evangélico de Lázaro e do mau rico ou «no Hades, presa de torturas, ergue os olhos e vê ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio» (Lucas, XVI, 23), texto este que terá um papel importante na pré-história cristã do Purgatório. Eduard Norden também observa judiciosamente que, se as notas sobre o tempo são por vezes caprichosas neste episódio virgiliano como em Dante, existe no entanto nos dois poetas a ideia de um tempo fixo para as viagens no além, da ordem de um dia (vinte e quatro horas) e sobretudo de uma noite. Na Eneida a subida deve terminar antes da meia-noite.fiora a Que saem as verdadeiras sombras (verso 893 e sgs.); na Divina Comédia a viagem deve durar vinte e quatro horas (Inferno, XXXIV, 68 e sgs.). Nos Apocalipses e nas visões medievais a viagem para o além deve quase sempre terminar antes da madrugada e do primeiro canto do galo. É o caso do Purgatório de S. Patrick onde esta exigência referente ao tempo faz parte do sistema do ordálico. Para o futuro cristão e medieval a passagem essencial do canto VI da Eneida é esta: «Desde então as almas conhecem os temores, os desejos, as dores e as alegrias e, prisioneiras que são das suas trevas e da sua cegueira, já não distinguem claramente a luz do céu. E mesmo no dia supremo, quando a vida as deixou, as infelizes não estão ainda completamente livres de todo o mal e de todas as máculas do corpo; os seus vícios, fortalecidos pelos anos, devem ter-se enraizado até uma profundidade impressionante. E pois necessário submetê-Ias ao castigo, e que expiem em
Realçou-se o parentesco entre algumas destas crenças e crenças judaicas testemunhadas pelo Antigo Testamento, o que nada tem de surpreen-
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Um além neutro e tenebroso: o shéol judaico
dente se pensarmos nas relações ~ue uniram os Babilónios e os Hebreus especialmente quando do Exílio/ . ' O arallü, o inferno assírio, está próximo do shéol hebreu, do Hades g~~go, embora estes dois últimos pareçam mais simples. O parentesco é visível sobretudo entre os dois primeiros. Assim, para a descida e a subida do sh~o/, Jaco!" julgando José morto, declara: «é de luto que quero descer ao sheolparajunto do meu filho» (Génesis, XXXVII, 35). Ana, a mãe de Samuel, proclam~ no seu cântico «é Jeová quem faz morrer e viver, quem faz descer ao sheol e subir nele» (I Samuel, lI, 6). Enfim, quando Saul pede à feiticeira de En-Dor que evoque Samuel de entre os mortos ela diz-lhe: «Vejo um espectro que sobe da terra» e ainda «é um velho que sobe» (I Samuel, XVIII, l3-14). A imagem da armadilha encontra-se nos Salmos XVIII (eas malhas do shéol prendiam-me, as armadilhas da morte esperavam-me», XVIII, 6) e CXVI S«as armadilhas da morte apanham-me, ~s mat.has do sh~ol, CXVI, 3)2 . O mesmo com a imagem do poro: «Jeová, tu tiraste a nunha alma do shéol, reanimando-me de entre aqueles que descem à fossa (poço)» (Salmo XXX, 3), «puseste-me nas profundezas da fossa (poço), nas trevas, nos abismos» (Salmo LXXXVIII, 7). No Salmo XL (3), a imagem do pélago está associada à da lama: «Ele tirou-me do pélago tumultuoso, do lodo do lamaçal.» Segundo Nicholas J. Tromp, a palavra bôr foi sucessivamente associada ao sentido de cisterna, depois de prisão, por fim e simultaneamente a túmulo e a poro do mundo subterrâneo, evolução semântica sugestiva. O poro do abismo evocado pelo Salmo L V (24), foi equiparado ao poço, entrada do outro ~und~ no conto de Grimm: Frau Hõlle (Dame Baile, Hõlle) querendo dizer !nferno e~ alemão). O pó, em geral associado aos vermes, aparece também no Antigo Testamento. «Irão eles descer a meu lado até ao shéol perder-se no mesmo pó?» (Job, XVII, 16) e ainda «Juntos eles deitam-se no pó e os vermes cobrem-nos» (Job, XXI, 26). A referência ao outro mundo infernal, o shéol, palavra especificament~ hebraic~, é freq':lente no Antigo Testamento'P. Alguns dos seus traços sao propnamente infernais e não aparecerão no Purgatório cristão; por ex~m~loi: equiparação com um monstro devorador, que vem talvez dos Egípcios ,e a unagem do outro mundo como cidade, já apresentada nos documentos da cidade de Ugarite, e que anuncia a «cidade triste» de Dant~ (Inferno, III, I) .. Outros são muito característicos do pensamento hebraico, como a estreita ligação entre a ideia do shéol e a simbólica do caos, encarnado por um lado no oceano e por outro no deserto. Em todo o cas?, talvez devês~emos investigar mais atentamente os laços eventuais, na cnstandade medieval, entre o Purgatório e certos santos ou eremitas vagabundos dos mares ou da solidão da floresta-deserto. Ao Purgatório - como ao Inferno - o shéollegará a noção de trevas (de onde as almas do Purgatório emergirão para a luz), trevas que envol-
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vem todo o mundo subterrâneo obsessivo no livro de Job:
dos mortos. Este tema é particularmente
antes que eu me vá para não regressar para o país das trevas e das sombras espessas, onde reindm a escuridão e o caos onde a própria claridade parece noite sombria. (Job, X, 21-22i7 Da paisagem do shéol é preciso reter dois elementos importantes que reaparecerão no Purgatório como no Inferno cristão: a montanha e o rio. Certas interpretações do Salmo XLII, 7, falam da «montanha dos tormentes» e o livro de Job evoca por duas vezes o rio que se atravessa à entrada do shéol: Assim ele preserva a sua alma do fosso, e a sua vida da passagem pelo Canal (Job, XXXIII, 18). Se não, eles passam pelo Canal E morrem como loucos (lob, XXXVI, 12). Tromp sustenta de modo convincente, e contra os exageros do Antigo Testamento, que os termos que descrevem o shéol se aplicam bem a um local e não são metafóricos, mas pensa também que há uma evolução no sentido de um emprego «literário» e «ético» do shéol, e que o Hades do Novo Testamento que se lhe seguiu avançou nesse sentido. Em todo o caso, o shéol do Velho Testamento surge essencialmente num sistema dualista que opõe fortemente o Céu e o Inferno. Por exemplo, o salmista do Salmo CXXXIX, 8, diz a Jeová: Se subo aos céus, tu lá estás, Se me deito no shéol, lá estás tu. E Isaías (XLIV, 24) põe Jeová a dizer: Fui eu, Jeová, quem fez todas as coisas, quem, sozinho, estendeu os céus, consolidou a terra, sem ninguém ajudar. 45
A terra é, na verdade, o conjunto do mundo dos vivos e do mundo dos mortos misturados, e mais a morada subterrânea do que a estada à superficie. Muito raramente é evocado um sistema tripartido (como o que, para o além, e por-exemplo em Dante, agrupará o Inferno subterrâneo, o Purgatório terrestre e o Paraíso celeste). No entanto Jeremias, recordando aos Hebreus do Exílio o poder de Jeová, diz: Os deuses que não fizeram o céu e a terra serão exterminados da terra e de debaixo do céu; Ele fez a terra com o seu poder ordenou o'mundo com a sua sabedoria e com a sua inteligência estendeu os céus.
o
profeta distingue, pois, o céu, o mundo debaixo do céu e a terra (debaixo do mundo) como dirá S. Paulo (Filipenses, 11, 10): para que tudo, em nome de Jesus, se ajoelhe, no mais alto dos céus, sobre a terra e nos infernos. Sendo o shéol temível, não aparece no entanto como lugar de torturas: Em todo o caso, encontramos nele três tipos de castigos especiais: o leito de vermes, que não encontraremos no Inferno e no Purgatório cristãos a menos que se queira ver nele os antepassados das serpentes infernais, o que não me parece ser o caso, a sede e o fogo. Voltarei a referir-me ao fogo que já evoquei. A sede, de que fala, por exemplo, Jeremias (XVII, 13): aqueles que se afastam de ti serão acusados na terra porque abandonaram a fonte de águas vivas, Jeová... encontra-se pelo menos em dois textos cristãos importantes para a pré-história do Purgatório. Primeiro a história do pobre Lázaro e do rico mau que, do fundo do Hades, pede que Lázaro vá molhar na água a ponta do dedo para lhe refrescar a língua (Lucas, XVI, 24). É sobretudo à primeira visão que se pode de facto chamar visão de um lugar expurgatório, a de Perpétua na Paixão de Perpétua (começo do século III), onde a sede será um elemento essencial da visão. Notou-se que, sendo o shéo/ evocado frequentemente no Antigo Testamento, não são dados quaisquer pormenores precisos a seu respeito. E porque, disse-se, Jeová é o Deus dos vivos, lembrando o Eclesiastes (IX, 4):
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Mas há esperança para aquele que está ligado a todos os vivos, e um cão vivo vale mais do que um leão morto.
o que Jesus dirá novamente de maneira esclarecedora:«Quanto à ressurreição dos mortos, não lestes o oráculo no qual Deus vos diz: 'Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob'?» Não é dos mortos mas dos vivos que ele é Deusl» (Mateus, XXII, 31-32). Jeová, cujo enorme poder sobre o shéo/ é muitas vezes afirmado no Antigo Testamento, nunca manifesta a intenção de fazer sair de lá um morto prematuramente, de lhe perdoar após a sua descida ao shéo/ ou de lhe encurtar a permanência. Além das imagens infernais que também são válidas para o Purgatório, não existe pois grande coisa no Antigo Testamento (se excluirmos uma passagem muito especial do livro dos Macabeus de que falarei adiante) que anuncie o Purgatório cristão. Somente sob dois pontos de vista o Antigo Testamento deixa supor que poderá haver diferenças de lugar no shéol e que de lá se possa ser tirado por Deus. Primeiro, o Antigo Testamento distingue no shéol as suas profundezas máximas reservadas a mortos especialmente vergonhosos: os homens não circuncisados, as vítimas de assassínios, os mortos por execução e os mortos sem sepultura, mas trata-se mais de mortos impuros do que de mortos culpados. Certos textos dos Salmos, principalmente, sugerem uma possibilidade de libertação. Volta, Jeová, liberta a minha alma, Salva-me, pelo teu amor. Pois, na morte, não há memória de ti: No shéol, quem te louvará? (Salmo VI, 5-6).
Rebanho preso no shéol, a Morte leva-os a pastar, e os homens justos dominá-tos-ão. De manhã a sua imagem desvanece-se, o shéol, eis a sua residência! Mas Deus resgatará a minha alma das garras do shéol e levar-me-á consigo, (Salmo XLIX,
15-16).
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Porque Tu não podes abandonar a minha alma ao shêol, não podes deixar o teu amigo ver o fosso Tu me ensinarás o caminho da vida, perante o Teu rosto, plenitude de alegria, à tua direita, delícias eternas.
Entre o século II a.C. e o século III da nossa era (e ainda durante muito tempo, pois as versões gregas e sobretudo latinas de textos hebraicos, sírios, captas, etíopes e árabes só viram a luz do dia mais tarde), um conjunto de textos elaborados no Médio Oriente, principalmente na Palestina e no Egipto, vieram enriquecer de maneira decisiva as concepções e as representações do além. A maioria destes textos não foi incluída pelas diversas igrejas oficiais entre os documentos ditos autênticos da doutrina e da fé. Fazem parte desse conjunto de textos chamados apócrifos pela Igreja cristã latina (os protestantes apelidarão de pseudo-epigráficos os textos não canónicos do Antigo Testamento). Este carácter apócrifo, aliás, só tardiamente foi imposto a alguns deles pelo concílio dominado por Santo Agostinho em 397 e mesmo pelo concílio de Trento no século XVI, no que respeita ao catolicismo. Assim, muitos deles tiveram durante a Idade Média alguma influência, ou porque ainda não eram considerados apócrifos e a sua utilização não provocava a reprovação da Igreja, ou porque, afastados dos textos «canónicos», circulavam no entanto mais ou menos clandestinamente por diversos canais. Um caso extraordinário foi o do Apocalipse atribuído ao apóstolo João e que, após complicadas discussões, foi aceite na Bíblia cristã latina canónica, quando não difere substancialmente dos outros textos do mesmo género. Desta literatura apócrifa judaico-cristã, o que me interessa são os textos que, pelas versões latinas ou pela sua influência no cristianismo latino, actuaram sobre as representações do além da cristandade latina medieval. Mais do que os evangelhos apócrifos, foram os relatos de visões ou de viagens imaginárias no além com ou sem o título de apocalipse - quer dizer, de revelação - que tiveram um papel na génese do Purgatório. Não irei aqui indagar em que contexto histórico geral, e social em particular, eles foram elaborados e circularam. Não vou fazer uma análise sociológica e histórica propriamente dita senão em relação às épocas em que irá nascer e se propagará a concepção nítida de purgatório, quer dizer, os séculos XII e XIII. Antes destes, contento-me com referenciar heranças de ideias e de imagens. Nesta literatura apocalíptica, um elemen-
to desempenhou um papel importante - foi a crença numa descida de Jesus aos Infernos, cujo brilho como que se reflectiu no conjunto apocalíptico. É notável que a maioria destes apocalipses relatem mais uma viagem ao céu do que uma descida aos infernos, traço característico do clima de expectativa e de esperança dos séculos próximos do aparecimento do cristianismo. Dos apocalipses judaicos referirei o Livro de Henoch e o quarto Livro de Esdras; dos cristãos o Apocalipse de Pedro, o Apocalipse de Esdras e sobretudo o Apocalipse de Paulo. Do Livro de Henoch apenas resta um pequeno fragmento na versão latina abreviada por um único manuscrito do século VIII conservou. A versão mais completa que se conhece é uma versão etíope feita a partir do grego". O original foi escrito numa língua semítica,provavelmente 9 hebreu, foi composto do século 11 ao I a.C. e sofreu a influência egípcia. E um texto heterogéneo, cuja parte mais antiga remonta sem dúvida à época do aparecimento da literatura apocalíptica, um pouco antes de 170 a.C .. É pois um dos testemunhos mais antigos dessa literatura. Referências ao além encontram-se principalmente na primeira parte, o Livro da Assunção de Henoch. Henoch, guiado por anjos, é levado para «um lugar (uma casa) cujos habitantes são como fogo ardente» depois para a morada das tempestades, do trovão e das águas da vida. «E cheguei a um rio de fogo do qual o fogo corre como água e se derrama no alto mar e atingi uma grande escuridão ... vi as montanhas de trevas do Inverno e a boca do abismo» (Cap. XVII). Depois ele chega ao poço do Inferno: «Depois vi um abismo profundo junto das colunas de fogo do céu, e vi entre elas colunas de fogo que desciam e cuja altura e profundidade eram incomensuráveis» (Cap. XVIII). Henoch pergunta então ao IlOjORafael que o acompanha onde é a morada das almas dos mortos untes do julgamento. É o capítulo XXII, onde aparece a ideia dos lugares do além e das categorias de mortos que estão à espera. Contrariamente aos Babilónios e aos Hebreus que localizavam o arallü e o shéol no mundo subterrâneo, mas como quase sempre fizeram os Egípcios, o uutor do livro parece situar esse além da espera num recanto distante da superficie da terra. «De lá fui para uni outro lugar, e ele mostrou-me a ocidente uma montanha grande e alta e rochedos duros. Havia neles quatro cavidades muito profundas, muito largas e muito lisas, sendo três delas escuras e uma luminosa, e no meio estava uma fonte de água ...» Rafael explica a Henoch: «Estas cavidades são (feitas) para nelas se reunirem os filhos das almas dos mortos ... para os deixar lá morar até ao dia do seu julgamento e até ao momento que lhes foi fixado; e esse longo tempo (durará) até ao grande julgamento (que Ihes farão).» Henoch olha: «Vi os espíritos dos filhos dos homens que estavam mortos, e a V01. deles chegava ao céu e lamentava-se.» As quatro cavidades abrigam
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(Salmo XVI, 10-11).
As visões apocalípticas judaico-cristãs
quatro categorias de mortos classificados segundo a inocência ou a culpa das respectivas almas e segundo os sofrimentos que suportaram ou não sobre a terra. A primeira acolhe os mártires justos, é a cavidade clara, junto da fonte de água luminosa. A segunda recebe os outros justos que ficam na sombra, mas que no julgamento fmal receberão as recompensas eternas. A terceira abriga os pecadores que não sofreram qualquer castigo nem provação sobre a terra e que no julgamento serão condenados às penas eternas. Há por fim uma quarta categoria: a dos pecadores que foram perseguidos cá em baixo e, em especial, os que foram assassinados por outros pecadores. Esses serão menos castigados. Continuando a sua viagem, Henoch encontra mais uma vez o Inferno, mas sob outro aspecto: «Então eu disse: "Porque é esta terra abençoada e está cheia de árvores enquanto esta garganta no meio (das montanhas) é maldita?"» Uriel, que desta vez é o guia de Henoch, responde-lhe: «Este vale maldito é (destinado) aos malditos para toda a eternidade» (Cap. XXVII). Encontramos pois no Livro de Henoch as imagens de um inferno abismo ou vale estreito, de uma montanha terrestre como morada no intervalo entre a morte e o julgamento, de uma gradação das penas, que só parcialmente dependem do mérito dos homens. Sendo a obra composta de pedaços provenientes de diversas épocas, apresenta contradições principalmente a respeito do além. No capítulo XXII da primeira parte, as almas dos mártires justos gritam vingança enquanto na quinta parte todas as almas dos justos dormem um longo sono veladas por anjos, à espera do julgamento final. Na segunda parte (O Livro das Parábolas), Henoch tem uma visão completamente diferente do lugar de espera: vê leitos para repouso dos justos na extremidade dos céus, e mesmo, parece, no céu, no meio dos anjos e ao lado do Messias (Cap. XXXV). Esta imagem da espera na posição de deitado encontrar-se-á em certas prefigurações do Purgatório medieval, por exemplo a propósito de Artur no Etna. Enfim, no capítulo XXXIX vêem-se as almas dos mortos intervir junto dos deuses a favor dos vivos: «Eles pedem, eles intercedem, eles rezam pelos filhos dos homens.» Esta ideia da reversibilidade dos méritos no além demorará muito tempo a impor-se na Idade Média. Somente no fun desse período às almas do Purgatório será reconhecido definitivamente este privilégio. O quarto Livro de Esdras também é feito de vários pedaços cosidos uns aos outros provavelmente por um judeu zelote cerca do ano 120 da nossa era, quer dizer pelo fim do período do apocalipse judaico. Possuímos versões dele em sírio, árabe e arménio. A versão grega original perdeu-se. Vários manuscritos, dos quais os mais antigos remontam ao , -1' atma, aque Ia que aqui. re fi29E seculo IX, conservaram uma versao tro . sdras pergunta ao Senhor: «Se em ti encontrei a graça, Senhor, mostra
também ao teu servo se depois da morte ou agora, quando cada um de nós entrega a alma, seremos deixados em repouso até que chegue o dia em que ressuscitarás a criatura ou se em seguida (depois da morte) seremos castigados'".» É-lhe respondido que «aqueles que desprezaram o caminho do Altíssimo, os que desprezaram a sua lei ou odiaram aqueles que temem a Deus não entrarão nos habitáculos mas antes vaguearão e serão em seguida castigados, sofredores e tristes segundo sete "vias" diferent08»31.A quinta destas «vias» consistirá na «visão dos outros (mortos) que serão mantidos pelos anjos nos habitáculos onde reinará um grande !lilêncio»32.Reencontra-se aqui a ideia presente na quinta parte do Livro de Henoch. Em compensação, há sete «ordens» (ordines) prometidas aos habitáculos da Salvação (da saúde e da tranquilidader' . Depois de terem sido separadas dos seus corpos, estas almas «terão durante sete dias a liberdade de ver a realidade que lhes foi profetizada e depois serão reunidas nos Meusbabitáculosa". Só existem aqui, pois, dois grupos em tempo de espera; os que são castigados e os que são deixados em paz. O que é interessante é a evocação dos receptáculos do além chamados habitationes ou habitacu/a. Concepção espacial que se encontra ainda reforçada e alargada pela passagem que se segue. A «ordem» dos que respeitaram as vias do Altíssimo repousará segundo sete «ordens» diferentes. A quinta consistirá em «exultar ao ver que se retiraram do (corpo) corruptível e que possuirão a herança que há-de vir, ao verem também o mundo "fechado" e cheio de sofrimento de onde foram libertados, e ao começarem a receber o universo cheio de espaço, felizes e imortais» 35. Assim se exprime esse sentimento de libertação espacial, essa preocupação com o espaço nas coisas do além que me parece fundamental no nascimento do Purgatório. O Purgatório será um habitáculo ou um conJunto de habitáculos, um lugar de reclusão; mas também entre o Inferno e () Purgatório, entre o Purgatório e o Paraíso, o território cresce, o espaço dilata-se. Dante saberá exprimi-lo maravilhosamente. O quarto Livro de Esdras despertou a atenção dos antigos autores cristãos. É verdade que a primeira citação indubitável se encontra em Clemente de Alexandria (Stromata, III, 16), um dos «pais» do Purgatório, mas a passagem que acabo de citar foi objecto de um comentário de Santo Ambrósio no século IV. No seu tratado De bono mortis (Do bem da morte), Ambrósio quer provar a imortalidade da alma e combater a pompa funerária dos Romanos. «A nossa alma, diz ele, não fica fechada no túmulo com o corpo ... É uma pura perda que os homens construam túmnlos sumptuosos como se eles fossem os receptáculos (receptacula) da alma e não apenas do corpo.» E acrescenta: «As almas, essas, têm receptáculos lá em cima ".» Cita
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então demoradamente o quarto Livro de Esdras e os seus habitacu/a que são, diz ele, a mesma coisa que as habitações (habitationes) de que falou o Senhor quando disse «na casa de meu pai há muitas moradas (mansiones)» (João, XIV, 2). Pede desculpa por citar Esdras, que inclui no número dos filósofos pagãos, mas pensa que isso impressionará talvez os pagãos. Depois de se deter nos habitáculos das almas, e sempre citando Esdras, retoma também a classificação das sete «ordens» de almas dos justos. Misturando, por assim dizer, as «vias» e as «ordens», alude aos habitáculos onde reina uma grande tranquilidade (in habitaculis suis cum magna tranquil/itate). Faz notar que Esdras referiu que as almas dos justos começam a entrar no espaço, na bem-aventurança e na imortalidade37• E Ambrósio conclui este longo comentário à passagem do quarto Livro de Esdras, congratulando-se por este ter terminado evocando as almas dos justos que, ao fim de sete dias, irão para os seus habitáculos, porque mais vale falar mais demoradamente da bem-aventurança dos justos do que da desgraça dos ímpios. Os apocalipses cristãos situam-se ao mesmo tempo em continuidade e em ruptura com os apocalipses judaicos. Em continuidade, porque se inserem no mesmo contexto e porque, durante os dois primeiros séculos da era cristã, é por vezes mais exacto falar de judaico-cristianismo do que de duas religiões separadas. Mas também em ruptura porque a ausência ou a presença de Jesus, as atitudes opostas em relação ao Messias, a crescente diferencia~ão dos meios e das doutrinas acentuam progressivamente as diferenças 8. Aqui, eu opto pelo Apocalipse de Pedro, o mais antigo e, sem dúvida, o que conheceu maior êxito nos primeiros séculos, pelo Apocalipse de Esdras porque dele possuímos interessantes versões medievais, e pelo Apocalipse de Paulo, enfim, porque foi o que teve maior influência durante a Idade Média e constitui a referência fundamental do Purgatório de S. Patrick, texto decisivo, no fim do século XII, para o nascimento do Purgatório e para Dante. O Apocalipse de Pedro foi sem dúvida composto no fim do século I ou no princípio do século II na comunidade cristã de Alexandre .por ~m judeu convertido e influenciado ao mesmo tempo pelos apocahpses JUdaicos e pela escatologia popular grega.39 No século lI, ele figura no catálogo das obras canónicas adaptadas pela Igreja de Rom~, mas foi excluído do cânone fixado pelo concílio de Cartago em 397. Insiste sobretudo nos castigos infernais que retrata com grande vigor, valendo-se de imagens vindas, na sua maioria, através do judaísmo e do helenis,mo, do masdeismo iraniano. A literatura medieval do além conservara a sua classificação das penas do inferno segundo as categorias de pecados e de pecadores. Como, no século XIII, os usurários estão entre os primeiros a beneficiar do Purgatório, contentar-me-ei com o seu exemplo no Apo-
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calipse de Pedro: são engolidos por um lago de pus e de sangue em ebulição. Os temas são os da evocação tradicional dos infernos, da obscuridade (cap. XXI): «Vi um outro lugar, completamente escuro e era o lugar do castigo»; da omnipresença do fogo (cap. XXII): «E alguns estavam pendurados pela língua, eram os caluniadores, e por baixo deles havia fogo que flamejava e os torturava»; capo XXVII: «E outros homens e mulheres estavam em pé, com chamas até ao meio do corpo»; capo XXIX: «E à frente deles havia homens e mulheres que mordiam a língua e tinham fogo na boca. Eram as falsas testemunhas ...)) O Apocalipse de Pedro apoia-se firmemente numa visão dualista e compraz-se com a sua faceta infernal. Esta visão encontra-se em antigos textos cristãos que influenciou como o De /aude martyrii (O Louvor do Mártir) que foi atribuído a S. Cipriano e é provavelmente de Novaciano. ((O lugar cruel a que chamamos geena ressoa com um grande gemido de queixumes, no meio de línguas de chamas, numa noite horrível de fumo espesso vindo dos caminhos ardentes que emitem incêndios sempre renovados, onde uma compacta bola de fogo forma a porta de saída e espalha-se em diversas formas de tormentos ... Os que recusaram a voz do Senhor e desprezaram as suas ordens são castigados com penas proporcionais; e, segundo o mérito, Ele dá a salvação ou julga o crime ... Aqueles que sempre procuraram e conheceram Deus recebem o lugar do Cristo, onde habita a Graça, onde a terra luxuriante está coberta de relva em pastos floridos'" ...)) Deste dualismo e destas cores sombrias emerge, no entanto, um apelo II justiça: Justa é a justiça de Deus Boa é a sua justipa.
Em contraste, o Apocalipse de Esdras, texto muito lido e citado na Idade Média, não apresenta qualquer prefiguração do Purgatório mas oferece-nos alguns dos seus elementos. Lá encontramos o fogo e a ponte; o acesso é por degraus. Lá encontramos principalmente os grandes deste mundo, tal como os veremos no Purgatório nos textos da polémica política que Dante evocará. O Apocalipse de Esdras apresenta-se em três versões: o Apocalipse de Esdras propriamente dito, o Apocalipse de Sedrach e a Visão do Bem-Aventurado Esdras. Esta última é a mais antiga; é a versão latina de um original hebreu e foi conservada em dois manuscritos, um dos séculos XXI, outro do século xrr". Esdras, guiado por sete anjos infernais, desce ao Inferno por setenta degraus. Vê então portas de fogo em frente das quais estão sentados dois 53
leões que deitam pela boca, pelas narinas e pelos olhos chamas potentíssimas. Vê passar homens vigorosos que atravessam as chamas sem que elas lhes toquem. Os anjos explicam a Esdras que aqueles são os justos cuja fama chegou ao céu. Outros vêm para passar as portas mas os cães devoram-nos e o fogo consome-os. Esdras pede ao Senhor que perdoe os pecadores, mas não é ouvido. Os anjos dizem-lhe que aqueles infelizes renegaram Deus e pecaram com as suas mulheres ao domingo antes da missa. Continuam a descer os degraus e ele vê homens de pé sofrendo tormentos. Há uma marmita gigante cheia de um fogo sobre cujas labaredas os justos passam sem dificuldade enquanto os pecadores, empurrados por diabos, caem dentro dela. Vê a seguir um rio de fogo com uma grande ponte de onde tombam os pecadores. Encontra Herodes sentado num trono de fogo, cercado por conselheiros que estão de pé junto dele. Apercebe-se de um grande caminho de fogo a oriente, para onde são enviados muitos reis e príncipes deste mundo. Passa a seguir pelo Paraíso, onde tudo é «Luz, alegria e salvação». Faz mais uma prece pelos condenados mas o Senhor diz-lhe: «Esdras, modelei o homem à minha imagem e ordenei-lhes que não pecassem e eles pecaram; é por isso que são atormentados.»
De todos estes apocalipses aquele que teve maior influência na literatura medieval do além em geral, e do Purgatório em particular, foi o Apocalipse de Paulo. É um dos textos mais tardios deste conjunto apocalíptico, pois foi sem dúvida elaborado em grego pelos meados do século III da era cristã, no Egipto. O Apocalipse de Paulo, de que existem versões em arménio, copta, grego, eslavo e sírio, conheceu oito redacções diferentes em latim. A mais antiga data talvez do fim do século IV, de qualquer modo do século VI ou mais tarde. É a mais longa. No século IX fizeram-se redacções curtas. Delas, a chamada redacção IV, obterá o maior êxito. Desta, conhecem-se trinta e sete manuscritos. Entre as novidades que ela introduz na obra encontra-se a imagem da ponte que vem de Gregório, o Grande, e a roda de fogo que vem do Apocalipse de Pedra e dos oráculos sibilinos. De uma maneira geral é esta versão que na Baixa Idade Média será traduzida para diversas línguas vulgares. A versão V é a mais interessante para a história do Purgatório, pois é a primeira a acolher a distinção entre um inferno superior e um inferno inferior, introduzida por Santo Agostinho, retomada por Gregório, o Grande, e que, entre os séculos VI e XII se tornou a base da localização por cima do Inferno daquilo que será, no fim do século XII, o Purgatóri042.
É extraordinário que o Apocalipse de Paulo tenha conhecido um tal êxito na Idade Média, quando fora severamente condenado por Santo Agostinho. A razão, além da sua repugnância pelas ideias apocalípticas, é, sem dúvida, o facto de a obra concretizar a segunda epístola de S. Paulo aos Corintios, na qual, no entanto, se baseia. Com efeito, Paulo diz: «Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos - seria no seu corpo? não sei; seria fora do seu corpo? não sei; Deus sabe - ... esse homem foi transportado até ao terceiro céu. E esse homem - seria no seu corpo? seria sem o seu corpo? não sei, Deus sabe -, sei que ele foi transportado até ao Paraíso e que ouviu palavras inefáveis que nenhum homem está autorizado a repetir» (lI Coríntios, XII, 2-4). De onde o comentário de Agostinho: «Gente presunçosa, na sua grande insensatez, inventou o Apocalipse de Paulo que, a justo título, a Igreja não aceita, e que está cheio nem sei de que fábulas. Dizem que é o relato do seu rapto para o terceiro céu e a revelação das palavras inefáveis que ele escutou e que não é permitido a qualquer homem repetir. Poder-se-á tolerar a sua audácia? então se ele disse ter escutado o que nenhum homem é autorizado a repetir, repetiu-o ele, aquilo que não é permitido a qualquer homem repetir? Quem são então os que ousam referi-Ias com tamanho descaramento e indecoro't3» Evoco aqui a redacção V. Após uma breve introdução em que se trata de dois infernos a que voltarei, S. Paulo alcança o Inferno superior, o futuro Purgatório, do qual apenas diz que «lá viu as almas daqueles que aguardavam a misericórdia de Deus». A parte mais longa do breve relato é dedicada à descrição das penas do Inferno e é dominada por duas preocupações: fornecer pormenores mais precisos e identificar e classificar os condenados. S. Paulo vê árvores de fogo de onde pendem os pecadores e depois um fomo ardente com chamas de sete cores onde outros são torturados. Vê os sete castigos que as almas dos condenados ali suportam diariamente, sem contar as inúmeras penas específicas suplementares: a fome, a sede, o frio, o calor, os vermes, o mau cheiro e o fumo. Vê (conservo a palavra latina vidit que surge constantemente e exprime o próprio estilo do apocalipse, onde se revela o que se viu e que é normalmente invisível) a roda de fogo onde ardem ao mesmo tempo mil almas. Vê um rio horrível com a ponte onde passam todas as almas e onde as dos condenados estão mergulhadas até 110 joelho, ou até ao umbigo, ou aos lábios, ou às sobrancelhas. Vê um lugar tenebroso onde os usurários (homens e mulheres) comem as próprias línguas. Vê um lugar onde, todas de negro, as raparigas que pecaram contra a castidade e mataram os filhos são oferecidas a dragões e a serpentes. Vê mulheres e homens nus, os perseguidores de viúvas e de órfãos, num lugar gelado onde metade deles arde e a outra metade geIH. Finalmente (abrevio), as almas dos condenados, ao verem passar a
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Uma fonte: o Apocalipse de Paulo
alma de um justo levada pelo arcanjo Miguel para o Paraíso, suplicam-lhe que interceda por elas junto do Senhor. O arcanjo convida-as, juntamente com Paulo e os anjos que o acompanham, a suplicar a Deus, chorando, que lhes conceda um refrigério (refrigerium). O imenso coro de prantos que se desencadeia faz descer do Céu o Filho de Deus que recorda a sua Paixão e os pecados delas. Mas deixa-se comover pelos rogos de S. Miguel e de S. Paulo e concede-lhes o repouso (requies ) desde sábado à noite até segunda-feira de manhã (ab hora nona sabbati usque in prima secunde ferie). O autor do Apocalipse faz o elogio do domingo. Paulo pergunta ao anjo quantas penas' do Inferno existem e o anjo responde-lhe: cento e quarenta e quatro mil; e acrescenta que, se desde a criação do mundo cem homens com sete línguas de ferro cada um tivessem falado sem parar, nem sequer teriam ainda chegado ao fim da enumeração das penas do Inferno. O autor da Visão (Vision} convida os ouvintes desta revelação a entoarem o Veni creator. Tal é a estrutura, numa versão do século XII, da visão do além que conheceu maior êxito na Idade Média, antes da existência do Purgatório. Nela se encontra uma descrição das penas do Inferno que reaparecerá em grande parte no Purgatório, quando este tiver sido definido como um inferno temporário. Nela se sente, sobretudo pela distinção entre os dois infernos e pela ideia de um repouso sabático no inferno'", a necessidade de mitigação das penas no além, de uma justiça mais discreta e mais clemente. Não vou deter-me no maniqueísmo e na gnose que, apesar das complexas conexões que tiveram com o cristianismo, me parecem ser religiões e filosofias muito diferentes. Só os contactos entre religiões e povos que existiram no Médio Oriente dos primeiros séculos da era cristã obrigam, parece-me, à evocação das doutrinas que puderam ter alguma influência no cristianismo grego em larga medida, e eventualmente latino. Se na gnose se encontram concepções do Inferno como prisão, noite, c/oaca, deserto, a tendência para a identificação do mundo com o Inferno limita as semelhanças com o cristianismo onde, mesmo nos melhores tempos do desprezo do mundo (contemptus mundi) no Ocidente medieval, essa identificação não existiu. Também não me parece que a divisão do Inferno por cinco religiões sobrepostas, perfilhada pelos mandeístas e pelos maniqueístas, tenha ligações com a geografia cristã do além. Resta a obsessão das trevas que pôde estender-se tanto num sentido infernal como num sentido místico positivo. Mas essa constitui um aspecto tão geral do sagrado que a aproximação entre maniqueístas, gnósticos e cristãos à volta desta concepção não me parece significativa. Quanto à angústia do tempo, encarada como um mal essencial que faz do tempo do inferno uma encarnação aterradora do tempo genuíno, creio aue ela afasta do cristianismo tanto os maniqueístas como os gnósticos" .
Esta viagem ao mesmo tempo longa e sumária aos antigos «além» não era uma procura das origens. Os fenómenos históricos não saem do passado como uma criança do ventre da mãe. Nas suas heranças, as sociedades e as épocas fazem opções. Pretendi simplesmente explicar a opção feita pelo cristianismo latino em dois períodos, entre os séculos III e VII primeiro, mas sem ir até ao fim da lógica do sistema; entre meados dos séculos XII e XIII depois, de maneira decisiva, a favor de um além intermédio entre o Inferno e o Paraíso durante o período compreendido entre a morte individual e o julgamento geral. Um olhar sobre o passado proporciona um duplo esclarecimento. Permite descobrir certos elementos, certas imagens que os cristãos escolherão para os incluir no seu Purgatório; com eles, este adquirirá certos traços, certas cores que se compreendem melhor - se bem que inseridos num sistema novo e tendo mudado de sentido - quando se sabe de onde, provavelmente, vêm. Por outro lado, esses esboços antigos de crenças e de imagens, que poderiam transformar-se numa espécie de purgatórios, fornecem informações sobre as condições históricas e lógicas que podem conduzir à noção de Purgatório e que podem também abortar nestas evoluções. A noção de justiça e de responsabilidade subjacente a todas estas tentativas não chega a desenvolver-se - em relação às estruturas sociais e mentais - numa escala de castigos que só a metempsicose parece ter então satisfeito. Os deuses reservavam para outros problemas - por exemplo, o dos sacrificios - a subtileza que não lhes faltava. Debruçar-se sobre a sorte dos mais ou menos bons, dos mais ou menos maus, teria sido um luxo numa época em que o essencial era proceder a triagens grosseiras, em que o cambiante pertencia frequentemente ao domínio do supérfluo. Tanto mais que os conceitos de tempo de que dispunham essas sociedades - mesmo que, como demonstrou Pierre Vidal-Naquet, se tenha exagerado a ideia de um tempo circular e de um regresso eterno permitiam mal situar esse tempo incerto entre a morte e o destino eterno do homem. E também, como inserir um terceiro além entre o céu e a terra, entendida como o mundo subterrâneo dos infernos, entre aquilo que os Gregos chamavam o celeste e o ctónico? Em todo o caso, não nesta terra, para sempre abandonada pelo imaginário da felicidade eterna desde o fim da idade de ouro.
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Os judeus descobrem um além intermédio Nesta reviravolta da era cristã, rica em mudanças, parece-me ter sido decisiva para o desenvolvimento da ideia de purgatório a evolução do pensamento religioso judaico. Encontramo-Ia nos textos rabínicos dos dois primeiros séculos da era cristã.
Manifesta-se primeiro por uma maior precisão da geografia do além. Quanto ao fundo - na maioria dos textos - não há grandes modificações. Depois da morte, as almas vão sempre ou para um lugar intermédio, o shéol, ou directamente para o lugar do castigo eterno, a geena, ou de recompensas, também eternas, o Eden. Os céus são essencialmente a morada de Deus, mas certos rabinos situam neles também a morada das almas dos justos. Neste caso, elas estão no sétimo céu, no mais alto dos sete firmamentos. Mas interrogamo-nos sobre as dimensões do além e sobre a sua localização em relação à terra. O shéol é sempre subterrâneo e escuro, é o conjunto das covas e dos túmulos, o mundo dos mortos e da morte. A geena situa-se sob o abismo ou debaixo da terra que lhe serve de tampão. É possível ir até lá pelo fundo do mar, e cavando o deserto, ou por trás. de sombrias montanhas. Comunica com a terra por um pequeno buraco por onde passa o fogo (da geena) que a aquece. Alguns imaginam esse buraco próximo de Jerusalém, no vale de Hinnom, para onde dão as respectivas portas - três ou sete - entre duas palmeiras. É imensa, sessenta vezes maior do que o Éden, e para alguns é mesmo incomensurável; pois, feita para receber duzentas a trezentas miríades de ímpios, aumenta todos os dias para poder acolher novos hóspedes. O jardim do Éden é o da criação; não existe diferença entre o paraíso terrestre de Adão e o paraíso celeste dos justos. Fica em frente ou ao lado da geena, muito próximo para uns, mais distante para outros, de qualquer modo separado dela por um fosso intransponível. Alguns atribuem-lhe uma extensão sessenta vezes maior do que a do mundo, mas outros declaram-no incomensurável. Tem portas, geralmente três. Certos rabinos foram lá, mas Alexandre tentou em vão transpor uma das suas portas. Entre os justos que lá se encontram está Abraão que recebe os seus fílhos'". Uma outra concepção, tripartida, do destino no além é a que aparece principalmente em certas escolas rabínicas. Dois tratados do período entre a destruição do segundo Templo (70) e a revolta de Bar. Kochba (132-135) atestam em especial este novo ensinamento. O primeiro é um tratado sobre o começo do ano (Rãs Ha-Sana). Nele se lê: Ensina-se, segundo a escola de Sammay: no julgamento haverá três grupos: o dos justos perfeitos, o dos ímpios perfeitos e o dos intermédios. Os justos perfeitos são logo lançados e confirmados para a vida do século; os ímpios perfeitos são logo lançados e confirmados para a geena, segundo o que é dito (Daniel, XII, 2). Quanto aos intermédios, descem à geena, ficam enc1ausurados e voltam a subir, segundo o que é dito (Zacarias, XIII, 9 e I, Samuel, 11, 6). Mas os hilelitas dizem: aquele que abunda em misericórdia, 58
tende para a misericórdia, e é desses que fala David (Salmo CXVI, 1) ao afirmar que Deus escuta e pronuncia em relação a eles todo este trecho ... oecadores israelítas e estrangeiros que pecaram no seu corpo, punidos com a geena durante doze meses e depois aniquilados ... O segundo é um tratado menos a mesma coisa:
sobre os tribunais
(Sanhedrin).
Diz mais ou
Os da escola de Sammay dizem: há três grupos, um para a vida do século, o outro para a vergonha e o desprezo eternos; são os ímpios perfeitos, dos quais os casos menos graves descem à geena para lá serem punidos e voltam a subir curados, segundo Zacarias, XIII, 9; é deles que se diz (I Samuel, Il, 6): Deus dá a morte e vivifica. Os hilelitas dizem (Êxodo, XXXIV, 6) que Deus abunda em misericórdia; tende para a misericórdia e deles David diz todo o trecho do Salmo CXVI, I. Os pecadores de Israel, culpados no seu corpo, e os pecadores das nações do século, culpados no seu corpo, descem à geena para lá serem punidos durante doze meses, depois as suas almas são destruídas e os seus corpos queimados e a geena vomita-os, tomam-se cinza e o vento dispersa-os sob os pés dos justos (Malaquias, 4, 3, 3, 21). Enfim, o rabino Aqiba, um dos maiores doutores da Michna que morreu ao ser torturado após o revés da revolta de Bar Kochba (135), ensinava a mesma doutrina. «Dizia também que cinco coisas duram doze meses; o julgamento da geração do dilúvio, o julgamento de Job, o julgamento dos Egípcios, o julgamento de Gog e Magog no futuro, e o julgamento dos ímpios na geena, segundo o que é dito (Isaías, LXVI, 23): de mês a mês'".» Existe, pois, uma categoria intermédia composta por homens nem totalmente bons nem totalmente maus, que sofrerão um castigo temporário após a morte e em seguida irão para o Éden. Mas esta expiação far-se-á depois do Julgamento Final e terá lugar não num sítio especial mas na geena. Esta concepção levará, todavia, a diferenciar na geena uma parte superior onde acontecerão estes castigos temporários. Há, pois, uma tendência para acentuar a «espacialização» do além e para criar uma categoria intermédia de condenados temporários. Poderemos pensar que, assim como no século XII o aparecimento de uma nova espécie de intelectuais, os mestres das escolas urbanas inventores da escolástica, foi um dos elementos decisivos para o nascimento do Purgatório propriamente dito, também nos dois primeiros séculos da era cristã e ligado à estrutura sociale à evolução dos quadros mentais das comunidades judaicas, o desenvolvimento dos ensinamentos dos rabinos, da exegese rabínica, levou os judeus à beira da concepção do purgat6ri048•
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o Purgatório
cristão estará contido em embrião na Sagrada
Escritura?
A doutrina cristã relativa ao Purgatório só foi aperfeiçoada - na sua forma católica, visto que os protestantes a recusaram - no século XVI, pelo concílio de Trento. Depois deste, os doutrinadores católicos do Purgatório, Bellarmin e Suarez, puseram em relevo vários textos da Escritura. Referir-me-ei aqui apenas àqueles que desempenharam efectivamente um papel no nascimento do Purgatório. Apenas um texto do Antigo Testamento, tirado do Livro 11 dos Macabeus - que os protestantes não consideram canónico - foi aproveitado pela teologia cristã antiga e medieval, de Santo Agostinho a S. Tomás de Aquino, como prova da existência de uma crença no Purgatório. Nesse texto, após uma batalha onde os combatentes judeus que nela foram mortos teriam cometido um misterioso delito, Judas Macabeu ordena que se reze por eles.
Assim, tendo bendito a conduta do Senhor, juiz imparcial que torna manifestas as coisas escondidas, todos se puseram a orar para pedir que o pecado cometido fosse inteiramente apagado, depois o valoroso Judas exortou a multidão a permanecer pura de todo o pecado, atentando no que acontecera por causa do pecado daqueles que tinham tombado. Depois, tendo feito uma colecta de cerca de dois mil dracmas, mandou-os para Jerusalém para que fosse oferecido um sacrificio pelo pecado, agindo muito bem e com nobreza com o pensamento na ressurreição. Como não esperava que os soldados caídos tivessem de ressuscitar, era supérfluo e tolo rezar pelos mortos e, se pensava que uma belíssima recompensa estava reservada àqueles que se vão em graça, esse era um pensamento santo e piedoso. Eis porque ele mandou fazer aquele sacrificio expiatório pelos mortos, a fim de que ficassem livres do seu pecado (11 Macabeus, XII, 41-46).
Novo Testamento corresponde um trecho do Antigo Testamento que a anuncia. O que se passa então no Novo Testamento quanto a isto? Três textos desempenharam um papel especial. O primeiro está no Evangelho de Mateus (XII, 31-32-): Digo-vos que todo o pecado e blasfémia serão remidos aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito Santo não será remida. E se alguém disser uma palavra contra o Filho do Homem isso ser-Ihe-á remido; mas se falar contra o Espírito Santo, isso não lhe será remido, nem neste mundo nem no outro.
É capital. Indirectamente - mas a exegese, pondo em evidência pressupostos, foi habitual no cristianismo e parece-me ter fundamento lógico . supõe e portanto afirma a possibilidade de remissão dos pecados no outro mundo. Um segundo texto é a história49 do pobre Lázaro e do rico mau, que nos conta o Evangelho de Lucas: Havia um homem rico que se vestia de púrpura e de linho fino e todos os dias oferecia belas refeições. E um pobre, chamado Lázaro, jazia perto do seu portal, todo coberto de feridas. Bem queria ele poder matar a fome com o que caía da mesa do rico. Ainda por cima, os próprios cães vinham lamber-lhe as feridas. Ora aconteceu o pobre morrer e ser levado pelos anjos para o seio de Abraão. O rico também morreu e sepultaram-no. No Hades, sofrendo torturas, ele ergue os olhos e vê ao longe Abraão, e Lázaro no seu seio. Então gritou: «Pai Abraão, tem piedade de mim e manda Lázaro molhar em água a ponta do seu dedo para me refrescar a língua, pois estou aflito nestas chamas.» Mas Abraão diz: «Meu filho, lembra-te de que recebeste os teus bens durante a vida, e Lázaro os seus males. Agora aqui ele é confortado e tu és atormentado. E não é tudo: entre nós e vós foi cavado um grande abismo, para que aqueles que quiserem passar daí para aqui não possam, nem também daqui para aí» (Lucas, XVI, 19-26).
Tanto os especialistas do judaísmo antigo como os exegetas da Bíblia não estão de acordo sobre a interpretação deste texto dificil que faz alusão a crenças e a práticas que não são mencionadas em qualquer outro documento. Não me vou meter nessas discussões. Para o meu objectivo, o essencial é que, segundo os Pais da Igreja, os cristãos da Idade Média viram neste texto a afirmação de dois elementos fundamentais do futuro Purgatório: a possibilidade de um resgate dos pecados depois da morte e a eficácia das orações dos vivos pelos mortos remíveis. Eu acrescentarei: texto necessário para os cristãos da Idade Média porque, para eles, toda a realidade e, por maioria de razão, toda a verdade de fé, devia ter uma base dupla nas Escrituras, conforme a doutrina do simbolismo tipo lógico que descobre na Bíblia uma estrutura em eco: a cada verdade do
Texto este que, no ponto de vista do além, precisa três pontos: o Inlemo (Hades) e o lugar de espera dos justos (seio de Abraão) são vizinhos, uma vez que se pode ver de um para o outro, mas estão separados ror um abismo intransponível; no Inferno reina aquela sede caracteristica li que Mircea Eliade chamou «a sede do morto» e que encontraremos na base da ideia de rejrigerium50; enfim, o lugar de espera dos justos é deIdgnado como o seio de Abraão. O seio de Abraão foi a primeira encarnação cristã do I urgatório. O último texto foi o que suscitou mais comentários. É uma passagem da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios:
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Na verdade, como alicerce ninguém pode colocar outro senão aquele que lá se encontra, isto é, Jesus Cristo. Pois se sobre este alicerce se construir com ouro, com prata, com pedras preciosas, com madeira, com feno, com palha, a obra de cada um tornar-se-á evidente. O Dia dá-la-á a conhecer, pois ele deve revelar-se no fogo, e é esse fogo que porá à prova a qualidade da obra de cada um. Se a obrá construída sobre o alicerce resistir, o seu autor receberá uma recompensa; se a sua obra for consumida, ele sofrerá a sua perda; quanto a ele, será salvo, mas como através do fogo (I Coríntios, lU, 11-15).
com o carácter ambivalente do fogo indo-europeu bem posto em evidência por C.-M. Edsman. Também do Novo Testamento foi tirado um episódio que desempenhou um papel importante se não na história do Purgatório, pelo menos indirectamente na concepção geral do além cristão: é a descida do Cristo aos Infernos. Baseia-se ela em três textos do Novo Testamento. Primeiro, no Evangelho de Mateus (XII, 40). «Com efeito, tal como Jonas esteve no ventre do monstro marinho durante três dias e três noites, assim o Filho do Homem estará no seio da terra durante três dias e três noites.» Os Actos dos Apóstolos (11, 31) reportam o acontecimento ao passado: «Ele (David) viu de antemão e anunciou a ressurreição do Cristo que, na verdade, não foi abandonado no Hades e cuja carne não se corrompeu.» Enfim, na Epístola aos Romanos (X, 7) Paulo, ao opor a justiça nascida da fé à justiça nascida da antiga lei, faz falar assim a justiça nascida da fé: «Não digas no teu coração: Quem subirá ao céu? ouve: para lá fazer descer o Cristo, ou então: Quem descerá ao abismo? ouve: para fazer subir o Cristo de entre os mortos.»
Texto muito difícil, é evidente, mas que foi essencial para a génese do Purgatório na Idade Média - que quase ~odemos seguir exclusivamente através da exegese deste texto de Paulo 1. Porém, rapidamente se destacou de maneira geral a ideia essencial de que a sorte no além é diferente segundo a qualidade de cada homem, e de que existe uma certa proporcionalidade entre os méritos e os pecados por um lado, as recompensas e os castigos por outro, e que a prova decisiva para o destino último de cada um terá lugar no além. Mas o momento dessa prova parece situar-se fora do Julgamento Final. O pensamento de Paulo está aqui muito perto do judaísmo. O outro elemento do texto de Paulo que terá uma influência considerável é a evocação do fogo. A expressão como através do fogo legitimará certas interpretações metafóricas do fogo de Paulo mas no todo esta passagem autenticará a crença num fogo real. O papel do fogo toma a encontrar-se aqui: o Purgatório, antes de ser considerado um lugar foi primeiro concebido como um fogo, dificil de localizar, mas que concentrou em si a doutrina de onde iria sair o Purgatório e contribuiu muito para esse nascimento. É pois necessário dizer mais uma palavra a esse respeito. Desde a época da patrística, opiniões diversas interrogam-se sobre a natureza deste fogo: é punitivo, purificador ou probatório? A teologia católica moderna distingue um fogo do Inferno, punitivo, um fogo do Purgatório, expiatório e purificador e um fogo de julgamento, probatório. É uma racionalização tardia. Na Idade Média todos estes fogos se confundem mais ou menos: primeiro o fogo do Purgatório é irmão do do Inferno, um irmão que não está destinado a ser eterno mas que não é por isso menos ardente durante o seu período de actividade; depois, como o fogo do julgamento se situa no julgamento individual logo a seguir à morte, fogo do Purgatório e fogo do julgamento serão praticamente confundidos a maioria das vezes. Os teólogos insistem principalmente neste ou naquele aspecto do Purgatório, os pregadores medievais fizeram o mesmo, e os simples fiéis tiveram de, à sua maneira, assumir a mesma atitude. O fogo do Purgatório foi ao mesmo tempo um castigo, uma purificação e um ordálio, o que está conforme
Este episódio - para além, evidentemente, do seu sentido propriamente cristão: prova da divindade do Cristo e promessa da ressurreição que há-de vir - situa-se numa velha tradição oriental bem estudada por Joseph Kro1l52. É o tema do combate de Deus-sol com as trevas, no qual o reino onde o sol deve combater as forças hostis é equiparado ao mundo dos mortos. Este tema conhecerá grande êxito na liturgia medieval: nas fôrmulas de exorcismo, nos hinos, nas laudes, nos tropos, e finalmente nos jogos dramáticos do fim da Idade Média. Mas é através dos esclarecimentos dados por um evangelho apócrifo, o Evangelho de Nicodemo, que o episódio se vulgariza na Idade Média. O Cristo, quando da sua descida aos infernos, tira de lá uma parte daqueles que lá estavam enclausurados, os justos não baptizados por serem anteriores à sua vinda à lerra, quer dizer, essencialmente os patriarcas e os profetas. Mas aqueles que ele lá deixou continuarão enclausurados até ao fim dos tempos. Porque selou o Inferno para sempre com sete selos. Na perspectiva do Puraatório, este episódio tem uma importância tripla: mostra que existe, mesmo que só excepcionalmente, uma possibilidade de suavizar a situaçlo de certos homens depois da morte, mas afasta o Inferno dessa possibilidade, visto que foi fechado até ao fim dos tempos; enfim.cria um novo lugar do além, os limbos, cujo aparecimento será mais ou menos contemporâneo do do Purgatório, no seio da grande remodelação geográfica do além no século XII.
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A descida do Cristo aos Infernos
Orações pelos mortos
o mais importante é que os cristãos adquiriram, parece que muito cedo, o hábito de rezar pelos seus mortos. Em relação à Antiguidade esta atitude era uma novidade. Segundo uma fórmula feliz de Salomon Reinach, «os pagãos pediam aos mortos, enquanto os cristãos pedem pelos mortoss-", É claro que, como os fenómenos de crenças e mentalidades não aparecem subitamente, a intervenção dos vivos a favor dos seus mortos que sofrem no além encontra-se em certos meios pagãos, sobretudo ao nível popular. Tal foi o caso do orfismo: Orfeu diz: Os homens ... praticam acpões sagradas para obter a salvapâo dos antepassados impios; tu, que tens poder sobre eles ... tu liberta-Ios das grandes penas e da imensa torturà",
(ou princípio do VI) para encontrar uma inscrição que fale da redenção da alma de um defunto. Trata-se de uma inscrição galo-romana de Briord, cujo epitáfio contém a fórmula pro redemptionem animae suae", Por outro lado, nestas inscrições e nestas preces, não se trata de um lugar de redenção ou de espera que não o tradicional segundo o Evangelho, o «seio de Abraão», Mas é essencial para a constituição do terreno onde se desenvolverá mais tarde a crença no Purgatório que os vivos se preocupem com a sorte dos mortos, que para além da sepultura mantenham com eles laços que não sejam os da invocação da protecção dos defuntos mas da utilidade das preces feitas em sua intenção.
Um lugar de consolo: o «refrígeruaa»
Estas práticas desenvolveram-se cerca da era cristã e mais uma vez se trata de um fenómeno de época, particularmente sensível no Egipto, local de encontro por excelência das nações e das religiões. Diodoro da Sicília, que viajou para lá cerca de 50 a.C., ficou espantado com os costumes fúnebres dos Egípcios: «No momento em que a caixa que contém o morto é colocada sobre a barca, os sobreviventes invocam os deuses dos infernos e suplicam-lhes que o admitam na morada reservada aos homens piedosos. A multidão acrescenta a isto as suas aclamações acompanhadas de votos ~or que o defunto goze no Hades da vida eterna, em companhia dos bons 5.» Deve-se, sem dúvida, recolocar neste contexto a passagem do Segundo Livro dos Macabeus feito por um judeu de Alexandria durante o meio século que precedeu a viagem de Diodoro ", Testemunha ele da ausência do hábito de rezar pelos mortos na época de Judas Macabeu (cerca de 170 a.C.), cujas inovações surpeendem, e da realidade desta prática entre certos judeus um século depois. Devemos, sem dúvida, ligar a crenças deste género o estranho costume de que fala S. Paulo em I Coríntios (XV, 29-30) onde'afírma a realidade da ressurreição: «Se assim não fosse, o que ganhariam aqueles que se fazem baptizar em vez dos mortos? Se os mortos não ressuscitam mesmo, porquê então fazerem-se baptizar em vez deles?» Este baptismo para os mortos não era o baptismo cristão mas o baptismo que recebiam os prosélitos gregos que se convertessem ao judaísmo. O enorme processo epigráfico e litúrgico sobre as orações pelos mortos foi muitas vezes explorado para provar a antiguidade da crença cristã no Purgatório:". Estas interpretações parecem-me abusivas. As graças que se suplica a Deus sejam concedidas aos mortos invocam essencialmente a bem-aventurança paradisíaca, em todo o caso um estado definido pela paz (pax) e pela luz (/ux). É preciso esperar pelo fim do século V
Alguns destes textos evocam, enfim, um lugar que, embora muito próximo do seio de Abraão, nem sempre se confunde com ele: o refrigerium. Várias inscrições funerárias contêm as palavras refrigerium ou refrigerare, conforto, confortar, sozinhas ou associadas à pax (paz): in pace et refrigerium, esto in refrigerio (que ele esteja no refrigerium), in refrigerio anima tua (que a tua alma esteja no refri1erium), deus refrigeret spiritum tuum (que Deus conforte o teu espíritor' . Um excelente estudo filológico de Christine Mohrmann definiu bem a evolução semântica de refrigerium do latim clássico para o latim cristão. «Ao lado destes sentidos um tanto vagos e vacilantes, refrigerare e refrigerium assumiram, no idioma dos cristãos, um sentido técnico bem definido, a saber, o da bem-aventurança celestial. Este refrigerium enconIra-se já em Tertuliano, onde designa tanto a felicidade provisória das almas que aguardam, segundo uma concepção pessoal de Tertuliano, o regresso do Cristo ao seio de Abraão, como a felicidade definitiva no Paraiso, de que gozam, depois da morte, os mártires, e que é prometida 1I0S eleitos após o veredicto divino último ... Entre os autores cristãos posteriores, refrigerium exprime de uma maneira Jeral as alegrias do ulém-túmulo, prometidas por Deus aos seus eleitos .» Na pré-história do Purgatório o refrigerium só ocupa um lugar especial por causa da concepção pessoal de Tertuliano a que alude Christine Mohrmann. Com efeito, o refrigerium designa, como se viu, um estado de felicidade quase paradisíaca e não representa um lugar. Mas Tertuliano imaginou uma variedade especial de refrigerium, o refrigerium interim, conforto intermédio destinado aos mortos que, entre a morte individual c () julgamento definitivo, são julgados por Deus dignos de um tratamen10 de espera privilegiado. O africano Tertuliano (que morreu depois de 220) escrevera um pequeno tratado hoje perdido onde sustentava que «toda a alma estava
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fechada nos Infernos até ao dia (do julgamento) do Senhor» (De anima, LV, 5). Era o retomar da concepção do Antigo Testamento sobre o shéo/. Estes infernos são subterrâneos e foi lá que Cristo desceu durante três dias (De anima, LIV, 4). Na sua obra Contra Marcion e no seu tratado Sobre a Monogamia, Tertuliano precisou o seu pensamento sobre o além e exprimiu a sua concepção do refrigerium. Pretendia Marcion que não só os mártires mas também os simples justos eram admitidos no céu, no paraíso, logo após a morte. Tertuliano, baseando-se na história do pobre Lázaro e do rico mau, pensa que a residência dos justos enquanto esperam a ressurreição não é o céu mas um refrigerium interim, um consolo intermédio, o seio de Abraão: «Esse lugar, quero dizer o seio de Abraão, ainda que não seja celestial, mas superior aos infernos, oferece às almas dos justos um refrigério intermédio até que a consumação das coisas suscite a ressurreição geral e a concretização da recompensa ...» (Adversus Marcionem, IV, 34)61. Até lá, o seio de Abraão será «o receptáculo temporário das almas fiéis62». De facto, o pensamento de Tertuliano é ainda muito dualista. Para ele existem dois destinos opostos, um de castigo expresso pelos termos de tormento (tormentum), suplício (supplicium) e tortura (cruciatus), o outro de recompensa, designada pela palavra refrigério (refrigerium ), Dois textos precisam mesmo que cada um destes destinos é eterno'". Em compensação, Tertuliano insiste muito nas oferendas pelos defuntos, feitas no aniversário da sua morte, e sublinha que uma prática piedosa pode basear-se na tradição e na fé sem ter base nas Escrituras, o que será (sob reserva de Mateus, XII, 32, e de Paulo, 1 Coríntios III; 10-15), mais ou menos o caso do Purgatório: «As oblações pelos defuntos, fazemo-Ias no dia do aniversário da morte ... Se procurares nas Escrituras uma lei formal destas práticas e de outras semelhantes, não a encontrarás. É a tradição que as assegura, o costume que as confirma e a fé que as cumpre (De corona militis, 111,2_3)64. A inovação do Tertuliano, se é que alguma existe, no que respeita à pré-história do Purgatório, é o facto de os justos passarem por um refrigério intermédio antes de conhecerem o refrigério eterno. Mas esse lugar de refrigério não é verdadeiramente novo, é o seio de Abraão. Entre o refrigerium interim de Tertuliano e o Purgatório existe uma diferença não só de natureza - aqui uma espera repousante, ali uma provação purificadora porque punitiva e expiatória - mas também de duração: o refrigerium acolhe as almas até à ressurreição, o Purgatório apenas até ao fim da expiação. O refrigerium interim tem feito correr muita tinta. O debate mais esclarecedor foi o que opôs o historiador da arte paleocristã, Alfred Stuiber, a diversos críticos dos quais o principal é L. de Bruyne'". Este
Resta dizer que a ideia e a imagem do refrigério inspiraram - no meio que vivia Tertuliano - o mais antigo texto onde se perfila o imaginário do Purgatório. Trata-se de um texto extraordinário pela natureza e pelo conteúdo: é a Paixâo de Perpétua e de Felícidade68. Quando da perseguição dos cristãos .fricanos por Sétimo Severo em 203, um grupo de cinco cristãos, duas mulheres, Perpétua e Felicidade, e três homens, Saturo, Saturnino e Re-
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resumiu assim as suas objecções: «Segundo esta teoria ... o que teria sido deterrninante na escolha e elaboração dos temas da arte sepulcral primitiva seriam as incertezas que alimentariam as primeiras gerações cristãs sobre a sorte imediata das almas dos seus parentes mortos, obrigadas a esperar a ressurreição final na solução provisória e incerta do Hades subterrâneo. Não há ninguém que não veja o que existe de inverosímil em semelhante pretensão, desde que a iluminemos com o optimismo e a alegria que constituem uma das tendências mais fundamentais da arte das catacumbas'".» Claro que se deve desculpar a frase «não há ninguém que não veja o que existe de inverosimil..», que exprime a ingenuidade do especialista ao ulargar ao conjunto dos seus leitores a posição supostamente comum a um pequeno grupo de peritos; e que, sobretudo, substitui por uma afirmação de evidência gratuita a demonstração desejável. Mas se procurarmos entendê-Ia, parece-me que L. de Bruyne tem raI.tIoem dois pontos importantes: a análise da maioria das obras de arte funerária em que se baseia Alfred Stuiber não permite que se afirme uma crença incerta num refrigerium interim porque, como pensa com toda a sua competência L. de Bruyne, a arte das catacumbas exprime mais certezas do que inquietações, e sem dúvida também porque - conforme se reencontrará na Idade Média em relação ao Purgatório - a representação figurada de uma ideia subtil como o refrigerium interim foi muito difícil de materializar. Mas em compensação esse «optimismo», sem dúvida reforçado, se é que não imposto por autoridades eclesiásticas, já então muito autoritárias, não deve disfarçar a incerteza muito provavelmente ••limentada pela maioria dos cristãos sobre a sorte no além, antes do julgamento e da ressurreição. Incerteza que tinha, pelo menos, um duplo Iundamento: um, doutrinal, porque as Escrituras e a teologia cristãs estuvam então bem longe de possuirem concepções claras neste domínio; o nutro, existencialista, porque, perante o optimismo militante, existia entre IIH cristãos, como entre os pagãos da Antiguidade tardia, essa «ansiedade profunda que Dodds tão bem analisou67.
A primeira imaginação
de um Purgatório:
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a visão de Perpétua
vocato foram condenados à morte próximo de Cartago. Durante a sua permanência na prisão, nos dias que precederam o martírio, Perpétua, ajudada por Saturo, escreveu ou conseguiu transmitir oralmente as suas recordações a outros cristãos. Um destes redigiu o texto e acrescentou-lhe um epílogo em que narra a morte dos mártires. Os críticos mais severos não duvidam da autenticidade do texto quanto ao essencial da forma e do conteúdo. As circunstâncias da elaboração deste opúsculo, a simplicidade e a sinceridade do seu tom, fazem dele um dos mais como ventes testemunhos da literatura cristã e da literatura simplesmente. No decurso da sua detenção, Perpétua teve um sonho e viu o seu pequeno irmão Dinócrates morto. Alguns dias depois, quando estávamos todos em oração, chegou-me subitamente aos ouvidos uma voz, e o nome de Dinócrates escapou-me. Fiquei estupefacta porque nunca pensara nele antes desse momento; penalizada, recordei a sua morte. Logo compreendi que era digna de pedir qualquer coisa para ele e que devia fazâ-lo. Comecei uma longa prece, dirigindo ao Senhor os meus lamentos. Na noite seguinte, eis o que me apareceu: vejo Dinócrates a sair de um lugar de trevas onde se encontrava com muitos outros, todo em brasa e cheio de sede, sujo e andrajoso, tendo na face a chaga que tinha quando morreu. Dinócrates era o meu próprio irmão; morreu de doença com a idade de sete anos, com o rosto devorado por um cancro maligno e a sua morte revoltou toda a gente. Eu rezara por ele: e entre mim e ele a distância era tão grande que não podíamos juntar-nos. No local onde se encontrava Dinócrates havia um recipiente cheio de água, com a parte de cima alta de mais para o tamanho de uma criança. E Dinócrates punha-se na ponta dos pés como se quisesse beber. Eu sofria por ver que havia água no recipiente, mas que ele não poderia beber por causa da sua altura. Acordei e compreendi que o meu irmão estava a ser posto à prova; mas não duvidei de que poderia socorrê-Io na sua provação. Rezei por ele todos os dias até irmos para a prisão do Palácio imperial; com efeito, tínhamos de ir combater nos jogos oferecidos pelo Palácio pelo aniversário do César Geta. E eu rezava por ele noite e dia, lamentando-me e chorando para ser ouvida." Alguns dias depois Perpétua
tem uma nova visão:
No dia em que nos puseram a ferros, eis o que me apareceu: vi o local que já vira antes, e Dinócrates com o corpo limpo, bem vestido e confortado (refrigerantem] e no sítio da chaga vi uma cicatriz; e o recipiente que eu vira estava agora à altura do umbigo da criança; e a água corria sem parar. E por cima do recipiente havia uma taça de ouro cheia de água. Dinócrates aproximou-se e começou a beber, e a taça não ficava vazia. Depois, dessedentado, começou a brincar alegremente com a água, como fazem as crianças. Acordei e compreendi então que ele estava livre do seu tormento.I''
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A palavra importante é refrigerantem. É mais do que evidente que ela nos reconduz à noção de refrigerium. Este texto excepcional não é absolutamente novo nem está completamente isolado no começo do século III. Uma obra grega apócrifa que se Julga datar do fim do século lI, os Actos de Paulo e de Tecla7l, fala de preces por uma jovem morta. A rainha pagã Trifena pede nesse documento à filha adoptiva, a virgem cristã Tecla, que reze pela sua filha carnal Falconila, que morrera. Tecla pede a Deus a salvação eterna para Palconila. Tertuliano, em quem por vezes se quis ver - o que é certamente falso o redactor da Paixão de Perpétua e de Felicidade mas que vivia em Cartugo na época do seu martírio, conhecia os Actos de Paulo e de Tecla, que cita na sua obra De baptismo (XVII, 5), e afirma noutra obra que uma viúva cristã deve rezar pelo seu esposo morto e pedir para ele o refriger/um interim, o refrigério intermédio 72. Não se deve exagerar nem minimizar a importância da Paixão de Per"flua e de Felicidade para a pré-história do Purgatório. Não se trata aqui propriamente de Purgatório, e nenhuma das imaMensnem dos mortos destas duas visões estarão presentes no Purgatório medieval. O jardim onde se encontra Dinócrates é quase paradisíaco, pois 1140 é um vale, nem uma planície, nem uma montanha. A sede e a incapacidade de que sofre são referidas como um mal mais psicológico do que moral. Trata-se de tormento psicofisiológico, labor, e não tormento-punição, poena, como em todos os textos respeitantes às prefigurações do Purgatório e ao Purgatório em si mesmo. Aqui não existe julgamento nem castigo. A partir de Santo Agostinho, este texto será no entanto utilizado e eomentado na perspectiva do pensamento que conduzirá ao Purgatório. Truta-se primeiro de um lugar que não é o shéol, nem o Hades nem o seio de Abraão. Nesse lugar um ser que, apesar da sua pouca idade devia ser pecador, pois a chaga, o cancro (vulnus, facie cancerata) que tem no mito quando da primeira visão e que desaparece na segunda, não pode IIr, segundo o sistema cristão, senão o final visível do pecado, sofre de lide, sofrimento característico dos castigados no além 73. E salvo graças às preces de alguém que é digno de obter o seu perdão. Primeiro pelos laços oarnais: Perpétua é a irmã carnal; mas também e sobretudo pelos seus méritos: mártir num futuro próximo, alcançou o direito de intercessão pelos seus parentes junto de Deus?'. Não vou brincar aos fazedores de patronos numa altura em que a I,reja católica revê tão severamente o seu calendário hagiográfico. Mas • Impressionante que o Purgatório já balbucie neste texto admirável, sob 111 auspícios duma santa tão comovente.
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NOTAS
1 Estes excertos são tirados do Chandogya Upanishad e são citados e interpretados por Jean VARENNE, «Le jugement des morts dans l'Inde» in Le Jugement des morts (Sources orientales, IV), Paris, 1961, pp. 225-226. 2 lbid. pp. 215-216. Ver também L. SCHERMANN, «Eine Art Visionãrer Hõltenschílderung aus dem indischen Mittelalter. Nebst einigen Bemerkungen über die ãlteren Vorstellungen der Inder von einer strafenden Vergeltung nach dem Tode» in Festschrift Konrad HOFFMANN Romanische Forschungen, 5, 1890, pp. 539-582. 3 Cf. J. D. C. PAVRY, The Zoroastrian doctrine of a future life, Nova Iorque, 1926; J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Reiigion de l'Iran ancien, Paris, 1962. 4 Ver. o artigo «Bridge» de G. A. Frank KNIGHT em «ERE», t. 2. S J. DUCHESNE-GUILLEMIN, La Religion de l'Iran ancien, p. 335. 6 J. YOYOITE, «Le Jugemnet des morts dans I'«Egypte ancien» in Le Jugement des morts, p. 69. . 1 E. HORNUNG, Alãtãgyptische Hõllenvorstellungen. Anhandlungen der SChS1Schen Akademie der Wissenschaften zu Leipzig, Philologish-historische Klasse, Fig. 59, T. 3, Berlim, 1968. 8 Ibid.; pp. 9-10. . 9 E. A. W. BUDGE, The Egyptian Heaven and Hell, t. III, Londres, 1906, introd, p. XII, citado e traduzido por C. M. EDSMAN, Le Baptême de feu, p. 73. \O Ver, por exemplo, Victor BÉRARD, Les Navigations d'Ulysse, IV, Circé et les morts, Paris" 1929, pp. 281-372, que põe demasiado empenho na procura de lugares geográficos reais. Este realismo geográfico mascara por vezes o essencial que é a combinação de uma estrutura do imaginário com uma tradição cultural. Pois não se pretendeu repartir as evocações do quente e do frio nas visões do Purgatório entre autores mediterrânicos e autores nórdicos? Na origem está um binário frio-quente como se viu, e a sua origem é provavelmente indo-europeia. Não é razão para nele ver o reflexo do clima do Tibete ou do Cáucaso. li V. GOLDSHMIDT, La Re/igion de Platon, Paris, 1949, em especial o capitulo «Châtiments et rêcornpenses», pp. 75-84. 12A. BOULANGER, Orphée. Rapports de l'orphisme et du çhristianisme, Paris, 1925. \3 Ibid., p. 128. 14PÍNDARO, t. I, Col. G. Budé, Les Belles Lettres, trad. Aimé Puech, Paris, 1922, p.45. 15Brooks, OTIS, Virgil. A Study in Civilized Poetry, Oxford, 1964.
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16E. NORDEN, P. Virgilius Maro, AEneis Buch VI, 4" ed., Darmstadt, 1957, pp. 207-349. Sobre as reacções cristãs ver P. COURCELLE, «Les Pêres de l'Église devant lcs enfers virgiliens» in Archives d'histoire doctrinale e/ /ittéraire du Moyen Âge, 22, 1955. 11 Hinc exaudiri gemitus, e/ saeva sonare verbere, tam stridor ferri tractae catenae constitit AEneas, strepituque exterritus haesit (versos 557-9). 18Ahi quanto son diverse quelle foei dall'infernali! ché quivi per canti s'entra, e là giu per lamenti feroce (Purgatório, XII, 112-114). 19 .•. camposque nitentis desuper ostentat ... (Eneida, VI, 677-678). 20Trad. A. Bellessort. Col. Budé, pp. 191-192. 21Cf. E. EBELING, Tod und Leben nach den Vorstellungen der Babylonier, Berlim-Leipzig, 1931. Sobre o valor «sagrado», ambíguo, das trevas entre os antigos gregos, ver Maja REEMDA SVILAR, Denn das Dunkel ist heilig. Ein Streifzug duch die l'syche der archaischen Griechen, Berna-Francfort, 1976. 22Cf. J.-M. AYNARD, «Le Jugement des morts chez les Assyro-Babyloniens» in IA! Jugement des morts (Soursces orientales, IV), pp. 83-102. 23 Cf. P. DHORME, «Le Séjour des mots chez les Babyloniens et les Hêbreux» in Revue Biblique, 1907, pp. 59-78. 24Os meandros do shéol encontram-se em II Samuel, XXII, 6; Job, XVIII, 710; o lema encontra-se também entre os Egípcios. Cf. M. ELIADE, Images et Symboles. Essai sur le symbolisme magico-religieux, Paris, 1952, pp. 124, 152. 25Além da leitura do Antigo Testamento consultei J. PEDERSEN, Israel, its life und culture, I-lI, Londres-Copenhague, 1926, p. 460 e ss.; R. MARTIN-ACHARD, De ItI mort à Ia Réssurrection d'aprês l'Ancien Testament, Neuchâte1-Paris, 1956; N. J. TROMP, Primitive Conceptions of Death and the Other World in the Old Testament (Bíblia e Orientalia, 21), Roma, 1969. Este último estudo explica o Antigo Testamento pelos textos ugariticos encontrados em Ras Shamra. 26 Cf. ZNADEE, Death as an Enemy according to Ancient Egyptian Conceptions, J.eyde, 1960. 27 E ainda Job, XII, 22; XV, 22; XVII, 13; XVIII, 18; XIX, 8; XXVIII, 3; XXXVIII, 16-17. 28 Sigo esta versão na tradução e o comentário de François MARTIN Le Livre d'lténocn traduit sur le texte éthiopien, Paris, 1906. 29 The Fourth Book of Esra. The latin version. Ed. R. L. Bensly com uma introdu<"110 de M. R. James, Cambridge, 1895. 30 Si inveni gratiam coram te, domine, demonstra et hoc servo tuo, si post mortem vel nunc quando reddimus unusquisque animam suam, si conservati conservabimur in requie, donec veniant tempora iIla in quibus incipies creaturam renovare aut amodo crueiamur (VII, 75). 31 ... in habitationes non ingredientur, sed vagantes errent amodo in cruciamentis, dolentes semper et tristes per septem vias (VII, 79-80). 12 Quinta via, videntes aliorum habitacula ab angelis conservari cum silentio mango I VII, 82). 33 Habitacula sanita tis et securitatis (VII, 121). 34 Septem diebus erit libertas earum ut videant septem diebus qui predicti sunt sermimes, et postea conjugabuntur in habitaculis suis (VII, 199-201). 71
3S Quintus ordo, exultantes quomodo eorruptibile effugerint nunc etfuturum quomodo hereditatem possidebunt, adhue autem videntes et (labore ) plenum, a quo liberati sunt, et spatiosum incipient recipere, fruniscentes et immortales (VII, 96). se Animarum autem superiora esse habitacula (De bono mortis, X, 44, MIGNE, Patrologie latine, t. 14, col. 560). 37 Eo quod spatium, inquit (Esdras ) incipiunt recipere fruentes et immortales (Ibid., col. 562). 38 Sobre o apocalipse judaico-cristão ver J. DANIÉLOU, Théologie du judéo-christianisme, I, Paris-Tournai, 1958, pp. 131-164. 39 Existe um texto etíope e um texto grego. Foram objecto de uma excelente tradução para alemão: E. HENNECKE-W. SCHNEEMELCHER Neutestamentliche Apokryphen in deutscher Ubersetzung, 3° vol., lI, Tübingen, 1964, pp. 468-483. 40 A. HARNACK, «Die Petrusapokalypse in der alten abendlãndischen Kirche» in Texte und Untersuchungen zur Gesehiehte der altehristliehen Literatur, XIII, 1895, pp. 71-73. 41 Ver Apoealypsis Esdrae. Apoealypsis Sedraeh. Visio Beati Esdrae, ed. O. Wahl, Leyde, 1977. 42 A redacção longa foi publicada por M. R. JAMES in Apoerypha anecdota (Texts and Studies, 11, 3, 1893, pp. 11-42). A redacção curta mais conhecida, a redacção IV, foi publicada por H. BRANDES in Visio S. Pauli: Ein Beitrag zur Visionlitteratur, mit einem deutschen und zwei lateinischen Texten, Halle, 1885, pp. 75-80. Foi publicada uma versão em francês antigo por P. MEYER, «La descente de saint Paul en Enfer» in Romania, XXIV (1895), pp. 365-375. As outras versões curtas foram publicadas por Theodore SILVERSTEIN, Visio Saneti Pau/i. The History ofthe Apoealypse in Latin together with nine Texts, Londres, 1935, com uma notável introdução fundamental. 43 AGOSTINHO, Traetatus in Joannem, XCVIII, 8. 44 A ideia do repouso sabático foi tirada dos judeus, entre os quais fazia parte das crenças populares. Cf. Israel LEVI, «Le repos sabbatique des ãmes damnêes», in Revue des Études juives l892, pp. I a 13. Ver também a introdução de Theodore SIL VERSTEIN, Visio Sane ti Pau/i, pp. 79-81: «The sunday Respite». 45 Li sobretudo as obras de H.-Ch. PUECH, «La Ténêbre mystique chez le pseudo-Denys l'Aréopagite et dans Ia tradition patristique» (1938), retomadas em En quête de Ia Gnose, I, Paris, 1978, pp. 119-141 e «Le Prince des Ténêbres en son royaume» in Études carmélitaines, 1948, pp. 136-174 (volume consagrado a Satanás). Sobre a angústia do tempo do Inferno ver En quête de Ia Gnose, I, p. 247 e ss. 46 Ver J. BONSIRVEN, Esehatologie rabbinique d'aprés les Targums, Talmuds, Midrasehs. Les éléments communs avec le Nouveau Testament, Roma, 1910. 47 J. BONSIRVEN, Textes Rabbiniques des deux premiers siêcles chrétiens pour servir à l'intelligence du Nouveau Testament, Roma, 1955, pp. 272 e 524. René Gutman faz-me notar que «o tratado talmúdico, "Principes de Rabbi Nathan", afirma que as almas dos ímpios erram pelo mundo, murmurando sem descanso. Um anjo está numa extremidade do mundo e outro na outra extremidade e juntos lançam as almas para a frente e para trás. Os rabinos imaginavam um verdadeiro Purgatório aéreo onde as almas pecadoras eram lançadas e reboladas em turbilhões fortíssimos que tinham por missão purificá-Ias e permitir-Ihes o acesso ao céu». 48 Sobre o contexto destes textos rabínicos ver o livro clássico de P. VOLZ, Die Eschatologie der jüdisches Gemeinde im neutestamentlicher Zeitalter, Tübingen, 1934.
49 Emprego este termo e não parábola intencionalmente, seguindo nisto Pierre le Man~eur que explica no século XII que não se trata de parábola mas de um exemplum. 5 M. ELIADE, Traité d'histoire des religions, Paris, 1953, pp. 175-177. 51 Os comentários patrísticos e medievais deste texto foram excelentemente analisados em dois estudos. A. LANDGRAF, «I Cor. III, 10-17, hei den lateinischen Vãtem und in der Frühscholastik» in Biblica, 5, 1924, pp. 140-172 e J. GNILKA, 1st 1 Kor, 3, 10-15 ein Schriftzeugnis für das Fegfeuer? Eine exegetisch-historische Untersuchung, Dusseldorf, 1955. C.-D. EDSMAN, Ignis Divinus, citado p. 19, nO2. 52 J. KROLL, Gott und H61le. Der Mythos vom Descensuskampfe, Leipzig-Berlin, 1932. W. BIEDER, Die Vorstel/ung von der Hõllenfahrt Jesu Christi, Zurich, 1949. 53 S. REINACH, «De l'origine des priêres pour les morts» in Revue des Études luives, 41 (1900), p. 164. 54 Orphicorum Fragmenta, ed. O. Kern, Berlim, 1922, p. 245, citado por J. NTED1KA, L'Évoeation de l'au-delà dons Ia priêre pour les morts. Étude de patristique et de litur~ie Iatines (IV- VIII' siêcles) Louvain-Paris, 1971, p. 11. 5 DIODORO DE SICILIA, 1,91, citado por S. Reinach, p. 169. 56 Ver supra, p. 64. 57 Por exemplo, H. LECLERCQ, artigo «Défunts», in Dictionnaire d'Histoire et d'Archéologie eec/ésiastiques, t. IV, col. 427-456 e artigo «Purgatoire», ibid., t. XIVj2, 1948, col. 1978-1981. F. BRACHA, De existentia Purgatorii in antiquitate christiana, Cracóvia, 1946. 58 Dictionnaire d'Histoire et d'Archéologie ecclésiastiques, t. XIVj2, col. 1980-1981. 59 lbid., t. IV, 447. 60 C. MOHRMANN, Locus refrigerii in B. BOTTE-C. MOHRMANN, l.Urdinaire de Ia messe. Texte critique, traduction et études, Paris-Louvain, 1953, p. 127. De C. MOHRMANN também, «Locus refrigerii, lucis et pacis» in Questions fltur~iques et paroissiales, 39 (1958), pp. 196-214. I «Eam itaque regionem, sinum dico Abrahae, etsi non caelestem, sub/imiorem tamen inferis, interim refrigerium praebere animabus iustorum, donec consummatio rerum ressurrectionem omnium plenitudine mereedis expungat ...» 62 « ... Temporale a/iquos animarum fide/ium receptaculum ...» 63 «Herodis tormenta et Iohannis refrigeria: mercedem ... sive tormenti sive refrigerii i Adv, Mare., 34), per sententiam aeternam tam sup/icii quam refrigerii (De anima, XXXIII, 11); supp/icia iam illic et refrigeria (De anima, LVIII, 1); metu aetemi supplidi et spe aetemi refrigerii (Apologeticum, XLIX, 2); aut cruciatui destinari aut refrigerio, utroque sempiterno. Cf. H. FINE, Die Terminologie der Jenseitsvorstellungen bis Tenullian, Bona, 1958. 64 Trad. de J. GOUBERT e L. CRISTIANI: Les plus beaux textes sur l'au-delà, Paris, 1950, p. 183 e ss. 65 A. STUIBER, Refrigerium interim. Die Vorstellungen vom Zwischenzustand UM di.' frühchristliche Grabekunst, Bona, 1957. De BRUYNE, «Refrigerium interim» in Rivista di archeologia cristiana, 34, 1958, p. 87-118 e ibid., 35, 1959, pp. 183-186. 66 De BRUYNE, 1959, p. 183. 67 E. R. DODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety, Cambridge, 1965. 68 Passio sanctarum Perpetuae et Fe/icitatis, ed. C. van Beek, Nimêgue, 1936. O nrtigo de F. J. DOLGER «Antike Parallelen zum leidenden Dinocrates in der Passio l'erpetuae» in Antike und Christentum, 2, 1930, 1974, pp. 1-40, sublinhando um clima Kcral à volta deste texto, não acrescenta grande coisa ao seu significado que continua a Hcr profundamente original. E. R. OODDS, Pagan and Christian in an Age of Anxiety,
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pp. 47-53, faz um comentário interessante à Passio Perpetuae, mas numa perspectiva diferente da da prefiguração do Purgatório. 69 Ed. Van Beek, p. 20. 70 lbid., p. 22. 71 L. VOUAUX, Les Apocryphes du Nouveau Testament, Les Actes de Paul et ses lettres apocryphes, Paris, 1913. 72 Enimvero et pro anima eius orat, et refrigerium interim adpostulat ei (De monogamia, X, 4). 73 Sobre «a sede do morto» ver Mircea ELIADE, Traité d'Histoire des religions, Paris, 1953, pp. 175-177. Não acredito numa correlação «climática» entre sede e fogo por um lado e as concepções «asiáticas» do Inferno e «temperatura diminuída» (frio, gelo, e pântanos gelados e as concepções «nórdicas» por outro lado. E. R. DODDS (Pagan and Christian in an Age of Anxiety, pp. 47-53) faz notar a justo título que a piscina da Paixão de Perpétua evoca o baptismo. O problema de saber se Dinócrates era ou não baptizado interessou os autores cristãos antigos, especialmente Santo Agostinho. 74H .-1. M AR' ROU, citando P.-A. FEVRIER ' (cl,e culte des martyrs en Afrique et ses plus anciens monuments», in Corsi di cultura sull'arte ravennate e bizantina, Ravena, 1970, p. 199), chamou a atenção, pouco antes da sua morte, para uma inscrição africana, interessante para a noção de refrigerium: «Um detalhe curioso - e novo _ encontra-se nos túmulos de Tipasa: é a presença destas cisternas e poços e a importância atribuída à água. Esta não surge apenas como um dos elementos da refeição mas também aspergida sobre o túmulo; podemos perguntar-nos se ela não será necessária ao refrigerium de que falam os textos. Sabe-se, com efeito que, a partir da sua primeira acepção, este termo refrigerium é uma das imagens mais dominantes das que serviram aos Antigos, pagãos primeiro e depois cristãos (Actos, III; 20) para evocar a felicidade de além-túmulo. A palavra, por extensão, designava essa refeição fúnebre que um simbolismo mais ou menos directo relacionava com a felicidade esperada. Em presença de um monumento como o nosso, é lícito imaginar que um lençol de água estendido por cima de um cenário de animais marinhos permitia entender de alguma maneira concreta essa noção de «refrigério», refrigerium, ligada ao banquete fúnebre.» (<
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11- OS PAIS DO PURGATÓRIO
Em Alexandria: dois gregos «fundadores» do Purgatório A verdadeira história do Purgatório começa por um paradoxo, um duplo paradoxo. Aqueles a quem se chamou, a justo título, os «fundadores» da doutrina do Purgatório são os teólogos gregos. Mas se as suas concepções tiverarn repercussões no cristianismo grego, este não chegou à ideia de Purgatório propriamente dito e o Purgatório foi mesmo, na Idade Média, um dos principais pomos de discórdia entre cristãos gregos e cristãos latinos. E a teoria de onde sai o esboço do Purgatório que esses teólogos llregos elaboraram é francamente herética aos olhos do cristianismo, não MÓ latino mas também grego. A doutrina do Purgatório estreia-se, assim, Nobreuma ironia da história. Não me ocuparei neste livro das concepções gregas do além, a não ser para as ver oporem-se às opiniões dos latinos a respeito do Purgatório em 1274, no segundo concílio de Lyon, e depois, já fora dos limites cronológicos deste estudo, no concílio de Florença, em 1438-1439. A divergência entre as duas Igrejas, entre os dois mundos, anunciada desde a Antiguidade tardia, faz da história do Purgatório uma questão ocidental e latina. Mas importa, no início da génese do Purgatório, caracterizar os dois «inventores» do Purgatório, Clemente de Alexandria (que morreu antes de 215) e Origenes (que morreu em 253/254), os dois maiores representantes da teologia cristã em Alexandria, num momento em que o grande porto é «o pólo da cultura cristã» (H.-J. Marrou) e, em especial, o cadinho de uma certa fusão entre helenismo e cristianismo. Os fundamentos da sua doutrina vêm, por um lado, da herança de certas correntes filosóficas e religiosas gregas pagãs e, por outro, de uma reflexão original sobre a Bíblia e sobre a escatologia judaico-cristã'. Na Grécia antiga os dois teólogos deviam ter a ideia de que os castigos infligidos pelos deuses não são punições mas meios de educação e 75
de salvação, um processo de purificação. Para Platão o castigo é uma benesse dos deuses/. Clemente e Orígenes daí extraem a ideia de que «punir» e «educar» são sinónimos ' e de que todo o castigo de Deus serve para a salvação do homem". A ideia platónica foi vulgarizada pelo orfismo e veiculada pelo pitagorismo, e reencontra-se a noção das penas infernais como purificação no quarto livro de Eneida, de Virgílio (versos 741-42, 745-47): ... Outros, no fundo de um grande abismo, lavam as suas nódoas; outros depuram-se pelo fogo. ... Só passados longos dias o correr dos tempos apagou os antigos estigmas de vergonha e deixa entregue à sua pureza o princípio etéreo da alma...5.
Da Bíblia, Clemente e Orígenes retêm, do Antigo Testamento, o fogo como instrumento divino; e do Novo a concepção evangélica do baptismo pelo fogo e a ideia de Paulo de uma purificação depois da morte. A primeira concepção vem da interpretação de textos do Antigo Testamento por vezes muito solicitados. A visão platónica que Clemente e Orígenes têm do cristianismo leva-os a posições tranquilizadoras. Para Clemente, por exemplo, Deus não pode ser vingativo: «Deus não exerce vingança, pois a vingança é pagar o mal com o mal, e Ele só castiga tendo em vista o bem» (Stromata, VII, 26). Esta concepção leva os dois teólogos a interpretar num sentido lenitivo passagens do Antigo Testamento onde Deus se serve explicitamente do fogo como instrumento da sua cólera. Por exemplo, quando faz devorar pelo fogo os filhos de Aarão: «os filhos de Aarão, Nadab e Abihu, tomaram cada um o seu turíbulo. Deitaram-lhes fogo, sobre o qual puseram incenso e apresentaram a Jeová um fogo irregular que ele não lhes havia pedido. De Jeová saiu então uma chama que os devorou, e eles morreram na presença de Jeová» (Levítico, X, 1-2). Ou ainda esta passagem do Deuteronómio, XXXII, 22: «Sim, um fogo brotou da minha cólera, e ele queimará até às profundezas do shéol: ele devorará a terra e o que ela produz ...» É notório que no seu Comen;ário sobre o Levítico, Orígenes vê nestes textos a imagem da solicitude de Deus que castiga o homem para bem deste. Orígenes interpreta também as passagens do Antigo Testamento onde Deus se apresenta a si próprio como um fogo que não é a expressão de um Deus de cólera mas de um Deus que se faz a si mesmo purificador, ao devorar e ao consumir. Assim, na homilia XVI do seu Comentário sobre Jeremias onde comenta Jeremias, XV, 14: «pois o meu furor ateou um fogo que vai arder sobre vós» ou no seu tratado Contra Celso, IV, 13. A segunda concepção teve origem numa reflexão sobre o texto de Lucas, 111, 16, respeitante à prédica de João Baptista: «João tomou a 76
palavra e disse a todos: "Por mim, baptizo-vos com água, mas vem um mais forte do que eu ...; esse baptizar-vos-á no Espírito Santo e pelo fogo."» O que Orígenes (na homilia XXIV do seu Comentário sobre Lucas) comenta assim: «Assim como João, perto do Jordão, de entre os que vinham para se baptizar, acolhia os que confessavam os seus vícios e os seus pecados e expulsava os outros dizendo-Ihes: "Raça de víboras, etc.", também o Senhor Jesus Cristo estará no rio de fogo (in igneo flumine) junto de uma lança de fogo (flammea rompea) para baptizar naquele rio todos aqueles que depois da morte devem ir para o paraíso mas lhes falta a purgação (purgatione indiget ), e fazê-Ias passar para os lugares desejados; mas aqueles que não tiverem o sinal do primeiro baptismo, ele não os baptizará no banho de fogo. Com efeito, é preciso ter-se já sido baptizado na água e no espírito para que, ao chegar ao rio de fogo, se possa mostrar que se conservam os sinais dos banhos de água e de espírito e que se merece receber então o baptismo de fogo em Jesus Cristo.» Enfim, Orígenes comenta assim, na sua terceira homilia sobre o Salmo XXXVI que evoca a sorte do ímpio, vítima da cólera de Deus, e ado justo, beneficiário da sua protecção, a passagem da epístola de Paulo aos Coríntios, onde este evoca a purificação final pelo fogo: «Penso que devemos todos, necessariamente, passar por esse fogo. Sejamos Paulo ou Pedro, passamos por esse fogo ... como diante do Mar Vermelho, se somos os Egípcios, seremos tragados por esse rio ou esse lago de fogo porque terão encontrado em nós pecados ... ou então entraremos também no rio de fogo, mas assim como, para os Hebreus, a água formou uma parede à direita e à esquerda, assim o fogo formará uma parede para nós... e nós seguiremos a coluna de fogo e a coluna de fumo.» Clemente de Alexandria é o primeiro a distinguir duas categorias de pecadores e duas categorias de castigos nesta vída e na vida futura. Nesta vida, para os pecadores que podem corrigir-se, o castigo é «educativo» (ôtôaO'1CaÀtlCóç), para os incorrigíveis é «punitivo» (lCOÀCXO ..ttlCÓÇ)6.Na outra vída haverá dois fogos: para os incorrigíveis um fogo «devorador e destruidor», para os outros um fogo que «santifica», que não «consome como o fogo da forja», mas um fogo «prudente», «inteligente» (q>PÓVtIlOV) «que penetra a alma e passa através dela'». As concepções de Orígenes são as mais precisas e vão mais longe. Para ele, como vimos, todos os homens têm de passar pelo fogo, mesmo os justos, porque não há homem absolutamente puro. Pelo simples facto da sua união com o corpo, toda a alma está manchada. Na homilia VIII do seu Comentário sobre o Levítico, Orígenes baseia-se num versícu10 do Livro de Job, XIV, 4: «Mas então quem separará o puro do impuro?» Porém, para os justos, esta passagem pelo fogo é um baptismo. Funde e transforma o chumbo que pesava sobre a alma em ouro puro". 77
Para Orígenes como para Clemente, há duas espécies de pecadores ou, mais exactamente, há os justos que apenas estão carregados das máculas inerentes à natureza humana (pÚ1tOçque se traduzirá em latim por sordes) e os pecadores propriamente ditos, carregados de pecados, em princípio mortais (xpôç 9wcx'tou cXJ.lcxp'tícx, ou peccata em latim). A concepção particular de Orígenes - que faz dele um herético - é que não existe pecador tão mau, tão inveterado, tão incorrigível em princípio, que finalmente não se purifique completamente e não vá para o Paraíso. Também o Inferno é temporário. Como bem disse G. Anrich: «Orígenes concebe o Inferno como um Purgatório.» Com efeito, Orígenes leva até ao limite a teoria da purificação, KcXaCXpcrtÇ, que lhe vem de Platão, dos órficos e dos pitagóricos. Como não pode admitir a ideia grega pagã da metempsicose, de reencarnações sucessivas demasiado incompatíveis com o cristianismo, crê numa variante, que julga poder ser cristã, dessa teoria; a noção de um progresso contínuo, de um aperfeiçoamento ininterrupto da alma depois da morte, que lhe permite, por mais pecadora que tenha sido à partida, regressar à eterna contemplação de Deus: é a apocatástase (cX1tOKcx'tcXcncxO"lç). Às duas categorias de defuntos, aos pecadores simplesmente maculados e aos pecadores propriamente ditos, aplicam-se dois tipos diferentes de fogos purificadores. Para os primeiros, é o espírito de julgamento, que apenas atravessam e que só dura um instante. Os segundos, em compensação, ficam durante mais ou menos tempo no espírito de combustão. Este castigo é muito penoso mas não é incompatível com o optimismo de Orígenes, pois quanto mais severo é um castigo mais está assegurada a salvação; há em Orígenes um sentimento do valor redentor do sofrimento que só no fim, no século xv, a Idade Média reencontrará. Para Clemente de Alexandria, o fogo «inteligente» que atravessa a alma dos pecadores remíveis não é, como bem viu A. Michel, um fogo material, mas também não é um fogo «metafórico»; é um fogo «espiritual» (Stromata, VII, 6 e V, 14). Pretendeu-se opor, em Orígenes, o fogo de julgamento atravessado pelas almas simplesmente maculadas e que seria um fogo real, ao fogo de combustão que suportariam os pecadores e que, esse sim, seria um fogo «metafórico», uma vez que os pecadores que por fim devem ser salvos não podem ser por ele consumidos. Os textos invocados (De principiis, 11, 10: Contra Celso, IV, 13, VI, 71, etc.) não parecem justificar esta interpretação. Nos dois casos, trata-se de um fogo purificador que, sem ser material, não é metafórico; é real mas espiritual, subtil. Quando têm lugar estas purificações pelo fogo? Orígenes é bem claro a esse respeito: após a ressurreição, no momento do Julgamento Final", Este fogo mais não é, em definitivo, do que o fogo do fim do mundo, vindo das velhas crenças indo-europeias, iranianas e egípcias e que os estóicos haviam retomado com a noção de ÉK1tÚproO"tç. 78
No apocalipse judaico o texto mais significativo sobre o fogo do fim do mundo era a Visão do Velho no Sonho de Daniel (VII, 9-12):
o seu trono eram chamas de fogo com rodas de fogo ardente. Nascido à sua frente, corria um rio de fogo a besta foi morta, o seu corpo destruído e entregue à chama do fogo.
Mas Orígenes tem concepções muito pessoais do tempo escatológico do fim do mundo. Por um lado, pensa que os justos, atravessando instantaneamente o fogo, alcançarão o paraíso a partir do oitavo dia; no dia do julgamento, em compensação, o fogo dos pecadores queimá-los-á para além do último dia, e eventualmente durante os séculos dos séculos - o que não significa a eternidade, visto que, cedo ou tarde, todos irão para o Paraíso, mas uma longa sequência de períodos (In Lucam, homilia 24). Noutra obra Orígenes precisa, segundo uma curiosa aritmética, que, assim como a vida no mundo dura uma semana antes do oitavo dia, também a puríficação dos pecadores no fogo de combustão durará uma ou duas semanas, quer dizer, muito tempo, e que só no começo da terceira semana eles serão purificados (homilia VIII do Comentário sobre o Levitico). Este cálculo é simbólico visto que, como se verá, no século XIII os cálculos respeitantes ao Purgatório serão feitos a partir de períodos de tempo reais. Mas um cômputo do Purgatório está já a esboçar-se. Sobre a sorte dos mortos, das almas, entre a morte individual e o Julgamento Final, Orígenes é muito vago. Afirma que os justos vão para () Paraíso logo a seguir à morte, mas esse paraíso é diferente do verdadeiro Paraíso de delícias onde a alma só chegará depois do Julgamento Final c da prova - curta ou longa - do fogo'". E comparável ao seio de Abraão, se bem que, se não me engano, Orígenes nunca alude a ele. Em compensação, Orígenes não fala da sorte dos pecadores no intervalo entre a morte individual e o Julgamento Final. É que, como muitos dos seus contemporâneos e sem dúvida ainda mais do que a maioria deles, Orígenes acredita na iminência do fim do mundo: «A consumação do mundo pelo fogo está iminente ... a terra e todos os elementos vão ser consumidos no ardor do fogo no fim deste século» (homilia VI, do Comentário sobre a Génese, PG, 12, 191). E ainda: «O Cristo veio nos últimos tempos, agora que o fim do mundo está já próximo» (De principiis, Hl, 5, 6). O tempo que medeia entre a morte individual e o Julgamento Final, entre hoje e o lim do mundo, é de tal modo breve que não vale a pena pensar nele. A prova do fogo «é como uma prova que nos espera ao sair da vida» (cf. In Lucam, homilia 24).
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Foi necessário esperar pelo fim do século IV e princípio do século V para que, com Santo Agostinho e portanto entre os cristãos latinos desta vez, a pré-história do Purgatório se enriquecesse de maneira decisiva. A S. Cipriano, em meados do século III, creditou-se uma importante contribuição para a doutrina do futuro Purgatório. Na sua Carta a Antoniano, ele estabelece uma distinção entre duas espécies de cristãos: «Uma coisa é aguardar o perdão, outra coisa é alcançar a glória; outra
coisa ainda é ser mandado para a prisão (in carcere) para só sair depois de pago o último óbolo, e mais outra coisa é receber imediatamente a recompensa da fé e da virtude; ainda outra coisa é ser libertado e purificado dos pecados por um longo sofrimento no fogo, e mais outra coisa é ter apagado todas as culpas pelo martírio; outra coisa, enfim, é ficar suspenso, no dia do julgamento, da senten~a do Senhor, e outra coisa ainda é ser imediatamente coroado por ele' . Ficou escrito: «Este sofrimento purificador, este fogo de além-túmulo, só podem ser o Purgatório. Sem atingir a clareza de expressão que encontraremos nas épocas seguintes, Cipriano já representa um progresso em relação a Tertuliano".» Esta interpretação significa uma concepção evolucionista do Purgatório, que vê na teoria do cristianismo um avanço lento mas seguro no sentido da explicação de uma crença que, desde a origem, teria existido em embrião no dogma cristão. Nada me parece menos conforme com a realidade histórica. Perante os acessos de milenarismo, de crença num apocalipse fulminante que salvaria ou destruiria mais ou menos arbitrariamente, a Igreja, em função das condições históricas, da estrutura da sociedade e de uma tradição que ela transformaria pouco a pouco em ortodoxia, criou um certo número de elementos que, no século XII, vieram a resultar num sistema do além de que o Purgatório foi uma peça fundamental; mas que poderia muito bem abortar, que conheceu acelerações no começo do século v, entre o fim do século VI e o começo do século VIII, e finalmente no século XII, mas com grandes paralizações que poderiam ter sido definitivas. Considero pertinente a opinião de P. Jay que refutou a pseudodoutrina do Purgatório de S. Cipriano. Do que se trata na carta a Antoniano é de uma comparação entre os cristãos que renegaram durante as perseguições (os lapsi e os apóstatas) e os mártires. Não se trata de «purgatório» no além mas de penitência cá em baixo. A prisão mencionada não é a de um purgatório, aliás ainda inexistente, mas a disciplina penitencial eclesiástica 14. Entre os Padres e outros eclesiásticos do século IV que, apesar da sua diversidade, constituem um conjunto bastante coerente, no momento em que o cristianismo deixa de ser perseguido e depois se torna religião oficial no mundo romano, a reflexão sobre a sorte dos homens após a morte desenvolve-se sobretudo a partir do sonho de Daniel (VII, 9, 1), do texto de Paulo aos Coríntios, III, 10-15, mais raramente da concepção origeniana do fogo purificador ou do refrigerium de Tertuliano. As opiniões de Orígenes influenciam notoriamente a parte cristã dos Oráculos sibiltnos que lhes assegurarão uma certa posteridade. Lactâncio (que morreu depois de 317) pensa que todos os mortos, incluindo os justos, sofrerão a prova do fogo, mas situa esta prova no momento do Julgamento Final: «Quando Deus julgar os justos, fá-lo-á lambém por meio do fogo. Aqueles em que os pecados prevaleçam pelo
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Assim o futuro Purgatório entrevisto por Origenes desvanece-se, esmagado entre a sua escatologia e a sua concepção de um inferno temporário. No entanto a ideia, precisa, de uma purificação no além, após a morte, é expressa pela primeira vez. Aparece a distinção entre pecados ligeiros e pecados mortais. Há mesmo o esboço de três categorias: os justos que só atravessam o fogo de julgamento e vão directamente para o Paraíso, os pecadores ligeiros que apenas fazem uma estada no fogo de combustão e os pecadores «mortais» que lá ficam durante muito tempo. De facto, Orígenes desenvolve a metáfora de I Coríntios, Hl, 10-15. Dos materiais citados por S. Paulo faz ele duas categorias: o ouro, a prata, as pedras preciosas para os justos, a madeira, o feno, a palha para os pecadores «leves». Ejuntou-lhes uma terceira categoria: o ferro, o chumbo e o bronze para os pecadores «pesados». Também se esboça uma aritmética da purgação no além. Sublinha-se um laço estreito entre a penitência e a sorte no além: para Clemente de Alexandria a categoria dos pecadores corrigíveis era constituída pelos pecadores que se tinham arrependido, se tinham reconciliado com Deus no momento de morrer, mas que não tinham tido tempo de fazer penitência. Para Orígenes a apocatástase é, no fundo, um processo positivo e progressivo de penitência 11. Mas à concepção de um verdadeiro Purgatório faltam vários elementos essenciais. O tempo do Purgatório é mal definido visto que se confunde com o tempo do Julgamento Final, confusão esta tão pouco satisfatória que Orígenes tem de concentrar e dilatar ao mesmo tempo o fim do mundo e de o aproximar ao máximo. Nenhum Purgatório se distingue do Inferno, e o carácter temporário, provisório, que constituirá a sua originalidade, não se destaca. Só os mortos, com a sua bagagem de culpas mais ou menos leve ou pesada, e Deus na sua benevolência de jugo salutar, têm alguma responsabilidade nesta purificação depois da morte. Os vivos não intervêm nela. Enfim, não existe lugar purgatório. E ao fazer do fogo purificador um fogo não só «espiritual» mas também «invisível», Orígenes bloqueou o imaginário do Purgatório.
o cristianismo
latino: desenvolvimentos e indecisões do além
seu número ou o seu peso, serão envolvidos pelo fogo e purificados; pelo contrário, aqueles que uma justiça perfeita ou a maturidade da virtude tenha sublimado não sentirão essa chama; têm de facto em si qualquer coisa que repele e rejeita esse fogos (Institutiones, VII, 21, PL, VI, 8(0). Hilário de Poitiers (que morreu em 367), Ambrósio (em 397), Jerónimo (em 419/420) e o desconhecido chamado Ambrosiaster, que viveu na segunda metade do século IV, têm sobre a sorte dos homens depois da morte ideias que pertencem à linha de Origenes. Para Hilário de Poitiers, enquanto esperam o Julgamento Final, os justos vão repousar no seio de Abraão enquanto que os pecadores são atormentados pelo fogo. No Julgamento Final os justos vão directamente para o Paraíso, os infiéis e os ímpios para o Inferno e todos os outros, o conjunto dos pecadores, serão julgados e os pecadores impenitentes sofrerão pesadas penas no Inferno. No seu Comentário do Salmo LIV, Hilário fala da «purificação que nos queima pelo fogo do julgamentO»15,mas esse fogo purifica todos os pecadores ou somente alguns deles? Hilário não nos dá uma resposta concisa. Santo Ambrósio é ainda mais ambíguo, embora mais preciso sobre certos pontos. Primeiro pensa, como se viu, que as almas aguardam o julgamento em habitáculos diferentes segundo a concepção do quarto Livro de Esdras. Depois imagina que na ressurreição os justos irão directamente para o Paraíso e os ímpios directamente para o Inferno. Só os pecadores serão examinados, julgados. Sê-lo-ão através da passagem pelo fogo definida como o baptismo de fogo anunciado por João Baptista, segundo o Evangelho de Mateus (11, 11): «Diante dos ressuscitados está um fogo que todos, absolutamente todos, devem atravessar. E o baptismo de fogo anunciado por João Baptista, no Espírito Santo e no fogo, é a espada ardente do querubim que guarda o Paraíso e através do qual é preciso passar: todos serão experimentados pelo fogo; pois todos aqueles que querem regressar ao Paraíso têm de ser postos à prova pelo fogo!".» Ambrósio afirma que mesmo Jesus, os apóstolos e os santos só entraram no Paraíso depois de terem passado pelo fogo. Como conciliar esta afirmação com a outra segundo a qual os justos vão para o Paraíso sem julgamento? Ambrósio tergiversou mas não tinha ideias muito claras. Parece também que para ele havia três espécies de fogo. Para os justos, que são prata pura, esse fogo será um refrigério, como o orvalho que refresca (reencontra-se aqui a ideia da pérola, síntese do frio e do quente e símbolo do Cristo); para os ímpios, os apóstatas, os sacrilegos, que são apenas chumbo, esse fogo será um castigo e uma tortura, para os pecadores que são uma mistura de prata e chumbo será um fogo purificador cujo efeito doloroso durará um tempo proporcional ao peso das suas culpas e à quantidade de chumbo que for preciso fundir. E quanto à natureza deste fogo? É «espiritual» ou «real»? Ambrósio, ainda que mui82
to influenciado por Orígenes também hesitou e tergiversou. Em definitivo Ambrósio, ainda mais adepto de Paulo do que de Origenes, pensa que todos os pecadores serão salvos através do fogo porque, apesar das suas culpas, terão tido fé: «E se o Senhor salva os seus servos, nós seremos salvos pela fé mas sê-lo-emos como através do fogo!".» Mas Ambrósio afirmou claramente a possível eficácia das orações dos vivos para alívio dos defuntos após a sua morte, o valor dos sufrágios para a mitigação das penas. Em especial a propósito do imperador Teodósio, com quem tivera as relações estreitas que se sabe: «Concede, Senhor, o repouso ao teu NervoTeodósio, esse repouso que preparaste para os teus santos ... Eu amava-o e por isso quero acompanhá-I o ainda em vida minha: não o deixarei enquanto, pelas minhas preces e os meus lamentos, ele não for recebido lá no alto, sobre a montanha santa do Senhor, onde o chamam aqueles que ele perdeu 18.» Quando da morte do seu irmão Sátiro, espera que as lágrimas e as preces dos infelizes que ele socorreu em vida lhe valerão o perdão de Deus e a salvação eterna 19. Estas duas referências ambrosianas à sorte dos mortos no além são interessantes também por uma outra razão que veremos em acção na história do Purgatório. A visão dos grandes laicos - imperadores e reis . no além foi uma arma política da Igreja. Vê-Io-emos em relação a Teodorico, Carlos Martel e Carlos Magno. Dante recordá-lo-á. Que melhor meio tinha a Igreja, para tornar receptivos às suas instruções - espirituais e temporais - os soberanos, do que evocar os castigos que os esperam no ulém em caso de desobediência, e o peso dos sufrágios eclesiásticos para a sua libertação e salvação? Sabendo-se o que foram as relações entre Ambrósio e Teodósio, impõe-se a referência a este pano de fundo. No caso de NeU irmão Sátiro, vemos perfilar-se um outro aspecto das relações entre os vivos e os mortos. Ambrósio reza por seu irmão: é a rede familiar de salvamento no além. Tornar-se-á ainda mais poderosa na Idade Média e na perspectiva do Purgatório. Mas Ambrósio fala sobretudo dos sufráJ(iosdaqueles que Sátiro socorreu. Vemos aqui um fenómeno social histórico: a clientela romana transposta para o plano cristão. Outras .olidariedades, aristocráticas, monásticas, laico-monásticas, confraternais, tomarão o lugar, no tempo do Purgatório, desta assistência recíprol:1I (mais ou menos obrigatória) post mortem do patrono pelos seus clientes,
Enfim, Ambrósio, como adiante se verá, adere à ideia de uma primeira e de uma segunda ressurreição. S. Jerónimo, embora inimigo de Orígenes, é, no que respeita à salva'.=110, o mais «origenista». Excepto Satanás, os que negam Deus e os impios, todos os seres mortais, todos os pecadores serão salvos: «Assim corno cremos que os tormentos do Diabo, de todos os que negam e de 83
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todos os ímpios que dizem no seu coração "não há Deus" serão eternos, assim, em compensação, pensamos que a sentença do juiz para os pecadores cristãos, cujas obras são postas à prova e expurgadas no fogo, será moderada e impregnada de clemência'?». E ainda: «Aquele que de todo o coração pôs a sua fé no Cristo, mesmo que morra como homem culpado de pecados, pela sua fé terá a vida eterna21.» O Ambrosiaster, embora não traga grande coisa de novo em comparação com Ambrósio, tem de especial e de importante o facto de ser o autor da primeira autêntica exegese do texto de Paulo de I Coríntios, IH, 10-15. A este título, teve grande influência nos comentadores medievais deste texto essencial para a génese do Purgatório, em especial nos primeiros escolásticos do século XII. Como Hilário e Ambrósio, ele distingue três categorias: os santos e os justos que irão directamente para o Paraíso quando da ressurreição; os ímpios, os apóstatas, os infiéis e os ateus que irão directamente para os tormentos do fogo do Inferno; e os simples cristãos que, embora pecadores, depois de terem sido purificados durante um certo tempo pelo fogo e de terem pago a sua dívida, irão para o Paraíso porque tiveram fé. Comentando S. Paulo, escreve: «Ele (Paulo) disse: "mas como através do fogo" porque esta salvação não existe sem sofrimento; e não disse: "Será salvo pelo fogo"; mas quando ele disse: "como através do fogo" quis mostrar que essa salvação há-de vir, mas que tem de sofrer as penas do fogo; para que, expurgado pelo fogo, seja salvo, e não como os infiéis (perfidi), atormentados pelo fogo eterno para sempre; se, por algum pedaço da sua obra, ele tem algum valor, é porque acreditou em Crist022.» Paulino de Nola (que morreu em 431) também fala numa carta do fogo sábio, inteligente (sapiens) pelo qual todos passaremos para sermos examinados, e que provém de Orígenes. Numa fórmula sintética onde surgem o calor e o frio, o fogo e a água, e a ideia de refrigerium, escreve ele: «Passámos através do fogo e da água e ele conduziu-nos ao refrigêrio'".» Num poema evoca ainda o «fogo exterminador» (ignis arbiter) que percorrerá todas as obras de cada um, «a chama que não queimará, mas que cada um experimentará», a recompensa eterna, a combustão da parte má e a salvação do homem que, com o corpo conid o, escapara ao rogo e voara para a VIid a eterna 24 ... SUmI
No seu excelente estudo sobre a Evolução da doutrina do Purgatório em Santo Agostinho (Évoiution de Ia doetrine du Purga to ire ehez saint Augustin), de 1966, Joseph Ntedika recenseou o conjunto dos numerosos
Contribuir para o processo do futuro Purgatório com elementos capitais foi o papel de Agostinho, que deixou uma marca tão profunda no cristianismo e que foi provavelmente a maior «autoridade» da Idade Média.
textos agostinianos que constituem o processo do problema. Destacou, a maioria das vezes com acerto, o lugar de Agostinho na pré-história do Purgatório, e mostrou o facto fundamental: a posição de Agostinho não só evoluiu, o que é normal, mas também se modificou consideravelmente a partir de determinado momento que Ntedika situa em 413 e a que ele atribui a causa da luta contra os laxistas do além, os «misericordiosos» (miserieordes), luta a que Agostinho se entrega apaixonadamente a partir dessa data. Contentar-me-ei com citar, situar e comentar os principais textos agostinianos respeitantes ao Purgatório. Fá-lo-ei numa dupla perspectiva: o conjunto do pensamento e da acção agostinianos e a génese do Purgatório a longo prazo. Desejo, já de início, sublinhar um paradoxo. Insistiu-se a justo título na importância considerável de Santo Agostinho para a formação da doutrina do Purgatório. Isto é verdadeiro não só do ponto de vista dos historiadores e dos teólogos modernos que reconstituem a história do Purgatório, mas também do clero da Idade Média que criou o Purgatório. E, no entanto, parece-me evidente que esta questão não apaixonou Agostinho e que, se ele tantas vezes alude a ela, é porque ela interessava, em compensação, muitos dos seus contemporâneos e porque tocava - ia dizer envenenava aos seus olhos - em problemas que, esses sim, eram para ele fundamentais: a fé e as obras, o lugar do homem no plano divino, as relações entre os vivos e os mortos, a preocupação com a ordem numa série escalonada desde a ordem social terrena até à ordem sobrenatural, a distinção entre o essencial e o acessório, o esforço necessário ao homem para atingir o progresso espiritual e a salvação eterna. Parece-me que as indecisões de Agostinho vêm, em parte, deste relativo desinteresse pela sorte dos homens entre a morte e o Julgamento Final; mas explicam-se também por razões mais profundas. As mais importantes são as inerentes à época. A sociedade romana tinha de fazer face aos enormes problemas da grande crise do mundo romano, do repto dos bárbaros, do aparecimento de uma nova ideologia predominante, cuja grande afirmação a respeito do além era a ressurreilido e a escolha a fazer entre a condenação e a salvação eternas. Impregnada de milenarismo e pensando mais ou menos confusamente que o Julgamento Final estava para amanhã, essa sociedade estava pouco inclinada a insistir no requinte de pensamento que a reflexão sobre o intervalo entre a morte e eternidade pressupõe. Certamente, para esses homens e essas mulheres da Antiguidade tardia, cuja esperança no além se baseava, julgo eu, - porque sempre assim foi, e Paul Veyne bem o demonstrou em relação aos antigos evérgetas - menos na ideia confusa de salvação do
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o verdadeiro pai do Purgatório:
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Agostinho
que na de uma compensação, numa outra vida, das injustiças do mundo, estas reivindicações de equidade podiam achar-se satisfeitas pela sofisticação de justiça proporcionada pela redenção após a morte. Mas isso era um luxo. Foi porque no século XII a sociedade mudou de tal maneira que esse luxo se tomou necessidade, que o Purgatório pôde aparecer. Mas outras razões pessoais parece terem também incitado Agostinho a manifestar a sua incerteza a respeito de certos aspectos deste problema então marginal. Vê-las-emos nos textos que vou citar. Primeiro, a verificação das imprecisões, até das contradições dos textos das Escrituras neste domínio. Agostinho é um axegeta admirável mas não oculta a falta de clareza, as dificuldades do Livro. Não tem sido. suficientemente sublinhado o facto de no século XII Abelardo, no Sic et Non: ao empregar um método julgado revolucionário, mais não ter feito do que regressar a Agostinho. Na sua qualidade de padre, bispo e intelectual cristão, Agostinho está convencido de que o fundamento (palavra que tanto lhe agrada e que irá reencontrar em Coríntios Hl, 10-15) da religião, dos ensinamentos que deve ministrar, é a Escritura. Quando se tenta esclarecer o mais possível os pontos onde ela não é clara (o que é também uma das suas tendências profundas), é preciso reconhecer que nada de preciso se pode afirmar. Tanto mais que - é a sua segunda motivação - em questões de salvação, se deve respeitar o segredo, o mistério que envolve certos aspectos ou, ainda melhor, deixar a Deus o cuidado de tomar decisões dentro de um contexto, cujas grandes linhas Ele indicou através da Bíblia e dos ensinamentos de Jesus, mas onde reservou para si - mesmo fora do milagre - um espaço de livre decisão. Aqui, a importância de Agostinho reside primeiro no seu vocabulário que irá impôr-se durante muito tempo na Idade Média. Três palavras são essenciais: os adjectivos purgatorius, temporarius ou temporalis e transitorius. Purgatorius, que prefiro traduzir por purgatório (adjectivo) em vez de purificador, demasiado preciso para o pensamento de Agostinho, encontra-se ligado a poenae purgatoriae: as penas purgatórias (Cidade de Deus, XXI, XIII e XVI), tormenta purgatoria, tormentos purgatórios (Cidade de Deus, XXI e XVI) e sobretudo ignis purgatorius: fogo purgatório (Enchiridion. 69)25. Temporarius encontra-se por exemplo na expressão poenae temporariae, penas temporárias, opostas às poenae sempiternae, penas eternas (Cidade de Deus, XXI, XIII). Poenae temporales encontra-se na edição de Erasmo da Cidade de Deus (XXI, XXIV)26.
A morte de MóDica: orai por ela Agostinho foi o primeiro a afirmar a eficácia dos sufrágios pelos mortos. Fê-lo pela primeira vez num momento de emoção, na oração que
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escreveu em 397-398 nas Confissões, de sua mãe Mónica.
IX, XIII, 34-37, depois da morte
Quanto a mim, com o coração finalmente curado daquela ferida em que se poderia censurar uma fraqueza da carne, derramo perante ti, ó nosso Deus, por aquela que foi tua serva, lágrimas de um outro género: elas brotam de um espírito fortemente abalado perante o espectáculo dos perigos de toda a alma que morre em Adão. Sem dúvida, uma vez vivificada em Cristo, mesmo antes de ser liberta dos laços da carne, ela viveu de maneira a fazer louvar o teu nome na sua fé e na sua conduta; e no entanto, não ouso dizer que a partir do momento em que a regeneraste pelo baptismo nenhuma palavra contrária aos teus preceitos saiu da sua boca. Foi dito pela Verdade, pelo teu filho: «Se alguém disser ao seu irmão" Louco", esse será passível da geena do fogo.» Pobre da vida do homem, embora ela seja louvável, se ao passá-Ia pelo crivo, tu pões de parte a tua misericórdia! Mas, porque não procuras as culpas encarniçadamente, é com confiança que esperamos um lugar junto de ti. Aliás, quem quer que te enumere os seus verdadeiros méritos, o que te enumera ele senão os teus próprios dons? Oh! Se eles se reconhecessem homens, os homens! e se aquele que se glorifica, se glorificasse no Senhor! Pois por mim, oh meu louvado e minha vida, oh Deus do meu coração, deixando por um instante de lado as suas boas acções, pelas quais te rendo graças em alegria, agora é pelos pecados de minha mãe que te imploro. Atende-me, por aquele que, suspenso do madeiro, foi o remédio para as nossas feridas e que, sentado à tua direita, intercede por nós! Eu sei que ela praticou a misericórdia e que de todo o coração perdoou as dívidas aos seus devedores. Perdoa-lhe tu também as suas dívidas, que ela própria contraiu durante tantos anos depois da ablução da salvação! Perdoa, Senhor, perdoa-lhas, suplico-te! Não a julgues! Que a misericórdia passe por cima da justiça, pois as tuas palavras são verdadeiras e tu prometeste misericórdia aos misericordiosos! Se eles o foram é a ti que o deveram, a ti que terás piedade de quem quiseres ter piedade, que concederás misericórdia a quem quiseres conceder misericórdia. Mas, creio, já terás feito o que te peço. No entanto, estes votos espontâneos que vêm da minha boca, aceita-os, Senhor! E é verdade que, ao aproximar-se o dia da sua libertação, ela não teve nenhuma ideia de envolver sumptuosamente o seu corpo ou de o mandar embalsamar com aromas, nem o desejo de um monumento especial, nem a preocupação de um túmulo na sua terra. Não, não foi isso que ela nos recomendou, mas apenas que invocássemos a sua memória no teu altar; foi este o seu desejo. Pois, sem falhar um só dia, ela serviu esse altar, sabendo que nele se dita a sorte da vítima santa que afastou a sentença a que fomos condenados e triunfou do inimigo, aquele que avalia os nossos pecados ao procurar com que nos inculpar, mas nada encontra n'Aquele em quem somos vencedores. Quem lhe resgatará o seu sangue inocente? Do preço por que ele nos comprou, quem o reembolsará para nos arrancar a ele? A esse mistério do preço da nossa compra, a tua serva ligou
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a sua alma pelo laço da fé. Que ninguém a arranque à tua protecção! Que ninguém se interponha nem pela violência nem pelas manhas de Leão e Dragão! Pois ela não responderá que nada deve, com medo de que o acusador capcioso a perturbe e a obtenha; mas responderá que as suas dívidas lhe foram perdoadas por Aquele a quem ninguém restituirá aquilo que, em vez de nós, ele restituiu sem estar em dívida. Que ela esteja, pois, em paz juntamente com o seu marido: antes dele ninguém e depois dele ninguém a teve como esposa; ela serviu-o oferecendo-te o fruto da sua paciência, para o levar para ti, a ele também! E depois inspira, meu Senhor, meu Deus, inspira os teus servos meus irmãos, os teus filhos meus pais, a cujo serviço ponho o meu coração, a minha voz e os meus escritos, todos de entre eles que lerem estas linhas, inspira-os para que no teu altar se recordem de Mônica, tua serva, e de Patricio que foi seu esposo, aqueles por cuja carne tu me puseste nesta vida, sem que eu saiba como. Que, num sentimento de piedade, se recordem deles, meus pais nesta luz passageira, meus irmãos em ti, nosso Pai e na Igreja católica nossa Mãe, meus concidadãos na Jerusalém eterna pela qual suspira o teu povo em peregrinação, desde o ponto de partida ao ponto de chegada! Assim, o voto supremo que ela me dirigiu será mais abundantemente cumprido pelas preces de muitos, graças a estas confissões, do que somente pelas minhas preces. Este texto admirável não é uma exposição doutrinal, mas é possível extrair dele alguns dados importantes para a eficácia dos sufrágios pelos mortos. A decisão de colocar ou não Mónica no Paraíso, na Jerusalém eterna, só pertence a Deus. Apesar de tudo, Agostinho está convencido de que as suas preces podem comover Deus e influenciar a sua decisão. Mas o julgamento de Deus não será arbitrário, e a sua prece não será absurda nem absolutamente temerária. É porque Mónica, apesar dos seus pecados pois todo o ser humano é pecador - mereceu em vida a salvação, que a misericórdia de Deus poderá exercer-se e a prece do seu filho ser eficaz. Sem que seja dito, o que se pressente é que a misericórdia de Deus e os sufrágios dos vivos podem apressar a entrada dos mortos no Paraíso e não fazê-los transpor as suas portas, se foram grandes pecadores cá em baixo. O que também não é dito, mas é verosímiI é que, como não existe Purgatório (nem existe em qualquer texto de Agostinho uma única frase que estabeleça ligação entre os sufrágios e o fogo purgatório), este empurrão no sentido da salvação dos mortos pecadores mas merecedores terá lugar logo a seguir à morte ou, em todo o caso, sem que tenha decorrido tempo suficiente para ser necessário definir um prazo e ainda menos um lugar onde passar essa espera. O mérito de Mónica afirmado por Agostinho é significativo: supõe o baptismo, engloba tanto a fé como as obras. As suas boas acções foram, segundo o preceito, o perdão das dívidas aos seus devedores (para esta
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aristocrata rica, deve-se, sem dúvida, entender a coisa no sentido material e no sentido mora~~, a monogamia e a renúncia desta viúva a qualquer casamento, e sobre~udo a piedade eucarística. Outras garantias sobre o além que encontraremos não só na perspectiva do Paraíso mas também nos horizontes do Purgatório: as obras de misericórdia, a devoção eucarística, o respeito pelo estatuto matrimonial dos laicos, eis o que contará fortemente para escapar ao Inferno e porá em boa posição se não para o ingresso no Paraíso, pelo menos no Purgatório, graças à misericórdia de Deus e aos sufrágios dos vivos. Estes vivos são aqui o mais próximo da morta pela carne, o seu filho. Mas também, através deste filho, as duas comunidades que podem ser incitadas a orar eficazmente pela mãe são a do bispo e a do escritor: as suas ovelhas e os seus leitores. Uns anos mais tarde, no seu comentário do Salmo XXXVII, Agostinho pede a Deus por si próprio, que o corrija nesta vida para que não tenha de suportar, depois da morte, o fogo correctivo (ignis emendatorius}, Trata-se aqui, aliás, não só da sua ideia já evidente na prece por Mónica de que a salvação no além se merece primeiro cá em baixo, mas também da noção que acalentará até ao fim dos seus dias, parece, segundo a qual as atribulações desta vida serão uma forma de «purgatório». Enfim, em 426-427 na Cidade de Deus (XXI, XXIV), Agostinho volta à eficácia das orações pelos mortos, mas para precisar com mais clareza os seus limites. Os sufrágios são inúteis pelos demónios, pelos infiéis e os impios, portanto pelos condenados ao inferno. Só podem ser válidos para uma certa categoria de pecadores não nitidamente definida mas em todo o caso caracterizada de maneira especial: aqueles cuja vida não foi muito boa nem muito má. Agostinho baseia-se no versículo de Mateus, XII, 31-32: «Também vos digo que todo o pecado e blasfémia serão perdoados aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada. E quem disser uma palavra contra o filho do homem, isso ser-lhe-á perdoado, mas quem falar contra o Espírito Santo, isso não lhe será perdoado nem neste mundo nem no outro.» A qualidade daqueles que podem rezar com eficácia pelos mortos remíveis também é precisada: é a instituição eclesiástica, a própria Igreja, ou «alguns homens piedosos» (guidam pii}.
A razão pela qual não se rezará pelos homens votados ao fogo eterno é a mesma razão pela qual, nem agora nem nunca, não se reza pelos maus anjos, e é ainda pela mesma razão que a partir de agora não se reza já pelos infiéis e ímpios defuntos, ainda que se reze pelos homens. Pois, a favor de certos defuntos, a prece da própria Igreja e de alguns homens piedosos é atendida, mas por aqueles que estão regenerados em Cristo, e cuja vida no seu corpo não foi tão má que sejam julgados indignos de tal misericórdia, nem tão boa que se suponha que uma tal misericórdia não lhes será necessáriaê": também depois da ressurreição dos mortos haverá aqueles a quem, após as penas que sofrerão
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as almas dos mortos, será concedida essa misericórdia que lhes evitará serem lançados no fogo eterno. Com efeito, a respeito de alguns não se poderá dizer com verdade que não lhes é perdoado nem no século presente nem no século futuro, pois existem aqueles a quem o perdão, se não Ihes é concedido neste século sê-lo-á no século futuro. Mas quando o juiz dos vivos e dos mortos disser: Vinde, os abenpoados por meu Pai, possuí o reino que está preparado para vós desde a criapão do mundo, e aos outros pelo contrário: [de para longe de mim, malditos, para o fogo eterno que foi preparado pelo diabo e pelos seus anjos e eles tiverem ido, estes para o suplício eterno, mas os justos para a vida eterna'", é presunção excessiva dizer que o suplício eterno não terá lugar para algum daqueles a quem Deus declara que irão para o suplício eterno e, graças à convicção de uma tal conjuntura, fazer com que se desespere mesmo desta vida ou que se duvide da vida eterna.
A partir de 413 as convicções de Agostinho sobre a sorte dos mortos e em particular sobre a possibilidade de redenção depois da morte tornam-
-se mais precisas e evoluem para posições restritivas. A maioria dos especialistas do pensamento agostiniano, e especialmente Joseph Ntedika, viu a justo título neste endurecimento uma reacção às ideias dos laxistas «misericordiosos» que Agostinho considerava muito perigosos, e nele se viu também a influência das concepções milenaristas que teriam movido Agostinho por intermédio dos cristãos espanhóis. Creio que também aí se deve ver o reflexo do grande acontecimento do ano de 410: a tomada de Roma por Alarico e os Ostrogodos que parece marcar o fim não só do Império Romano e da invulnerabilidade de Roma, mas também anunciar o fim do mundo para certos cristãos, enquanto grande parte da aristocracia romana culta e ainda pagã acusava os cristãos de terem minado a força de Roma e de serem responsáveis por uma catástrofe sentida como, se não o fim do mundo, pelo menos o fim da ordem e da civilização. Foi para responder a esta situação, a estas conjecturas e a estas acusações que Agostinho escreveu a Cidade de Deus. O que diziam esses tais «misericordiosos» de quem nada sabemos a • . h o ve-os como d escennão ser o que Agostinho lhes reprovou 32?. A gostm dentes de Orígenes, que pensava que no fim do processo de paracatástase todos seriam salvos, incluindo Satanás e os anjos maus. Faz notar, todavia, que os misericordiosos apenas se ocupam do~ homens. Mas se bem que existam neles certos cambiantes, todos mais ou menos acreditam que os pecadores inveterados serão salvos na totalidade ou em parte. Segundo Agostinho, professam seis opiniões diversas mas próximas. De acordo com a primeira, todos os homens serão salvos, mas depois de uma estada mais ou menos longa no Inferno. De acordo com a segunda, as preces dos santos obterão para todos, no Julgamento Final, a salvação sem nenhuma passagem pelo Inferno. A terceira consiste em conceder a salvação a todos os cristãos, mesmo os cismáticos ou os heréticos, que tenham recebido a eucaristia. A quarta restringe esta benesse somente aos católicos, com excepção dos cismáticos e dos heréticos. Uma quinta opinião salva aqueles que conservam a fé até ao fim, mesmo que tenham vivido em pecado. A sexta e última variedade de misericordiosos é a que crê na salvação daqueles que deram esmolas, ainda que pudessem fazer mais. Sem entrar em pormenores, contentemo-nos com notar que, se a sua inspiração era mais ou menos origeniana, estas seitas ou estes cristãos isolados se apoiavam fu~damentalmente num texto das Escrituras separado do seu contexto e ínterpretado à letra. Reagindo, Agostinho vai afirmar que existem mesmo dois fogos, um fogo eterno destinado aos condenados para os quais qualquer sufrágio é inútil, e no qual insiste com veemência; e um fogo purgatório em re~ação ao qual tem mais hesitações. O que interessa pois a Agostinho, se aSSImse pode dizer, não é o futuro Purgatório mas sim o Inferno.
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Até 413, Agostinho contenta-se com acrescentar algumas notas pessoais aos ensinamentos dos Padres dos séculos III e IV, sobre o fogo do julgamento e sobre os aceitáveis após a morte, em especial o seio de Abraão para os justos, essencialmente baseado na exegese da história do mau rico e do pobre Lázaro (Lucas, XVI, 19-31) e na primeira epístola de Paulo aos Coríntios (IH, 10, 15). No Comentário ao Génesis contra os Maniqueistas, de 398, ele distingue o fogo da expurgação do da condenação eterna: «e depois desta vida haverá ou o fogo da expurgação ou da pena eterna.»29 Nas Questões sobre os Evangelhos, em 399, opõe aos mortos irremíveis como o mau rico aqueles que souberam fazer amigos com as suas obras de misericórdia, e que, portanto, prepararam os seus sufrágios. Mas confessa não saber se a recepção nos tabernáculos eternos evocada por Lucas (XVI, 9) se fará imediatamente após esta vida, quer dizer depois da morte, ou no fim dos séculos, no momento da ressurreição e do Julgamento Final3o. Nos seus comentários aos Salmos, escritos talvez entre 400 e 414, insiste sobretudo nas dificuldades levantadas pela existência de um fogo expurgatório depois da morte: é uma «questão obscura» (obscura quaestio), declara ele. No entanto, no seu Comentário ao Salmo XXXVII, avança com uma afirmação que conhecerá grande repercussão na Idade Média, a propósito do Purgatório: «Se bem que alguns sejam salvos pelo fogo, esse fogo será mais terrível do que tudo o que um homem pode suportar nesta vida!'.»
Depois de 413: duras penas purgatórias entre a morte e o Julgamento para aqueles que não são inteiramente bons
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Foi para instituir o Inferno que ele definiu certas categorias de pecadores e de pecados. Joseph Ntedika distinguiu três espécies de homens, três espécies de pecados e três espécies de destinos. Parece-me que o pensamento de Agostinho é mais complexo (a trindade será obra dos clérigos dos séculos XII e XIII). Existem quatro espécies de homens: os ímpios (infiéis ou autores de pecados criminais) que, sem recurso nem escapatória possíveis, vão directamente para o Inferno; no outro extremo, os mártires, os santos e os justos que, mesmo que tenham cometido pecados «ligeiros», irão para o Paraíso directamente ou muito em breve. Entre os dois extremos há aqueles que não são inteiramente bons nem inteiramente maus. Estes últimos são, de facto, destinados ao Inferno; quando muito poderão ter esperança, e será talvez possível obter para eles, por meio de sufrágios como adiante se verá, um Inferno «mais tolerável». Resta a categoria daqueles que não foram inteiramente bons. Esses podem (talvez) salvar-se por meio de um fogo purgatório. Não é, em definitivo, uma categoria muito numerosa. Mas se este fogo e esta categoria existem, Agostinho tem ideias mais precisas sobre determinadas condições da sua existência. Além de ser muito doloroso, este fogo não é eterno, contrariamente ao fogo da geena, e não actuará no momento do Julgamento Final mas entre a morte e a ressurreição. Por outro lado, é possível obter uma mitigação das penas graças aos sufrágios dos vivos habilitados a intervir junto de Deus e na condição de, finalmente e apesar dos pecados, se ter merecido a salvação. Estes méritos adquirem-se com uma vida geralmente boa e um esforço constante por a melhorar, com a realização de obras de misericórdia e com a prática da penitência. Este relacionamento da penitência com o «purgatório», que será tão importante nos séculos XII e XIII, aparece pela primeira vez nitidamente em Agostinho. Em definitivo, se Agostinho situou explicitamente o tempo da purgação do Julgamento Final no período intermédio entre a morte e a ressurreição, a sua tendência é para colocar ainda mais atrás, quer dizer aqui em baixo, essa purgação. No fundo desta existência existe a ideia de que as «atribuições» terrenas são a principal forma de «purgatório». Daí as suas hesitações sobre a natureza do fogo purgatório. Se ele actua depois da morte, não há objecção a que seja «real»; mas se existe nesta terra, então deve ser essencialmente «moral». No que toca aos pecados, Agostinho distinguiu pecados muito graves a que, aliás, chama «crimes» (crimina, facinora, flagitia, scelera) em vez de pecados, e que conduzem para o Inferno aqueles que os cometem; e pecados sem grande importância a que chamou «ligeiros», «miúdos», «pequenos» e sobretudo «quotidianos» (levia, minuta, minuttisima, minora, mínima, modica, parva, brevia, quotidiana) dos quais deu como exemplo o apego excessivo à família, o amor conjugal exagerado (Cidade de Deus, XXI, XXVI). Joseph Ntedika fez notar que Agostinho não referiu,
nem no todo nem nos pormenores, os pecados «intermédios», aqueles que devem desaparecer no fogo purgatório, e avançou a hipótese de que receava que o seu pensamento fosse explorado pelos laxistas «misericordiosos». O que é possível. Mas não se deve esquecer que Agostinho era mais sensível à globalidade da vida espiritual, à personalidade de conjunto dos homens do que a um inventário de objectivos da vida moral que coisificaria a vida da alma. Estes «crimes» são mais hábitos de criminosos do que delitos precisos. Os pecados «quotidianos» são os únicos que podem ser nomeados porque são os «trocos» da existência. Citá-los não é grave para a qualidade da vida espiritual; são excrescências, escória, bagatelas fáceis de fazer desaparecer desde que não se acumulem e não invadam o espírito. A oposição de Agostinho aos «misericordiosos» e a evolução do seu pensamento sobre a sorte dos mortos surgem no seu tratado Sobre a fé e as obras (De fide et operibus) de 413, mas exprimem-se sobretudo no seu Manual, o Enchiridion, em 421, e no livro XXI da Cidade de Deus, em 426-427. Entretanto fizera certas precisões a pedido de amigos. Na Carta a Dardanus, em 417, esboçava uma geografia do além na qual não havia lugar para o Purgatório. Voltando à história do pobre Lázaro e do rico mau distinguia, com efeito, uma região de tormentos e uma região de repouso mas não as situava às duas nos Infernos, como alguns, porque a Escritura diz que Jesus desceu aos Infernos mas não que visitou o seio de Abraão. Este não é senão o paraíso, nome genérico que não designa o Paraíso terrestre onde Deus colocara Adão antes do pecado'". Em 419, um certo Vincentius Victor de Cesareia, da Mauritânia, interroga Agostinho acerca da necessidade de se baptizar para ser salvo. No tratado Sobre a natureza e a origem da alma com o qual Agostinho lhe responde e onde toma o exemplo de Dinócrates na Paixão de Perpétua e Felicidade, o bispo de Hipona nega que as crianças não baptizadas possam entrar no Paraíso e nem sequer ir, como pensavam os pelagianos, para um lugar intermédio de repouso e de felicidade (Agostinho nega portanto aqui o que será no século XIII o limbo das crianças). Para ir para o Paraíso é preciso ser baptizado: Dinócrates fora-o, mas deve ter pecado depois, talvez apostatado por influência do pai, mas fora salvo finalmente por intercessão da irmã. Eis os grandes textos do Enchiridion'" e do livro XXI da Cidade de
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Deus. Se é verdade que um homem carregado de crimes será salvo através do fogo unicamente em nome da sua fé e se é assim que deve entender-se a palavra de S. Paulo: «Ele será salvo, mas corno através do fogo» (I Corintios, III, 15), segue-se que a fé poderá salvar sem as obras, e que será falso o que disse
Tiago seu companheiro de apostolado. Falso também o que dizia o próprio S. Paulo: «Não vos enganeis: nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os invertidos, nem os ladrões, nem os avaros, nem os bêbedos, nem os maldizentes, nem os açambarcadores possuirão o reino de Deus» (I Corintios, VI, 9-11). Se, com efeito, até aqueles que persistem nestes crimes serão no entanto salvos mercê da sua fé em Cristo, como não o seriam no reino de Deus! Mas, visto que testemunhos apostólicos tão claros e tão evidentes não podem ser falsos, a passagem obscura onde se trata dos que constroem, sobre o alicerce que é o Cristo, não com ouro, não com prata ou com pedras preciosas, mas com madeira, com erva ou com palha - pois é desses que se diz que serão salvos através do fogo porque não morrerão por causa do alicerce - deve ser entendida de maneira a não entrar em contradição com os textos compreensíveis. Madeira, erva e palha podem efectivamente entender-se como um tal apego aos bens mais legítimos deste mundo, que não é possível perdê-los sem dor. Quando essa dor acaba por queimar (alguém), se o Cristo desempenha no seu coração o papel de alicerce, quer dizer que ninguém é preferido em detrimento d'Ele, e se, sob o golpe da dor que queima, esse homem prefere ficar privado desses bens caros ao seu coração do que do Cristo, ele é salvo através do fogo. Mas se, no momento da tentação, lhe acontecesse preferir a posse desses bens temporais e profanos à posse do Cristo, é porque não o tinha como alicerce, uma vez que dava àqueles a primazia: pois, num edifício, nada precede o alicerce. Com efeito, o fogo de que falava o Apóstolo nesta passagem deve ser entendido de tal maneira que os dois devem atravessá-lo: «aquele que sobre este alicerce constrói com ouro, com prata ou com pedras preciosas, e aquele que constrói com madeira, com erva ou com palha». Dito isto, Paulo acrescenta com efeito: «O que é a obra de cada um, o fogo pô-lo-á à prova. Se a obra de um resiste bem, esse receberá a sua recompensa. Mas se ela, pelo contrário, é consumida, então sossobra; quanto a ele, será salvo, mas como através do fogo» (I Corintios, m, 13-15). Não é pois só um deles, mas um e outro, que verão a sua obra posta à prova pelo fogo.
Que algo semelhante aconteça igualmente depois desta vida, não é impossível. Será de facto assim? É lícito investigá-Io, seja ou não para o descobrir. Alguns fiéis (neste caso) poderiam, mais cedo ou mais tarde, ser salvos por um fogo purgatório, conforme tenham amado mais ou menos os bens transitórios. Porém, nunca o serão aqueles de que se diz que «não possuirão o reino de DeUS»(I Corintios, VI, li) se, por uma penitência adequada, não obtiverem a remissão dos seus pecados (crimina), Adequada, disse eu, que não sejam avaros em esmolas, visto que a Santa Escritura atribui a estas um valor tal, que o Senhor anuncia (Mateus, XXV, 34-35) dever contentar-se unicamente com esta colheita para colocar (os homens) à sua direita ou unicamente com a ausência dela para os pôr à esquerda, e dirá a uns: «Vinde, os abençoados por meu Pai, recebei o reinos e aos outros: «Ide para o fogo eterno.» Livremo-nos de pensar, apesar de tudo, que estes crimes infames de que ele diz que aqueles que deles são culpados «não possuirão o reino de Deus» podem ser cometidos todos os dias e todos os dias resgatados por meio de esmoIas. O que é preciso é mudar a vida para melhor e, por meio de esmolas, aplacar Deus pelas culpas passadas, e não comprá-lo, por assim dizer, de maneira a poder sempre cometê-Ias impunemente. «Com efeito, a ninguém Deus dá licença de pecar (Eclesiastes, XV, 21), se bem que, na sua misericórdia, apague os pecados cometidos, se não for negligenciada a satisfação adequada.
Estes excertos dos capítulos 67 e 68 do Enchiridion testemunham em muitos aspectos o pensamento agostiniano. Primeiro, o seu métouo exegético. Ao texto de S. Paulo (I Coríntios, 111, 13-15), cujo carácter obscuro reconhece, Agostinho opõe textos claros do mesmo S. Paulo. Deve interpretar-se o texto dificil à luz dos textos exactos. Por outro lado, distingue cuidadosamente os homens que cometeram crimes (homo sceleratus, criminat dos que só cometeram delitos muito ligeiros, cujo protótipo é sempre, para Agostinho, um apego exagerado aos bens terrenos no entanto legítimos. Uns e outros, no dia do Julgamento, suportarão a prova do fogo, mas uns perecerão, serão consumidos, enquanto os outros serão salvos.
Na passagem precedente, Agostinho sublinhara que, para se ser salvo pelo fogo, era preciso ter reunido, na vida terrena, a fé e as obras. Aqui (Enchiridton, 69-70) é ainda mais conciso. Não se deve apenas ter dado esmolas, é preciso «mudar a vida para melhor» (in me/ius quippe est vila mutanda) e, em especial, é preciso entregar-se a uma penitência conveniente e dar satisfação, isto é, cumprir uma penitência canónica. Neste caso a remissão poderá ser conseguida após esta vida (post hanc vitam) graças a «um certo fogo purgatório» (per ignem quemdam purgatorium ) sobre o qual Agostinho parece não ter certezas mas que é diferente do fogo eterno, do fogo do Inferno. Retomará a distinção entre os dois fogos, aquele que atormenta eternamente e aquele que expurga e salva, no capítulo XVI do livro XXI da Cidade de Deus. A penitência, em todo o caso, pode ser tão eficaz que, com excepção dos crimes infames, possa até resgatar os pecados que, sem serem infames (infanda), são no entanto designados como «crimes» (crimina). O fogo expurgatório é destinado quer aos fiéis não submetidos à penitência canónica quer àqueles que lhe são submetidos mas não a concluíram. Em compensação aqueles que, estando sujeitos à penitência, não lhe foram submetidos, não pode ser purificados pelo fogo. Nos capítulos 109 e 110 do Enchiridion, Agostinho evoca os receptáculos que acolherão as almas entre a morte individual e a ressurreição final. Há lugares de repouso (o seio de Abraão, ainda que não seja refe-
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aliviado os mortos, servem para consolar, mesmo assim, os vivos. O que eles asseguram àqueles que deles aproveitam é ou a amnistia completa ou, pelo menos, uma forma mais suportável de condenação aos Infernos.
rido) e os lugares de tormento (a geena igualmente não mencionada) como no quarto Livro de Esdras, explicitamente citado por Ambrósio. As almas dos defuntos podem ser ajudadas pelos sufrágios dos vivos: sacrificio eucarístico, esmolas. É aqui que Agostinho expõe melhor a sua concepção das quatro espécies de homens. Os bons não têm necessidade de sufrágios que, por sua vez, não podem ser úteis aos maus. Restam os que não são inteiramente bons e os que não são inteiramente maus. Esses têm necessidade de sufrágios. Os quase inteiramente bons tirarão deles beneficios. Quanto aos quase inteiramente maus, parece que o melhor que podem esperar é uma «condenação ao Inferno mais suportável» (to/erabilio damnatio). Agostinho não se explicou a este respeito. Pode supor-se que sonhava ou com o repouso sabático no Inferno, ou com tormentos menos cruéis no Inferno também. A ideia de mitigação das penas parece aqui exceder o «purgatório».
O livro XXI da Cidade de Deus (426-427) é de facto consagrado ao Inferno e às suas penas. O objectivo principal de Agostinho é insistir na eternidade destas. Para além do capítulo XXIV que já citei a propósito da categoria de defuntos a quem os sufrágios podem ser úteis, examinarei o capítulo XIII e a maior parte do capítulo XXVI. No capítulo XIII, Agostinho reporta-se àqueles que pensam que todas as penas desta vida ou do além são expurgatórias, portanto temporárias. Retoma a distinção entre penas eternas e penas expurgatórias ou temporárias, mas desta vez concede mais nitidamente a existência das penas expurgatórias e dá mais pormenores a seu respeito.
No intervalo entre a morte do homem e a ressurreição suprema, as almas são retidas em depósitos secretos onde conhecem ou o repouso ou a pena de que são dignas, segundo a sorte que talharam para si enquanto viviam na carne. Não se pode porém negar que as almas dos defuntos sejam aliviadas pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando por elas é oferecido o sacrifício do Mediador ou na Igreja são distribuídas esmolas. Mas estas obras servem apenas para aqueles que, enquanto viviam, mereceram que elas pudessem servir-lhes mais tarde. Com efeito, existem homens cuja vida não é sufícientemente boa para não terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para que eles não possam ajudá-Ios. Ao contrário, há-os que viveram suficientemente bem para os dispensar e outros suficientemente mal para não poderem tirar deles proveito depois da morte. Pelo que é sempre aqui em baixo que se adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta vida, alívio ou infortúnio. Aquilo que foi desprezado neste mundo, que ninguém espere obter de Deus após a morte. Assim, as práticas observadas pela Igreja tendo em vista recomendar a Deus as almas dos defuntos não são contrárias à doutrina do Apóstolo, que dizia: «Todos nós compareceremos perante o tribunal do Cristo» (Romanos, XIV, 10), para lá recebermos, «cada um segundo o que fez durante a vida, seja para o bem, seja para o mal» (11Coríntios, V, 10). Pois é durante a sua vida terrena que cada um se torna merecedor do beneficio eventual das preces em questão. Nem todos tiram dele vantagem; e porque será que o proveito que dele advém não é o mesmo para todos, se não por causa da vida diferente que tiveram cá em baixo? Os sacrifícios do altar ou da esmola que são oferecidos em intenção de todos os defuntos baptizados, para aqueles que foram inteiramente bons, são acções de graças; para aqueles que não foram inteiramente maus, são meios de propiciação; para aqueles cuja maldade foi total, por não terem
XIII. Os platónicos, é evidente, desejariam que nenhum pecado ficasse impune; pensam, no entanto, que todas as penas são aplicadas com fins correctivos, sejam elas infligidas pelas leis humanas ou pelas leis divinas, quer nesta vida quer depois da morte, conforme se foi poupado cá em baixo ou se foi atingido sem conseguir emenda cá em baixo. Daí este pensamento de Virgilio: depois de ter falado dos corpos terrenos e dos corpos votados à morte, diz ele das almas: «Por isso elas temem e desejam, sofrem e rejubilam e não sentem as brisas, envoltas como estão em trevas e encerradas como estão na prisão escura.» Prossegue e acrescenta estas palavras: «E mais: quando no dia supremo a vida as abandona (quer dizer, quando no último dia esta vida as abandona), todavia o mal não deixa essas infelizes, nem todas as máculas corporais as abandonam completamente; é necessário que os numerosos males, que com o tempo criaram raízes, se desenvolvam de maneiras espantosas. São, pois, atormentadas com penas e expiam em suplícios os crimes passados; umas balançam inertes suspensas dos ventos; noutras, a mácula do crime é lavada no fundo do grande abismo, ou queimada no fogo.» Aqueles que assim pensam só admitem penas purgatórias depois da morte: e porque a água, o fogo e o ar são elementos superiores à terra, deve-se ser lavado por um deles, por meio de penas expiatórias, de tudo o que o contacto com a terra faz contrair; de facto, o ar é designado pelas palavras «suspensas dos ventos», a água por estas: «no grande abismo»; mas o fogo é expresso pelo seu próprio nome, quando ele diz: «ou queimada no fogo». Quanto a nós, confessamos que, mesmo nesta vida mortal, há penas purgatórias; não são atormentados por elas aqueles cuja vida não melhora ou até se torna pior, mas são purgatórias para aqueles que, castigados por elas, se corrigem. Todas as outras penas, quer temporárias quer eternas, conforme a maneira como cada um deve ser tratado pela divina Providência, são aplicadas pelos pecados quer passados quer actuais, nos quais ainda vive aquele que é por elas atingido, seja para exercer ou pôr em evidência as virtudes, e isto por intermédio ou dos homens ou dos anjos bons e maus. Pois se alguém sofre qualquer mal por maldade ou em de
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outrem, este homem peca, na verdade, pois faz mal a outro por ignorância ou por injustiça; mas Deus, esse, não peca quando permite isso por um julgamento justo, mesmo que seja secreto. Mas uns sofrem as penas temporárias apenas nesta vida, outros depois da morte, outro tanto durante como depois desta vida: de qualquer modo, antes desse julgamento muito severo e o último de todos. Mas não caem nas penas eternas que virão depois desse julgamento aqueles que suportaram as penas depois da morte. Pois para uns aquilo que não é remido neste século será remido o século futuro, quer dizer evitar-lhes-á serem punidos pelo suplício eterno desse século futuro: já o dissemos atrás.
Aqui não são visados os cristãos mas os autores pagãos, aqueles que Agostinho chama os «platônicos» e entre os quais inclui Virgílio, reconhecendo assim nos versos do primeiro canto da Eneida que citei uma prefiguração do além cristão. Insiste na existência de penas purgatórias a que também chama expiatórias. Admite que elas podem ser sofridas quer nesta terra quer depois da morte. São temporárias porque acabarão no dia do Julgamento Final e, nesse momento, os que as tiverem sofrido vão para o Paraíso. Esta última afirmação é muito importante: constituirá um elemento essencial do sistema do Purgatório medieval. Agostinho repete, enfim, que só poderão beneficiar destas penas purgatórias aqueles que se corrigiram durante a vida terrena. No capítulo XXVI deste livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho retoma, de forma mais aprofundada e subtil, a exegese da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, III, l3-15. Vede nas palavras do Apóstolo o homem que constrói sobre o alicerce com ouro, prata e pedras preciosas: Aquele que não tem esposa, diz ele, pensa nas coisas de Deus, de que maneira agradar a Deus. Vede o outro que constrói com madeira, com feno, com palha: Mas aquele que está amarrado pelo casamento, pensa nas coisas que são do mundo, de que maneira agradar à sua esposa. A obra de cada um tornar-se-á manifesta, o dia dá-la-â a conhecer (é o dia da atribulação), pois deve revelar-se no fogo, diz ele. (A esta atribulação chama ele fogo, como se lerá noutra passagem: O forno põe à prova os vasos do oleiro, como a atribulapão faz com os homens justos.) A obra de cada um, o fogo provará qual é o seu valor. Se a obra de um resiste, (resiste, com efeito, a de quem pensa nas coisas de Deus e como agradar a Deus), pelo que ele tiver construído por cima, esse receberá uma recompensa (quer dizer, receberá aquilo em que pensou); mas aquele cuja obra é consumida sofrerá um desgosto (porque já não terá o que amou); quanto a ele, será salvo (pois nenhuma atribulação o fez desviar-se da estabilidade do alicerce); mas como através do fogo (com efeito, aquilo que ele possuiu apenas por amor enganador,
não o perderá sem dor). E encontrá-mo-lo, parece-me, esse fogo que não condenará nenhum dos dois, mas enriquece um, prejudica outro, e põe à prova os dois.
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Distingue bem duas espécies de salvos através do fogo, prova comum âquelescuja obra resistirá e àqueles cuja obra será consumida. Os primeiros receberão uma recompensa, quer dizer irão directamente para o Paraíso; os outros começarão por sofrer um desgosto, quer dizer uma expiação, mas também eles serão finalmente salvos. Agostinho retoma, finalmente, no fim do capítulo XXVI, a exegese do mesmo texto de S. Paulo e presta dois esclarecimentos. Primeiro, a conlirmação nítida de que o fogo purgatório se exercerá entre a morte corporal e a ressurreição dos corpos «nesse intervalo de tempo» (hoc temporis interval/o). Depois uma definição das atitudes humanas que levam ou à condenação aos Infernos ou ao beneficio do fogo purgatório. O critério é a natureza do alicerce sobre o qual o homem construiu a sua vida. O único alicerce salutar é o Cristo. Se se preferir para alicerces as volúpias carnais em vez do Cristo, corre-se para a condenação aos Infernos. Se, pelo contrário, se sacrificou de mais a essas volúpias mas sem as colocar no lugar do Cristo, corno alicerce, ser-se-á salvo «por essa espécie de fogo». Após a morte deste corpo, até que chegue o dia que se seguirá à ressurreição dos corpos e que será o dia supremo da condenação e da remuneração, se se afirma que, neste intervalo de tempo, as almas dos defuntos suportam esta espécie de fogo, não o sentem aqueles que nos seus corpos não tiveram durante a vida costumes e amores tais que o seu feno, a sua madeira e a sua palha sejam consumidos; mas os outros sentem-no, aqueles que trouxeram consigo construções de materiais semelhantes; encontram o fogo de uma atribulação passageira que queimará completamente essas construções que vêm do século, seja apenas aqui, seja aqui e lá em baixo, ou mesmo lá em baixo e não aqui e que não são, aliás, passíveis de condenação aos Infernos; pois bem, não repilo esta opinião, pois talvez seja verdadeira. De facto, dessas atribulações pode fazer parte a própria morte da carne, que foi concebida pela perpetração do primeiro pecado; de tal modo que o tempo que se segue à morte é sentido por cada um segundo a sua própria construção. Também as perseguições que coroam todos os mártires e as que sofrem todos os cristãos põem à prova os dois géneros de construções, como o fogo; consomem umas juntamente com os construtores, se não encontram nelas o Cristo como alicerce; outras sem os construtores se o encontram, pois são salvos mas não sem dor; mas não consomem outras porque vêem que elas podem subsistir para sempre. Haverá também no fim do século, na época do Anticristo, uma atribulação tal que nunca houve outra igual antes. Como serão então numerosas as construções quer de ouro quer de feno edificadas sobre o mais sólido alicerce que é Jesus Cristo; umas e outras, esse fogo pô-Ias-à à prova, a umas dará alegria, a outras prejuízo; não destruirá, no entanto, nem uns nem outros daqueles em que encontrar essas construções, em virtude do estável alicerce. Mas quem quer que coloque antes do Cristo, já nem digo a esposa com quem estabelece a união recíproca da carne por causa da volúpia carnal, mas os outros laços
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de afeição habituais entre os homens, mas estranhos àquelas volúpias, amando-os de uma maneira carnal; esse não tem o Cristo como alicerce; por consequência, não será salvo pelo fogo; não será mesmo salvo simplesmente, porque não poderá estar com o Salvador que diz muito claramente ao falar nisso: Aquele que ama o seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; e aquele que ama o seu filho ou sua filha de preferência a mim, não é digno de mim. Mas aquele que ama os seus próximos de uma maneira carnal mas sem no entanto os colocar antes de Cristo Senhor, de modo a preferir ser privado deles a ser privado do Cristo, se a provação o levar a esse extremo, esse será salvo pelo fogo, pois é necessário que, pela perda dos seus próximos, a dor o queime em proporção com a força do seu amor. Além disto, aquele que amar o pai, a mãe, o filho ou a filha segundo Cristo, de tal modo que se ocupa deles para os fazer atingir o seu reino e ficar unidos a Ele, ou que amar neles o facto de serem membros do Cristo: queira Deus que esse amor não seja de molde a ser classificado entre as tais construções de madeira, de feno e de palha, para ser queimado! então será reconhecido como uma co~strução de ouro, de prata e de pedras preciosas. Como pode ele amar mais do que o Cristo aqueles que ama, de facto, em intenção do Cristo?
Agostinho e os espectros Não me parece possível abandonar as concepções de Agostinho tão importantes para a génese do Purgatório, sem ter mencionado dois problemas a elas ligados. O primeiro encontra-se no opúsculo Sobre os cuidados a ter com os mortos, dedicado a Paulino de Nola entre 421 e 423. Nele Agostinho retoma um dos seus temas favoritos já evocado na prece por sua mãe Mónica, no livro IX das Confissões. Opõe-se fortemente ao luxo funerário a que cedem certos cristãos, copiando os costumes dos pagãos ricos. Um mínimo de cuidados basta aos mortos, e se Agostinho admite um certo decoro nas exéquias e nos cemitérios, é por mero respeito humano. As famílias ficam parcialmente consoladas com isso. Pode-se deixar-Ihes essa satisfação. Mas na segunda parte do De cura pro mortuis gerenda Agostinho aborda o problema dos espectros. Afirma primeiro a sua realidade dando exemplos pessoais. Descrevem-se certas aparições que me parecem acrescentar a este debate um problema não despiciendo. Diz-se que certos mortos se mostraram, quer durante o sono, quer de outra maneira, a pessoas vivas. Essas pessoas ignoravam o local onde o seu cadáver jazia sem sepultura. Eles indicaram-lho e pediram que lhes arranjassem o túmulo que lhes faltava. Responder que estas visões são falsas é contradizer com atrevimento os testemunhos escritos de autores cristãos e a convicção das pessoas que afirmam tê-Ias tido. A resposta verdadeira é a seguinte. Não se deve pensar que os mortos agem como seres conscientes e reais, quando parecem dizer, mostrar ou pedir em sonhos o que
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nos é relatado. Pois também os vivos aparecem aos vivos em sonhos, e sem que o saibam. Vêm a saber pelas pessoas que os viram, enquanto dormiam, o que disseram e fizeram durante a visão. Qualquer um pode, pois, ver-me em sonhos anunciando-lhe um acontecimento passado ou predizendo-lhe um acontecimento futuro. E no entanto eu ignoro totalmente o facto, e nada tenho a ver não só com o sonho dele mas também se está acordado quando eu durmo, se dorme quando eu estou acordado, se estamos acordados ou dormimos os dois no mesmo momento, quando ele tem o sonho onde me vê. O que há então de extraordinário no facto de os mortos, sem nada saberem nem sentirem, serem vistos em sonhos pelos vivos, dizendo coisas das quais, ao acordar, se verifica a veracidade? Seria levado a crer, em relação a estas aparições, numa intervenção dos anjos que, com permissão de Deus e por sua ordem, fazem saber a quem sonha que tais mortos estão por sepultar, e isto com o desconhecimento dos próprios mortos. Acontece também de tempos a tempos que visões falsas façam cair em erros graves homens que merecem, aliás, cair neles. Alguém, por exemplo, vê em sonhos o que Eneias viu nos Infernos, como uma ficção poética e falaciosa nos conta (Eneida, VI), quer dizer a imagem de um homem privado de sepultura. Esse homem diz-lhe as coisas que o poeta põe na boca de Palinuro. E eis que ao acordar encontra o corpo do defunto exactamente no local onde no sonho, com pedidos e rogos para que o sepultasse, soubera que ele jazia. Como a realidade é igual ao sonho, ele será tentado a acreditar que é preciso inumar os mortos para permitir às almas alcançarem aquelas moradas de onde as leis do Inferno as afastam enquanto o corpo não tiver recebido sepultura, conforme lhe fora dito no sonho. Ora, se se tiver esta convicção, não se será levado bem longe, para fora do caminho da verdade? Tal é pois a ignorância humana que, se se vê um morto durante o sono, julga-se ver a sua alma, enquanto se sonha com um vivo fica-se perfeitamente convencido de que não se viu o seu corpo nem a sua alma, mas a sua imagem. Como se os mortos não pudessem aparecer da mesma maneira que os vivos, não sob a forma de uma alma, mas sob uma figura que reproduz os seus traços. Eis um facto que posso garantir. Estando eu em Milão, ouvi contar que um credor, para conseguir ser reembolsado de uma dívida, se apresentou ao filho do devedor com a promissória assinada por este, que acabava de morrer. Ora a dívida já fora paga. Mas o filho ignorava-o e ficou numa grande tristeza admirando-se de que o pai, que aliás fizera testamento, nada lhe tivesse dito ao morrer. Mas eis que na sua imensa ansiedade vê o pai aparecer-lhe em sonhos e mostrar-lhe o sítio onde se encontra o recibo que anulara aquela promissória. Ele encontra-o, mostra-o ao credor e não só nega a sua reclamação mentirosa mas também entra na posse do papel que não fora restituído ao pai no momento do reembolso. Eis, pois, um caso em que a alma do defunto pode passar por ter tido pena do filho e ter vindo junto dele durante o sono para o informar do que ele ignorava, e o tirar da sua grande preocupação.
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Mais ou menos na época em que nos relataram este caso e quando eu ainda estava estabelecido em Milão, aconteceu a Eulogius, professor de eloquência em Cartago e meu discípulo nessa arte, como eleme recordou, o facto seguinte que ele próprio me relatou, quando regressei a Africa: Dizendo o seu curso respeito às obras de retórica de Cícero, ele preparava a lição para o dia seguinte; deparou-se-lhe uma passagem obscura que não conseguia compreender. Preocupado, fez todos os esforços para adormecer. E eis que eu lhe apareci durante o sono e lhe expliquei as frases que haviam resistido à sua inteligência. Não era eu, evidentemente, mas a minha imagem, sem eu saber. Estava eu então bem longe, do outro lado do mar, ocupado com outro trabalho ou sonhando outra coisa, e nada tinha a ver com as suas preocupações. Como se produziram estes dois factores? Ignoro-o. Mas seja como for que eles tenham acontecido, porque não acreditarmos que os mortos nos aparecem em sonhos na forma de uma imagem, exactamente como os vivos? Nem uns nem outros sabem disso nem com isso se preocupam.
que as nossas boas obras sejam feitas em vão por aqueles a quem elas não são úteis nem prejudiciais, do que faltarem aos que podem delas tirar beneficio. Todavia, cada um põe mais zelo em fazê-Ias pelos seus parentes, na esperança de que estes lhes paguem na mesma moeda. Se citei longamente estes textos espantosos, é porque o Purgatório terá grande importância para os espectros: será a sua prisão, mas ser-lhes-á permitido escapar dele para as breves aparições aos vivos, cujo zelo em seu beneficio seja insuficiente. É importante que também aqui Agostinho surja como uma autoridade. Com efeito, este intelectual cristão sempre pronto para denunciar as superstições populares, partilha aqui uma mentalidade comum. Por outro lado, vemo-lo isolado perante a interpretação dos sonhos e das visões. O cristianismo destruiu a sábia oniromancia antiga e reprime ou recusa as práticas populares de adivinhação. O caminho dos sonhos está bloqueado, os pesadelos vão nascer. Os homens da Idade Média levarão muito tempo a recuperar um universo onírico'".
Depois de ter falado das visões que podem surgir durante o delírio ou em letargia, Agostinho conclui, aconselhando a não se tentar entender estes mistérios: () fogo purgatório e a escatologia de Agostinho Se alguém por acaso me tivesse respondido com estas palavras da Escritura: «Não procures o que está alto de mais para ti, não perscrutes o que é forte de mais para ti, contenta-te com meditar constantemente nos mandamentos do Senhor» (Eclesiastes, IH, 22), eu acolheria este conselho com gratidão. Não é, com efeito, pequena vantagem, quando se trata de pontos obscuros e incertos que escapam à nossa compreensão, ter pelo menos a certeza nítida de que não se deve estudá-los; e, quando queremos instruir-nos na intenção de saber qualquer coisa de útil, que não é nocivo ignorá-Ia. A conclusão geral do opúsculo insiste na utilidade dos sufrágios pelos mortos, com a restrição de que só aqueles que mereceram a salvação podem beneficiar com eles. Mas na incerteza da ,sorte que Deus Ihes reserva, mais vale fazer de mais do que de menos. E a reafirmação da triologia auxiliar dos mortos que reencontraremos com o Purgatório: as missas, as orações, as esmolas: Estando o problema no seu conjunto assim resolvido, fiquemos convencidos de que os mortos para os quais vão os nossos cuidados apenas beneficiam das súplicas solenes por eles feitas no sacrificio oferecido no altar e no das nossas preces e das nossas esmolas. Façamos todavia a reserva de que essas súplicas não são úteis a todos, mas só àqueles que durante a vida mereceram beneficiar delas. Mas como não podemos distinguir aqueles que adquiriram este mérito, devemos suplicar por todos os regenerados para não esquecermos nenhum dos que podem e devem aproveitar com elas. Mais vale, com efeito, 102
Por outro lado, não se deve separar, mesmo que Agostinho não as tenha ligado explicitamente, as suas concepções do fogo purgatório e a Nua doutrina escatológica geral, em especial a sua atitude no que respeita 110
milenarismo ".
O milenarismo é a crença de certos cristãos herdada do judaísmo na vinda à terra, numa primeira fase do fim dos tempos, de um período de felicidade e de paz de mil anos, quer dizer, um tempo muito longo, o Millenium. Os cristãos milenaristas, numerosos sobretudo entre os gregos e daí o nome do «chiliasme» - do grego XtÀícx que significa mil que foi a primeira designação da doutrina, baseavam-se sobretudo numa . passagem do Apocalipse de João que certos cristãos que se opunham ao milenarismo tinham em vão tentado afastar da compilação canónica das Escrituras: Depois vi tronos onde eles se sentaram e adiaram-lhes o julgamento; e também as almas dos que foram decapitados pelo testemunho de Jesus e a Palavra de Deus, e todos aqueles que recusaram adorar a Besta e a sua imagem e deixar-se marcar na testa ou na mão; eles readquiriram vida e reinaram com o Cristo mil anos. Os outros mortos não puderam retomar vida antes de terminarem os mil anos. É a primeira ressurreição. Feliz e santo o que participa da primeira ressurreição! A segunda morte não tem poder sobre esses, e eles serão padres de Deus e do Cristo, com quem reinarão mil anos (Apocalipse, XX, 4-6). 103
A voga do milenarismo entre os cristãos parece ter conhecido o seu apogeu no século lI, e depois ter decrescido. Mas esta crença não desaparecerá e conhecerá na Idade Média surtos mais ou menos intensos, mais ou menos longos, dos quais o principal foi sem dúvida a repercussão das ideias milenaristas do abade Joachim de Fiore (que morreu em 1202) na Calábria, no século XIII. Agostinho dedicou o livro XX da Cidade de Deus à escatologia dos últimos tempos. Nele apresenta uma crítica vigorosa do milenarismo, depois de confessar que foi milenarista durante a juventude. O Millenium, diz ele, começou com a vinda do Cristo e prosseguiu com o baptismo que representa para os homens a primeira ressurreição, a das almas. Acreditar num Millenium futuro é, no fundo, cometer o mesmo erro que os judeus que continuam à espera do Messias quando ele já veio. Do Millenium Agostinho dá, aliás, uma interpretação alegórica. Mil, que é um número perfeito, dez ao cubo, significa a plenitude dos tempos. Por outro lado, Agostinho minimiza um episódio anunciado pelo Apocalipse, o da vinda do Anticristo, personagem demoníaca que deve dominar a terra justamente antes do começo do Millenium, quando Satanás, ele próprio acorrentado durante mil anos, se tiver libertado. Agostinho afirma que o reinado do Anticristo será muito breve e que mesmo durante tal reinado nem o Cristo nem a Igreja - que não desaparecerá abandonarão os homens. Esta negação de uma primeira ressurreição dos justos que virá com o Julgamento Final articula-se com a afirmação de um fogo purgatório pelo qual passarão certos defuntos entre a morte e a ressurreição, sem que possa existir nesse período outro acontecimento escatológico. Pelo contrário, Santo Ambrósio, seguindo Orígenes que condenara severamente o «chiliasme» mas que, segundo a sua teoria da apocatástase, previa para as almas etapas de purificação, afirmara a existência de várias ressurreições futuras e formulara a hipótese de que o fogo purgatório se exerceria sobretudo entre a primeira e a segunda ressurreição (Comentário ao Salmo I, nl! 54)37. Nota-se assim, a partir de Agostinho, uma espécie de incompatibilidade entre o milenarismo e o Purgatório. A construção do Purgatório poderá mesmo aparecer como resposta da Igreja a surtos de milenarismo. Mas podemos perguntar-nos se um vestígio, mesmo que residual, do pensamento milenarista em Santo Agostinho não terá contribuído para a imprecisão das suas ideias sobre o fogo purgatório. Como vimos no texto do capítulo XXVI do livro XXI da Cidade de Deus, Agostinho, ao evocar o tempo do Anticristo, vê nele uma recrudescência da actividade do fogo purgatório. A sua concepção do Millenium já existente e das atribulações terrenas como início da prova purgatória contribuiu para o impedir de conceber um lugar especial para a provação do fogo purgatório. Julgo que Joseph Ntedika caracterizou muito bem a contribuição de
Agostinho para a doutrina do futuro Purgatório: «São sobretudo, escreveu ele, estas duas vertentes do pensamento agostiniano que a posteridade vai reter e desenvolver; quer dizer, a tendência para limitar a eficácia do fogo purificador aos pecados ligeiros, e também a transferência desse fogo para o período entre a morte e a ressurreição». São estas, com efeito, as duas principais contribuições de Agostinho. Por um lado, uma definição muito rigorosa do fogo purgatório num ponto de vista triplo. Aplicar-se-á a um pequeno número de pecadores, será muito penoso, será uma espécie de inferno temporário (Agostinho é um dos grandes responsáveis pela «infernização do Purgatório»); provocará sofrimentos superiores a qualquer dor terrena. Por outro lado, a definição do tempo do Purgatório: entre a morte individual e o julgamento geral. Mas Agostinho deixou na sombra dois elementos essenciais do sistema do Purgatório. Primeiro, a definição não só dos pecadores (nem inteiramente bons nem inteiramente maus) mas também dos pecados que conduzem ao Purgatório. Em Agostinho não existe doutrina dos pecados «veniais». Depois a caracterização do Purgatório como lugar. Vemos aqui uma das razões essenciais da recusa de Agostinho de ir tão longe. Ele define o tempo em oposição aos milenaristas e aos misericordiosos. Não define o lugar e conteúdo concreto porque para isso lhe seria necessário adoptar algumas das crenças «populares» - trazidas precisamente pela tradição apocalíptica e apócrifa que ele recusa. A este intelectual aristocrata, o «popular» que identifica com o «vulgar- e com o «materialista» causa horror. Quando os Padres conciliares de l.yon 11 (1274), de Florença (1438) e de Trento (1563) institucionalizaram o Purgatório, a sua tendência foi também para excluir dos dogmas c das verdades da fé - num clima visível de desconfiança, pelo menos no que toca aos de Trento - todo o imaginário do Purgatório. Agostinho, apesar das suas incertezas e das suas reticências, admitira o fogo purgatório: o que é também uma das suas contribuições importantes para a pré-história do Purgatório, pois esse fogo purgatório constitui, sob a autoridade de Santo Agostinho, a realidade pré-purgatório até ao fim do século XII, e continuará a ser um elemento essencial do novo lugar. Foi porque a desconfiança em relação às crenças e às imagens populares regrediu em certa medida entre 1150 e 1250 que o Purgatório pôde nascer como lugar. Negativa como positivamente, a posição de Agostinho é muito esclarecedora para toda esta história ". Sobre a doutrina, a teologia cristã começa a afirmar-se: existe a possibilidade de resgate, para certos pecadores, depois da morte. Para o tempo, a luta contra o milenarismo facilita a individualização de um espaço de tempo, cujos limites são a morte individual e o julgamento geral. Quanto à aplicação, a hierarquia eclesiástica é, no seu conjunto, prudente: não se deve alargar a via do além a ponto de se correr o risco de
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esvaziar o Inferno. Mas sobretudo ela sente-se inquieta a respeito da materialização desta situação. Procurar localizar com precisão esse Purgatório, definir muito concretamente as provações em que ele consiste é trilhar um caminho perigoso. É verdade que, visto que Paulo falou do fogo ou da passagem por qualquer coisa que se lhe assemelha (quasi per ignem ), se pode utilizar essa imagem, visto que o fogo pode ser mais ou menos imaterial e pode eventualmente reduzir-se a uma metáfora. Mas ceder mais àquela a que Malebranche chamará «a louca da casa» - a imaginação - seria correr o risco de ser presa do diabo e das suas ilusões, e vítima das imaginações pagãs, judaicas, heréticas e, em definitivo, «populares». E esta mistura de certeza e de desconfiança que Agostinho propõe e lega à Idade Média. Atribuía-se a Cesário de Arles (que morreu em 542) uma achega importante para a prê-história do Purgatório. Pierre Jay desfez esta má interpretação de dois sermões do bispo de Arles e ajustou com grande precisão as várias peças nos autos do Purgatório ".
Um falso pai do Purgatório: Cesário de Arles Cesário de Arles fala do foto purgatório (ignis purgatorius ) em dois sermões, os sermões 167 e 179. . Deste último, que é o mais importante, eis a tradução parcial de A. Michel no Dicionário de Teologia Católica (Dictionnaire de théologie catho/ique). É um comentário de S. Paulo, I Coríntios, m, 10-15: Aqueles que compreendem mal este texto deixam-se enganar por uma falsa segurança.Crêem que, se se construir sobre o alicercedo Cristo crimes capitais, essespecados poderão ser purificadospassando através do fogo (per ignem transitorium ) e assim alcançar-sea seguir a vida eterna. Corrigi, meus irmãos, esta maneira de entender:gabar-se de semelhantecoisa é enganar-se rotundamente. Nesse fogo de passagem (transitorio igne ), de que o Apóstolo disse: esse mesmo será salvo mas como através do fogo, não são os pecados capitais mas sim os pecados insignificantesque serão purificados... Se bem que essespecados, segundo a nossa crença, não matem a alma, desfiguram-na... e não fi deixam unir-se ao esposo celestesenão a troco de uma grande confusão... E por meio de precesconstantese de jejuns frequentesque conseguimosremi-los... e o que não foi remido por nós deveráser purificadonesse fogo de que o Apóstolo diz: (a obra de cada um) será revelada pelo fogo; assim ofogo porá à prova a obra de cada um. I Coríntios,III, 13... Por isso,enquanto vivermosneste mundo, mortifiquemo-nos... e essespecadosserão purificados nesta vida de modo que, na outra, essefogo do purgatório ou não encontre nada ou só encontre em nós pouca coisa para devorar. Mas se não dermos graças a Deus nas nossas afliçõese se não resgatarmosas nossas culpas com 106
boas obras, teremosde permanecerno fogodo purgatório tanto tempo quanto os nossos pecados insignificantesexigirem,para sermosconsumidos"Como madeira. feno ou palha. Que ninguém diga: Que me importa ficar no purgatório se em seguida alcanço a vida eterna! Ah! não faleis assim, irmãos carissimos, porque esse fogo do purgatório será mais penoso do que todas as dores que pudermos conceber,experimentare sentir neste mundo... Mas o texto latino original de Cesário diz outra coisa. Onde está traduzido fogo do Purgatório, o que está é ignis pur~atorius, fogo purgatório; e onde se diz «no Purgatório» não está nada 1. De facto, Cesário reproduz o que foi escrito antes dele pelos Pais da Igreja e sobretudo por Santo Agostinho. Em relação a este último está até atrasado, pois o fogo purgatório é para ele apenas o fogo do julgamento. Não se trata do intervalo entre a morte e a ressurreição. Como diz judiciosamente Pierre Jay: «Não sacrifiquemos, pois, em demasia à ideia de um progresso contínuo em teologia. Mas Cesário tem sempre o seu lugar na pré-história do Purgatório, porque os textos mal interpretados têm tanta importância em história como os outros. Ora os de Cesário retiveram tanto mais a atenção do clero da Idade Média quanto foram atribuídos a Santo Agostinho: autoridades agostinianas, as expressões do bispo de Arles atravessarão os séculos e poderão ser um dia exploradas de maneira sistemática por teólogos com preocupações completamente diferentes. Nelas se procurará respostas às questões do lugar e da duração do purgatório» (P. Jay). Para bem dizer, Cesárío trazia, em relação aos textos agostinianos autênticos, confirmações sobre dois pontos e sobre um deles uma precisão. No seu comentário ao Salmo XXXVII, Agostinho dissera que «o fogo purgatório será mais terrível do que tudo o que um homem possa sofrer nesta vida». Cesário, como vimos, repete esta opinião e contribuirá para dar aos homens da Idade Média uma imagem aterradora do fogo do Purgatório. Agostinho distinguira pecados muito graves a que chamava crimina e que levavam normalmente ao Inferno, e pecados ligeiros, insignificantes, com os quais não eram precisas grandes preocupações. Cesário retoma esta distinção e precisa-a. Chama aos primeiros crimina capitalia: estamos aqui na fonte dos pecados capitais, cuja doutrina Gregório, o Grande, vai consagrar. Em compensação, continua a chamar aos pecados ligeiros parva (pequenos), quotidiana (quotidianos), minuta (insignificantes), mas sublinha que são eles os que se expiam no fogo purgatório, precisão que não fora feita por Agostinho. Com Cesário, enfim, a atmosfera em que se fala da sorte dos defuntos e do além muda. O Julgamento Final era um dos temas favoritos das prédicas de Cesário, que dissertava de melhor vontade sobre o Inferno 107
E, no entanto, é nestas perspectivas escatológicas, movido por um zelo pastoral ardente num contexto terreno dramático, que um pontífice vai reanimar a chama purgatória. Depois de Clemente de Alexandria e de Orígenes, depois de Agostinho, o último «fundador» do Purgatório é Gregório, o Grande. Gregório pertence a uma grande família aristocrata romana. Antes e depois da sua «conversão», ao tomar o hábíto monástico no mosteiro
urbano - que cria sobre o Caelius numa da mansões familiares atribui-se altas funções. É, assim, prefeito da cidade, encarregado dos problemas de abastecimento numa Itália presa dos Bízantinos, dos Godos, dos Lombardos, da peste; e depois apocrisiário, quer dizer embaixador do Papa junto do imperador de Constantinopla. Em 590 é chamado ao trono de S. Pedro em circunstâncias dramáticas: o Tibre está numa das suas terríveis enchentes e inunda a cidade no meio de prodígios angustiantes; principalmente uma terrível epidemia de peste (um dos surtos mais intensos da grande pandemia, a primeira peste negra, chamada de Justiniano, que desde há um século devastava o Médio Oriente, o mundo bizantino, a Africa do Norte, e a Europa mediterrânica) dizimava a população. Como Cesário e, mais do que ele, dada a sua função, a sua personalidade e o momento histórico, Gregório vai ser um pastor escatológico. Persuadido da proximidade do fim do mundo, lança-se apaixonadamente num grande empreendimento de salvação do povo cristão do qual deverá dentro em breve prestar contas diante de Deus. Aos cristãos do interior multiplica as instruções salutares, comentando a Escritura, sobretudo os profetas, apoiando os frades com meditações sobre o Livro de Job, ensinando o clero secular por um Manual de pastoral, chamando os laicos a uma vida toda virada para a salvação pelo enquadramento litúrgico (é um grande organizador de procissões e de cerimónias) e pelos ensinamentos morais. Aos povos de fora, dá missionários: os Ingleses haviam regressado ao paganismo e ele envia para Canterbury uma missão que inicia a reconquista cristã da Grã-Bretanha. Aos italianos dá uma hagiografia e, entre os padres italianos, distingue um monge recentemente desaparecido, Benedito do Monte-Cassino, de quem faz um dos grandes santos da cristandade. Entre aqueles cristãos a salvar, porque não haveria mortos recuperáveis? A paixão escatológica de Gregório vai exercer-se para lá da sua morte42• A contribuição de Gregório, o Grande, para a doutrina do Purgatório é tripla. Nas Mora/ia in Job, dá alguns esclarecimentos sobre a geografia do além. Nos Dia/ogi, ao mesmo tempo que fornece algumas indicações doutrinárias, conta sobretudo pequenas histórias onde põe em cena os mortos, enquanto expiam os pecados, antes do Julgamento Final. Enfim, a história do rei godo Teodorico levado para o Inferno, se bem que não refira um lugar «purgatório», poderá ser mais tarde considerada uma peça antiga do processo da localização terrestre do Purgatório. Nas Mora/ia in Job (XII-13), Gregório comenta o versículo do Livro de Job, 14-13: Quis mihi tribuat ut in inferno protegas me? (Que a Bíblia de Jerusalém traduz por Oh! se tu me abrigasses no shéo/ pois é bem deste inferno judaico que se trata). Gregório tenta resolver o seguinte problema: antes da vinda do Cristo era normal que todos os homens caíssem no Inferno, pois era necessária a vinda do Cristo para reabrir o caminho do Paraíso,
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do que sobre a ressurreição e o Paraíso. Ele próprio confessa num sermão que os seus ouvintes o censuram por falar constantemente de temas assustadores (tam dura). Ainda mais do que em Agostinho, a sua preocupação é convencer os fiéis da realidade do fogo eterno, e da duração do fogo temporário. Está obcecado, escreveu-se, pela «imagem das suas ovelhas perante o juízo eterno». A sua preocupação é essencialmente pastoral. Pretende munir os fiéis de ideias simples, de receitas, de uma bagagem sumária. E assim que organiza listas de pecados «capitais» e «insignificantes», o que Agostinho não tinha feito. Tem-se explicado em larga medida esta atitude pela barbarízação da sociedade e da religião. Mas este fenómeno inegável que marca a entrada na Idade Média propriamente dita é mais complexo do que se tem pensado. Primeiro, não se deve atribuir apenas aos «bárbaros» a «responsabilidade» por esta descida do nível cultural e espiritual. O acesso à religião cristã das massas camponesas, dos «bárbaros» do interior, é um fenómeno pelo menos tão importante como o da instalação de invasores e imigrantes vindos do exterior do mundo romano. Uma faceta desta «barbarizaçãox é a democratização. Aqui as coisas complicam-se ainda mais. Os chefes da Igreja pregam uma religião igualitária, querem estar ao alcance das suas ovelhas, fazem um esforço na direcção do «pOVO)). Mas ~les são, em grande maioria, aristocratas urbanos imbuídos dos preconceitos da sua classe e estreitamente ligados aos seus interesses terrenos. O desprezo pelo rústico e o ódio ao paganismo, a sua incompreensão perante comportamentos culturais exóticos, rapidamente alcunhados de superstições, levam-nos a pregar uma religião de terror, que se volta mais facilmente para o Inferno do que para um processo de mitigação das penas. O fogo purgatório, discretamente aceso pelos Padres, em especial por Agostinho, vai manter-se latente durante muito tempo, sem encontrar, neste mundo de insegurança, lutas elementares iluminadas pelo fogo mais poderoso do julgamento (mais ou menos confundido com o clarão sinistro do fogo da geena) que o reacendam.
Histórias do Purgatório neste mundo: Gregório, o Grande, último pai do Purgatório
mas os justos não deviam cair naquela parte do Inferno onde se é torturado. Com efeito, existem no Inferno duas zonas, uma superior para o repouso do justo, outra inferior para os tormento do não justo. «Quem me conseguirá a graça de que me protejas no Inferno?» Que antes da vinda do Mediador entre Deus e o homem, todos os homens, por mais puras e seguras que fossem as suas vidas, tenham de descer às masmorras do Inferno, eis o que já não oferece dúvidas, visto que o homem que caiu por si próprio não poderia voltar ao repouso do Paraíso se não tivesse vindo aquele que, pelo mistério da sua encarnação, iria também abrir-nos o caminho do Paraíso. Eis porque, depois do pecado do primeiro homem, segundo as palavras da Escritura, uma espada fulgurante foi colocada à porta do Paraíso; mas também ficou dito que essa espada era rodopiante, porque viria o dia em que também ela podia ser afastada de nós. Porém, não queremos dizer com isto que as almas dos justos tenham descido aos infernos para ficarem retidas nos campos de suplício. Existe no Inferno um campo superior e há também um campo inferior, assim deve ser a nossa fé; o campo do alto está prometido ao repouso do justo e o de baixo aos tormentos do não justo. De lá vêm também estas palavras do salmista quando a graça de Deus surge na sua frente: «Tu arrancaste a minha alma ao Inferno inferior.» Assim, sabendo que antes da vinda do Mediador, desceria aos Infernos, o bem-aventurado Job espera encontrar lá a protecção do seu criador para se manter estranho ao campo dos suplícios, num lugar onde, no caminho do repouso, a vista dos suplícios lhe fosse poupada 43.
Um pouco mais adiante (Moralia in Job, XIII, 53) Gregório retoma e aprofunda o problema a propósito de um outro versículo do Livro de Job, 17-16: In profundissimum infernum descendent omnia mea: «Tudo o que é meu descera às profundezas do Inferno.» É certo que nos Infernos os justos ficavam retidos não nos campos dos suplícios mas no lugar superior do repouso: assim nos surge um grande problema sobre o sentido desta afirmação de Job: «Tudo o que é meu descerá às profundezas do Inferno.» Pois, se antes da vinda do Mediador entre Deus e os homens ele tinha de descer ao Inferno, é no entanto evidente que não teria de descer às profundezas do Inferno. Não será o caso de ele dar justamente à zona superior o nome de profundeza do Inferno? Pois, bem o sabemos, do ponto de vista das abóbadas do céu, a região da nossa atmosfera pode ser correctamente chamada um inferno. Daí que, quando os anjos apóstatas foram precipitados da morada celestial para esta atmosfera sombria, o apóstolo Pedro diga: «Ele não poupou os anjos que haviam pecado; levou-os acorrentados com as grilhetas do Inferno para os entregar ao Tártaro e os reservar para os suplícios do julgamento.» Se, pois, do ponto de vista do cimo do céu, essa atmosfera sombria é um inferno, também do ponto de vista dessa atmosfera, a terra, que é para o céu uma zona inferior, pode ser chamada um inferno profundo; mas 110
então, também do ponto do alto desta terra, a região do inferno que está por cima das outras moradas do inferno pode receber com propriedade o nome de profundezas do inferno, pois o que o ar é para o céu e a terra para o ar, esse lugar superior do inferno também o é para a terra'".
Homem do concreto, Gregório interessa-se pela geografia do além. O Inferno superior de que fala será o limbo dos Padres; mas no século XIII, quando o Purgatório já existe, ao procurar-se referências a ele os textos do Antigo Testamento falando de profundezas do Inferno serão interpretados à luz da exegese de Gregório, o Grande. No livro IV dos Diálogos, Gregório, o Grande, ensina algumas verdades fundamentais do cristianismo e, em especial, a eternidade da alma, a sorte no além, a eucaristia, com a ajuda de historietas - muitas vezes visões - a que chama exempla e que anunciam os exempla do século XIII que vulgarizarão a crença no Purgatório. A sorte de certos defuntos depois da morte é evocada com o auxílio de três histórias repartidas por dois capítulos. Estas histórias são respostas a duas questões doutrinárias, uma respeitante ao fogo purgatório e outra à eficácia dos sufrágios pelos mortos. O diácono Pedro, interlocutor e admirador de Gregório, pergunta-lhe: «Quero saber se devo acreditar que depois da morte existe um fogo purgatório'".» Gregório responde em primeiro lugar com uma exposição dogmática baseada em textos das Escrituras'", dos quais o mais imporlante é a passagem da primeira epístola de Paulo aos Corintios sobre a sorte dos diferentes materiais das obras humanas. As primeiras referências parecem provar que os homens se reencontrarão no Julgamento Final no estado em que estavam no momento da morte. Mas o texto de Paulo parece significar «que se deve acreditar que para certos pecados ligeiros haverá um fogo purgatório antes do julgamento». E Gregório dá exemplos desta categoria dos «pecados pequenos e mínimos»: a tagarelice constante, o riso excessivo, o apego aos bens particulares, todos pecados que, cometidos consciente ou inconscientemente pelos seus autores, embora ligeiros, pesam sobre eles depois da morte, se não foram expurgados nesta vida47• Quanto ao que Paulo quis dizer, é que se se construiu com ferro, com bronze ou com chumbo, quer dizer, se se cometeram «os pecados máximos e portanto mais duros», esses pecados não podem ser desfeitos pelo fogo; mas sê-lo-ão em compensação aqueles que são de madeira, ou de palha, quer dizer «os pecados mínimos e muito ligeiros». Mas esta destruição pelo fogo dos pecados pequenos só poderá ser obtida depois da morte se foi merecida, durante esta vida, por meio de boas acções. Gregório opta, pois, por uma concepção muito agostiniana, mas põe em evidência os pecados «ligeiros, pequenos, mínimos» que define, e situa 111
a acção do fogo nitidamente depois da morte, não incluindo nela as atribulações terrenas como Agostinho tinha tendência para fazer. A novidade vem sobretudo da ilustração pela anedota. «Quando eu era ainda muito jovem e no estado laico ouvi contar (uma história) por pessoas mais velhas e mais entendidas.» Pascase, diácono do tribunal apostólico, autor de uma bela obra sobre o Espírito Santo, foi um homem com uma vida santa que gostava de dar esmolas e tinha desprezo por si mesmo. Mas no cisma que opôs durante dez anos e mais a partir de 498, dois papas, Símaco e Lourenço, Pascase foi obstinadamente partidário do «falso» papa Lourenço: Quando Pascase morreu, um exorcista tocou a sua dalmática colocada sobre o caixão e ele imediatamente foi salvo. Bastante tempo depois da sua morte, Germano, bispo de Cápua provavelmente entre 515 e 541, foi tratar-se com as águas dumas termas nos Abruzos, próximo da actual Città San Angelo. Qual não foi a sua surpresa ao encontrar ali Pascase como empregado dos banhos. Perguntou-lhe o que fazia ali e Pascase respondeu: «A única razão por que fui mandado para este lugar de punição (in hoc poena/o loco) foi ter tomado o partido de Lourenço contra Símaco, mas peço-te que rogues ao Senhor por mim e saberás que foste atendido se ao voltares aqui já não me encontrares.» Germano fez ardentes preces e alguns dias depois voltou lá e não encontrou Pascase. Mas Gregório acrescenta que se Pascase foi expurgado do seu pecado depois da morte, foi porque só pecara por ignorância e porque as grandes esmolas que fizera enquanto vivia lhe mereceram o perdão. A segunda questão teórica que Pedro põe a Gregório diz respeito aos sufrágios pelos mortos: «PEDRO: Qual é a maneira de ajudar as almas dos mortos? GREGÓRIO: Se os pecados não são irremíveis depois da morte, a oferenda sagrada da hóstia salutar é geralmente de grande ajuda para as almas, mesmo depois da morte, e por vezes vêem-se almas de defuntos que as reclamam. Eis o que o bispo Felix me afirmou saber dum padre que morreu há dois anos, depois de uma vida santa. Habitava ele na diocese de Centum Cellae e ministrava a igreja de São João em Taurina. Este padre tinha o hábito de se lavar, sempre que o corpo lho exigia, naquele local onde abundantes vapores emanam das fontes quentes e era ajudado nisto com grande cuidado. Como tal se repetisse com frequência, o padre, ao voltar aos banhos, disse um dia para consigo: "Não devo parecer ingrato para com aquele homem que me ajuda a lavar com tanta dedicação; tenho de lhe dar um presente." E trouxe duas coroas de presente. Logo que chegou, encontrou o homem que lhe prestou todos os serviços, como era costume. O padre lavou-se e, já vestido e pronto para se ir embora, à guisa de bênção, ofereceu o que trouxera ao homem que o servia, pedin-
do-lhe que aceitasse o que lhe oferecia com afecto. Mas este respondeu ltistemente: "Pai, porque me dás isto? Este pão é santo e eu não posso comer dele. Tal como me vês, fui outrora o dono deste lugar, mas por Ccusa dos meus pecados fui mandado para aqui depois de morrer. Se quiseres ser-me útil, oferece este pão a Deus Todo-Poderoso, para interceder pelos meus pecados. Saberás que foste atendido quando já não me encontrares aqui." Com estas palavras desapareceu, revelando assim que eta na realidade um espírito sob aparência humana. Durante toda a semana o padre verteu lágrimas por aquele homem, todos os dias ofereceu a hóstia salutar; depois voltou aos banhos e já não o encontrou. Eis bem a prova da utilidade para as almas do sacrifício da oferenda sagrada» 48, pois os próprios espíritos dos mortos o pedem aos vivos e indicam com que sinais se reconhecerá que foram absolvidos. A esta história Gregório acrescenta logo outra. Aconteceu no seu próprio mosteiro três anos antes. Vivia lá um monge chamado Justo, especitalista em medicina. Justo caiu doente sem esperança de cura e foi a~sistido pelo seu irmão carnal Copioso, também ele médico. Justo cont~ssou ao irmão que escondera três moedas de ouro e este mais não pôde ti\zer do que informar os monges. Encontraram as moedas de ouro escondidas com os medicamentos. Contaram isto a Gregório que reagiu vivamente, pois a regra do moste:iro estipulava que os monges tivessem tudo em comum. Gregório, pcerturbado, perguntou-se o que poderia fazer de útil ao mesmo tempo plitra a «purgação» do moribundo e para edificação dos monges. Proibiu IICtlsmonges que respondessem aos apelos do moribundo se este os deesejasse junto de si e ordenou a Copioso que dissesse ao irmão que 0% monges, sabendo do seu acto, sentiam por ele repulsa, até que se IIl'rrependesse no momento de morrer. E quando o seu corpo estivesse mrorto não seria enterrado no cemitério dos monges mas lançado para urm buraco do lixo e os monges atirariam para sobre o seu corpo as três mioedas de ouro, gritando: «Que o teu dinheiro fique contigo, para tua ~rdição.» Tudo se passou e foi feito como previsto. Os monges, aterrados, evitll.ram todos os actos repreensíveis. Trinta dias depois da morte de Justo, o,regório pôs-se a pensar com tristeza nos suplícios que devia estar a l'ÜI)frero monge defunto e ordenou que, durante os trinta dias seguintes, fOlsse celebrada diariamente uma missa em sua intenção. Ao fim de trinta dil.as, o morto apareceu ao irmão, de noite, e disse-lhe que até àquele dia tirnha sofrido, mas que acabava de ser admitido à comunhão (dos eleitos). F
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ticos, prestados por testemunhas dignas de crédito; a necessidade de ter indicações sobre a localização das penas purgatórias. Sobre o primeiro ponto as histórias de Gregório são tanto mais importantes quanto virão a ser o modelo das histórias com cuja ajuda a Igreja difundirá, no século XIII, a crença no Purgatório finalmente criado em definitivo. Implicam elas a possibilidade de controlo da verdade da história: a designação de um informador digno de crédito, as precisões de tempo e lugar. Comportam também um esquema susceptível de levar a crença para dois outros planos: os atractivos de um relato com as seduções da narração, uma intriga, pormenores picantes, um «suspense», um desenlace surpreendente; as evidências de um sobrenatural palpável: visionamento e verificação da realização da acção eficaz dos vivos. Tudo isto se encontrará na crença do verdadeiro Purgatório, incluindo a natureza dos laços entre vivos e mortos que funciona na subtracção dos defuntos às provações purgatórias. Os vivos solicitados e eficazes devem ser parentes, por parentesco carnal ou espiritual, dos defuntos a expurgar. Enfim, a trilogia dos sufrágios é afirmada nestas anedotas: preces, esmolas e, acima de todos, o sacrificio eucarístico. A segunda originalidade de Gregório é, em duas das suas três histórias, ter situado cá em baixo o local de expiação. Lugar espantoso, na verdade. Trata-se de termas. Por um golpe de génio, Gregório designa um lugar particularmente digno da sua escolha: este aristocrata romano escolheu um dos edificios mais essenciais à civilização romana sobrevivente, o lugar por excelência da higiene e da sociabilidade antigas. Este pontífice cristão escolhe a seguir um lugar onde a alternância dos cuidados quentes e dos cuidados frios corresponde à estrutura dos lugares purgatórios desde as mais antigas religiões de que o cristianismo herdou; enfim, nesta mistura de sobrenatural e de quotidiano onde os empregados dos banhos são espectros e os vapores termais eflúvios do além, um grande temperamento imaginativo se revela. Paradoxalmente, a contribuição mais importante de Gregório para a génese do Purgatório será, no século XIII, a mais sacrificada pela nova crença. Gregório perfilhou a ideia de que o Purgatório podia ser sofrido cá nesta terra, em locais onde se tinham cometido pecados e que se tornavam locais de punição: era-se punido lá onde se havia pecado, como o director das termas surgido em espectro no local não dos seus crimes, mas dos seus pecadilhos, transformado em «lugar penal» (in hoc loco poenali). A autoridade de Gregório fará com que a ideia de um Purgatório na terra seja ainda evocada após o nascimento do «verdadeiro» Purgatório, mas como uma hipótese pouco verosímil, como uma espécie de curiosidade do passado. Tomás de Aquino ou Jacopo da Varazze na Lenda dourada ainda a mencionam. Mas no século XIII os dados do Purgatório estão lançados e não têm por palco os lugares quotidianos da terra mas um
espaço especial, uma região do além. Quanto aos mortos do Purgatório, já não Ihes será permitido virem solicitar os vivos mesmo que por alguns instantes. Ter uma actividade cá em baixo ser-lhes-á severamente recusado. O Purgatório ter-se-á transformado num lugar de detenção dos espectros. Último fundador do Purgatório, Gregório, no entanto, apenas consagra a essa crença um interesse muito secundário. O essencial, para ele, continua a ser o facto de no dia do Julgamento só existirem duas categorias: os eleitos e os condenados. Cada categoria abordará de duas maneiras possíveis a sua sorte eterna, directa ou indirectamente após o Julgamento, no momento da ressurreição. «Uns são julgados e perecem, os outros não são julgados mas perecem (também imediatamente). Uns são julgados e reinam, os outros não são julgados mas reinam (tamhém imediatamente).» Num grande capítulo, o XXXVII do livro IV dos Diálogos, Gregório, o Grande, faz uma descrição já não do Purgatório terreno mas do além. Um certo Estêvão morre inopinadamente em Constantinopla e, à espera de ser embalsamado, o seu corpo fica sem sepultura durante uma noite e a Nua alma será levada para os Infernos onde visita numerosos lugares; mas, quando a apresentam a Satanás, este diz que se enganaram no morto. E um outro Estêvão, o ferreiro, que ele espera, e o primeiro Estêvão volta à vida enquanto o ferreiro morre. Estêvão morreu durante a epidemia de peste, em 590. Um soldado ferido que esteve morto durante um instante e depois se reanimou visita, por seu lado, os Infernos durante esse breve instante e faz deles uma descrição pormenorizada que foi transmitida a Gregório. Viu «uma ponte por baixo da qual corria um rio negro c sombrio que exalava vapores com um cheiro insuportável»; depois de se utravessar a ponte encontravam-se prados encantadores, flores e homens vestidos de branco deambulando por entre odores suaves, casas cheias de luz, algumas de ouro. Nas margens do rio havia alguns habitáculos, uns envoltos numa nuvem fétida, outros ao abrigo do mau cheiro. A ponte era uma provação: se um não justo queria atravessá-Ia, caía no rio tenebroso e fétido, mas os justos passavam-se sem entraves e alcançavam aqueles lugares amenos. Estêvão também falara desta ponte e contara que, quando quisera atravessá-Ia, escorregou-lhe um pé e ele ficou caído por metade. Horríveis homens negros que saíram do rio puxavam-no para baixo pelas coxas, enquanto de cima homens brancos muito belos o puxavam pelos braços. Durante esta luta, acordou. Compreendeu o sentido da sua visão, pois de um lado sucumbia às tentações da carne, mas do outro dava grandes esmolas; a lascívia atraía-o para baixo, a caridade para cima. Depois ele corrigiu perfeitamente a sua vida. Ultima peça do processo (ou quase, como veremos ... ), Gregório, no capitulo XXXI do livro IV dos Diálogos, conta uma história que tem a 11
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ver com o Inferno mas que mais tarde desempenhará um papel na história do Purgatório. Conta-nos ele o que lhe foi relatado por um certo Julião, benévolo «defensor» da Igreja Romana que morreu sete anos antes. Na época do rei Teodorico (que morreu em 526), um parente de Julião que tinha ido à Sicília recolher os impostos, naufragou no regresso junto da ilha Lipari e foi recomendar-se às preces de um eremita famoso que lá vivia. Este disse ao náufrago: «Sabeis que o rei Teodorico morreu?» e, perante a incredulidade do outro, acrescentou: «Ontem, às três horas da tarde, em camisa e descalço, com as mãos atadas e entre o Papa João e o patrício Símaco, ele foi levado para a vizinha ilha de Vulcano e foi lançado na boca da sua cratera.» De volta a Itália, o parente de Julião soube da morte de Teodorico e, como ele tinha injustamente condenado à morte o Papa João e o patrício Símaco, pareceu-lhe normal que tivesse sido enviado para o fogo (eterno) por aqueles que perseguira. O castigo lendário de Teodorico é uma das peças a incluir no processo da utilização política do além. Ameaçar com as penas do além um dirigente laico tem sido um instrumento poderoso nas mãos da Igreja. Mostrar no fogo do castigo um morto ilustre confere a essa ameaça um valor de prova e um relevo incomparável. O imaginário do além foi uma arma política. Mas Gregório, o Grande, só ainda dispõe do Inferno. Recorrer a esta arma suprema só pode fazer-se em casos extremos. O Purgatório permitirá modular a ameaça. Outro sinal precursor nesta visão: aquela entrega do rei perseguidor de cristãos ao fogo do Inferno faz-se num vulcão e na Sicília. A Idade Média lembrar-se-á desta boca de fogo em que procurará ver uma das bocas do Purgatório.
NOTAS
I Sobre Clemente de Alexandria e Origenes na perspectiva da génese do Purgatório, o estudo essencial continua a ser G. ANRICH, «Clemens und Origines ais Begründer der Lehre vom Fegfeuer» in Theologische Abhandlungen, Festgabe für H. H. Holtzmann, Tübingen, Leipzig, 1902, pp. 95-120. Boa exposição, de um ponto de vista católico, por A. MICHEL «Origêne et le dogme du Purgatoire» in Questions rcclésiastiques, Lille, 1913, resumido pelo autor no seu artigo «Purgatoire» do Dictlonnaire de Théologie catholique, col. 1192-1196. Observações breves mas judiciosas, do ponto de vista da pré-história do Purgatório, mas de A. PIOLANTI, «Il Dogma dei Purgatório» in Euntes Docete, 6, 1953; do ponto de vista do baptismo pelo fogo, de c.M. EDSMAN, Le Baptême de feu, pp.3-4; do ponto de vista da exegese da primeira epístola de Paulo aos Corintios, in J. GNILKA, 1st 1 Kor. 3, 10-15, ein Schrlftzeugnis fur das Fegfeuer? especialmente p. 115. 2 Os principais textos citados por G. ANRICH, p. 99, n. 7 e p. 100, n. 1, são (tI/tas 34, 478 e 81, 525, Phédon, 62, l13d, Protagoras, 13, 324b, Lois, V, 728c. CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, V, 14 e VII, 12. 4 ORÍGENES, De principiis, lI, 10, 6 e De oratione, 29. 5 aliis sub gurgite vasto infectum eluitur scelus, aut exuritur igni
donec longa dies perfecto temporis orbe concretam exemit labem, purumque relinquit aetherium sensum ... 6 CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Stromata, IV, 24. 7 Id., Stromata, VII, 6. 8 ORÍGENES, In Exodum, homilia 6, in Patrologie Grecque, XIII, 334-335; In l eviticum, homilia 9, PG, 12,519. Y Por exemplo, In Jeremiam, homilia 2; In Leviticum, homilia 8; In Exodum, homilia 6; In Lucam, homilia 14, ete. 10 De principiis, lI, n. 6; In Ezechielem, homilia 13, n. 2; In Numeros, homilia 26. 11 Cf. K. RAHNER, «La doctrine d'Origêne sur Ia pénitence» in Recherches de ."dence religieuse, 37, 1950. 12 «Aliud pro peccatis longo dolore cruciatum emundari et purgari diu igne, aliud ",ccala omnia passione purgase, aliud denique pendere in die judicii ad sententiam Dom/n/, aliud statim a Domino coronari.»
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animae il/o die dignatus est polliceri. Quae si ita sunt, genera/e paradisi nomen est, ubi [cliciter vivitur. Negue enim quia paradisus est appelatus, ubi Adam fuit ante peccatum, propterea scriptura prohilita est etiam ecc/esiam vocare paradisum cum fructu pomorum.» 34 Palavra grega que significa «manual», termo que, a partir do século XVI, terá a voga que se conhece. 35 Esbocei as linhas de uma pesquisa sobre os sonhos e sua interpretação no ocidente medieval em «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie collective de I'Occident médiêval» in Scolies, 1,1971, pp. 123-130, retomadas em Pour un autre Moyen Âge, pp.
A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Diclionnaire de théologie catholique, col. 1214. P. JA Y, «Saint Cyprien et Ia doctrine du Purgatoire» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 27, 1960, pp. 133-6. 15 «emundatio puritatis ... qua iudicii igni nos decoquat» (PL, IX, 519 A). 16 In In Psalmum CXVIII, sermo 20, PL, 15, 1487-1488. Ver também sobre a prova do fogo In Psalmum CXVIII, sermo 3, PL, 15, 1227-1228 e In Psalmum XXVI, 26, PL, 14, 980-981. 17 «et si salvos faciet Dominus servos suos, salvi erimus per fidem, sic tamen salvi quasi per ignum» (Explanatio -Psalmi XXXVI, n. 26, Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, 64, p. 92). 18 De obitu Theodosi, 25, CSEL. 73, 383-384. 19 De excessu Satyri, I, 29, CSEL. 73, 225. 20 «Et sicut diaboli et omnium negatorum atque temptorum qui dixerunt in corde suo: Non est Deus, credimus aeterna tormenta; sic peccatorum el tamen christianorum, quorum opera in igne probanda sunt atque purganda, moderatam arbitramur et mixtam c1ementiae sententiam sudicis» (In Isaiam, LXVI, 24, PL, L4, 704 B). 21 «Qui enim tota mente in Christo confidit, etiam si ut homo lapsus mortuusfuerit in peccato, fide sua vivit in perpetuum.» 22 «Ideo autem dixit: sic tamen quasi per ignem, ut salus haec non sine poena sit; quia non dixit: sa/vus erit per ignem; sed cum dicit: sic tamen quasi per ignem, ostendit salvum illum quidem futurum, sed poenas ignis passurum; ut per ignem purgatus fiat salvus, et non sicut perfidi aeterno igne in perpetuum torqueati ut ex aliqua parte operae pretium sit, credidisse in Christum» (PL, 17,211). 23 «Transivimus per ignem et aquam et induxisti nos in refrigerium.» 24 Epist., 28 (CSEL, 29, 242-244) e Carmen, 7, 32-43 (CSEL, 30, 19-20). 25 Encontra-se também ignis purgationis, o fogo da purgação (De Genesi contra Manicheos, Il, XX, 30) e ignis emendatorius fogo corrector (Enarrationes in Psa/mos XXXVII, 3). Na passagem da Cidade de Deus, XXI, XIII, onde se encontra por três veres em doze linhas a expressão poenae purgatoriae, Agostinho emprega também como sinónimo a expressão poenae expiatoriae, penas expurgatórias, o que, entre outras razões, leva a que não se traduza purgatoriae por purificadoras. 26 Ver Bibliothéque augustinienne, t. 37, pp. 817-818. 27 «nec usque adeo vista in corpore male gesta est, ut tali misericordia iudicentur digni non esse, nec usque adeo bene, ut talem misericordiam reperiantur necessariam non ha"bere.» 28 Mateus, XXV, 34; XXV, 41-46. 29 «et post hanc vitam habebit ve/ ignem purgationis vel poenam aeternam.» 30 «Quanquam ilIa receptio, utrum statim post istam vitam fiat, an in fine saeculi in ressurrectione mortuorum atque ultima retributtone judicii, non mínima quaestio est sed quandolibet fiat, certe de talibus qualis ille dives insinuatur, nulla scriptura fieri pollicetur.» 31 «Ira plane quamuis salui per ignem, gravior tamen erit iIIe ignis, quam quidquid potest homo pati in hac vita» (Enarratio in Ps. XXXVII, 3 CCL, 38, p. 384). 32 Ver a nota 45 «Les misêricordieux» de G. Bardy em Bibliothéque augustinienne, vol. 37, pp. 806-809. 33 «Porro si utraque regia et dolentium et requiscentium, id est et ubi dives ilIe torquebatur et ubi pauper ilIe laetabatur, in inferno esse credenda est, quis audeat dicere dominum Iesum ad poenales inferni partes venisse tantum modo nec fuisse apud eos qui in Abrahae sinum requiescunt? ubi si fuit, ipse est intellegendus paradisus, quem /atronis
36 S b . o re o rm'1enansmo ver a nota de G. BARDY em Santo Agostinho, a Cidade de Deus, XIX-XXII, Bibliothêque augustintenne. t. 37, Paris, 1960, pp. 768-771 e J. Le artigo «Milena~i~mo» in Encyclopaedia Universalis, vol. n, 1971, pp. 30-32. . O texto de Ambrósio encontra-se em Patrologie latine, t. 14, col. 950-951. Et ideo quoniam et Savaltor duo genera resurrectionis posuit, et Joannes in Apoca/ypsi dixit: lIeatus qui habet partem in prima resurrectione (Apocalypse, XX, 6) isti enim sine judicia veniunt ad gratiam, qui autem non veniunt ad primam resurrectionem, sed ad secundam reservantur, isti urentur, donec impleant tempora inter primam et secundam rrsurrectionem, aut si non impleverint , diutius in supplicio permanebunt. Ideo ergo rogemus ut in prima resurrectione partem habere mereamur. 38 As traduções das Confissões, do Enchiridion, da Cidade de Deus e do De cura /l1'rendapro mortuis são tiradas dos respectivos volumes da Bibliothéque augustinienne. l.imitei-me a corrigir alguns termos que me pareceram mal traduzidos: por exemplo, purgatário em vez de purificador na expressão ignis purgatorius; e temporárias em vez de temporais na expressão poenae temporariae. W P. JAY, «Le Purgatoire dans Ia prédication de saint Césaire d'Arles» in Recherrhes40de théologie ancienne et médiévale " 24 (1957) ,. pp 5-14 . • CESARIO DE ARLES, Sermones, ed. G. Morin e C. Lambot, Corpus Christianorum, Turnhout, 1953, t. 104, pp. 682-687 e 723-729. 41 «non pertinet ad me quamdiu moras habeam, si tamen ad vitam aeternam perrevrro»: «pouco me importa o tempo que esperarei se depois alcançar a vida eterna.» O texto não diz onde se esperará mas é evidente, segundo a frase precedente, que se trata do fogo purgatório (in i/Io purgatorio igne). Pierre Jay faz notar judiciosamente que Tomás de Aquino, retomando também ele o comentário ao salmo 37 de Santo Agostinho, escreve iIIe ignis purgatorii, este fogo do purgatório. Mas está-se no século XIII! 42 Sobre Gregório, o Grande, C. DAGENS, Saint Grégoire /e Grand. Cu/ture et rxpérience chrétiennes, Paris, 1977, 3" parte, «Eschatologie», pp. 345-429. Sobre a escatologia de Gregório ver também N. HILL, Die Eschatologie Gregors des GrosI/'n, Fribourg-en-Brisgau, 1942. R. MANSELLI, «L'eschatologia di S. Gregorio Magno» in Ricerche di storia religiosa, I, 1954, pp. 72-83. 43 GREGóRIO, O GRANDE, Moralia in Job, ed. A. Bocognano, 3" parte, Paris, Sources chrétiennes, 1974, p.167. 44 Ibid., pp. 315-317. 45 «Discere vellim, si post mortem purgatorius ignis esse credendus est» Neste estudo servi-me da edição de U. Moricca. GREGÓRIO, O GRANDE, Dia/ogi. Roma, 1924, r Iraduzi os textos citados. Depois apareceu o tomo 111 da excelente edição e tradução de A. de Vogüé, P. Autin, Paris, ed. du Cerf, Sources chrétiennes, 1980. A passagem IIqlll comentada (IV, 41) encontra-se nas páginas 146 a 151. A história de Paschase (IV, 42) encontra-se ibid., nas páginas 150 a 155.
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J.1J9-306.
(iOft,
46 João, XII, 55; Isaías, XLIX, 8; Paulo, 11 Coríntios Salmo CXVII, 1; Mateus, XII, 32.
VI, 2; Eclesiastes, IX, 10;
«sed tamen de quibusdam levis culpis esse ante judicium purgatorius ignis credenbus est», «hoc de parvis minimisque peccatis fieri posse credendum est, sicut est assiduus otiosus sermo, immoderatus risu, vel peccatum curae rei familiaris,» No fim do capítulo Gregório fala do fogo da futura purgação «de igne futurae purgationis», da possibilidade de se ser salvo pelo fogo «per ignem posse salvari» e de novo dos «peccata minima atque levissima quae ignis facile consumat» (Dialogt, IV, 41). 48 GREGÓRIO, GRANDE, Dialogi, IV, 57, 1-7, de Vogüé-Antin, t. III, p. 184-
III - A ALTA IDADE MÉDIA. ESTAGNAÇÃO DOUTRINÁRIA
E EMPOLAMENTO
VISIONÁRIO
47
-189.
° °
49 GREGÓRIO, GRANDE, Dialogi, IV, 57, 8, 17, de Vogüé-Antin, -195. Nesta história o fogo não é mencionado.
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Entre Gregório, o Grande, e o século XII - ou seja, durante cinco séculos - o projecto do Purgatório não avança nada. Mas o fogo lá continua e se, no plano teórico, não existe qualquer novidade teológica, no quadro das visões e das viagens imaginárias no além, no domínio litúrgico, esboça-se um espaço para o fogo purgatório e as relações entre os vivos e os mortos tornam-se mais estreitas. Porquê, então, interessarmo-nos por esta época onde não se passa grande coisa em relação às concepções do além? Não é para sacrificar à tradição da exposição cronológica. Pelo contrário, desejaria mostrar aqui que o tempo da história não é nem uniformemente acelerado nem programado. Estes cinco séculos são, no nosso domínio, um longo período de aparente estagnação da reflexão sobre o nlém. Daqui podem resultar para o leitor dois mal-entendidos. O primeiro poderia surgir da aparente desordem dos textos citados. Evocarei também alguns grandes nomes do pensamento cristão de então Alcuíno, João Escoto, Raban Maur, Rathier de Verona, Lanfranco -que não disseram grande coisa sobre o nosso tema mas cujo laconismo é significativo; e textos de segunda ou terceira ordem que, esses sim, evidenciarão melhor o que continua a viver e que, por vezes, até se anima e agita um pouco. Uns e outros testemunham à sua maneira o estado do pensamento do além. O leitor poderá assim ter a impressão de que sacrifico a um defeito que denuncio: reter, deste conjunto heterogéneo de textos, apenas o que parece prefigurar o Purgatório, como se a sua génese estivesse irrevoga velmente em actividade debaixo dessa aparência de imobilismo. Não é porque não julguei dever deter-me nesses textos, salvo qualquer excepção sem grande importância; é porque era preciso fazer notar aquilo que evocava o futuro Purgatório - fosse para lhe voltar as coisas fosse para o anunciar -: que os «além» deste período seriam somente os precursores J20
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do Purgatório. Quando um texto espantoso como a visão de Wetti faz surgir um outro mundo cheio de furor e de ruído mas onde o futuro Purgatório não se anuncia, não deixei de o relatar com alguns pormenores pois se trata, antes de mais, de ver como funcionava o imaginário do além na Alta Idade Média. E, para servir o meu propósito, este grande episódio não tem apenas virtudes negativas. Nele se pode seguir a constituição de um material imaginário, vê-lo enriquecer-se ou decantar-se. Mesmo num texto de algumas linhas como a visão de Sunniulf em Gregório de Tours, vemos incrustar-se na memória a imagem da imersão dos mortos postos à prova até diversas alturas do corpo, a da ponte estreita. Em compensação surge uma imagem que não terá êxito: a de um além-colmeia - onde as almas dos mortos rodopiam e comprimem-se como abelhas. Também nele se nota a promessa da constituição de um sistema entre as unidades imaginárias. Segundo Bede, Fursy traz da sua viagem ao além marcas fisicas que serão mais tarde a prova da existência de um Purgatório de onde é possível voltar - crença que presidiu à reunião, no fim do século XIX, dos objectos que ainda hoje podem ser vistos no Museo dei Purgatorio em Roma. Também segundo Bede, na visão de Drythelm os elementos da geografia do além organizam-se num itinerário, uma sequência de lugares logicamente orientada, uma passagem construída. Enfim, as pré-definições teológicas ou morais aparecem aqui e ali, por exemplo no que diz respeito à tipologia dos pecados. Sobretudo, desenvolve-se de maneira quase ininterrupta uma série, alimentada por reminiscências apocalípticas, mas marcada pelo selo monástico, destinada a um novo auditório com mais apetência por pitoresco do que por esclarecimentos, por visões e por viagens ao além. É no meio destas paisagens que se imprimem na memória dos clérigos e dos fiéis, que o Purgatório terá de criar o seu lugar. O período carolíngio, no sentido lato, é também o momento de uma grande renovação litúrgica. Será que a liturgia dos mortos sofre, durante ele, transformações ligadas a novas concepções do além e da sorte dos defuntos?
Nas obras exegéticas e dogmáticas onde as alusões ao futuro Purgatório surgem quer a propósito dos últimos tempos e do fogo purgatório quer a propósito dos sufrágios pelos mortos, apontarei primeiro três bispos espanhóis dos séculos VI-VII: Tajon de Saragoça, o célebre Isidoro de Sevilha, um dos pais da cultura medieval, e Julião de Toledo.
No capítulo XXI do livro V das suas Sententiae (PL, 80, 975), Tajon de Saragoça ao comentar o texto de Paulo da primeira epístola aos Coríntios retoma em algumas linhas, sem os referir, os ensinamentos de Agostinho e de Gregório, o Grande: «Se bem que se possa compreender o que escreveu o grande pregador ao referir-se ao fogo das atribulações nesta vida, é no entanto possível aplicá-lo ao fogo da futura expurgação, reflectindo bem no facto de ele ter dito que se podia ser salvo pelo fogo, não se sobre este alicerce se construiu com ferro, com bronze e com chumbo, quer dizer com pecados máximos (peccata majora), mas sim com madeiras, com feno ou com palha, quer dizer com pecados mínimos (mínima) e muito leves (Ievissima) que o fogo consome facilmente. Mas é preciso que se saiba que, mesmo para os pecados mínimos, não se obterá a expurgação se ela não foi merecida nesta vida por meio de boas acções.» Isidoro de Sevilha abordou o problema sobretudo no tratado Dos oficios eclesiásticos (De ecclesiasticis officiis ) a propósito dos sufrágios. Citando o versículo de Mateus sobre a remissão dos pecados no século futuro (Mateus, XII, 32) e o texto de Santo Agostinho sobre os quatro destinos dos homens (Cidade de Deus, XXI, 24) afirma que, para alguns, os respectivos pecados ser-lhes-ão remidos e «purgados por um fogo purgatório» 1• Julião de Toledo é o mais interessante destes três prelados para o nosso objectivo. Primeiro, é um verdadeiro teólogo; depois, o seu Prognosticon é um autêntico e pormenorizado tratado de escatologia. Todo o segundo livro é consagrado ao estado das almas dos defuntos antes da ressurreição dos corpos. Todavia, o seu pensamento não é de lodo inovador. Baseia-se essencialmente em Agostinho. Distingue dois paraísos e dois infernos. Os dois paraísos são o terrestre e o celeste e este último, tal como pensaram Ambrósio, Agostinho e Gregório, é a mesma coisa que o seio de Abraão. Há também dois infernos, como ensinou Santo Agostinho, mas este hesitou na sua doutrina (Julião revela o seu sentído crítíco e histórico). Primeiro pensou que havia um inferno sobre a terra e um interno debaixo da terra e depois, ao comentar a história do pobre Lázaro e do mau rico, apercebeu-se de que os dois infernos eram debaixo da terra, um por cima do outro. «Portanto, conclui Julião, há talvez dois infernos; num repousam as almas dos santos, no outro são torturadas as almas dos impios.» Depois, sempre com a ajuda de Santo Agostinho, explica mesmo por razões filológicas porque se supõe que os infernos são subterrâneos. Expõe depois diversas opiniões sobre a questão de saber se, depois da morte, as almas dos santos (justos perfeitos) vão directamente para o céu ou se ficam em certos «receptáculos». Desde a descida do Cristo aos Infernos, estes foram fechados e os justos vão imediatamente para o
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o além agostiniano
de três espanhóis
Pensou-se durante muito tempo que o autor do Livro sobre a ordem das criaturas (Liber de ordine creaturarum) era Isidoro de Sevilha. Manuel Diaz y Diaz mostrou recentemente que se trata de um anónimo irlandês do século VII. É um tratado que se baseia no Génesis e que fala
de Deus, das criaturas espirituais e das criaturas corporais. Os quatro últimos capítulos são dedicados à natureza dos homens (cap. XII), à diversidade dos pecadores e lugar das penas (cap. XIII), ao fogo purgatório (cap. XIV) e à vida futura (cap. XV). Pode parecer que o autor do tratado tem uma perspectiva tripla do além: inferno, «purgatório», paraíso. Mas esta divisão não existe senão em certos manuscritos, e na continuidade do texto a divisão não é tão marcada '. Sobretudo, a concepção arcaica do autor do tratado exclui praticamente a ideia de um além triplo. Desde o começo do capítulo sobre as diferenças das condições dos pecadores, ele expõe as suas ideias. Há duas grandes categorias de pecadores; aqueles cujos pecados (crimina) podem ser expurgados pelo fogo do julgamento e aqueles que serão atingidos pela pena do fogo eterno. Entre estes últimos alguns serão condenados imediatamente e sem julgamento, outros após o julgamento. O fogo é pois o do julgamento, não tem lugar antes do julgamento. Esta opinião é confirmada no capítulo XIV. Aqueles que terão o «refrigério eterno» (refrigerium aeternum) depois da expurgação são os que tiverem realizado aquilo a que se chamará mais tarde obras de misericórdia. Serão baptizados pelo fogo, enquanto os outros serão consumidos pelo fogo inextinguível. A exegese da primeira epístola de Paulo aos Coríntios leva o autor do Liber a indicar o género de pecados que apenas menciona negativamente «os que não são muito prejudiciais, ainda que não construam grande coisa»: «o uso inútil do casamento legítimo, o excesso de comida, o prazer exagerado com futilidades, a cólera levada aos excessos de linguagem, o interesse exagerado pelas coisas pessoais, a assistência negligente às orações, o levantar tarde, 115 gargalhadas exageradas, o excessivo abandono ao sono, a retenção da verdade, a tagarelice, a obstinação no erro, tomar o falso por verdadeiro em coisas que não dizem respeito à fé, esquecer o dever a cumprir, ter as roupas em desordemx", pecados de que não se pode negar a possibilidade de serem expurgados pelo fogo. Última observação: este fogo purgatório mais duradouro e terrível do que qualquer tormento imaginável cá deste mundo. No começo do século VII o irlandês S. Columbano (que morreu em 615), missionário do monaquismo no continente, compusera uma descrição resumida da existência humana desde o nascimento até à eternidade onde atribuía um lugar ao fogo mas um fogo que, sem ser mencionado, era um fogo se não purgatório pelo menos probatório pois situava-se antes do julgamento, parece que entre a ressurreição e o julgamento. «Eis o desenrolar desta miserável vida humana: da terra, sobre a terra, para a terra, da te rra para o fogo, do fogo para o julgamento, do julgamento ou para a geena ou para a vida (eterna); com efeito, foste criado a partir da terra, pisas a terra, irás para a terra, erguer-te-ás da terra, serás
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céu. Da mesma maneira as almas dos iníquos vão logo para o Inferno, e do Inferno não se sai nunca. Indo mais longe, precisa que, depois da morte do corpo, a alma não fica privada de sentidos e, ainda com a ajuda de Santo Agostinho (De Genesi ad litteram, XII, 33), Julião afirma que a alma tem uma «imitação de corpo» (similitudo corpo ris) que lhe permite sentir o repotls~ ou os tormentos. Assim, a alma pode ser torturada pelo fogo corporal. E o que se passa no Inferno, mas nem todos os condenados sofrem da mesma maneira: o seu tormento é proporcional à gravidade do pecado, assim como nesta terra os vivos sofrem mais ou menos com o ardor do sol. Enfim, deve-se acreditar, como ensinaram Paulo, Agostinho e Gregório, que existe um fogo purgatório depois da morte. Retomando as palavras de Gregório, o Grande, Julião explica que esse fogo expurga os pecados pequenos e mínimos como a tagarelice constante, o riso excessivo, o apego imoderado aos bens pessoais. Este fogo é mais terrível do que qualquer dor terrena e não se pode beneficiar dele a não ser que tenha sido merecedor por meio de boas acções. Este fogo expurgatório é diferente do fogo eterno da geena e actua antes do Julgamento Final e não depois - e Agostinho pensa mesmo que ele começa com as atribulações terrenas. Tal como os condenados são torturados proporcionalmente à gravidade dos seus pecados, também os expurgados apenas se demoram no fogo o tempo correspondente à importância da sua imperfeição. A escala de equivalência exprime-se aqui não em intensidade mas em duração de pena «segundo eles tenham amado mais ou menos os bens perecíveis, serão salvos com maior ou menor rapidez». Na base dos textos das Escrituras - sobretudo o Novo Testamento - e patrísticos, é a exposição mais clara e mais completa da Alta Idade Média sobre o futuro Purgatôrio/.
Outros «além» «bárbaros» Testemunhos vindos das diversas regiões cristãs «bárbaras» e provenientes tanto da hierarquia episcopal como do mundo monástico manifestam o interesse das novas cristandades pelo além sem nada lhe acrescentarem de original.
Na Irlanda
e
posto à prova no fogo, esperarás o julgamento e em seguida terás ou o suplício eterno ou o reino etemo.» E fala ainda de nós, os homens, que, «criados da terra, passando brevemente por ela, reentrando nela quase imediatamente, e depois uma segunda vez, a uma ordem de Deus, entregues e projectados por ela, seremos, no fim dos tempos, postos à prova através do fogo que de certa maneira dissolverá a terra e a sujidade; e, se houver ouro ou prata ou outro material terrestre útil, depois da moeda falsa ter sido fundida ele o mostrará".»
do. cada um segundo os seus méritos será ou condenado ou coroado. É pois nesse dia, caríssimos irmãos, que devemos pensar intensamente" ...»
Texto notável pela divisão que faz da humanidade em três categorias não em quatro, na tradição agostiniana. Mas o texto retém principalmente a nossa atenção quando exprime uma concepção «arcaica» do fogo purgatório que situa na época do Julgamento Final, prolongado por um longo dia. Mais ainda, Eloi parece deixar ao fogo o cuidado de fazer 1\ triagem entre santos, ímpios e justos e a esta última categoria não garante o Paraíso depois de ter sido posto à prova. O «suspense» durará até 110 fim.
Na Gália
Numa homilia, o famoso Santo Eloi, bispo de Noyon (que morreu em 659), depois de ter relembrado a diferença entre pecados mortais (crimina capitalia) e pecados insignificantes (minuta peccata) e calculado que
existem poucas probabilidades de as esmolas, mesmo grandes, mesmo diárias, serem suficientes para resgatar os pecados mortais, recorda os dois julgamentos e o fogo purgatório: «Lê-se, com efeito, na Sagrada Escritura, que há dois julgamentos: um pela água do dilúvio (Génesis, VII) que prefigurou o baptismo pelo qual fomos lavados de todos os pecados (I Pedro, Ill); e o outro, que há-de vir, pelo fogo, quando Deus vier para o Julgamento, do qual o salmista diz: "Ele vem, o nosso Deus, e não se calará. A sua frente um fogo devora, à sua volta, borrasca violenta" (Salmo L, 3); é como uma borrasca que ele julga aqueles que o fogo consome. Lavemo-nos de todas as máculas da carne e do espírito, e que não sejamos queimados pelo fogo eterno nem por este fogo transitório; deste fogo do julgamento de Deus, o Apóstolo diz: "É este fogo que porá à prova a obra de cada um" (I Coríntios, lU, 13). Não há dúvida de que ele falou aqui do fogo purgatório. Esse fogo, os ímpios, os santos e os justos senti-lo-ão de maneira diferente. Do tormento deste fogo os ímpios serão precipitados nas chamas do fogo perpétuo; os santos que ressuscitarão no seu corpo sem terem marca de nenhum pecado porque terão construído sobre o alicerce que é o Cristo, com ouro, com prata e com pedras preciosas, quer dizer o sentido fulgurante da fé, a palavra esplendorosa da salvação e as obras preciosas, triunfarão deste fogo com tanta facilidade como a que puseram, nessa vida de pureza, na fé e no amor com que observaram os mandamentos do Cristo. Restarão então os justos culpados de pecados ínfimos que construíram sobre o alicerce que é o Cristo com feno, com madeira e com palha, o que designa a diversidade dos pecados Ínfimos de que não estarão ainda dignamente expurgados e não serão portanto considerados dignos da glória da cidade celestial. Depois de ter passado por este fogo, quando o dia do Julgamento Final tiver sido inteiramente cumpri126
Na Germânia
É interessante ver as instruções dadas, por volta de 732, pelo Papa Hl a S. Bonifácio que o interrogava sobre a conduta a seguir em relação aos Germanos ainda pagãos ou recentemente convertidos: «Perguntas-me também se se podem fazer oferendas pelos mortos. Eis 1\ posição da Santa Igreja: cada um pode fazer oferendas pelos seus mortos se são verdadeiros cristãos e o padre pode celebrar em sua memória. E embora estejamos todos sujeitos ao passado, convém que o padre só ceIchre e só interceda pelos mortos católicos, pois pelos impios, mesmo se foram cristãos, não será permitido agir assim 7.» Se bem que não se trate aqui explicitamente dos sufrágios e que não seja feita alusão ao fogo purgatório, é significativo ver afirmada com veemência no coração de um país e dum período de missão, a distinção entre a utilidade (e portanto o dever) das oferendas pelos mortos «verdadeiros cristãos» e a inutilidade (e portanto a proibição) das oferendas pelos mortos «ímpios», mesmo cristãos.
Gregório
Na Grã-Bretanha
Na mesma época na Grã-Bretanha um monge célebre, Bede que, como veremos, ocupa um lugar fundamental na elaboração da geografia do ulém, através de visões e de viagens imaginárias, sublinha nas suas Homilias (entre 730 e 735) a importância das dores pelos mortos e menciona, este explicitamente, o fogo purgatório. Os apóstolos, os mártires, os confessores, ete., vão, diz ele, entre a morte e a ressurreição para o seio do Pai, que devemos entender como o «segredo do Pai» (secretum Patris }, esse sinus Patris que equipara à casa do Pai (domus Patris ) do Evangelho de João (XIV, 2) , sem aludir ao seio de Abraão. E prossegue: 127
«Também os numerosos justos que pertencem à Igreja, depois da destruição da carne são imediatamente recebidos no repouso bem-aventurado do Paraíso onde esperam com grande alegria, em grandes coros de almas jubilosas, o momento em que recuperarão o corpo e aparecerão diante da face de Deus. Mas alguns que, por causa das suas boas obras, estão predestinados para a sorte dos eleitos, por causa de certas obras más de que saíram com o corpo conspurcado, são apanhados depois da morte pelas chamas do fogo purgatório para serem severamente castigados. Ou, até ao dia do Julgamento, eles são limpos da mácula dos seus vícios pela longa provação (longa examinatione) desse fogo ou então, graças às preces, às esmolas, aos jejuns, aos prantos, às oferendas eucarísticas dos seus amigos fiéis, são libertos das penas e, também eles, alcançam o repouso dos bem-aventurados".» Bede define bem, pois, os condenados ao fogo purgatório, afirma com veemência o poder dos sufrágios dos vivos e da rede de amigos fiéis, mas sobretudo mostra claramente o mecanismo do tempo do «Purgatório»: dentro de um intervalo máximo entre a morte e a ressurreição, a possibilidade de reduções devidas aos sufrágios. Em compensação, não menciona a localização do fogo e das penas purgatórias.
A Igreja carolíngia interessa-se pouco pelo fogo purgatório e não faz inovações. Alcuíno (que morreu em 804), o grande mestre anglo-saxónico inspirador da política cultural de Carlos Magno, no seu tratado Sobre a Fé na Santa Trindade (De fide Sanctae Trinitatis ), ao comentar a primeira epístola de Paulo aos Coríntios (Hl, 13), equipara o fogo do julgamento (ignis diei judicii ) ao fogo purgatório (ignis purgatorius ), Este fogo, segundo ele, é sentido de maneira diferente pelos ímpios, pelos santos e pelos justos. Os ímpios serão eternamente queimados pelo fogo; os santos, os que construíram com ouro, prata e pedras preciosas, passarão sem danos através do fogo como os três jovens hebreus (Daniel, lU). Há por fim «certos justos culpados de certos pecados mínimos que, sobre o alicerce que é o Cristo, construíram com feno, com madeira e com palha; esses serão expurgados pelo ardor desse fogo e, purificados daqueles pecados, tornar-se-ão dignos da glória da felicidade eterna». Tendo todos passado por esse fogo transitório (ignis transitorius ), uns irão para a condenação outros para a coroação, e os primeiros serão mais ou menos atormentados segundo o seu grau de malvadez, enquanto os segundos serão mais ou menos recompensados segundo o seu grau de santidade. Sobre este último ponto Alcuíno é vago e parece embaraçado".
Outra grande figura da Igreja e da cultura carolíngias, Raban Maur, abade de Fulda e arcebispo de Mainz (que morreu em 856), e chefe intelectual da Germânia, entrega-se, no seu comentário às epístolas de Paulo, u uma grande reflexão teológica sobre o fogo. Também para ele o fogo que é tratado na primeira epístola aos Corintios é o fogo do julgamento. Faz desaparecer as fugas à regra (illicita, coisas ilícitas) que se podem cometer sem deixar de tomar o Cristo como alicerce, por exemplo, a complacência para com as delícias deste mundo, os amores terrenos que, no caso das relações conjugais, não são condenáveis. Tudo isto o fogo das atribulações (tribulationis ignis) faz desaparecer queimando-o. Mas para aqueles que construíram com madeira, feno e palha, «não é impossível que isso se passe depois desta vida e podemos perguntar-nos Menão será o caso; de maneira aberta ou escondida, certos fiéis podem ser salvos através de um fogo purgatório com maior ou menor rapidez, con. oerecí . 10». forme tiverem ama doo mai mais ou menos os bens ns perecrveis Aparece aqui, como em Bede, um elemento importante do sistema do futuro Purgatório: a situação da expurgação entre a morte e o julgamento, e a possibilidade de uma maior ou menor duração dessa expurgação que não durará obrigatoriamente todo o tempo do intervalo. Paschase Radbert, abade de Corbie (que morreu em 860), partindo da passagem do Evangelho de Mateus sobre o baptismo pelo fogo, expõe uma teoria do fogo ainda mais desenvolvida; examina os seus diferentes aspectos e funções e culmina numa evocação do fogo do amor (ignis charitatis), do fogo do amor divino (ignis divini amoris). Admite vários significados possíveis desse fogo: «Talvez se deva, como querem alguns, compreender (a frase): ele próprio vos baptizará no Espírito Santo e no fogo como representando a identidade do Espírito Santo e do fogo, o que nós reconhecemos, pois Deus é um fogo que consome. Mas como há uma conjunção coordenada não me parece que se fale de uma mesma e única coisa. Daí a opinião de alguns de que se trata do fogo purgatório que agora nos purifica pelo Espírito Santo e depois, se alguma mancha pecaminosa ainda resiste, nos torna puros por combustão através do fogo da conflagração (quer dizer, do julgamento). Mas se assim é, deve acreditar-se que se trata de pecados mais leves e mínimos, pois é impensável que todos escapem aos castigos. De onde a frase do apóstolo: «o que é a obra de cada um, o fogo o porá à prova 11.» Atribuiu-se a Haymon de Halberstadt (que morreu em 853) o discurso mais articulado sobre o fogo purgatório na época carolíngia. Abordou ele () assunto por duas vezes, no tratado Sobre a Diversidade dos Livros (Sur Ia diversité des livres - De varietate librorum) e num comentário às epístolas de S. Paulo que alguns atribuem a Remi d' Auxerre. As opiniões de Haymon são de facto uma mistura ecléctica do que foi escrito antes dele,
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Indiferença
e tradicionalismo
carolíngios e pós-carolíngios
são muito marcadas pelas ideias de Agostinho e de Gregório, o Grande (que nunca são referidas) - e retomam, muitas vezes palavra por palavra, a síntese de Julião de Toledo, dois séculos antes. Deve acreditar-se, segundo Haymon, num fogo purgatório antes do julgamento, que actua sobre os pecados leves, pequenos ou mínimos. Há dois fogos, um purgatório (e temporário) o outro eterno (e punitivo). A duração da expiação pelo fogo pode ser maior ou menor em proporção com a importância do apego aos laços transitórios. Alguns sofrem as penas purgatórias depois da morte, outros nesta vida. É falso que possamos salvar-nos através do fogo purgatório se nesta vida apenas tivemos fé sem realizarmos boas obras. A Igreja pode suplicar eficazmente por aqueles que sofrem as penas purgatórias. Há duas categorias de justos, os que gozam imediatamente depois da morte do repouso paradisíaco e os que devem ser castigados pelas chamas do fogo purgatório e lá ficam até ao dia do julgamento ou que podem ser de lá tirados mais cedo pelas preces, as esmolas, os jejuns, as lágrimas e as oferendas de missas dos fiéis seus amígos'ê. Esta nota de solidariedade entre mortos e vivos, herdada sem dúvida de Bede, é a única originalidade - quanto à forma, não no fundo, que é tradicional - de Haymon de Halberstadt. Atton de Verceil (que morreu em 961) dá, no seu comentário às epístolas de S. Paulo, uma interpretação muito tradicional, muito agostiniana (cita, aliás, Agostinho por várias vezes), da primeira epístola aos Coríntios. Mas nele há uma particularidade e uma novidade. A particularidade é supor que o que será posto à prova e julgado (pelo fogo purgatório e, mais genericamente, quando do julgamento) é essencialmente a ortodoxia doutrinária, a doctrina, mais do que os costumes e os sentimentos. Por outro lado, o epíteto venialia, veniais, aparece ao lado dos pecados leves e opõe-se aos pecados capitais, mas faz parte de um conjunto; e o sistema de oposição pecados veniais-pecados mortais (ou capitais) só será elaborado no século X1I13• Mesmo o original Rathier de Verona, imbuído de cultura clássica e formado nas escolas de Lorena, não teve grande coisa a dizer sobre o fogo purgatório. O pouco que disse é uma mensagem de rigor: depois da morte já não se pode adquirir mérito. Quanto à existência de penas purgatórias depois da morte, ninguém deve iludir-se com elas, pois não valem para os pecados criminosos mas apenas para os pecados mais leves, aqueles que são designados como madeira, feno e palha'", Mesmo o grande Lanfranc que confere um brilho incomparável ao fim do século XI na escola da abadia de Bec-Hellouin na Normandia, de que é abade, antes de se tornar arcebispo de Canterbury, não se mostra inspirado no seu comentário sobre a primeira epístola aos Coríntios na passagem respeitante à prova pelo fogo. Para ele o fogo purgatório é de facto o fogo do julgamento e dá a entender que, nessas condições, o
Dou um lugar especial a dois textos do século XI, não porque em si mesmos tragam quaisquer novidades mas porque foram produzidos em contextos ricos de significado para o futuro. O primeiro é uma longa passagem do que se chama o Decreto (Dérret ) de Burchard de Worms (que morreu em 1025). E uma recolha de textos que faz lei sobre questões de dogma e de disciplina - uma norma Nobrea via do Corpus de Direito canónico. Burchard contenta-se com reproduzir passagens dos Diálogos de Gregório, o Grande, e uma passagernde Santo Agostinho (Enchiridion 110) respeitante aos sufrágios pelos mortos. Faz preceder o texto agostiniano da frase «há quatro espécies de oferendas» (quator genera sunt oblationis ); o texto será retomado um seculo depois no Decreto de Graciano e o seu carácter quadripartido levantará problemas aos escolásticos. Uma autoridade sobre as Escrituras ali citada conhecerá, em parte graças a este reforço, um grande êxito. i~o versículo de João, XIV, 2: «Na casa de meu Pai há muitas moradas'".» Em 1025, o bispo Gérard de Cambrai, num sínodo em Arras, reconciliou com a Igreja os heréticos que, entre outros «erros», negavam a eficácia dos sufrágios pelos mortos. O bispo impõe-Ihes que reconheçam, a este respeito, as verdades seguintes: «É verdade, para que ninguém julgue que a penitência não é útil senão nos vivos e não aos mortos, que muitos defuntos foram arrancados às penas pela piedade dos vivos, segundo testemunho da Escritura, por meio da oferenda do sacrificio do Mediador (a missa), ou de esmolas, ou pela penitência assumida por um vivo em favor de um amigo defun-
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fogo do julgamento durará até estarem expurgados aqueles que devem ser salvos",
Apesar das suas funções oficiais na escola do palácio no reinado de Carlos o Calvo, o irlandês João Escoto Erígenes foi um espírito isolado quase ignorado pelos teólogos medievais, mesmo antes de ter sido condenado, mais de dois séculos depois de ter morrido, pelo concílio de Paris (1210). Hoje é muito considerado pelos historiadores de teologia e de filosofia. Também ele não se detém no fogo purgatório. A história do pobre Lázaro e do mau rico inspira-lhe a reflexão de que essa história leva a crer que as almas, não só quando vivem num corpo mas também quando estão privadas da carne, podem pedir o auxílio dos santos, quer para ficarem totalmente libertas de penas, quer para serem menos utormentadas'". Noutro local diz do fogo eterno do Inferno que ele é corporal se bem que, por causa da subtileza da sua natureza, se diga que é incorporal'",
() além e a heresia
o género é tradicional. Explodiu, como vimos, no quadro da literatura apocalíptica judaico-cristã que o marca fortemente. Tem - se bem que se trate de um filão menor que dificilmente encontrou saída na literatura
.rudita - os seus testemunhos antigos, gregos especialmente. Plutarco, n08 se~s Moralia, conta a visão de Tespêsio, Este, depois de ter levado uma VIdade deboche, segundo todas as aparências, morre e quando pas~dos três dias. volta à vida, leva daí em diante uma vida perfeitamente virtuosa. Pressionado com perguntas, revela que o seu espírito deixou o corpo e viajou no espaço entre as almas que andavam pelo ar das quais conh~u algumas, que emitiam terríveis lamentos, enquanto outras, mais em ctma,. pareciam tranquilas e felizes. Algumas destas almas são puramente bnlhantes, outras têm manchas e outras são completamente escuras. As que estão carregadas com poucos pecados só sofrem um castigo lileiro, mas as ímpias são entregues à Justiça que, se as acha incuráveis as .ban~ona às Fúrias que as lançam num abismo sem fundo. Tespêsio é depol~ le~ado para uma grande planície cheia de flores e de perfumes ',Iradavels onde algumas almas voam alegremente como pássaros. E vi.Ua por fim o lugar dos condenados onde assiste às suas torturas. Há notoriamente três lagos, um de ouro fervente, outro de chumbo gelado CI u~ terceiro de ferro agitado por ondas. Demónios mergulham e tomam • tirar as almas de um lago para outro. Por fim, noutro local, ferreiros modelam sem cerimónias as almas chamadas a uma segunda exístência'" dando-lhes as mais diversas formas. ' As descrições do Purgatório conservarão desta visão as diferenças de cor das almas e a passagem de um lago para outro. Plutarco descreve também a visão de Timarco. Este desceu a uma ,ruta dedicada a Trofónio e aí celebrou as cerimónias necessárias para conseguir um oráculo. Lá ficou duas noites e um dia numa escuridão Impenetrável, sem saber se estava acordado ou se sonhava. Recebeu um golpe na cabeça e a sua alma voou. Toda feliz no ar, avistou ilhas Ilrdendo com um fogo agradável e que mudavam de cor. As ilhas eram banhadas por um mar multicolor onde flutuavam as almas. No mar lançavam-se dois rios e por baixo havia um precipício redondo e sombrio de onde saíam gemidos. Algumas almas eram aspiradas pelo buraco outras eram para lá lançadas, Também aqui a descrição anuncia a da obra onde lerá criada a verdadeira visão do Purgatório, o Purgatório de S. Patrick, tio fim do século XII. ,Esta,lite~atura. visionária é muito influenciada pelos tratados do Apocaíipse JUd~lco-cnstão de que falei, em especial pelo Apocalipse de Pedro CI () ~pocahpse de Paulo, mas tem também a marca de duas tradições que 'UIU1 apenas evocarei: as viagens pelo além das velhas culturas pagãs celta CI germânica'". ' Se em grande parte deixo de lado estas duas componentes da cultura medieval que certamente desempenharam um papel no imaginário do Purgatório, é porque a importância das pesquisas a empreender, para NC poder falar delas com pertinência, não me parece proporcionada
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to, no caso de o doente, ultrapassado pela morte, não ter podido assumi-Ia, ou quando um amigo vivo suplica por ele. Vós não sais, ao contrário do que afirmais, verdadeiros seguidores do Evangelho. Pois a Verdade nele diz: Se alguém proferiu uma blasfémia contra o Espírito Santo, ela não lhe será perdoada nem neste século nem no século futuro (Mateus, 12). Nesta frase, como disse S. Gregório no seu Diálogo, deve entender-se que certas faltas podem ser apagadas neste mundo e outras no mundo futuro ... E é preciso acreditar nisto a propósito de pecados pequenos e mínimos como a tagarelice contínua, o riso imoderado, a preocupação exagerada com o património, etc., coisas inevitáveis em vida mas que pesam depois da morte se não foram apagadas durante esta vida; estes pecados, como ele diz, podem ser expurgados depois da morte pelo fogo I,lUrgatório, se durante esta vida se mereceu isso por meio de boas acções. E, pois, lícito que os santos doutores digam que existe um fogo purgatório pelo qual alguns pecados são expurgados, desde que os vivos obtenham esse direito por meio de esmolas, de missas ou, como já disse, por uma penitência de substituição. E evidente que, pelo preço destas obras, os mortos podem ser absolvidos dos pecados, senão não se compreenderia o apóstolo Paulo (sobre o qual vós mentistes ao dizer que sois seus seguidores) que diz que os pecados mínimos e muitos leves são facilmente consumidos pelo fogo purgatório, enquanto acarretariam suplícios não purgatórios mas eternos se, por essas oferendas da hóstia, não tivessem merecido ser apagados pelo fogo purgatório!".» Nada de novo neste concentrado doutrinário. No entanto, este texto terá, juntamente com o Decreto de Burchard, um sucesso singular: constituem o processo a partir do qual se criará no século XII a noção de Purgatório, em oposição àqueles que o negam. Nesses tempos de heresia, como são os séculos XII e XIII, S. Bernardo, depois outros clérigos ortodoxos, prepararão o Purgatório que será assim parcialmente o fruto da resistência à contestação herética que começa cerca do ano mil. A série visionária: as viagens pelo além
A par com este imobilismo doutrinário uma outra série, sem ser revolucionária, prepara com mais segurança o futuro Purgatório: são as visões do além, as viagens imaginárias ao outro mundo. Heranças
com o fruto que delas se pode esperar. A apreciação da contribuição destas culturas - apesar de estudos de grande qualidade - supõe resolvidos problemas muito dificeis. Em primeiro lugar, problemas de datação. Como é normal, os textos escritos datam da época em que as línguas dessas culturas são passadas à escrita, o mais cedo no século XII. O que as primeiras obras escritas nessas línguas exprimem é certamente e em grande parte anterior a elas, mas de quanto tempo? Mais importante ainda a meus olhos é o facto de esta literatura antiga ser um produto complexo, dificil de caracterizar. A distinção entre erudito e popular não tem aqui grande sentido. As fontes orais próximas parecem-me essencialmente «eruditas». A oralidade não se confunde com o popular. As obras escritas a partir do século XII são elaborações de artistas orais eruditos. Na época em que se recita, se canta e se escreve as obras «vulgares», as culturas «bárbaras» já estão há mais ou menos tempo em contacto com a cultura eclesiástica, erudita, cristã, de expressão latina. A contaminação vem juntar-se à dificuldade de distinguir a verdadeira herança «bárbara». Longe de mim rejeitar essa herança: creio, pelo contrário, que ela muito pesou na cultura medieval mas não me parece que já estejamos suficientemente preparados para a isolar, a caracterizar, a avaliar. Penso em compensação que nas regiões onde o latim se impusera há muito tempo como língua erudita, a cultura latina erudita acolheu, de melhor ou pior vontade, mais ou menos conscientemente, elementos mais ou menos importantes de cultura tradicional «popular», quer dizer, no que respeita a esta época, em grande parte rural e quase bem definida pelo termo folclórica - o que a Igreja classificou de «pagão» pré-cristã e rural ao mesmo tempo. Para referenciar esta herança dispomos de um método decerto delicado de manejar: fazer remontar pelo método regressivo, com prudência e confrontando-o com os documentos medievais datados ou datáveis, o corpus estabelecido pelos folcloristas dos séculos XIX e XX. Apesar das suas incertezas, sinto-me mais seguro utilizando os dados recolhidos pelos irmãos Grimm, Pitre, Frazer, Van Gennep, para explicar o imaginário medieval, do que especulando sobre os imrama (relatos de viagens pelas ilhas do além) célticos ou as sagas escandinavas. Dessas culturas «bárbaras» presentes e dificeis de enquadrar, apenas reterei, para as épocas anteriores ao século XII, alguns traços significativos para a génese do Purgatório. Entre os Celtas predomina o tema da viagem pelas ilhas venturosas da qual o testemunho mais antigo parece ser a viagem de Bran cuja versão primitiva remontaria ao século vnr". O outro mundo está situado numa ilha, muitas vezes acessível por um poço, mas desprovida de montanha santa. A imagem da ponte depara-se-nos frequentemente.
Entre os escandinavos e os germanos, a mitologia do além, quando começamos a apreendê-Ia, parece mais coerente. Depois da morte existem essencialmente dois lugares: um mundo subterrâneo onde reina a deusa HeI, bastante próxima do shéol judeu, sombrio, angustiante mas Nemtorturas, cercado por um rio que se atravessa por uma ponte; e do outro lado um lugar celestial de repouso e de descontracção, o Valhalla, reservado aos mortos merecedores, e em especial aos heróis mortos no campo de batalha. É possível que, antes de se situar no céu, o Valhalla também tenha sido subterrâneo e comparável aos Campos EJísios romanos. Enquanto o além céltico só excepcionalmente comporta uma montanha (elemento geográfico que será essencial para o Purgatório), a mitologia germânica inclui o monte Hecla na Islândia, montanha vulcânica penetrada por um poço e que contém um reino de tortura='. Talvez ainda mais do que o céltico, o além imaginário germânico, quando começamos a apreendê-lo, surge já fortemente imbuído da influência cristã erudita e latina. É o caso das viagens pelo além que, no século XII, Saxo Grammaticus relata na sua História dos Dinamarqueses. Os Diálogos de Gregório, o Grande, foram bem cedo traduzidos para escandinavo antigo e legaram talvez o tema da ponte à mitologia escandinava, se bem que ele talvez já ali tivesse chegado antes, vindo do oriente. O mais importante sem dúvida é que, sob a influência cristã, o além risonho das mitologias céltica e germânica primitivas toma-se sombrio, subterrâneo, «inferniza-se», No momento em que nasce o Purgatório, ver-se-á a concepção céltica (e talvez germânica) optimista de um lugar de espera e de purificação já próximo do Paraíso apagar-se perante a imagem de um Purgatório temporariamente cruel como o Inferno, vindo da apocalíptica oriental e da tradição cristã oficial. Essa imagem não desaparecerá completamente e será recuperada nas visões do Paraíso. Esses «além» «folclóricos» ambivalentes ficarão divididos entre um pólo positivo e um pólo negativo e o Purgatório hesitará à volta da linha de separação, Da literatura latina cristã das visões do além, do começo do século VIII até ao fim do século X, destacam-se três textos. O primeiro é de um dos grandes espíritos da alta Idade Média, o monge anglo-saxão 8ede. E a Visão de Drythelm. Distingue pela primeira vez um lugar de expurgação no outro mundo que o herói percorre. A Visão de Wetti, monge do Sul da Germânia, é uma descrição infernal e delirante de um além em parte utilizado para fins políticos, à custa de Carlos Magno. Este desvio político dos relatos de viagens além-túmulo exprime-se plenamente numa descrição anónima do fim do século IX, a Visão de Carlos, o Gordo. panfleto ao serviço de um pretendente carolíngio. Estes três textos essenciais serão precedidos por duas breves visões, uma do fim do século VI e outra do começo do século VIII, relatadas
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Deus24• O objectivo é descrever o Paraíso e o Inferno (geena), a om,nipotência de Deus e a queda de Adão que leva à morte. Deus conserva em diversas regiões (diversis partibus] as almas depois da morte, à espera do Julgamento Final. Vêm a seguir as provas da ressurreição dos mortos, a evocação dessa ressurreição e do julgamento de Deus. Uma longa descrição evoca o Paraíso com as suas flores, as suas pedras preciosas, as suas Árvores, o seu ouro, o mel, o leite, os quatro rios jorrando de uma nascente tranquila, numa eterna Primavera, com uma temperatura amena, uma luz eterna onde os eleitos não têm preocupações, nem pecados, nem doenças, mas sim a eterna paz. O poema termina com uma breve evocação da destruição do mundo pelo fogo, do rio de fogo, dos lamentos dos condenados e da necessidade de arrependimento antes da morte, pois no Inferno já é tarde de mais para o fazer e lá se vêem os condenados chamar por Deus em vão. Deste texto onde, à excepção de uma vaga alusão às diversas moradas dos mortos, nada existe que diga respeito ao futuro Purgatório, podemos no entanto reter dois elementos. Primeiro, insiste-se muito mais no ParaíI() do que no Inferno. O poema voga ainda no optimismo dos séculos IV e V. Por outro lado, mesmo excluindo a sua eficácia, evocam-se as preces dos condenados; mas no fim da Idade Média distinguir-se-ão as almas do Purgatório das do Inferno pelo facto de elas ainda se entregarem a orações enquanto as outras já renunciaram às súplicas inúteis.
por dois grandes personagens da Igreja, os arcebispos Gregório de Tours e Bonifácio (em anglo-saxão Winfrith) de Mainz. Evocam o além mais ou menos banal dos meios monásticos da época. Dois poemas influenciados pela tradição literária clássica romana enquadrá-los-ão nos dois extremos cronológicos do período, o começo do século VI para o primeiro e o começo do século XI para o segundo. Mostrarão um imaginário muito tradicional ao qual o Purgatório pouco ficará a dever. As duas visões que primeiro se nos oferecem têm mais valor pela personalidade dos seus autores, poderosas personagens eclesiásticas, do que pelo conteúdo, pois este é fortemente tributário do Apocalipse de Paulo no que respeita à maioria das imagens e das ideias. Na sua História dos Francos (IV, 33), no fim do século VI, Gregório de Tours relata a visão de Sunniulf, abade de Randau: «Viu-se transportado para um rio de fogo, sobre cuja margem se aglomeravam pessoas como abelhas à volta da colmeia; uns estavam submersos até à cintura, outros até às axilas, outros até ao queixo e lamentavam-se chorando por serem tão atrozmente queimados. Por cima do rio havia uma ponte muito estreita, mal medindo a largura de um pé. Na outra margem via-se uma grande casa toda branca. Os monges que desprezavam a disciplina da sua comunidade caíam da ponte enquanto os que a respeitavam passavam e eram recebidos na casa.» No início do século VIII S. Bonifácio, o apóstolo dos Germanos, escreveu (Epístola 10) a Eadburge, abadessa de Thanet, contando que um monge de Wenlock tivera uma visão. Foi levado pelos ares por anjos, e viu o mundo inteiro cercado de fogo. Viu uma multidão de demônios e um coro de anjos representando os seus vícios e as suas virtudes. Reparou em poços de fogo que vomitavam chamas e almas com a forma de pássaros negros que choravam e gemiam e davam gritos com voz humana. Vil! um rio de fogo fervente por cima do qual havia uma tábua que fazia de ponte. As almas passavam sobre essa ponte mas algumas escorregavam e caíam no Tártaro. Algumas eram completamente submersas pelas ondas, outras até aos joelhos, outras até ao meio do corpo e outras ainda até aos cotovelos. Todas saíam do fogo brilhantes e limpas. No outro lado do rio havia grandes muros altos e resplandecentes. Era a Jerusalém celeste. Os espíritos maus eram mergulhados nos poços de fogo. Coloco aqui um poema da Antiguidade latina tardia que, ao contrário por exemplo dos textos de Plutarco, não tem qualquer parentesco com as visões propriamente apocalípticas e com as viagens mais ou menos «folclóricas» do período posterior mas que, por esta diferença, tem o seu lugar no processo. O Carmen ad Flavium Felicem foi escrito por volta de 500 por um cristão de África e trata da ressurreição dos mortos e do julgamento de
O grande anglo-saxão Bede, pouco antes de morrer em 735 no mosteiro de Yarrow onde passou cinquenta anos interrompidos por viagens das quais muitas a Roma, relata na História Eclesiástica de Inglaterra muitas visões25. Estas descrições têm um fim edificante, pretendem provar a realidade do além e inspirar aos vivos temor suficiente para que queiram escapar aos tormentos depois da morte e reformar a sua vida. Mas não têm um carácter tão didáctico como os exempla de Gregório, o Grande. O seu grande interesse para a nossa história é que numa destas visões aparece pela primeira vez, para as almas que sofrem uma expurgação depois da morte, um lugar especial do além que será mais do que um dos receptáculos evocados até então por referência ao Evangelho de João. Passemos rapidamente pela primeira visão, a de Santo Fursy, monge irlandês que veio para o continente e foi enterrado cerca de 650 em Peronne onde Erchinold, administrador do palácio de Clóvis 11, mandou construir um santuário sobre o seu túmulo.· Bede retoma uma vida de Fursy escrita em Peronne pouco depois da sua morte. Quando vivia na Ânglia oriental, no mosteiro de Cnoberesborough que fundara, caiu
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() «fundador» das visões medievais do além: Rede
doente e teve uma visão pois a sua alma saiu do corpo «desde a noite até ao canto do galo». Do céu viu por baixo de si quatro fogos, o da mentira, o da cupidez, da dissensão e da impiedade, que logo se juntaram num só. Através desse fogo voavam demónios que disputavam com os anjos bons as almas dos defuntos. Três anjos protegiam Fursy do fogo e dos demónios: um abria-lhe passagem e os outros dois guardavam-lhe os flancos. No entanto um demónio conseguiu apanhá-lo e fazê-lo lamber pelo fogo antes de os anjos intervirem. Fursy ficou queimado num ombro e no queixo. Essas queimaduras eram ainda visíveis quando voltou à terra e ele mostrava-as. Um anjo explicou-lhe: «O que tu acendeste ardeu em ti» e fez-lhe uma exposição sobre a penitência e a salvação. A alma de Fursy voltou à terra e o monge guardou da sua viagem imaginária um tal medo que, quando pensava nela, nos dias glaciais do Inverno, ficava a suar de terror como se estivesse em pleno Verão. A ideia purgatória é vaga nesta história. A natureza do fogo não é definida e o carácter da queimadura de Fursy mostra-se bastante ambíguo: ordálio, punição dos pecados, purificação? Mas esta ambiguidade faz parte da definição do fogo purgatório que, todavia, não é aqui mencionado-".
A visão de Drythelm, no capítulo XII do livro V da Historia ecclesiastica, é muito mais importante para o nosso propósito. Trata-se de um devoto laico, um pai de família, o seu herói. Este habitante da região de Cunningham (ou Chester-le-Street), próxima da fronteira escocesa ficou gravemente doente e certa noite morreu. Ao amanhecer voltou à vida afugentando os que velavam o seu cadáver, à excepção da esposa, aterrorizada mas feliz. Drythelm dividiu os seus bens em três partes, um terço para a mulher, um terço para os filhos e um terço para os pobres, e retirou-se para um eremitério do isolado mosteiro de Mailros, num recanto do Tweed. Aí viveu em penitência e, quando tinha oportunidade, contava a sua aventura. Um personagem resplandecente vestido de branco conduzira-o para leste, para um vale muito extenso, muito profundo e infinitamente comprido, cercado à esquerda por chamas medonhas e à direita por terriveis rajadas de granizo e de neve. Estas duas vertentes estavam cheias de almas humanas que o vento fazia passar de um lado para o outro, sem cessar. Drythelm pensou que se tratava do Inferno. «Não, disse-lhe o companheiro que adivinhara o seu pensamento, não é aqui o Inferno que tu imaginas.» Passou em seguida para lugares cada vez mais escuros onde nada via além da mancha clara do seu guia. E, de repente, surgiram
bolas de fogo saltando de um grande poço e voltando a cair nele. Drythelm viu-se sozinho. Naquelas chamas subiam e desciam como faúlhas almas humanas. Este espectáculo era acompanhado por choros desumanos, por risotas e por um cheiro fétido. Drythelm reparou mais nas iorturas que demónios infligiam a cinco almas, uma de um padre reconhecível pela tonsura, outra de um laico, uma terceira de uma mulher (estamos num grupo de contrastes binários: padre/laico, homem/mulher, estes três personagens representam o conjunto da sociedade huma11I1, ficando as outras duas numa penumbra misteriosa). Quando, rodeado por diabos que ameaçam agarrá-l o com pinças de fogo, Drythelm se julga perdido, aparece de repente uma luz que aumenta como a de uma estrela hrilhante, e os diabos dispersam-se e fogem. O companheiro voltou c, mudando de direcção, leva-o para lugares luminosos. Chegam 8 um muro de um comprimento e de uma altura que os seus olhos não podem ulcançar , mas atravessam-no de uma maneira incompreensível c I>rythelm vê-se num prado grande e verde, cheio de flores, colorido c perfumado. Homens vestidos de branco estavam ali alegremente reunidos. Drythelm pensou ter chegado ao reino dos céus, mas o companheiro, lendo-lhe o pensamento, disse-lhe: «Não, não é aqui o reino dos céus, como tu supões.» Drythelm atravessou o prado, uma luz ainda maior aumentou pouco a pouco, elevaram-se cânticos muito suaves, envolveu-o um perfume junto do qual o outro que sentira no prado não passava de um cheirinho, e a luz tornara-se tão brilhante que a do prado já somente lhe parecia um pálido clarão. Esperava ele entrar naquele lugar maravilhoso quando o seu guia o obrigou a arrepiar caminho. Quando chegarum ao sítio risonho das almas vestidas de branco, o companheiro de L>rythelmdisse-lhe: «Sabes o que é tudo o que vimos? _. Não. O vale horrível cheio de chamas ardentes e de frios glaciais é o lugar onde são examinadas e castigadas as almas daqueles que demoraram a confessar e 11 corrigir os pecados criminosos (scelera) que cometeram, que não se urrependeram senão em artigo de morte e saíram do corpo nesse estado; mas como, pelo menos no momento de morrer, se confessaram c üzeram penitência, todas no dia do Julgamento (final) alcançarão o reino dos céus. Muitas são ajudadas pelas preces dos vivos, pelas esmoIas, pelos jejuns e sobretudo pela celebração de missas a fim de serem libertadas mesmo antes do dia do Julgamento'".» O guia prosseguiu: «A seguir, o poço fétido que vomita chamas é a boca da geena de onde aquele que lá cair uma vez nunca mais será libertado, por toda a eternidade. O lugar florido onde viste aquela mocidade encantadora e alegre divertindo-se, é onde são acolhidas as almas daqueles que saem do seu corpo no meio de boas obras mas que não são suficientemente perfeitas para merecerem ser imediatamente introduzidas no reino dos céus; mas lodos no dia do Julgamento entrarão na visão de Cristo e nas alegrias do
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A visão de Drytbelm: um lugar reservado à purgação
reino celestial. Pois aquelas que foram perfeitas em todas as suas palavras as suas obras e os seus pensamentos, logo que saem dos corpos alcançam o reino celestial; o lugar onde ouviste aquela doce canção por entre aquele perfume suave e aquela luz esplêndida já lá está perto. E tu, que deves agora voltar ao teu corpo e viver de novo entre os homens, se te esforçares por bem reflectir no que fazes e por observar nos teus cost':lmes e nas tuas falas a rectidão e a simplicidade, também tu terás depois da morte uma morada entre esses grupos alegres de espíritos felizes que viste. Pois, durante o espaço de tempo em que te deixei sozinho, fui in~ormar-me do que te iria acontecer.» Com estas palavras, Drythelm fica tnste por ter de regressar ao corpo e contempla avidamente a beleza e o enc~nto do lugar onde se encontra e das pessoas que lá vê. ~as enquanto se mt~rrogava, sobre como fazer uma pergunta ao seu gula, sem se atrever a ISSO, viu-se vivo entre os homens/ . Este texto seria essencial para o caminho do Purgatório se não contivesse lacunas fundamentais em relação ao futuro sistema e se não tivesse sido escrito no dealbar de uma época que irá desviar-se dos problemas da expurgação no além. ., N' O que nele está presente é o lugar reservado especla~ent,e a purgaçaoi e a definição rigorosa da natureza desse lugar: nele, nao so as almas sao torturadas indo do quente para o frio e vice-versa, a ponto de Drythelm julgar que se trata do Inferno, mas ta~bé~ é ~m lugar. d~ exame e de castigo, e não, para bem dizer, de punficaçao; e a defiDl~aoNdasc~lpas que a ele conduzem, os pecados graves, scelera; é a caractenzaçao da Situação que a ele leva: a confissão e ao arrependiment~ in extremis; é .a afi~ação de que a presença nesse lugar garante a salv.açao~ara a ~termdade; e a indicação do valor dos sufrágios com a sua lista hierarquizada: prec;s, esmolas, jejuns e, sobretudo, sacrificios eucarísticos, com a sua consequencia eventual: encurtar o tempo de purgação, o que confirma que esse tempo está situado entre a morte e a ressurreição, durante um período mais ou menos longo, sendo o castigo máximo até ao dia do Julgamento Final. O que nele falta é a palavra purgação e mais genericamente qualquer palavra da família de purgar. Bede, sem dúvida, ao sacrific~r .aqui a um género literário, omite cuidadosamente todos os termos ca~o~cos e me~mo todas as referências a uma autoridade, se bem que a Bíblia e Agostinho estejam bem perto por trás deste texto. Mas um lugar sem nome não existe totalmente. Sobretudo talvez em conformidade com os pontos de vista agostinianos acerca dos non v~lde mali e dos non valde boni, os que não são inteiramente maus e os que não são inteiramente bons, não existe apenas um lugar intermédio mas sim dois, o da correcção dura e o da espera jubilosa, quase colados um ao Inferno, o outro ao Paraíso. Pois o sistema da visão de Drythelm continua a ser um sistema binário; um muro aparentemente 140
impenetrável separa um inferno e um inferno temporário de um paraíso de eternidade e de um paraíso de espera. Para que nele exista Purgatório será necessária a instalação de um sistema ternário; e mesmo que o Purgatório fique geograficamente inclinado para o Inferno, será preciso ':1m sistema melhor de comunicação entre Purgatório e Paraíso. Será preCISO abater o muro. Um século depois, mais ou menos na Germânia Meridional, um monge de Reichenau, Wetti, morre em 4 de Novembro de 824 depois de, na vêspera de morrer, ter contado uma visão sua. Mais tarde o relato foi posto por escrito pelo abade do mosteiro, Heito. Pouco depois, o poeta Walahfrid Strabo, abade de Saint-Gall, comporá uma versão dela em vers029.
l1m sonho barroco e delirante com o além: a visão de Wetti Doente, Wetti repousava na sua cela, com os olhos fechados m~s não dormia. Satanás, com aparência de clérigo, com a face negra tão feia que nem se distinguiam os olhos, apareceu-lhe ameaçando-o com instrumentos de tortura; e uma multidão de demónios preparava-se para o prender numa espécie de câmara de torturas. Mas a misericórdia divina enviou-lhe um grupo de homens magnífica e decentemente vestidos com hábitos monásticos e falando latim, que expulsou os demónios. Um anjo de uma beleza incrível, vestido de púrpura, aproximou-se da sua ca~ceira e ~alou-lhe afectuosamente. A primeira parte da visão acabou assim. O pnor do mosteiro e outro irmão vieram tratar do doente. Este contou-lhes o que acabava de se passar e pediu-Ihes que intercedessem pelos seus pecados, enquanto ele próprio, numa atitude de penitência monástica bem conhecida, se prostrava com os braços em cruz. Os dois irmãos cant~ram os sete salmos da penitência, o doente deitou-se novamente e pediu os Diálogos de Gregório, o Grande. Depois de ter lido nove ou dez páginas, pediu aos visitantes que fossem descansar e preparou-se para fazer () mesmo. O anjo que já vira vestido de púrpura apareceu de novo, desta vez todo vestido de branco e resplandecente e felicitou o doente pelo que acabava de fazer. Recomendou-lhe em especial que lesse e relesse o salmo
cxvnr=.
O anjo leva-o então por uma caminho agradável até umas montanhas imensamente altas e de uma beleza incrível que pareciam feitas de mármore e eram cercadas por um grande rio onde uma enorme multidão de condenados estava retida para ser punida. Reconheceu muitos deles. Noutros locais assistiu a muitas e diversas torturas infligidas a numeroNOS padres e às mulheres que eles haviam seduzido e que esta~am ~erguIhadas no fogo até ao sexo. O anjo disse-lhe que no terceiro dia elas 141
seriam chicoteadas sobre o sexo. Numa espécie de castelo de madeira e pedra muito esquisito de onde saía fumo, viu monges que, segundo o que lhe disse o anjo, tinham sido ali reunidos para expurgação (ad purga tionem suam). Viu também uma montanha em cujo cume estava um abade que morrera há uma dezena de anos e que ali fora colocado não para sua eterna condenação mas para ser expurgado. Um bispo que deveria ter rezado por esse abade sofria penas infernais no outro lado da montanha. Também lá viu um príncipe que reinara em Itália sobre o povo romano ao qual um animal rasgava as partes sexuais, enquanto o resto do corpo nada sofria. Estupefacto por ver aquela personagem que fora o defensor da fé católica e da Igreja (trata-se de Carlos Magno, que Walahfrid Strabon refere no seu poema) assim castigado, soube pelo anjo que, apesar de muitas acções louváveis e admiráveis, aquela personagem entregara-se a amores ilícitos. Mas, por fim, estaria entre os eleitos. Viu também, ora em glória ora em sofrimento, juízes, laicos, monges. Foi em seguida para lugares de uma grande beleza onde se erguiam arcos de ouro e de prata. O Rei dos Reis, o Senhor dos Senhores, avançou com uma multidão de santos e os olhos humanos não podiam suportar o seu esplendor. O anjo convidou os santos a interceder por Wetti, o que eles fizeram. Uma voz vinda do trono respondeu-Ihes: «Esse deveria ter tido uma conduta exemplar e não teve.» Viu em seguida a glória dos bem-aventurados mártires que também pediram a Deus o perdão dos pecados de Wetti. A voz vinda do trono declarou que ele devia primeiro pedir perdão a todos aqueles que influenciara para o mal pelo seu mau exemplo. Foram depois para um lugar onde estava uma multidão de virgens santas que também intercederam por ele e a majestade do Senhor declarou que, se ele ensinasse uma boa doutrina, se desse bons exemplos e corrigisse aqueles que induzira ao mal, então o pedido delas seria atendido. O anjo explicou-lhe então que, entre todos os horríveis vícios dos homens, havia um que ofendia especialmente a Deus: o pecado contra a natureza, a sodomia. O anjo fez-lhe ainda longos discursos sobre os vícios a evitar, exortou-o a convidar em especial os germanos e os gauleses a respeitarem a humildade e a pobreza voluntária. Fez uma digressão sobre os pecados das congregações femininas, voltou ao vício sodomítico e alargou-se muito sobre este assunto, explicou que as epidemias atingiam os homens por causa dos seus pecados e recomendou-lhe em particular que cumprisse sem desfalecimentos o serviço de Deus, a opus Dei. Fez-lhe notar de passagem que um certo conde Géraud, que governara a Baviera em nome de Carlos Magno e mostrara grande zelo na defesa da Igreja, fora admitido na vida eterna. Depois de muitas outras falas, o anjo deixou Wetti e este acordou com a aproximação da aurora e ditou a sua visão. Uma descrição muito realista dos seus últimos momentos finaliza este relato.
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Dever-se-ia analisar em si mesma esta extraordinária visão. Dela tratarei apenas três elementos que interessam ao futuro Purgatório: a insisI~ncia posta na purgação no além, o papel desempenhado por uma montanha como local dessas penas temporárias (teremos, no fim da nos.11 história, a montanha do Purgatório de Dante), a presença, nesses lulures de castigo, de, Carlos Magno sendo punido por ter cedido às tentações da carne. E uma das mais antigas aparições desta lenda que leve êxito na Idade Média: o imperador teria mantido relações culposas com a irmã e seria assim pai de Rolando. Mais tarde ver-se-á por sua vez Carlos Martel, avô de Carlos Magno, torturado no além por ter despo[ado a Igreja dos seus bens. Mas Carlos Martel será condenado ao Inferno como Teodorico, ao passo que Carlos Magno é «finalmente salvo"'». Se Carlos Magno e o seu pecado aparecem na visão de Wetti, é toda a dinastia carolíngia que iremos encontrar numa outra visão espantosa datada do fim do século IX, e que é sem dúvida o melhor testemunho de um omprendimento que teve êxito na Idade Média: a politízação da literatura .pocaIíptica32.
A politização do além: a visão de Carlos, o Gordo Dou na íntegra o texto desta visão escrito sem dúvida pouco depois da morte do imperador Carlos, o Gordo (888). É destinada a servir a causa (te Luís, filho de Luís, o Bonacheirão, e de Hermengarda, filha única do Imperador Luís 11, o Jovem, filho de Lotário e sobrinho de Carlos, o (Inrdo. Luís Hl, chamado o Cego, foi com efeito proclamado rei em MI}(). Foi destronado pelo seu concorrente Berengário que, segundo o coslume bizantino, lhe mandou arrancar os olhos. O texto foi composto pelos próximos do arcebispo de Reims, e nele se afirma o poder de interressão de S. Remígio patrono da cúria arquiepiscopal. Relato de uma visão do imperador Carlos feito segundo as suas próprias declarações: Em nome de Deus, soberano rei dos reis, eu Carlos, pela graça de Deus rei dos Germanos, patricio dos Romanos e imperador dos Francos, quando durante a santa noite de um domingo, depois de ter celebrado o oficio divino noctumo me fui deitar, para repousar e queria dormir, uma voz dirigiu-se a mim e disse-me num tom terrível: «Carlos, o teu espírito vai deixar-te já e uma visão revelar-te-á o justo julgamento de Deus e alguns presságios a ele respeilantes; mas o teu espírito regressará em seguida, dentro de uma hora bem medida.» Logo a seguir fui arrebatado em espírito e aquele que me levava era de uma grande brancura e tinha na mão um novelo de lã que emitia um raio luminoso extremamente brilhante como costumam fazer os cometas quando
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aparecem, depois pôs-se a desenrolar o novelo e disse-me: «Toma um fio do novelo brilhante, ata-o solidamente ao teu polegar da mão direita porque elo te conduzirá ao labirinto das penas infernais.» Dizendo isto pôs-se rapidamente à minha frente, desenrolando o novelo brilhante, e conduziu-me para vales em brasa e profundos, cheios de poços onde ardiam pez, enxofre, chumbo, cera e fuligem. Encontrei ali os prelados de meu pai e dos meus tios. Como lhes perguntasse aterrorizado porque sofriam aqueles duros tormentos, eles responderam-me: «Fomos os bispos do teu pai e dos teus tios; mas em vez de Ihes darmos, assim como ao seu povo, conselhos de paz e de concórdia, semeámos a discórdia e fomos os instigadores de muitos males. É por isso que agora ardemos e sofremos estes suplícios infernais, assim como os outros apreciadores de homicídios e de pilhagens. É para aqui que virão também os teus bispos e a multidão dos teus satélites que hoje se divertem, agindo de modo semelhante.» Enquanto escutava, tremendo, estas palavras, eis que demónios todos negros que voavam, trataram de apanhar com ganchos de ferro o fio do novelo que eu tinha na mão e de me puxar para eles, mas o reverbero dos raios não lhes permitiu atingir o fio. Depois correram sobre mim e quiseram agarrar-mo com o gancho e lançar-me nos poços de enxofre; mas o meu guia que segurava o novelo atirou-me sobre os ombros um fio do novelo e mais outro, depois puxou-me com força atrás de si e assim trepámos as altas montanhas de fogo de onde corriam pântanos e rios ardentes onde ferviam todas as espécies de metais. Lá encontrei inúmeras almas de homens e de pessoas importantes do meu pai e dos meus irmãos que para lá haviam sido lançadas e estavam mergulhadas umas até aos cabelos, outras até ao queixo, outras até ao umbigo e gritavam-me lamentando-se: «Durante a vida gostámos, contigo e com o teu pai, os teus irmãos e os teus tios, de armar lutas e de cometer homicídios e fazer pilhagens por cupidez terrena; é por isso que sofremos tormentos nestes rios ferventes entre todas as espécies de metais.» Como eu timidamente prestasse atenção às suas palavras, ouvi atrás do mim almas que gritavam: «Os grandes suportam num rio fervente fornalhas de pez e de enxofre, cheias de enormes dragões, de escorpiões e de serpentes do diversas espécies»; também lá vi alguns grandes de meu pai, dos meus tios O dos meus irmãos, assim como meus, que me disseram: «Pobres de nós! Carlos, bem vês os horríveis tormentos que suportamos pela nossa maldade e o nosso orgulho assim como pelos maus conselhos que demos por cupidez ao rei e a ti próprio.» Enquanto me faziam, gemendo, estas queixas, dragões correram ao meu encontro com as bocarras abertas e cheias de fogo, de enxofre e de pez, e queriam engolir-me. Mas o meu guia pôs-me por cima um terceiro fio ainda com mais empenho, e os seus raios luminosos venceram as goelas em fogo e ele puxou-me para a frente ainda com mais força. Descemos então para um vale que de um lado era escuro, mas flamejava como o fogo de uma fornalha; do outro lado era de um encanto e de uma paz inexprimíveis. Voltei-me para o lado que estava nas trevas e que vomitava chamas e lá vi vários reis da minha família que sofriam grandes suplícios e então fui presa de uma profunda angústia, pois imaginei logo que eu próprio
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estava .entregue àqueles suplícios, que me infligiam gigantes todos negros que incendiavam o vale com toda a espécie de fogos. E todo trémulo, iluminado pelo fio do novelo, vi sobre a vertente do vale um clarão que me apareceu durante um momento, e havia duas fontes que escorriam. Uma fervia mas a outra era clara e morna e havia duas taças. Quando eu me dirigia para esta guiado pelo fio do novelo, o meu olhar fixou-se na taça onde havia água a ferver e ali vi Luís, meu pae3, em pé e mergulhado até às coxas. Sofria dores extremas que agravavam a sua angústia e disse-me: «Monsenhor CarIos, não tenhas receio, eu sei que a tua alma voltará ao corpo. Se Deus te permitiu vir aqui foi para veres por que pecados sofro tais tormen~os,assim como todos aqueles que viste. De facto, um dia estou nesta taça de ag~a a ferver, mas no dia seguinte sou levado para aquela outra onde a água é muito fresca; devo isso às preces de S. Pedra e de S. Remígio sob cuja égide a nossa raça real reinou até agora. Mas se vierdes depressa em meu socorro tu e os meus fiéis, bispos, abades e membros do clero, por meio de missas, of~rendas, salmo dias, vigílias e esmolas, rapidamente serei liberto desta taça de água a ferver, pois o meu irmão Lotário e seu filho Luís já foram subtraídos a esta pena.graças às preces de S. Pedro e S. Remígio e já foram conduzidos para ~ alegna ~o p~ra~so de Deus.» Depois disse-me: «Olha para o lado esquerdo.» Eu olhei e Ia VI duas taças muito fundas. «Aquelas, acrescentou ele, foram preparadas para ti se não te emendares e não fizeres penitência pelos teus crimes abomináveis.» Comecei então a ter terríveis arrepios. Apercebendo-se do terror em que estava o meu espírito, o meu companheiro disse-me: «Segue-me para a direita onde está o vale magnífico do Paraiso.» Avançámos e vi o meu tio Lotário sentado ao ,l~do de reis gloriosos num grande clarão e sobre uma pedra que era um topazio de um tamanho extraordinário. Estava coroado com um diadema precioso e tinha junto de si o filho Luís ornado com uma coroa semelhante. Ao ver-me aproximar dele, interpelou-me amavelmente e disse-me com voz ,f~rte: «Carlos, meu sucessor, tu que agora reinas em segurança sobre o irnpeno dos Romanos, vem até mim; sei que chegaste tendo atravessado um lugar de ex~iação, onde teu pai que é meu irmão foi posto numa estufa que lhe estava destinada, Mas a misericórdia de Deus depressa o libertou dessas penas, assim como nós fomos libertos pelos méritos de S. Pedro e as preces de S. Remígio a quem Deus confiou um apostolado supremo sobre os reis e toda a raça dos Francos. Se este santo não tivesse socorrido e ajudado os sobreviventes da nossa posteridade, a nossa família já teria deixado de reinar e de exercer ()poder imperial. Sabe pois que este poder imperial te será em breve arrancado das mãos e que em seguida só viverás muito pouco tempo.» Voltando-se então para mim, Luís disse-me: «O império dos Romanos que possuíste até agora a título hereditário, deve caber a Luís, o filho da minha filha.» Com estas palavras pareceu-me que Luís menino estava na nossa frente. O avô, olhando-o fixamente, disse-me: «Esta criança é semelhante àquela que o Senhor colocou no meio dos seus discípulos quando disse: "O reino dos céus pertence a esta criança; digo-vos que os seus anjos contemplam sempre a face de me" Pai que está nos céus." Quanto a ti, entrega-lhe o poder por esse
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fio do novelo que tens na mão.» Desatando um fio do polegar da mão direita, dei-lhe, através do dito fio, toda a monarquia imperial. Logo o novelo brilhante se meteu inteiramente dentro da sua mão como se fosse um sol deslumbrante. Foi assim que, depois de ter tido esta visão milagrosa, o meu espírito reentrou no meu corpo, mas eu estava muito fatigado e cheio de terror. Por fim, saibam todos, quer queiram quer não, que todo o império dos Romanos voltará para a sua mão conforme a vontade de Deus. Mas eu não tenho maneira de agir por ele, impedido como estou pela aproximação do momento em que o Senhor me chamará. Deus que domina os vivos e os mortos levará a cabo e confirmará esta obra, pois o seu reino eterno e o seu império universal durarão sem fim pelos séculos dos séculos".
A terceira via a explorar do caminho do Purgatório é a da liturgia. É, ao mesmo tempo, a mais decepcionante e talvez a mais rica de preparação para a nova crença. Por um lado, não há nada ou quase nada que faça alusão à remissão dos pecados depois da morte; mas, por outro lado, a evolução do fervor posto pelos vivos nas suas preces pelos mortos cria estruturas de acolhimento em relação ao Purgatório. Vimos na epigrafia funerária a preocupação dos cristãos com os seus mortos. Reencontramos esta preocupação na liturgia, mas o que se pede para os defuntos é, se não o Paraíso logo de seguida, pelo menos a espera tranquila e a promessa da vida futura. As noções que melhor correspon-
dem a estes anseios são as do refrigerium (refrigério) e do seio de Abraão. A fórmula mais corrente será a do «lugar de refrigério, de luz e de paz». Em relação à Alta Idade Média, distinguimos três versões de oração relu morte: a oração do «velho gelasiano» (segundo um sacramentário dito de Gelásio) ou oração romana, a oração de Alcuíno, que a partir do século IX será a mais conhecida e que ainda se encontra no pontifical romano, e a oração galicana que se encontra num sacramentário de São I)inis do século IX e da qual existem testemunhos até ao século XVI. Eis a oração de Alcuíno: «Deus por quem tudo vive e por quem os nONSOS corpos não morrem ao morrerem, mas são transformados em algo de melhor, rogamos-te em súplicas que ordenes que a alma do teu servo leja recolhida pelas mãos dos teus santos anjos para ser conduzida ao seio do leu amigo e patriarca Abraão e para ser ressuscitada no último dia do .runde julgamento; e tudo o que ele tenha contraído de vicioso pelas .rlimanhas do diabo, na tua piedade, na tua misericórdia e na tua indul.~ncia, apaga-o. Pelos séculos dos sêculos'".» De um modo geral, duas características limitam o alcance dos textos litúrgicos para o estudo da formação do Purgatório. A primeira é a ausência deliberada de qualquer alusão a um castigo ou 11 lima expiação além-túmulo. Quando se fala de alma expurgada (anima purgata), como no sacramento de Adriano, trata-se da remissão dos peeados. A oferta eucarística faz com que se espere «a redenção definitiva e 11 salvação eterna da alma». Segundo certos sacramentários, «a oferta 'lIcarística quebra as cadeias do império da morte e conduz a alma à morada da vida e da luz37». A liturgia é deliberadamente eufémica, optimista. E significativo que um prefácio do Missel de Bobbio, por exemplo, retome os próprios termos da prece de Agostinho por sua mãe. Joseph Ntedika observou judiciosmente que Gregório, o Grande, foi «o primeiro Il explicar a oração pelos mortos com a doutrina do Purgatório» e foi seguido por Isidoro de Sevilha, Bede e outros, mas que esta opinião não teve «qualquer influência sobre os formulários litúrgicos». Esta reiaUvaautonomia dos diferentes domínios da história é um tema de reflexão para o historiador que tem de se resignar a que, em matéria de história, nem tudo avance ao mesmo ritmo. A segunda característica é o conservantismo natural, por função, da liturgia. Por exemplo, a introdução do Memento dos Mortos no cânone da missa data sem dúvida pelo menos de Gregório, o Grande, mas o conjunto em que se inseriu não mais se alterou até ao Vaticano 11: «Desde o começo do século V a parte do nosso cânone romano que vai do Te lgitur às palavras da Instituição era já substancialmente o que é hoje38.» Se esse Memento dos Mortos é omisso no sacramentário gregoriano (Hadrianum) enviado por Adriano I a Carlos Magno, isso deve-se .implesmente ao facto de, em Roma, ele ser sempre omisso nas missas de
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Este texto, que constituirá uma das leituras de Dante, mostra como, sem qualquer reflexão teórica, existe implicitamente a necessidade de distinguir no Inferno (onde estão em princípio as grandes personagens desta visão) um lugar de onde se pode sair. Também os elementos de pormenor são aqui directivas preciosas. O tema folclórico do novelo brilhante que serve de fio de Ariadne encontrar-se-á em Gervásio de Tilbury a propósito de uma história de feitiçaria em Reims, no fim do século XII. OS temas do quente e do frio, da mitigação das penas, lá estão fortemente sublinhados. Lá se vê perfilar um dos usos da evocação dos pecados do além: a chantagem sobre os vivos. Remato este exame das visões que entre os séculos VII e XI fornecem alguns elementos ao imaginário do Purgatório com um poema de Egbert de Liêge, a Fecunda Ratis, composto entre lOlO e 1024, que reconduz à velha concepção dos dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno, e à forma literária antiga. A propósito do fogo purgatório (versos 231-240) são mencionados os rios de fogo, os pecados leves; e as fontes são João Il, 3, Daniel, VII, 10 e Ezequiel, XXIV, 11. Os versos sobre o fogo eterno (241 a 248) evocam o lago, o poço e o abismo infernais ". A Iiturgia: perto e longe do Purgatório
domingo e nos oficios solenes. Esta invocação, .consider~da u~ ,si.mpl gesto para com os mortos conhecidos, so era f~lta nas ~lssas diárias, Aqui tornam-se necessárias duas observaç.o~s. Convidam-nos elas & recolocar a génese do Purgatório no clima rel~glOs~geral da Alta Id Média. A primeira é que, como fez notar I?am!en Slcard: percebe-se certa evolução na época carolíngia. Nos ntual~, «De~s ~ agora volunta riamente representado como o juiz. Apela-se. a s~a Justiça, quase ~nt quanto à sua misericórdia». O Julgamento Final e evocado, o monbu do «deve ser purificado, lavado dos seus pecados e dos s~us e.rros»'. O sentimento dos pecados do defunto que não aparecia .na, h.turgla ano exprime-se agora por expressões de temor e por «um .pnn~plo de r;fl~ sobre o além». Mas esse além apenas tem duas direcções possiveis: Inferno ou o Paraíso. O que a liturgia carolíngia introduz ~ão ,é .um esperança de Purgatório: é, juntamente com a esperança mais frágil Paraíso, o medo crescente do Inferno. Já no século VIII o Missel Bobbio propõe uma oração por um defunto «p,ara que el~ ~scape a~ lug do castigo, ao fogo da geena, às chamas do Tartaro e atinja a regiao d vivos». Um outro ritual diz: «Liberta-o, Senhor, dos pnncipes ~as trev e dos lugares do castigo, de todos os perigos dos infernos e das ciladas d penas ...» ,. . ., Segunda observação: durante toda a Alta Idade Media a liturgia siste na ideia de uma primeira ressurreição e coloca portanto as pr. pelos mortos num quadro milenarista. Esta id~i~, basead~ n~ Apocalip de João, XX, 6: «Feliz e santo aquele que participa na primeira ress~rre1 ção!» foi propagada principalment~ por Orígenes e por ~a~to Agostinhe A maioria dos rituais apresenta a formula: «Que ele participe na pnme ressurreição» (Habeat partem in prima ressurrectione). . Damien Sicard baseando-se num estudo de Dom Botte, definiu os problemas lev~ntados por esta crença nu~a p~imeira ressurrei~ «Esta velha fórmula litúrgica tem um sabor milenarista e leva a suspei que, nas épocas em que eram utilizados os nossos ~tuais ~a~canos ~ lasianos, não se estava longe de imaginar um lugar lIlte~edlo ~epo~~ morte em relação à primeira ressurreição, onde era desejável e mveja reinar mil anos com o Cristo ... Mas gostaríamos de que os noss~s text litúrgicos nos definissem melhor o que entende~ ~?r esse lugar mterm dio. Tal como os livros de orações romanos pnmttlV~S, designam-D;o gundo o Evangelho de Lucas, pelas expressões e~ulvalentes de seio Abraão de Paraíso ou de Reino. Está-se a caminho da «crença n lugar intermédio de repouso, num paraíso ameno onde,. na doçura . luz, a alma resgatada de todos os seus pecados, espera ~ dia ~daressurrei ção. Mas nada nesta concepção deixa en~rever es~a punfi~aç~o, essa pe devida aos pecados já perdoados que hgamos a actual ideia do Pur tóri039.»
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Parece-me que este lugar intermédio de repouso é bem o seio de Ahraão ou ainda o prado habitado pelas almas vestidas de branco da JlI.vão de Drythelm de Bede. É também o sabat das almas à espera do oitavo dia, ou seja, da ressurreição, evocado especialmente por muitos documentos monásticos'". Mas assim como a noção de Purgatórío exigi,. o desaparecimento da categoria agostiniana dos não valde boni, os que nlu são completamente bons, para apenas conservar a dos não valde mali ou dos mediocriter boni et mali, os que não são inteiramente maus ou medianamente bons e maus, também o lugar purgatório reclamará a eliminação desse lugar de espera quase paradisíaco, e em definitivo o desaparecimento do seio de Abraão.
A celebração dos mortos: Cluny
A liturgia cristã interessou-se pelos mortos para além do Memento dos Morlos do cânone da missa e da oração pelos defuntos. Os sacramentárlol romanos atestam o uso de missas pelos defuntos que, em vez de .rem celebradas no dia do funeral, sê-lo-ão num dia qualquer, como ••• Itação. Mas sobretudo os obituários nas suas diversas formas são o meíhor testemunho desta memória dos mortos. Na época carolíngia, em .rtos mosteiros inscrevia-se nos registos dos vivos e dos mortos quem devia ser recomendado no cânone da missa. Ocupavam o lugar dos anti101 dípticos, placas de cera onde figuravam os nomes dos dadores de "rertas. São os Livros de Vida (Iibri vitae li. Depois os mortos separim-se dos vivos. As comunidades monásticas - desde o século VII na Irlllnda - anotam sobre rolos o nome dos seus mortos, e fazem-nos circular para informar os mosteiros da comunídade'v. Aparecem a seguir os "'crológicos, listas de defuntos na margem de um calendário que se lia IIrlllmente no oficio de prima, quer no coro quer no capítulo; e os obiItMIrios.que não são normalmente destinados à leitura, mas que recordam 01 serviços de aniversários fundados por certos defuntos e as obras de Misericórdia (distribuição de esmolas a maioria das vezes) que lhes estão lIaadas. K. Schmid e J. Wollash sublinharam a evolução a que se assistiu, di época carolíngia (séculos IX-X) para os tempos da reforma gregoriana (11mdo século XI). Em particular, passou-se das menções globais para as menções individuais. Os libri memoriales carolíngios contêm de 15 000 a 40 000 nomes. Os necrológicos de Cluny só mencionam entre 50 e 60 numes por dia de calendário. Daqui em diante «a recordação litúrgica garantida por muito tempo para os mortos individualmente inseriaol». O tempo da morte individual'f impõe-se a partir de então nos realltos mortuários. K. Schmid e J. Wollash insistiram também no papel da
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ordem de Cluny nesta evolução. Como dissera W. Jorden, «existe uma originalidade cluniacense no cuidado com os mortos"?». Cluny, com efeito, obedecendo ao carácter elitista destas uniões entre mortos e vivos que dizem respeito aos grupos dirigentes, estende ao conjunto dos defuntos, de maneira solene e uma vez por ano, a atenção da liturgia. De facto, no meio do século XI, provavelmente entre 1024 e 1033, Cluny institui a celebração dos defuntos no dia 2 de ~ovembro, logoa seguir à festa de Todos-os-Santos que tem lugar na vespera. O presugío da ordem entre a cristandade é tal que a «festa dos Mortos» em breve' celebrada por toda a parte. Este laço suplementar e solene entre os vivos. os mortos prepara o terreno onde vai nascer o Purgatório. Mas Cluny preparou o Purgatório de maneira ainda mais precisa. Pouco depois da morte do abade Odilon (1049), o monge Jotsuald, na vida do santo abade que escreveu, relata o seguinte facto:
o senhor abade Ricardo contou-me esta visão de que eu já ouvira fal mas de que não guardei qualquer recordação. Um dia, disse-me ele, um mon de Rouergue regressava de Jerusalém. Mesmo no meio do mar que se esten da Sicília a Tessalonica, deparou com um vento muito violento, que empurro o seu barco para um ilhéu rochoso onde vivia um eremita, servo de De. Quando o nosso homem viu o mar acalmar-se, conversou com o. ere~ sobre isto e aquilo. O homem de Deus perguntou-lhe qual a sua nacionali de e ele respondeu .que era da Aqunânia. Então o homem de Deus quis sa se ele conhecia um mosteiro que tinha o nome de Cluny e o abade desse lu chamava-se Odilon. Ele respondeu: «Conheci-o e até muito bem, mas gos de saber porque me fazes essa pergunta.» E o outro: «Vou dizer-to e intimoa que te recordes do que vais ouvir. Não longe de nós encontram-se luga que, pela manifesta vontade de Deus, cospem com a maior violência um fo ardente. As almas dos pecadores ali se purgam em suplícios vários durante determinado tempo. Uma multidão de demónios está encarregada de renov incessantemente os seus tormentos: reanimando as penas dia a dia, toman as dores cada vez mais insuportáveis. Muitas vezes ouvi os lamentos d homens que se queixam com veemência: a misericórdia de Deus permite, efeito, que as almas desses condenados sejam libertadas das suas penas pe preces dos monges e pelas esmolas dadas aos pobres em lugares santos. N suas lamentações eles dirigem-se, principalmente, à comunidade de Clunye seu abade. Assim, eu te conjuro por Deus, se tiveres a felicidade de voltar junto dos teus, a dares a conhecer a essa comunidade tudo o que ouviste minha boca, e a exortares os monges a multiplicarem as suas preces, as vigi e as esmolas para o repouso das almas mergulhadas em penas, para que a haja mais alegria no céu, e o diabo seja vencido e humilhado.» De regresso ao seu país, o nosso homem transmitiu fielmente a sua m sagem ao santo padre abade e aos irmãos. Ao ouvi-lo estes, com o cora transbordante de alegria, deram graças a Deus, juntaram preces a outras ces, esmolas a outras esmolas e trabalharam obstinadamente para o repo 150
dos defuntos. O santo padre abade propôs a todos os mosteiros que no dia a seguir à festa de Todos-os-Santos, no primeiro dia das calendas de Novembro, se celebrasse por toda a parte a memória de todos os fiéis para assegurar o repouso das suas almas; que fossem celebradas missas com salmos e esmolas em público e em privado; que fossem distribuídas esmolas sem limite a todos pobres: assim o inimigo diabólico receberia golpes duríssimos e, padecendo naquela geena, o cristão acalentaria a esperança da misericórdia divina. Alguns anos mais tarde o célebre monge e cardeal italiano Pedro Damião escreveu por sua vez uma vida de Odilon quase inteiramente copiada da de Jorsuald, através da qual este episódio se celebrizou+". Jacopo da Varazze dele se fez eco na Lenda Dourada, no século XIII: «S. Pedro Damião conta que S. Odilon, abade de Cluny, tendo descoberto que junto de um vulcão na Sicília se ouviam frequentemente gritos e lamentos de demónios queixando-se de que as almas dos defuntos eram arrancadas das luas mãos pelas esmolas e as preces, ordenou que nos mosteiros se fizesse, • seguir à festa de Todos-os-Santos, a celebração dos mortos. O que depois foi aprovado por toda a Igreja.» Jacopo da Varazze escreveu em meados do século XIII: ele interpreta, pois, a história em função do Pu raltlório que, daía em diante, já existe. Mas quando Jotsuald e Pedro Damião redigem a Vida de Odilon, o Purgatório está ainda para nascer. Cluny dá uma indicação essencial; eis um lugar bem definido: uma montanha que cospe fogo, e está criada uma prática litúrgica fundamental: os mortos, e especialmente aqueles que têm necessidade de sufrágios, passam •• ler o seu dia no calendário da Igreja.
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«et quodam purgatorio igne purganda» (PL, 83, 757). JULIÃO DE TOLEDO, Prognosticon, livro 11, PL, 96, 475-498. L'ignis purgatorius ocupa as colunas 483-486. A importância de Julião de Toledo por ter aperfeiçoado a doutrina do Purgatório no século XII, especialmente em Pierre Lombard, foi estudada por N. WICKI, Das «Prognosticon futuri saeculi»; Julians VOII Toledo ais Quellenwerk der Sentenzen des Petrus Lombardus. 3 Liber de ordine creaturarum. Un anonimo irlandés dei siglo VII. ed. M. C. Diaz y. Diaz, S. Tiago de Compostela, 1972. Um único reparo: a excelente edição de Diaz y Diaz tem tendência para apresentar a obra de uma maneira um pouco anacrónica. No estudo da estrutura, p. 29, é forçar o texto dizer: inflemo (cap. XIII), purgatorio (cap. XIV) y gloria (cap. XV-XVI). Também a tradução do capítulo XIV cujo título nOI, manuscritos que o apresentam é de igne purgatorio, «do fogo purgatório», está traduzido em espanhol por del purgatorio, do purgatório, título duplamente erróneo, prímeiro porque será preciso esperar cinco séculos para que o Purgatório exista, e depois porque este tratado é um nítido retrocesso quanto à evolucação geral da doutrina que conduzirá ao Purgatório. 4 Como observa judiciosamente Diaz y Diaz estes «pecados» têm sobretudo sentido nos meios monásticos. 5 SÃO COLUMBANO, Instructiones, Instruetio IX. De extremo judicio, PL, 246· -247. Videte ordinem miseriae humanae vitae de terra, super terram, in ferram, a terra /11 ignem, de igne injudicium, de judicio aut in geliennam, aut in vitam: de terra enim creatus es, terram calcas, in terram ibis, a terra surges, in igne probaberis, judicium expectabis, aeternum autem post haee supplicium aut regnum possidebis, qui de ferra creati, paululum super eam stantes, in eamdem paulo post intraturi, eadem nos iterum, jussu Dei, reddent ae projiciente, novissime per ignem probabimur, ut quadam arte terram et lutum ignl dissolvat, et si quid auri aut argenti habuerit , aut eaeterorum terrae uti/ium paracarassi« mo (paraeaximo) liquefaeto demonstret. 6 PL, 87, col. 618-619. 7 PL, 89, col. 577. 8 PL, 94, col. 30. 9 De fide Sanetae Trinitatis, Ill, PL, 101, 52. 10 Enarrationes in epistolas Pau/i, PL, 112, 35-39. II Expositio in Mattheum, II, 3, PL, 120, 162-166. 12 De varietate /ibrorum, Ill, 1-8 in PL, 118, 933-936. O comentário de S. Paulo l, Coríntíos, rn, 1013 encontra-se em PL, 117,525-527.
13 Expositio in epistolas Pauli, PL, 134,319-321. A passagem que trata dos pecados opostos é a seguinte: «attamen sciendum quia si per ligna, fenum et stipulam, ut beatus Augustinus dicit, mundanae cogitationes, et rerum saecularium cupiditates, apte etiam per uedem designantur levia, et venalia, et quaedam minuta peccata, sine quibus homo in hac vila esse non potest. Unde notandum quia, cum dixisset aurum, argentem, lapides pretio.IfIS, non intulit ferrum, aes et plumbum, per quae capitalía et criminalia peccata designantur (col. 321). 14 RATHIER DE VÉRONE, Sermo II, De Quadragesima, PL, 136,701-702. Morlu! enim nihil omnino faciemus, sed quodfecimus recipiemus. Quod et si aliquis pro nobis uliquit fecerit boni, et si non proderit nobis, proderit illi. De ilIis vero purgatoriís post obi um poenis, nemo sibi blandiatur, monemus, quia non sunt statutae criminibus, sed peccatis Irvioribus, quae utique per ligna, ferum et stipula indesignatur. Sobre este espantoso personagem e autor, natural mais de Liêge do que de Verona, ver Raterio di Verona, tonvegni dei Centro di Studi sulIa spiritualità pedievale, X, Todi, 1973. 15 PL, 150, 165-166. 16 Periphyseon, V, PL, 122,977. 17 De praedestinatione, capo XIX, De igni aeterno ... , PL, 122,436. 18 BURCHARD DE WORMS, Decretorum libri XX, 68-74, PL. 140, 1042-1045. 19 Acta synodi Atrebatensis Gerardi I Cameracensis Episcopi, capo IX, PL, 142, 1298-1299. 20 Resumo a visão de Tespésio segundo E. J. BECKER. A contribution to the romparative study of the Medieval Visions 01 Heaven and Hell, with special Reference IfI lhe Middle English Versions, Baltimore, 1899, pp. 27-29 e a visão de Timarco segundo H. R. PATCH, The other World according to descriptions in medieval literature, ClImbridge, Mass., 1950, pp. 82-83. 21 P. DINZELBACHER, «Die Visionen des Mittelalters» in Zeitschrift lür Reli./ons und Geistesgischichte, 30, 1978, pp. 116-18 (resumo de um Habilitation Schrift IIIMito, Vision und Visionsliteratur im Mittelalter, Estugarda, 1978). Do mesmo autor, wKlassen und Hierarchien irn Jenseits» in Miseellanea Medievalia, vol. 12/1. Soziale Urdnungen im Selbsverstãndnis des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 20040. Claude Carozzi prepara uma tese sobre as «Viagens do Além na Alta Idade Média». 12 Ver Kuno MEYER, edição e tradução em inglês. The voyage of Bran son of ""'/w/ 10 the land of the living ..., 2 vol., Londres, 1895-1897. A obra inclui um estudo 11" Alfred NUTT, The happy other-world in the mythico-romantic literature of lhe Irish. '1".,. celtie doctrine of re-birth, que mostra as raizes celtas de um eventual purgatório Mflllradisíaco». II Cf. MAURER, «Die H61le auf Island» in Zeitschrift des Vereins für Volkskunde, IV 1894, p. 256 e ss. Ver também H. R. ELLIS, The Road to Hell. A study of the fI'lIIC'l'ptionof the Dead in Old Norse Literature, Cambridge, 1943. Sobre o «Valhõle» CVlllhalla)ver G. DUMÉZIL, Les Dieux des Germains, n. ed., 1959, p. 45. Do ponto de vlltu da cultura popular gerrnânica moderna, cf. H. SIUTS, Jenseitsmotive deutschen Volhmiirchen, Leipzig, 1911. 14 Carmen ad Flavium Fe/icem de resurrectione mortuorum et de iudicio Domini, ed. J 11. Waszink, Bona, 1937. l~ Sobre Bede historiador ver os artigos de P. H. BLAIR, «The Historical writings til Béde» e de Ch. N. L. BROOKE, «Historical Writing in England between 850 e 11,o» na compilação La Storiografia altomedievale, Spoleto (1969), 1970, pp. 197.lll c 224-247. E também J. M. WALLACE-MADRILL, Early Germanic Kingship //1 ":nJÇ/andand on lhe continent , Oxford, 1971, capo IV, «Bêde», pp. 72-97.
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NOTAS
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26 Historia ecc/esiastica gentis Anglorum, 111, 19. A primeira Vila Fursei, quase copiada por Bêde, foi publicada por B. KRUSCH em Monumenta Germaniae Historica. Scriptores rerum merowingicarum, t. IV, 1902, pp. 423-451. 27 «Vallis ilIa quam aspexist! flammis ferventibus et frigoribus horrenda rigidis, ipse est locus in quo examinandae et castigandae sunt animae illorum, qui differentes confiten et emendare scelera quae fecerunt, in ipso tandem articulo ad poenitentiam confugiunt, et sic de corpore exeunt: qui tamen quia confessionem et poenitentiam vel in morte haJJuerunt, omnes in die iudicii ahd regnum cae/orum perveniunt. MuItos autem preces viventium et ellemosynae et jejunia et maxime celebratio missarum, ut etiam ante diem judicil liberentur, adjuvant » 28 A visão de Drythelm será retomada nos séculos Xl e XII por autores importantíssimos: Alfric nas suas homilias (ed. B. Thorpe, vol. lI, 1846, p. 348 e ss.), Otloh de Saint-Emmeran no seu Liber Visionum (PL, 146,380 e ss.) e o cisterciense Hélinand de Froimont na passagem do século XlI para o século XIII (PL, 212, 1059-1060). 29 Visio Guetini in PL" 105, 711-780 e também em Monumenta Germaniae Historica Poetae latini, t. 11. A versão poética de Walahfrid Strabo foi editada, traduzida 11 comentada num excelente estudo de David A. TRAILL, Walahfrid Strabo's Visto Wettini: text, translation and commentary, Francfort si Main, 1974. 30 O Salmo CXVIII na numeração da Bíblia grega e da Vulgata (que era a Bíblia de que se servia na Idade Média) é, segundo a numeração hebraica hoje habitualmente utilizada, o Salmo CXIX, do qual os editores da Bíblia de Jerusalém dizem: «litanía da realidade, ardente e incansável... todos os anseios do coração dele se exprimem; Deus, que fala, que dá a sua lei meditada, amada e guardada, é a fonte da vida, da segurança, da felicidade verdadeira e total,» 31 B. de GAIFFIER, «La légende de Charlemagne. Le péché de l'empereur et SOB pardon» in Études critiques d'hagiographie et d'iconoíogie, Bruxelas, 1967, pp. 260-275 .: 32 Ver W. LEVISON, «Die Politik in den Jenseitsvisionen des frühen Mittelalters», Aus rheinischer undfrãnkischer Frühzeit, Dusselford, 1948. Este texto foi incluído por Hariulf, cerca de 110, na sua Chronique de saint Riquier (ed. F. Lot, Paris, 1901, pp. 144-148); por Guilherme de Malmesbury no século XlI no seu De Gestis regnum Anglorum (ed. W. Stubbs I, pp. 112-116) e por Vincent de Beauvais no seu Speculum no século XIII. Encontramo-lo isolado em muitos manuscritos. Os monges de Saint-Denis atribuíram-no ao seu benfeitor Carlos, o Calvo. É uma daa numerosas falsificações executadas naquela abadia. A que diz respeito ao pseudo-Dionísio, convertido por S. Paulo e suposto fundador do mosteiro, foi denunciada no princípio do século XII por Abelardo, o que contribuiu para os seus dissabores. 33 O imperador Luís lI, o Germânico. 34 A tradução é a de R. LATOUCHE in Textes d'histoire médiévale du V' ou siêcle, Paris, 1951, p. 144 e ss. Sobre Luís, o Cego, consultar R: POUPARDIN, LI Royaume de Provence sous les Carolingiens, Paris, 1901, Apêndice VI, La Visio /(aroU. Crassi, pp. 324-332. Na «Vision de Rotcharius» que, tal como a «Vision de Wetti», data do começo do século IX (ed. W. Wattenbach in Auzeigen für Kundeder deutschen Vorzeit, XXII, 1875, col. 72-74) e quando os pecadores são expurgados dos seus pecados mergulhando-os no fogo até ao peito enquanto Ihes deitam água a ferver sobre • cabeça, Carlos Magno está entre os eleitos porque as preces dos fiéis o arrancaram ao castigo. 3S Fecunda Ratis, de EGBERT DE LlEGE, ed. Voigt, Halle, 1889. 36 Cf. D. SICARD, La Liturgie de Ia mort dans I'Église latine des origines à Ia réforme carolingienne, Liturgiewissenschaftliche Quellen und Forschungen. Verõffen-
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llichungen des Abt-Herwegen - Instituts der Abtei Maria Laach, vol. 63, Munique, 1978. O texto latino das três orações encontra-se nas páginas 89-91. A oração galicana tala dos três patriarcas e não apenas de Abraão. Ao «Teu amigo Abraham» são acrescentados «o eleito Isaac» e «o teu amado Jacob». Também no sacramentário gelasiano Não referidos nos seios (in sinibus) dos três patriarcas. 37 Ver o excelente estudo de J. NTEDIKA, L'Évocation de l'au-delà dans Ia priêre pour les morts. Étude de patristique et de liturgie latines (IV'- Vlll" siécle), Lovaina-Paris, 1971, principalmente pp. 118-120. 38 São os termos de B. CAPELLE, «L'intercession dans Ia messe romaine» in Revue bénédictine, 1955, pp. 181-191. Retomados in Travaux liturgiques, tomo 2, 1962, pp. 248-257. 39 D. SICARD, La Liturgie de Ia mort ... , p. 412. Sobre a primeira ressurreição, ver D. B. BOTTE, «Prima ressurectio. Un vestige de millénarisme dans le liturgies occidentales» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 15, 1948, pp. 5-17. A noção durará, apoiada no Apocalipse. Encontramo-Ia, por exemplo, num opúsculo sobre a confissão de Guy de Southwick do fim do século XII publicado por Dom. A. WILMART in Recherches de Théologie ancienne et médiévale, 7, 1935, p. 343. 40 J. LECLERCQ, «Documents surla mort des moines», in Revue Mabillon, XLV, 1955, p. 167. 41 Cf. N. HUYGHEBAERT, Les documents nécrologiques, in Typologie des Sources du Moyen Âge occidental, fase, 4, Turnhout, 1972, J.-L. LEMA~TRE, «Les obituaires français, Perspectives nouvelles», in Revue d'Histoire de l'Eglise de France, I.XIV, 1978, pp. 69-81. Só restam 7 libri vitae. Um deles, o de Remiremont, foi objecto de uma edição exemplar de E. HLADWITSCHKA, K. SCHMID e G. TELLENRACH, Liber Memorialis von Remiremont, Dublin e Zurique, 1970. Cf. G. TELLENDACH «Der liber memorialis von Remiremont. Zur kritischen Erforschung und zum Quellenwert liturgischer Gedenkbücher» in Deutscher Archiv für Erforschung des Mittrlalters, 35, 1969, pp. 64-110. 42 Uma bibliografia sobre os rolos dos mortos encontra-se nos artigos de J. DU"OUR, «Le rouleau mortuaire de Bosson, abbé de Suse (c. 1130)) in Journal des savants, pp. 237-254, e «Les rouleaux et encycliques mortuaires de Catalogne (1008·1112)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, XX, 1977, pp. 13-48. 43 K. SCHMID e J. WOLLASCH, «Die Gemeinschaft des Lebenden und Verstorbenen in Zeugnissen des Mittelalters» in Frühmittelaltareliche Studien, I, 1967, pp. 365·405. 44 W. JORDEN, Das cluniazensische Totengedâchtniswesen, Munique, 1930. J.-L. LEMAiTRE, «L'inscription dans les nécrologes clunisiens» in La Mort du Moyen Âge (colóquio da Sociedade dos historiadores medievistas do ensino superior público, 1975), Estrasburgo, 1977, pp. 153-167. 4S O texto de Jotsuald encontra-se em Patrologie latine, tomo 142, colunas 888-891, c o de Pedro Damião no tomo 144, colunas 925-944.
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PARTE 11
O SÉCULO XII: O NASCIMENTO DO PURGATÓRIO
o SÉCULO
DA GRANDE EXPLOSÃO
O século XII é o século da explosão da cristandade latina. O sistema das relações sociais modificou-se, após uma lenta maturação. A escravatura desapareceu definitivamente, o enorme domínio da Antiguidade tardia e da Alta Idade Média transformou-se profundamente. Instalou-IC o sistema senhorial, organizando uma dupla hierarquia, um duplo domínio. Uma primeira clivagem, fundamental, separa os dominadores, 011 senhores, da massa dos camponeses submetidos ao direito de comando sobre o território senhorial. Em função deste direito, os senhores retiram aos camponeses uma parte importante do produto do seu trabalho, sob a forma de rendas em géneros e, cada vez mais, em dinheiro (também em prestações de mão-de-obra, mas as corveias começam a diminuir): é a renda feudal. Dominam a massa dos camponeses (os aldeões, os que ficam no feudo, os vilões, os homens do antigo domínio. que são também, moralmente, criaturas desprezíveis) por meio de tudo um conjunto de direitos dos quais os mais significativos, juntamente com as cobranças económicas, decorrem do seu poder de justiça. No interior da classe dominante estabelece-se uma segunda clivagem. Â aristocracia dos possuidores dos principais castelos subjuga a pequenll e média nobreza dos cavaleiros pelos laços de vassalagem. Em troca de um conjunto de serviços, sobretudo militares mas também de assisltncia e de conselho, o senhor concede ao vassalo a sua protecção e rurnece-Ihe frequentemente meios de subsistência, no geral uma terra, n [eudo. O conjunto deste sistema constitui a feudalidade. Sendo juridicamente bem definida apenas para a camada superior, feudo-cvassálica»; ela só IxiKtee funciona através das relações que ligam senhores e camponeses, prlllmente definidas de uma maneira um tanto vaga como costume. Esta feudalidade é uma das encarnações históricas de um tipo de sis"ma mais vasto, o feudalismo, que existiu (ou ainda existe) em diversas rtlliões do mundo e em épocas diferentes. Este sistema, muito duro para a 159
massa dos dominados, permitiu no entanto no conjunto da sociedade uma explosão excepcional. Esta manifesta-se, em primeiro lugar, pelo número de pessoas: entre o começo do século XI e meados do século XIII, a população da cristandade latina duplica quase completamente. Manifesta-se também no campo: extensão das superficies, melhores rendimentos ligados à multiplicação dos processos e aos progressos tecnológicos. É espectacular, com o desenvolvimento urbano apoiado na exploração do excedente agrícola, a mão-de-obra artesanal, a renovação do comércio com a criação de um meio urbano ligado às estruturas feudais e que nelas introduz um elemento novo parcialmente negador: as classes médias livres: artesãos, comerciantes, de onde sai a burguesia com um sistema de novos valores ligados ao trabalho, ao planeamento, à paz, a uma certa igualdade, um hierarquia horizontal e não vertical onde os mais poderosos ultrapassam os outros sem os dominar. Surgem novos sistemas descritivos e normativos da sociedade, oriundos da velha ideologia tripartida indo-europeia reforçada pela evolução histórica. O clero está empenhado nas estruturas feudais como parte integrante do domínio senhorial (os feudos eclesiásticos contam-se entre os mais poderosos) e passa a ser o garante ideológico do sistema social, mas escapa a ele pela dimensão religiosa. O seu sentimento de superioridade é exaltado pela reforma gregoriana segundo a qual os clérigos formam uma sociedade de celibatários que se furtam à mácula sexual, e estão em contacto directo com uma sacralidade que administram de acordo com a nova teoria dos sete sacramentos. A evocação da igualdade dos fiéis e da superioridade dos valores éticos e religiosos em relação às formas sociais e laicas também permite ao clero afirmar-se como a primeira ordem, aquela que ora. Os nobres, cuja função específica é a guerreira num momento em que o armamento e a arte militar também mudam (armamento pesado para o homem e para o cavalo, campanhas organizadas à volta da rede dos castelos fortificados) formam a segunda ordem, aquela que combate. Enfim, novidade significativa, aparece uma terceira ordem, aquela que trabalha, quer se trate de uma elite rural cujo papel foi impor-" tante no arroteamento e conquista do solo, quer da massa laboriosa, rural e depois também urbana. Reconhece-se aqui o sistema da sociedade tripartida definida no começo do século XI e que se desenvolve no século XII: oratores, bellatores, laboratores1• Explosão social, pois, sancionada por um novo sistema de representações. Mas a explosão do século XII é um movimento de expansão geográfica e ideológica: é o grande século das Cruzadas. E é também, dentro da própria cristandade, espiritual e intelectual, com a renovação monástica de que foram expressão os cartuxos, os agostinianos e sobretudo os eistercienses, com as escolas urbanas onde nascem simultaneamente uma nova concepção do saber e novos métodos intelectuais: a escolástica.
O Purgatório é um elemento desta expansão no imaginário social, na geografia do além, na certeza religiosa. Uma peça do sistema. É uma conquista do século XII. VOU agora restringir e aprofundar pouco a pouco a minha investigação. Vou examinar de mais perto, e à medida que ela se constitui, a lógica do Purgatório. Adoptarei uma forma sistemática segundo duas orientações. Uma, teológica, seguirá os desenvolvimentos do sistema da redenção e estará estreitamente ligada ao desenvolvimento das concepções do pecado e da penitência, e de uma doutrina articulada dos objectivos últimos. A outra, imaginária, precisará a natureza e as funções do fogo, e depois construirá o lugar da purgação no além. A minha pesquisa de geografia e de sociologia culturais, que até agora procurou abarcar o conjunto das expressões do além em toda a cristandade, concentrar-se-á, sem desprezar qualquer testemunho importante, nos lugares e nos meios onde se tomará a decisão, onde nascerá o Purgatório. Referenciarei e definirei os centros da elaboração teológica e doutrinária final, e as regiões onde a geografia imaginária do além se firmará nas realidades geográficas cá de baixo. Por fim, como o fenómeno me parece exprimir uma grande mutação da sociedade, analisarei a maneira como o Purgatório acontece, neste parto de uma sociedade nova. Será esta a tentativa quádrupla da parte central deste livro.
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NOTAS
1 Ver o grande livro de G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme, Paris, 1979 [tradução portuguesa de Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. A ideologia tripartida indo-europeia foi revelada pela obra magistral de Georges Dumézil. _ . Descrição do estado das questões e dos problemas por J. Le GOFF, «Les trois fonctions indo-europêennes, I'historien et I'Europe fêodale», in Annales, E.S.C. 1970, pp. 1187-1215.
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IV - O FOGO PURGATÓRIO
No início do século XII: aquisições e indecisões
No início do século XII a atitude para com os mortos, tal como podemos conhecê-Ia através dos documentos emanados do clero, da Igreja, ~ a seguinte: depois do Julgamento Final haverá dois grupos de homens pura a eternidade: os eleitos e os condenados ao Inferno. A sua sorte será essencialmente determinada pela sua conduta em vida: a fé e as boas obras decidirão da salvação, a impiedade e os pecados criminais conduzirão ao Inferno. Entre a morte e a ressurreição a doutrina não se define bem. Segundo alguns, depois da morte os defuntos esperam nos túmulos ou numa região sombria e neutra parecida com o túmulo como o shéo/ do Antigo Testamento, o Julgamento que decidirá da sua sorte definitiva. Para outros, mais numerosos, as almas serão recebidas em diversos receptáculos. Entre estes receptáculos há um que se distingue: é o seio de Abraão que recolhe as almas dos justos as quais, enquanto esperam pelo Paraíso propriamente dito, vão para um lugar de refrigério e de paz. Para " maioria - e esta opinião parece ter a preferência das autoridades ecle.iásticas - existe, imediatamente depois da morte, uma decisão definitiva para duas categorias de defuntos; os que são inteiramente bons, os mártires, os santos, os justos integrais, que vão logo para o Paraíso e gozam da presença de Deus, recompensa suprema, a visão beatífica; os que são Inteiramente maus vão logo para o Inferno. Entre os dois, pode haver uma ou duas categorias intermédias. Segundo Santo Agostinho, aqueles que não são inteiramente bons serão sujeitos a uma prova antes de irem para o Paraíso, e os que não são inteiramente maus irão para o Inferno mas aí beneficiarão talvez de uma condenação mais tolerável. Segundo a maioria daqueles que acreditam na existência de uma categoria intermêdia, esses mortos que aguardam o Paraíso serão submetidos a uma purIllção. Aqui as opiniões divergem. Para uns essa purgação terá lugar no momento do Julgamento Final. Mas entre os que perfilham esta opinião, 163
as posições são diferentes. Uns acham que todos os mortos - incluindo os justos, os santos, os mártires, os apóstolos e até mesmo Jesus - serão sujeitos a essa prova. Para os justos será uma formalidade sem consequências; para os ímpios será a condenação; para os q~ase perfe~tos, uma purgação. Outros pensam que apenas aqueles que nao forem Imediatamente para o Paraíso ou para o Inferno sofrerão este exame. Em que consistirá essa purgação? A imensa maioria calcula que será uma espécie de fogo - baseando-se sobretudo na primeira epístola de Paulo aos Coríntios (lJI, 10-15). Mas alguns pensam que os instrumentos dessa purgação são diversificados e falam de «penas purgatórias» (poenae purgatoriae). Quem merecerá submeter-se a este exame que, por muito penoso que seja, é uma garantia de salvação? A partir de Agostinho e de Gregório, o Grande, sabe-se que só os mortos que apenas têm a expiar pecados leves ou que antes de morrer se arrependeram sem terem tido tempo de fazer penitência na terra e que, de qualquer modo, tiveram uma vida bastante digna e suficientemente marcada por boas obras, merecerão essa «repescagem». Quando terá lugar essa purgação? Segundo Agostinho pensava-se, de um modo geral, que ela terá lugar entre a morte e a ressurreição. Mas o tempo de purgação podia ultrapassar esse tempo intermédio a montante ou a jusante. Para o próprio Agostinho, as provações suportadas cá em baixo, as penas terrenas, podiam ser o começo da purgação. Para outros esta purgação continuava a fixar-se no momento do Julgamento Final e, neste caso, calculava-se em geral que o «dia» do julgamento duraria um certo tempo para permitir que a purgação fosse algo mais do que uma formalidade. Onde aconteceria essa purgação? Quanto a isto estava-se no vácuo, mais ainda do que na diversidade de opiniões. A maioria nada precisava a este respeito. Alguns supunham que havia um receptáculo das almas para esse efeito; Gregório, o Grande, nas suas historietas sugerira que. a purgação se fazia nos locais do pecado. Os autores de viagens imaginárias pelo além não sabiam bem onde situar o local onde se sofria esse fogo purgatório. A sua localização era empurrada, se assim se pode dizer, entre a concepção de uma parte superior do Inferno, mas no entanto subterrânea, materializada por um vale, e a ideia - lançada por Bede de uma montanha. Em suma, a maior indecisão reina sobre o caso desta categoria intermédia, e se a noção do fogo - bem distinto do fogo eterno da geena - 6 largamente aceite, a localização desse fogo tem sido silenciada ou evocada de maneira muito vaga. Dos Pais da Igreja aos últimos representantes da Igreja carolíngia o problema do além é essencialmente o da escolha entre a salvação que conduzirá ao Paraíso e a condenação que levará ao Inferno. Em definitivo, a crença que mais se enraizou entre os séculos IV e XI • que criou o terreno mais favorável ao aparecimento do Purgatório, foi a
prática das orações e, mais ainda, dos sufrágios pelos mortos. O conjunto dos fiéis encontra nela com que satisfazer ao mesmo tempo a sua solidariedade para com os parentes e os próximos além da morte e a esperança de, por sua vez, beneficiar depois da morte dessa mesma assistência. Agostinho, fino psicólogo e pastor atento, bem o disse em De Cura pro mortuis gerenda. Esta fé e estas práticas que exigem a intervenção da Igreja no sacrificio eucarístico designadamente - e com a qual ela beneficia, entre outras coisas, através das esmolas - asseguram-lhe um melhor domínio sobre os vivos pelo desvio do seu suposto poder a favor dos mortos. Como em muitos outros campos, o século XII vai acelerar as coisas; o Purgatório como lugar só nascerá no fim. Enquanto se espera, é o fogo purgatório o atiçado. Aqui pode ser necessária uma observação prévia. A utilização de um conjunto de textos do século XII é coisa delicada. A explosão geral desta época patenteia-se na produção escrita. Os textos multiplicam-se. Desde o século XVI e sobretudo nos séculos XIX e XX, os eruditos esforçaram-se por editar o maior número deles possível. Muitos continuam inéditos. A esta proliferação vieram acrescentar-se traços característicos do período. Para assegurar o êxito de uma obra, muitos clérigos dessa época não hesitam em lhe atribuir um autor ilustre ou conhecido. A literatura do século XII está inundada de apócrifos. Em muitos casos, os problemas de atribuição e de autenticidade não foram solucionados. A escolástica incipiente multiplicou, ainda por cima, tex1011 bem difíceis de atribuir a um autor, seé que esta palavra tem aqui Illgum sentido: quaestiones, determinationes, reportationes, muitas vezes oriundas de notas tomadas por um aluno num curso de um mestre. Com frequência, o escriba misturou palavras autênticas do mestre com •• suas próprias formulações ou as de outros autores contemporâneos. Bnfim, é raro possuirmos o original. Os manuscritos de que dispomos foram escritos numa época posterior, entre os séculos XIII e XV. Num certo número de casos, os escribas substituíram, inconscientemente ou pensando agir bem (pois na Idade Média o que inspira os homens é a husca da verdade eterna e não da verdade histórica), determinada palavrn do texto original por uma outra ou por uma expressão do seu tempo". N40 foi possível neste estudo eliminar algumas incertezas que têm a ver 110m o facto de a ciência da Idade Média estar ainda hoje inacabada, mas sobretudo e em definitivo, com a literatura religiosa do século XII, cuja múltipla expansão continua a ser difícil de apreender nas malhas da ciênol. actual (justamente) obcecada com a identificação de autores e de da'Ições concisas. A convergência das minhas pesquisas e das minhas In.lises parece-me conclusiva: antes de 1170, no mínimo, não existe Purplorio.
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Mas os textos multiplicam-se, o interesse pelo que se passa entre a morte e o Julgamento Final manifesta-se cada vez mais, a desordem das exposições é também testemunho de pesquisa, a preocupação com a localização é cada vez mais visível.
Um testemunho das hesitações: Honorius Augustodunensis Um bom testemunho é o do misterioso Honorius Augustodunensis, provavelmente um irlandês que passou a maior parte da sua vida religiosa em Ratisbonne. Decerto Honorius, de quem M. Cappuyns disse que foi sem dúvida o único discípulo medieval de João Scoto Erigeno, tem ideias originais sobre o além. Para ele, os lugares do além não existem materialmente. São «lugares espirituais». O termo «espiritual» é ambíguo, pode ocultar uma certa corporalidade ou designar uma realidade puramente simbólica, metafórica. Honorius hesitou entre duas tendências. Na Scala coeli major, onde parece inclinar-se para o sentido completamente imaterial, tempera no entanto esta opinião com uma teoria de sete infernos (dos quais o mundo terreno é o segundo), mais ou menos materiais ou imateriais", O que me interessa em Honorius são dois elementos da sua obra. O primeiro é precisamente a sua viva critica à visão espacial da vida espiritual. Em Scala coeli major, interpreta como puramente metafórica a localização dos infernos debaixo da terra - inter-relacionando a inferioridade, o peso e a tristeza. E conclui: «todos os lugares têm um comprimento, uma largura e uma altura, mas a alma, como é desprovida de todos estes atributos, não pode ser encerrada em lugar algum!». Ideia esta que reaparece no seu Liber de cognitione verae vitae: «Mas parece-me o cúmulo do absurdo fechar em lugares corpóreos as almas e os espíritos, uma vez que eles são incorpóreos, sobretudo pelo facto de todo o lugar poder ser medido em altura, comprimento e largura, enquanto o espírito, é bem sabido, é desprovido de todos estes atributos?». Pode supor-se que, se um pensamento como o de Honorius tivesse triunfado, o Purgatório, essencialmente ligado à sua localização, não teria nascido, ou teria permanecido uma crença secundária e atrofiada. Mas paradoxalmente, numa outra obra, um tratado das principais verdades cristãs sumariamente expostas, uma espécie de catecismo, o Elucidarium, Honorius fala do fogo purgatório e essa passagem ocupa um lugar importante no processo da gestação do Purgatório. No terceiro livro do Elucidarium, que é um diálogo, Honorius responde a perguntas sobre a vida futura. Num interrogatório sobre o Paraíso, ele precisa que não se trata de um lugar corporal mas da morada espiritual dos bem-aventurados situada no céu intelectual onde podem contemplar Deus 166
cara a cara. Então é para lá, perguntam-lhe, que são conduzidas as almas dos justos? E para lá que são conduzidas, ao abandonarem os corpos, as almas dos perfeitos, responde ele. E esses perfeitos, o que são? pergunta-se. Aqueles que não se contentaram com fazer durante a vida o que está prescrito, mas fizeram ainda mais: os mártires, os monges, as virgens, por exemplo. Os justos estão noutras moradas. E os justos, quem são? Aqueles que simplesmente cumpriram de bom grado o que está prescrito. A seguir à morte a sua alma é levada pelos anjos para o paraíso terrestre, ou antes para um júbilo espiritual, pois os espíritos não habitam lugares corporais. Existe ainda outra categoria de justos que se chamam imperfeitos, mas que estão inscritos no livro de Deus, como por exemplo os esposos que, por causa dos seus méritos, são acolhidos em habitáculos muito agradáveis. Muitos deles, graças às preces dos santos e às esmolas dos vivos antes do Dia do Julgamento, são admitidos numa glória maior; após o Julgamento, todos irão reunir-se aos anjos. Existem também entre (lS eleitos defuntos que estão longe da perfeição e que não chegaram a fazer penitência pelos seus pecados; estes, tal como o filho culpado que é entregue ao escravo para ser chicoteado, são entregues aos demónios, com permissão dos anjos, para serem expurgados. Mas os demónios não podem atormentá-los mais do que eles merecem ou do que os anjos permitem. O problema que se segue diz respeito aos meios de libertação desses imperfeitos. O mestre, quer dizer Honorius, responde que eles consistem nas missas, nas esmolas e nas orações e outras obras piedosas sobretudo Me,em vida, eles as praticaram em intenção de outros. São libertos dessas penas uns no sétimo dia, outros no nono, outros passado um ano e outros Ilinda mais tarde. Honorius explica então - segundo uma misteriosa aritmética simbólica - a razão da duração destes periodos. Fazem-lhe por fim a pergunta que de mais perto toca o nosso estudo:
o DISCÍPULO:
O que é o fogo purgatório? O MESTRE: Alguns sofrem a purgação nesta vida: ou por dores fisicas que os males lhes provocam, ou provações fisicas que impõem a si mesmos por meio de jejuns, de vigílias ou outras; ou é a perda de pessoas queridas ou de bens a que estão apegados, ou dores e doenças, ou privações de alimento ou de vestuário, ou, enfim, a crueldade da sua morte. Mas depois desta, a purgação torna a forma quer do calor excessivo do fogo quer do grande rigor do frio, quer de toda a espécie de provações, sendo a mais leve superior à maior que se possa imaginar nesta vida. Enquanto estão nisto, aparecem-Ihes de vez em quando os anjos ou os santos que eles honraram por alguma acção em vida, e estes trazem-lhes ar ou um perfume suave ou outra forma de alívio, até que, libertos, eles entrem nessa corte que não acolhe qualquer mácula. O DISCÍPULO: Sob que forma vivem eles lá? 167
o MESTRE: Sob a forma dos corpos que tiveram aqui em baixo. E diz-se que os demónios lhes dão corpos feitos de ar para que neles sintam os seus tormentos.
Até ao meio do século XII, e quase sempre a propósito do comentário à primeira epístola de Paulo aos Coríntios, a reflexão sobre a purgação dos pecados limita-se a uma evocação tradicional do fogo purgatório. Temos primeiro Bruno de Chartreux (que morreu em 1101) que alguns consideram um dos pais da escolástica, ao lado do grande Anselmo de Canterbury (que morreu em 1109). É o primeiro a ter uma escola propriamente dita e a propor um comentário escolar que conhecerá numerosas alterações, precisamente um Comentário sobre As Epístolas de S. Paulo. Alguns atribuem esta obra a um autor próximo de Bruno, geralmente a Roul de Laona (que morreu em 1136), irmão de Anselmo e o mais conhecido dos representantes da escola de Laona, a mais brilhante escola
teológica do início do século XII. No comentário à primeira epístola de Paulo aos Coríntios diz-se, na linha do pensamento agostiniano, que uqueles que amaram o mundo mas sem o preferir a Deus serão salvos, mas depois de terem sido punidos pelo fogo. Aqueles cuja obra foi de madeira serão punidos durante muito tempo pois a madeira arde lentamente; aqueles cuja obra foi de feno, que o fogo consome depressa, escaparão mais depressa à provação ígnea; por fim, aqueles cuja obra foi de palha que o fogo consome ainda mais depressa, passarão mais rapidamente através do fogo". Nascido em Tournai cerca de 1187, Guerric, atraído por S. Bernardo, entrou em Clairvaux por volta de 1125 e em 1138 tornou-se o segundo abade da abadia cisterciense de Igny, fundada em 1128 por S. Bernardo entre Reims e Soissons, e lá morreu «cheio de dias», quer dizer muito idoso, em 1158. Dele se conservaram 54 sermões" destinados aos monIles. No quarto e quinto sermões, onde trata da purificação da Virgem Maria, fala também do fogo purgatório. Guerric, que parece ter sofrido 11 influência de Orígenes, pensa que a purificação deve começar cá em baixo, e tem tendência para identificar o fogo purgatório do além com li fogo do julgamento. Declara, por exemplo, no quarto sermão para a purificação: «Pois é mais seguro, meus irmãos, e é mais suave ser-se purgado pela fonte do que pelo fogo! Decerto, aqueles que não foram purgados pela fonte deverão sê-lo pelo fogo, se merecerem ser purgados, no dia em que 11 juiz em pessoa, tal como um fogo pronto a fundir, estará ocupado a fundir e a depurar a prata e purgará os filhos de Levi (Malaquias, III, 2·3)... O que afirmo sem hesitação é que se o fogo que o Senhor Jesus enviou à terra vier a arder em nós com o ardor desejado por aquele que o enviou, o fogo purgatório que purgará, quando do julgamento, os filhos de: Levi não encontrará em nós nem madeira, nem feno, nem palha para consumir. É certo que cada um deles é fogo purgatório, mas de maneira bem diferente. Um purifica pela sua unção, o outro pela sua queimadura. Aqui um orvalho refrescante; ali um sopro vingador (spiritus judicii), um sopro que queima ... » E ainda: «E se essa caridade não é suficientemente perfeita para cobrir tantos e tais pecados, esse fundidor que purga os IlIhos de Levi emprega então o seu fogo: todo o que resta de fuligem é consumido pelo fogo da atribulaçâo presente ou futura, para que possam tlnalmente cantar: "Passámos pela água e pelo fogo e tu conduziste-nos refrigério" (Salmo LXV, 12). Assim se passa neste mundo: primeiro baptizado pela água do dilúvio, purgado a seguir no fogo do julgamento, ele passará a um novo estado, incorruptivel.» O tema, com toques agostinianos, reaparece no quinto sermão para a purificação: «Desgraçados de nós se esses dias (cá em baixo) terminarem sem a purgação estar terminada, e se a seguir tivermos de ser purgados
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Após algumas explicações pouco esclarecedoras sobre a relação entre o corpo e a alma, Honorius fala do Inferno, ou antes, dos infernos, pois segundo ele existem dois. O inferno superior é a parte inferior do mundo terrestre que está cheia de penas: um calor insuportável, muito frio, a fome, a sede, dores diversas, quer corporais, como as que provêm de contusões, quer espirituais, como as que decorrem do medo ou da vergonha. O inferno inferior é um lugar espiritual onde há um fogo inextinguível e onde se sofrem nove espécies de penas especiais: um fogo que queima e não alumia e um frio insuportável, vermes imortais, especialmente serpentes e dragões, um cheiro horrível, ruídos inquietantes como martelos batendo em ferro, trevas espessas, uma mistura confusa de todos os pecadores, a visão horrível dos demónios e dos dragões visíveis por entre as cintilações do fogo, o clamor lastimoso dos choros e dos insultos e por fim anéis de fogo apertando os corpos dos condenados '. Este texto limita-se a retomar as ideias agostinianas, incluindo o começo da purgação ainda na terra, somente com um pouco mais de insistência no carácter metafórico de um além sobre o qual também Agostinho se interrogara por vezes se ele não seria mais simbólico do que material. E no entanto Honorius, alimentado sem dúvida por leituras e descrições visionárias, deixa passar uma imaginação que contradiz as suas ideias. Mais ainda do que o realismo destas evocações, parece-me que é o papel atribuído aos anjos e aos demónios, mais «medieval» do que agostiniano na linha de Gregório, o Grande, que constitui a eficácia deste texto na pré-história do Purgatório.
o fogo:
no meio monástico
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por esse fogo mais cruel (poenalius), mais vivo e mais violento do que podemos imaginar nesta vida! E quem, ao sair desta vida, é suficientemente perfeito e suficientemente santo para nada dever a esse fogo? .. É verdade que existem poucos eleitos, mas entre esses poucos existem mesmo poucos, penso eu, suficientemente perfeitos para terem realizado a purgação de que fala o sábio: "Purga-te da tua negligência para com o pequeno número"» (Eclesiastes, VII, 34). Na linha de Agostinho, Guerric não atribui muitas pessoas ao futuro purgatório. As Deflorationes sanetorum Patrum, a Anthologie des Péres, de Wemer lI, abade de Saint-Blaise falecido em 1174, muito influenciadas por Hugo de Saint-Victor", fazem alusão ao fogo purgatório num sermão sobre a queda de Adão: «Também depois da morte, diz-se, há um fogo purgatório (ignis quidam purgatorius) onde são purgados e lavados aqueles que começaram a sê-Ia cá em baixo e não terminaram ... É duro sofrer essas torturas, mesmo se forem num pequeno grau. Assim, mais vale começar eacabar cá em baixo o que devemos fazer. Mas se não se consegue acabá-Ia, desde que se tenha começado não se deve desesperar pois «tu serás ' salvo mas como através do fogo» (primeira epístola de Paulo aos Coríntios, lU, 10-15). O que tens em ti de criminoso arderá até ser consumido. Mas tu serás salvo, pois o amor de Deus ficou em ti como alicerce".»
Entre os teólogos urbanos Vou falar de novo da escola desse teólogo original que foi Gilberto Porreta, dito Gilbert de Ia Porrée, bispo de Poitiers, falecido em 1154 que, como o seu contemporâneo Abelardo, teve contas a ajustar com a Igreja. O seu comentário sobre S. Paulo é inédito, mas um fragmento do comentário sobre a primeira epístola aos Corintios que interpreta, sem lhe ser sempre fiel, o texto de Gilbert, e que data mais ou menos de 1150, retoma também a ideia de uma purgação aqui em baixo a ser terminada depois da morte, «pelo fogo». Precisa que esse fogo purgatório deve preceder o Julgamento FinallO• Também se fala no fogo purgatório na célebre abadia dos cónegos regulares de Saint- Victor, às portas de Paris, na base do monte Sainte-Geneviêve. Além do grande Hugo de Saint- Victor, cuja obra é uma das mais importantes para a prefiguração do Purgatório em vésperas do seu aparecimento, temos também, por exemplo, o testemunho de Achard, abade de Saint-Victor entre 1115 e 1161, bispo de Avranches desde 1161 até à morte em 1170 ou 1I71, no seu segundo sermão para a festa da consagração da Igreja. Ao tratar o simbolismo do martelo e do escopro de que se servem para construir a igreja, diz ele que se pode interpre170
tar o primeiro como o «terror do fogo eterno» e o segundo como «terror ,. 11 . I " {O lOgO purgatono»
Na literatura
vernácula
Percebe-se que as interrogações sobre a sorte dos defuntos depois da morte e os problemas do fogo purgatório ultrapassam os limites do meio eclesiástico. Não só são discutidos nas escolas abertas nas periferias urbanas, não só se fala deles nas prédicas monásticas, mas também se difunde o seu conhecimento nos sermões dos quais apenas temos, salvo raras excepções, a versão escrita em latim e que eram pronunciados em linguagem vulgar quando os padres se dirigiam aos laicos'f. E precisamente a dois desses textos em francês antigo que irei buscar dois testemunhos da «popularidade» do fogo purgatório no século XII. O primeiro não é senão a tradução dos Diálogos de Gregório, o Grande. em francês: Li Dialoge Gregoire 10 Pape, escrito no dialecto da região de Liêge. Nos capítulos XL e XLI principalmente do livro IV de que falei 1II rás encontram-se as expressões li fous purgatoires ou /0 fou purgatoire (o fogo purgatório), (10) fou de Ia tribulation (o fogo da atribulação), (10) I/lU de Ia purgation (o fogo da purgação). A questão posta por Pedro no lim do capítulo XL é: Ge voldroie ke l'om moi enseniast, se li fous purgatoires aprês Ia mort doit estre crue estre (queria que me ensinassem se o fogo purgatório depois da morte deve ser acreditado, quer dizer se se deve acreditar que o fogo purgatório depois da morte existe). O título do capítulo XLI em que Gregório responde, é: se li fous purIlfl/oires est aprês Ia mort (se o fogo purgatório existe depois da morte)\3. Numa versão em verso onde aparece a palavra purgatório (purgação, purgatório) recorda-se a opinião de Gregório segundo a qual não havia «lugar determinado» para a purgação mas todas as almas eram purgadas depois da morte nos locais onde havia pecado em vida: Par ces countes de seint Gregorie DeU houme entendre qi purgatorie N'est pas en une lieu determinez Ou les almes seint touz peinez. (Por estas palavras de S. Gregório deve entender-se que a purgação não é um lugar determinado onde todas as almas sofrem as suas penas em conjunto 14.) O outro texto é a tradução para francês do começo do século XIII mas reproduzindo o original do século XII - da História dos cruzados na Terra Santa (Histoire des croisés en Terre sainte - Historia rerum in par171
o primeiro é um cónego parisiense, Hugo de Saint-Victor, falecido em 1141; o segundo é um monge italiano, sábio canonista em Bolonha onde cOI?pila, cerca de 1140, uma recolha de textos de direito eclesiástico e que tera o seu nome, o Decreto de Graciano, que inaugurará o Corpus de direito canónico medieval. O terceiro é um cisterciense já célebre no seu tempo, Bernardo de Clairvaux, S. Bernardo, falecido em 1153. O quarto é um italiano que veio a ser bispo de Paris, Pedro Lombardo falecido em 1159-1160, cujas Máximas serão no século XIII o grande manual universitário. É a época em que, segundo Jean Longêre, «se organiza um primeiro esboço do De novissimis» (quer dizer, de um sistema dos tempos derradeiros) com Hugo de Saint-Victor e Pedro Lombardo. Reagrupam-se as
observações ou exposições sobre o fim do mundo, a ressurreição dos corpos, o Julgamento Final, o destino eterno dos homens. Tem-se naturalmente a tendência para ligar a estes o que se passa no além entre a morte individual e os derradeiros dias. Hugo de Saint-Victor foi talvez o primeiro a ministrar um curso de teologia sistemática não directamente relacionado com uma lectio da Escritura, quer dizer, com o comentário sobre as Escrituras'". Duas passagens da sua obra são mais especialmente consagradas ao fogo purgatório. A primeira é uma pergunta «sobre o fogo purgatório dos justos» que tem corno ponto de partida a primeira epístola de Paulo aos Coríntios. O fogo purgatório, diz Hugo, destina-se àqueles que serão salvos, aos eleitos. Mesmo os santos, aqueles que constroem com ouro, prata e pedras preciosas, terão de passar através do fogo mas sem prejuízos, antes pelo contrário. Sairão dele confortados, como a argila que ao passar pelo fogo dele recebe uma grande solidez. Pode dizer-se que para eles«a passagem pelo fogo é uma parte de ressurreição». Alguns, segundo Hugo, pretendem que esse fogo é um lugar de punição (quemdam poenalem /ocum) onde as almas daqueles que construíram com madeira, feno ou palha são entregues à morte para acabarem a penitência que começaram cá em baixo. Cumprida a penitência, vão para um lugar de repouso onde aguardam o dia do Julgamento em que passarão sem dano através do fogo, tanto mais que esse fogo não se chama purgatório em relação I&OS homens, mas no que toca ao céu e à terra que serão purgados e renovados por um dilúvio de fogo como foram pela água do primeiro dilúvio. Mas Hugo é contrário a esta opinião e pensa que o fogo do Julgamento Final durará o tempo necessário à purgação dos eleitos. OuIros pensam que o fogo purgatório é a atribulação terrena. Quanto ao fogo do Julgamento, os ímpios não o atravessarão, antes serão arrastados com ele para o abismo (infernal)!". Na sua grande obra, a Súmula sobre Os Sacramentos da Fé Cristã (Summa de sacramentis christianae fidei), O primeiro grande tratado destil teologia dos sacramentos elaborada no século XII (trata-se de um contexto que não deve ser esquecido para o nascimento do Purgatório, como IC verá a propósito da penitência), Hugo aborda os problemas do além. A ••trutura do De Sacramentis é histórica, no sentido de uma história da salvação. A primeira parte vai «do começo do mundo até à Encarnaçâo do Verbo». A segunda estende-se da Encarnação do Verbo até ao fim e consumação de tudo. É no capítulo XVI desta segunda parte que Hugo fllla das penas purgatórias ao tratar «os moribundos ou o fim do homem». Este capítulo situa-se entre um capítulo sobre «a confissão, a penitência e a remissão dos pecados» e um capítulo muito curto sobre a .xtrema-unção por um lado, e por outro lado os dois últimos capítulos do tratado, o que se refere ao fim do mundo e o que trata «o século que
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escrita por Guilherme de Tiro, falecido entre 1180 e 1184. No capítulo XVI do livro descreve-se como o povo humilde que partiu para a cruzada (Comment li menuz peuples se croisa pour aler tibus transmarinis gestarum)
outremer): «Tant avoit de pecheours el monde qui avoient eslongnie Ia grace de Nostre Seigneur, que bien covenoit que Dex leur mostrat un adrepoer par ou il alassent en paradis, et leur donast un travail qui fust aussiut comme feus purgatoires devant Ia mort.» Quer dizer: «Havia tantos pecadores no
mundo que tinham afastado (de si) a graça de Nosso Senhor, que era conveniente que Deus lhes mostrasse um caminho recto para irem para o Paraíso e lhes desse uma provação que fosse como fogo purgatório antes da morte.» Este texto faz lembrar a ideia de cruzada como penitência, diferente do espírito inicial da cruzada como expedição escatológica. Faz também alusão ao conceito de purgação dos pecados sobre a terra, antes da morte e não depois. Trata-se de «curto-circuitar» um eventual «purgatórios depois da morte quando se merece ir directamente para o Paraíso. Além do mais, está-se no caminho da evolução que levará a um sentido puramente metafórico do «purgatório na terra», como se verá no século xm". Quatro grandes teólogos e o fogo: esboço de um tratado dos tempos derradeiros Desejaria deter-me em quatro grandes clérigos de meados do século cuja obra representa ao mesmo tempo o resultado de uma longa tradição e o ponto de partida para novos desenvolvimentos - e isto também é verdadeiro para o Purgatório. XII,
Um cónego parisiense: Hugo de Saint-Victor
ser ajudado depois da morte, o sacrificio eucarístico pode ser de grande ujuda 18. No fundo, Hugo de Saint-Victor não faz avançar o problema em relação a Agostinho e a Gregório, o Grande, e insiste como eles na realidade dos espectros. Mas testemunha a forte tendência da sua época para encontrar um lugar ou lugares (locus ou local) para a pena purgatória. Apesar de expressar a sua ignorância ou o seu cepticismo sobre a existência de tais lugares, e de escolher, como Gregório, o Grande, a solução que não vingará, a de uma purgação nos lugares terrenos onde Me pecou, Hugo interroga-se e reconhece que outros optaram pela existência de determinados lugares purgatórios no além, entre a morte e o Julgamento.
há-de vir». É pois no interior de uma história individual e colectiva da salvação, em estreita ligação com a confissão e a penitência, que surge o desenvolvimento sobre as penas purgatórias. No capítulo IV da parte XVI do segundo livro, Hugo examina os «lugares das penas» (loca poenarum), depois de ter precisado que as almas, após abandonarem os corpos, podem muito bem sofrer penas corporais. «Assim como, diz ele, Deus preparou penas corporais para os pecadores que devem ser atormentados, também separou lugares corporais para essas penas corporais. O Inferno é o lugar dos tormentos, o Céu é o lugar das alegrias. É justo que o lugar dos tormentos seja em baixo e o lugar das alegrias no alto, pois a culpa pesa e leva para baixo enquanto a justiça eleva para o alto.» Hugo acrescenta que este lugar inferior, o Inferno, se situa por baixo da terra, mas que não há certezas a esse respeito. No Inferno, diz-se, reina um fogo inextinguível. Em compensação, aqueles que saem desta vida purgados vão imediatamente para o Céu. Hugo aborda então a pena purgatória. «Enfim, há um outro castigo depois da morte que se chama pena purgatória. Aqueles que deixam esta vida com alguns pecados, embora sejam justos e destinados à vida eterna, são ali torturados durante algum tempo, a fim de ficarem purgados. O lugar onde se sofre esta pena não é determinado, se bem que numerosas aparições de almas sujeitas a esta pena façam pensar que ela é sofrida cá em baixo, provavelmente nos locais onde se pecou, como provaram muitos testemunhos. Se estas penas são aplicadas noutros locais, é dificil de saber.» Hugo de Saint-Victor interroga-se ainda se, por um lado, os maus inferiores em maldade, aos ímpios e aos grandes criminosos, não esperarão em lugares de punição antes de serem enviados para os grandes tormentos da geena e se, por outro lado, os bons que no entanto estão sobrecarregados com algumas culpas não esperarão em determinadas moradas antes de serem promovidos às alegrias do Céu. Hugo calcula que os bons perfeitos (boni perfecti) vão sem dúvida imediatamente para o Céu e que os muito maus (va/de mali) descem imeditamente aos infernos. Para os bons imperfeitos (boni imperfecti) é certo que no intervalo (entre a morte e o Julgamento) sofrem certas penas antes de conhecerem as alegrias que hão-de vir. Quanto aos maus imperfeitos ou menos maus (imperfecti sive minus mali) não há certezas quanto ao lugar onde poderão estar enquanto esperam pela descida aos tormentos eternos no dia da ressurreição. Existem por fim penas purgatórias neste mundo para os aflitos que não se tomam piores com as provações mas sim melhores, e que delas tiram proveito para se corrigirem. Quanto aos sufrágios pelos mortos, Hugo supõe, citando Gregório, o Grande, que se as faltas cometidas por um defunto não são indissolúveis e se ele mereceu pela sua vida justa
Num sermão para o dia de Santo André sobre a tripla espécie de bens, de declara: «E a justo título que se diz que aquelas almas que sofrem nos lugares purgatórios (in locis purgatoriis) vão de cá para lá, atravessando lugares tenebrosos e lamacentos, visto que nesta vida não receavam haIlIliu esses lugares em pensamento.» E ainda: «Confirmamos não só compudecer-nos dos mortos e rezar por eles mas também felicitá-los em esperança; pois se devemos afligir-nos com as suas dores nos lugares purIIlIlórios (in locis purgatoriis) devemos ainda mais alegrar-nos pela aproximação do momento em que Deus enxugará todas as lágrimas dos olhos deles; morte, não haverá mais; prantos, gritos c penas, não haverá mais, porque o antigo mundo desapareceu» (Apocalipse, XXI, 4)20. Noutro sermão pronunciado nas cerimónias fúnebres de Humberto, monge de Clairvaux, em 1148, menos de cinco anos antes da sua morte e onde ele não emprega a palavra purgatório que ainda não existia e que ele Iltllorou, São Bernardo previne: «Sabei, com efeito, que depois desta vida, 11 que se deixou de pagar aqui em baixo terá de ser pago por cem vezes II1l1is,até ao último tostão (Mateus, V, 26), nos lugares de purgação (in pU1?abilibuslocis /1.»
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lJm cisterciense: São Bernardo O problema da purgação dos pecados no além segundo S. Bernardo "urge-me de maneira diferente do que se supunha, pois estou convencido e julgo que este estudo provará o bem-fundado da minha convicção que o texto principal que lhe era atribuído sobre este assunto não é dele, e sensivelmente posterior (pelo menos em vinte anos) à sua morte ocorrida em 115319• São Bernardo expõe com muita clareza a sua posição, em dois sermões: existem lugares de purgação dos homens (loca purgatoria) no
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nlém.
Num terceiro sermão, para o Advento, São Bernardo fornece precisões algo complicadas sobre «o triplo inferno». Compreendo esse texto assim: «o primeiro inferno é obrigatório (obligatorius ) porque nele nos é exigido até ao último tostão, e assim a pena não tem fim. O segundo é purgatório. O terceiro é remissivo, pois, sendo voluntário (volontarius), muitas vezes a pena e a culpa (et poena et culpa) lá são ambas remidas. No segundo (o purgatório), ainda que a pena nele seja por vezes remida, a culpa nunca o é, mas é purgada. Bem-aventurado inferno, o da pobreza, onde o Cristo nasceu, onde foi criado e onde viveu, enquanto esteve encarnado! A esse inferno ele não desceu só uma vez para de lá arrancar os seus, mas também «se entregou a fim de nos arrancar a este mundo presente e mau (Epístola aos Gálatas I, 4), para nos afastar da massa dOI. condenados e nos reunir à espera de nos tirar de lá. Neste inferno há meninas novas, quer dizer, esboços de almas, adolescentes com timbales precedidas de anjos que tocam címbalos e seguidas de outros que tocam os címbalos do júbilo. Em dois infernos são os homens que são atormentados, mas neste são os demónios. Vão para lugares sem água e áridos, procurando repouso, mas não o encontram. Giram à volta dos espíritos dos fiéis mas são escorraçados por pensamentos santos e por orações. Po isso gritam com razão: «Jesus, porque vieste atormentar-nos antes do tempo?» (Mateus, VIII, 29)22. Parece-me que São Bernardo distingue um inferno (inferior), a gee propriamente dita, um inferno (intermédio) onde tem lugar a purgação um (inferno) superior sobre a terra, equivalente aos futuros limbos e a tradicional seio de Abraão onde as almas inocentes já estão em paz, enquanto os demónios que esperam uma trégua até ao Julgamento Final já são atormentados. Há pois em São Bernardo a busca de uma espacializacão do além e • afirmação da existência quer de um inferno purgatório quer de lugare purgatórios (loca purgatoria ou purgabilia), mas esse espaço não é nomea do e a geografia do além continua muito vaga.
Um monge canonista:
Graciano de Bolonha
o caso do Decreto de Graciano (cerca de 1140) é especial. Esta recolh de textos não apresentaria qualquer originalidade se a sua coordenação, escolha dos textos e o seu ajustamento em tratado articulado não cons . tuíssem de facto uma importante novidade. A importância que o direi canónico vai assumir no fim do século XII e no século XIII impõe qualquer modo que se examine esta peça mestra que inaugura o Corp de direito canónico da Idade Média, e que se faça pelo menos uma so dagem tendo como objectívo esse centro intelectual tão activo no sécul 176
XII: Bolonha, transformada em capital dos estudos jurídicos e onde se desenvolve a primeira corpo ração universitária da Idade Média. Na perspectiva que nos interessa, são importantes dois capítulos do Decreto de Graciano. São os capítulos XXII e XXIII da questão 11 da causa XIII da segunda parte ". O primeiro é constituído pela leitura da (ou) de uma carta do Papa Gregório 11 a Bonifácio, o apóstolo germânico (cerca de 732) que já apontei. Retoma ela a lista dos sufrágios estabelecida entre Agostinho e Gregório, o Grande: «As almas dos defuntos são libertas de quatro maneiras: pelos sacrifícios dos padres (as missas), pelas preces dos santos, pelas esmolas dos entes queridos e pelo jejum dos parentes.» Incluído no Decreto, este texto tem muito peso, legitima a acção dos vivos a favor dos mortos, evoca o primado do sacrificio eucarístico, sublinha a necessidade de passar pelo intermediário da Igreja (os padres), ulimenta o culto dos santos, fomenta a circulação dos bens (ou a sua drenagem a favor da Igreja) através da esmola, valoriza o papel dos próximos - famílias e amigos, carnais ou espirituais. O capítulo XXIII reproduz, sob o título «Antes do dia do Julgamento 08 mortos são ajudados pelos sacrificios (= as missas) e pelas esmolas», os capítulos CIX e CX (à excepção de uma única passagem sem signifieado para o nosso caso) do Enchiridion de Santo Agostinho. Recordo aqui esse texto essencial:
No intervalo que decorre entre a morte do homem e a ressurreição suprema, as almas são mantidas em depósitos secretos, onde conhecem quer o repouso quer a pena de que são dignas, conforme o destino que talharam para si mesmas enquanto viviam na carne. Não se pode portanto negar que as almas dos defuntos sejam socorridas pelas preces dos seus próximos ainda vivos, quando em intenção delas é oferecido o sacrificio do Mediador ou são distribuídas esmolas na Igreja. Mas estas obras servem unicamente àqueles que, enquanto vivos, mereceram que elas pudessem ajudá-Ios mais tarde. Com efeito, existem homens cuja vida não é suficientemente boa para não terem necessidade desses sufrágios póstumos, nem suficientemente má para que eles não possam servir-Ihes. Pelo contrário, há aqueles que viveram suficientemente bem para poder dispensá-los e outros suficientemente mal para não poder tirar deles beneficio depois da morte. Assim, é sempre cá em baixo que se adquirem os méritos que podem assegurar a cada um, depois desta vida, conforto ou infortúnio. Quando os sacrificios do altar ou da esmola são oferecidos em intenção de todos os defuntos baptizados, para aqueles que foram inteiramente bons, eles são acções de graças; para aqueles que não foram inteiramente maus, são meios de propiciação; para aqueles cuja maldade foi total, já que não ajudam os mortos, servem para confortar os vivos. Aquilo que eles asseguram àqueles que deles tiram proveito é ou a urnnistia completa ou, pelo menos, uma forma mais suportável de condenação.
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Neste texto, como podemos ver, existem dois elementos importantes que põem obstáculos ao nascimento do Purgatório. O primeiro é que, se Agostinho fala de lugares para as almas entre a morte e a ressurreição, esses tais lugares são uma espécie de buracos, de esconderijos, os receptáculos (receptacula), e não um espaço autêntico e, além do mais, são escondidos (abdita), o que é interpretado em sentido material e espiritual. No sentido material escapam à investigação, são dificeis se não impossíveis de encontrar e, no sentido espiritual, representam um mistério que é talvez - é a opinião de alguns - lícito, se não sacrílego, pretender penetrar. Estes conceitos constituem pois um obstáculo no caminho da geografia do Purgatório. O segundo ponto é a referência às quatro categorias de defuntos segundo Agostinho: os totalmente bons (valde boni), os totalmente maus (valde mali), os não totalmente maus (non valde mali) e, implicitamente, os não totalmente bons (non valde boni), Ora o Purgatório ou será destinado a esta última categoria que o sistema de Agostinho implica mas que não é explicitamente mencionada neste texto, ou então - e sobretudo - ele exigirá a fusão numa só categoria das duas categorias dos que não são totalmente maus e dos que não são totalmente bons. Assim este texto, que constituirá uma das bases do Purgatório, será ainda durante algum tempo um seu retardador. Este «bloqueio autoritário» é sem dúvida uma das razões do papel insignificante do direito canónico no nascimento do Purgatório.
Sobre o problema do Purgatório como sobre muitos outros, o pensamento de Pedro Lombardo, mestre parisiense de origem italiana que veio a ser bispo de Paris em 1159 e morreu pouco depois, em 1160, é aquele que, em meados do século, apresenta de maneira mais nítida uma vertente virada para o passado e uma vertente virada para o futuro. Nos seus Quatro Livros de Máximas compostos entre 1155 e 1157, Lombardo resume com vivacidade, clareza e espírito sintético as opiniões dos que o precederam, desde os Pais aos teólogos e canonistas Abelardo, Gilbert de Ia Porrée, Graciano, etc. Mas, por outro lado, a obra deste pensador sem grande originalidade vai tornar-se «clássica para os séculos seguintes». J. de Ghellinck disse também que as Máximas de Pedro Lombardo foram «o centro de perspectiva» do movimento teológico do século XII. O essencial das suas opiniões sobre a purgação dos pecados no além encontra-se em dois sítios diferentes da sua obra, os destaques XXI e XLV do Livro IV das Máximas.
O destaque XXI insere-se numa exposição sobre os sacramentos. Depois do baptismo, da confirmação e da eucaristia, vem um longo desenvolvimento sobre a penitência que termina com um capítulo sobre a penitência final e a diferenciação dos «pecados que são remidos depois desta vidro>.Depois, mesmo no fim da obra, o destaque XLV sobre «os diferentes receptáculos das almas» ocorre no desenrolar dos tempos derradeiros: entre a ressurreição e o Julgamento Final. É quase paradoxal que estes textos, cujo comentário constituirá o essencial da doutrina dos grandes escolásticos do século XIII, não formem um conjunto coerente. O futuro Purgatório está divido entre a penitência e a morte individual por um lado e os novissima por outro. O Purgatório irá precisamente ocupar, temporal e espacialmente, o intervalo. Lombardo como que sublinhou pela negativa a localização do futuro Purgatório. No destaque XXI, Pedro Lombardo interroga-se se certos pecados são remidos depois da morte. Baseando-se em Mateus, XII, 32 e na primeira epístola de Paulo aos Corintios, III, 10-15, e depois de ter recordado a opinião hesitante de Agostinho sobre a interpretação do texto de Paulo (Cidade de Deus, XXI, XXVI), dá o seu parecer que é claro. A passagem de S. Paulo «insinua abertamente que aqueles que constroem com madeira, feno e palha levam consigo edifícios combustíveis, quer dizer pecados veniais, que deverão ser consumidos no fogo purgatório». Há uma hierarquia entre a madeira, o feno e a palha; segundo a importância dos pecados veniais que representam, as almas dos mortos serão purgadas e libertadas com maior ou menor rapidez. Sem nada trazer de novo, Lombardo clarifica as coisas: existência de uma purgação de certos pecados entre a morte e o julgamento, identificação dos pecados purgáveis com os pecados veniais, duração mais ou menos longa das penas purgatórias (fogo). O destaque XL V é ainda mais importante. Trata dos receptáculos das almas e dos sufrágios pelos defuntos. Para os receptáculos, contenta-se com citações de textos de Agostinho, principalmente do Enchiridion, sobre os receptáculos escondidos. No que respeita aos sufrágios, retoma também as opiniões de Agostinho. As missas e as esmolas da Igreja são úteis aos defuntos mas estes precisam de ter merecido pela sua vida e as luas obras a eficácia destes sufrágios. Retoma as três categorias agostinianas dos inteiramente bons (valde boni), dos não inteiramente maus [non valde mali), e dos inteiramente maus (valde mali ) para quem os .ufrágios da Igreja correspondem respectivamente a acpões de graças, a propiciacões e a simples consolações para os parentes vivos. Mas Lombardo acrescenta e relaciona duas categorias provenientes da classificação allostiniana: os medianamente bons (mediocriter boni) para quem os su[rágios levam à absolvição plena da pena, e os medianamente maus (mediocriter mali) para quem eles levam a uma mitigação da pena. E,
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Um mestre secular parisiense: o bispo Pedro Lombardo
tam sem o mencionar, o esforço do pensamento religioso na segunda metade do século XII, para atribuir à purgação depois da morte um local, e individualizar espacialmente o processo de purgação no além. Eis alguns exemplos. Robert Pullus (ou Pullney), cardeal em 1134 e chanceler da Igreja romana em 1145, falecido cerca de 1146, no Livro IV das suas Máximas interroga-se, também ele, sobre a geografia do além. Depois de ter afirmado que o Inferno é um lugar (infemus ... locus est), pensa onde terão lugar as penas purgatórias. Os antigos iam expurgar-se durante um tempo aos infernos, depois iam para o seio de Abraão, «quer dizer para uma região superior onde reinava a tranquilidade», Na nossa época, isto é depois da vinda de Cristo, os defuntos, nos quais ainda existe algo para queimar, são julgados depois da morte por penas purgatórias (purgatoriis poenis ) e a seguir vão para junto de Cristo, ou seja, para o Paraíso. Essas penas consistem especialmente num fogo, O fogo purgatório (ignis purgatorius), cuja violência é o ponto intermédio entre as atribulações terrenas e os tormentos infernais (inter nostras til inferorum poenas medias). Mas aqui, a perplexidade de Robert Pullus • grande: «Mas essa correcção, onde é feita? Será no Céu? Será no Inferno? Mas o Céu não parece convir às atribulações, nem a tortura à correcção, sobretudo na nossa época. Pois se o Céu não convém senão aos bons, não. convirá o Inferno apenas aos maus? E se o Céu exclui todo o mal, como' que o Inferno pode acolher qualquer bem? Assim como Deus destinou O Céu apenas aos perfeitos, também a geena parece reservada apenas ao, ímpios, a fim de que esta seja a prisão dos culpados e aquele o reino dai
almas. Então onde estão aqueles que devem fazer penitência depois da morte? - Nos lugares purgatórios. Onde são esses lugares? - Ainda não llei25. Quanto tempo ficam eles nesses lugares? Até à satisfação (a expiação das suas culpas).» Robert Pullus imagina em seguida que, no nosso tempo, as almas expurgadas deixam os lugares purgatórios, que são exteriores ao Inferno, para irem para o Céu, assim como os antigos expurgados deixavam os seus lugares ~urgatórios que eram no Inferno para irem refrescar-se no !leiode Abraão 6. E termina com o significado da descida do Cristo aos lnfernos/". Exposição notável que procura estabelecer uma coerência neste sistema geográfico e que introduz uma dimensão histórica e analógica na escatologia. Exposição obcecada pela preocupação de localizar, introdulindo o tema: Ubi sunt? Mas onde são ...? e que tem como resultado a comprovação da ignorância respeitosa do segredo que rodeia esses lugares misteriosos. Mas que destaca e valoriza a expressão in purgatoriis, subeatendendo-se locis: nos (lugares subentendidos) purgatórios. BastarA passar do plural para o singular e do adjectivo para o substantivo para que o Purgatório apareça. O italiano Hugo Ehterien (Hugo de Pisa), no seu livro Sobre a Álma Saída do Corpo (Liber de anima corpore exuta), pouco depois de 1150, não vai tão longe. Cita Gregório, o Grande e a história do bispo Felix que encontra um espectro nas termas, mas não tira dela conclusões para a localização da purgação. Numa passagem que lembra muito Hugo de Saint-Victor evoca o Julgamento Final e o rio de fogo - comparável com a enchente do dilúvio - que irá submergir a terra e o céu e também os homens, dos quais os maus serão consumidos e os bons stravessarâo o fogo da purgação sem danos. Testemunho de um pensamento arcaico onde vemos também, a propósito dos sufrágios, Hugo corroborar a ajuda que a oferta da hóstia consagrada traz aos que dormem'". Robert de Melun, falecido em 1167, sucessor de Abelardo na escola de a.inte-Genevieve em Paris, nas suas Questões sobre As Epístolas de ~. Paulo elaboradas entre 1145 e 1155, lembra simplesmente, de acordo GOmAgostinho, que as penas purgatórias serão mais terríveis do que qualquer pena deste mundo e sublinha que essas;enas purgatórias acontecerio no futuro, quer dizer depois desta vida2 • Pedro de Celle, em compensação, está bem próximo do Purgatório. Abade de Saint-Pierre de Celle, perto de Troyes, depois de São Remígio de Reims e por fim, segundo João de Salisbury, bispo de Chartres onde morreu em 1182, compôs em 1179 um tratado sobre a vida monástica, Â Escola do Claustro (De disciplina c/australi J onde põe a questão dos locais de habitação da alma depois da morte. «O alma separada do corpo,
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pegando em dois casos, Pedro Lombardo escolhe exemplos de «medianamente bons» (capítulos IV e V do destaque XLV). Enfim, para os inteiramente maus Lombardo, tal como sugerira Agostinho, pensa que Deus pode, apesar de tudo, distinguir entre eles graus de malvadez e, embora mantendo-os no Inferno por toda a eternidade, pode também mitigar um pouco a sua pena/". Lombardo operou um movimento significativo: os não inteiramente maus foram separados dos inteiramente maus e sem se misturarem com os não inteiramente bons, próximos deles. Esboça, se assim se pode dizer, um reagrupamento ao centro cujo alcance em breve se verá.
Testemunhos
menores
Outras obras, algumas mesmo para além do período entre 1170 e 1200, onde a palavra purgatório - e portanto o lugar - nasceu, manifes-
onde moras tu? É no Céu? É no Paraíso? É no fogo purgatório? É no Inferno? Se é no Céu estás na bem-aventurança com os anjos. Se
~]aborações parisienses
é no Paraíso estás em segurança, longe das misérias de cá de baixo. Se é no fogo purgatório estás atormentada com penas, mas todavia esperas a libertação. Se é no Inferno, tendo perdido toda a esperança, esperas não a misericórdia mas a verdade e a severidade '?». Vê-se, neste texto, a evolução que rapidamente vai conduzir à invenção do Purgatório. O fogo purgatório é encarado como um lugar, à semelhança do Céu, do Paraíso e do Inferno. Mas a expressão in purgatoriis: nos purgatórios (subentendendo lugares) reaparece muito frequentemente no fim do século ou talvez até mesmo no início do século seguinte para testemunhar desta busca da localização que não consegue encontrar a forma e a palavra justa. Num curioso diálogo de entre 1180 e 1195, o Conflito He/vético sobre o Limbo dos Pais (Conflictus Helveticus de Iimbo Patrum), uma troca decartas entre Burchard de Saint-Johann, primeiro abade do mosteiro beneditino de St. Johann im Thurtale e Hugo, abade do mosteiro (igualmente beneditino) de Todos-os-Santos em Schaffouse, os dois adversários discutem o destino das almas antes da descida do Cristo aos infernos. Burchard sustenta que muitas almas foram para o Céu mesmo antes da descida do Cristo aos infernos, conforme testemunha a alusão do Novo Testamento ao seio de Abraão (Lucas, XVI, 22) identificado com a paz (Sabedoria, IH, 3), o repouso (Agostinho) e o repouso secreto do Pai (Gregôrio, o Grande). Hugo, apoiado pela maioria dos que tomam parte na discussão, afirma que nenhuma alma pôde ir para o seio de Abraão ou para o Paraíso antes da descida de Cristo aos infernos, por causa do pecado original. No decurso do diálogo Burchard dá urna boa definição do Purgatório, ainda designado pelo plural in purgatoriis: «Há três espécies de Igrejas; uma milita na terra, outra aguarda a recompensa no(s) purgatório(s), outra triunfa com os anjos nos céUS31.» Evocação notável, face ao inferno esquecido, de uma tripla igreja onde a igreja dos expurgados, definida como a igreja da espera, está situada entre a terra e o céu. Texto que apresenta um duplo testemunho: o dos progressos do Purgatório e da sua concepção espacial, e também a existênca no momento decisivo de uma concepção diferente da que triunfou, mas que também poderia ter triunfado: um Purgatório possível, menos infernal. Concepção próxima da de Raoul Ardent, autor ainda pouco conhecido no século XII e cuja cronologia é incerta, que nas suas Homilias, sem dúvida do fim do século, fala assim das almas que estão no(s) purgatório(s): «Se elas são castigadas durante um tempo limitado no(s) purgatório(s), no entanto descansam jAl numa esperança segura de repouso ".» Concepção que reencontraremos do Purgatório como esperança.
Concluamos com dois eminentes mestres e chanceleres parisienses. Nos Cinco Livros de Máximas escritos antes de 1170, Pedro de Poitiers (falecido em 1205) discute uma questão: «Se alguém argumentar assim: de estes dois, um é culpado ao mesmo tempo de um pecado mortal e de um pecado venial, e o outro apenas de um pecado venial igual ao pecado venial do primeiro; e os dois serão punidos por penas desiguais, porque uquele sê-lo-á para sempre e este somente no(s) purgatório(s) (in purgatoriis ), e qualquer pena purgatória (pena purgatoria) será inferior a qualquer pena eterna e este não merece ser mais punido por este pecado venial do que aquele pelo outro: assim, agir-se-á injustamente com este. É falso. Estes dois que são culpados de um pecado venial igual merecem ser punidos igualmente por esses pecados, mas um será punido nesta vida e o outro no fogo purgatório (in igne purgatorio) e qualquer pena aqui em baixo é inferior a qualquer pena do fogo purgatório (ignis purgatorii); portanto agir-se-á injustamente para com ele33.» Análise notável que, em vésperas do aparecimento do Purgatório, reúne todo o vocabulário sobre o domínio purgatório, sublinha a ligação entre purgatório e pecado venial, emprega a expressão «espacializante» in purgatoriis e manifesta aquela preocupação, já então quase maniaca, da contabilidade da penitência e da purgação, que irá caracterizar a prática do Purgatório no século XIII. Num sermão sem data para o dia de finados, Prévostin de Cremona, tumbém ele chanceler de Paris falecido em 1210, usa igualmente a expresNão in purgatoriis: «Visto que alguns são lavados no(s) purgatório(s), devemos então ocupar-nos deles que são mais indignos hoje, rezando por eles, fazendo oferendas e dando esmolas ".» Eis fixado o laço entre a comemoração do 2 de Novembro, instituída no século anterior por ('Iuny, e o Purgatório nascente, a cadeia litúrgica à volta do Purgatório, entre os vivos e os mortos.
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Ver o Apêndice II sobre purgatorium. Ver o artigo de Claude CAROZZI, «Structure et Fonction de Ia Vision de Tnugdai» no volume colectivo Faire croire, a aparecer brevemente nas publicações da Escola francesa de Roma. Parece-me que Claude Carozzi exagerou a importância de uma eventual querela entre «materialistas» e «imaterialistas» no século XII e antecipou a existência do Purgatório, mas o seu texto é muito estimulante. Se, como crê Claude Carozzi, houve no século XII uma tendência (por exemplo, em Honorius Augustodunensis) para ver nas coisas do além apenas spiritualia, fenómenos espirituais, essa tendência não teve qualquer influência sobre a génese do Purgatório, ainda vaga mas que ela poderia ter bloqueado. Quando Honorius Augustodunensis é levado, no Elucidarium, a evocar os lugares onde se encontram as almas do outro mundo, tem de conceder-Ihes uma certa materialidade, como se verá. O debate sobre o carácter real ou metafórico do fogo que constituía o castigo mais frequentemente indicado para a purgação dos pecados não durou muito para além dos primeiros séculos do cristianismo. A ideia de que as almas não tinham corpo e não podiam, por consequência, encontrar-se em qualquer lugar material, professada por João Scoto Erigeno no século IX, não teve maior eco do que a maioria das doutrinas deste pensador isolado. Ver M. CAPPUYNS, Jean Scot Érigêne. Sa vie, son oeuvre, sa pensée, Lovaina-Paris, 1933. Na primeira metade do século XIII, Alexandre de Halês exprimirá a opinião geral dos teólogos que consagra a convicção comum: «O pecado não é remido sem uma dupla pena: a remissão não tem valor se não houver nenhuma pena da parte do corpo» (Non ergo dimittitur peccatum sine duplici poena; non ergo valet relaxati cum nu/la sit poena ex parte corporis, Glossa in IV Libros Sententiarum, IV, dist. XX). O essencial é sem dúvida darmo-nos conta de que «espiritual» não quer dizer «desencamado». 3 PL, 172, 1237-1238. Claude Carozzi tem sem dúvida razões para desconfiar desta edição. 4 PL, 40, 1029. 5 Ver Y. LEFEVRE, L'Elucidarium et les Lucidaires, Paris, 1954. 6 PL, 153, 139. 7 Os Sermões de Guerric d'lgny foram publicados (tomo I) por J. Morson e H. Costello, com uma tradução de P. DeseilJe, nas Fontes cristãs (Sources chrétinnes, vol. 166, 1970). Dou essa tradução, substituindo simplesmente, conforme meu hábito, purificar, purificação, purificador, por purgar, purgação, purgatório. onde aparece no
texto purgare, purgatio, purgatorius. Com efeito, Guerric emprega também purificare, Mas devemos reconhecer que os dois termos são para ele quase sinónimos. Aliás, u Escritura convida a isso. O tema do IV Sermão é o versículo de Lucas, 11, 22: Postiquam impleti sunt dies purgationis eius (Mariae). Os dois sermões de que extraí os trechos que cito encontram-se no tomo I das Fontes cristãs (vol. 166), pp. 356-385. Sobre Guerric d'lgny e o «purgatório» ver D. De WILDE, De beato Guerrico abbate lgniacensi ejusque doctrina de formatione Christi in nobis, Westmalle, 1935, pp. 117-118. 8 Ver mais adiante, p. 193 e ss. 9 PL, 157, 1035-1036. Ver P. GLORIEUX, «Les Deflorationes de Wemer de Saint-Blaise» in Mélanges Joseph de Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 699-721. IO Editado por A. M. LANDGRAF, Commentarius Porretanus in primam epistoIam ad Corinthios (Estudos e Testes, 177), Cidade do Vaticano, 1945. 11 ACHARD DE SAINT-VICTOR, Sermons, Ed. J. Châtillon, Paris, 1970, p. 156. 12 Ver J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens au XI!' siêcle, Paris, 1975. Indicações com interesse sobre o mundo do além, t. I, pp. 190-191 e t. lI, 144-145 se bem que «o aparecimento do Purgatório não tenha sido mencionado. Sobre os começos da literatura das homilias em língua francesa ver M. ZINK, La Prédication en langue romalle avant 1300, Paris, 1976. 13 Li Dialogue Gregoire 10 Pape, «Os diálogos do Papa Gregório» traduzidos para francês do século XII e acompanhados do texto latino ..., ed. W. Foerster, Halle, Paris, 1876. Notar-se-ão as expressões ofogo purgatório, o fogo da purgacão. Recordo que foi assim que traduzi sistematicamente os textos anteriores, sempre que apareceu o substantivo purgatorium e afastando a palavra purificapâo que não tem exactamente o mesmo sentido. Vou assim ao encontro do vocabulário da Idade Média, mas não foi por coquetismo arcaizante que empreguei estas expressões, mas por preocupação de exactidão. • . 14 Citado por Ch.-V. LANGLOIS, La vie en France au Moyen Age, 1. IV, Pans, 1928, p. 114. 15 Recuei! des historiens des croisades, 1/1, 1884, p. 44. 16 Sobre Hugo de Saint-Victor ver R. BARON, Science et sagesse chez Hugues de Sant-Victor, Paris, 1957, e a bibliografia da edição francesa, revista e completada por A.-M. Landry e P. Boglioni da Introduction à I'histoire de Ia littérature théologique de Ia scolastique naissante, de A.-M. LANDGRAF, Montreal-Paris, 1973, pp. 93~.97. Ver lambém tbid., pp. 43-44, do ponto de vista da doutrina da salvação, H. KOSTER, Die Heilslehre des Hugo von St. Victor, Grundlage und Grundzüge, Emsdetten, 1940. 17 O. LOTTIN, «Questions inédites de Hugues Saint-Victor» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 1960, pp. 59-60. 18 PL, 176, 586-596. A passagem citada literalmente em tradução encontra-se na coluna 586 CD. 19 Ver o Apêndice lI: Purgatorium. Deixo provisoriamente de lado um texto importante mas que nada acrescenta à posição de S. Bemardo. Em compensação, como ele expõe a opinião de hereges hostis li purgação após a morte, falarei desse texto a propósito da relação entre heresia e Pur~atório. oS. BERNARDO, sermão XVI, De diversis: in Opera, ed. J. Lec1ercq e H. Rochais, t. VIII, pp. 144 e 147. 21 O sermão in obitu Domni Humberti, monachi Clarae-Vallensis encontra-se na edição Lec1ercq-Rochais, t. V, p. 447. 22 Opera, ed, Leclercq-Rochais, t. VIII, pp. 11-12.
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NOTAS
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Decretum Magistri Gratiani, ed. A. Friedberg, Leipzig, 1879, t. I, col. 728. Ibid., p. 1006 e ss. 25 «Ergo ubi sunt poenitentes post mortem? in purgatoriis. Ubi sunt ea? nondum seio.» 26 «Unde peracta purgatione poenitentes, tam nostri, ex purgatoriis (quae extra infernum ) ad coe/os, quam veteres ex purgatoriis (quae in inferno) ad sinum Abrahae refrigerandi, jugiter conscendere videntur » 27 Este texto encontra em PL, 186, col. 823-830, os textos citados nas colunas 826 e 827. 28 PL, 202 col. 201-202 e 224-226. 29 R. M. MARTIN, Oeuvres de Robert de Me/un, t. Il, Questiones (theologia) de Epistolis Pau/i, Lovaina, 1938, pp. 174 e 308. 30 PIERRE DE CELLE, L'École du c1oitre, ed. G. Martel (Fontes cristãs, 240), 1977, pp. 268-269. Na tradução substituí fogo do purgatório por fogo purgatório de acordo com o texto latino, in igne purgatorio. 31 Conflictus Helveticus De Limbo Patrum, ed. F. Stegmüller in Mélanges Joseph de Ghellinck, 11, Gembloux, 1951, pp. 723-724. A frase citada está na página 737. 32 Homiliae de tempore, I, 43, PL, 155, 1484. Em vez de lugares (loca) pode subentender-se penas (poenae). Como a expressão loca purgatoria existe também na mesma época, prefiro interpretar assim in purgatoriis que, de qualquer modo, exprime uma vontade de localização. 33 PL, 21I, 1064. 34 «Quia vero sunt quidam qui in purgatoriis poliantur, ideo de eis tanquam de indignioribus hodierna die agimus, pro eis orantes, oblationes et elemosinas facientes» (ver J. LONGERE, Oeuvres oratoires de maitres parisiens ao XIr siêcle, t. Il, Paris, 1975, pp. 144, n. 16). 23
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v-
«LOCUS PURGATORIUS»:
UM LUGAR PARA A PURGAÇÃO
No meio do século XII o fogo tinha tendência não só para evocar um lugar mas também para encarnar espacialmente a fase de purgação por que passavam certos defuntos. Era todavia insuficiente para i~dividualizar um espaço definido do além. E aqui tenho de levar comigo o leitor sem no entanto o fatigar com pormenores a mais, a participar num; pesquisa técnica necessária em virtude da concentraç~o da ~v:stigação sobre certos lugares e meios de elaboração da doutnna cnsta no século XII. Tendo o substantivo purgatorium (o purgatório) chegado ao momento em que vai aparecer o Purgatório como lugar determinado e gramaticalmente, devo evocar um problema de autenticidade de textos! e um problema de datas.
Entre 1170 e 1180: autores e datas No passado e por vezes até hoje, os eruditos foram com efeito enganados por textos atribuídos falsamente a autores eclesiásticos falecidos antes de 1170, o que levou a acreditar num nascimento prematuro do Purgatório. Mais adiante falarei de dois textos, um atribuído a S. Pedro Damião falecido em 1072 e outro a S. Bernardo, falecido em 1153. Começarei 'por um excerto de um sermão que até ao fim do século XIX foi considerado da autoria de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans, um dos principais representantes do «renascimento poético» das regiões do Loire no século XII, e que morreu em 1133. Trata-se de um sermão dedicado à Igreja, sobre o tema de um versiculo do Salmo CXXII, 3 (121) «Jerusalém, construída como uma cidade onde todo o conjunto é homogêneo». Numa comparação onde se sente a extraordinária explosão da construção arquitectónica nos séculos XI e XII, o autor do sermão diz: 186
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«Na edificação de uma cidade, concorrem três elementos; primeiro, arranca-se violentamente as pedras da pedreira com martelos e barras de ferro, com muito trabalho e suor dos homens; a seguir com o buril, a bipene e a régua elas são polidas, desbastadas, talhadas a esquadro; em terceiro lugar, são colocadas nos seus lugares pela mão do artista. Da mesma maneira, na construção da Jerusalém celeste devemos distinguir três fases: a separação, a limpeza e a «posição». A separação é violenta, a limpeza purgatória e a posição eterna. Na primeira fase o homem está na angústia e na aflição; na segunda, na paciência e na expectativa; na terceira, na glória e na exultação. Na primeira fase o homem é joeirado como o cereal, na segunda é examinado como a prata, na terceira é colocado dentro do tesouro/ ...» O seguimento do sermão explicita esta imagem, aliás bastante clara, com a ajuda de um certo número de textos das Escrituras, entre os quais a primeira epístola de Paulo aos Corintios, lI, 10-15. A primeira fase é a morte, a separação da alma do corpo, a segunda é a passagem pelo Purgatório, a terceira é a entrada no Paraíso. Em relação à segunda fase, ele precisa que só aqueles que passam com madeira, feno e palha são lavados no Purgatório (in purgatorio). Desta vez a palavra purgatório como substantivo está presente no texto. O purgatório existe, é o primeiro dos lugares para onde vão (transitoriamente) os eleitos antes do Paraíso, ao qual estão prometidos. O autor do sermão apenas evoca o trajecto dos eleitos, e os condenados, que vão directamente para o inferno, são deixados de lado. Desenvolve a seguir uma ideia de enorme importância. Segundo ele, o tríduo litúrgico Vigília de Todos-os-Santos, Dia de Todos-os-Santos e Dia dos Mortos, corresponde às três fases do trajecto dos defuntos eleitos. À custa, para falar verdade, de uma pequena acrobacia cronológica. Na verdade a vigília, dia de jejum, corresponde à primeira fase, a da separação, mas é necessário inverter a ordem dos dois dias seguintes para que o simbolismo seja pertinente. É a terceira, o Dia dos Mortos, que corresponde ao Purgatório: «Ao terceiro dia, trata-se do Dia dos Mortos, para que aqueles que são lavados no Purgatório obtenham ou uma absolvição completa ou uma mitigação da sua pena '.» A expressão surge de novo: no Purgatório (in purgatorio). Enfim, é O segundo dia «o dia solene, símbolo da superplenitude de júbilo». Este sermão, atribuído a Hildebert de Lavardin, fora em 1888 restituído ao seu verdadeiro autor Pedra, o Devorador, e investigações recentes confirmaram esta atribuição", Pedro, o Comestor, ou Manducador, ou seja Devorador, porque era um grande devorador de livros segundo os seus contemporâneos, é discípulo de Pedro Lombardo. Sendo chanceler da Igreja de Paris, ensinou na escola de Notre-Dame depois da elevação de Lombardo ao episcopado em 1159 e morreu provavelmente em 1178 ou 1179. É um dos primeiros, se não o primeiro, a glosar ou comentar as
Máximas de Lombardo. Deixou obra abundante, e é dificil datar os seus sermões. Mas foi possível datar entre 1165 e 1170 um tratado Sobre os Sacramentos (De sacramentis) cujo tema é também o Purgatório. A propósito da penitência, Pedro, o Devorador, nele afirma primeiro que a purgação dos eleitos se faz no fogo purgatório com maior ou menor rapidez em função da diferença dos pecados e da penitência, e invoca Agostinho (Enchiridion, 69). Responde a seguir à questão de saber se a penitência que não pôde ser cumprida nesta vida pode ser completada n? outro mundo. Sendo Deus misericordioso e justo, em virtude da sua rmsericórdia perdoa aos pecadores que não devem ser punidos por uma pena demasiado severa, quer dizer a pena eterna. Mas no que toca à justiça, não deixa o pecado impune. Este deve ser punido quer pelo homem quer por Deus. Mas a contrição do coração pode ser tão grande que, mesmo se a penitência não foi terminada cá em baixo, um morto pode ser poupado ao fogo purgatório (immnunis erit ab igne purgato';0). Em compensação, aquele que morre impenitente é punido para a eternidade. Outra pergunta: se por negligência ou ignorância do padre um homem recebe uma penitência insuficiente em relação à gravidade das suas culpas, bastar-Ihe-á cumprir essa penitência ou poderá ser-lhe infligido, depois da morte, um complemento da pena no fogo purgatório (in igne purgatorio)? Segundo o Devorador, isso também depende da contrição. Se esta for suficientemente grande poderá dispensar um suplemento de pena, o que depende da apreciação de Deus. A pergunta segumte diz mais directamente respeito ao Purgatório: «O que é o fogo purgatório e quem deve passar através dele?» (Quid est ignis purga torius, et qui sint transituri per eum?) Pedra, o Devorador, responde que alguns dizem que é um fogo «material» e não um fogo «element~n> nem um fogo a que a madeira sirva de alimento, mas um fogo que existe no sublunar e que, depois do dia do Julgamento, desaparecerá com as coisas transitórias. Para outros, o fogo não é senão a própria pena. Se lhe chama fogo é porque é dura e queima, tal como o fogo. E havendo uma pena destruidora e eterna, como não se trata dessa, chamou-se a e.sse fogo purgatório, quer dizer não destruidor mas depurado r por castigo temporário, sem que se seja punido por toda a eternidade. Em todo o caso, acrescenta Pedro, o Devorador, qualquer que seja esse fogo deve acreditar-se que os fiéis, embora nem todos, passam através dele. Trata-se daqueles que não concluíram a sua penitência nesta vida. Mas alguns sofrem mais do que outros e alguns ficam livres desse fogo mais rapidamente do que outros, em função da quantidade de pecados e da penitência, e segundo a intensidade da contrição. Só os p~rfeit,amente hons escapam, suiõe-se, ao fogo da purgação, pois embora mnguem posNaestar isento de pecados veniais, no entanto o fervor do amor (fervor caritatis ) pode consumir dentro deles os pecados veniais".
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Perante estes textos, podemos encontrar para eles duas explicações. Ou o texto do primeiro sermão foi retocado depois da morte do Devorador pelos escribas que redigiram os manuscritos, ou o Devorador não falou de todo do purgatório e terá usado a expressão tradicional no fogo purgatório: in igne purgatorio. Bastará acrescentar (e ter suprimido) a palavrinha igne (ver o apêndice lI). Neste caso o autor mais não seria do que um testemunho a mais da iminência do aparecimento de um purgatório, e restar-lhe-ia a importância de ter posto em relação directa o purgatório próximo e a liturgia do princípio de Novembro. Mas parece-me mais provável que Pedro, o Devorador, tenha realmente usado o substantivo purgatorium e tenha sido portanto, se não o inventor, pelo menos um dos primeiros utilizadores do neologismo ligado a um desenvolvimento da geografia do além que considero revolucionário. Dois elementos - além da antiguidade dos manuscritos - podem dar crédito a esta hipótese. No fim da vida, Pedro, o Devorador, ocupou uma posição primordial entre os intelectuais parisienses. Ora eu não tenho dúvidas de que foi nesse meio que nasceu o Purgatório - e mais precisamente na escola de Notre-Dame de Paris. Por outro lado, o Comestor foi classificado como «um dos espíritos mais originais» do seu tempo (Hauréau). Este intelectual pouco estudado e mal conhecido pode ter desempenhado um papel inovador num domínio onde o seu mestre Pedro Lombardo apresentara os problemas em termos que permitiam novos desenvolvimentos. Nesta hipótese ele teria, antes de 1170, usado a expressão então corrente de fogo purgatório; e, tendo as suas ideias evoluído entre 1170 e a sua morte, teria utilizado cerca de 1178-1179 o neologismo purgatorium cujo aparecimento se poderá situar durante o decênio 1170-1180. O que estaria de acordo com outros testemunhos que, sem serem também absolutamente concludentes, apontam no mesmo sentido. Antes de os examinar, gostaria de completar o processo das ideias do Comestor sobre o tempo intermédio entre a morte e a ressurreição, citando um texto onde se trata, desta vez, do seio de Abraão.
Este texto é extraído da obra mais célebre de Pedro, o Devorador, aquela a que ele deve, em vida sua e durante o resto da Idade Média, a celebridade: A História escolásticas. No capítulo cm da Historia Scholastica, ele narra e comenta a história do pobre Lázaro e do rico mau (Lucas, XVI). «Lázaro, diz ele, foi colocado no seio de Abraão. Estava com efeito na zona superior do lugar infernal (in superiori margine infemi loeus), onde há um pouco de luz e nenhuma pena material. Era aí que estavam as almas dos predestinados, antes da descida do Cristo aos infernos. A esse lugar, por causa da tranquilidade que nele reina, chamou-se seio de Abraão, como chamamos o seio materno. Deu-se-lhe o nome de Abraão porque ele foi a primeira via da fé... (prima credendi via}".» 190
Definição «histórica» do seio de Abraão, situado entre o tempo dos patriarcas e a descida do Cristo aos infernos. Assim como o Cristo encerrara esses infernos, os homens da Idade Média preparam-se para fechar o seio de Abraão que sobrevivera ao Novo Testamento. De facto, daí em diante o espaço e o tempo intermédios vão ser ocupados só pelo Purgatório e, como se sente a necessidade de algo semelhante ao seio de Abraão para os justos anteriores ao Cristo e para as crianças mortas sem baptismo, recorrer-se-á daí em diante a dois lugares anexos ao além: o limbo dos padres e o limbo das criancinhas. O segundo teólogo (ou, por ordem cronológica, talvez o primeiro) a falar do purgatório propriamente dito foi Odon d'Ourscamp (também chamado Eudes de Soissons)", que foi um dos mestres mais importantes desta época. Na senda de Lombardo de quem foi discípulo ou, como julgam outros, adversário, teve uma escola muito activa e que continuou a sê-lo depois dele. Deu um impulso decisivo à questão (questio), género escolástico caracteristico que encontra com ele a sua forma definitiva: a de «uma verdadeira disputa onde os géneros estavam divididos entre dois personagens distintos» (Landgraf). Odon d'Ourscamp, depois de ter sido professor de teologia na escola de Notre-Dame de Paris, retirou-se no fim da vida para a abadia cisterciense de Ourscamp (no Aisne) onde morr~u em 1171. Os seus alunos publicaram as Questões como obras separadas. É numa destas recolhas a que foi dado o título de Odon d'Ourscamp que reencontramos o Purgatório numa questão sobre a Alma no Purgatório (De anima in Purgatorio).
«A alma separada do corpo entra logo no purgatório (intrat purgatorium statim); aí ela é purgada, portanto tira proveito. Opinião contrária: ela suporta essa pena contra a sua vontade, portanto não tira proveito.» Segue-se um certo número de argumentos a respeito dos méritos eventualmente adquiridos ao sofrer-se essa pena. Depois vem a solução: «É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram logo num fogo purgatório (statim intrant purgatorium quemdam ignem), mas nem todas ali são purgadas, apenas algumas. Todas que lá entram são punidas. Assim, valeria mais chamar esse fogo de punitivo (punitorius) em vez de purgatório (purgatorius); mas recebeu a designação mais nobre. De entre as almas que nele entram, umas serão purgadas e punidas, outras somente punidas. São purgadas e punidas aquelas que trouxeram consigo madeira, feno c palha; as outras são as que, voluntária ou involuntariamente, não se arrependeram por fim dos seus pecados ou que, surpreendidas pela morte, não se confessaram deles. São apenas punidas aquelas que, depois de se terem confessado e arrependido de todos os seus pecados, morreram sem terem cumprido a penitência que o padre lhes atribuíra; não são purgadas porque nenhum pecado lhes é remido, a menos que se tome 191
Vamos agora examinar os dois textos que, sem dúvida, mais problemas põem, sobretudo o segundo. O primeiro foi atribuído ao santo Pedro Damião, o célebre eremita e cardeal italiano da primeira metade do século XI, mas esta atribuição indefensável foi reconhecida como falsa pelos historiadores recentes de Pedro Damião'". O segundo é um sermão que
foi atribuído a S. Bemardo, falecido em 1153, e os recentes editores das obras completas de S. Bemardo, Dom Jean Leclercq e Henri Rochais, mantiveram esta atribuição, fazendo notar que os problemas levantados pela colecção dos Sermones de diversis, em que aquele se inclui, não permitiam afirmar a sua autenticidade com tanta certeza como para as outras colecções dos sermões de S. Bernardo. Eu estou convencido de que esse sermão não é de S. Bernardo!'. Supondo que o fundo é autêntico, então sofreu modificações de forma, sem dúvida muito importantes. Não só me parece impossível falar de Purgatório como de um lugar designado por um substantivo antes de 1153; e também a expressão perfeita do sistema do além tripartido e espacializado que se encontra neste texto: «Há três lugares que as almas dos mortos, conforme os respectivos méritos, recebem como destino: o inferno, o purgatório e o céu», me parece ainda mais improvável na primeira metade do século XII quando reina, como já se viu, uma enorme incerteza quanto à estrutura do além. Antes de formularmos hipóteses, vejamos os textos. O tema destes dois sermões é a existência de cinco regiões no universo natural e sobrenatural. A primeira é a da dissimilitudo, da dissemelhança com Deus que havia feito o homem à sua imagem e semalhança, das quais o homem se afastou pelo pecado original. Esta região é o mundo terrestre. A segunda região é o paraíso do claustro. «Na verdade, o claustro é um paraíso» é uma das numerosas frases que encontramos textualmente nos dois sermões. Esta exaltação da vida monástica faz do claustro um lugar de vida nesta terra. A terceira região é a da expiação. Ela mesma comporta três lugares diferentes em função dos méritos dos defuntos. A designação desses lugares não é a mesma nos dois sermões, se bem que se trata dos mesmos locais. No sermão do pseudo-Pedro Damião, trata-se do céu, dos lugares infernais e dos lugares purgatórios (caelum, loca gehennalia, loca purgatoria). No sermão do pseudo-Bernardo, como se viu, trata-se do inferno, do purgatório e do céu (infemus, purgatorium, caelum) mencionados por ordem diferente. A quarta região é a região da geena. Podemos perguntar-nos em que é que esta região difere da parte infernal da terceira região, o que não está bem explicado em nenhum dos dois sermões. Parece todavia que a explicação seja inversa num e noutro. No sermão do pseudo-Pedro Damião, os lugares infernais da terceira região parecem destinados aos pecadores que morreram em pecado mortal e a quarta região infernal é mais a residência dos ímpios. No sermão do pseudo-Bernardo, pelo contrário, o inferno da terceira região é reservado aos ímpios, o que se afirma com clareza, enquanto a quarta região infernal se destina ao diabo e aos seus
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«ser remido» no sentido lato em que «purgado» seja sinónimo de «liberto» da pena devida. No sentido próprio, ser purgado diz-se de alguém a quem é remido um pecado; portanto, aqueles que são medianamente bons entram imediatamente no Purgatório (hi ergo qui sunt mediocriter boni, statim intrant purgatorium).
O interlocutor reacende a discussão ao perguntar: «Se a um moribundo que se arrepende de todos os seus pecados o padre diz: absolvo-te de todas as penas que te são devidas, até daquela que deverias sofrer no Purgatório (in purgatorio), será ele, mesmo assim, punido nesse Purgatório?»
Resposta do mestre: «Eis o género de pergunta a que Deus melhor vos responderia (do que eu). Tudo o que posso dizer é que o padre deve agir com discernimento.» Mas acrescenta, todavia, uma frase muito revelado- . ra: «Como esse fogo é uma pena material, está num lugar. Mas onde se encontra esse lugar, quando a isso deixo a questão em suspensoi.r O que impressiona neste texto é o aspecto heteróclito do vocabulário, . se não das ideias. Ora se refere o purgatório ora o fogo purgatório. Afirma-se o carácter espacial, localizado, do Purgatório, quer mencionando-o, quer reduzindo-o ao lugar onde deve encontrar-se o fogo. E tudo termina com uma confissão de ignorância sobre a localização desse lugar. Tudo isto que se verifica confirma bem as opiniões de A. M. Landgraf: as Questões desta época e especialmente as atribuídas a Odon d'Ourscamp reúnem Questões de vários autores «com atribuições geralmeD;tefantasistas» e dificilmente verificáveis". E possível aceitar como razoável a seguinte explicação: as Questões atribuídas a Odon d'Ourscamp foram elaboradas a partir de notas tomadas nos cursos desse mestre, mas a forma (e o vocabulário) foram revistos e algumas ideias que não são de Odon foram introduzi das na redacção que, sem dúvida, foi composta entre 1171, data da morte de Odon, e cerca de 1190, talvez mesmo no decénio 1171-1181. Onde Odon fala ainda de fogo purgatório, os seus alunos falam já de Purgatório. O espaço do lugar é tido como facto consumado, mas a localização é incerta. A expressão mediocriter boni (medianamente bons), oriunda sem dúvida de Pedro Lombardo, deixa transparecer uma outra face do sistema. Um falsário do Purgatório
anjos (maus) e aos homens que se lhes assemelham, quer dizer aos criminosos e os viciosos (scelerati et vitiosi ), A quinta região, por fim, é a do paraíso supraceleste onde os bem-aventurados vêem a Santíssima Trindade cara a cara, como diz o pseudo-Bernardo; é a cidade do Grande Rei, como diz o pseudo-Pedro Damião. Sobre um fundo com grandes analogias, cada um dos dois textos apresenta variantes. Para não fatigar o leitor, apenas recorro ao exemplo de uma única região, a terceira, aquela onde se encontra o nosso Purgatório. Pseudo-Pedro
Pseudo- Bernardo
Damião
A terceira região é a região da expiação. Há três lugares por onde as almas dos mortos são distribuídas em função dos seus diferentes méritos: o inferno, o purgatório e o céu. Aqueles que estão no inferno não podem ser resgatados porque no inferno não existe redenção alguma. Aqueles que estão no purgatório esperam a redenção, mas têm de ser primeiro torturados, quer pelo calor do fogo quer pelo rigor do frio ou por qualquer outra pena severa. Aqueles que estão no céu rejubilam com a alegria da visão de Deus, irmãos do Cristo em sua natureza, co-herdeiros na glória, semelhantes na eterna bem-aventurança. Como os primeiros não merecem ser resgatados e os terceiros não precisam de redenção, resta-nos passar por entre os intermédios por compaixão, depois de termos estado unidos a eles por humanidade. Irei para essa região e terei essa grande visão (Êxodo, Ill, 3) pela qual o Pai piedoso, para glorificar os seus filhos, os abandona nas mãos do tentador, não para serem mortos mas purgados; não por cólera mas por misericórdia; não para sua destruição mas para sua instrução, para que daí em diante eles não sejam vasos de cólera bons para perecer (Romanos, IX, 22-
Tendo pois deixado o mundo e a forma de vida escolhia (o claustro), passa à terceira região que é a região da expiação. Nesta região o Pai benevolente examina os seus filhos manchados de ferrugem, como se examina a prata; conduz através do fogo e da água para levar ao refrigério (refrigerium, Salmo LXV). Devemos distinguir três lugares por onde as almas são distribuídas em função da diferença dos seus méritos. Para o céu voam imediatamente aquelas que usaram a morada do corpo como uma prisão, que conservaram a substância humana pura e sem máculas. Pelo contrário aqueles que, até à morte, praticaram actos dignos da morte, são enviados para os lugares infernais sem misericórdia. Aqueles que não são nem uns nem outros e estão entre ambos, que cometeram pecados mortais mas que, quando da aproximação da morte, fizeram penitência sem a terminarem, indignos de entrar logo no júbilo mas não dignos de arder eternamente, recebem por sua vez os lugares purgatórios onde são flagelados, mas não até à inconsciência (?insipientia) para de lá saírem e serem transferidos para o reino. Por aqueles que estão no céu não há necessidade de rezar, pois é a 194
-23), mas vasos de misericórdia preparados para o reino. Levantar-me-ei, pois, para os ajudar: interpelarei com os meus lamentos, implorarei com os meus suspiros, intercederei com as minhas preces, satisfarei pelo sacrificio (da missa) (sacrificio singulari) para que, se por acaso o Senhor vir e julgar (Êxodo, V, 21), converta os trabalhos em repouso, a miséria em glória, os golpes em coroas. Por estes deveres e outros semelhantes a sua penitência pode ser abreviada, os seus trabalhos terminados, a sua pena eliminada. Percorre pois, alma fiel, a região da expiação e vê o que lá se passa e nesta convivência faz da compaixão a tua bagagem.
eles que rezamos e não por eles. Para aqueles que estão no inferno as preces .ilo inúteis porque a porta da misericórdia está fechada para eles e a esperança de salvação é-lhes interdita. Em compensação, por aqueles que são corrigidos nos lugares purgatórios é preciso ter o cuidado de rezar, de os ajudar pelo sacrificio (da missa) (sacrificio singulari ), para que o Pai benevolente transforme depressa a sua penitência em satisfação, a sua satisfação em glorificação. Corre por entre eles com um íntimo sentimento de piedade e leva como bagagem a compaixão.
Apesar das diferenças entre estes dois textos, a analogia de estrutura e de pensamento é o que mais impressiona, reforçada por algumas expressões idênticas. Uma das principais diferenças é a utilização de loca purg atoria (lugares purgatórios) pelo pseudo-Pedro Damião e de purgatorium pelo pseudo-Bernado. Poderia pois pensar-se que estes textos têm dois autores diferentes que ou se inspiraram na mesma fonte ou um deles, provavelmente o pseudo-Bernardo, conheceu o outro e foi por ele fortemente influenciado. Não é a hipótese que adoptarei. Os especialistas de Pedro Damião lançaram a ideia de que o autor do falso sermão de Pedro Damíão poderia ser Nicolau de Clairvaux conhecido como «falsário hábil» (egerissen Fãlscher», diz F. Dressler). Ora Nicolau foi secretário de S. Bernardo e sabe-se que forjou textos falsos de S. Bernardo. Os dezanove sermões falsamente atribuídos a Pedro Damião encontram-se originariamente num manuscrito da Biblioteca do Vaticano onde emparceiram com sermões de S. Bernardo (ou atribuídos a S. Bernardo). E verdade que o sermão 42 não se encontra lá, mas a coexistência destes dois conjuntos de sermões é perturbadora, Suspeito de que Nicolau de Clairvaux é o autor dos dois sermões e, com o seu génio de falsário, fez de um uma imitação de Pedro Damião e do outro uma imitação de S. Bemardo'". Se os dois sermões não são obra dos ilustres santos a quem são atribuídos, constituem em compensação testemunhos excelentes - verídicos desta vez - do nascimento do Purgatório e da formação do sistema de um triplo além: Céu, Purgatório, Inferno. Ou o pseudo-Pedro Damião é anterior e a expressão loca purgatoria se explica assim, enquanto o pseudo195
-Bernardo foi composto quando o Purgatório (purgatorium) já existe: ou então, se os dois textos são obra de um mesmo falsário que se inspirou decerto em obras autênticas talvez mesmo num esboço bernardino deste sermão, ele atribuiu, consciente ou inconscientemente, a cada pseudo-autor o vocabulário que parecia convir-lhe, ainda que loca purgatoria não se encontre na primeira metade do século XI, nem purgatorium na primeira metade do século XII. Que esse falsário seja Nicolau de Clairvaux é, cronologicamente, perfeitamente possível. Os dois manuscritos mais antigos onde se encontram o sermão do pseudo-Bernardo e a palavra purgatorium foram muito provavelmente copiados no fim do terceiro quarto do século xn!'. Ora Nicolau de Clairvaux morreu depois de 1176. Seríamos assim reconduzidos ao decénio 1170-1180. O autor do sermão atribuído a S. Bernardo, mesmo que só tenha sido um retocado r ou um falsário integral, compôs um texto que ia no mesmo sentido do grande cisterciense. Este tinha, com efeito, uma percepção do além muito especial. No quarto sermão para a consagração da Igreja Sobre a Casa Tripla permite-se, a propósito do Paraíso, esta efusão: «Ó Casa maravilhosa, preferível às amadas tendas, aos templos desejáveis!... Sob as tendas, geme-se em penitência; nos templos, experimenta-se a alegria; em ti saciamo-nos de glória 14.•. »
Os primeiros a passar pelo Purgatório: S. Bernardo Por ironia da história, S. Bemardo, pai putativo do Purgatório mas a quem devemos renunciar atribuir «essa invenção», aparece como o primeiro beneficiário individual conhecido da crença desse novo lugar. Uma carta de Nicolau de Saint-Alban a Pierre de Celle, portanto anterior à morte deste em 1181 e provavelmente de 1180-1181, afirma que S. Bernardo fez uma breve passagem pelo Purgatório antes de entrar no Paraiso. Porquê esta purgação do santo? S. Bernardo era hostil à ideia da lmaculada Conceição da Virgem, ainda que muito devoto de Maria. O. partidários desta crença pretenderam, para abalar as imaginações e desconsiderar os seus adversários, que o abade de Clairvaux fora, por este ligeiro erro, (benignamente) sancionado. O tema da passagem dos homens célebres pelo Purgatório expandir-se-á no século XIII. Parece que S. Bernardo terá inaugurado a série. Filipe Augusto, que reinou entre 1180 e 1223, terá sido o primeiro rei de França a passar pelo Purgatório. Reencontramos S. Bernardo, decididamente ligado ao nascimento do Purgatório, num interessante manuscrito cisterciense do fim do século XII que é uma das primeiras recolhas de exempla, essas historietas introduzidas subrepticiamente pelos pregadores nos seus sermões e que desempenharam, como se verá, um grande papel na difusão do Purgatório no 196
século xnr". O capítulo XXXIV é dedicado à ilustração das penas das almas depois da morte (De penis animarum post mortem} e começa por 11m excerto da visão do santo Fursy, e Bede. Apresenta a seguir várias outras visões depois de ter declarado que «penas muito pesadas são innig~das no Purgatório (in purgatorio) por excessos que consideramos muito leves». E outro testemunho da existência do Purgatório, palavra c crença. Entre estas visões, uma é apresentada como tendo sido extraída da vida de S. Bernardo. Eis a historieta: «Um irmão animado de boas intenções mas tendo para com os outros irmãos um comportamento excessivamente severo e menos compassivo do que deveria, morreu no mosteiro de Clairvaux. Poucos dias depois de ter morrido, apareceu ao homem de Deus (S. Bernardo) com um ar lugubre e um aspecto lamentável, mostrando bem que nem tudo se passava segundo os seus desejos. Bernardo perguntou-lhe o que lhe tinha acontecido e ele queixou-se de ter sido entregue às quatro torturas. A estas palavras, foi empurrado por trás e levado precipitadamente perante () olhar do homem de Deus. Este, com grandes lamentos, gritou-lhe nas costas: "Peço-te em nome do Senhor que me dês a conhecer em breve a tua situação." Pôs-se a rezar e pediu a alguns irmãos cuja grande santidade bem conhecia que oferecessem por aquele irmão o sacrifício eucarlstico e que o ajudassem também eles. E não desistiu até, alguns dias depois, ser informado por uma outra revelação, conforme pedira, de que o irmão merecera alcançar o conforto da libertação.» Esta pequena história - bem como as outras que lhe fazem companhia no manscrito - é o mais antigo testemunho que conheço de histórias de aparições de almas do Purgatório expressamente mencionado, as quais irão popularizar a crença no novo lugar do além do século XIII. Desde jil faço simplesmente notar que se trata de um espectro muito especial, muito vigiado, sujeito a um duplo controlo, o dos seus carrascos no além, que limitam ao mínimo as suas aparições, e o dos que o ajudam câ em baixo e lhe pedem que Ihes preste contas com exactidão. Surge agora um conjunto de testemunhos irrefutáveis sobre a palavra purgatório que provam a sua existência nos últimos anos do século XII e nos primeiros do século XIII. Provêm sobretudo de teólogos.
Os primeiros teólogos do Purgatório: Pedro, o Chantre, e Simão de Tournai Julgo que quem integrou o Purgatório no sistema e no ensino da teologia foi Pedro, o Chantre, cuja importância na construção da escolástica é cada vez mais reconhecida. Este mestre da escola de Notre-Dame de Paris, falecido em 1197, foi sem dúvida a pessoa que, lançando o olhar sobre o mundo que à sua volta se transformava nos comportamentos 197
económicos, nas estruturas sociais e políticas, e nas mentalidades, melhor teorizou e captou no encadeamento da casuística as novidades de um mundo urbano e monárquico'", É ainda a propósito da penitência que encontramos o purgatório na sua Súmula sobre os sacramentos e os conselhos da alma (Summa de sacramentis et animae consiliis), Ao falar do pecado venial, Pedro, o Chantre, chega a afirmar que por sua causa é infligida no Purgatório (in purgatorio ) uma determinada pena. Ataca em seguida aqueles que julgam que os condenados passam também pelo Purgatório (per purgatorium ) antes de irem para o Inferno, e que lá são purgados e perdoados. É absurdo, argumenta o Chantre, pois nesse caso a situação dos eleitos não seria melhor do que a dos condenados. Pedro, o Chantre, toca então no ponto essencial: «É preciso distinguir os lugares dos bons e os lugares dos maus depois desta vida. Para os bons, é ou o Paraíso (patria) imediatamente se não levam consigo nada para queimar, ou primeiro o Purgatório (purgatorium ) e depois o Paraíso, por exemplo, no caso daqueles que levam consigo pecados veniais. Para os maus não se refere receptáculo e diz-se que vão imediatamente para o Inferno». O Chantre afirma a seguir que o Purgatório apenas acolhe os predestinados (eleitos) e enumera de novo diversas opiniões. Há, por exemplo, quem diga que os maus passam realmente pelo Purgatório, mas que este não é para eles um Purgatório verdadeiro mas simplesmente um veículo que os conduz para o fogo eterno. Outros dizem que o pecado venial é punido pela pena eterna por causa da impenitência final no momento da morte. Mas, diz o Chantre, a impenitência é a causa sem a qual não haveria condenação eterna mas não é a causa dela. Nestes poucos parágrafos o substantivo purgatorium surge frequentemente, nove vezes exactamente. Em Paris pelo menos, a palavra e a ideia são já visivelmente correntes no fim do século e o sistema Inferno-Purgatório-Paraíso parece estar instalado' Numa outra passagem do De sacramentis onde se trata da remissão dos pecados veniais, Pedro, o Chantre, recorda que «os nossos mestres dizem que o pecado venial é remido pela pena do Purgatório (per penam purgatorli] e não pela penitência. Mas o Chantre não é dessa o~inião. O substantivo Purgatório é usado duas vezes em poucas linhas 8. Numa terceira parte, recolha de casos de consciência, Pedro, o Chantre, responde à pergunta: poderá a esmola resgatar os pecados veniais? «Há dois purgatórios, um no futuro depois da morte, que pode ser encurtado principalmente por meio da celebração de missas e secundariamente por outras boas obras. O outro purgatório é a penitência imposta, que pode igualmente ser mitigada pelas mesmas coisas.» Vê-se por aqui que o Chantre, mesmo considerando o Purgatório um dado adquirido, não tem dele, em todo o caso, uma visão puramente espacial; nesta última
passagem, ele não é um lugar mas sim um estado!". Noutra das suas obras, talvez a mais conhecida, o Verbum abbreviatum, que alguns datam de 1192, Pedro, o Chantre, interroga-se sobre qual a quantidade e a intensidade de penitência que podem igualar o fogo purgatório. Emprega igualmente os termos fogo purgatório e purgatório, comportamento habitual nesta época e que voltaremos a encontrar no século xnr". Outro célebre professor parisiense falecido em 1201, Simon de Tournai, aluno de Odon d'Ourscamp, deixou as Disputas (Disputes - Disputationes), género lançado por Abelardo e que, apesar da hostilidade dos conservadores (S. Bernardo, Hugo de Saint- Victor que nem nele fala, João de Salisbury, Estêvão de Tournai), entra no ensino da teologia na segunda metade do século XIII e é introduzido por Pedro, o Chantre, na exegese bíblica. Simão de Tournai fala do Purgatório em três disputas'", Na disputa XL, responde à pergunta: é possível adquirir-se ainda méritos depois da morte? Alguns avançam que se adquirem méritos pelos sofrimentos suportados no Purgatório. A expressão usada é not s) purgatório(s) (in purgatoriis) que vimos atrás. Mas na sua resposta Simão, que é hostil a esta concepção, depois de ter afirmado que depois desta vida não há qualquer lugar onde se possa adquirir méritos, emprega quatro vezes a palavra purgatório, duas vezes para evocar o sofrimento do Purgatório (passio purgatorii), uma vez para falar da pena do Purgatório (pena purgatorii) e uma vez ao fazer alusão à travessia do Purgatório (transeundo purgatorium). Na disputa LV há duas perguntas referentes ao Purgatório. Uma é para saber se o fogo purgatório pode ser uma pena eterna, a outra se graças aos sufrágios da Igreja se pode ser inteiramente isento do Purgatório. À primeira pergunta Simão responde um pouco a contragosto, sublinhando que o problema não reside em saber se se cometeu um pecado venial ou mortal, mas sim se se morreu impenitente ou não; à segunda responde pela afirmativa, referindo que um morto pode, enquanto vivo, ter merecido ser completamente liberto do Purgatório pelos sufrágios da Igreja, e que pode mesmo ter merecido nem sequer entrar no Purgatório (ne intraret purgatorium). Como se vê nesta disputa, Simão de Tournai emprega com grande discernimento purgatorium, subtantivo que designa um lugar, e fogo purgatório (ignis purgatorius) para descrever a pena que lá se sofre. Na disputa LXXIII, enfim, Simão responde à pergunta sobre se as almas são punidas por um fogo material no Purgatório ou no Inferno. Designa o Purgatório quer pelo substantivo purgatorium quer pela fórmula mais antiga in purgatoriis (no(s) purgatório(s), subentendendo-se lugares). A sua resposta é que no Inferno existirá um fogo corporal mas que no Purgatório deve tratar-se de um fogo espiritual, metafórico, de uma pena muito severa, pois o fogo representa a mais severa de todas as penas corporais.
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Faço ainda notar que um outro professor parisiense célebre, Pedro de Poitiers falecido em 1205, que num texto das suas Máximas utilizou todo o arsenal das expressões antigas que precederam a palavra purgatório, empregou também o substantivo na mesma obra, se é que o copista não omitiu a palavra fogo {ignem): «Eles passarão pelo purgatório» (transibunt per purgatorium ) 2. Último testemunho do aparecimento do substantivo purgatorium mesmo no fim do século XII: a sua presença num texto já não teológico mas hagiográfico. Trata-se de uma passagem de uma vida do santo Victor, mártir de Mouzon, que define o Purgatório (pur~atorium) como um lugar de combustão, como a prisão da purgação 3. Antes de apresentar alguns textos e alguns problemas que me parecem importantes para esclarecer o significado do nascimento do Purgatório no fim do século XII e no princípio do século XIII, pode ser útil fazer agora o ponto da situação no que toca a esse nascimento.
A Primavera
parisiense e o Verão cisterciense
-de-obra da praça de Greve - as grandes verdades do cristianismo são repensadas e remodeladas com fervor e criatividade, Mundo onde as ideias fervem, o debate irrompe, as opiniões chocam-se pacificamente. Os mestres e os estudantes tomam notas, redigem febrilmente as recolhas de perguntas, de disputas, de referências onde, apesar da autoridade de alguns mestres eminentes, já não se sabe bem quem é o autor desta ou daquela ideia, e onde se confrontam as posições mais diversas, por vezes levadas até ao absurdo: «uns dizem ... », «outros pensam ... », «outros ainda supõem ... ». É o belo tempo da irrupção escolástica. Mas não vai durar. A partir de 1210 o domínio da Igreja e da monarquia afirma-se. Acendem-se as fogueiras onde se queimam os livros e os homens. Simples aviso. A escolástica vai conhecer grandes dias, as suas maiores glórias, no século XIII. Mas essas catedrais intelectuais, as grandes colectâneas do século de s. Luís, são monumentos bem ordenados de que foram banidas as divagações e as efusões. O que, aliás, não será bastante para os censores do século uma vez que, em 1270 e 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier, vai virar a sua artilharia para tudo o que parecer original e novo, para um Siger de Brabant a quem censuram aquilo que não disse, para um Tomás de Aquino, menos audacioso do que se julga. O Purgatório nasce com a Primavera da escolástica, nesse momento de criatividade excepcional que assiste à confluência efémera do intelectualismo urbano e do ideal monástico. O segundo meio de aparecimento do Purgatório é na verdade Cister. Pouco importa que S. Bernardo não tenha inventado o Purgatório. A atenção especial que os cistercienses prestam às relações entre os vivos e os mortos, o novo impulso que depois de Cluny - que discutem mas que continuam - dão à liturgia do princípio de Novembro, associando os santos e os mortos, leva-os até às fronteiras do Purgatório. Os laços que mantêm com os meios intelectuais urbanos fizeram, sem dúvida, o resto. Muitos mestres universitários, parisienses principalmente, Odon d'Ourscamp, Pedro, o Devorador, Pedro, o Chantre, Alain de LiIle, acabam os seus dias em mosteiros cistercienses. É na encruzilhada dos dois meios, entre 1170 e 1200, talvez no decénio 1170-1180 mas com certeza nos dez últimos anos do século, que aparece o Purgatório.
Consultei o maior número possível de documentos emanados das diversas regiões da cristandade e estudei especialmente as obras emanadas dos principais centros de produção intelectual e cultural na viragem do século XII para o século XIII. Creio poder afirmar com bases sólidas que dois meios firmaram a crença e lançaram a palavra de purgatório. O primeiro, o mais activo, foi o meio intelectual parisiense e, em particular, a escola catedrática, a escola do capítulo de Notre-Dame da qual nunca se elogiará suficientemente o papel capital que desempenhou antes da animação intelectual passar para a margem esquerda e para os ensinamentos da nova universidade, especialmente à volta dos mestres mendigos, os dominicanos e os franciscanos. Um movimento teológico importante já instalado na margem esquerda precedeu e alimentou no século XII, e principalmente na sua primeira metade, este ímpeto. As abadias de Saint-Victor e de Sainte-Geneviêve foram as suas principais animadoras. Será necessário relembrar os nomes e a relevância das escolas de Hugo de Saint-Victor, de Abelardo e dos seus discípulos? Mas é a partir da docência e das obras de Pedro Lombardo, ao redor dos mestres e chanceleres da escola de Notre-Dame, com especial menção para Odon d'Ourscamp, Pedro, o Devorador e Pedro, o Chantre, que irrompe a explosão intelectual. No coração do Paris de Luís VII e do jovem Filipe Augusto, no contacto com os cambistas nas cobertas dos barcos, com os empresários da navegação no Sena, com os artesãos e os operários - mercadoria humana já explorada no mercado de mão-
É preciso ter em conta uma terceira frente: a luta anti-herética. Na viragem do século XII para o século XIII, um certo número de autores eclesiásticos contribuíram grandemente para o nascimento do Purgatório. Esses autores têm em comum o facto de terem lutado contra os hereges e terem utilizado de novo o Purgatório como instrumento de
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o Purgatório
e a luta contra a heresia
combate. O Purgatório, como muitas crenças, não nasceu somente de tendências positivas, da reflexão dos intelectuais e da pressão das massas, mas também de anseios negativos, da luta contra os que não acreditavam nele. Esta luta indica que o Purgatório tem então implicações importantes. É contra os hereges nos séculos XII e XIII, contra os gregos entre os séculos XIII e XV e contra os protestantes nos séculos XVI e XVII que a Igreja romana põe em funcionamento a doutrina do Purgatório. A continuidade dos ataques contra o Purgatório da parte dos adversários da Igreja romana oficial é impressionante. Todos pensam que o destino dos homens no além só pode depender dos seus méritos e da vontade de Deus. Tudo é decidido, pois, quando se morre. Os defuntos vão directamente (ou depois do Julgamento Final) pau o Paraíso ou para o Inferno, mas não existe qualquer resgate entre a morte e a ressurreição: portanto não existe Purgatório, e é inútil rezar pelos mortos. Para estes hereges que não gostam da Igreja, é também a oportunidade para lhe negar qualquer papel depois da morte, para lhe recusar esse prolongamento do seu poder sobre os homens. Já vimos o processo dos hereges de Arras, combatidos por Gerardo de Cambrai no princípio do século Xl. Reencontramos o problema no princípio do século XII entre os hereges, quer individualizados quer anónimos no seio de um grupo. É o caso de Pierre de Bruys, contra quem o célebre abade de Cluny, Pedro, o Venerável, escreveu um tratado. E é ainda mais o do seu discípulo mais radical, o monge e depois vagabundo Henrique que, em Lausanne e em Mans cerca de 1116 e noutros locais desconhecidos, prega ideias na linha das de Arras, o que lhe vale ser preso em 1134 e levado perante o concilio de Pisa. Um tratado anónimo escrito na primeira metade do século XII esforça-se por refutar Henrique e os seus partidários. Atribui aos adversários a ideia de que «nada pode ir em socorro dos mortos que, logo que morrem, são condenados ou salvos», o que lhe parece «abertamente herético». Baseando-se no conjunto do processo tradicional da Igreja (11Macabeus XII, 41-45 ... , Mateus XII, 31, I Coríntios, lU, 10-15, o De cura pro mortuis gerenda de Santo Agostinho), afirma a existência de dois fogos, o fogo purgatório e o fogo eterno. «Há, sustenta ele, pecados que serão apagados no futuro (no além) pelas esmoIas dos amigos e pelas preces dos fiéis ou pelo fogo purgatório ".» Reencontramos aqui S. Bernardo. Num sermão sobre o Cântico dos Cânticos, escrito em 1135 e escrito de novo em 1143-1145, Bernardo ataca os hereges que «não crêem que o fogo purgatório existe depois da morte e julgam que a alma, quando se separa do corpo, vai ou para o repouso ou para a condenação». A estes hereges, Bernardo, conforme a atitude habitual da Igreja, trata-os de animais pérfidos e declara, com o desprezo do clérigo nobre, que «são boçais, iletrados, totalmente desprezíveis». Tenta dar-lhes nomes, segundo o que é hábito, de acordo com o nome do seu
chefe, mas eles não têm chefe e chamam-se a si próprios, frontalmente, Apostólicos. São hostis ao matrimónio, ao baptismo, às orações pelos mortos e ao culto dos santos; são vegetarianos (não comem nada que provenha do coito, portanto dos animais). S. Bernardo, apoiando-se em Matias, XII, 32, opõe-lhes a existência não do Purgatório ainda ignorado, mas do fogo purgatório, e afirma a eficácia dos sufrágios pelos rnortos'". A linha de Arras é clara, mesmo sem ter tido continuidade e filiação directa. A recusa do Purgatório vai reencontrar-se no fim do século XII e no começo do século XIII entre novos hereges: os Valdenses e os Cátaros. Entre eles a hostilidade ao Purgatório faz parte de sistemas religiosos diferentes, apesar da presença de elementos heréticos tradicionais. Mas sobre este ponto a posição de todos estes novos hereges é praticamente a mesma: os vivos nada podem pelos mortos, os sufrágios são inúteis. Entre os cátaros, a doutrina da metempsicose exclui sem dúvida o Purgatório porque tem a mesma função de purificação «temporária». O primeiro texto desta querela é certamente o do abade agostiniano Bernardo de Fontcaude que entre 1190 e 1192 escreve um Livro Contra os Valdenses (Liber contra Waldenses). A palavra purgatório não aparece mas o sistema dos três lugares do além é descrito com um clareza toda nova26• No capítulo X Bemardo de Fontcaude combate os «que negam o fogo purgatório e dizem que a alma, ao separar-se do corpo, vai para o Céu ou para o Inferno». Opõe-Ihes três autoridades: a primeira epístola de Paulo aos Corintios, Agostinho no Enchiridion e o capítulo XIV de Ezequiel onde Javé declara que as preces dos justos não poderão libertar o povo infiel e que este terá de se libertar a si mesmo. Comenta S. Paulo dizendo que estas palavras aplicam-se «ao fogo da purgação futura»; comenta Agostinho declarando que Deus expurga os pecados quer pelo baptismo e pelo fogo da atribuI ação temporária (cá em baixo), quer no fogo da purgação; comenta Ezequiel, concluindo que Javé ordena que o povo infiel seja colocado no fogo purgatório. É no capítulo XI que se situa a passagem mais interessante. Certos hereges pretendem que os espíritos dos defuntos, antes do Julgamento Final, não entram nem no Céu nem no Inferno e são recebidos noutros receptáculos. Bernardo afirma que eles se enganam: «Há de facto três lugares que recebem os espíritos libertos da carne. O Paraíso recebe os espíritos dos perfeitos, o Inferno os inteiramente maus, o fogo purgatório aqueles que não são inteiramente bons nem inteiramente maus. Assim um lugar inteiramente bom recebe os inteiramente bons; um lugar extremamente mau recebe os inteiramente maus; um lugar medianamente mau recebe os medianamente maus, e é menos duro do que o Inferno mas pior do que o mundo''?»,
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Bernardo de Fontcaude não conhece pois o Purgatório mas apenas o fogo purgatório. Mas este tomou-se um lugar, o além entre a morte e o Julgamento Final é triplo e, pela primeira, vez o (Purgatório) é definido como um lugar duplamente intermédio, médio: topográfica e judicialmente. Conhece-se mal Ermangaud de Béziers (também existem vários personagens com este nome) mas o seu tratado contra os Valdenses (Contra Wa/denses) data muito provavelmente dos últimos anos do século XII ou logo dos primeiros do século XIII. No capítulo XVII ele ataca as opiniões perversas de certos hereges que asseguram que as preces dos santos não ajudam os vivos e que os defuntos não são confortados pelas oferendas e as orações dos vivos. Contra eles, Ermengaud afirma que há três espécies de defuntos: os inteiramente bons que não precisam de ajuda, os inteiramente maus pelos quais nada se pode fazer porque no Inferno não existe redenção, e uma terceira categoria, os que não são inteiramente bons nem inteiramente maus, que se confessaram mas que não terminaram a sua penitência. Ermengaud não só não pronuncia a palavra purgatório como também não emprega qualquer palavra da família de purgare. Diz ele que esses mortos «não são nem condenados nem imediatamente salvos, mas - puni id os enquanto esperam a sa Ivaçao» - 28 . que sao Uma Súmula contra os Hereges, do início do século XIII, erradamente atribuída a Prévostin de Cremona, chanceler de Paris falecido em 1210, acusa alguns hereges chamados «Passagins» de se recusarem a orar pelos mortos. Depois de ter refutado a interpretação que eles fazem da história do pobre Lázaro e do mau rico, relegando para o passado, anteriormente à descida do Cristo aos infernos, a existência do seio de Abraão ou «limbo do inferno» que ocupa o inferno superior em relação ao inferno médio e ao inferno inferior, o pseudo-Prêvostin apresenta a sua solução para o problema das preces pelos mortos. Deve-se rezar «pelos medianamente bons que estão no Purgatório, não para que se tornem melhores mas para que sejam libertados mais cedo, e pelos medianamente maus não para que sejam salvos mas para que sejam menos punidos.» O pseudo-Prêvostin revela-se pois muito agostiniano e distingue entre a purgação no Purgatório, que existe, e a «condenação mais tolerável» que tem provavelmente lugar no Inferno. A doutrina católica sobre os sufrágios apoia-se para ele nas seguintes autoridades: o segundo livro dos Macabeus, 12, o versículo dos Provérbios, XI, 7: «Quando o justo morre, a sua esperança não morre», comentado por Bede (cf. PL, 91, 971) e sobretudo Mateus XII 32 «onde se demonstra claramente que certos pecados são , '.' . 29 remidos na Vida futura». Deve-se pOIS rezar pelos mortos . O caso de Alain de Lille é diferente. Trata-se, antes de mais, de um mestre de primeiro plano?". Professor na incipiente universidade de Montpellier, falecido em 1203, empenha-se na luta contra os hereges valdenses e cátaros, mas no seu tratado Contra os Hereges (Contra Haere204
.. 31 E ticos ) «deixou cair a questão do Purgatório» . m compensaçao,abordou o problema nos seus tratados sobre a penitência e a prédi~a. Na sua Súmu/a sobre a Arte da Pregação (Summa de arte praedicatoria), declara a propósito da penitência: «Existe um fogo triplo: purgatório, probatório e decisivo. O purgatório é a reparação dos pecados, o probatório o exame (tentatio ) e o decisivo a c~ndena?ão eter~a. "», O fogo purgatório é duplo: um tem lugar no caminho (ca em baixo), e a penitência; outro depois da vida, é a pena purgató~a. Se n~s expurgamos no primeiro, ficamos isentos do segun~o e .do terceiro; s~ ~ao sofr~rmos o primeiro sofreremos o segundo ... O pnmeiro, o Purgatono, exclui os outros dois ... o fogo purgatório não é senão a sombra e o retrato do segundo e assim como a sombra e o retrato do fogo material não provoca qualquer dor ... também o fogo penitência não é amargo em comparação com o segundo fogo purgatório»; e cita Agostinho ". O q~e ~n~eressa p~is u Alain de Lille é a penitência, e nessa época de extraordinária ~~oluçao da penitência, ele identifica o fogo da atribulação terrena admitido por Agostinho com a penitência cá neste mundo. . . No seu tratado sobre a penitência, o Liber poenitentia/is, redigido depois de 1191 e de que existem várias versões entre as quai~ uma ~onga escrita entre 1199 e 1203, Alain interroga-se sobre se a Igreja, por mtermédio do' bispo ou do padre, pode perdoar a penitência na absolvição. ~s ideias de Alain podem parecer desconcertantes: para ele, o fogo purgatorio propriamente dito é o da penitência aqui e~ baixo; e li~ita o pod~r Ado bispo ou do padre ao perdão da pe?a purgatona, quer d~zer d~ pemtencia; mas a Igreja nada pode para alem da morte, o que nao sera o entendimento do clero do século XIII33. Nestes textos Alain de Lille, que dispõe de um vocabulário simultaneamente tradicional e novo fala tanto do fogo purgatório (ignis purgatorius) e da pena purgatoria (poena purgatoria ) como do Pu~gatóri? propriamente dito. Usa notoriamente o substantivo numa questao particularmente interessante que comentarei adiante a propósito do «tempo do purgatório»: «Pergunta-se se aquele que d~via cuo:prir (uma penitência aqui em baixo) de sete anos e não a cu~pn?, ficar~ ~urante sete anos no Purgatório. Respondemos nós: ele terminara sem dúvida esse dever no Purgatório, mas ~uanto tempo lá ficará isso só o sabe aquele que pes~ as penas na balança 4,» O que significa pôr o pr?~lema da p~oporclOnahdade das penas do Purgatório e abrir a contabilidade do alem.
o atraso
dos canonistas
Contemporâneo da expansão teológica de que Paris é o centro, ouIro movimento intelectual agita a cristandade da segunda metade do 205
século XII - a efervescência do direito canónico, cujo centro intelectual, institucional e político é Bolonha. Já o mencionei a propósito desse texto essencial que é o Decreto de Graciano (cerca de 1140). Ora, quando do nascimento do Purgatório, o movimento canonista parece estranhamente ausente. Monsenhor Landgraf já o notara de um modo mais genérico: «Não podemos no entanto esconder, escrevia ele em 1948, que em geral os canonistas, longe de promoverem o progresso sistemático em teologia, contentam-se a maior parte das vezes com entravar-lhe o passo ".» Um canonista autor de um dos primeiros comentários ao Decreto de Graciano, a Suma cotoniensis, de 1169, ao referir-se aos sufrágios pelos mortos e portanto ao Purgatório, confessa-o: «Não tratei esta questão por ela dizer respeito mais aos teólogos do que aos canonistas"'.» Não é pois de estranhar que o grande canonista do fim do século XII Uguccione (ou Hugucio) de Pisa, na sua Súmu/a dos Decretos (Summa Decretorum) terminada entre 1188 e 1192, afirme que o tempo da purgação vai do momento da morte até ao do Julgamento Final; no que toca ao lugar dessa purgação, recorda que Agostinho falou de lugares secretos, escondidos (é o texto reproduzido no Decreto de Graciano) e confessa que também ele o ignora «Ignoro et ego ... 37» Todavia este silêncio não durará muito pois os canonistas apercebem-se rapidamente de que a questão é actual e importante e também lhes diz respeito, Nos primeiros anos do século XIII Sicard de Crémone, falecido em 1215, escreve ao comentar Graciano (quer dizer Agostinho): «É preciso entender que se trata daqueles que estão no Purgatório, mas alguns pensam que se trata dos que são atormentados no Purgatório e cujas penas podem, todas elas, ser mitigadas".» É interessante notar que, no manuscrito da Summa Coloniensis de que falei atrás, uma mão do século XIII anotou o esquema de Sicard de Cremona, corrigindo assim a confissão de indiferença do autor da Summa. O Purgatório e respectivo sistema estão também presentes, por exemplo, nas notas explicativas que João, o Teutónico, falecido em 1245, redigiu pouco depois de 1215 sobre o Decreto de Graciano. João retoma o texto de Santo Agostinho e do Decreto sobre os lugares secretos que nos são escondidos, e afirma a utilidade, para os medianamente bons, dos sufrágios graças aos quais eles serão libertados mais rapidamente do fogo do Purgatório'".
Uma carta e um sermão de Inocência III
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Suponho que três autores resumem, no começo do século XIII, o novo sistema do além resultante do aparecimento do Purgatório:
primeiro é, aliás, o Papa Inocêncio 111(1198-1216). É notável que o pontífice tenha aceitado tão depressa as novas concepções. Numa carta ao arcebispo de Lyon, em 1202, o Papa mostra-se circunspecto. Sobre as conclusões a tirar da diferenciação agostiniana (retomada no Decreto de Graciano) entre as quatro categorias de defuntos: os inteiramente bons, os inteiramente maus, os medianamente bons e os medianamente maus, e da eficácia dos sufrágios dos vivos por intermédio da Igreja, em acções de graça para os inteiramente bons, em consolações para os vivos para os inteiramente maus, em expiações para os medianamente bons e em propiciações para os medianamente maus, ele remete-se ao discernimento do prelado'". Mas num sermão para o Dia de Todos-os-Santos sobre os dois serafins, os três exércitos e os cinco lugares onde estão os espíritos dos mortos, é muito mais conciso. Os dois serafins são os dois Testamentos. Os três exércitos são a Igreja triunfante no Céu, a Igreja militante na terra e a Igreja «que está no Purgatório». A primeira age no louvor, a segunda na luta e a terceira no fogo. Na primeira epístola aos Coríntios, Paulo faz alusão à terceira. E há ainda os cinco lugares onde se encontram os espíritos humanos. O lugar supremo é o dos supremamente bons, o lugar ínfimo o dos supremamente maus; o lugar do meio é para os que são bons e maus: entre o lugar supremo e o lugar do meio existe um lugar para os medianamente bons; entre o lugar dos meio e o lugar ínfimo há um lugar para os medianamente maus. O lugar supremo é o Céu, onde estão os bem-aventurados. O ínfimo é o Inferno, onde estão os eternamente condenados, o do meio é o mundo onde existem justos e pecadores. Entre o supremo e o médio está o paraíso (terreno) onde ainda vivem Énoch e Elias que morrerão. Entre o médio e o Ínfimo (há o Purgatório) onde Miíocastigados os que não fizeram penitência cá em baixo ou que levaram consigo na morte algum pecado venial. Se bem que haja cinco lugares, apenas existem três exércitos. Os que estão no Paraíso, ainda que pertençarn ao exército de Deus, não formam por si só um exército pois são apenas dois. O exército do meio rende hoje homenagens ao exército que triunfa no céu, e amanhã ergue preces pelos que estão no purgatório. Inocêncio 111 acrescenta aqui uma observação de ordem psicológica: «Com efeito, quem não louvará de boa vontade a indivisível Trindade pelos santos, por meio de preces e dos méritos com que julgamos ser ajudados para também um dia estarmos lá onde eles estão? Quem não elevará de boa vontade preces à indivisível Trindade pelos mortos, quando ele próprio terá de morrer, quem não fará nesta vida por outrem o que deseja que façam por ele depois de morto?» E o Papa termina exaltando a solenidade da Festa de Todos-os-Santos".
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Cerca de 1200: o Purgatório
instala-se
Texto admirável onde se fala por várias vezes do Purgatório e onde Inocêncio lU dá, sob uma forma simbólica tradicional, a expressão mais completa, mais clara, mais elaborada - encerrando a humanidade inteira desde o aparecimento até ao fim dos tempos num plano perfeito, cuja parte terrena se desenrola sob o estrito controlo da Igreja. A Igreja torna-se ela própria tripla. Agostinho distinguira Igreja «peregrinante» e Igreja «celeste»; o século XII impusera os novos termos de Igreja «militante» - expressão lançada por Pedro, o Devorador'f - e a Igreja «triunfante». Inocêncio 11I acrescenta-lhe a Igreja do Purgatório, enunciando um terceiro termo, que sob o nome de Igreja «sofredora» completará mais tarde a triade eclesiástica. É o triunfo da racionalização dos cinco lugares apontados pelo pseudo-Pedro Damião e pelo pseudo-Bernardo, O pontífice, de resto, maravilha-se com este belo arranjo: «Oh! como a instituição desta prática é conveniente e salutar!»43
Purgatório e confissão: Thomas de Chobham O segundo texto é extraído da Súmula dos confessores, do inglês Thomas de Chobham, formado em Paris no círculo de Pedro, o Chantre. Terei oportunidade de voltar a referir-me à confissão, à sua ligação com o aparecimento do Purgatório, à influência das decisões do quarto concílio de Latrão (1215) e à redacção daqueles manuais para confessores que testemunham da subversão da vida espiritual, dos novos problemas das consciências dos homens, da multiplicação das suas dúvidas sobre o mundo cá de baixo e do além, e dos esforços da Igreja para manter o controlo sobre a nova sociedade. A Súmula confessorum, de Thomas de Chobham, foi escrita pouco antes de Latrão IV e terminada a seguir ao concílio. O Purgatório é mencionado a propósito das missas pelos defuntos. «A missa, diz a Súmula, é celebrada pelos vivos e pelos defuntos, mas por estes duplamente, pois os sacramentos do altar são petições para os vivos, acções de graça para os santos e propiciações para os que estão no Purgatório, e têm como resultado a remissão da sua pena. E é para simbolizar esta crença que a hóstia no altar é dividida em três partes, e uma parte é para os santos, outra parte para os que vão ser santificados. Aquela tem uma acção de graça, esta é uma súplica'".» A Súmula responde em seguida à questão de saber se a missa pelos defuntos tem alguma eficácia para os condenados que estão no Inferno - baseando-se no capítulo CX do Enchiridion de Agostinho quando fala de «condenação mais tolerável». Thomas de Chobham é de opinião de que por «condenação eterna» se deve entender «a pena do Purgatório, pois nada se pode fazer pelos condenados ao Infernon'". 208
Vê-se aqui o Purgatório referido como um facto consumado, adquirido e aquele Purgatório integrado simultaneamente na liturgia e na disciplina penitencial. Os laços entre os vivos e os mortos estreitam-se.
() antigo e o novo vocabulário do além Finalmente, torna-se necessário adaptar a velha terminologia do além ü nova geografia do outro mundo. Alguns interrogam-se sobre o que
significam, em relação ao Purgatório, as expressões bíblicas, «a goela do leão», «a mão do inferno», «o lago do inferno», «os lugares das trevas» e «tártaro». Numa obra composta cerca de 1200 (nela são mencionados Pedro, o Chantre, e Prévostin), o autor que é talvez Paganus de Corbeil declara que na prece «liberta as suas almas da goela do leão, da mão do Inferno, do lago do Inferno» deve entender-se que se trata do fOfO purgatório em sim mesmo, conforme seja mais ou menos forte" . Na sua Súmula, Geoffroy de Poitiers, falecido em 1231, dará outra explicação: «Mais vale dizer, escreve ele, que há diversas moradas no Purgatório: a umas chama-se lugares obscuros das trevas, a outras mãos do Inferno, a outras ainda goela do leão e finalmente a outras tártaro. E destas penas, a Igreja pede que as almas dos mortos sejam libertadas'".» Eis o lugar purgatório por sua vez dividido. A frase de João, XIV, 2: «Na casa do meu Pai há numerosas moradas», válida para todo o além, é por sua vez aplicada a este novo espaço do além. Assiste-se já, por assim dizer, ao loteamento do Purgatório.
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Para pormenores, ver o Apêndice 11: Purgatorium. PL, 171, Col. 739 e ss. A parte mais interessante desta passagem lê-se assim no original latino: «Ad hunc modum in aedificatione coelestis Jerusalem tria considerantur, separatio, politio, positio. Separatio est violenta; politio purgatoria, positio aeterna. Primum est in angustia et afflictione; secundum, in patientia et exspectatione; tertium in gloria et exsultatione. Per primum (cribratur) homo sicut triticum; in secundo examinatur homo sicut argentum; in tertio reponitur in thesaurum» (col. 740). 3 «Tertio, memoria mortuorum agitur, ut hi qui in purgatorio poliuntur, plenam consequantur absolutionem, vel poenae mitigationem» (PL, 171, col. 741). 4 HAUREAU, «Notice sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in Notices et Extraits des manuscrits de Ia Bibliothêque nationale et autres bibliothéques, XXXII, 2, 1888, p. 143. R. M. MARTIN, «Notes sur I'oeuvre littéraire de Pierre le Mangeur» in Recherches dethéologie ancienne et médiévale, Hl, 1932, pp. 54-66. A. LANDGRAF, «Recherches sur les écrits de Pierre le Mangeur» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, IlI, 1932, pp. 292-306 e 341-372. A. WILMART, «Les sermons d'Hildebert» in Revue bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. M. M. LEBRETON, «Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre de Mangeur» in Bulletin d'information de l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 2 (1953), pp. 25-44. J. B. SCHNEYER no tomo IV, p. 641 (1972) do Repertorium der lateinischen sermones des Mittelalters flir die Zeit von 1150-1350 aceita a atribuição de Pedro, o Devorador, do sermão 85 (Jesuralem quae aedificatur ) da velha edição de Beaugendre (1708) - atribuição a Hildebert - retomada por Migne (PL, 171, col. 739 e ss.). F. Dolbeau fez o favor de examinar por nós os dois mais antigos manuscritos conhecidos até hoje. Confirma a atribuição a Pedro, o Devorador, e a lição in purgatorio (Ms. Angers 312 (303), f. 122 v' e Angers 247 (238) f. 67 v', ambos do fim do século XII). Mas descobriu um manuscrito mais antigo (Valenciennes, Biblioteca municipal 227 (218) 9. 49) no qual falta o fragmento da frase in purgatorio poliuntur. É surpreendente que Joseph Ntedika, geralmente muito bem informado, tenha escrito a respeito de Hildebert «ele é provavelmente o primeiro a empregar a palavra purg atorium» (L 'Évolution de Ia doctrine du purgatoire chez saint Augustin, Paris, 1966, 11, n' 17). Sobre Pedro, o Devorador, deve também consultar-se I. BRADY, «Peter Manducator and the Oral Teachings of Peter Lombard» in Antonianum, XLI, 1966, pp. 454-490. 5 PEDRO, O DEVORADOR, De Sacramentis. De penitentia, capo 25-31 ed. R. M. Martin in Spicilegium sacrum Lovaniense, XVII, apêndice, Lovaina, 1937, pp. 81-82.
PL, 198, 1589-1590. O que não contribui para tomar as coisas mais claras é o facto de, na segunda metade do século XII, haver em Paris vários Odon ou mestre Odon, tendo um deles sido chanceler de 1164 a 1168. Ver M. M. LEBRETON, «Recherches sur les manuscrits des sermons de différents personnagens du Xll" siêcle nommés Odon» in Bulletin rir l'Institut de Recherche et d'Histoire des Textes, 3, 1955, pp. 33-54. 8 IICum materialis poena si/ ille ignis, in loco est. Ubi ergo sit, quaerendum relinquo». Estas Quaestiones magistri Odonis foram publicadas por J. B. PITRA, Analecta no vissima spieilegíi Solesmensis altera continuatio, t. 11, Tusculum, 1888, pp. 137-138. 9 A. M. LANDGRAF, «Quelques collections de Questiones de Ia seconde moitié du XIIe siêcle» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, 6, 1934, pp. 368-393 e 7, 1935, pp. 113-128. É na página 117 do volume 7 que Landgraf exprime reservas sobre as questões editadas por Pitra e cita os trabalhos de M. CHOSSAT, «La Somme des Sentences» in Spicilegium Sacrum Lovaniense, 5, Lovaina, 1923, pp. 49-50 e de J. WARICHEZ, Les disputationes de Simon de Tournai, ibid., 12, tovaina, 1932. 10 O. J. BLUM, SI. Peter Damien: Bis Teaching on the Spiritual Life, Washington, 1947. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the sermons of Nicolas of Clairvaux» in Medieval Studies, 9, 1947, pp. 151-161 e sobretudo F. DRESSLER, Petrus Damiani. ieben und Werk (Studia Anselmiana, XXXIV), Roma 1954 e especialmente Anihang, J. pp. 234-235. I Já a Patrologia latina atribui este sermão a Nicolau de Clairvaux (PL, 184, 1055-1060), mas encontramo-lo sob o nome de Pedro Damião nesta patrologia, no tomo 144, 835-840. Este sermão foi para a festa de Saint Nicolas, que foi um dos «patronos do Purgatório». O sermão atribuído a S. Bemardo encontra-se nas obras completas editadas por J. Leclercq e H. M. Rochais, Opera, VI/I, pp. 255-261. Sobre os sermões De diversis atribuídos a S. Bemardo e especialmente sobre o sermão 42, ver H.-M. ROCHAIS, «Enquête sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in Analecta SOC, 1962, pp. 16-17 e Revue bénédictine, 72, 1962. 12 Sobre Nicolas de Clairvaux, além do artigo de J. Ryan, ver A. STEIGER, «Nikolaus Mõnch in Clairvaux, Sekretâr des heiligen Bernhards in Studien und Mitteilungen zur Geschichte des Benediktinerordens und seiner Zweige, N. F. 7, 1917, pp. 41-50. J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de Clairvaux» in Revue bénédictine, 66, 1956 e especialmente p. 275, n. 39. 13 Mme M.-C. GARAND examinou dois manuscritos entre os três mais antigos, Paris, Biblioteca Nacional, ms.Iatino 2571 e Cambrai 169. Escreve-me ela que «o facto de a santidade de S. Bemardo não figurar no título e ser objecto de correcção no ex-libris situa sem dúvida o manuscrito antes da sua canonização, em 1174. Mas talvez não muito antes, pois a escrita é já bastante perfeita e poderia bem situar-se no terceiro quarto do século XII. Quanto ao manuscrito de Cambraí a sua escrita e as suas características específicas sugerem, também eles, a segunda metade do século». 14 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq-H, Rochais, V, 383-388 e especialmente 386. O sermão LXXVIII De diversis sobre o mesmo tema parece-me mais um plágio forçado e simplificado de S. Bemardo do que um texto totalmente autêntico. ~as é apenas uma impressão. Não fiz qualquer pesquisa a este respeito. Ver B. de VREGILLE, «L'attente des saints d'aprês saint Bemard» in Nouvelle Revue théologique, 1948, pp. 225-244. 15 Trata-se do manuscrito latino 15912 da Biblioteca nacional de París. Mme Georgette Lagarde transcreveu dele as passagens que resumo aqui. A expressão in
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NOTAS
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purgatorio encontra-se no fólio 64b, e o exemplum tirado da vida de S. Bemardo nos fólios 65c-66a. \6 Ver J. BALDWIN, Masters, Princes and Merchants. The Social Views of Peter the Chanter and his Cire/e, 2, vol., Princeton, 1970. \7 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis et Animae Consiliis, ed. J. A. Dugauquier in Analecta Mediaevalia Namurcensia, 7, 1957, pp. 103-104. \8 Ibid., pp. 125-126. \9 PEDRO, O CHANTRE, Summa de Sacramentis ... , 38 parte, Ill, 2 a. Liber casuum conscientiae, ed. J. A. Dugauquier ín Ana/eeta Mediaevalia Namurcensia, 16, 1963, p. 264. 20 PL, 205, col. 350-351. A data de 1192 foi proposta por D. VAN DEN EYNDE, «Prêcisions chronologiques sur quelques ouvrages thêologiques du XIIe siêcle» in Antonianum, XXVI, 1951, pp. 237-239. 2\ J. WARlCHEZ, Les Disputationes de Simon de Tournai. Texto inédito, Lovaina, 1932. As disputas XL, LVe LXXIII encontram-se nas páginas 118-120, 157-158 e' 208-211. 22 PL, 211, col. 1054. Ver Ph. S. MOORE, The Works of Peter of Poitiers, Master in Theology and Chanceller of Paris (J193-1205), Publicações in Medieval Studies, Notre-Dame, (Ind.), I, 1936. 23 «Vie de saint Victor, martyr de Mouzon», ed. F. Dolbeau, Revue historique ardennaise, t. IX, p. 61. 24 R. MANSELLI, «Il monaco Enrico e Ia sua eresia» in Bolletino de//'Istituto Storico Italiano per iI Medio Evo e Archivio Muratoriano, 65, 1953, pp. 62-63. Sobre as heresias do século XII ver a obra fundamental de R. MANSELLI, Studi sul/e eresie dei secolo Xll, Roma, 1953. 25 S. BERNARDO, Opera, ed. J. Leclercq e H. Rochais, vol. lI, p. 185. Ver a introdução dos editores, vol. I, p. IX. 26 PL, 204, 795-840 (os capítulos 10 e Ii estão nas colunas 833-835). Cf. A. PASo CHOWSKY e K. V. SELGE, Quellen zur Geschiehte der Waldenses, Gõttingen, 1973 e L. VERREES, «Le traité de l'abbê Bemard de Fontcaude contre les vaudois et lee ariens» in Analecta praemonstratensia, 1955, pp. 5-35. G. GONNET pensa que estas ideias «foram professadas, pelo menos originariamente, mais por outras seitas do que pelos valdenses» (xd,e cheminement des vaudois vers le schisme et I'hérésie (1174-1218)>>in Cahiers de civi/isation médiévale, 1976, pp. 309-345). 27 Tria quippe sunt /oea quae spiritus a carne so/utos recipiunt . Paradisus recipit spiritus perfectorum. Infernus valde maios. Ignis purgatorionis eos, qui nec valde bonl sunt nec valdemali.Elsic.va/de bonos suscepit locus valde bonus; valde maios loCUI summe malus; mediocriter ma/os loeus mediocriter malus, id est /evior inferno, sec pejor . mundo» (PL, 204, col. 834-835). 28 «Et hi non damnantur, nec statim salvantur, sed puniuntur sub exspectatione percipiendae saiu tis» (PL, 204, 1268). 29 The Summa contra haereticos ascribed to Praepositiuus of Cremona, ed. J. N. Garvin e J. A. Corbett, Notre-Dame (lnd.), 1958, principalmente pp. 210-211. 30 Ver o estudo fundamental de M.-T. d'ALVERNY, Alain de Li/le. Textes inédus avec une introduction sur sa vie et ses oeuvres, Paris, 1965. 3\ G. GONNET in Cahiers de civilisation médiévale, 1976, p. 323. 32 Summa de arte praedicatoria, PL, 210,174-175. 33 Liber poenitentialis, ed. J. Longêre, t. 2, Lovaina- Lille, 1965, pp. 174-177. 34 Ibid., p. 177: «l/em quaeritur si iste debebat implere septem annos et non implevit,
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utrum per septem annos sit in purgatorio? Respondemus: procu/ dubio implebit illam satisfactionem in purgatorio, sed quamdiu ibi sit, il/e novit qui est librator poenarum.» 35 A. M. LANDGRAF, Einführung in die Gesehichte der theologischen Literatur der Frühscholastik , Ratisbonne, 1948, trad. francesa completa e actualizada, Paris, 1973, p. ~8. 36 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte der Frühscholastik, IV/2, Ratisbonne, 1956, p. 260, n. 3. 37 Segundo o manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 3891, fól. 183 v· (informações amavelmente prestadas pelo Padre P. M. Gy). 38 Citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ... , IVj2, p. 261, n. 6. 39 Johannes Teutonicus, fól. CCCXXXV V, CCCXXXVI. 40 PL, 214, 001. 1123. 4\ PL, 217, col. 578-590. Eis a passagem essencial: Deus enim trinus et unus, tres tribus /ocis habet exercitus. Unum, qui triumphat in coe/o; alterum, qui pugnat in mundo; tertium, qui jacet in purgatorio. De his tribus rxercitibus inquit Apostolus: «In nomine Jesu omne genu flectatur, coelestium, terrestrlum et infernorum (Filipinas 11).» Hi tres exercitus distincte clamam cum seraphim, Sanctus Pater, sanctus Filius, sanctus Spiritus. Patri namque attribuitur potentia, quae convenit exercitui, qui pugnat in via; Filio sapientia, quae competit exercitui, qui triumphat in patria; Spiritui sancto misericordia, quae congruit exercitui, qui jacet in poena. Primus exercitus in laude, secundus in agone, tertius autem in igne. De primo /egitur: li Beati qui habitant in domo lua, Domine, in saecula saeculorum laudabunt te (Salmos, LXXXIII);» de secundo dicitur: «Militia est vila hominis super terram; et sicut dies mercenarii, -dies ejus (Job, VII).» De ter tio vero inquit Aposto/us: «Uniuscujusque opus quale sit, ignis probabit (I Corintios, III).» Sane quinque loca sunt, in quibus humani spiritus commorantur. Supremus qui est summe bonorum; infimus, qui est summe malorum; medius, qui est bonorum et maforum; et inter supremum et medium unus, qui est mediocriter bonorum; et inter medium et infimum alter, qui est mediocriter ma/orum. Supremus, qui est summe bonorum, est coelum, in quo sunt beati. lnfimus, qui est summe malorum, est infernus, in quo sunt damnati. Medius, qui est bonorum et malorum, est mundus, in quo justi et peccatores. Et inter suprem um et medium, qui est mediocriter bonorum, est paradisus; in quo sunt Enoch et Elias, vivi quidem, sed adhuc morituri. 1\1 inter medium et infimum, qui est mediocriter malorum, in quo puniuntur qui poenitenliam non egerunt in via, vel aliquam maculam venia/em portaverunt in morte. 42 Ch. THOUZELLIER, «Ecclesia milítans» in Études d'histoire du droit canonique dedicados a Gabriel Le Bras, tomo II, Paris, 1965, pp. 1407-1424. 43 «O quam rationabilis et salubris est hujus observantiae institutio», PL, 217, col. WO. 44 THOMAS DE CHOBHAM, Summa Confessorum, ed. F. Broomfield, Lovaina-Paris, 1968, pp. 125-126. 45 Ibid., p. 127. 46 Manuscrito Paris, Biblioteca nacional, ms latino 14883, fólio 114, citado por A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ... , IV/2, p. 281, n. 61. 47 «Melius eSI, ut dicatur, quod diverse mansiones sunt in purgatorio: alia appelantur obscura tenebrarum Ioga, alia manus inferni, alia os leonis, afia tartarus. E/ ab istis penis petit Ecclesia animas mortuorum liberari» (Ibid., p. 281, n. 61).
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VI - O PURGATÓRIO
ENTRE A SICÍLIA E A IRLANDA
Da visão de Drythelm à de Carlos, o Gordo, as viagens imaginárias pelo além - consideradas «reais» pelos homens da Idade Média, se bem que sejam apresentadas como «sonhos» (somnia) - são viagens de vivos cujo corpo permanece enquanto a alma volta à terra. Estas visões prosseguem ao longo do século XIII e a última, o Purgatório de S. Patrick, marcará uma etapa decisiva no nascimento do Purgatório numa dupla geografia, a geografia terrena e a geografia do além. Mas assiste-se também ao esboçar de um outro tipo de narrativa que no século XIII acolherá - e difundirá - largamente o Purgatório. São os relatos de aparições a vivos de defuntos que sofrem as penas purgatórias e vêm pedir os sufrágios desses vivos ou aconselhá-los a emendar-se se quiserem evitar as penas purgatórias. É no fundo o retomar das histórias do Livro IV dos Diálogos de Gregório, o Grande, mas esses espectros não estão na terra a expurgar-se dos seus restantes pecados mas em permissão excepcional de curta demora, o tempo de um sonho.
Visões monásticas:
as aparições
Estas aparições são principalmente notadas no meio monástico, o que nada tem de espantoso pois a leitura de Gregório, o Grande - nos seus Moralia mas também nos Diálogos cujo segundo livro «lançou» São Bento - é assídua sobretudo nos mosteiros, e os monges, nesses tempos em que se desconfia dos sonhos (Gregório, o Grande, dissera-o e Pedro Damião repete-o no século XI), são os seus beneficiários privilegiados, bem como das visões e das aparições, porque são mais aptos do que os outros para resistir às ilusões diabólicas como fez Santo Agostinho, e mais dignos de receber as mensagens autênticas e edificantes de Deus. É assim que no opúsculo XXXIV, segunda parte, Sobre diversas aparicões e milagres (De diversis apparitionibus et miraculis) escrito entre 215
1063 e 1072, Pedro Damião, natural de Ravena e uma das maiores figuras de entre os eremitas italianos, que veio a ser cardeal cerca de 1060 e era muito sensível à recordação dos mortos na devoção dos grupos eremitas como «comunidades de oração» 1, relata duas aparições de almas que sofriam as penas purgatórias/. A primeira história passou-se em Roma, segundo o seu informador, o padre João, poucos anos antes de ele escrever. Na noite da Festa da Assunção de Maria, quando os Romanos oravam e cantavam litanias nas igrejas, uma mulher que se encontrava na basílica de Santa Maria in Campitello «viu uma comadre sua que estava morta havia cerca de um ano. Como não conseguia dirigir-lhe a palavra por causa da multidão que se comprimia, arranjou maneira de a esperar numa esquina de uma ruela, de maneira a não a perder quando ela saísse da basílica. Quando ela passou, interrogou-a logo: "Não és a minha comadre Marozia, que morreu? .." A outra respondeu: "Sou eu, sim. - E como podes tu estar aqui?" Ela disse: "Até hoje eu estive retida por uma pena que não era leve, porque quando ainda era muito nova entreguei-me à sedução de uma lascívia impudente, pratiquei actos vergonhosos com raparigas da minha idade e, ai de mim!, tendo-me esquecido disso embora me tivesse confessado a um padre, não o submeti ao julgamento (da penitência). Mas hoje a rainha do mundo ergueu preces por nós e libertou-me dos lugares das penas (de /ocis poenalibus), e por sua intervenção foi hoje arrancada aos tormentos uma multidão tão grande que ultrapassa toda a população de Roma: Assim, visitamos os lugares sagrados dedicados à nossa gloriosa senhora para lhe agradecer tão grande benesse." Como a comadre duvidasse da veracidade desta história, ela acrescentou: "Para verificares a realidade do que digo, fica sabendo que dentro de um ano, no dia desta mesma festa, tu morrerás sem dúvida alguma. Se, o que não acontecerá, viveres mais, poderás estão acusar-me de mentir." E com estas palavras desapareceu. A outra, preocupada com a predição da sua morte, levou daí em diante um vida mais prudente. Passado um ano, na véspera da festa, caiu doente e, tal como lhe fora predito, morreu. O que se deve reter e é bem assustador é que, pela falta de que se esquecera, aquela mulher foi supliciada até à intervenção da lmaculada Mãe de Deus.» Relato espantoso pelo seu poder evocatório, e que marca a entrada da Virgem Maria nos lugares purgatórios. Naquele fim do século XI, quando o culto mariano, que irá conhecer um êxito estrondoso, explode tardiamente no Ocidente, a Virgem afirma-se já como principal auxiliar dos defuntos do futuro Purgatório. A outra história edificante diz Pedro Damião tê-Ia ouvido ao bispo de Cumes, Rainaud que, por sua vez, a recebera do venerando bispo Hurnbert de Sainte-Ruffine, então já falecido. Contou ele que «um padre que dormia no silêncio da noite teve uma visão em que um compadre seu que
já morrera chamava por ele: "Vem ver um espectáculo que não poderá deixar-te indiferente." E conduziu-o à basilica de Santa Cecília em cujo átrio viram as santas Inês, Ágata e a própria Cecília, e um coro de muitas e resplandecentes virgens santas. Preparavam estas um trono magnífico, mais alto do que os que o cercavam, e eis que a Santa Virgem Maria, com Pedro, Paulo e David, veio sentar-se no trono que fora preparado, rodeada por uma multidão luzente de mártires e santos. Quando o silêncio reinava naquela assembleia tão santa e todos estavam respeitosamente de pé, uma pobre vestindo, no entanto, um casaco de peles, prosternou-se aos pés da Virgem Imaculada e implorou-lhe piedade pelo defunto patrício João. Como repetisse por três vezes a sua prece e não obtivesse resposta, acrescentou: "Sabes, minha senhora, rainha do mundo, eu sou aquela infeliz que jazia nua e trémula no átrio da tua basília principal (Santa Maria Maior). Aquele (o patrício João), logo que me viu teve dó de mim e cobriu-me com esta pele com que estava vestido." Então a bem-aventurada Maria de Deus disse: "O homem por quem imploras foi esmagado por grande quantidade de crimes. Mas teve dois pontos bons: a caridade para com os pobres e devoção, com toda a humildade, nos lugares santos. Com efeito, muitas vezes transportou aos ombros óleo e pedaços de madeira para as luzes da minha Igreja." Os outros santos testemunharam que ele fazia o mesmo para as suas igrejas. A rainha do mundo ordenou que o patrício fosse conduzido ao meio da assembleia. Logo uma multidão de demónios arrastou João amarrado com correntes.'. Então Nossa Senhora ordenou que ele fosse liberto e viesse engrossar as hostes dos santos (eleitos). Mas ordenou também que os laços de que ele fora solto ficassem guardados para um outro homem ainda vivo.» Após uma cerimónia presidida por S. Pedro na sua igreja, «o padre que continuava a ter esta visão acordou e o sonho terminou», Que nesta história como na anterior, os lugares de castigo e os instrumentos de tortura (loca poenalia, lora poenalia) sejam o futuro Purgatório, visto que do Inferno não se regressa, isso não oferece dúvidas. Mas esses lugares e essas penas têm um carácter totalmente infernal sublinhado pela presença de demónios e não de anjos. Numa das suas cartas, Pedro Damião conta esta outra história de aparições que lhe foi relatada por um tal Martinho, personagem muito religioso retirado no eremitério de Camaldules: havia no mosteiro ad Pinum, junto do mar, um monge muito carregado de pecados que recebera uma penitência longa e dura. Pediu a um irmão com quem tinha estreitas relações de amizade que o ajudasse, partilhando o seu fardo penitencial. Este, cuja vida era irrepreensível, aceitou e, quando pensava ler ainda muito tempo à sua frente para cumprir esta promessa, morreu. Alguns dias depois apareceu em sonhos ao monge penitente que se informou do seu estado. O morto disse-lhe que por causa dele a sua sorte era
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má e dura pois, liberto dos seus próprios pecados, estava ainda sobrecarregado com os do companheiro. Pediu a ajuda do irmão vivo e de todo o convento. Todos os monges se puseram em penitência e o morto reapareceu, exibindo desta vez um ar sereno e mesmo feliz. Declarou ele que, graças às preces dos irmãos, não só fora arrancado à pena dos castigos mas também, por uma maravilhosa decisão da direita do Altíssimo, fora recentemente levado para entre os eleitos. Pedro Damião conclui que «a clemência divina ensina os vivos por intermédio dos mortos 4». Quase um século mais tarde o abade de Cluny Pedro, o Venerável, no seu tratado De miraculis (entre 1145 e 1156), relata «as visões ou revelações de defuntos» que recolheu e se esforça por explicar. Supõe que na sua época há uma recrudescência dessas aparições e, segundo ele, aquilo que elas anunciam, verifica-se. Foi, em todo o caso, o que ouviu dizer a muitas pessoas dignas de crédito". Entre estas aparições que assustam e intrigam há aquela do cavaleiro morto que aparece ao padre Estêvão para lhe pedir que repare duas más acções que se esquecera de confessar, e que reaparece para agradecer ter sido assim libertado das penas que estava a sofrer". Pedro, o Venerável, leitor fiel de Gregório, o Grande, não vai procurar localizar num lugar diferente do designado por este a purgação dos pecados depois da morte. É aos lugares do pecado que um morto volta para terminar a sua penitência enquanto outro, culpado de pecados mais graves, fica no Inferno". Quando no fim do século o Purgatório passar a existir, estas visões evocarão o novo lugar do além, principalmente no meio cisterciense, o que nada tem de estranho se pensarmos no papel desempenhado por Cister no nascimento do Purgatório. Assim, um manuscrito de origem cisterciense, uma das primeiras recolhas dessas historietas edificantes, os exempla, que em breve se expandirão, relata um certo número de visões referentes às penas sofridas pelas almas depois da morte. Depois da visão do santo Fursy extraída da Historia ecclesiastica Anglorum de Bede, a «visão de um monge» relata o suplício de um cavaleiro que, excessivamente apaixonado. pelas aves de caça durante a vida, suportara depois da morte e durante dez anos um suplício terrível: trazia no punho um falcão que, sem descanso, o dilacerava com o bico e com as garras. E, no entanto, parecia ter levado uma vida muito virtuosa, mas as penas mais duras são infligidas no Purgatório (in purgatorio ) por excessos que julgamos como indulgência. O nosso monge vê assim mortos que, em vida, usaram ervas e bagas não como medicamentos mas como droga e afrodisíacos, condenados a rolarem na boca sem parar carvões incandescentes, outros que se haviam entregado a excessos de riso serem açoitados por esse mau hábito, outros ainda, excessivamente faladores, serem esbofeteados constantemente e, os culpados de gestos obscenos, serem amarrados com cor218
rentes de fogo, etc.". Mesmo os santos, por algumas faltas aparentemente ligeiras, fazem breves estadas no Purgatório. Um dos primeiros a pagar o seu ouinhão à nova crença não é outro senão o grande santo cisterciense S. Bernardo, que, como já se viu, passa brevemente pelo Purgatório por não ter acreditado na Imaculada Conceição",
Quatro viagens monásticas ao outro mundo Dos relatos de viagens ao além do século XII escolhi os quatro que me parecem mais importantes, o primeiro porque se trata de uma visão de uma mulher laica e de uma experiência muito pessoal- é o sonho da mãe de Guibert de Nogent -, o segundo e o terceiro, a visão de Alberico de Settefrati e a de Tnugdal, porque são os mais ricos de pormenores em vésperas do nascimento do Purgatório, e porque os seus autores pertenciam a regiões significativas para o imaginário do além: a Itália meridional e a Irlanda; o quarto, enfim - o Purgatório de S. Patrick - porque constitui de certo modo o acto do nascimento literário do Purgatório. Para o nosso propósito, o interesse destas visões é mostrar-nos como, dentro de um género muito tradicional, se esboça por tentativas e depois existe numa imagem nítida, embora de contornos vagos, um território especial no além, para o Purgatório. Permitem apreciar o papel do imaginário monástico na génese do lugar do Purgatório.
1. Uma mulher no além: a mãe de Guibert de Nogent A primeira visão é relatada por um monge que no começo do século deixou uma obra original, principalmente por dois dos seus volumes, um tratado Das relíquias dos santos (Des reliques des saints - De pignoribus sanctorum) onde se tem pretendido ver o despertar do espírito crítico, e uma autobiografia, História da sua vida (Histoire de sa vie - De vit~ sua), também ela, sobretudo ela, iniciadora de um género que conhecera um êxito singular, principalmente depois da Idade Mêdia'". O De vila sua de Guibert de Nogent forneceu dois tipos de informação que muito interessaram os historiadores. Contém primeiro um relato e uma evocação dos acontecimentos políticos e sociais no Nordeste de França, os começos do movimento comunal, com a descrição dos dramáticos acontecimentos da comuna de Laon em 1116. Lá se encontra toda uma série de anotações de natureza psicológica que incitaram os historiadores a voltar-se para o psicanalista ou a tornar-se eles próprios psicanalistas 11. Eis a visão de sua mãe, no relato de Guibert de Nogent: XII
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Numa noite de Verão, num domingo depois das matinas, quando estava estendida num banco muito estreito, rapidamente caiu no sono; pareceu-lhe, sem que perdesse os sentidos, que a alma lhe saía do corpo. Depois de ter sido conduzida como que através de uma galeria, quando dela saiu aproximou-se da boca de um poço. Quando já estava muito perto, eis que homens com aspecto de fantasmas saem do abismo daquele buraco. Os seus cabelos pareciam ter sido devorados por vermes e procuravam agarrá-Ia com as mãos e arrastá-Ia para dentro. De repente, nas suas costas, uma voz de mulher aterrorizada e arquejante sob aquele ataque, gritou-lhes: «Não me toqueis.» Perante a pressão desta defesa, eles voltaram a descer para o poço. Esqueci-me de dizer que quando ela atravessou o pórtico sentindo que saía do seu estado humano, apenas pediu a Deus uma coisa, que lhe permitisse regressar ao seu corpo. Liberta dos habitantes do poço, ela parara à sua beira e de repente viu a seu lado o meu pai, com o aspecto que tinha na juventude. Olhou-o intensamente e perguntou-lhe várias vezes se era ele realmente Evrard (era o seu nome). Ele negou. Nada de estranho em que um espírito recusasse ser chamado pelo nome que usava quando era homem, pois as realidades espirituais só podem ser expressas em termos espirituais (I Corintios, 11, 12-15). Acreditar que os espíritos se reconhecem pelos homens seria ridículo, senão no outro mundo só se conheceriam os respectivos parentes. É claro que os espíritos não precisam de nomes, pois toda a sua visão, ou antes, o seu conhecimento da visão, é interno. Se bem que ele negasse chamar-se assim, como ela tinha a certeza de que era ele, perguntou-lhe onde morava. Ele dá a entender que é num local situado não longe dali. Ela pergunta-lhe então como está. Ele destapa o braço e o fianco e mostra que estão de tal maneira dilacerados e de tal maneira golpeados com inúmeros ferimentos, que à sua vista se fica tomado de horror e de uma emoção visceral. A isto juntava-se a presença de uma criança que gritava tanto que, mesmo só por a ver, ela ficou muito incomodada. E disse-lhe: «Senhor como podes suportar os lamentos dessa criança?» «Quer queira quer não, respondeu ele, tenho de os suportar!» E eis o significado dos choros da criança e das feridas no braço e no flanco. Quando o meu pai era muito novo fora desviado da sua relação lícita com a minha mãe por maleficios e maus conselheiros que abusavam da sua falta de maturidade de espírito, convencendo-o maldosamente a tentar ter relações sexuais com outras mulheres. Com um comportamento de jovem, ele deixou-se persuadir e, das suas desprezíveis relações com uma qualquer má mulher, teve um filho que nasceu morto sem ter sido baptizado. A chaga no fianco era a ruptura da fidelidade conjugal, os gritos daquela voz insuportável eram a condenação ao inferno daquela criança procriada no mal... A minha mãe perguntou-lhe se as preces, as esmolas e as missas lhe levariam algum socorro (pois ele sabia que ela as fazia por ele frequentemente). Ele disse que sim e acrescentou: «Mas entre vós vive uma certa Liégearde» A minha mãe compreendeu porque ele a mencionava e que devia perguntar-lhe que recordação guardava dele. Esta Liégearde é uma mulher muito pobre de espírito que só vivia para Deus, longe dos costumes deste mundo.
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Como a conversa com o meu pai terminasse, ela olhou para o poço que tinha por cima uma pintura na qual reconheceu Rainaud, um cavaleiro de grande renome entre os seus. Nesse mesmo dia que era, como já disse, um domingo, este Rainaud foi traiçoeiramente assassinado pelos seus próximos em Beauvais, depois de uma refeição. Naquela pintura ele estava ajoelhado com a cabeça inclinada e as bochechas inchadas, soprando para acender um lume. Esta visão aconteceu de manhã e ele morreu ao meio-dia, lançado para esse fogo que ele póprio acendera. Na mesma pintura ela viu também uma mulher velha que vivia com ela no princípio da sua conversão e que, exteriormente, mostrava no corpo numerosas feridas das suas mortificações, mas que, na realidade, não se furtara ao desejo de vã glória. Viu-a em forma de sombra levada por dois espíritos todos negros. Quando esta velha ainda vivia e ambas habitavam juntas e falavam do estado das suas almas quando a morte viesse, prometeram-se mutuamente que aquela que morresse primeiro, apareceria, se Deus o permitisse, à sobrevivente para lhe explicar o seu estado, bom ou mau ... A velha, no momento de morrer, vira-se a si própria numa visão despojada do corpo, dirigindo-se com outras semelhantes a ela para um templo, e parecia-lhe que levava uma cruz às costas. Quando chegou ao templo impediram-na de entrar e as portas fecharam-se à sua frente. Enfim, depois de morrer apareceu cercada de mau cheiro a outra pessoa a quem agradeceu vivamente por a ter arrancado ao meu cheiro e à dor com as suas preces. No momento de morrer, vira aos pés da cama um diabo horrível de olhos negros e enormes. Com os sacramentos divinos conjurara-o a retirar-se na confusão e a nada reclamar dela, e com este terrivel esconjuro pusera-o em fuga. Convenci da da veracidade da sua visão e comparando o que vira com o que sabia, a mãe de Guibert decidiu dedicar-se inteiramente a ajudar o marido. Compreendera de facto que vira os lugares das penas nos infernos (poenales locos apud inferos) aos quais estava condenado o cavaleiro cuja imagem vira pouco antes de ele morrer. Adoptou uma criança órfã cujos gritos e choros nocturnos a torturaram assim como às suas criadas. Mas resistiu, apesar dos esforços do Diabo que tornou os gritos da criança insuportáveis e das súplicas dos que a rodeavam e a incitavam a desistir. Sabia que esses sofrimentos eram purgatórios dos do marido, os quais vira na sua visão. Deixemos de lado - com pena - os problemas de relações familiares e pessoais, a digressão sobre o nome - esse emblema dos homens da Idade Média -, a fusão nesta história de vários temas habitualmente distintos: o da visão dos lugares das penas no além, do pacto entre dois vivos em que se comprometem a que o primeiro a morrer regresse para contar a sua experiência ao sobrevivente, o da criança que impede de dormir'", o clima onírico, de pesadelo, muito «moderno», deste relato. Reparemos nos elementos que se reencontrarão nas relações de viagem ou de permanência no Purgatório - e que farão parte do «sistema» do Purgatório.
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Alberico de Settefrati, nascido cerca de 1100, tivera uma visão durante uma doença que o deixara nove dias e nove noites em coma quando tinha dez anos. Tendo ingressado no célebre mosteiro beneditino quando era abade Gerardo (1111-1123), contou a sua visão ao monge Guidone que a transcreveu. Mas ao passar de mão em mão e de boca em boca esse relato foi alterado e o abade Senioretto (1127-1137) aconselhou Alberico a escrevê-lo de novo com a ajuda de Pietro Diacono. Foi este relato que conservamos". Tem a marca das visões que eram conhecidas em Monte Cassino - a Paixão de Perpétua e Felicidade, a Visão de Wetti, a Visão do Santo Fursy, a Vida do Santo Brandan. Pretendeu-se ver nele também influências muçulmanas mas estas foram com certeza limitadas pois a
cscatologia muçulmana reserva o Inferno para os infiéis e politeístas e parece não conhecer o Purgatório ". S. Pedro acompanhado de dois anjos, Emmanuel e Elói, apareceram ao jovem Alberico elevado nos ares por uma pomba branca, e levaram-no IIOS lugares das penas e do Inferno (loca paenarum et inferni) para lhos mostrarem. O relato desta visão parece interminável'". Apenas posso resumi-lo e esforcei-me por me manter tão próximo quanto possível do texto original para conservar a nitidez das imagens que vão ser impressas no nosso reservatório do imaginário, e preservar a impressão de passeio vagabundo que a viagem do monge nos deixa, apesar de ser guiada por S. Pedro. Esta caminhada errática permitirá que se aprecie melhor o contexto em cujo seio aparecerá dentro em breve o Purgatório. Alberico vê primeiro um lugar incandescente com bolas de fogo e vapores em chamas onde são purgadas as almas das crianças mortas no primeiro ano de existência. As suas penas são leves porque não tiveram tempo para pecar muito. A curva dos pecados é, com efeito, à imagem das épocas da vida. Sobe e acumula pecados na juventude e na maturidade; depois desce, com a velhice. O tempo passado nestes lugares de purgação é proporcional à quantidade de pecados e portanto à idade com que morreram os defuntos que sofrem estas penas. As crianças de um ano ficam nesses lugares sete dias, as de dois catorze dias e assim por diante (Alberico não precisa mais porque o prosseguimento da progressão proporcional levantaria sem dúvida problemas delicados). Depois vê um vale de gelo onde são torturados os adúlteros, os incestuosos e outros fornicadores e libidinosos. Segue-se outro vale cheio de arbustos com espinhos onde estão suspensas pelos seios sugados por serpentes as mulheres que se recusaram a amamentar os bebés e onde ardem, suspensas pelos cabelos, as mulheres adúlteras. Vem depois uma escada de ferro com degraus de fogo ao fundo da qual está um recipientc cheio de pez a ferver: por ela sobem e descem os homens que tiveram relações sexuais com as suas mulheres durante os dias (festas e domingos) em que o acto sexual é proibido. Segue-se um forno com chamas sulfurosas onde se consomem os chefes que trataram os seus súbditos não como chefes mas como tiranos, e as mulheres que praticaram o infanticídio e o aborto. Depois deste forno surge um lago de fogo semelhante a sangue. Os homicidas que morreram impenitentes são nele precipitados depois de passarem três anos com a imagem da sua vítima pendurada ao pescoço. Num enorme recipiente ao lado, cheio de bronze, estanho, chumbo, enxofre e resina a ferver, ardem por períodos que vão de três a oitenta anos os bispos e outros responsáveis por igrejas que deixaram padres perjuros, adúlteros ou excomungados nelas cumprirem o seu ministério.
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É antes de mais o carácter infernal do lugar onde se encontra o pai de Guibert e para o qual a mãe se arriscou - na sua visão - a ser arrastada. Trata-se de um local situado junto de um popa e, noutra visão, de um templo de onde saem seres de aspecto diabólico, diabos negros13, larvas com cabelos cheios de vermes, monstros de enormes olhos negros, um mundo onde o horror da vista, do ouvido e do olfacto, visões monstruosas, barulhos insuportáveis, odores fétidos, se misturam com dores fisicas. Mundo de torturas, universo de penas e de castigos onde se distingue o fogo. Mundo de espíritos despojados de nome mas que expiam em torturas do corpo. Mundo de sofrimentos a que os vivos podem arrancar os seus mortos pela oração, pela esmola, pelo sacrificio da missa, segundo a teoria tradicional dos sufrágios, mas também pela partilha de provações cuja natureza está ligada à do pecado cometido. E, acima de tudo, dois traços dominantes: a afirmação, a busca de um lugar ainda mal destacado do conjunto dos infernos (local, poço, templo, lugares penais - poenarum locos, poenales locos - a visionária pergunta ao espectro do marido ubi commaneret, onde morava), a expressão de uma estreita solidariedade entre os vivos e os mortos, solidariedade que é primeiro a da família, família carnal e sobretudo casal conjugal, nesse tempo em que a Igreja recorda com veemência a palavra de Paulo, segundo a qual o esposo e a esposa mais não são do que uma e mesma carne e depois família espiritual como a formada pela convertida e aquela mulher velha que a ajuda na sua conversação. Enfim, nó do sistema, a expiação comum dos pecados por meio de penas que são simultaneamente castigo e purgação. Estes sofrimentos são purgativos dos sofrimentos do homem (mo/estias istas mo/estiarum
haminis ... purgatrices).
As duas visões de Alberico e Tnugdal são mais literárias, mais tradicionais, mais servidas por uma grande força imaginativa.
2. No Monte Cassino: Alberico de Settefrati
Alberico é depois levado perto do Inferno, um poço cheio de horríveis trevas de onde saem odores fétidos, gritos e gemidos. Junto do Inferno está um dragão enorme e acorrentado, cuja goela de fogo engolia multidões de almas semelhantes a moscas. A espessura das trevas impede que se distinga se as almas vão para as trevas ou para o próprio Inferno. Os guias dizem a Alberico que entre aquelas se encontravam as de Judas, Ana, Caifaz, Herodes e os pecadores condenados sem julgamento. Noutro vale os sacrílegos são queimados num lago de fogo, os burlões num poço onde as chamas sobem e descem. Noutro lugar horrível, tenebroso e fétido, cheio de chamas crepitantes, de serpentes, de dragões, de gritos estridentes e gemidos terríveis, são purgadas as almas daqueles que deixaram o estado eclesiástico ou monástico, que não fizeram penitência, os que cometeram o perjúrio, o adultério, o sacrílego, o falso testemunho e outros crimes. Aí são purgados na proporção dos seus pecados, como ouro, chumbo, estanho ou outras matérias, tal como disse Paulo na sua primeira epístola aos Coríntios. Num grande lago negro cheio de água sulfurosa, serpentes, dragões e demónios batiam com serpentes na cara, na boca e na cabeça de uma multidão de testemunhas falsas. Próximo daqui dois demónios com formas de cão e de leão exalavam das bocarras um sopro ardente que fazia mergulhar numa espécie de tortura todas as almas que passavam ao seu alcance. Surge um grande pássaro levando nas asas um monge velhinho que deixa cair dentro das trevas do poço do Inferno onde logo é rodeado por demónios; mas o pássaro volta para o arrancar a eles. Neste momento S. Pedra anuncia a Alberico que o deixa com os dois anjos: Alberico, morto de medo, é por sua vez atacado por um demónio horrível que tenta arrastá-lo para o Inferno, mas S. Pedro vem libertá-lo e projecta-o para um lugar paradisíaco. Antes de passar à descrição do Paraíso, Alberico fornece ainda alguns pormenores sobre o que viu nos lugares do castigo. Viu ladrões e violadores acorrentados nus e sem poderem pôr-se de pé com correntes de fogo presas no pescoço, nas mãos e nos pés. Viu um grande rio de fogo saindo do Inferno, e por cima deste rio uma ponte de ferro que alargava quando nela passavam, fácil e rapidamente, as almas dos justos, e que encolhia até só ter a largura de um fio quando nela passavam pecadores que caíam no rio e aí ficavam até poderem atravessar a ponte, purgados e assados como pedaços de carne. S. Pedro revelou-lhe que aquele rio e aquela ponte eram qualificados de purgatórios'? S. Pedro diz a seguir a Alberico que um homem nunca deve desesperar seja qual for a grandeza dos seus crimes, pois tudo pode ser expiado em penitência. Por fim, o apóstolo mostra a Alberico um campo tão extenso que seriam precisos três dias e três noites para o atravessar; um campo 224
1. Julgamento e salvamento do Purgatório (Breviário de Filipe, o Belo). ye~ o Apêndice III. Bibl. Nat., Paris, 10845, Latino 1023, foI. 49. Fotografia © Blbhothêque Nationale.
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2. O além: sistema dos receptáculos (catedral v I de Salamanca); saída do receptáculo do Purgatório o Apêndice Ill. Fotografia © «Los Angeles», Saiam 11
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3. A saída do Purgatório (Breviário dito de Carlos V). Ver o Apêndice IIl. Bibl. Nat., Paris, 2928, Latino 1052, foI. 556v. Fotografia © Bibliothêque Nationale.
4. O Purgatório de S. Patrick nos dias de hoje: crença e peregrinação a longo prazo (Station Island, Lough Derg, condado de Donegal, Eire).
cheio de espinhos tão densos que apenas seria possível caminhar sobre eles. Neste campo estava um dragão gigantesco montado por um diabo com aspecto de cavaleiro que segurava na mão uma grande serpente. Este diabo perseguia todas as almas que caíssem naquele campo e batia-lhes com a sua serpente. Quando a alma já tinha corrido o suficiente para ser liberta dos seus pecados, a corrida tornava-se mais fácil e ela podia fugir. De lugares purgatórios Alberico passa para lugares risonhos. As almas tornadas dignas de alcançar o refrigerium entram num campo cheio de encanto e de alegria, com perfume de lírios e de rosas. No meio deste campo fica o Paraíso onde as almas só entrarão depois do Julgamento Final, excepto os anjos e os santos que são recebidos sem julgamento no sexto céu. O santo mais glorioso que lá se encontra é S. Bento e os mais gloriosos de todos que se encontram no campo são os monges. Os guias de Alberico fazem o elogio dos monges e descrevem o programa de vida que eles têm de seguir para merecerem a glória. Devem conservar sempre o amor de Deus e do próximo, mas o seu programa é sobretudo negativo: devem suportar as injúrias e as perseguições, resistir às tentações diabólicas, trabalhar com as mãos sem desejar riquezas, resistir aos vícios, guardar sempre temor. A seguir S. Pedro, depois de ter indicado que os três pecados mais perigosos são a gula (gula), a cupidez (cupidas ) e o orgulho (superbia), leva Alberico a visitar os sete céus sobre os quais fornece poucos pormenores, excepto em relação ao sexto que é a morada dos anjos, dos arcanjos e dos santos, e ao sétimo onde se encontra o trono de Deus. A pomba condu-Io a seguir para um lugar cercado por uma alta muralha por cima da qual ele pode aperceber-se do que existe no interior, mas é-lhe interdito, como a qualquer homem, revelar o que lá viu'". Deixemos de lado neste relato o mosaico de fontes literárias que o inspiram e o patriotismo beneditino que o anima. O seu interesse para a génese do Purgatório é limitado mas não despiciendo, até nos seus limites e nos seus silêncios. É verdade que o relato é extremamente confuso e dá da geografia do além uma imagem ainda mais confusa. Alberico está longe da concepção de um terceiro reino do além. O seu além é extraordinariamente com partimentado e, segundo a vontade de S. Pedro, passa-se dos lugares de penas para os poços do Inferno ou para o Paraíso, ou ainda para regiões terrenas. Mas a importância dos «lugares penais» de onde se sai finalmente para a salvação é considerável. Um cálculo aproximativo (pois é grande a confusão do relato) permite-nos reconhecer em cinquenta «capítulos» dezasseis dedicados ao que será o Purgatório contra doze consagrados ao Paraíso e lugares vizinhos e um só ao Inferno propriamente dito.
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Sobre a «teoria» dos lugares purgatórios, a visão é praticamente muda ou não propõe melhor do que uma teologia muito gasta. Todos os pecados conduzem a estes lugares e todos podem lá ser expiados. O papel da penitência é exaltado mas não se vê bem a parte que cabe à penitência terrena e à mesma forma de expiação nos lugares das penas. Não se faz qualquer distinção entre pecados graves e pecados insignificantes (a clivagem entre pecado mortal e pecado venial ainda não existe); e são os scelera, os crimes (que, segundo Santo Agostinho, levam directamente ao Inferno), que aqui parecem de preferência ser expiados com castigos temporários mas infernais. Enfim, não existe passagem directa, após a expiação, dos lugares penais para o Paraíso, mas uma antecâmara situada num vestíbulo paradisíaco: é o campo da felicidade. Todavia, a purgação post mortem ocupa um lugar importante e, a propósito do rio e da ponte, Alberico emprega o termo purgatório de uma maneira em que o epíteto parece bem próximo do substantivo e, embora na confusão de um simbolismo numérico, é nítida a tendência para uma contabilidade do além e para uma relação proporcional entre o pecado cometido na terra e o tempo de expiação no outro mundo. Numa palavra, tem-se a impressão de que o ou os autores desta visão pertencem a um meio monástico arcaico que através da sua cultura tradicional - incluindo a velha noção de refrigerium - não consegue ordenar a tendência a favor de um além de purgação que o vai pressionando. Reencontramos a mesma impressão noutro pólo geográfico do monarquismo beneditino com a visão de Tnugdal'".
O além de Tnugdal - a sua viagem não inclui qualquer episódio terreno - é um pouco mais ordenado do que o de Alberico. Como o futuro monge de Monte Cassino, Tnugdal passa primeiro por uma série de lugares onde são atormentados pecadores de diversas categorias: homicidas, traidores, avaros, ladrões, raptores, glutões e fornicadores. Os lugares onde são punidos têm um tamanho extraordinário: vales profundos, uma montanha muito alta, um lago enorme, uma casa imensa. Por intermédio de Dante, a montanha terá um destino especial. Nela as almas são submetidas alternadamente a um calor tórrido e a um frio glacial. As trevas e o mau cheiro reinam. Animais monstruosos aumentam o horror. Um destes animais, sentado sobre um lago gelado, devora com a sua goela de fogo almas que digere e depois vomita (velha herança indo-europeia) e estas almas reencarnadas têm bicos muito aguçados com que di-
laceram os próprios corpos. As vítimas deste animal são os fornicadores e, principalmente, os fornicadores monásticos. Em imagens à Piraneso, Tnugdal vê as almas dos glutões a cozer como pães num fomo enorme c as que acumularam pecado sobre pecado suportar, num vale cheio de forjas ruidosas, os tratos de um ferreiro torcionário chamado Vulcano. Assim se põe em evidência, a par com a especificidade dos pecados e dos vícios, a noção de quantidade de pecado e - sinal dos tempos nesse século XII amante de justiça -, o anjo faz notar a Tnugdal horrorizado que Deus nem por isto é menos misericordioso e sobretudo justo: «Aqui, diz ele, cada um sofre em proporção com os seus méritos e segundo o veredicto da justiça.» A seguir, ao longo de um princípio profundo, é a descida ao Inferno inferior que se anuncia por um horror, um frio, um mau cheiro e trevas incomparavelmente superiores a tudo o que Tnugdal experimentara até aí. Vê uma fossa rectangular como uma cisterna de onde sai uma chama fuliginosa e fétida cheia de demónios, e as almas semelhantes a faúlhas que sobem são reduzidas a nada e voltam a cair nas profundezas. Chega mesmo à porta do Inferno e tem o privilégio, estando vivo, de ver o que os condenados nas trevas não vêem mais do que o vêem a ele próprio. E vê o príncipe das trevas em pessoa, um animal maior do que todos que tinha avistado. Depois o mau cheiro e as trevas desvanecem-se e Tnugdal e o seu anjo descobrem, junto de um grande muro, uma multidão de homens e mulheres tristes, à chuva e ao vento. O anjo explica a Tnugdal que são os não inteiramente maus que tentaram viver com honra mas não deram aos pobres bens temporais, e que têm de esperar alguns anos à chuva até serem conduzidos a um repouso bom (requies bona). Atravessando o muro por uma porta, Tnugdal e o seu companheiro descobrem um campo lindo, perfumado, cheio de flores, luminoso e agradável onde folgam alegremente muitos homens e mulheres. São os não inteiramente bons que mereceram ser arrancados às torturas do Inferno mas ainda não juntar-se à corte dos santos. No meio do campo está a fonte da juventude, cuja água dá a vida eterna. Aqui coloca-se uma evocação muito curiosa de reis irlandeses legendários - mas, evidentemente, considerados históricos por Tnugdal - dos quais os maus arrependeram-se e os bons cometeram, apesar de tudo, alguns pecados. Estão aqui em curso ou em fim de expiação. Exactamente como o patriotismo beneditino inspirou a visão de Alberico, o «nacionalismo» irlandês surge aqui, bem como a tradição da admoestação aos reis e a utilização política do além já encontrada na visão de Car10s,o Gordo. A existência de um lugar purgatório (a palavra não é aqui pronunciada) permite uma crítica moderada à monarquia, ao mesmo tempo venerada e censurada.
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3. Na Irlanda: o além sem purgatório de Tnugdal
Eis pois os reis Domachus e Conchober, muito cruéis e inimigos fe.rozes um do outro, voltando a ser pacíficos e amigos e tendo-se arrependido antes de morrerem. Dever-se-á ver aqui um apelo à unidade dos clãs irlandeses? Eis sobretudo o rei Cormarchus sentado num trono num lindíssimo palácio com paredes de O\}roe prata, sem portas nem janelas .e onde se entra conforme se quiser. E servido pelos pobres e pelos peregnnos pelos quais distribuiu os seus bens em vida '.Mas pou~o tempo depois o palácio escurece, todos os moradores estão tnstes, o rei chora, levanta-se e sai. Todas as almas erguem as mãos ao céu e suplicam a Deus: «Tem piedade do teu servo.» Com efeito, eis o rei mergulhado n~ ,f~go até ~o umbigo e com a parte de cima do corpo coberta por um cilicio, O ~nJo explica: em cada dia o rei sofre durante três horas e repousa durante v~nte e uma horas. Sofre até ao umbigo porque foi adúltero, e na parte de cima do corpo porque mandou matar um conde amigo de S. Patrick e foi perjuro. Todos os seus outros pecados foram-Ih~ perdoa~os: • Por fim Tnugdal e o anjo chegam ao Paraiso constituído por tres lugares rodeados de muralhas. Uma muralha de prata cerca a morada dos bons esposos, uma de ouro a dos mártires e dos castos, dos monges e das monjas, dos defensores e construtores de igrejas, um~ muralha de pedras preciosas cerca a das virgens e das nove o~dens d.eanjos, do santo confessor Ruadan, do santo Patrick e de quatro bispos (irlandesesl), Com esta visão a alma de Tnugdal regressa ao corpo. A visão de Tnugdal mostra bem que, se a geografia do além é fra~mentada e só parece haver Inferno por este ser invisitável, a compartimentação dos lugares purgatórios tende todavia para um ordenamen~o obedecendo a três princípios. O primeiro é geográfico: é a alternância de lugares constrastantes quanto ao relevo e à .temper~~ra. O seg~nd~ é moral: é a repartição dos purgados segundo o tipo de VICIOS. O terceiro e propriamente religioso, para não dizer teológico: é classificaç~o das pessoas em quatro categorias: os inteiramente bons que log~ depois da morte vão para o Paraíso e os inteiramente maus que depois da m~t;e e do julgamento individual (Tnugdal sublinha que os condenados _<<.Ia. fo~am julgados») são imediatamente enviados para o Inferno; o~ n~o inteiramente bons e os não inteiramente maus. Mas Tnugdal nao e claro no que lhes diz respeito. A tomá-Io à letra, estas d~as categorias. seriam distintas do conjunto dos pecadores torturados no inferno supenor. Para os não inteiramente maus Tnugdal não faz qualquer alusão a uma passag~ pelos lugares penais e contenta-se com fazê-los passar <~alg.'-ms. anos» a chuva e ao vento, sofrendo fome e sede. Quanto aos nao ínteiramente bons, o anjo lá diz a Tnugdal que «eles foram arrancad.os aos t?rmentos do Inferno» mas não merecem ainda ir para o verdadeiro Paraíso. É de estranhar a ausência nessa data da ideia (e da palavra) de purgacão. Tnugdal tentou desajeitadamente ordenar numa só visão todo
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um conjunto de heranças literárias e teológicas que não soube unificar. Por um lado, a existência de dois infernos; mas ele não conseguiu precisar a função do inferno superior. Por outro lado, a teoria agostiniana das quatro categorias de homens em relação ao bem e ao mal. Mas não tendo sabido encaixá-Ias no inferno superior, colocou-as em lugares originais inclinando-se para uma quíntupla regionalização do além, o que é uma das soluções esboçadas no século XII para a sua remodelação. O ponto mais fraco desta concepção (permito-me falar em termos de julgamento de valor porque creio que a coerência do sistema do Purgatório foi um elemento importante do seu êxito junto do clero e das massas numa época «racionalizante») é o facto de Tnugdal não ter relacionado os lugares de espera (e de expiação mais ou menos mitigada) dos não inteiramente bons e dos não inteiramente maus com os lugares do inferno inferior. Uma passagem sucessiva por uns e depois pelos outros teria dado uma solução concreta às teses agostinianas. Se Tnugdal não o fez foi talvez porque não só a sua concepção do espaço era ainda confusa mas também e sobretudo porque a sua concepção do tempo (inseparável, repito, do espaço) não lho permitia. Para ele, o além estava submetido a um tempo escatológico que apenas pode ter vagas semelhanças com o tempo terreno, histórico. Vai introduzindo aqui e ali períodos de «alguns anos» no além, mas não existe uma continuidade ordenada. O tempo no além não é uno, e muito menos o tempo duplo do homem neste e no outro mundo.
4. Uma descoberta na Irlanda: o «Purgatório de S. Patrick»
A quarta viagem imaginária, se bem que redigida por um monge mas um monge cisterciense - acrescenta ao conjunto de traços tradicionais novidades importantes. Uma principalmente: o Purgatório é referido como um dos três lugares do além. O opúsculo que ocupa na história do Purgatório um lugar fundamental, porque desempenhou um papel importante, se não decisivo, no seu êxito, é o célebre Purgatório de S. PatricPo. O autor é um monge de nome H. (inicial que Matthieu Paris, no século XIlI, transforma sem quaisquer provas em Henricus, Henrique), que, no momento da redacção, residia no mosteiro cisterciense de Saltrey, no Huntingdonshire. Foi um abade cisterciense, o de Sartis (hoje Wardon de Bedfordshire) que lhe pediu que escrevesse esta história que recebera de outro monge, Gilbert. Este foi enviado à Irlanda pelo abade do mosteiro cisterciense de Luda (hoje Louthpark, no Huntingdonshire), Gervásio, para lá procurar um local bom para fundar um mo.steir~. <;omo Gilbert não fala irlandês, faz-se acompanhar, para lhe servir de mterprete e protector, pelo cavaleiro Owein que lhe conta a aventura de que fora herói no Purgatório de S. Patrick.
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No preâmbulo do seu tratado, H. de Saltrey recorda, ao invocar Santo Agostinho e sobretudo Gregório, o Grande, como as descrições de visões e revelações sobre o além podem ser proveitosas para edificações dos vivos. E o caso, em especial, das diferentes formas da pena a que se chama (pena) purgatória (que purgatoria voeatur) na qual aqueles que, mesmo cometendo alguns pecados durante a vida, se mantiveram justos, são purgados e podem assim alcançar a vida eterna para que são predestinados. Os castigos são proporcionais à gravidade dos pecados e à natureza mais ou menos boa dos pecadores. A esta escala de pecados e de penas corresponde um escalonamento dos lugares das penas, do inferno subterrâneo que alguns vêem como uma prisão de trevas. Os locais das torturas maiores situam-se em baixo, os das maiores alegrias no alto, as recompensas ao mesmo tempo medianamente boas e más no meio (media autem bona et mala in medio). Por aqui se vê que H. de Saltrey adoptou a divisão em três categorias (em vez das quatro categorias agostinianas) e a ideia de intermédio. Também na pena purgatória se é mais ou menos torturado em função dos méritos; e as almas que, depois de terem tido essa experiência, recebem de Deus permissão para regressarem aos corpos terrenos, exibem marcas semelhantes a marcas corporais como recordações, provas e advertências". Quando S. Patrick andava evangelizando, sem grande sucesso, os irlandeses recalcitrantes e tentava convertê-I os pelo temor do Inferno e a atracção do Paraíso, Jesus mostrou-lhe num local deserto um buraco (fossa) redondo e escuro e disse-lhe que se alguém animado de um verdadeiro espírito de penitência e de fé passasse um dia e uma noite naquele buraco, lá seria purgado de todos os seus pecados e poderia ver as torturas dos maus e as alegrias dos bons. S. Patrick apressou-se a construir uma igreja ao lado do buraco e a instalar nela religiosos regulares, a cercar o buraco com um muro e a fechá-lo por meio de uma porta cuja chave ficava à guarda do prior da igreja. Muitos penitentes terão feito a experiência deste lugar na época de S. Patrick, que terá ordenado que passassem à escrita as suas descrições. A esse lugar chamou-se purgatório e, porque S. Patrick foi o primeiro a gozar-se dele, chamou-se depois Purgatório de S. Patrick (sancti Patricii purgatoriuml2• Queriam as regras que os candidatos à experiência do Purgatório de S. Patriek fossem autorizados pelo bispo da diocese que deveria primeiro tentar dissuadi-los, Se não pudesse convencê-l os a renunciar, dava-Ihes uma autorização que ficava sujeita ao prior da igreja o qual, por sua vez, procurava persuadi-Ios a escolher outra penitência, fazendo-Ihes notar que muitos haviam morrido nesta experiência. Se também ele falhava, prescrevia ao candidato que passasse primeiro quinze dias em oração na igreja. No fim desta quinzena o candidato assistia a uma missa durante a
qual comungava e era exorcizado com água benta. Uma procissão de cânticos conduzia-o ao Purgatório, cuja porta era aberta pelo prior que alertava para a presença de demónios e lembrava o desaparecimento de muitos visitantes anteriores. Se o candidato insistia, era abençoado por todos os padres e entrava fazendo o sinal da cruz. O prior fechava de novo a porta. No dia seguinte à mesma hora a procissão voltava ao buraco. Se o penitente saía, regressava à igreja e lá ficava mais quinze dias em oração. Se a porta continuava fechada, davam-no por morto e a procissão retirava-se. Trata-se aqui de uma forma especial de ordálio, de julgamento de Deus de um tipo talvez característico das tradições célticas. H. de Saltrey salta então para a época contemporânea (hiis nostris temporibus) e indica mesmo a época do rei Estêvão (1135-1154). Mat-thieu Paris, no século XIII, será ainda mais conciso - sem qualquer prova - e situará a aventura do cavaleiro Owein em 1153. O cavaleiro Owein, carregadíssimo de pecados que não são mencionados, tendo ultrapassado as etapas preliminares do ordálio, entra no buraco confiante e alegre. No fundo considera esta empresa uma aventura cavalheiresca que enfrenta sozinho com intrepidez (novam gitur miliciam aggressus miles noster, licet solus, intrepidus tamen)23 ... Numa penumbra cada vez mais fraca, chega a uma espécie de mosteiro habitado por doze personagens de vestes brancas com aspecto de monges. O chefe deles expõe-lhe a regra da provação. Vai ser cercado por demónios que tentarão assustá-Io com o espectáculo de suplícios terríveis e seduzi-Io com palavras falaciosas. Se ele ceder ao medo ou à sedução e arrepiar caminho, está perdido de corpo e alma. Quando se sentir a ponto de fraquejar, deverá invocar o nome de Jesus. Vem então a irrupção dos demónios que não mais o deixarão até ao fim do seu périplo infernal - no meio de visões horrorosas entrevistas nas trevas iluminadas apenas pelas chamas dos suplícios, por entre odores fétidos e clamores estridentes. De cada uma das provações que vai sofrer, ele-sairá vitorioso invocando o nome de Jesus, e após cada provação recusa-se a desistir e a voltar atrás. Passarei pois em silêncio o desenrolar de cada episódio. Primeiro os diabos preparam-lhe, na sala da casa de onde vão partir, uma fogueira para onde tentam lançá-lo. Depois de ter passado por urna região deserta e tenebrosa onde soprava um vento cortante como uma navalha e penetrante como urna espada, chega a um campo de enormes dimensões onde homens e mulheres nus estão deitados no chão fixos ao solo por pregos incandescentes que lhes trespassam as mãos e os pés. Passa para um segundo campo onde pessoas de todas as idades, sexo e condição, deitadas de costas ou de frente, são presa de dragões, de serpentes e de sapos de fogo; depois para um terceiro onde homens e mulheres trespassados por pregos em fogo cravados por todo o corpo são chicoteados por demónios; depois para um quarto campo, ver-
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dadeiro campo de suplícios os mais variados, onde alguns estão suspensos por ganchos de ferro fixos nos olhos, nas orelhas, no pescoço, nas mãos, nos seios ou nos sexos e outros são vítimas de uma cozinha infernal, cozidos no forno e num caldeirão ou assados no espeto, etc. Aparece depois uma grande roda de fogo a que estão amarrados homens que passam a toda a velocidade pelas chamas. A ela segue-se um balneário enorme onde uma multidão de homens, mulheres, crianças e velhos estão mergulhados em cubas cheias de metais em ebulição, uns completamente imersos, outros até às sobrancelhas, aos lábios, ao pescoço, ao peito, ao umbigo ou aos joelhos, e ainda outros por um pé ou uma mão. Owein chega depois a uma montanha entre cujas vertentes abruptas corre um rio de fogo. No topo da montanha, onde se encontram muitas pessoas, sopra um vento violento e glacial que faz cair no rio os homens que, se tentam escapar escalando a montanha, são rechaçados por demónios munidos de varas de ferro. Surge por fim uma chama horrivelmente nauseabunda e negra que sai de um poço de onde sobe e onde volta a cair, como faúlhas, uma multidão de almas. Os demónios que o acompanham informam-no: «Eis a porta do Inferno, a entrada da geena, a via larga que leva à morte; aquele que aqui penetra não volta a sair porque no Inferno não há redenção. E o fogo eterno preparado para o diabo e seus subordinados entre os quais não podes negar que estás.» Quando se sente tragado pelo poço, Owein pronuncia de novo o nome de Deus e vê-se longe do poço em frente de um rio de fogo muito largo tendo por cima uma ponte que parecia intransponível pois era tão alta que não se podia evitar a vertigem, tão estreita que não cabia nela um pé e tão escorregadia que era impossível alguém segurar-se. Lá em baixo no rio, diabos esperavam munidos de um gancho de ferro. Owein invoca outra vez o nome de Jesus e avança pela ponte. À medida que avança a ponte toma-se cada vez mais larga e mais estável, e a meio-caminho ele já não vê o rio nem à esquerda nem à direita. Escapa a um último esforço dos diabos furiosos e, ao descer da ponte, vê-se em frente de um muro muito alto e magnificente, com portas ouro puro cravejado de pedras preciosas e exalando um odor delicioso. Entra e encontra-se numa cidade maravilhosa. Duas personagens parecidas com arcebispos que conduziam uma procissão dirigem-se a Owein e dizem-lhe: «Vamos explicar-te o sentido (rationem) do que viste.» «Aqui, prosseguem elas, é o Paraíso terrestre". Voltámos para cá porque expiámos os nossos pecados - não tínhamos terminado a nossa penitência na terra antes da morte - nas torturas que viste de passagem e nas quais nos mantivémos mais ou menos tempo segundo a qualidade das nossas culpas. Todos aqueles que viste nos diversos lugares penais, exceptuando os que estão por baixo da boca do Inferno, alcançarão o repouso em que nós estamos depois da purgação e, finalmente, serão salvos. Os
que assim são torturados não podem saber quanto tempo ficarão nos lugares penais porque as suas provações podem ser aligeiradas ou abreviadas por meio de missas, salmos, preces e esmolas feitos em sua intenção. Também nós, que beneficiamos deste grande repouso e desta alegria mas ainda não fomos dignos de subir ao céu, não ficaremos aqui indefinidamente; todos os dias alguns de nós passam do Paraíso terrestre para o Paraíso celestial.» E mandando-o subir uma montanha, mostram-lhe a porta desse Paraíso celestial. Uma língua de fogo desce dele e enche-os de uma sensação deliciosa. Mas os «arcebispos» chamam Owein à realidade: «Viste em parte o que desejavas ver: o repouso dos bem-aventurados e as torturas dos pecadores; tens agora de regressar pelo mesmo caminho por onde vieste. Se de agora em diante te comportares bem no mundo tens a certeza de que virás para junto de nós depois da morte, mas se viveres mal, viste as torturas que te esperam. Durante o teu regresso, nada mais tens a temer dos demónios, porque eles não se atreverão a atacar-te, nem dos suplícios, porque eles não te atingirão.» O cavaleiro retoma chorando o caminho de regresso e reencontra finalmente as doze personagens do início que o felicitam e lhe anunciam que foi purgado dos seus pecados. Sai do Purgatório de S. Patrick quando o prior volta a abrir a porta, e cumpre então a sua segunda quinzena de orações na igreja. A seguir Owein benze-se e parte em peregrinação para Jerusalém. No regresso vai encontrar-se com o rei seu senhor e pedir-lhe que indique a ordem religiosa onde poderá viver. É então o momento da missão de Gilbert de Luda; o rei convidará Owein a servir de intérprete ao monge. O cavaleiro, encantado, vai aceitar «pois no além não vi nenhuma ordem em tão grande glória como a ordem cisterciense». Construirão uma abadia mas Owein não quererá fazer-se monge nem converso; contentar-se-á com ser o servo de Gilbert. O conjunto de imagens do além não é para nós o mais importante nesta história - se bem que muito tenha contribuído para o seu êxito. Recolhe a maioria dos elementos tradicionais desde o Apocalipse de Paulo, e anuncia os das visões posteriores - em especial da Divina Comédia. Mas são mais imagens de inferno do que imagens específicas. Todavia certos temas não aparecem e a sua ausência agora irá sem dúvida influenciar o seu quase desaparecimento em seguida. O par formado pelo ardente e pelo glacial era um elemento típico das imagens do além penal. Na visão de Drythelm o visitante do além chega a um vale grande e profundo, cuja vertente esquerda arde com um fogo terrível, enquanto a direita é fustigada por uma brutal tempestade de neve. Também Tnugdal encontra num dos lugares que precedem o inferno inferior «uma grande montanha atravessada por um caminho estreito, tendo uma vertente cheia de fogo fétido, sulfuroso e fumarento, enquanto a outra é de gelo e açoitada pelo vento».
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No sermão atribuído a S. Bernardo diz-se que «aqueles que estão no Purgatório esperando a sua redenção devem primeiro ser atormentados quer pelo calor do fogo quer pelo rigor do frio ...» Mas o significado do frio como castigo não era já bem apreendido havia muito tempo. A ideia de um refrigerium bem-fazejo tinha-o mais ou menos ofuscado. Na Visão do Imperador Carlos, o Gordo, o imperial sonhador, transportado para um além infernal, ouve seu pai, Luís, o Germânico, mergulhado até às coxas numa bacia de água a ferver, dizer-lhe: «Não tenhas medo, eu sei que a tua alma regressará ao corpo. Se Deus te permitiu vir aqui é para que vejas quais os pecados pelos quais sofro semelhantes tormentos, assim como todos que viste. Com efeito, num dia estou neste recipiente com água a ferver mas no dia seguinte sou levado para aquele onde a água é muito fresca ...» Neste texto cujo autor perdeu o significado original do rito, a passagem pela água fria é apresentada como uma graça que o imperador deve à intercessão de S. Pedro e de S. Remígio. No Purgatório de S. Patriek já só se refere o frio a propósito do vento g.lacial que sopra sobre o cume da montanha situada no fim do purgatóno. O fogo que no século XII representou o próprio local da purgação, dele expulsou o frio. O nascimento do Purgatório dá o golpe de misericórdia ao refrigerium e anuncia o desaparecimento do seio de Abraã02s. O êxito do Purgatório de S. Patriek foi imediato e considerável. Shane Leslie escreveu que o tratado fora «um dos best-sellers da Idade Média». A data da sua elaboração não é certa. Situa-se habitualmente cerca de 1190 porque a respectiva tradução para francês pela célebre poetisa inglesa Marie de France parece não poder ser posterior ao último decénio do século XII. Por outro lado, S. Malaquias, citado no Tractatus na sua qualidade de santo, foi canonizado em 1190. Mas outros eruditos fazem avançar até 1210 a data da sua redacção'". Se bem que eu tenha procurado localizar cronologicamente com tanta precisão quanta possível o aparecimento do termo purgatorium e da evolução decisiva da representação do além que este aparecimento significa, não me parece muito importante para o objectivo desta investigação datar de 1210 de preferência a 1190 o Purgatório de S. Patriek. O essencial é o facto de o novo lugar do além se materializar a dois tempos, um na literatura teológico-espiritual sob o impulso dos mestres parisienses e do meio cisterciense entre 1170 e 1180, o outro na literatura das visões entre 1180 e 1215. Com efeito, a Vida de S. Patrick de Jocelyn de Furness, escrita entre 1180 e 1183, fala de um Purgatório de S. Patrick mas situado sobre o monte Cruachan Aigle em Connall:gh27. Os acontecimentos autênticos da história das crenças: das mentalidades e da sensibilidade raramente são datáveis em dia e ano. O nascimento do Purgatório é um fenómeno da época da passagem do século XII para o século XIII. 234
Em compensação, é muito importante o facto de uma descrição do Purgatório, expressamente referido por uma boca pertencente à geogralia terrestre, ter surgido cerca de 1200. A redacção do tratado de H. de
Saltrey deve ser mais ou menos contemporânea do aparecimento da lenda e da criação de uma peregrinação. O Purgatório de S. Patrick reaparece sem que a história do cavaleiro Owein seja mencionada - na Topografia irlandesa (Topographia Hibernica) de Giraud, o Galês ou de Cambrie (Giraldus Cambrensis) cuja primeira edição data de 1188, mas não é referido no manuscrito mais antigo e apenas aparece à margem de um manuscrito da Topografia da primeira metade do século XIII. Giraud, o Galês viajara até à Irlanda em 1185-1186. No capítulo V da segunda parte da Topographia Hibernica ele descreve um lago no Ulster ~nde existe uma ilha dividida em duas partes. Uma delas e bela e agradavel, tem uma igreja oficial e é famosa pela presença frequente de santos. A outra parte, selvagem e horrível, está abandonada aos demónios. Tem nove buracos no chão e se alguém se atreve a passar a noite num deles fica possuído dos espíritos malignos e toda a noite sofre suplícios horríveis de toda a espécie num fogo indescritível, e de manhã encontram-no quase inanimado. Diz-se que se, para fazer penitência, alguém sofrer uma vez estes suplícios, escapará depois da ~orte (a. não se.r2~ue entretanto tenha cometido pecados muito graves) as penas infernais . Esta ilha Station Island, situa-se no Lough Derg (o lago Vermelho), no condado 'de Donegal que faz parte do Eire, muito perto da fronteira com a Irlanda britânica do Norte. Parece que o Purgatório de S. Patriek foi aqui objecto de peregrinação a partir do fim do sécul~ XII..: O Papa Alexandre VI condenou-a em 1497, mas a capela e a peregnnaçao ressurgiram no século XVI e sobreviveram a novas destruiçõe~ e interd~ções em 1632, 1704 e 1727. A peregrinação reapareceu de maneira espeClalmente intensa após 1790, e foi edificada uma grande capela. Em 1931 foi acabada uma nova e enorme igreja dedicada a S. Patrick e todos os anos uma peregrinação atrai sem~re cerca de 15.000 peregrinos entre os dias 1 de Junho e 15 de Agosto" . Mas no fim do século XII o Purgatorium Saneti Patricii, apesar dos seus laços com o cristianismo irlandês e com o culto de S. Patrick, não tem sem dúvida o matiz nacionalista, católico e irlandês que irá adquirir na época moderna e contemporânea. Parece que são os regulares ingleses que lançam a peregrinação e a controlam. Depois da tradução de Marie de Prance " haverá muitas redacções do Purgatório de H. de Saltrey em latim e muitas também em língua vulgar, principalmente em francês e inglês". A versão latina será retomada por Roger de Wendover, nas suas Flores Historiarum, redigidas. em 1~31. Matthieu Paris, continuador de Roger, retoma na sua Chronica majora a história, palavra por palavra. Tenha ou não tomado conhecimento 235
d.o tratado ~e ~. de Saltr~y, um grande difusor do Purgatório, o cistercrense alemao Cesar de Heisterbach, escreve no seu Dia/ogus miraeu/orum (XII, 38): «Quem duvide do Purgatório que vá à Irlanda e entre no Purg~t?rio de ~atrick; daí em diante não duvidará mais das penas do Purgatono.» Os cinco autores de histórias edificantes mais influentes do século XIII utilizaram o Purgatorium Saneti Patrieii: Jacques de Vitry na sua Historia orientalis (cap. XCII), os dominicanos Vincent de Beauvais no Speeu/um historia/e (Livro XX, capo XXIII-XXIV), Étienne de Bourbon no seu Tractatus de diversis materiis praedicabilibus (ver adiante), Humbert de Romans em De dono timoris e Jacques de Voragine (Jacopo da ":,arazze) n~ sua célebre Lenda dourada onde declara: «E por uma revelaçao S. Patnc~ so~be que aquele ~oço ~o~duzia a um purgatório e que a~ueles que Ia quisessem descer Ia explanam os seus pecados e seriam dispensados do Purgatório depois da morte'".» Gossouin de Metz fala dele na sua Imagem do Mundo (Image du monde) que conheceu duas reda~ões. em verso cerca de 1245 e 1248 e uma redacção em prosa em 1246 . EIS um excerto de uma dessas canções: Na Irlanda há um lago Que dia e noite arde como fogo, E a que se chama Purgatório de S. Patrick; e ainda hoje, Se lá for alguém que não esteja bem arrependido, E imediatamente arrebatado e perde-se E não se sabe o que lhe acontecerá. Mas se ele se confessar e estiver arrependido Tem de sofrer muitos tormentos E purga-se dos seus pecados, Quantos mais forem mais ele sofre. Aquele que regressar deste lugar Daí em diante nada lhe agradará Neste mundo, nunca mais. Não rirá e antes viverá chorando E gemendo pelos males que existem E pelos pecados que se cometem'",
Dante contactou de perto com o tratado de H. de Saltrey, cuja fama não se extingue com a época a que chamamos tradicionalmente Idade Média. Rabelais e Ariosto aludem a ele; Shakespeare acha que esta história é familiar aos espectadores de Hamler'" e Calderón escreve uma peça sobre este tema ", A voga do Purgatório de S. Patriek nas literaturas erudita e popular durou até ao século xvnr", pelo menos. Mas o essencial neste culto e neste tratado é que daí em diante existe com o seu nome uma descrição desse lugar novo do além, o Purgatório, e que, apesar da ante câmara do Paraíso visitada por Owein, há no Traetatus três lugares no além: ao lado do Inferno e do Paraíso, onde Owein ainda não entrou, há o Purgatório, demoradamente percorrido e descrito' pelo audaz cavaleiro/penitente. E esta geografia do além insere-se na geografia terrestre, não por uma justaposição inábil como indicara Alberico de Settefrati mas pela localização terrestre precisa de uma boca do Purgatório. O que poderia haver de mais conforme com as crenças e a mentalidade daquele tempo, em que a cartografia balbuciante localiza o Paraíso (é certo que terreno) em continuidade com o mundo dos vivos? À medida que se desenvolve o processo de «espacialização» do Purgatório, os vivos admitidos a visitá-lo têm de encontrar as respectivas bocas e estabelecer vias de comunicação com a terra. Estas bocas são durante muito tempo mais ou menos confundidas com a do Inferno, e é a imagem do popa que se impõe. A topografia das bocas do Purgatório aproveitará as grutas e as cavernas. O grande êxito do Purgatório de S. Patriek, situado numa caverna de uma ilha irlandesa, reforçará a imagem do poço do Purgatório. Um sinal interessante desse êxito é o nome tradicional de Poços de S. Patriek dado a uma obra de arte excepcional, o poço de S. Patrizio construído no século XVI em Orvieto. Iria o cristianismo anglo-irlandês impor o seu Purgatório à cristandade, sem concorrência? No outro extremo da cristandade na Itália Meridional, nas margens não do Oceano mas do Mediterrâneo, outro Purgatório já há muito tempo esboçado ia também afirmar-se: na Sicília.
A tentativa siciliana
O douto S. Boaventura leu-a no original ou num resumo e fala dela no seu comentário às Máximas de Pedro Lombardo ", Froissard pergunta a um nobre inglês, Sir William Lisle que fez uma viagem à Irlanda em 1394 se visitou o Purgatório de S. Patriek. Este respondeu-lhe afirmativamente e diz-lhe mesmo que passou uma noite com um companheiro no famoso buraco a que chama cave. Lá dormiram, tiveram visões em sonhos e Sir William fica convencido de que «tudo aquilo não passa de fantasmass'", Incredulidade rara para a época.
Ao lado do processo anglo-irlandês que, tanto quanto sabemos, se inicia com Bede no começo do século VIII, o processo siciliano das abordagens do Purgatório estende-se ainda mais no tempo, do século VII ao século XIII. Para o nosso propósito o episódio mais importante teve lugar no século Xl. Já o vimos; é a visão de um eremita recolhido por um monge de Cluny nas ilhas Lipari e mencionado por Jotsuald e depois por Pedro Damião nas suas vidas de S. Odilon, abade de Cluny (994-1049). Ouve-se,
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saindo da cratera de uma montanha, lamentos dos mortos que lá estão a ser expurgados'", Um século depois, o sermão XXI de Julien de Vézelay sobre o Julgamento Final apresenta para o nosso estudo um duplo interesse. Primeiro, é um testemunho algo extraordinário de uma certa sensibilidade em relação à morte. Nele encontramos a dupla inspiração da tradição antiga do necessário abandono dos prazeres terrenos e da tradição monástica do afastamento das coisas do mundo. Mas ressoa nele o eco de um certo deleite com a passagem pela terra, sobretudo entre as classes dominantes da época, entregues ao luxo das propriedades rurais, das habitações pomposas, do vestuário e das peles, dos objectos de arte e dos cavalos, e de um gozo corporal, que são o sinal de um estado de espírito novo, de uma psicologia de valorização do mundo cá de baixo que fornece a explicação para o crescente interresse por uma vida longa no mundo, e portanto uma interrogação acrescida sobre o período intermédio entre a morte individual e o fim do mundo.
Há três coisas que me aterrorizam, declara Julien de Vézelay, só de evocá-Ias todo o meu ser interior treme de medo: a morte, o Inferno e o Julgamento que há-de vir. Estou pois assustado com a morte que se aproxima, que me fará passar não sei para que região reservada aos espíritos fiéis, depois de tirado do meu corpo, desta luz agradável e comum a todos ... Depois de mim, a história dos homens far-se-á sem mim ... Adeus, terra acolhedora (hospital) onde durante muito tempo me cansei com futilidades, onde habitei uma casa de barro de que saio contrariado (invitus) embora ela só seja barro ... E no entanto ... é contra a minha vontade, e só se me expulsarem dela, que partirei. A pálida morte entrará no meu reduto e arrastar-me-á até à porta, apesar da minha resistência ... Ao mesmo tempo que deixamos o mundo, deixamos tudo quanto é do mundo. A glória do mundo é abandonada nesse triste dia: adeus honras, riquezas, propriedades, vastos prados encantadores, paravimentos de mármore e tectos decorados das casas luxuosas! E que dizer dos tecidos ricos e das peles de lontra, dos mantos multicores, das taças de prata e dos belos ('''valos relinchantes sobre os quais o rico se pavoneia orgulhosamente para se valorizar?! Mas tudo isto é ainda bem pouco: é preciso deixar uma esposa tão doce de contemplar, deixar os filhos e deixar atrás o próprio corpo ~ue de boa vontade resgataria a preço de ouro para o libertar deste arresto ... I.
Com efeito, para nada dizer dos que ardem na geena e que são chamados de «étnicos» da palavra Et(h)na, por causa desse fogo eterno, e para os quais não há mais repouso, além desses... há certamente outros que, depois da morte do corpo, conhecem trabalhos muito penosos e muito longos. Enquanto viviam recusaram-se a «praticar os dignos frutos da penitência (Lucas, lI, 8); no momento da morte, porém, confessaram-se e experimentaram sentimentos de penitência»; é por isso que, por decisão do padre «a quem o Pai encarregou de todo o julgamento (João, V, 22)>>, poderão cumprir no fogo purgatório a satisfação penitencial que não fizeram cá em baixo. Este fogo que consome «a madeira, o feno e a palha acumulados sobre o alicerce da fé» queima aqueles que expurga; «todavia estes serão salvos através do fogo» (I Coríntios, lI, 12-13, 15), pois não passarão com certeza do fogo purgatório para o fogo eterno: «O Senhor não julga duas vezes a mesma causa» (Job, XXXIII, 14). Um pouco adiante, ao falar do fogo da geena, novamente, dá os seguintes dados precisos: «O fogo adere ao seu alimento sem interrupção e sem o consumir. Assim a salamandra, pequeno réptil, caminha sobre carvões incandescentes sem dano para o seu corpo; assim o amianto, uma vez incandescente, arde sem cessar sem que o fogo o faça diminuir; assim o Etna não Jiára de arder talvez desde o começo do mundo, sem perda da matéria ígnea .»
outro interesse do sermão de Julien de Vézelay é o facto de mencionar de novo a Sicília como lugar terrestre de acesso ao além. Eis uma primeira evocação dos que ardem no fogo eterno e dos que fazem penitência no fogo purgatório:
Vê-se bem como, pelo jogo habitual entre o clero da Idade Média, (Isidoro de Sevilha dera o exemplo) das etimologias fantasistas, o Etna é confirmado no seu papel de lugar do além, de ponto de comunicação entre a terra e a geena, entre os vivos e os mortos. Mas onde é geograficamente o ponto de separação entre o Inferno e o Purgatório? No começo do século XIII surge no processo uma peça curiosa. Nas suas Otia Imperialia (as Ociosidades Imperiais) redigidas cerca de 1210 e dedicadas ao imperador Otão IV de Brunswick, o vencido de Bouvines (em 1214), um clérigo culto e curioso - um autêntico etnógrafo medievalo inglês Gervásio de Tilbury expõe sobre o além, por um lado, concepções tradicionais que ignoram as novidades do Purgatório e, por outro, uma história singular. No capítulo XVII da terceira parte, Gervásio trata dos dois paraísos e dos dois infernos. Assim como, diz ele, há um Paraíso terrestre e um Paraíso celestial, «há dois infernos: um terrestre que se diz situado num buraco da terra e nesse inferno há um lugar muito distante dos lugares de castigo que, por ser tão calmo e afastado, se chama seio, como se fala de um seio (golfo) do mar, e diz-se que é o seio de Abraão por causa da parábola do rico e de Lázaro ... Há um outro inferno aéreo e tenebroso onde foram precipitados para lá serem castigos os anjos maus, tal como os bons estão no paraíso celeste (CéU)43.) O que interessa Gervásio é que, segundo parece, alguns destes demónios vêm à terra acasalar com uma mortal para gerar homens excepcionais a que se chama «sem pai» ou «filho de virgem», como Merlin o feiticeiro e, no futuro, o Anticristo.
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Mais adiante Gervásio, ao descrever «maravilhas» geográficas e mais particularmente sicilianas, conta a seguinte história recolhida no decurso de uma viagem que ele próprio fizera (cerca de 1190) à Sicília: «Existe na Sicília uma montanha, o Etna, ardendo em fogos sulfurosos, perto da cidade de Catânia ... as pessoas do povo chamam a essa montanha Mondjíbel'i" e os habitantes da região contam que nas vertentes desertas apareceu na nossa época o grande Artur. Um dia um palafreneiro do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça por ter comido de mais. O cavalo que ele estava a escovar fugiu e desapareceu. O palafreneiro procurou-o em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com crescente inquietação, começou a explorar as cavernas escuras de um monte. Um carreiro muito estreito mas plano levou-o a um enorme prado, encantador e pleno de delícias. Aí, num palácio construído por encantamento, encontrou Artur deitado num leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou trazer o cavalo e entregou-o ao rapaz para que o restituísse ao bispo. E contou-lhe como, tendo outrora sido ferido numa batalha contra seu sobrinho Modred e o duque dos saxões Childerico, ficou caído por terra durante muito tempo, tentando curar os ferimentos que reabriam constantemente. E, segundo os indígenas que mo revelaram, ele enviou presentes ao bispo que os mandou expôr à admiração de uma quantidade de gente confundida com esta história inédita 45.» A este texto e a esta lenda dedicou o grande Arturo Graf um belo artigo'". Contentemo-nos em indicar aqui o papel singular que foi o seu no processo do nascimento do Purgatório. Gervásio de Tilbury ignora o Purgatório e, como continua apegado ao seio de Abraão, coloca Artur num lugar mais próximo de um além maravilhoso pagão. Este texto é antes de mais o espantoso encontro das tradições meridionais e setentrionais, célticas e italianas. Encontro da lenda arturiana e da Itália, também testemunhado no século XII por uma escultura da catedral de Modena'". Encontro que realça também um dos maiores riscos da localização do Purgatório. Dois pólos atraíam o Purgatório: o Paraíso e o Inferno. O Purgatório podia ser um quase Paraíso ou um quase Inferno. Mas bem cedo o Purgatório (ainda em esboço) se inclinou para o Inferno e levou muito tempo a distinguir-se dele. Até ao século XIII - e por vezes mais tarde - não passou de um inferno menos profundo onde não se era atormentado por toda a eternidade mas sim temporariamente, a geena superior. O Purgatório formou-se, pois, numa visão quase sempre infernal do além. Este além situava-se em geral debaixo da terra durante o longo período de incubação do Purgatório, em estreito contacto com o Inferno - o inferno superior - mas, durante esta fase de geografia confusa, o mo240
delo infernal do Purgatório foi contaminado e corrifdo por dois outros modelos. Um foi o do Purgatório quase paradisiaco" . O outro nasceu da vontade de encontrar um lugar verdadeiramente intermédio entre o Inferno e o Paraíso. A estes problemas vagamente apercebidos foram dadas até ao século XIII soluções diversas, mais ou menos coerentes. Por vezes surge a justaposição de dois lugares, um com aspecto infernal outro com aparência quase paradisíaca. Assim, na confusíssima Visão de Tnugdal duas regiões situadas de um e outro lado da mesma muralha e colocadas entre o Inferno e o Paraíso são uma chuvosa e ventosa enquanto a outra, risonha, é banhada pela água de uma fonte de vida. A primeira região contém as almas dos que não são inteiramente maus e a segunda as do que não são inteiramente bons. Por vezes, o lugar de purgação parece situado à superficie da terra, num vale estreito e profundo onde reinam trevas parecidas com as do Inferno. É o caso da região da visão deDrythelm. i
A infernização
do Purgatório
e os seus limites
Nenhum texto evoca melhor do que o de Gervásio de Tilbury um equivalente do Purgatório tão próximo de um lugar de repouso como esta descrição da espera num mundo que é decerto o da morte (numa montanha cheia de fogo onde se é conduzido por um cavalo negro condutor de almas num estado em que as feridas terrenas não saram: as de Artur reabrem constantemente), mas onde um herói como Artur jaz «sobre um leito real», «num palácio construído por encantamento», no meio de um prado enorme, encantador e pleno de todas as delícias. Parece que neste momento decisivo para o Purgatório em gestação, a cristandade latina, que hesita em situá-Io na Irlanda ou na Sicília, hesita também em fazer dele um lugar próximo do Inferno ou próximo do Paraíso ... De facto, no momento em que Gervásio de Tilbury recolhe histórias que reflectem mais as concepções do passado do que as do presente, os dados estão já lançados. Carregado com o peso da literatura apocalíptica oriental, cheio de fogo, de torturas, de furor e de ruídos, definido por Agostinho como o lugar de penas mais dolorosas do que qualquer dor terrena, posto em funcionamento por uma Igreja que só salva no temor e no terror, o Purgatório já tombou para o lado do Inferno. A propósito da lenda de Artur no Etna, Arturo Graf mostrou magistralmente como, desde o relato de Gervásio de Tilbury até ao do dorninicano Étienne de Bourbon cinquenta anos depois, a infernização , a 241
satanização do episódio se consumou. O Purgatório de Artur tornou-se um Inferno provisório'". Também a Sicília (Lipari ou Etna), ao contrário da Irlanda, não será uma localização duradoura do Purgatório. Para compreender isto é necessário remontar às fontes cristãs do além siciliano. Esse além cristão é largamente tributário de uma antiga herança rica, da qual a mitologia do Etna, morada infernal de Vulcano e das suas forjas, é a expressão mais brilhante. Mas um dos grandes fundadores do Purgatório na Alta Idade Média, Gregório, o Grande, situa na Sicília as bases do além cristão. Duas histórias dos Diálogos são disso testemunho. No primeiro texto o monge Pedro pergunta a Gregório se os bons se reconhecem no Paraíso (in regno) e os maus no Inferno (in supplicio); Gregório responde com a história de Lázaro e do rico mau. Depois passa a descrições já tradicionais (pense-se, por exemplo, nas visões do São Martinho nesse modelo de hagiografia latina que foi a Vila Martini de Sulpício Severo) de visões de moribundos. Primeiro, a história de um monge que, no momento da morte, vê Jonas, Ezequiel e Daniel. Depois vem a história do jovem Eumorfius, que um dia manda um seu escravo dizer ao seu amigo Estêvão: «Vem depressa porque o navio que vai levar-nos à Sicílía está pronto.» Enquanto o escravo vai a caminho, os dois homens morrem, cada um por seu lado. Este relato espantoso intriga Pedro que solicita explicações a Gregório: PEDRO: Mas, pergunto-te, porque apareceu um navio à alma que saía do corpo, e porque disse ele que depois da morte seria levado para a Sicilia? GREGÓRIO: A alma não precisa de meio de transporte (vehiculum ) mas não é de estranhar que a um homem ainda fechado no seu corpo apareça o que ele tinha o costume de ver por meio do corpo, para que ele possa assim entender onde a sua alma poderá ser conduzida espiritualmente. O facto de ele ter afirmado a esse homem que seria levado para a Sicília só pode ter um sentido: mais do que em qualquer outro lugar, é nas ilhas dessa terra que estão abertas as marmitas dos tormentos que cospem fogo. Estas, como afirmam os conhecedores, cada dia aumentam mais porque, como se aproxima o fim do mundo e é incerto o número dos que lá serão reunidos para serem queimados, acrescentando-se aos que já lá estão, é necessário que esses lugares de tormento se abram mais para os recolher. Deus Todo-Poderoso quis mostrar esses lugares de correcção aos homens que vivem neste mundo, para que os espíritos incrédulos (mentes infidelium) que não acreditam que existem tormentos infernais vejam os lugares desses tormentos. assim como os que se recusam a acreditar naquilo de que apenas ouvem falar. Quanto àqueles, eleitos ou condenados, cuja causa foi comum nas suas obras, são conduzidos para lugares igualmente comuns; as palavras verdadeiras deveriam bastar para nos convencer disto, mesmo que faltassem. os exemplos 50. 242
Esta espantosa mistura de lendas pagãs e de cristianismo muito ortodoxo, de vulcanologia e de teologia dos fins últimos, não é de estranhar 110 grande Papa escatológico. Conhecemos a segunda história que põe em causa as ilhas vulcânicas sicilianas e os lugares infernais: é a história do castigo de Teodorico lançado num vulcão das Lipari'". A politização das visões do além é o elemento mais notório desta história que continuará bem viva durante a Idade Média e que anuncia IIS visões dos reis punidos no além, cujos exemplos já vimos com os soberanos carolíngios da Visão de Carlos, o Gordo, e com os reis irlandeses da Visão de Tnugdal. Mas a localização siciliana dos lugares cristãos dos castigos no além é um elemento igualmente significativo. É nesta tradição que se deve, evidentemente, situar o relato de Jotsuald e de Pedro Damião. Entre os relatos de Gregório, o Grande, e os textos. dos séculos XI-XIII (vidas de Odilon, de Jotsuald e de Pedro Damião, história de Artur no Etna de Gervásio de Tilbury) situa-se uma peça muito interessante do processo infernal das Lipari. Este texto raro do século VIII dá-nos a conhecer ao mesmo tempo uma erupção vulcânica entre os anos 723 e 726 e a continuidade de uma crença ligada a um lugar de excepção. Trata-se do relato de uma paragem nestes lugares de um peregrino a caminho de Jerusalém, o santo Willibald. De lá, chegaram à cidade de Catânia, depois a Reggio, cidade da Calábria. É aí que fica o inferno de Teodorico. Tendo chegado, saíram do navio para verem como era esse inferno. Willibald, levado pela curiosidade e para ver como era o interior desse inferno, quis subir ao cume da montanha onde se abria o inferno lá em baixo, mas não pôde. Faúlhas vindas do fundo do tártaro negro subiam até à borda e aí se espalhavam aglomerando-se. Como a neve quando cai do céu se acumula em montículos brancos vindos dos arcos aéreos do céu, também as faúlhas acumuladas no cume da montanha impediam a subida de Willibald. Mas, cuspida pelo poço, ele viu surgir uma chama negra terrível e horrível, um ruído de trovão. Olhou a grande chama e o vapor do fumo elevando-se mcdonhamente muito alto no céu. Esta lava (pumex ou fomex), de que falavam os escritores, viu-a ele subir do inferno e ser projectada no mar juntamente com chamas, para depois ser projectada do mar para terra. Há quem a recolha e a leve consig052. O sentido destes textos é claro. O que existe desde a Antiguidade - e também aqui o cristianismo deu um sentido novo às crenças mas manteve-as no seu lugar in situ - na Sicília, nos vulcões das Lipari como no Etna, é o Inferno. É verdade que durante muito tempo os lugares purgatórios cristãos serão perto do Inferno e mesmo uma parte dele. Mas quando nasce o Purgatório e embora as penas que lá se sofrem sejam 243
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temporárias mas infernais, é necessário assegurar a sua autonomia topográfica no interior do sistema geográfico do além. Na Irlanda o Purgatório - ainda que infernal - de S. Patrick não é ensombrado pelo Inferno. Na Sicília a grande tradição infernal não permitiu que o Purgatório se expandisse. O velho Inferno barrou o caminho ao jovem Purgatório.
NOTAS
1 O texto do opúsculo encontra-se em Migne, PL, 145,col. 584-590com títulos de capítulos acrescentados pelo editor e que são muitas vezes anacrónicos (por exemplo, liberat a poenis purgatorii). Sobre Pedro Damião e a memória dos mortos, ver F. DRESSLER, Petrus Damiani. Leben und Werk, Roma, 1954. Sobre a morte no meio monástico, ver J. LECLERCQ, «Documents sur Ia mort des moines» in Revue Mabillon, XLV, 1955, pp. 165-180. 2 PL, 145, 186, 188. 3 O texto latino precisa com fundamento e realismo: poena/ibus undique loris ostrictum et ambientium catenarum squaloribus vehementer attritum. 4 PL, 144, 403. 5 De miraculis, I, IX, PL, 189, 871. 6 De miraculis, I, XXIII, ibid., 891-894. 7 De miraculis, I, XVIII, ibid., 903-908. 8 Trata-se do manuscrito latino 15912 que foi parcialmente transcrito por Georgette Lagarde no contexto da investigação do grupo de antropologia histórica do Ocidente medieval da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais sobre o cxemplum. As visões referidas encontram-se no folheto 64. 9 Esta historieta sobre a breve passagem de S. Bemardo pelo Purgatório não foi aproveitada por Jacopo da Varazze na Lenda Dourada. Recordemos que a lmaculada Concepção de Maria só se tomou um dogma do catolicismo em 1854. 10 O De vita sua (título original Monodiae: Poemas a uma voz, Memórias) de Guibert de Nogent encontra-se no tomo 156 da Patrologie {atine de Migne e foi substituído na história da autobiografia por G. KISCH, Geschichte der Autobiographie, 1,2, Frankfurt, 1959;ver J. PAUL, «Le dêmoniaque et I'imaginaire dans le De vila sua de Guibert Nogent» in Le Diable au Moyen Age, Senefiance nO6, Aix-en-Provence, Paris, 1979, pp. 371-399. 11 Ver a introdução de John F. BENTON à tradução para inglês da obra: Self and Society in Medieval France. The Memoirs of Abbot Guibert of Nobent, Nova Iorque, 1970,e o sugestivo artigo de Mary M. McLAUPHLIN, «Survivors and Surrogates: Children and Parents from the IXth to the XIIIth centuries» in The History of Childhood, Lloyd de Mause ed., Nova Iorque, 1975,pp. 105-106. 12 Cf. J.-CI. SCHMITT, Le saint /évrier. Guinefort, guérisseur d'enfant depuis le XIIr siêcle, Paris, 1979.
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13Sbo re a ligaçao - entre a cor negra e o diabo na Idade Média ver 1. DEVISSE e M. MOLLAT, L 'Image du noir dans /'art occidental, 11. «Des premiers siêcles chrétiens aux grandes découvertes», 2 vol., Friburgo, 1979. 14 Texto publicado por Dom Mauro INGUANEZ in Miscellanea Cassinese, XI, 1932, pp, 83-103, precedido de um estudo de Dom Antonio MIRRA «La visione di Alberico», ibid., pp. 34-79. ' 15 A propósito das influências muçulmanas ver as teses exageradas de M. ASIN PALACIO, La Escatologia musulmana en Ia "Divina Comédia", Madrid, 1919 e Dante y el/slam, Madrid, 1929, e as mais moderadas de E. CERULLI, 11"livro della Scala" et Ia questione delle fonti arabo-spagnole della Divina Comedia, Roma, 1949. Sobre a ausência de Purgatório no Islão ver principalmente E. BLOCHET «Étude sur l'histoire religieuse de l'Iran» in Revue de l'histoire des religions, 20: 1. 40, Paris, 189,9, p. 12. Ver também M. ARKOUN, 1. Le GOFF, T. FAHD, M. RODINSON, L'E~~ange et le Merveilleux dans l'Islam médiéval, Paris, 1978, pp. 100-101. Preenche vinte páginas impressas. l~ O texto editado diz: Hoc autem insinuante apostolo, purgatorii nomen habere c0K,novi. Sutx:ntendo fluminis: «Soube que tinha o nome de (rio) purgatório.» Com efeito, a rubnca deste capítulo que, segundo o editor, é transcrita do manuscrito, é «De .(Iu~ine purgatorio» (edo rio purgatório»). É como adjectivo no genitivo com referência a esta passagem que purgatorii (purgatorius ) figura no ficheiro do novo glossário de Du Cange conforme amavelmente me comunicou A. M. Bautier, 18 Se bem que a referência não seja mencionada, esta interdição provém evidentemente de S. Paulo, II Coríntios, XII, 2-4. Eis o fim'da viagem: S. Pedro leva finalmente Alberico através de cinquenta e uma províncias terrestres - as do antigo Império Romano - onde lhe mostra santuários de santos e mirabilia edificantes. O relato termina com um~ descrição de S. Pedro, diversos propósitos do apóstolo, o regresso da alma .de Albenco ao corpo, a visão de sua mãe, quando rezava a um ícone que representava S. Paulo pela sua cura, e a sua entrada no mosteiro de Monte Cassino. 19 Visio Tnugdali, ed. Albrecht Wagner, Erlangen, 1882. Recordo o estudo recente de Claude CAROZZI citado a p. 16, n. I e p, 185 n. 1. 20 O Purgatorium Sancti Patricii foi editado duas vezes no século XVII, por MESSINGHAM no seu Florilegium Insulae Sanctorum, 1624, edição reproduzida na Patrologie latine, 1. 180, col. 975-1004 e pelo jesuíta John COLGAN na sua Triadis thaurnaturgae ... acta, Lovaina, 1647. Foram feitas edições modernas por S. ECKLEBEN, Die âltest Schilderung vom Fegfeuer des heiligen Patricius, Halle, 1885; por Ed. MaU que, .perante o texto editado por Colgan, nos dá o texto do manuscrito que se ~e considerar co~o o mais próximo do texto original (ms E VII 59 de Bamberg, do sc;culo XIV) e as vanantes de um manuscrito do British Museum, Arundel, 292 (fim do seculo ?GIl), Zur Geschiehte der Legende vom Purgatorium des heiligen Patricius, in Romanische Forschungen ed. K. Vollmõller, VI, 1891, pp. 139-197; por U. M. VAN DER ZANDEN, Etude sur le Purgatoire de saint Patriee, Amesterdão, 1927, que ditou o. texto de um manuscrito de Utrecht do século XV e, em apêndice, uma versão corrigida do manuscrito Arundel 292; e por Warncke em 1938. Utilizei a edição Mall. O Purgatorium .Saneti Patricii suscitou, nas suas formas latinas ou em linguagem vulgar (francesas e inglesas sobretudo - lugar à parte para a tradução de Marie de France l'!!spurgatoire. ~aint Patriz), ~uitos estudos entre os quais alguns, ainda que antigos, sa? sempre vahd~s. ~ maioria deles repõe este texto na história das crenças sobre o ~Iem desde a Antiguidade, e no folclore. Se bem que por vezes insuficientemente críticos e ultrapassados, estes estudos continuam a ser um modelo de abertura de espírito
histórico. Citemos: Th. WRIGHT, SI. Patrick's Purgatory; an essay on lhe legends of Purgatory, Hell and Paradise, eurrent during the Middle Ages, Londres, 1844. BARING-GOULD, Curious Myths of the Middle Ages. 1884, repr. Leyde, 1975; S. Patrick's Purgatory, pp. 230-249. G. Ph. KRAPP, The Legend of St. Patrick's Purgatory, its later Iiterary history, Baltimore, 1900. Ph, de FÉLICE, L'autre monde. Mythes et légendes: Le Purgatoire de saint Patrice, Paris, 1906. O estudo tido como o mais completo, o de Shame LESLIE, SI. Patrick's Purgatory: A reeordfrom History and Literature , Londres, 1932, não é o mais interessante. V. e E. TURNER deram uma interpretação antropológica muito sugestiva à peregrinação de S. Patrick ao Purgatório nos tempos modernos - que nada acrescenta ao nosso tema: /mage and Pilgrimage in Christian Culture: capo 11I, St. Patrick's Purgatory: Religion and Nationalism in an Archaic Pi/grimage, Oxford, 1978, pp. 104-139. 21 Existe em Roma na igreja do Sacro Cuore deI Suffragio um pequeno «museu do Purgatório» onde são conservados uma dúzia de vestígios (geralmente queimaduras feitas com uma mão - em sinal do fogo do Purgatório) de aparições de almas do Purgatório a vivos. Estes testemunhos vão do fim do século XVIII ao começo do século XX. Longa duração, a do sistema do Purgatório ... 22 Estes dados sobre S. Patrick que viveu no século V são inventados. As antigas vidas de S. Patrick nada dizem a este respeito. O Purgatório de S. Patriek é mencionado pela primeira vez, no estado actual da documentação, na nova vida do santo escrita por Jocelyn de Furness entre 1180 e 1183. Como o chanceler Owein não é mencionado, considera-se geralmente este período 1180/1183 como o terminus a quo para a datação do Tractatus de H. de Saltrey, 23 Ver Erich KÓHLER, L 'Aventure ehevalresque. /déal et réalité dans le roman courtois, Paris, 1974. 24 Continuo a contar a história por uma paráfrase abreviada. O texto entre aspas não é a tradução integral do discurso dos dois «arcebispos». 25 Noto que se encontram estas imagens do além entre os actuais descendentes dos Maias, os Lacandons do Sul do México: «O "sábio" Tchank'in Maasch ... não deixava de referir relatos sobre este domínio das sombras onde correm lado a lado regatos gelados e rios de fogo ...» (1. SOUSTELLE, Les Quatre Soleils, Paris, 1967, p. 52). 26 F. W. LOCKE, «A new date for the composition of the Tractatus de Purgatorio Sancti Patricii» in Speculum, 1965, pp. 641-646 rejeita a data tradicional de cerca de 1189 para atribuir ao período 1208-1215 a composição do Tractatus, o que implica que a data do Espurgatoire Saint Patriz seja também avançada vinte anos. Richard Baum (<
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«Este lugar foi chamado pelos habitantes Purgatório de Patrick» e diz-se como este obteve licença para o fundar. Cf. C. M. Van der Zanden. Um capítulo interessante da Topographia Hibemica e do Tractatus de purgatorio saneti Patrieii encontra-se em Neophilologus 1927. Giraud, o Galês parece ter redigido a sua Topographia no momento em que uma peregrinação penitencial - sem dúvida com aspecto de ordálio - foi transferida da maior ilha dos santos (Saints' Island) para a pequena ilha de Station Island a noroeste de Lough Derg, e daí a síntese numa só ilha partilhada por santos e demónios. 29 Além do interessantíssimo estudo de V. e E. Tumer citado no fim da nota 20 deste capítulo, pp. 259-260, só existem estudos medíocres ou sumários da peregrinação. Cf. John SEYMOUR, St. Patrick's Purgatory. A Mediaeval Pilgrimage in Ireland, Dundald, 1918, J. RYAN, New Catholie Encyclopedia, voI. XI, 1967, p. 1039. Philippe de FELICE (cujo capítulo IV de L'Autre Monde, Mythes et Légendes, Le Purgatoire de saint Patrice, Paris, 1906, intitulado «História do Santuário do Lough Derg» não é isento de interesse e termina com este judicioso reparo: «A persistência, através dos séculos, do Purgatório de S. Patrick é um facto preciso, indiscutível, cuja importância merecia ser assinalada à atenção dos sociólogos») conta (p. 9 e ss.) como, na companhia de um primo, chegou com dificuldade ao Lough Derg e à ilha do Purgatório em 1905. Em 1913 o cardeal Logue, primaz da Irlanda, depois de uma visita a Station Island, declarou: «Creio que todos que realizaram a peregrinação tradicional aqui ao Lough Derg, bem como os exercícios penitenciais, o jejum e as preces que valem tantas indulgências, e morreram em seguida pouco terão tido que sofrer no outro mundo» (citado por V. e E. Turner, p. 133). Anne Lombard-Jourdan que visitou o Lough Derg e o Purgatório de S. Patrick em 1972 teve a gentileza de me descrever o programa oficial que tem a aprovação do bispo local, o bispo de Clogher. Na Idade Média a duração da penitência passara de 15 para 9 dias, a duração normal das novenas para a Igreja. Na época moderna a duração foi encurtada para 3 dias, o que é hoje a prática, mas o centro da peregrinação continua a ser uma provação de 24 horas. O programa de 1970 diz «a vigília (lhe Vigil) é o principal exercicio espiritual da peregrinação e significa privarmo-nos de dormir de uma maneira completa e contínua durante 24 horas». Bela continuidade das crenças e das práticas! 30 L 'Espurgatoire de Saint Patriz de MARIE DE FRANCE foi publicado por Thomas Atkinson Jenkins, Filadélfia, 1894. Ver L. FOULET, «Marie de France et Ia Légende du Purgatoire de Saint Patrice» in Romanische Forschungen, XXII, 1908, pp. 599-627. 31 Paul Meyer indicava sete versões francesas em verso do Purgatório de S. Patrick (Histoire Iittéraire de Ia France, t. XXXIII, pp. 371-372 e Notiees et Extraits des manuscrits de Ia Bibliothéque nationale, t. XXXIV, Paris, 1891): I) a de Marie de France; 2 a 5) quatro versões anónimas do século XIII; 6) versão de Béroul; 7) versão de GeofTroy de Paris introduzida pelo livro IV da Bible des sept états du diable. Uma delas foi publicada por Johan VISING, Le Purgatoire de saint Patrice des manuscrits Harléien 273 et Fonds franpais 2198, Gõteborg, 1916. O substantivo purgatório é usado várias vezes. Por exemplo: Pela grande vergonha que tinha Dizia que de boa vontade iria Para o purgatório, para poder Expiar bastante os seus pecados (v. 91-94) Com aquele que não quer deixar De no purgatório entrar (v. 101-102).
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Existem .ambém várias versões francesas em prosa. Uma delas foi publicada por Prosper T ARBÉ. Le Purgatoire de saint Patriee. Légende du siêcle, publiée d'aprés un manuscrit de Ia Bibliothéque de Reims, Reims, 1842. As versões inglesas mais antigas foram publicadas por HORTSMANN in Alten Englische Legenden, Paderborn, 1875, pp. 149-211, KOELBING in Englische Studien, I, pp. 98-121, Breslau, 1876, e L. T. SMITH, Englisehe Studien, IX, pp. 3-12, Breslau, 1886. Uma edição em provençal antigo do começo do século XV foi publicada por A. JEANROY e A. VIGNAUX, Raimon de Perelhos. Voyage au Purgatoire de saint Patrice, Toulouse, 1903 (textos em languedócio do século XV). Esta edição contém também versões em provençal antigo da visão de Tnugdal e da visão de S. Paulo que Raymond de Perelhos julga ser a viagem ao Purgatório de S. Patrick. O conjunto destes textos provém do manuscrito 894 da Biblioteca municipal de Toulouse, prova do gosto pelas visões do além e do Purgatório no século XV. Este pequeno «corpus» ucarreta a transformação da visão de Tnugdal em visão do Purgatório. O título é (f. 48): Ayssi commensa 10 libre de Tindal traetan de Ias p~nas de purgatori. Sobre o destino do Purgatório de S. Patrick em Espanha ver J. PEREZ de MONTALBAN, Vida y Puragatorio de San Patricio, ed. M. G. Profeti, Pisa, 1972. 32 Légende dorée, tradução francesa. T. de WYZEWA, Paris, 1920, p. 182. Sobre Étienne de Bourbon e Humbert de Romans ver L. FRA TI, «li Purgatorio do S. Patrizio secondo Stefano di Bourbon e Umberto de Romans» in Giorna/e storieo della letteratura italiana, 8, 1886, pp. 140-179. 33 A redacção em prosa de Gossouin de Metz foi editada por o. H. PRIOR, L'1mage du monde de maitre Gossouin. Rédaction en prose, Lausanne-Paris, 1913. 34 Este extracto da Image du monde de Gossouin de Metz é a versão ligeiramente modernizada do texto do conde de DOUHET no Dietionnaire des /égendes du christianisme, ed. Migne, Paris, 1855, colunas 950-1035. 35 Ed. de Quaracchi, t. IV, p. 526. O grande mestre franciscano diz que existiu a lenda de que o Purgatório se encontrava nestes lugares (ex quo fabulose ortum est, quod ibi esset purgatorium). 36 FROISSART, ed. Kervyn de Lettenhove, Chroniques T. XV, Bruxelas, 1871, pp. 145-146. 37 SHAKESPEARE, Ham/et. Quando o fantasma do pai aparece a Hamlet (acto I, cena V) revela-lhe que foi condenado por um tempo determinado a errar de noite e a jejuar durante o dia nas chamas até que os seus pecados sejam queimados e purgados (dirá pouco depois que o assassínio nele praticado pelo irmão foi tanto mais odioso quanto nem lhe deu tempo para se confessar e fazer penitência antes de morrer).
xnr
Iam thy father's spirit Doom 'd for a certain term to walk the night And.for lhe day, confin 'd to fast in fires, Till de foul crimes, done in may days of nature, Are burnt and purg'd away. Quando o fantasma desapareceu, Hamlet, sem revelar a Horácio e Marcelo o que ele lhe dissera, invoca S. Patrick: HORA TIO: There's no offence, my lord, HAMLET: Yes, by Saint Patrick, but there is, Horatio, And much offence. 100. Touching this vision It is an honest ghost.
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38 CALDERÓN, Le purgatoire de saint Patrice, trad. francode Léon ROUANET, Drames religieux de Calderôn, Paris, 1898. A primeira edição do Purgatorio de San Patricio é de 1636.
~9 O conde de DOUHET no seu interessantíssimo artigo: «Saint Patrice, son purgatoire et son voyage» do Dtctionnaire des légendes du christianisme, ed. Migne, Paris, 1855, col. 950-1035, publicou uma versão ainda muito apreciada no século XVIII. Escreve,ele(col. 951): «Entre mil outras, escolhemos uma versão recente, ainda popular no seculo passado e que esclarece completamente as intenções da Idade Mêdia.» .40 J
Lombard-Jourdan,
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VII - A LÓGICA
DO PURGATÓRIO
Os mortos não existem senão pelos e para os vivos. Inocência 111 disse-o: os vivos ocupam-se dos mortos porque são eles próprios futuros mortos. E numa sociedade cristã, sobretudo na Idade Média, o futuro não tem apenas um sentido cronológico, mas primeiro e principalmente um sentido escatológico. Natureza e sobrenatureza, no mundo e no além, ontem, hoje, amanhã e sempre, a eternidade, são unos, feitos de uma mesma trama, não sem acontecimentos (o nascimento, a morte, a ressurreição), não sem saltos qualitativos (conversão) e momentos inesperados (o milagre). A Igreja está por toda a parte, no seu papel ambíguo: controlar e salvar, justificar e contestar a ordem estabelecida. Desde o fim do século IV até meados do século XII, de Agostinho a Otão de Freising (o prelado tio de Frederico Barba Ruiva), a sociedade viveu - mais mal do que bem - sobre um modelo ideal, a Cidade de Deus. O essencial era que a cidade terrena, apesar das suas imperfeições, não tombasse para o lado do Diabo, para o lado do mal. O modelo continua válido para além do século XI e Satanás investirá mesmo em ofensivas violentas, angustiantes, enquanto durar o mundo feudal dos fortes e dos fracos, dos bons e dos maus, dos brancos e dos negros. Mas na explosão da cristandade, entre o fim do século Xl e meados do século XIII, digamos, encontrar referências intelectuais, de Anselmo a Tomás de Aquino, já não é assim tão simples. Há estados intermédios, etapas, transições, as comunicações são mais sofisticadas entre os homens, entre Deus e os homens; o espaço e o tempo fragmentam-se e reorganizam-se de outra maneira, as fronteiras entre a vida e a morte, entre o mundo e a eternidade, entre a terra e o céu, deslocam-se. Os instrumentos de medição já não são os mesmos, quer se trate da ferramenta intelectual, dos valores, ou das técnicas materiais. A reforma gregoriana entre o meio do século XI e o meio do século XII, resposta da Igreja ao desafio das novas estruturas da cristandade, liquidou uma retórica que ainda faltará durante algum tempo à boca de cena mas que, cada vez menos, esconde
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as realidades novas do teatro cristão. Retórica do dualismo: as duas ci dades, os dois poderes, as duas espadas, o clero e os laicos, o Papa e o imperador; há também dois exércitos, o do Cristo e o de Satanás. Inocêncio lU é aqui uma testemunha e um actor irrefutável. É um grande Papa não por ter feito triunfar entre a cristandade (como pretendia uma historiografia arcaica) um suposto modelo de feudalismo jurídico que nunca existiu, mas porque, apesar de alguns erros (quem poderia pensar, cerca de 1200, que os cistercienses seriam incapazes de combater vitoriosamente os hereges?), restabeleceu o poder da Igreja sobre a nova sociedade, não opondo-se-lhe mas adaptando-se a ela. Inocêncio 111designa daí em diante três igrejas: entre o exército de Deus e o exército de Zabulão há «o exército que está no Purgatório» I.
o além
e os progressos da justiça
A que responde este aparecimento de uma terceira sociedade no além? Será a uma evolução da ideia de salvação à qual se ligam geralmente as concepções humanas do outro mundo? A reflexão dos vivos sobre o além parece-me todavia animada mais pela necessidade de justiça do que pela aspiração à salvação - excepto, talvez, durante breves períodos de efervescência escatológica. O além deve corrigir as desigualdades e as injustiças cá de baixo, deste mundo. Mas esta função do além de correcção e de compensação não é independente das realidades judiciais terrenas. Sendo no cristianismo o destino eterno dos homens fixado no Julgamento Final, a imagem do julgamento ganha uma importância singular. E certo que o Novo Testamento descreveu a cena em que a cortina cai sobre o mundo e se abre sobre a eternidade. É a grande separação das ovelhas e dos lobos, dos eleitos à direita e dos condenados à esquerda (Mateus, XXV, 31-46). É a vinda do Paracleto. E ele, logo que venha, estabelecerá a culpabilidade do mundo em matéria de pecado em matéria de justiça e em matéria de julgamento: de pecado, porque eles não crêem em mim; de justiça, porque eu vou para o Pai e vós não me vereis mais; de julgamento, porque o Príncipe deste mundo é julgado.
(João, XVI, 8-11). 252
É, por fim, o julgamento das nações: E eu vi os mortos, grandes e pequenos, de pé perante o trono; abriram-se livros e depois um outro livro o da vida; então os mortos foram julgados segundo o conteúdo dos livros, cada um conforme as suas obras .... Então a Morte e o Hades foram lançados no lago de fogo - é a segunda morte, este lago de fogo - e àquele que não estava inscrito no livro da vida lançaram-no no lago de fogo (Apocalipse, XX, 12-15).
Mas este julgamento futuro, último, geral, comporta apenas duas possibilidades: a vida ou a morte, a luz ou o fogo eterno, o Céu ou o Inferno. O Purgatório vai depender de um veredicto menos solene, um julgamento individual logo a seguir à morte que as imagens cristãs medievais vêem espontaneamente sob a forma de uma luta pela alma do defunto entre anjos bons e maus, entre anjos propriamente ditos e demónios. Como as almas do Purgatório são almas eleitas que finalmente serão salvas, libertam-se dos anjos mas são submetidas a um procedimento judicial complexo. Podem, com efeito, beneficiar de uma alteração de pena, de uma libertação antecipada, não pela sua boa conduta pessoal mas por causa das intervenções exteriores, os sufrágios. A duração da pena depende pois, para além da misericórdia de Deus simbolizada pelo zelo dos anjos ao arrancar as almas aos demónios, dos méritos pessoais do defunto adquiridos durante a vida e dos sufrágios da Igreja suscitados pelos parentes e amigos do defunto. Este processo inspira-se evidentemente nas concepções e nas práticas da justiça terrena. Ora o século XII é o século da justiça num duplo sentido: a justiça - como ideal - é um dos grandes valores do século enquanto a prática judicial se transforma consideravelmente. A noção ambígua de justiça evolui entre esse ideal e essa prática. Face aos senhores feudais que monopolizam a justiça como direito, instrumento de domínio sobre os membros do feudo, e como fonte de lucros financeiros, os reis e os príncipes territoriais reivindicam o ideal e a realidade da justiça, o clero reforça o seu ascendente sobre as aspirações colectivas da sociedade aprofundando a concepção cristã de justiça, desenvolvendo a actividade nos tribunais episcopais, os provisorados e, sobretudo, criando um novo tipo de direito, o direito eclesiástico ou direito canónico. Do lado dos detentores de autoridade pública, o aumento das intervenções no domínio judicial, a invocação mais instante de um ideal de justiça, caracterizam o século XII. E isto é verdade em relação às grandes monarquias feudais - e principalmente à Inglaterra mas também à França dos Capetos onde, de Luís VI e Luís VII a Filipe Augusto e de Suger aos panegiristas de Filipe Augusto, a imagem do rei justo cresce ao mesmo tempo que a acção da justiça real/. E isto é assim também nos grandes 253
principados territoriais. Um episódio sangrento, o assassínio por membros de uma família de ministeriais do conde da Flandres, Carlos, o Bom, na capela de Bruges em 1127, proporciona-nos um relato espantoso. Tendo como pano de fundo o nascente poder económico da Flandres, nele encontramos o enunciado, através do retrato um tanto idealizado do conde assassinado, do ideal político dos governos do século XII. O autor deste relato, o notário Galbert de Bruges, coloca à frente das virtudes do príncipe a justiça:'. Este príncipe justo foi cognominado de o Bom. O grande iniciador do movimento canonista do século XII, o bispo Yves de Chartres, no Prólogo da sua colecção canónica, o Decreto (1094), expôs uma teoria da dispensa, a ser concedida pela autoridade eclesiástica, para permitir em certos casos a não-aplicação das regras do direito. Nessa altura ele definiu uma distinção fundamental entre as regras da justiça: as regras imperativas, as sugestões e as tolerâncias (praeceptum, consilium, indulgentia) 4. Nos primeiros anos do século XII, inspirando-se em Yves de Chartres, Alger de Liêge, diácono e mestre de teologia da Igreja de Saint-Lambert e depois cónego da catedral, que por fim se retirou em Cluny (não se trata de um tenor da nascente classe intelectual mas de um clérigo mediano), faz um Livro da misericórdia e da justipa (Liber de misericordia et justitia)", Esta ideologia política situa-se num contexto religioso. Ainda que tenha participado nas violências deste século, tanto em cristandade como nas cruzadas contra os infiéis, a Igreja não separa, segundo o modelo divino, a misericórdia da justiça. Alger define as regras da tolerância que consistem essencialmente em não acusar sem provas jurídicas. Parte da antítese clássica desde Agostinho, renovada, explicitada, retomada num contexto bem diferente, o da efervescência ideológica e social, na volta do século XI para o século XII, entre o direito estrito e a tolerância. Revela os seus objectivos que devem ser, segundo ele, os da justiça: propiciar a reconciliação, procurar escrupulosamente a intenção, definir bem o papel da vontade no delito. Como farão dentro em breve Abelardo e Graciano, ele evoca os textos contraditórios da Bíblia: existe uma tal «diversidade» nas Escrituras! Tanta diversitas scripturarum ... É pois possível brincar com as autoridades. No fim do século, aproveitando o engenho interpretativo dos teólogos e dos canonistas, Alain de Lille dirá que as citações têm nariz de cera ... Cabe aos hábeis torcê-Io a seu favor. Alger vai muito longe dentro da tolerância. Escreve que «se não podemos corrigir os iníquos, devemos tolerá-Ios ...», «que devemos tolerar os maus para conservar a unidade» - a paz. Acha que «até um condenado, se estiver verdadeiramente arrependido, pode ser reinvestido nos seus direitos, pois aquele que exerce a justica não peca» (nan peccat qui exercet justitiarn) .
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Refere-se por fim à maneira como um acusado pode justificar-se, purgar-se das suas culpas, reais ou supostas: «Um acusado pode expurgar-se (expurgare) de três maneiras: apresentando testemunhas irrefutáveis, entregando-se a um exame profundo ou, antes de qualquer publicidade, confessando e arrependendo-se» (pela confissão e a penitência: confessiofie et penitentiat. Enfim, «se um acusado não quis expurgar-se, quer esteja convencido de que é culpado, quer confesse os seus pecados mais tarde, será condenados''. Reencontramos a reflexão sobre o pecado na teologia como no direito canónico. Crime (crimen), delito (delictum ), culpa (culpa), pecado (peccatum), estas palavras são, no século XII, comuns aos teólogos e aos canonistas que se esforçam, uns e outros, por as diferenciar. Num estudo clássico sobre o ensino da culpa em direito canónico, de Graciano aos Decretais de Gregório IX7, Stephan Kuttner, depois de no seu prefácio ter sublinhado a importância deste grande movimento intelectual e social, o começo da ciência do direito canónico e evocado a produção sempre crescente, na segunda metade do século, da literatura canonista: glosas ao Decreto, Súmulas, e, no domínio regularmente eclesiástico, decretais que finalmente Gregório IX reunirá e inserirá em 1234 no Corpus de direito canónico que está em curso, começa o seu estudo por «Abelardo e o conceito de crime». Novas concepções do pecado e da penitência As palavras e as ideias de Alger de Liêge levaram-nos bem próximo do Purgatório. Alger de Liêge, ao citar os seus inspiradores, colocava-se na linha dos pais do Purgatório. Agostinho e Gregório, o Grande, a bem dizer não o Gregório dos Diálogos mas o dos Moralia e do Liber pastoralis. Chega-se ao Purgatório penetrando no domínio onde, no século XII, se joga o essencial da nova partida que a Igreja e a sociedade disputam no ponto de encontro da vida espiritual e da vida material e social: a penitência. Pór um itinerário inverso e complementar do de Stephan Kuttner, um historiador de teologia, Robert Blomme, reencontra - característica fundamental do século - a noção de justiça ao estudar A Doutrina do pecado nas escolas teológicas da primeira metade do século XI~ (La Doctrine du péché dons les écoles théologiques de Ia premiêre rnoitié du XI~ siécle), E cá temos, na segunda metade do século, Pedro, o Devorador, que é talvez o «inventon do Purgatório. No Liber Pancrisis ele reuniu citações dos Pais da Igreja feitas ou comentadas por «mestres modernos» (a modernis magistris), dando-lhes a forma como estava na moda de «máximas ou questões». Trata-se de teólogos da escola de Laon do princípio do século XII, Guillaume de Champeaux, Anselme e Raoul de Laon e de Yves de Chartres". Esta escola de Laon desempenhou um papel
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importante na evolução das ideias sobre o pecado e a penitência. Não retomarei o estudo muito bem feito'? da grande mutação intelectual e moral que renovou a noção de pecado e modificou profundamente as práticas da penitência no século XII e no começo do século XIII, ao ligar o pecado à ignorância e ao procurar descobrir a intenção na conduta do pecador. O ponto de partida é, sem dúvida, Anselmo de Cantorbery. O grande teólogo insistira na diferença fundamental entre o pecado voluntário e o pecado por ignorância. No Cur Deus homo (11, 15, 52, 115) declarara: «Há tamanha diferença entre o pecado cometido conscientemente e aquele que se pratica por ignorância, que um pecado que nunca se teria cometido se se conhecesse a sua enormidade é apenas venial porque foi praticado por ignorância!'.» Todas as grandes escolas da primeira metade do século XII retomam e desenvolvem esta diferença fundamental que em seguida se tornará tradicional: a escola de Laon, Abelardo, os adeptos do Papa Victor. Há duas diferenças que têm especial importância. A diferença entre vício e pecado, implicando este a aquiescência do pecador, o seu consensus. A diferença entre culpa e pena (culpa et poena) que um discípulo de Abelardo no Comentário de Cambridge comenta assim: «Primeiro é preciso dizer que o pecado comporta dois aspectos: o que diz respeito à culpa (culpa) que é a aquiescência (consensus ) ou o desprezo de Deus (contemptus Dei), como quando se diz que uma criança pequena está isenta de pecado, o que diz respeito à pena como quando dizemos ter pecado em Adão, quer dizer ter incorrido numa penaI2.» O importante para o nosso estudo é que a culpa (culpa), que normalmente leva à condenação, pode ser remida pela contrição e pela confissão, enquanto a pena (poena) ou castigo expiatório é anulada pela satisfação, quer dizer pelo cumprimento da penitência imposta pela Igreja. Se houve contrição e/ou confissão mas a penitência não foi cumprida ou terminada voluntária ou involuntariamente (por exemplo, se a morte sobreveio), a pena (poena) deve ser cumprida no fogo purgatório, quer dizer, a partir do fim da estada no mundo, no Purgatório+'. Toda a vida espiritual e moral é daí em diante dirigida para a busca da intenção, para a pesquisa do voluntário e do involuntário, o acto consciente e o acto por ignorância. A noção de responsabilidade pessoal fica consideravelmente acrescida e enriquecida. A caça ao pecado inscreve-se «numa interiorização e uma personalização» da vida moral que reclama novas práticas penitenciais. Mais do que a prova interna, o que agora se busca é a confissão; mais ainda do que o castigo, o que conta é a contricão'", Tudo isto leva a que passe para primeiro plano a confissão ao padre, uma confissão transformada. Na viragem do século XI para o século XII, quando as estruturas oscilam, aparece uma obra anónima, mal datada, mal estudada e, todavia, 256
essencial: o tratado Sobre a verdadeira e a falsa penitência (De vera et No século XII o seu sucesso é grande. É utilizado, citado por Graciano no seu Decreto e por Pedro Lombardo. E certo que a sua autoridade não advém apenas da novidade - e muitos pontos do seu conteúdo: julgavam-no do próprio Santo Agostinho. Só reterei dele três ideias que vão passar para a prática da Igreja e que marcarão o sistema do Purgatório. A primeira é que, em caso de perigo e na ausência de um padre, é legítima e útil a confissão a um laico. O laico não absolve, mas o desejo de confissão exercido através do laico e que prova a contrição pode conduzir à absolvição da culpa (culpa). Este recurso extremo não é de recomendar senão em casos de perigo de morte; e se se escapar a ela deve ir-se repetir a confissão a um padre que poderá dar a absolvição: se se morrer só se terá de executar a pena (poena); quer dizer, esta prática conduz quase sempre ao Purgatório. E eis uma prova: Mesmo no fim do século XII, o inglês Walter Map conta em De Nugis curialium a história de um nobre guerreiro que depois se fez monge o qual, em determinada circunstância, é obrigado a bater-se e põe os inimigos em fuga; mas pouco depois, quando só está acompanhado por um irmão converso (puer), é ferido de morte numa vinha por um inimigo que estava emboscado: «Sentindo-se próximo da morte, confessa os seus pecados ao servo que estava sozinho com ele, pedindo-lhe que lhe desse uma penitência. Este, um laico incompetente, jura que não é capaz. O monge, habituado a reagir prontamente em todas as situações, arrependendo-se muito, diz-lhe: "Penitencia-me, pela misericórdia de Deus, meu filho querido, para que a minha alma faça penitência no Inferno até ao dia do Julgamento (final), a fim de que então o Senhor tenha piedade de mim e eu não veja nunca, na companhia dos ímpios, o rosto do furor e da cólera! O servo diz-lhe então em lágrimas: "Senhor, dou-te por penitência aquilo que os teus lábios aqui pronunciaram diante de Deus." E o outro, concordando por palavras e pela expressão do rosto, acolheu devotamente esta penitência e morreu' .» O Inferno aqui referido, do qual se pode sair no dia do Julgamento é, está claro, o inferno superior, que é como quem diz o Purgatório que Walter Map, espírito hostil às novidades e inimigo dos cistercienses, ignora. A segunda ideia é que não se deve fazer penitência só uma vez na vida, após um pecado muito grande ou em artigo de morte, mas sim muitas vezes, se possível. A terceira ideia é que «a pecados secretos, penitência secreta», «a pecados públicos, penitência pública». Assim se acelera o desaparecimento, o declínio da velha penitência pública. A sociedade já não é mais aquele conjunto de pequenos grupos de fiéis onde a penitência pública tinha naturalmente o seu lugar. Mesmo as grandes penitências «políticas» na
falsa poenitential'Ô,
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linha de Teodósio, ao submeter-se à penitência imposta por Santo Ambrósio, solta o seu canto do cisne no cenário do teatro oficial da luta entre o Papa e o imperador: Henrique IV em Canossa, Barba Ruiva em Veneza, ou o aparato excepcional da Cruzada dos Albigenses: Raimundo VII de Toulouse a Notre-Dame de Paris ... O que resulta de tudo isto é a prática cada vez mais frequente, integrada na vida espiritual normal se não quotidiana, da confissão auricular, de boca a orelha, de pecador a padre, de pessoa a pessoa. O «segredo do confessionário» só virá mais tarde, mas o caminho já está traçado. Em 1215 sucede um facto grandioso, um dos grandes acontecimentos da história medieval. O quarto concílio de Latrão, no seu cânone 21, Omnis utriusque sexus, torna obrigatória, pelo menos uma vez por ano, a confissão auricular para todos os cristãos e cristãs adultos. Eis entronizado, generalizado, aprofundado, o movimento que empurrava a cristandade no sentido da confissão desde, pelo menos, um século antes. É o exame de consciência imposto a todos, uma frente pioneira que se abre na consciência individual dos cristãos, o alargamento aos laicos de práticas de introspecção até aí apenas reservadas ao clero e, sobretudo, aos monges. A decisão chega, pois, no fim de uma longa evolução; vem sancionar, como é costume dizer, uma necessidade, mas nem por isso deixou de surpreender muitos, na primeira metade do século XIII. Não é fácil adquirir o hábito, nem para os laicos nem para os padres. Como confessar-se e como confessar, o que confessar e o que perguntar e, finalmente, para o padre, que penitência infligir pelas coisas confessadas que não constituam um pecado enorme e extraordinário mas sejam simplesmente faltas quotidianas e modestas? Mas os especialistas vão acudir aos padres embaraçados, por vezes mesmo assustados com as novas responsabilidades, sobretudo aos menos instruídos. Vão escrever a diversos níveis - de forma simplificada para os padres «simples» - manuais de confessores - como o de Thomas de Chobham que foi pioneiro 17. Entre as questões postas e encarados os horizontes penitenciais, um recém-chegado ocupa um lugar importante: o Purgatório. Tanto mais que ele acolhe também pecadores carregados de pecados que podem licitamente escapar ao crivo da confissão: os pecados veniais. Os pecados veniais têm uma longa história que já vimos em parte. A sua base nas Escrituras é a primeira epístola de João, I, 8: «Se dissermos: "não temos pecados" iludimo-nos, a verdade não está em nós»; e, sobretudo, esta outra passagem da mesma epístola, V, 16-17: Se alguém vir um seu irmào cometer um pecado que não leve à morte, que reze 258
e Deus dará vida a esse irmão. Não se trata daqueles que cometem pecados que levam à morte; pois há um pecado que leva à morte por esse pecado não digo que se deve rezar. Toda a iniquidade é pecado, mas há pecados que não levam à morte.
Esboçada por Tertuliano, esta noção foi fixada por Agostinho e por Gregório, o Grande. Os termos usados são pecados insignificantes (minuta), pequenos ou mais pequenos (parva, minora), leves ou mais leves (levia, /eviora) e, sobretudo, segundo uma expressão feliz, quotidianos (quotidiana). O termo venial (veniale, venialia ) só se tornou corrente no século XII e, segundo A. M. Landgraf, o sistema de oposição pecados mortais/pecados veniais foi instalado na segunda metade do século XII pelos discípulos do teólogo Gilberto Porre ta (Gilbert de Ia Porrée), falecido em 1154: grupo que incluiria autores anónimos de Questões, e Simon de Tournai, Alain de Lille, etc.". A expressão pecado venial pertence em todo o caso a esse conjunto de noções e de palavras que surgem no século XII com o Purgatório, e que com ele formam um sistema. A palavra tem ainda o interesse de significar - sentido este de que o clero do século XII estava bem consciente - dignos de venia, de perdão. A ideia adquiriu um sentido jurídico-espiritual. No começo do século XII, um tratado teológico da Escola de Laon, as Máximas de Arras (Sententiae Atrebatenses ) declara: «Tem de haver uma penitência diferente para um pecado criminal e para um pecado venial. Os criminais, quer dizer os passíveis de condenação, são os pecados que se cometem consciente e deliberadamente. Os outros que provêm da invencível fraqueza da carne ou da invencível ignorância são veniais, quer dizer não passíveis de condenação'".» São perdoáveis sem grande custo pela confissão, pela esmola ou por acções do mesmo género. Anselmo de Laon, falecido em 1117, é da mesma opinião nas suas Sententiae. Abe1ardo na Ética20 opõe os pecados criminais (criminalia ) aos pecados veniais ou leves (venialia aut levia), Com Hugo de Saint- Victor e seus discípulos surge uma questão destinada a múltiplos desenvolvimentos: pode um pecado venial tornar-se mortal? Os discípulos de Saint-Victor respondem que sim, se é baseado no desprezo de Deus. Alain de Lille dá-se a uma grande discussão sobre a diferença entre pecado mortal e pecado venial na qual expõe diversas opiniões e de certo modo resume a doutrina desenvolvida no decurso do século XII21. Não irei entrar nas subtilezas teológicas a que o pecado venial começa a dar lugar; é certo que essas discussões implicam por vezes o Purgatório. 259
Mas aqui, parece-me, atingimos aquele nível de elucubrações em que se comprazem com excessiva frequência os teólogos do século XIII, para não falar nos da escolástica da Baixa Idade Média e da época moderna. O Purgatório vai assim ser arrastado no turbilhão pensante de uma escol ástica em delírio, inventando as questões mais ociosas, esmerando-se nas distinções mais sofisticadas, comprazendo-se nas soluções mais rebuscadas: poderá um pecado venial tomar-se mortal, uma acumulação de pecados veniais equivalerá a um pecado mortal (questão esta já posta por Agostinho mas em termos simples), qual a sorte de um defunto que morre com um pecado mortal e um pecado venial ou somente com o pecado original e um pecado venial (partindo do princípio de que tal possa acontecer, do que muitos duvidam), etc. O exame de documentos que falam do pecado venial e. do Purgatório, tal como foram vividos e discutidos pela cristandade do século XIII, convenceu-me de que estas discussões alambicadas de intelectuais desenraizados não tiveram qualquer influência sobre as concepções do Purgatório na massa dos fiéis. Quando muito talvez o eco destas divagações tenha desviado do Purgatório um certo número de espíritos simples e sãos que o recusaram, não por oposição doutrinária mas por irritação provocada por UIp certo snobismo intelectual a que ele dera lugar a partir do fim do século XII. OS teólogos deste século - muito diversificados e entre os quais não devemos esquecer os teólogos monásticos - eram espíritos abstractos porque a ciência é abstracta e a teologia passara a ser uma ciência. Mas, mais abertos aos contactos e às trocas com. a sociedade à sua volta a partir das suas catedrais, dos seus claustros e das suas escolas urbanas invadidas pela maré crescente da nova sociedade, eles sabiam que reflectir sobre o pecado venial ou sobre o Purgatório era reflectir sobre a própria sociedade. Oriundos de um movimento corporativo que fazia deles trabalhadores intelectuais no estaleiro urbano, os teólogos e os canonistas do século XIII iam, pelo contrário, isolar-se cada vez mais nas suas cátedras universitárias e no seu orgulho de especialistas do espírito.
No século XII ainda não se tinha chegado a isso. A propósito do pecado venial surgem duas perguntas que têm a ver de perto com o nosso estudo: como desembaraçarmo-nos dos pecados veniais e - pergunta estreitamente ligada à precedente - que relação existe entre o pecado venial e o Purgatório? Quando o Purgatório não existia realmente e o pecado venial estava mal definido, a tendência era, como já vimos, para considerar que esses pecados podiam ser apagados pela oração, em especial pela missa domi-
nical, pela esmola, eventualmente pela confissão e talvez também, como o próprio Agostinho dera a entender, futuramente no Purgatório. S. Bernardo, que não usa a palavra veniais mas sim quotidianos, mais pequenos (minora) ou que não têm a ver com a morte (quae non sunt ad mortem}, e que acha que a oração é a melhor maneira de purgar esses pecados, considera mesmo que a confissão é inútil para alguns deles. A evolução do século XII vai reaproximar o pecado venial do Purgatório. Com feito, ao pecado venial aplica-se mais particularmente o critério da ignorância que os teólogos acham cada vez mais importante. Excluída pois a culpa (culpa), resta a pena que se apaga no Purgatório. Por outro lado, a exegese da primeira epístola de Paulo aos Coríntios, IH, 10-15 leva a assimilar as construções de madeira, de feno e de palha aos pecados veniais e, como estas construções são por tradição as que são destruídas pelo fogo purgatório mas que permitem a quem as construiu salvar-se através do fogo, os pecados veniais conduzem ao Purgatório. E o que diz no fim do século XII João de Deus (Johannes de Deo), por exemplo, na sua Súmu/a sobre as penitências: «O pecado venial tem três graus, a saber: a madeira, o feno e a palha. Os pecados veniais são purgados no fog022.» Já Pedro Lombardo nas suas Máximas considera que da epístola de Paulo «se conclui que certos pecados veniais são apagados depois desta vida» e também que os pecados veniais «são dissolvidos no fogO))23. O Purgatório toma-se pois o receptáculo normal dos pecados veniais e esta opinião será largamente difundida no século XlII. No entanto não se deverá supôr que o Purgatório é reservado aos pecados veniais. No fim do século XII ele é o lugar de purgação de dois tipos de situação pecaminosa: os pecados veniais, os pecados arrependidos, confessados, mas cuja penitência não foi cumprida. Relembremos a questão que, segundo A. M. Landgraf, saiu da esfera de Odon d'Ourscamp, e que exprime bem, embora com um vocabulário um tanto arcaico, esse sistema: «É verdade que certas almas, quando se separam dos corpos, entram logo num fogo purgatório. Mas nem todas lá são purgadas, só algumas; mas todas as que lá entram lá são punidas. Assim, melhor seria chamar a esse fogo punitivo em vez de purgatório, mas recebeu o termo mais nobre. De entre as almas que lá entram, umas são purgadas e punidas e outras somente punidas. São purgadas e punidas as que trouxeram consigo madeira, feno ou palha ... São somente punidas as que, tendo-se arrependido e confessado de todos os seus pecados, morreram antes de cumprirem a penitência que o padre lhe impusera/".» A bem dizer, interrogarmo-nos sobre que género de pecados conduz ao Purgatório não é a pergunta pertinente. Se é verdade que o pecado venial e o Purgatório nasceram quase ao mesmo tempo e que entre eles se estabeleceu uma relação estreita, o clero do fim do século XII e do começo do século XIII não tem como principal objecto de reflexão coisas
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Uma matéria para o Purgatório: os pecados veniais
De duas (ou quatro) para três: três categorias de pecadores
abstractas como o crime, o pecado, a culpa, etc. Interessa-se sobretudo pelos homens, a sua preocupação é a sociedade. De facto uma sociedade decomposta e recomposta segundo critérios religiosos; mas o essencial da acção ideológica e espiritual da Igreja lá está: da sociedade dos homens, vivos e mortos, fazer uma sociedade de cristãos. Se ela se preocupa pois com a classificação por categorias, são as categorias de cristãos que lhe interessam. Antes de as estudarmos, convém fazer uma observação. A justiça terrena, o aparelho judiciário da sociedade feudal; serve muitas vezes, já o disse, se não de modelo, pelo menos de referência aos teólogos do século XII e do início do século XIII nas suas teorias sobre a justiça no além. À luz do que se acaba de dizer sobre o pecado e a penitência, gostaria de dar dois exemplos. Na sua busca de uma moral de intenção, Abelardo evoca, na primeira metade do século XII, o caso de um criminoso julgado e condenado da mesma maneira por dois juízes diferentes. Nos dois casos, trata-se de uma decisão honesta e exigida pela justiça, mas um dos juízes actuou por zelo e o outro por ódio e espírito de vingança. Cerca de 1200 esta concepção evoluiu em função da evolução das jurisdições terrenas. Numa questão que será retomada por Guillaume d' Auxerre, falecido cerca de 1237, e pelo dominicano Hugo de Saint-Cher, o chanceler parisiense Prévostin de Cremona, que morreu cerca de 1210, faz uma destas perguntas que parecem ociosas mas que encerram (é por vezes o caso) um significado muito preciso. Pergunta-se ele se não haverá o risco de um pecado venial ser punido no Inferno e não na terra em penitência, ou no Purgatório. E responde que talvez não seja impossível, pois o pecado não deve ser julgado em si mesmo mas em função das diversas justiças - no sentido jurídico de jurisdição - de que pode depender. Do ponto de vista do foro (jurisdicação) do Inferno ele pode merecer uma pena eterna; do ponto de vista do foro da penitência presente ou no Purgatório, apenas uma pena temporária. É assim, acrescenta, que em Paris um pequeno roubo é castigado só com a mutilação de uma orelha, mas em Chartres com o corte de um pé. Menos concreto, Hugo de Saint-Cher limita-se a dizer que um mesmo pecado é duramente punido em Paris, mais duramente em Orléans e muito duramente em Tours'". Hipótese que faz a reflexão teológica mais abstracta desembocar na realidade histórica mais concreta. E se o além não passasse de um reino feudal - com as suas jurisdições divididas, com critérios e penas desiguais? Um além da sociedade pré-revolucionária e pré-industrial? Se este novo reino, o Purgatório, não fosse mais do que um mosaico de senhorias com fronteiras indecisas, mal protegidas mesmo do lado do reino infernal? ... Assim a história tira por vezes a máscara no folhear de um documento ...
Neste momento em que nasce o Purgatório, em que ele existe e se expande, torna-se pois necessário examinar as categorias de homens, de cristãos, para saber como povoá-Io. E aqui tocamos num dos mecanismos essenciais da história, o da transformação dos quadros mentais, da ferramenta lógica. Entre estas operações do pensamento - ao nível da sociedade global e dos especialistas intelectuais - uma reveste-se de uma importância toda especial: a classificação e o seu subgénero, a categorização. Convém que nos cinjamos aqui ao esquema lógico, para lá das realidades sociais concretas. No fim do século XII as coisas são simples mas deparam com uma dificuldade. Por um lado, existem quatro categorias de homens, as definidas por Agostinho no século IV, mas retomadas e como que relançadas por Graciano cerca de 1140: os inteiramente bons, os inteiramente maus, os não inteiramente bons e os não inteiramente maus. Para onde vão eles depois da morte? Três lugares se lhas oferecem, se deixarmos de parte o Paraíso terrestre em plena decadência, onde já só estão Henoch e Elias, o seio de Abraão que vai, também ele, desaparecendo e os dois limbos. Estes não têm o mesmo estatuto. Desde a descida do Cristo aos Infernos, o limbo dos Patriarcas está vazio e assim deverá continuar para todo o sempre. Já não é mais do que uma recordação histórica. O limbo das crianças que ainda será objecto de discussões durante séculos não está no mesmo plano dos outros três lugares do além. Corresponde ao caso dos seres humanos não carregados com qualquer pecado pessoal mas apenas com o pecado original; enquanto que o Inferno, o Purgatório e o Paraíso dizem respeito a três categorias de pecadores pessoais entre os quais há uma hierarquia de responsabilidade e de destino: os maus que irão para o Inferno, os bons prometidos ao Paraíso, os não inteiramente maus e os não inteiramente bons que terão de passar pelo Purgatório antes de irem para o Paraíso. Se bem que encontremos no século XIII e até Dante um sistema das «cinco regiões» do além nos escritos teóricos de certos escolásticos, o que se instala no fim do século XII é um sistema de três lugares. O problema parece, pois, simples: torna-se necessário fazer corresponder um esquema quaternário a uma espacialização ternária. Continuemos a raciocinar fora de todo o contexto histórico concreto. Existem duas soluções, parece, que não transtornam os dois sistemas ao mesmo tempo. Ou o grupo de três se alarga para quatro, ou o grupo de quatro se reduz para três. Aqui intervêm dois elementos. O primeiro é o facto de Agostinho, criador do grupo de quatro espécies de cristãos, não ter realmente sabido definir senão a sorte de três deles, deixando o grupo dos não inteiramente maus entregue a uma muito hipotética «condenação mais tolerável».
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Penso que Agostinho estava dividido entre duas tendências. Por um lado, era levado a alinhar, apesar da sua subtileza, com os esquemas binários, cuja influência era cada vez maior na sua época, nessa Antiguidade tardia forçada a submeter-se, para subsistir, a quadros mentais simplificados. Sendo um pouco menos vago a respeito dos não inteiramente bons e do fogo purgatório que podia fazer deles eleitos, não conseguiu formular com nitidez o caso desse outro grupo intermédio - os não inteiramente maus. No fundo, porém, ele inclinava-se para um além triplo: o Céu, o fogo (purgatório), o Inferno; e foi porque se mantiveram fiéis ao seu espírito mais do que aos seus escritos tomados à letra que os pensadores do século XIII, fortemente impregnados da influência de Agostinho, conseguiram enunciar um esquema temário. O segundo elemento a favorecer esta evolução para uma tríade de categorias de pecadores, de acordo com a tríade dos lugares do além, foi a transformação de conjunto dos registos lógicos dos homens do século XIII - e em primeiro lugar o clero - dentro da grande mutação que então sofreu a cristandade. Passar de dois para quatro (ou o inverso) nada tinha de revolucionário. A verdadeira mudança, conforme com a transformação geral das estruturas no século XII, foi a redução para três categorias das quatro categorias agostinianas de homens em relação à salvação. Agora peço ao leitor que reflicta. Vejo-o divertido ou irritado. Das duas uma, pensa ele sem dúvida. Ou se trata de um jogo abstracto que nada tem a ver com a realidade histórica ou se trata de operações que falam por si: a humanidade sempre e por toda a parte dividiu e reagrupou - em dois, três ou quatro. Que haverá de mais «natural»? Mas engano-me. O leitor leu Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss, Georges Duby, os lógicos como Theodor Caplow/" e também reflectiu por si próprio. Sabe portanto que a realidade é diferente destas duas hipóteses simplistas que devemos afastar. Por entre os códigos simples de que dispõe, a humanidade opta, segundo tempos e os lugares, em função da cultura e da história. Formar um grupo, um conjunto, um sistema, não é tão simples como parece. Três pessoas ou três coisas juntas raramente formam uma tríade. Passar de dois para três para exprimir uma totalidade, quando o sistema binário foi um hábito secular, não é fácil. Creio que o que se passou de essencial para o sistema do além na cristandade do século XII foi o facto de o sistema binário Céu-Inferno (ou Paraíso-Inferno) ter sido substituído por um sistema ternário Céu-Purgatório-Inferno. É verdade que esta substituição não vale para a eternidade. A sociedade em que vive o cristianismo não está ainda suficientemente madura para alterar a concepção cristã da eternidade. Vale para o período intermédio, o que também é fundamental e a que voltarei. Mas esta mudança e a maneira como se fez parecem-me relacionadas em profundidade com a mutação da so-
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ciedade feudal entre os séculos XI e XIV. Vejamos primeiro a passagem formal de quatro para três categorias de pecadores. Esta mudança fez-se em duas fases, cronologicamente muito próximas. A primeira fase, cujo começo já vimos, consistiu em substituir um advérbio na categorização agostiniana. Onde Agostinho falava de inteiramente (valde) bons ou maus, passou a falar-se de medianamente (mediocriter ) bons ou maus, e as duas categorias intermédias aproximaram-se. O momento decisivo foi o da fusão das duas categorias numa só, a dos medianamente bons e maus. Esta deslocação suscitou a indignação de alguns e com razão. O atrevimento, gramatical e ideológico, era considerável. Era nada menos do que reunir dois contrários - e que contrários! (os bons e os maus, o bem e o mal!) - numa só categoria. Vibrado este golpe de força, reduzir (eventualmente) a nova categoria à dos medianos (mediocres) era apenas uma operação de rotina. Os teólogos dão o impulso inicial. Pedro Lombardo declara entre 1150 e 1160: «Eis por quem e em quê são benéficas as funções que a Igreja celebra pelos mortos: para os medianamente maus os sufrágios servem para mitiga~ão da pena; para os medianamente bons servem para 11 absolvição plena 7.» Como já vimos, os canonistas estão atrasados. Mas, salvo algumas excepções, recuperam e, sendo ainda a categorização tarefa mais de juristas do que de teólogos, recuperam depressa. Graciano reproduzira o texto de Agostinho com as quatro categorias. Uma das primeiras súmulas que o comentam, a Súmu/a de Leipzig ( Summa Lipsiensis) de cerca de 1186, dá bem a conhecer a dificil evolução dos espíritos: «Segundo outros, "condenação" emprega-se para a pena que sofrem os medianamente bons ou os medianamente maus no Purgatório, se bem que não haja o hábito de falar de condenação senão para os condenados eternamente. Os medianamente bons são os que morrem depois de terem recebido uma penitência pelos pecados veniais, mas que ainda não foi cumprida. Os medianamente maus são os que morrem com pecados veniais, ainda que pudéssemos chamar-lhes bons, pois que o pecado venial, segundo parece, não causa mal algum. Há quem entenda que isto de que aqui falamos só se aplica aos medianamente bons, alguns dos quais recebem uma remissão plena; só recebem uma condenação, quer dizer uma pena, mais toleráver".» Cerca de 1188 o célebre Huguccio de Pisa protesta vivamente contra a evolução em curso, na sua SúmuIa: «Certos teólogos, por iniciativa própria, distinguem somente três géneros de homens (em vez dos quatro de Agostinho e Graciano). Alguns são inteiramente bons, outros inteiramente maus e ainda outros medianamente bons e medianamente maus. Dizem eles, com efeito, que os medianamente bons e os medianamente maus são os mesmos, quer dizer os que estão no fogo purgatório, e que só eles podem aproveitar os sufrágios para serem libertados mais cedo. A "condenação" significa
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a pena (é mais tolerável) porque lá eles são menos castigados. Mas esta opinião parece-me quase herética porque acaba por identificar o bem com o mal, pois na realidade alguém medianamente bom é bom e alguém medianamente mau é mau. Do mesmo modo, no fogo purgatório só há bons, pois ninguém pode estar lá com um pecado mortal. Mas com um pecado venial ninguém é mau. Portanto, no fogo purgatório não está nenhum mau29.» A Súmula de Colônia (Summa Coloniensis, 1169) não abordava, como já se viu, este assunto que declarava deixar aos teólogos; mas ao manuscrito de Bamberg consultado por Landgraf uma mão acrescentou o esquema elaborado por Sicard de Cremona, falecido em 1215 e que, ele sim. é muito claro, muito definitivo: inteiramente Defuntos
inteiramente { medianos
bons
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Por eles fazem-se acções de graças.
maus
-
Por eles, consolações
-
Para eles, remissão plena ou condenação mais tolerável.
para os vivos.
E Sicard precisava: «Para que a sua condenação se tome mais tolerável, devemos entender isto dos que estão no Purgatório".» Enfim, uma glosa das Máximas do século XIII esforça-se por exprimir o pensamento de Santo Agostinho e de Pedro Lombardo à luz da evolução recente. «Eis o que o Mestre compreendeu com Agostinho: «Certos mortos são inteiramente bons e a Igreja não celebra sufrágios por eles porque eles não precisam ... São sem dúvida alguma glorificados. «Alguns são inteiramente maus e a Igreja também não celebra sufrágios por eles porque mereceram o seu destino. São sem dúvida alguma condenados. Outros são medianos e por eles a Igreja celebra sufrágios porque eles o mereceram. Sobre o seu destino ver ... » (e remete para outro capítulo). A Glosa retoma ainda a explicação separando a categoria intermédia nas suas duas componentes e expressando como que um lamento agostiniano: '«Alguns são medianamente bons e os sufrágios valem-lhes a absolvição plena, e esses estão sem dúvida alguma no Purgatório.» «Alguns são medianamente maus e os sufrágios valem-lhes a mitigação da pena. E destes podemos hesitar em dizer que estão no Purgatório ou que estão no Inferno (condenados) ou em ambos ".» Raoul Ardent, no fim do século XII, distingue também ele três espécies de defuntos: os inteiramente bons, os medianamente bons e os inteiramente condenados (vai de boni, mediocriter boni, omnino damnati). Diz ele «que aqueles que são inteiramente bons passam logo depois da morte para o repouso e não têm necessidade das nossas preces e das
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nossas oferendas, somos antes nós que beneficiamos da~ suas. Os _que são mediana mente bons e se empenham numa verdadeira confissao e ~enitência, como ainda não estão perfeitamente purgados, são purgados nos lugares purgatórios (in pu~g~toriis locis) ,e, .para _ess,es, as preces, ~s esmolas e as missas são sem dúvida alguma úteis. Nao e por novos meritos depois da morte que eles delas retiram beneficios mas como cons_equência dos seus méritos precedentes (antes da ~orte). Aqueles que sao inteiramente condenados não mereceram aproveitar de tais benesses. Mas nós, irmãos, que ignoramos quem tem necessidade e quem não tem, a quem pode aproveitar e a quem não pode, devemos ~ferecer preces, esmolas e missas por todos, incluindo aqueles de quem nao ~emos a certeza. Pelos inteiramente bons, são acções de graças, pelos medianament.e bons expiações, pelos réprobos são consolações para osviv,?s. E:nfim, sejam ou não proveitosas estas oferendas àqueles para quem sao felta~ em tod? o caso podem ser proveitosas aos que as fazem com devoçao ... ASSim, aquele que reza por outrem trabalha para si próp~o (~L, 155, 14~5).)}. Se bem que a localização da purgação não esteja umficada, a trípartição dos defntos é já um facto.
Esquema lógico e realidades sociais: um intermédio descentrado Na notável construção
deste sistema ternário há ainda que notar dois
aspectos muito importantes. . ' . O primeiro, insisto, é a substituição de um slst~~a 9uaternan.o, na realidade binário (dois x dois) por um esquema terna~o. E u~ ~oVlIDento muito difundido nos quadros mentais da íntelectualidade cnsta desde o século XI. No geral, substitui o~~sições do tipo ínferior/superior ,co.mo poderoso/pobre (potenslpauper] , eclesiástico/laico, monge/ecleslastlco, por triades mais complexas. , Na Alta Idade Média o pensamento ordenava-se espontaneamente a volta de esquemas binários. Pense-se nas forças do Universo: Deus .e ~atanás, ainda que - correcção muito important~ - ~ pensamento. cnstao, negando do ponto de vista do dogma o mamquelsmo, s~bordmasse o Diabo ao bom Deus. Pense-se na sociedade: o clero e os laicos, os poderosos e os pobres. Pense-se na vida moral e espiritual: as ,virtude~ e os vícios. Perfis antagónicos que se combatiam com ardor, a ma~elra da Psychomachie que opunha, segundo o poema de Pruden~, as VIrtudes e os vícios. A fronteira passava por dentro do homem, dilacerado entre Deus e Satanás, o orgulho do poderoso e a inveja do pobre, o ape~o da virtude e a sedução do vício. Desde o ano mil, os esquemas .plu~ahstas, muitas vezes herdados da Antiguidade greco-romana e mais ~mda da Antiguidade cristã, pareciam ir ultrapassar os esquemas duahstas. No
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século XII: os modelos ,construidos sobre o número sete conhecem grande su~esso: sao os septenanos dos sete sacramentos, dos sete pecados capitais e dos sete dons do Espírito Santo. Mas ~ principal tendência era substituir esquemas binários pot esquemas terna nos que, por sua vez, substituíam as oposições brutais, os confrontos de duas categorias, pelo jogo mais complexo de três elementos. Um destes esquemas é o das três ordens: os que rezam, os que se batem e os que trabalham (clero, nobres, massa camponesa). Este sistema t~rnário é de tiJ?o especial: opõe dois dos elementos do grupo ao ~erceI;o: ~~ss,a dominada ,m~s que soube abrir caminho à representação ideológica . E o modelo lógico estudado por Theodor Caplow: dois contra um. a esquema ternário sobre cujo modelo foi construido o Purgatório não conhece êxito menor a partir da segunda metade do século XII e nãc está menos ligado às estruturas em evolução da sociedade feudal. Consiste el!l introduzir uma categoria intermédia entre as duas categorias extremas. E a promoção do meio não pelo aparecimento de uma terceira categoria depois e abaixo das duas primeiras, mas entre as outras duas ... O Purgatório é um lugar duplamente intermédio: nele não se é nem tão feliz como no Paraíso nem tão infeliz como no Inferno, e só durará até ao Julgamento Final. Para que seja verdadeiramente intermédio, basta situá-10 entre o Paraíso e o Inferno. Também aqui a aplicação essencial do esquema é de ordem sociológica. Trata-se de representar - não de descrever - a sociedade saída da segunda f~se da revolução feudal, a da explosão urbana, como o esquema das tres ordens fizera em relação à primeira fase, a do progresso agrícola. Na s~a .forma mais genérica e mais corrente, o esauema distingue grandes, me~los e pequenos: maiores, '}"ediocres, minores' . Esquema cuja expressao latI~a mostra melhor o.sentido e o funcionamento: designa por um comparativo grupos nos dOISextremos dos grupos: maiores (mais gra~des), mais pequenos; exprime uma relação, uma proporção, um jogo SOCIal.Neste mecanismo, o que pode fazer o grupo intermédio? Crescer à custa dos vizinhos ou de um só, o ligar-se a um e a outro, alternadamente a um e depois ao outro dos dois grupos extremos. No começo do século XIII, Francisco de Assis retirou deste esquema um nome para os irmãos da ordem que criara: os Menores.". Foi à sociedade feudal modificada pelo desenvolvimento urbano que mais habitualmente se aplicou o esquema: ~ntre os grandes (laicos e eclesiásticos) e os pequenos (trabalhadores rurais e urbanos) uma categoria nasceu: os burgueses - muito diversos a ponro de eu preferir não falar de burguesia. ' E aqui que aparece a segunda característica do esquema: o seu elemento intermédio não está a igual distância dos dois pólos. Teoricamente a sua situação permite à categoria intennédia da tríade fingir alianças ou 268
inclinações para um outro pólo. Os burgueses usá-las-ão em relação aos pequenos ou aos grandes. Mas, no caso do Purgatório, o seu jogo estará bloqueado por um lado, o do Paraíso, onde se continua a entrar muito pouco. A fronteira móvel será entre o Purgatório e o Inferno. Meio descentrado, repito, relegado para a fronteira sombria, vê-los-emos na leitura das descrições do além que não serão mais claras do que as visões negras da Alta Idade Média ". Compreende-se que este modelo - na sua utilização sociológica - não é menos importante do que o das três ordens. Este criou o Terceiro Estado, aquele as classes médias. Compreendam-me. Seria absurdo dizer que a burguesia criou o Purgatório ou que o Purgatório provém de um modo ou de outro da burguesia, supondo-se que existia então uma burguesia. O que proponho como hipótese, como interpretação do nascimento do Purgatório, é que ele faz parte de um conjunto ligado à transformação da Cristandade feudal, da qual a criação de es~uemas lógicos ternários com introdução de uma categoria intermêdia ' foi uma expressão essencial. O modelo lança raizes sólidas nas estruturas socioeconómicas, disso tenho a certeza. Mas não me parece menos certo que a mediação das estruturas mentais, ideológicas e religiosas é essencial para o funcionamento do sistema. Deste sistema, o Purgatório não é um produto mas um elemento. O leitor estará um pouco céptico em relação à importância que dou nesta história a algumas ligeiras alterações de vocabulário. Purgatório passa de adjectivo para substantivo, uma locução adverbial (non va/de) é substituída por outra (mediocriter) e nos dois casos eu vejo sinais de profunda mudança. Creio, com efeito, que as alterações linguísticas ligeiras, se se situam em locais estratégicos do discurso, são sinal de fenómenos importantes. E penso que estes desvios de palavras ou de sentidos são tanto mais significativos quanto se produzem no seio de sistemas ideológicos rígidos. É verdade que a Cristandade medieval não foi nem imóvel nem estéril. Pelo contrário, que criatividade! Mas inova ao nível ideológico por pequenos passos, por pequenas palavras.
Mutações nos quadros mentais: o número
a que também muda com o Purgatório, tornando-o possível e acolhendo-o, são os hábitos de pensamento, uma ferramenta intelectual que faz parte da nova paisagem mental. Com o Purgatório aparecem novas atitudes em relação ao número, ao tempo e ao espaço. Em relação ao número, porque o Purgatório vai introduzir na escatologia um cálculo que não é o dos números simbólicos ou o da abolição da medida na eternidade mas, pelo contrário, um cômputo realista. Esta contagem é a da prática jurídica. O Purgatório é um inferno não eterno 269
mas temporário. Já no meio do século Xl, na descrição dos gemidos que saem da cratera do Stromboli, Jotsuald explicara que as almas dos pecadores sofrem ali suplícios diversos ad tempus statutum, pelo tempo que lhes fora fixado. No fim do século XII, numa questão relatada numa recolha da esfera de Odon d'Ourscamp, fala-se daqueles que pensam que o pecado venial não é punido eternamente «mas no inferno temporário». A criação do Purgatório reune um processo de espacialização do universo e de lógica aritmética que, para além do triplo reino do outro mundo, vai reger as relações entre os comportamentos humanos e as situações no Purgatório. Medir-se-á proporcionalmente o tempo passado na terra em pecado e o passado nos tormentos do Purgatório, o tempo dos sufrágios oferecidos em intenção dos mortos do Purgatório e o tempo da aceleração da libertação do Purgatório. Esta contabilidade desenvolver-se-á no século XIII, século da explosão da cartografia e do desencadear do cálculo. E, finalmente, o tempo do Purgatório será arrastado no tempo vertiginoso das indulgências. A noção de uma condenação «temporária» inscreve-se numa atitude mental mais ampla que, saída da preocupação de justiça, resulta numa autêntica contabilidade do além. A ideia fundamental, vinda dos primeiros Pais, vinda de Agostinho, constantemente substituída no decurso dos séculos, é a de uma proporcionalidade das penas, na ocorrência do tempo passado no Purgatório, em função da gravidade dos pecados. Mas só no século XIII a ideia de proporcionalidade passa de qualitativa a quantitativa. Está ligada aos progressos da aritmética e das matemáticas. Alexandre de Hales, o mestre universitário parisiense que se fez franciscano na primeira metade do século XIII interroga-se na sua Glosa sobre as Máximas de Pedro Lombardo se a pena do Purgatório não poderá ser injusta e não proporcional (injuste et improportionalis). E responde: «Se bem que a pena do Purgatório (poena purgatorii) não seja proporcional ao prazer que se teve ao pecar, é-lhe' no entanto comparável; e, se bem que não seja proporcional segundo a proporção à pena temporária quanto à dureza, é-lhe no entanto proporcional segundo a proporcionalidade: "A proporcionalidade é com efeito a conformidade das proporções." A proporção entre a pena temporária devida no mundo por um pecado e a pena temporária devida também no mundo por um pecado maior é equivalente à proporção da pena do Purgatório devida por um pecado mais pequeno em relação à pena do Purgatório devida por um pecado maior, mas a pena do Purgatório não é proporcional à pena temporária no mundo. A razão pela qual convém que a pena do Purgatório seja mais dura de maneira não proporcional à pena que purga no mundo, ainda que ambas sejam voluntárias, é que a pena que purga no mundo é a pena da alma que sofre com o corpo, enquanto a pena do Purgatório é a pena directa 270
da própria alma. Com efeito, assim como o que se sofre (por um lado) não é proporcional ao que se sofre (pelo outro), assim estão em relação "OS dois sofrimentos. Além de que a pena temporária no mundo é voluntária no sentido próprio e a pena do Purgatório é voluntária em sentido ligurado.» Texto espantoso que não se contenta com explicar a maior intensidade das penas do Purgatório em relação às penas terrenas pela maior vulnerabilidade da alma directamente torturada sem a protecção do corpo, e introduz também na consideração das penas no além um ponto de vista matemático, topológico. Existe neste texto uma única citação, uma única autoridade: «A proporcionalidade é, com efeito, a conformidade das proporções.» Esta autoridade não é das Escrituras, nem da patrística nem dos eclesiásticos: é uma citação de Euclides, Elementos, V, definição 438• Um comentário às Máximas do princípio do século XIII em que se põe u questão da eficácia quantitativa dos sufrágios é provavelmente, de acordo com Landgraf, o primeiro texto em que foram usadas as expressões proporção aritmética, proporção geométrica'". O que se abre com o Purgatório, bem se vê, é a contabilidade do alêm'". Antes não havia senão a eternidade ou a espera indeterminada. Agora conta-se o tempo do Purgatório segundo a importância dos sufrágios, calcula-se a relação entre o tempo vivido cá em baixo no mundo e o tempo sentido lá em baixo no Purgatório, porque a impressão psicológica da duração (o tempo parece passar muito lentamente no Purgatório) é também levada em conta. Os textos do século XIII irão familiarizar-nos com estes cálculos. Recordar-nos-ão que o século XIII é o século do cálculo, como demonstrou Alexandre Murray"' num livro sugestivo, o tempo da contabilidade, o dos comerciantes e dos funcionários que elaboram os primeiros orçamentos. Aquele a que pudémos chamar (não sem exagero, é verdade) «o primeiro orçamento da monarquia francesa» data do reinado de Filipe Augusto, o rei durante cujo reinado nasceu ou cresceu o Purgatório. Entre o tempo na terra e o tempo do Purgatório, a Igreja e os pecadores vão de agora em diante manter uma contabilidade por partidas dobradas. Segundo o Apocalipse, no dia do Julgamento Final abrir-se-ão os livros e os mortos serão julgados de acordo com o conteúdo dos livros, mas de agora em diante outros livros de contas são abertos entretanto, os do Purgatório.
o espaço e o tempo o Purgatório está também ligado a novas concepções do espaço e do tempo. Está associado a uma nova geografia do além que já não é a dos pequenos receptáculos justapostos como as mónadas senhoriais, mas 271
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Em todas estas transformações, em toda esta agitação, pressentem-se dois grandes movimentos de fundo que explicam em profundidade o nascimento do Purgatório. O primeiro é o enfraquecimento de um importante lugar-comum da Alta Idade Média, o contemptus mundi, o desprezo pelo mundo 43. Alimentado sobretudo pela espiritualidade monástica (que o cultivará, como demonstrou Jean Delumeau, ainda em pleno Renascimento), ele recua perante o crescente apego aos valores terrenos ligados ao ímpeto criador da época. Gustavo Vinay escreveu algumas linhas inflamadas sobre o optimismo do século XII: «Se há um século alegre na Idade Média, é mesmo esse: é o século em que a civilização ocidental explode com uma vitalidade, uma energia, uma vontade de renovação espantosas. O seu clima é o do "optimum" medieval... O século XII é tipicamente o século da libertação pela qual os homens rejeitam tudo aquilo que durante mais de um milénio estivera incubado e apodrecendo no seu interior.» E é no entanto, acres-
centa ele, o momento em que, paradoxalmente, no âmago dessa «explosão de vitalidade», nasce o medo da morte e do sofrimento: «A Idade Média começa verdadeiramente a sofrer na altura em que é mais feliz, em que respira a plenos pulmões, em que parece tomar consciência de que tem diante de si todo o futuro, em que a história adquire dimensões que nunca tivera?".» Ponhamos de parte o exagero deste texto apaixonado e sensível. O que ainda resta é que Gustavo Vinay compreendeu bem esta rendição ao mundo cá de baixo, nascida no século XII e que vai prolongar-se - e na realidade nunca mais desaparecerá apesar dos tormentos, das dúvidas, das regressões - pelo século seguinte. Também o paradoxo do desenvolvimento simultâneo do medo da morte é apenas aparente. O preço atribuído daí em diante à vida terrena torna mais temível o momento de a deixar. E, ao medo do Inferno, vem acrescentar-se - tende mesmo a substituí-lo - o temor desse momento doloroso: a hora da morte. O Purgatório, nova esperança para o além e sensibilização para o instante do trespasse, tem o seu papel nesta oscilação dos valores. A humanidade cristã no seu conjunto já não acredita que o Julgamento Final está para amanhã. Sem se ter tornado feliz, fez a experiência do desenvolvimento, após séculos de simples reprodução, quando não de recessão. Produz mais «bens», valores até então unicamente situados na vida futura tomam forma, mais ou menos bem, cá em baixo neste mundo: a justiça, a paz, a riqueza, a beleza. A Igreja gótica parece ter feito o paraíso descer à terra, parece um lugar «de refrigério, de luz e de paz». Não é por mero gosto pela metáfora que reencontro a evocação do refrigerium e da liturgia primitiva a propósito da igreja gótica. Meyer Shapiro e Erwin Panofsky, ao comentarem os escritos de Suger sobre a nova arquitectura de Saint-Denis, sublinharam «que a fraseologia de Suger lembra os tituli do cristianismo primitivo onde as doutrinas neoplatónicas ... se exprimiam de maneira semelhantes'". A humanidade instalou-se na terra. Até aí não valia a pena reflectir demasiado sobre esse curto momento que devia separar a morte da ressurreição. O par Inferno-Paraíso já não é suficiente para responder às interrogações da sociedade. O periodo intermédio entre a morte individual e o julgamento colectivo torna-se objecto de importantes reflexões. Entre os fanáticos da escatologia que recusam esta reflexão e concentram todas as suas aspirações no advento do Millenium ou do Último Dia e aqueles que, pelo contrário, se instalam nesta terra e se interessam portanto por esse seu suplemento, o intervalo entre a morte e a ressurreição, a Igreja arbitra a favor destes últimos. Se a espera tem de ser longa, devemos interrogar-nos sobre o que acontece aos mortos no intervalo, sobre o que nos acontecerá a nós amanhã. É verdade que, perante a adesão da maioria dos cristãos à terra, uma minoria se insurge, reclama mais alto a Pan.sia
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grandes territórios, reinos, como Ihes chamará Dante. Chegou o tempo em que a Cristandade, ao longo das estradas das cruzadas, das estradas missionárias e comerciais, explora o mundo. «No fim do século XII, escreve o grande especialista de história de O Mapa das Civilizacões, George Kish, sobreveio uma mudança: o mundo medieval começou a movimentar-se; de repente, os viajantes trouxeram uma informação que no século XIV transformou os mapas medievais ...» A transformação da cartografia imaginária do além operou-se ao mesmo tempo, e talvez ainda mais depressa. A cartografia terrestre, reduzida até então a uma espécie de ideogramas topográficos, ensaia o realismo da representação topográfica. A cartografia do além completa esse esforço de exploração do espaço, por muito carregado de simbolismo que ele estivesse entã042• Também o tempo, o próprio tempo é, na crença no Purgatório, o elemento mais explicitamente susceptível de ser medido. Grande novidade, um tempo mensurável abre-se no além e pode assim ser objecto de cômputos, de avaliações, de comparações. Encontramo-lo nos novos usos da prêdica. O sermão é feito para ensinar e para salvar. A partir do fim do século XII, o pregador insere na sua prédica historietas para melhor persuadir, os exempla. Estas histórias são tomadas como históricas, «verdadeiras». No tempo escatológico do sermão, tempo da conversão e da salvação elas introduzem segmentos de tempo histórico, datável, mensurável. ~ o que faz o Purgatório no tempo do além. O Purgatório será um dos temas favoritos dos exempla.
A rendição ao mundo e ao momento da morte individual
e, enquanto espera, o reino dos justos cá em baixo neste mundo, o Millenium. De Joachim de Flore a Celestino V, da cruzada das crianças aos Flagelantes e aos Espirituais, os «fanáticos do Apocalipse» agitam-se mais do que nunca. Desconfio mesmo que S. Luís, rei da cruzada penitencial, enquanto os seus oficiais se afadigam a calcular e a medir, a firmar bem o seu reino, sonhava arrastá-l o para a aventura escatológica, sonhava ser, como acreditaram certos imperadores alemães, um rei dos tempos derradeiros. E, todavia, S. Luís dirá: «Ninguém ama tanto a sua vida como eu amo a minha'".» Com excepção de alguns «loucos», o Apocalipse, a bem dizer, já não convence. No século XI e no começo do século XII foi o livro da Bíblia mais comentado'". Passou depois para segundo plano, atrás do Cântico dos Cânticos incendiado de um ardor tão terreno quanto celestial. Os Apocalipses retiram-se das esculturas góticas e cedem o seu lugar a julgamentos finais onde o Purgatório não consegue ainda inserir-se mas que apresentam uma história longínqua, pretexto para representar a sociedade terrena e a morigerar, a fim de que se comporte melhor cá em baixo no mundo. Este progressivo - e relativo - desaparecimento do Apocalipse perante o Julgamento Final foi realçado por grandes nomes da iconografia medieval. Assim, Émile Mâle: «A partir do século XII uma nova maneira de entender a cena do Julgamento substituiu ... a antiga. Surgem composições magníficas que não devem quase nada ao Apocalipse e antes se inspiram no Evangelho de S. Mateus ... Não se pode dizer que o Apocalipse seja um livro muito fecundo, no século XII ... OS artistas preferem adoptar o quadro do fim do mundo de S. Mateus. O texto do evangelista'f é sem dúvida menos fulgurante mas é mais acessível à arte. Em S. Mateus, Deus já não é a enorme pedra preciosa cujo brilho não se pode suportar: é o Filho do Homem; aparece no seu trono tal como foi na terra; os povos reconhecem o seu rosto. Um capítulo de S. Paulo da primeira epístola aos Coríntios sobre a ressurreição dos mortos acrescentou alguns traços ao conjunto.» E Emile Mâle indica como principal inovação do tema inspirado pelo Evangelho de Mateus «a separação dos bons e dos maus». Nas representações do Apocalipse, Deus era «simultaneamente glorioso como um soberano e ameaçador como um juiz». Nos julgamentos do século XIII, Deus é «o Filho do Homem» definido «como o redentor, como o juiz, como o Deus vivo'?». Henri Focillon retomou esta análise: «A iconografia do século XII ... é dominada pelo Apocalipse, do qual retira as suas visões terríveis e a própría imagem do Cristo juiz, instalado na sua glória, cercado de figuras não humanas ... A iconografia do século XIII renuncia ao mesmo tempo às visões, à epopeia, ao Oriente, aos monstros. É evangélica, humana, 274
ocidental e natural. Faz o Cristo descer quase ao nível dos fiéis... Sem dúvida, ele continua instalado nas alturas, presidindo ao despertar dos mortos e às sanções eternas: mesmo assim, continua a ser o Cristo dos Evangelhos e conserva a sua doçura humana".» Se o Cristo das esculturas góticas é um juiz para a eternidade, a substituição dos relâmpagos apocalípticos pela representação realista do Julgamento e dos grupos humanos ressuscitados permite que surja em primeiro plano a justiça a que o nascimento do Purgatório está tão ligado. Estes eleitos que o Cristo confia aos anjos que os levam ao Paraíso serão cada vez mais «santos» que passaram pelo Purgatório e estão purgados, purificados. Nesta adesão à terra e neste novo poder sobre o tempo, neste prolongamento da vida no além do Purgatório, existe sobretudo uma preocupação, a preocupação com os mortos. Não que eu creia - nisto concordo com Paul Veyne - que a morte em si mesma seja objecto de interesse, mas porque através dela e através dos seus mortos os vivos aumentam o seu poder neste mundo " . O século XII assiste ao enriquecimento da memória. Os seus grandes beneficiários são, está claro, as famílias aristocratas que traçam e prolongam as suas genealogias=. A morte é cada vez menos uma fronteira. O Purgatório torna-se um anexo da terra e prolonga o tempo da vida e da memória. Os sufrágios passam a ser um empreendimento cada vez mais activo. O reaparecimento dos testamentos - ainda que só tardiamente se mencione o Purgatório - ajuda também a fazer recuar essa fronteira da morte. Embora estas novas solidariedades entre vivos e mortos - em embrião na obra de Cluny - reforcem os laços familiares, corporativos e confraternais, o Purgatório - encarado como uma personalização da vida espiritual - favorece na realidade o individualismo. Concentra o interesse na morte individual e no julgamento que se lhe segue. Colocando-se no ponto de vista das instituições e do direito, Walter Ullmann afirmou «que a passagem do século XII para o século XIII foi o período em que foram semeados os germes do desenvolvimento institucional futuro e da emergência do indivíduo na sociedadew". E demonstra que foi a época da «emergência do cidadão». Este aparecimento do indivíduo manifesta-se também no rosto da morte e do destino no além. Com o Purgatório nasce o cidadão do além, entre a morte individual e o Julgamento Final. Até a Iiturgia testemunha esta evolução. Sempre muda em relação ao Purgatório, ela começa a abrir-se à nova classificação dos defuntos e daí tira consequências sobre o cerimonial em que cada vez mais se afirma a preocupação com a sorte individual. É o que se vê na Súmula sobre os Ofícios Eclesiásticos, do cónego de Notre-Dame de Paris, Jean Beleth, antes de 1165: 275
Da celebração do ofício dos mortos. «Antes de o corpo ser lavado ou envolto num sudário, o padre ou o seu vigário deve ir até ao local onde ele jaz, levando água benta e, erguendo preces a Deus por ele, deve invocar e rezar aos santos para que recebam a sua alma e a transportem para o lugar da bem-aventurança, Com efeito, há almas que são perfeitas e que, mal saem do corpo, voam imediatamente para os céus. E há outras totalmente más que caem logo no Inferno. Há outras, medianas (medie ), pelas quais se deve fazer uma recomendação deste género. Também é bom fazê-Ia pelos maus, mas ao acaso. O corpo lavado e amortalhado num sudário deve ser levado para a igreja e então deve ser rezada missa'".» Segue-se o texto de Agostinho retomado pelo Decreto de Graciano sobre as quatro categorias ainda bloqueadas entre os eleitos e os condenados. Brandon escreveu que «para preencher o fosso entre os interesses do indivíduo com a sua trajectória temporal de setenta anos (three-score years and ten) e os da raça humana estendendo-se por milénios (fosso que a religião hebraica nunca conseguiu preencher de facto), a Igreja inventou o Purgatórios ".
NOTAS
1 2
«pro exercitu qui jacet in purgatorio», PL, 217, col. 590. Ver atrás, pp. 207-208. SUGER, Vie de Louis VI, le Gros, ed. e trad. de H. Waquet. Os clássicos da
História de França na Idade Média, Paris, 1964. Suger só escreveu o começo de uma vida de Luís VII que ficou por terminar (ed. J. Lair, Bibliothêque de I'École des chartres, 1875, pp. 583-596). As Gesta Philippi Augusti de Rigord e a Philippis de Guilherme, o Bretão foram estudadas por F. Delaborde, Sociedade da História de França, Paris, 1882-1885. 3 Ver Galbert de Bruges. Le meurtre de Charles le Bon, traduzido do latim por J. GENGOUX, sob a direcção e com uma introdução histórica de R. C. VAN CAENEGHEM, Antuérpia, 1977. 4 IVES DE CHARTRES, Prologus in Decretum in PL, 161,47-60. A propósito dos sufrágios, Yves de Chartres reproduz os textos de Gregório, o Grande (Dialogues, IV, )9 e IV, 55), PL, 161, 993-995 e 999-1000. S G. LE BRAS, «Le Liber de misercordia et justicia de AIger de Liêge» in Nouvelle Revue historique de droit franpais et étranger, 1921,pp. 80-118. O texto do Liber encontra-se em Migne, PL, 180, col. 859-968. 6 Ver os capítulos XXVIII, XLIII-XLIV, LXXXIII, XLIII do Liber. A passagem sobre a purgação está nos capítulos LXI-LXII(PL, 180, col. 929-930). 7 St. KUTTNER, Kanonistische Schuldlehre von Gratian bis auf die Dekretalen Gregor IX. Cidade do Vaticano, 1935. 8 R. GLOMME, La Doctrine du péché dans les écoles théologiques de Ia premiére moitié du Xll" siécle, Lovaina, Gembloux, 1958. 9 O. LOTTIN, «Pour une édition critique du Liber Pancrists» in Recherches de théologie ancienne et médiévale, XIII (1946), pp, 185-201. 10 Além da obra de R. Blomme, op. cit .. ver Théologie du péché por Ph. DELHAYE e outros ..., 1· volume, Paris-Tournai-Nova Iorque-Roma, 1960. 11 ANSELMO DE CANTORBERY, Cur Deus Homo (Porquoi Dieu s'est fait homme), texto latino, introdução, notas e tradução de R. ROQUES, Paris, 1943. 12 Commentarius Cantabrtgiensis in Epístolas Pau/i e Scho/a Petri Abaelardi 2 In epistolam ad Corinthias Iam et liam. Ad Gaiatas et Ad Ephesos, ed. A. Landgraf, Notre-Dame (Ind.), 1939,p. 429, citado por R. Blomme, La Doctrine du péché ...• p. 250, n. 2. 13 Este ponto foi bem visto e sublinhado por H. Ch. LEA, A History 01 Auricular Confession and Indulgences in the latin Church, vol, III, Indulgences, Filadélfia, 1896,
pp.313-314. 276
277
. 14 Ver R. BLOMM~, La Doctrine du péché ..., p. 340. A importância da confissão fOI bem captada por Michel Foucault, Histoire de Ia sexualité I, La volonté de savoir, Paris, 1976, pp. 78 e 55. . 15 O text~ editado por Migne, PL,40, 1127-1128, não me parece ser o texto origmal (~er Apendi~ 1I~. Sobre o alcance do tratato, ver A. TEETAERT, La confession ~;: laiques dans l Eglise latine depuis le VII/e jusqu 'au XIV" siécle, Paris, 1926, pp. 5016 Walter MAP, De nugis curialium, ed. M. R. James, Oxford, 1914. Texto citado por J.-Ch. PA YEN, Le Motif du repentir dans Ia littérature franpaise médiévale (des o~i~ines à 1::30): Genebra, 1968, p. 109, que compreende bem que se trata do Purgatono 17 mas nao diz que Walter Map lhe chama Inferno . • Ver C. VOGEL, Les «Libri Paenitentialis», Typologie des sources du Moyen Age occidental, fas. 27, Turnhout, 1978. • J .. LE ~FF, «Métie: et p~ofession d'aprês les manuels de confesseur du Moyen Age» m Miscellanea Mediaevalia, vol. IH. Beitrãge zum Berufsbewusstsein des mittelalterlichen Menschen, Berlim, 1964, pp. 44-60, retomado in Pour un autre Moyen Âge Paris, 1977, pp, 162-180. ' _ 18?S trabalhos essenciais são os de A. M. LANDGRAF, Das Wesen der lâsslichen S~ In der ~cholastik bis Thomas von Aquin, Bamberg, 1923 e Dogmengeschichte der Frühschola~tik, 4' parte. o.ie Lehre von der Sünde und ihren Folgen, II Rastibonne, 1~56, especialmente III. DU! Nachlassung der lãsslichen Sünde, pp. 100-202. Ver também Th. DEMAN, artigo «Péchê» in Dictionnaire de théologie catholique, XlIII, 1933, col. 225-255. M. HUFTIER, «Péché mortel et péché véniel», Capo VII de Ph. DELHA~E e. outros, Théologie du Péché, 1960, pp. 363-451 (infelizmente prejudicado por cltaçoe~ erradas, por exe~~lo, veniali~ ~m vez d~ quotidiana em Santo Agostinho). J. J. O BRIEN, The Remission of Venialia, Washmgton, 1959 (tomista abstracto que con~gue não falar do Purgatório). F. BLATON, «De peccato veniali. Doctrina scolastif;>rum ante S. Thomas» in Co/lationes Gandavenses, 1928, pp. 134-142. LOTIIN, «Les Sententiae Atrebatenses», in Recherches de théologie ancienne et médiévale, t. 10, 1938, p. 344. Citado por R. BLOMME La Doctrine du péché p 61, n. 1. ' ... , .
,?
: ABELARDO, ed. V. Cousin, t. 11, p. 621. V~r A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 102 e ss. 23 Citado por A. M. LANDGRAF; Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 116. 24 Libri Sententiarum, Quaracchi, t. lI, 1916, pp. 881-882. A. M ..LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 165, n. 34. «verum est quod quaedam antmae, cum soluuntur a corporibus, statim intrant purgatorium quemdam ignem; '~ quo tamen non omnes purgantur, sed quaedam. Omnes vero quotquot intrant, in eo puntuntur ', Unde videretur magis dicendus punitorius quam purgatorius, sed a digniori nomen accepit. Earum enim, quae intrant, aliae purgantur et puniuntur, aliae puniuntur tant~. l/lae purgantur et puniuntur, quae secum detúlerunt ligna, fenum, stipulam. Illi puntuntur ~a~tum qui confitentes et poenitentes de omnibus peccatis suis decesserunt, antezuam tntunctam a sacerdote poenitentiam peregissent.» 26 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV(2, p. 234. Th. CAPLOW, Deux contre uno Les coalitions dans les triades 1968 trad franc Paris, 1971. ' , . ., 22
~: Libri IV Sententiarum, Quaracchi, t. li, 1916, pp. 1006-1007. 29 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte .... IV/2, p. 262, n. 7. Id., ibid., 1"l/2, p. 262, n. 9. 278
A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 261, n. 6. Id., ibid., IV/2, pp. 270-271. 32 K. BOSL, «Potens und pauper. BegrifTsgeschichtliche Studien zur gesselschaftlieher Differenzierung im frühen Mittelalter und zum Pauperismus des Hochmittelalters» in Frühformen der Gesellschaft im mittelalterlichen Europa, Munique-Viena, 1964, pp. 106-134. 33 G. DUBY, Les Trois Ordres ou l'imaginaire du féodalisme, Paris, 1978 [edição portuguesa da Editorial Estampa, Lisboa, 1982]. J. LE GOFF, «Les trois fonctions indo-européennes, l'historien et I'Europe féodale» in Annales, E.S.C., 1979, pp. 1187-1215. 34 Sobre os medíocres, ver D. LUSCOMBE, «Conceptions of Hierarchy before the XlIIth. c.» in Miscellanea Mediaevalia, 12/1. Soziale Ordnungen im Selbstverstãndnis des Mittelalters, Berlim-Nova Iorque, 1979, pp. 17-18. 3S Ver J. LE GOFF, «Le vocabulaire des catégories sociales chez François d'Assise ct ses biographes du XIII" siêcle» in Ordres et classes (Colóquo de história social Saint-Cloud, 1967), Paris, Haia, 1973, pp. 93-124. 36 Em compensação e do ponto de vista escatológico, é deportado para o Paraíso, visto que a ele conduz obrigatoriamente. 37 A concepção da desigualdade na igualdade, na equidistância por exemplo, é típica da mentalidade «feudal». Cf. J. Le GOFF a propósito das relações senhor/vássaIo, Pour un autre Moyen Âge, pp. 365-384. 38 ALEXANDRE DE HALES, Glossa in IV libros sententiarum Petri Lombardi, Biblioteca Franciscana scholastica Medii AEvi, t. XV, Quaracchi, 1957, pp. 352-353. «Cum enim proportionalis esset poena temporalis culpae temporali poena autem purgatorii improportionaliter habeat acerbitatem respectu poenae hic temporalis, punit supra condignum, non citra. Respondemos quod ... licet autem poena purgatorii non sit proportionalis delectationi peccati, est tamen comparabilis; etlicet non sit proportionalis secundum proportionem poenae hic temporali quoad acerbitatem, est tamen proportianalis secundum proportionalitatem. "Est autem proportionalistas similitudo proportionum" (Euclides, E/ementa, V, def. 4). Quae enim est proportio poenae temporalis hic debitae alicui peccato ad poenam temporalem debitam hic maior; peccato, ea est proportio poenae purgatorii debitae minori peccato ad poenam purgatorii debitam maiori peccato; non tamen est propor tio poenae purgatorii ad poenam hic temporalem. Ratio autem propter quam convenit poenam purgatorii esse acerbiorem improportionaliter poena purganti hic, licet utraque sit voluntaria, est guia poena purgans hic est poena animae per compassionem ad corpus, poena vero purgatorii est poena ipsius animae immediate. Sicut ergo passiblle improportionale passibili, ita passio passioni. Praetera, poena temporalis hic simpliciter voluntaria, poena purgatorii voluntaria comparative.» Agradeço a Georges Guilbaud e ao Padre P. M. Gy que tiveram a amabilidade de me ajudar a ler este texto apaixonante mas dificil, o primeiro com a sua competência de matemático e de especialista da escolástica, o segundo com os seus conhecimentos de teólogo. 39 A. M. LANDGRAF, Dogmengeschichte ..., IV/2, p. 294, n. 2. Trata-se de um comentário ás Máximas do começo do século XIII: «sciendum quod seeundum quosdam suffragia prosunt damnatis (purgatorio) quantum ad proportionem arithmeticam, non geometricam.» 40 Esta expressão é o título do notável estudo de J. CHIFFOLEAU, La comptabilité de l'au-delá. Les hommes, Ia mort et Ia religion en Comtat Venaissin à ta fin du Moyen Âge, Escola francesa de Roma, Roma, 1980. 30
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41 A. MURRA Y, Reason and Society in lhe Middle Ages, Oxford, 1978. J. MUR. DOCH fala de delírio de medição (frenzy to measure) entre os universitários de Oxford do século XIV in J. E. MURDOCH e E. D. SYLLA, ed. The Cultural Context of Medieval Learning, Dordrecht, 1975, pp. 287-289 e 340-343. Esse delírio começa pelo menos um século antes e não só em Oxford. 42 Sobre a cartografia medieval, ver entre outros J. K. WRIGHT, The Geographical Lore of lhe Times of lhe Crusades, Nova Iorque, 1925. G. H. T. K1MBLE, Geography in the Middle Ages, Londres, 1938. L. BAGROW, Die Geschichte der Kartographie, Berlim, 1951. M. MOLLAT, «Le Moyen Âge» in Histoire Universelle des explorations, ed. L. H. Parias, t. I, Paris, 1955. G. KISH, La earte, image des ctvilisanons, Paris, 1980. 43 Sobre o desprezo pelo mundo ver R. BULTOT, La doctrine du mépris du monde en Occident, de saint Ambroise à Innoeent IlI. Lovaina, 1963. 44 G. VINAY, in li dolore e Ia morte ne//a spiritualità dei seeo/i XII e XIII (1962), Todi, 1967, pp. 13-14. 45 E. PANOFSKY, citando Meyer SCHAPIRO, Architecture gothique et pensée scolastique, trad. franco Paris, 1967, p. 42. 46 JOlNVILLE, La Vie de Saint Louis, ed. N. L. Corbett, Sherbrooke, 1977, pp. 85-86 e p. 214. 47 Ver G. LOBRICHON, L'Apocalypse des théologiens au XII" siécle, tese da Escola dos Altos Estudos em Ciências Sociais defendida em 1979 na Universidade de Paris X-Nanterre. 48 Mateus, XXV, 31-46 e Paulo, I Coríntios, 15-22. 49 É. MÂLE, L'Art religieux du XIII" siêcle en France, Paris, 9- ed. 1958, pp. 369-374. 50 H. FOCILLON, Art d'Occident, t. 2, Le Moyen Âge gothique, Paris, 1965, pp. 164-165. 51Ver os trabalhos dos historiadores alemães de Friburgo e de Munique (G. TELLENBACH, K. SCHMID, J. WOLLASCH) citados por J. WOLLASCH, «Les obituaires, témoins de Ia vie clunisienne» in Cahiers de Ia Civilisation Médiévale, 1979, pp. 139-171; Paul VEYNE, Le Pain et /e Cirque, Paris, 1976. 52 Ver principalmente G. DUBY, «Remarques sur Ia líttérature généalogique en France aux XI" et XII" siêcles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions et Belles Lettres, 1967, pp. 335-345 retomado em Hommes et Structures du Moyen Âge, Paris-Haia, 1973, pp. 287-298. 53 W. ULLMANN, The Individual and Society in lhe Middle Ages, Baltimore, 1966, p.69. 54JEAN BELETH, Summa de ecclesiasticis ofJiciis, ed . .H. Duteil, Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis XLI A, Turnhout, 1971, p. 317 e ss. 55 S. G. F. BRANDON, Man and his Destiny in lhe Great Religions, Manchester University Press, 1962, p. 234.
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PARTE III
O TRIUNFO DO PURGATÓRIO
VIII - O ORDENAMENTO
ESCOLÁSTICO
O século XIII é o século da organização. A sociedade cristã está cada vez mais enquadrada. No domínio económico aparecem os primeiros tratados de economia rural- desde a Antiguidade - e a regulamentação urbana tem muitas vezes por destinatário o artesanato, as indústrias incipientes (construção civil e têxteis), o comércio e a banca. A actividade social é ainda mais controlada, pelas corporações no domínio do trabalho, pelas confrarias no da devoção. As instituições políticas são cada vez mais coactoras ao nível da cidade, ao nível sobretudo do Estado monárquico, como se vê em França e na monarquia pontifical, e em menor grau nos Estados ibéricos e em Inglaterra. Esta organização manifesta-se principalmente no mundo intelectual em que as universidades, as escolas das ordens mendicantes e as escolas urbanas canalizam, fixam e organizam a efervescência ideológica e escolar do século XII, quando a teologia e o direito (renovação do direito romano e desenvolvimento do direito canónico) elaboram súmulas, um sistema de debate, de decisão e de aplicação que ordenam os conhecimentos e a sua utilização. Um triunfo atenuado O Purgatório é apanhado neste movimento que ao mesmo tempo o entroniza e o controla. A escolástica, cuja acção foi decisiva para o seu aparecimento, assegura-lhe o triunfo, mas um triunfo limitado e atenuado. Não podemos seguir aqui a instalação do Purgatório na e pela escolástica do século XIII até ao segundo concílio de Lyon (1274) que lhe dá uma formulação oficial dentro da Igreja latina. Examinarei o que dizem do Purgatório alguns dos maiores teólogos do período 1220-1280 (Guillaume d' Auxerre, Guillaume d' Auvergne, Alexandre de Hales, S. Boaventura, S. Tomás de Aquino e Alberto, o Grande) sem procurar (o que não 283
está na minha intenção) repor o tratamento do Purgatório no conjunto do pen~~mento destes mestres, mas clarificando o seu discurso sobre o Purgatono segundo a maneira como ele surge na sua obra. Nos ,seus ensinamentos não se encontram, disso não há dúvida, o mesmo impeto, os mesmos debates apaixonados que se sentem entre os mestres da seg~nda metade do século XII, de Pedro Lombardo a Pedro o Chantre, de Gilbert de Ia Porrée a Prévostin de Cremona. No entanto não se deve esque~er o a~dor das discussões na Universidade de Paris no século :XIII, o clima animado das questões em debate e das quodlibeta' os conflitos e as audácias manifestados pela grande querela entre os mestres r~gulares ~ os mestres seculares, a questão do averroísmo e as condenaçoes ~o bISpOobscurantista Etienne Tempier em 1270 e 12772. . Nao tem ca~lmento desenvolver aqui episódios célebres que, a maior~a.das vezes, nao passaram ~e pano de. fundo para a teologia do Purgatono. As novas ?rdens mendicantes rapidamente se interessaram por este ~~v.opoder do seculo XIII: a ciência universitária, os dominicanos logo de IniCIOe sem grandes problemas, os franciscanos mais dificilmente e não' se~ custo. Mas ~~gu~s dos s;u~ mestres surgem muito depressa na prime~ra fila da sapiencia escolástica e atraem os auditórios de estudantes mais ~umerosos, em detrimento dos mestres seculares que lhes reprovam o seu Ideal de mendicidade, a sua sede de poder, a sua falta de solidariedade corporauva, e que: ~ura e simpíesmente, têm inveja deles. Os grandes do~tores do .Purgatono no seculo XIII são mestres mendicantes. Os Inte~ectuaIs do século XIII são leitores - na tradução latina - dos grandes filosofos gre~~s da Antiguidade (Platão e sobretudo Aristóteles) e arabes da Idade Média (Avicena, falecido em 1037, e Averróis falecido em 1198~. A autorid~de eclesiástica não vê com bons olhos este\nteresse pelos filosofos «pagaos». Uma doutrina atribuída a Averróis distingue entre as verdades re~e~adas e as v~rdades racionais. Admite que possa h~ver entr: elas OP?SI.Ç~O e me~~o I~compatibilidade. Neste caso a posiçao ave?"?Ista consl.stlTl~em privilegiar a razão contra a fé. Que Averróis obteve eXIt~~a UOlversIdade de Paris no século XIII, é inegável. Que os mestre~ pansienses tenham ~e .facto professado a doutrina da dupla verdade, e menos certo. Mas vanos foram acusados disso e contra eles levanto~-se acesa p~lémica. Não houve interferência entre a querela ave~01sta e a doutnna do Purgatório, mas os escolásticos dedicaram-se a dls~ertar sobre ele, n~o só a partir do que diziam os especialistas, mas tambem segundo a razao. , . Enfim, a grande reacção veio justamente de Paris. Em 1270 o bispo EtIe~ne Tempier condenou treze proposições inspiradas na filosofia pagã, c~~slderadas errada~. Em I~~7.uma nova condenação atingiu 219 proposiçoes. Este duplo silabo dirigia-se a uma série bastante heteróclita de «erros», mas as correntes mais visadas eram em 1270 o averroísmo _
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ou aquilo a que davam este nome - e em 1277 o aristotelismo, incluindo neste uma parte dos ensinamentos de Tomás de Aquino. E dificil apreciar n alcance das condenações de Étienne Tempier, e tal não está nos meus propósitos. A atmosfera criada por estas censuras brutais não foi favorável à investigação teológica em geral, mas as consequências directas para li teologia do Purgatório foram pouco importantes. Primeiro, porque o problema era marginal em relação aos conflitos parisienses. Somente os dois últimos artigos condenados em 1277 diziam respeito ao além, como veremos. Mas o essencial da reflexão teológica latina sobre o Purgatório estava terminado em 1274 e, nesse mesmo ano, iria ser oficialmente consagrado pelo segundo concílio de Lyon. Os debates do século XIII foram talvez ainda mais apaixonados na Faculdade das Artes - diríamos nós, a das letras e das ciências, onde os jovens estudantes recebiam a sua formação de base e que conhecemos mal- do que na Faculdade de Teologia. Mas o Purgatório é antes de mais - em matéria universitária - tarefa de teólogos. Sobretudo tarefa parisiense. Com efeito, verifica-se que no século XIII e desde longa data, o direito é elaborado sobretudo em Bolonha e a Teologia é ensinada principalmente em Paris, mas num ambiente internacional tanto pelos mestres como pelos estudantes. A par com os franceses Guillaume d' Auxerre e Guillaume d'Auvergne, são o inglês Alexandre de Hales, o alemão Alberto de Colónia, os italianos Boaventura de Bagnoreggio e Tomás de Aquino que dão prestígio à teologia universitária parisiense", Triunfo atenuado, primeiro porque o êxito do Purgatório na teologia oficial latina não deve fazer esquecer o seu falhanço em zonas importantes da cristandade. É a recusa dos hereges, valdenses e cátaros, nesse século XIII em que o confronto entre o catarismo e a Igreja romana ocupa um lugar tão importante. A hostilidade dos Gregos, que por razões políticas haviam sido obrigados a ocultar a sua recusa do Purgatório no momento da efémera união das Igrejas concluida no segundo concílio de Lyon (1274), força os latinos a discutir com eles, que não aceitam esse novo além. Estas discussões vão levar a Igreja latina a definir melhor o Purgatório no século XIII, tal como fora levada pela luta contra os hereges a confirmar a sua existência no fim do século XII. Triunfo atenuado, depois, porque os intelectuais latinos, que desempenham um papel crescente na cúria romana e na hierarquia eclesiástica e, está claro, nas universidades, sentem uma certa desconfiança em relação a esta novidade. É dificil detectá-Ia e documentá-Ia, mas sentimo-Ia. Aflora aqui e ali nas suas obras. Dupla desconfiança que vem, sem dúvida, de um certo mal-estar perante uma crença tão pouco e mal fundamentada na Santa Escritura e, sobretudo, do medo de ver essa crença submersa pela piedade vulgar e supersticiosa. Medo perante um além tão próximo da cultura folclórica e da sensibilidade popular, um além
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tão mais definido pelo imaginário do que pelo teórico, pelo sensível do que pelo espiritual. Sente-se uma vontade de racionalizar, de balizar, de controlar, de expurgar o Purgatório. Eis, por exemplo, como um dos primeiros grandes teólogos parisienses do século XlII aborda os problemas do Purgatório. Na sua Summa Aurea (entre 1222 e 1225) Guillaume d'Auxerre, falecido em 1231, um dos introdutores de Aristóteles na teologia escolástica, fala do Purgatório sob dois pontos de vista, o dos sufrágios pelos mortos e o do fogo purgatório. As questões respeitantes aos sufrágios (<
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Ncrá cada vez mais substituído como texto de base pelo segundo texto, o de Lombardo. Por outro lado, o ensino universitário ordena-se à volta de um programa metódico, racional, que não deixa sem dúvida de estar ligado às preocupações da época e às modas intelectuais, como o aristotelismo ou o uverroismo. Mas questões, mesmo no sistema dos quolibeta criado em princípio para ser possível abordar qualquer questão fora dos programas regulares, dependem da sua inserção numa problemática mais vasta. O Purgatório surge no conjunto dos «fins últimos» no capítulo De novisstmis', Para os grandes teólogos do século, ele é um dado adquirido, professado pela Igreja e proposto pelos programas universitários, mas que não apaixona. No século XII o além intermédio está estreitamente ligado a alguns grandes problemas comuns aos teólogos, aos místicos e, em formas menos elaboradas, a uma parte pelo menos da sociedade laica: a exegese bíblica, a natureza do pecado, as práticas da penitência, o estatuto das visões e dos sonhos. Na elaboração de soluções para as questões postas, a teologia, a teologia parisiense sobretudo, colaborara grandemente, como se viu, na segunda metade do século. No século XIII a teologia universitária - sobretudo parisiense de novo _ entroníza o Purgatório, insere-o no sistema do pensamento cristão, mas não parece vivê-lo como problema existencial. Por isso devemos conduzir agora o nosso estudo a dois níveis: o dos intelectuais e o dos pastores e das massas.
o Purgatório,
continuação da penitência terrena: Guillaume d'Auvergne
Um dos melhores historiadores do pensamento medieval, M. de Wulf, escreveu: «A geração dos grandes teólogos especulativos inicia-se com Guillaume d' Auvergne, um dos espíritos mais originais da primeira metade do século ... Guillaume é o primeiro grande filósofo do século xm".» Tratando-se do Purgatório, direi mesmo; Guillaume d' Auvergne é o último grande teórico do século XlI7• Aliás, Etienne Gilso? consi~erara: «Po~ todo o seu hábito de pensamento como pelo seu estilo, Guillaume esta ligado ao fim do século XlI» e destacara que ele era também, depois de Abelardo e de Bernardo de Clairvaux, o último grande teólogo francês da Idade Média. Pergunto-me se este aspecto um pouco «arcaico» de Guillaume d'Auvergne virá ou não (como se disse) da· sua hostilidade ao aristotelismo (que não era com certeza tão grande como se pretendeu), mas do facto de este secular, este pastor, mesmo sendo um grande teólogo, se aproximar das preocupações e da mentalidade das suas ovelhas, que não 287
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estavam igualmente avançadas na nova teologia escolástica, que os nov intelectuais universitários tinham talvez tendência para encerrar n «ghetto» do Quartier Latin em vias de formação. Nascido cerca de 1180 em Aurillac, mestre regente de teologia e Paris entre 1222 e 1228, bispo de Paris de 1228 até à sua morte e 1249, Guillaume d'Auvergne compôs entre 1223 e 1240 uma obra imen« sa, o Magisterium divinale sive sapientiale, formado por sete tratados, doar, quais o mais importante, o De universo (Sobre o universo das criaturas], foi feito entre 1231 e 1236. Após ter esboçado uma geografia unindo o além e o mundo cá em . baixo na qual o lugar de felicidade da alma se situa no cume do universo, no Empíreo; o lugar da sua desdita no fundo do universo, nas profundezas subterrâneas opostas ao céu do Empíreo; e o lugar de mistura de felicidade e desdita no mundo dos vivos, Guillaume d'Auvergne aborda o Purgatório. Considera dois problemas clássicos: a localização e o fogo. O bispo de Paris põe logo de entrada o problema do lugar de purgação, dando como adquirido o termo Purgatório: «Se o lugar de purgação das almas a que se chama Purgatório, é um lugar específico destinado à purgação das almas humanas, distinto do Paraíso terrestre, do Inferno e da nossa morada, isso é um problema'o Que depois da morte do corpo muitas coisas há para expurgar, é para Guillaume d'Auvergne «uma evidência» (manifestum est). E logo avança a grande ideia da sua concepção do Purgatório: é a continuação da penitência terrena. Esta concepção penitencial do Purgatório que ninguém exprimiu melhor do que ele está bem dentro da tradição do século XII, como creio já ter sublinhado. Para a necessidade evidente de purgação, Guillaume dá uma primeira razão: os defundos mortos de morte súbita ou inesperada, por exemplo, «pela espada, por sufocação ou por excesso de sofrimento», apanhados pela morte antes de terem podido cumprir a sua penitência, devem ter um lugar para terminar essa penitência. Mas existem outras razões para a existência do Purgatório, como a diferença entre pecados mortais e pecados leves. Como os pecados não são todos iguais, a sua expiação obrigatória não pode ser a mesma para os mais graves e os mais leves, para o homicídio ou a extorsão, por exemplo, por um lado e o riso excessivo ou o prazer da comida e da bebida por outro. Para uns, é a expiação pelo castigo (per poenam); para outros ela faz-se pela penitência (per poenitentiam). No que toca aos pecados leves, é evidente que o morto carregado deles não pode nem entrar com eles no Paraíso nem ir por causa deles para o Inferno. Tem, pois, obrigatoriamente de os expiar antes de ser transportado para a glória celestial. E, por consequência, tem de existir um lugar onde, no futuro, se faça essa expiação. Guillaume d' Auvergne não tem
portanto nenhuma dúvida quanto ao tempo do Purgatório: situa-se entre morte e a ressurreição dos corpos. Separa também muito nitidamente Inferno e Purgatório. Mas se não Insiste (como se fará mais tarde, no século XIII) no carácter muito penoso da purgação depois da morte, nem por isso equipara menos a penitência do Purgatório a uma expiação, e as provações do Purgatório a penas, a castigos penitenciais (poenae purgatoriae et poenitentiaJes). Com efeito, e c esta a sua grande ideia, «as penas purgatórias são penas que completam u purgação penitencial iniciada nesta vida». Acrescenta que a frequência das mortes imprevistas, das penitências inacabadas antes da morte e dos casos de morte em estado de pecado ligeiro torna essas penas «necessárias Il numerosas almas» (necessariae sunt multis animabus). O mesmo é dizer que o Purgatório tem todas as probabilidades de ser muito povoado. Sem que tal seja dito, é evidente que, nesta concepção, o Inferno está mais ou menos deserto em proveito do Purgatório. A existência do Purgatório não prejudica, aliás, o exercício de uma vida cristã na terra, não é uma incitação ao relaxamento cá em baixo no mundo, pelo contrário. «Porque, com medo da purgação no futuro, à falta de outras motivações, os homens iniciam mais facilmente e mais cedo a purgação penitencial cá em baixo, executam-na com maior zelo e vigor e esforçam-se por a terminar untes de morrerem.» A existência do Purgatório é, pois, provada pelo raciocínio e na perspectiva da penitência. Guillaume d'Auvergne prossegue com outras provas. A primeira provém da experiência. Visões e aparições numerosas e frequentes de almas ou de homens que se encontram nessas purgações depois da morte atestam a realidade do Purgatório. Consciente da importância desta literatura do além purgatório de que pretendi aproveitar-me neste livro, ele destaca o interesse das informações concretas prestadas peJos escritos e descrições dessas aparições, reclamações, premonições e relevações que não só são divertidas (quae non soJum auditu jocundae sunt ) mas também úteis e salutares. Daí a necessidade dos sufrágios pelos mortos: preces, esmolas, missas e outras obras piedosas. Existe, por fim, uma terceira razão para a existência do Purgatório: é a exigência de justiça. Repete que «aqueles que negaram a existência do Purgatório e das suas purgações das almas ignoraram a penitência». Ora a penitência «é um julgamento espiritual, julgamento onde a alma pecadora se acusa a si própria, testemunha contra si própria e pronuncia uma sentença contra si própria». Mas toda a sentença deve satisfazer a justiça. Nem todas as culpas são igualmente graves nem merecem a mesma punição. Se a justiça humana não tolera esta confusão de penas, por maioria de razão a justiça divina, que é tão misericordiosa. Também aqui Guillaume d'Auvergne está bem na linha desse século XII tão sedento de justiça como de penitência, como demonstrei.
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Falta situar este lugar purgatório cuja existência já não oferece dúvidas. Aqui Guillaume d'Auvergne mostra-se mais embaraçado, pois «nenhuma lei, nenhum texto, o define» (nulla lex, ve/ alia scriptura determinat). Deve pois acreditar-se no que revelam as visões e as aparições. Mostram elas que essas purgações se fazem em numerosos locais desta terra. Também para isto Guillaume quer dar uma justificação teórica, racional. «A coisa não é de espantar, diz ele, porque essas purgações são apenas suplementos das satisfações penitenciais e não convém portant~ atribuir-lhes outro local diferente do dos penitentes.» E acrescenta: «E o mesmo local que está destinado ao todo e às partes; onde houver um lugar para o homem, esse lugar é também para os seus pés e as suas mãos; essas purgações são apenas partes das penitências.» Assim, a sua doutrina do purgatório penitencial leva Guillaume a situar o Purgatório cá em baixo no mundo. Talvez seja simplesmente o leitor de Gregório, o Grande, procurando uma explicação racional (apparere etiam potest ex ratione). Depois de ter exprimido a sua concepção geográfica do universo, ele não podia, sobretudo, senão chegar a esta conclusão, parece-me. O Paraíso está no alto, o Inferno está em baixo, a nossa terra ocupa o nível intermédio. Tinha que ser aí que se colocava esse intermédio por excelência, o Purgatório. Quase um século depois, Dante adoptará a linha de pensamento de Guillaume d' Auvergne sobre o Purgatório; um lugar mais próximo do Paraíso do que do Inferno, um lugar onde, ao entrar, se encontram primeiro as vítimas de morte súbita ou violenta, e até suicidas, no caso de Catão. Mas graças à sua concepção hemisférica da terra, Dante saberá dar à montanha do Purgatório uma localização ao mesmo tempo intermédia e específica. O segundo problema respeitante ao Purgatório tratado por Guillaume d'Auvergne no De Universo é o do fogo, que é, na sua época, não só um acessório essencial e obrigatório do Purgatório mas muitas vezes também a sua própria encarnação. Alan E. Bernstein julgou ver uma contradição nos capítulos que Guillaume dedica ao fogo do Purgatório. Pareceria que ele se inclina para a concepção de um fogo imaterial, até mesmo puramente «metafórico», mesmo que a palavra não seja pronunciada, e depois admitiria finalmente a ideia de um fogo material. Bernstein tenta resolver esta contradição, imaginando que Guillaume d'Auvergne elabora uma teoria a dois níveis: para os seus alunos, para os intelectuais (e para si próprio) apresentaria a hipótese de um pseudofogo, numa perspectiva próxima da de Orígenes; para a massa dos fiéis, exporia uma concepção material, real, do fogo, mais acessível a espíritos mais grosseiros. O bispo de Paris é decerto um teólogo de alto coturno e, ao mesmo tempo, um pastor muito preocupado com a cura animarum, com o bem das suas ovelhas. Mas creio que a duplicidade de ensino que lhe atribui Alan Bernstein não é de todo 290
crível num prelado da primeira metade do século XIII, e não tem em conta o texto do De Universo. Guillaume d'Auvergne, nesta súmula que, não o esqueçamos, trata do universo das criaturas, esboça um inventário e uma fenomenologia do fogo. Há, diz ele, todas as espécies de fogo. Conhecem-se alguns, na Sicllia por exemplo, que têm propriedades curiosas que tornam os cabelos fosforecentes sem os queimar, e há também seres, animais incorruptíveis pelo fogo, como a salamandra. Tal é a verdade científica terrestre sobre o fogo. Porque não teria Deus criado uma espécie particular de fogo que fizessedesaparecer os pecados ligeiros e os pecados expiados de maneira incompleta? Há pois em Guillaume, primeiro a preocupação de mostrar que o fogo do Purgatório não é um fogo como os outros. E principalmente diferente do fogo da geena, do Inferno. O objectivo de Guillaume é com efeito diferenciar bem o Purgatório do Inferno. E portanto necessário que o fogo de um seja diferente do fogo do outro. E todavia, mesmo o fogo infernal é diferente do que nós conhecemos na terra, quer dizer do fogo que consome. O fogo do Inferno queima sem consumir visto que os condenados nele serão torturados para sempre. Se há então um fogo que pode queimar eternamente sem consumir, porque não teria Deus criado também um fogo que queima consumindo apenas os pecados, purificando o pecador? Mas estes fogos que ardem sem consumir não são menos reais. Por outro lado, Guillaume é sensível à opinião daqueles que fazem notar que, segundo a ideia que se pode ter do Purgatório, ideia confirmada pelo que dizem os seus habitantes quando das suas aparições, o fogo não é a única forma de expiação que lá se sofre. O fogo não é pois uma metáfora mas o termo genérico que serve para designar o conjunto dos processos de expiação e de purificação que sofrem as almas do Purgatório. Resta o argumento essencial em que Alan Bernstein se baseia para defender a hipótese de uma teoria de fogo metafórico em Guillaume d' Auvergne. O fogo, diz o teólogo, pode mesmo ser eficaz em imaginação como, por exemplo, nos pesadelos, em que aterroriza sem ser real. Mas assim como já demonstrou que a crença no Purgatório leva a uma melhor prática penitencial no mundo, Guillaume pretende apenas provar a eficácia do fogo purgatório para a salvação eterna. O que ele quer dizer, parece-me, é que, como o fogo já é eficaz quando somente existe na imaginação dos homens, dos que sonham, por exemplo, sê-lo-á ainda muito mais quando é real. Então como duvidar de que Guillaume d'Auvergne crê e professa que o fogo do Purgatório é real, material? O próprio Alan Bernstein fez notar que, segundo Guillaume, esse fogo «tortura corporal e realmente os corpos das almas» (corpora/iter et vere torqueat corpora animarum). Quem melhor e com maior audácia disse que o teatro do Purgatório não é um teatro de sombras mas um teatro corporal, onde as almas sofrem nos seus corpos mordeduras de um fogo material? 291
o Purgatório
e os mestres mendicantes
Com os grandes teólogos mendicantes abordamos - apesar da originalidade individual devida à sua personalidade e às características daa suas respectivas ordens - um bloco doutrinário. A. Piolanti, mau grado alguns erros de perspectiva, definiu bem a posição de conjunto dos grandes escolásticos (Alexandre de Hales, S. Boaventura, S. Tomás de Aquino, Alberto, o Grande). «No século XIII, os grandes escolásticos, glosando o texto de Pedro Lombardo, construíram uma síntese mais consistente: ao discutirem pontos secundários como a remissão do pecado venial, a gravidade e a duração da pena, o lugar do Purgatório", sustentaram como doutrina de fé a existência do Purgatório. o limite da pena no tempo, e estiveram de acordo em considerar o fogo real'".»
Entre os frandscanos 1. Do comentário de Pedro Lombardo a uma ciência do além: Alexandre de Hales Já citei (p. 270) um extracto da glosa de Alexandre de Hales sobre as Máximas de Lombardo que aprofundava, do ponto de vista matemático, o problema da proporcionalidade a propósito do Purgatório. Eis a estrutura e o essencial do conteúdo do comentário deste grande mestre parisiense!'. Este inglês nascido cerca de 1185 que veio a ser mestre em artes em Paris antes de 1210, ali ensinou teologia desde 1225 até à sua morte, em 1245. Em 1236 ingressou nos Menores e foi titular da primeira cadeira franciscana de teologia na Universidade de Paris. É um dos primeiros teólogos parisienses a explicar Aristóteles, apesar das repetidas proibições (o que provoca a sua ineficácia) de ler as obras do «príncipe dos filósofos». A Súmula Teológica que durante muito tempo lhe foi atribuída não é obra sua mas de universitários franciscanos muito marcados pelos seus ensinamentos. É, em compensação, autor da Glosas sobre As Máximas de Pedro Lombardo que foi o primeiro a usar como texto de base do ensino universitário da teologia (o quarto concílio de Latrão em 1215 tinha praticamente consagrado Lombardo como teólogo oficial), glosa provavelmente redigida entre 1223 e 1229; e de Questões Discutidas, igualmente redigidas antes do seu ingresso nos franciscanos - de onde o título que Ihes foi dado (Questiones disputatae antequam esset frater). Na sua glosa do livro IV das Máximas de Pedro Lombardo, Alexandre trata do Purgatório no destaque XVIII e sobretudo nos destaques XX:
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ceDa penitência tardia, da pena do Purgatório e dos relaxamentos'?», e XXI: «Da remissão e da punição dos pecados veniais, da edificação do . de remir. o peca do \3 ». ouro, do feno e da palha das sete maneiras Verifica-se que ele retoma o problema do Purgatório especialmente destinado aos pecadores, cuja penitência, tardia, está incompleta, e àqueles que só levam pecados veniais; e que, por sua vez, utiliza a primeira epístola de Paulo aos Coríntios. Em Alexandre temos, antes de mais, uma reflexão sobre o fogo. Existe um fogo que purgará as almas até ao fim do mundo: «Há um duplo fogo, um, purgatório, que purga as, almas agora até ao dia d~ Julgamento (final), um outro que precedera o Julgamento, que consuml~a este mundo e que purificará aqueles que edificam com ouro, etc., se sao encontrados com algo de combustível. É preciso notar que há três espécies de fogo: 1\ luz, a chama, a brasa (lux .flamma. carbo) e que ele se reparte em três partes: a superior para os eleitos, a média para os que têm de ser purgados, a última para os condenados.» Além da referência a Aristóteles, que escreveu que «a brasa, a chama e il luz se diferenciam umas das outras» (Tópicos, V, 5) e a S. Paulo, vê-se que Alexandre de Hales concilia as opiniões tradicionais acerca do fogo que, para uns, está activo antes da ressurrei~o e para outros dep~ls ~a ressurreição, no momento do Julgamento Final, ~~larando que ha ?OlS fogos: um, purgatório, entre a morte e a ressurreiçao; ~u~ro,* dest~d~r ou purificador entre a ressurreição e o Julgamento. A distinção anstotelica dos três fogos permite a Alexandre definir bem a natureza mediana, intermédia, do Purgatório a que corresponde a chama que expurga, enquanto a luz é reservada aos eleitos, e a brasa,. o carvão ar~e~te, aos condenados. Temos aqui um bom exemplo do instrumento lógico que Aristóteles forneceu aos escolásticos do século XIII. 1) Este fogo do Purgatório purga pecados veniais (purgans a venialihus): «0 pecado é remido e purgado nesta vida pelo amor (ch~r~tas) de muitas maneiras como uma gota de água no fogo, pela eucanstia, a confirmação e a extrema-unção. Depois da morte, é purgado no Purga-
tório.» 2) Purga também penas devidas aos pecados mortais ainda não suficientemente expiadas (et a poenis debitis mortalibus nondum sufficienter satisfactis) . 3) É uma pena maior do que qualquer pena temporal (poena maior omni temporali); é aqui o retomar do tema agostiniano, na preocupação de combater a ideia de laxismo que poderia ligar-se a uma concepção que esvazia mais ou menos o Inferno. 4) Não é uma pena injusta e desproporcionada? (nonne iniusta et improportionalis), é a pergunta cuja importância mostrei no capítulo anterior.
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cujos méritos são suficientes e que não precisam de passar pelo Purgatório» (transire per purgatorium). O Purgatório é o além provisório da maioria dos homens, dos defuntos. A primazia quantitativa do Purgatório é aqui afirmada. Alexandre de Hales tratou de outra parte as relações entre a Igreja e o Purgatório. O primeiro problema é o da jurisdição, do foro (tribunal), de que depende a alma do Purgatório. <<À objecção de que ele não se inclui no poder das chaves (o poder perdoar os pecados dado por Jesus a Pedro e, através dele, a todos os bispos e a todos os padres) de perdoar a pena purgatória por comutação em pena temporária, deve responder-se que aqueles que estão no Purgatório (in purgatorio) dependem de certo modo do foro da Igreja militante e também do fogo purgatório, na medida em que ele convier à pena satisfatória (que cumpre a penitência). Como os fiéis pertencem ou à Igreja militante ou à Igreja triunfante, aqueles que estão no meio (in medio) e, como não pertencem inteiramente nem à triunfante nem à militante, podem estar submetidas ao poder do padre (potestati sacerdotis) por causa do poder das chaves.» Texto capital que, nesta época em que se reorganiza a jurisdição da Igreja no direito canónico tanto no plano prático como no teórico, faz com que ela anexe, pelo menos parcialmente, o novo território aberto no além. Até então o poder judiciário espiritual, o tribunal da alma, o foro estava nitidamente dividido por uma fronteira que passava pela linha da morte. Cá em baixo, no mundo, o homem depende da Igreja, do foro eclesiástico; no além, só depende de Deus, do foro divino. E certo que a recente legislação sobre a canonização, sobre a reclamação dos santos, conferia à Igreja poder sobre alguns mortos que ela, logo a seguir à morte, colocava no Paraíso e na fruição da visão beatífica mas, ao fazê-lo, «a Igreja apenas se pronuncia sobre a sorte de um número ínfimo de defuntos'?». Mas o ingresso no Purgatório diz respeito, como já vimos, à maioria dos fiéis. Sem dúvida que o novo território não é inteiramente anexado pela Igreja. Na sua situação de intermédio, fica submetido ao foro comum de Deus e da Igreja. Poder-se-ia afirmar que, à imagem das cojurisdições que o sistema feudal desenvolveu nessa época, existe paridade (co-senhoria em termos de direito feudal) de Deus e da Igreja sobre o Purgatório. Mas como cresceu o poder da Igreja sobre
os fiéis! No momento em que o seu poder no mundo é posto em causa simultaneamente pela contestação branda dos convertidos às doçuras do mundo terreno (os despreocupados) e pela contestação dura dos hereges, a Igreja prolonga para além da morte o seu poder sobre os fiéis. Trata-se de doutrina da Igreja no sentido mais pleno e mais lato, e cabe também a Alexandre de Hales dar uma das primeiras expressões claras do papel da comunhão dos santos na perspectiva do Purgatório. Aqui a pergunta é: «Os sufrágios da Igreja são úteis aos mortos que estão no Purgatório?» Resposta: «Assim como a dor específica traz consigo a satisfação do pecado, também a dor comum da Igreja universal, chorando os pecados dos fiéis mortos, orando por eles em lamentos, ajuda à satisfação mas não cria ela própria satisfação plena; mas com a pena do penitente ajuda à satisfação, o que constitui a própria definição do sufrágio. Com efeito, o sufrágio é o mérito da Igreja capaz de diminuir a pena de um'dos seus membros'".» Começa assim a aparecer em plena luz a noção de dor, de sofrimento que, de simples expiação, vai tornar-se a fonte dos méritos que permitirão às almas do Purgatório não só terminarem - com a ajuda dos vivos - a sua purgação mas também merecerem intervir junto de Deus a favor desses vivos. Falta dizer que a Igreja, no sentido eclesiástico, clerical, extrai grande poder do novo sistema do além. Administra ou controla as preces, as esmolas, as missas, as oferendas de todos os géneros feitas pelos vivos a favor dos seus mortos, e de tudo tira beneficios. Graças ao Purgatório, desenvolve o sistema das indulgências, fonte de grandes lucros de poder e de dinheiro, antes de se tornar uma arma perigosa que se voltará contra si mesma. Também aqui Alexandre de Hales é o teórico e a testemunha desta evolução. É prudente: «À objecção de que a Igreja, por causa dos perfeitos, não poderia obter satisfação para os outros, respondi que ela pode obter uma ajuda, não a satisfação completa. Mas, acrescenta-se, como se pode obter um relaxamento desse género para parentes defuntos, quando eles já caíram «nas mãos do Deus vivo e o Senhor diz: "quando tiver decidido sobre o momento, então julgarei."» (Salmo LXXIV, 3)? Nós respondemos: só aquele que pesa as almas sabe a grandeza da pena devida por cada pecado, e não convém que o homem tente saber demasiado. Mas aqueles que, em amor, vão em socorro da Terra Santa, podem ter tal devoção e generosidade de esmolas que, libertos eles próprios de todos os seus pecados, possam libertar os parentes do Purgatório, obtendo para eles a satisfação.» A fonte das indulgências para os mortos só é, pois, aberta a conta-gotas, a favor dessa categoria excepcional de cristãos, cada vez mais raros no século XIII, os cruzados. Mas o dispositivo está preparado, e
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5) Há nela confiança e esperança, mas ainda não visão (beatífica) (ib! fides et spes, nondum visio): Alexandre insiste, como muitos outros, no facto de o Purgatório ser a esperança, visto ser a antecâmara do Paraí-
so, mas sublinha também que ainda não é o Paraíso, e que nele 'se está privado da visão de Deus. 6) Aqueles que o evitam ou lhe escapam são pouco numerosos (ilIud vitantes seu evolantes pauci). «Na igreja são pouco numerosos aqueles
pronto a funcionar. No fim do século, Bonifácio VIII tirará dele maior partido por ocasião do Jubileu de 1300. Nas Questões discutidas «Antequam esset frater» entre 1216 e 1236, Alexandre de Hales faz ainda por várias vezes alusão ao Purgatório. Na questão XLVIII e a propósito dos pecados veniais ele distingue a falta, a culpa que é apa1ada pela extrema-unção, enquanto a pena só é retirada no Purgatório} . Aliás, recorda o carácter amargo, duro (acerbitas) da pena do Purgatório!", Ao problema de saber se os que estão no Purgatório têm esperança, ele responde com a bela metáfora dos viajantes num navio. A esperança deles vem não do mérito próprio mas da acção de outrem. Os viajantes podem avançar ou pelo trabalho dos seus pés ou por um meio estranho, um cavalo ou um barco, por exemplo. Os defuntos no Purgató~i? são «como viajantes num navio: não adquirem para si qualquer mento e pagam o seu transporte; assim os mortos no Purgatóno pagam a pena que devem não como o capitão que pode adquirir méritos no barco, mas simplesmente como transportados} .»
2. Boaventura e os fins últimos do homem João Fidanza, nascido cerca de 1217 em Bagnoreggio na fronteira do Lác~o c?m a Umbria, que tomará o nome de Boaventura, tendo ido para Pans ainda Jovem, entrado em 1243 na ordem franciscana, bacharel biblico (quer dizer autorizado a explicar a Escritura) em 1248, bacharel em Máximas (quer dizer habilitado a comentar os Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo) em 1250, passa a mestre de teologia em 19 1253 . Foi no começo da sua carreira universitária, entre 1250 e 1256 que redigiu o seu Comentário a Lombardo antes de se tomar ministro da Ordem dos Menores em 1257 e cardeal em 1273. Por aqui se vê o peso da inspiração agostiniana, característica do doutor francíscano'". No destaque XX do livro IV do Comentário às Máximas, Boaventura trata «da pena do Purgatório em si». Afirma primeiro que é depois desta vida que se deve, sem dúvida, situar essa pena. A questão de saber «se a pena do Purgatório é a maior das penas temporais» (utrum poena purgatorii sit.maxima poenarum temporalium) responde que ela é «no seu género» mais pesada do que todas as penas temporais que a alma pode sofrer quando está unida ao corpo. Ao afirmar - na tradição agostiniana - a severidade do que se sofre no Purgatório e ao reconhecer a relação que se pode estabelecer entre essa pena e as de cá de baixo, Boaventura sublinha a especificidade do Purgatório. Há nisto, sem dúvida, o eco das teorias sobre a proporcionalidade da pena purgatória de Alexandre de Hales, que foi na realidade o seu autor. Boaventura trata a seguir de um problema que preocupou todos os grandes escolásticos, o do carácter voluntário 296
ou não da pena do Purgatório, ocupando a vontade nos seus sistemas um lugar de eleição. É o caso de Boaventura que, no terceiro dos seis graus da contemplação definidos pelo Itinerário do espírito em direcção a De~s mostra a alma que «vê brilhar em si a imagem de Deus, porque nos tres poderes, memória, inteligência e vontade, ela vê Deus por si mesma como na sua imagem» (J.-c. Bougerol). Todos os grandes escolásticos, sob formulações diversas decorrentes dos seus sistemas particulares, atribuem à pena do Purgatório apenas um carácter voluntário limitado porque, depois da morte, como estabeleceu Alexandre de Rales, o livre arbítrio está imóvel e o mérito é impossível. Para os teólogos, os pecados veniais são remidos no Purgatório quanto ~ pena (quoad poenam) mas não quanto à culpa (quoad cumpam) que e remida no próprio instante da morte. Tomás de Aquino, que segue Lombardo à letra, ensina no seu Comentário às Máximas que «na outra vida, o pecado venial é remido mesmo quanto à culpa pelo fogo do Purgatório àquele que morre em estado de graça I?orque essa pena, sendo de certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as culpas compatíveis com a graça santificante». Volta a esta posição .no De mal~ onde considera que o pecado venial já não existe no Purgatóno; quanto a culpa, essa foi apagada por um acto de caridade perfeita no momento da morte. Sobre o problema do carácter voluntário da pena do Purgatório, Bo.aventura pensa que ela é minimamente voluntária {minimam habet rattonem voluntarii), pois a vontade «tolera-a» mas «deseja o seu opos~o», quer dizer, a sua cessão e a recompens~ .celeste21.,A pergunt~ seguinte tem a ver com as relações entre Purgatono e Paraíso: «Haverá na pena do Purgatório menos certeza de glória do que no caminho?22», quer dizer aqui em baixo, onde o homem é um viato~, ~m peregrino? (\0 que Boaventura responde: «Há mais certeza da glona no Purgatono do que no caminho mas menos do que na pátria.» Trata-se aqui do Purgatório como esperança e Boaventura vai de certa maneira além da esperança, u~a vez que fala de certeza; mas introduz graus na certeza. Segue a concepçao fundamental do .Purgatório como «~édio», ,in~ermédio, e disti~§~e duas fases, se não dois lugares, no Paraíso: a patria (o tet;n? pama. ~ esta concepção aparecem noutros autores) que parece p~oxlm~ d~ ideia do seio de Abraão que se encontra no repouso, e a gloria que e simultaneamente a fruição da visão beatífica e, de certa maneira, a «deificação» do homem cuja alma recuperou o corpo ressuscitado e agora «glorioso». Boaventura introduz aqui uma questão muito interessante para nós porque o faz entrar no domínio do imaginário, tão importante na história vivida do Purgatório. Responde à pergunta de saber «se a pena do Purgatório é infligida pelo desempenho (ministerio) dos demônios»: «A pena do Purgatório não é infligida pelo ministério dos demónios nem dos
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anjos bons, mas é provável que as almas sejam conduzidas ao Céu pel anjos bons e ao Inferno pelos maus.» Assim Boaventura considera o Purgatório uma espécie de lug neutro, um no man 's land entre o dominio dos anjos e o dos demônioa ~a~ si~ua-o - ,na perspectiva dessa desigualdade na igualdade, na equl~ distância, que e uma estrutura lógica fundamental no espírito dos hom. da sociedade feudal - do lado do Paraíso, na medida em que, para os doll rei~o.s~como dirá Dante, os condutores das almas são os anjos bons, Opinião que está portanto em contradição com a maioria das visões do além, com o Purgatório de S. Patrick designadamente. O Purgatório in•• tala-se num clima de dramatização das crenças cristãs do século XIII. ESII clima provém sobretudo do conflito entre uma concepção não infernal, li não quase paradisíaca, dominante, pareceu-me, no fim do século XII, apesar do negrume das visões, e aquilo a que Arturo Graf chamou uma «infernização» progressiva do Purgatório no decurso do século. A este respeito, Boaventura é tradicional. E é-o também no que toca à localização propriamente dita do Purgatório. «O lugar do Purgatório é em cima, em baixo, ou no meio?» (superi'fS. ~ inferius an in medio). A resposta, original, é: «O lugar do Purgatório e ~rovavelmente, segundo a lei comum, em baixo (inferius), mas e no meio (medius) segundo a economia divina (disperuationem divinam} » Notemos primeiro que, tal como na pergunta anterior sobre os anj~s e os demónios, se está no campo das opiniões, das probabilidades, nao das certezas. Em tudo o que respeita ao imaginário e ao concreto, os grandes escolásticos esquivam-se mais ou menos. Mas a opi~ião de Bo~ventura é muito interessante, pois aproxima (mesmo venfica,n~o a dlf~rença, se não a oposição) uma lei comum, que situa o Purgatono debaixo da terra, de um plano divino que o coloca numa posição média, segundo a lógica do novo sistema do além. Funciona pois, entre dois planos, o da lei comum e o da economia divina dualidade que. é t~mbém a que existe entre a tradição e a tendência teológica. As hesitações de Boaventura em relação à localização do Purgatório encontram-se em duas outras passagens do Comentário sobre o Livro IV das Máximas.
Debruçando-se sobre o fogo do Purgatório e glosando por sua vez a glosa de Lombardo sobre a primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111, 24 15 , Boave~tura combate a opinião segundo a qual esse fogo teria um valor purgativo espiritual além do seu valor punitivo, e purgaria pois do pecado (venial ou não), quer dizer da culpa, à maneira de um sacramento. Em defesa da sua recusa de ver no fogo do Purgatório uma força nova (vis nov~) além da punição, recorre ao testemunho de Gregório, o Grande, ao situar a purgação de muitas almas em lugares diversos (per diversa loca), dependendo a purificação da culpa apenas da graça. É pois o evo298
da tradição gregoriana da localização da purgação cá em baixo no mundo, nos locais do pecado. Já na sexta questão do destaque XX, Boaventura evocara um outro CIlSO de localização do Purgatório, o do Purga.tório de S. Pat~ick. Des!a visão concluía ele que o lugar de purgação podia depender da ~ntercessao de um santo, pois, segundo ele, «alguém» obtivera de S. Patnck ser punido em determinado lugar da terra, do que nascera a lenda de que o Purgatório era aí (in quodam loco in terra, ex quo fabulose ortum est, quod ibi esset purgatorium). Mas a sua conclusão m~smo era que, pura e simplesmente, havia diversos locais de purgação. ASSim,ao ~ar testemunho da popularidade do Purgatório de S. Patrick., ele consl~erava que essa localização, talvez verdadeira em casos particulares, nao pa~s~~a de uma fonte de «fábulas». O que não era, como veremos, a opimao de um cisterciense como César de Heisterbach. Aqui está a desconfiança de um intelectual em relação à literatura folclórica das visões do Purgatório. Boaventura retoma o problema da localização do Purgatório na questão clássica dos «receptáculos das almas», no artigo I do destaque XLIV do livro IV25. Distingue cuidadosamente a geografi~ do além ante~ e d~pois da vinda do Cristo, a Encarnação. Antes de Cnsto o Inferno I~clwa dois andares de um lugar em baixo (Iocus tnfimus) onde se sofna ao mesmo tempo a pena dos sentidos (castigos ~at~riais) e a ~na ~a perda (a privação da visão beatífica) e um lugar inferior (locus inferior] m~s colocado por cima do anterior, onde só se sofria a pena da perda. São os limbos (limbus, o limbo, dizia-se na Idade Média, fos~e para defi~ir um só, fosse para distinguir vários) que compreendem o limbo das crianças pequenas e o limbo dos patriarcas ou seio de Abraão). Depois da vinda do Cristo há quatro (o sublinhado é m~u).lug~res:.o Paraíso o Inferno o Limbo e o Purgatório. Se bem que a ideia nao seja ex.plicit~mente en~nciada, tem-se a impressão de que o Purgat~rio é uma consequência de Encarnação ligada à remissão d~s pecados e.instaurada pela vinda do Cristo. Por outro lado, só res.ta o limbo das cnanças,. ~as daí resulta um conjunto de quatro lugares VIStoque Boaventura o distingue nitidamente do Inferno (enquanto Alberto, o Grande, por exemplo e como veremos, articula Inferno e limbo). Boaventura prossegue com a sua exposição cruzando, como gosta de fazer, o sistema dos quatro lugares com outro sistema, este ternário e abstracto, o de um «est~do triplos do lado dos eleitos: estado de remunerapdo (traduza-se: Paraíso}, estado de espera no repouso (quietae expectationis, traduza-~e: o seio de Abraão ~ e um estado de purgação (traduza-se: o Purgatono). E a~rescent~. «Quanto ao estado de purgação, a ele corresponde um lugar indeterminado em relação a nós e em si (locus indeterminatus et quoad nos et quoad se), pois nem todos são purgados no mesmo lugar, ainda que provavel-
Ulr
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mente muitos o sejam num determinado dade do seu autor preferido, Agostinho.
lugar.» E invoca aqui a autori
Em su~~, Bo~vent~ra não tem uma .ideia precisa sobre a localização do Purga tono. Dir-se-is estarmos a OUVIrum teólogo indeciso do século' XII como Hugo de Saint-Victor, mas com uma consciência mais perfeita da complexidade do. problema. Boaventura tem, no entanto, de admitir a' crença cada vez mais firme num único lugar, que para ele é apenas um lugar de um grande .núm~ro, deixando subsistir uma multiplicidade de lugar~s. de purgaçao lOclwn~o este mundo cá em baixo, como pretendia Gregório, o Gr~nde. Perplexidade perante autoridades divergentes? Princípalmente, creio eu, repugnâ~cia de fazer ~o Purgatório mais um lugar ~o que um estado, estado que e decerto preciso localizar mas numa loca. li~~ção a~st,r~cta, atomizada numa multiplicidade de lugares materiais alias provisonos. • Perguntando-seê" se é possível beneficiar de «reduções de pena» (re. laxationes} quando se está no Purgatório ou somente quando se vive neste mundo, Boaventura é levado a insistir, na linha de Alexandre de Hal,e~, no poder d~ Igreja em geral e do Papa em particular sobre o Purgat~no. T~xt~ muito Importante sobre o percurso dos desenvolvimentos ~as indulgências e do poder pontifical sobre os mortos que Bonifácio VIII maugurara quando do Jubileu de 1300. , Boaventura vo!t~ a seguir ao fogo do Purgatório-", Interroga-se se ele e corporal ou espiritual, ou mesmo metafisico, verifica a diversidade de opl,nloes dos doutores, as hesitações do seu mestre Agostinho, mas conclui apesar de tudo (vconcede») que se trata de um fogo «material ou corporal», ~Este aspecto do problema vai ser retomado nas discussões contemporaneas com os gregos, em que os franciscanos e o próprio Boaventura largamente participaram28. Em compe~saç~029, Boaventura toma posição firme e decidida (ao trB:tar de !tultl, de imbecis, os que defendem a opinião contrária) sobre a libertaçao das almas do Purgatório antes do Julgamento Final. Afirma com vee~ência ~ .sua re~lidade - especialmente contra os Gregos _ na perspe~ttva. da visao beatifica. Baseia-se nas autoridades e em argumentos racionais. De entre as autoridades cita em primeiro lugar a frase de Jesus na cruz para o bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso» (Lucas, XXIII, 43). Os três arg~mentos são interessantes: I) Não pode haver element5' retar~ador d.epOls da purgação no Purgatório; parte-se ma! ~ purgaçao esteja terminada, 2) Recusar a um mercenário o seu s~lano e cometer um delito de justiça; mas Deus é o justo por excelênera, ~ desde que ache o homem em estado de ser retribuído, retribui-lhe ll~edlatamente (referência muito interessante à justiça, na tradição do secul? ~II, e ~o problema do salário justo no quadro de uma moral economlCo-soclal que os escolásticos se esforçam por elaborar face ao 300
desenvolvimento do salariado). 3) Por fim o argumento psicológico: .diar indefinidamente a esperança é crueldade; e se mantivesse os santos .fastados da recompensa até ao dia do Julgamento Final, Deus seria muito cruel. É quase no fim do Comentário às Máximas que Boaventura trata dos sufrágios'". Na linha um pouco modificada de Agostinho, distingue esscncialmente três categorias de defuntos: os bons (bani) que estão no Paraíso, os medianamente bons (mediocriter bani) e os inteiramente maus. Responde da maneira que virá a ser clássica, que só os m~dianamente bons podem beneficiar dos sufrágios dos vivos, mas precisa que eles não estão em estado de merecer (in statu merendi), porque não existe acréscimo de mérito depois da morte. Depois de ter comentado, no contexto do seu ensino universitário, os Quatro Livros das Máximas de Pedro Lombardo, Boaventura sentiu n~cessidade de dissertar sobre o conjunto dos problemas, expondo ao teologo as suas ideias de maneira mais pessoal como, por seu lado, fez Santo Agostinho com a Súmula Teológica; o que veio a constituir, ent,re. 1254 e 1256, o Breviloquium. O lugar modesto que nele ocupa o Purgatono mosIra que Boaventura julgava sem dúvida expressar ou ter expressado (a anterioridade entre esta parte das obras é difícil de descortinar) o essencial do que pensava a esse resp<:ito no seu Comentário sobre o Livro IV das Máximas. No Breviloquium' ele esclarece, a propósito da pena do Purgatório que, como «punitiva», ela se exerce por um fogo material e como «expurgativa» manifesta-se por um fogo espiritual. ., A propósito dos sufrágios=, que não hesita em chamar de «eclesiásticos», manifestando assim o papel dominante da Igreja nest~ campo, precisa sem rodeios que esses sufrágios são válidos «para os medlana~e~te bons isto é, os que estão no Purgatório» mas ineficazes «para os mteiramente maus, isto é, os que estão no Inferno» e «para os inteiram~nte bons, isto é, os que estão no Céu», cujos méritos e preces trazem muitas benesses aos membros da Igreja milítante'". Finalmente Boaventura evoca o Purgatório em dois sermões para o Dia dos Defuntos, o «dia das almas», 2 de Novembro. No primeiro ", distingue os condenados, os eleitos e os que devem ser purgados (damnati, beati, purgandi), Fundamenta a existência destes últimos, que inclui entre os «imperfeitos», em diversas citações bíblicas ". No segundo sermão faz sobretudo apelo à oração e refere-se à prece de Judas Macabeu válida para aqueles que «sofrem atribui ações por causa dos seu~ pecados inveterados no Purgatório, de onde serão, no entanto, transfendos para as alegrias eternas», e interpreta alegoricamente as personagens de Judas, Jonathan e Simão como «a oração fiel, ~i~~~es e hu~ilde pela ~ual são libertados aqueles que estão no Purgatono ». Convinha terminar este rápido exame das posições de Boaventura em relação ao Purgatório 301
com esta evocação da prece da qual o ilustre franciscano foi um dos maiores doutores ".
creaturis. Nos manuscritos onde foi conservado apresenta-se inacabado,
Alberto de Lauingen, nascido cerca de 1207, ingressado nos Pregadores de Pádua em 1223 mas formado em Colónia e noutros conventos alemães e depois em Paris, onde é bacharel em Máximas de 1240 a 1242 e depois mestre de Teologia, aí ocupa uma das duas catedras dominicanas na Universidade, entre 1242 e 124838. É durante este periodo que Alberto, leitor de Aristóteles mas ainda não verdadeiramente aristotélico, compõe duas grandes obras teológicas, a Súmu/a das Criaturas (Summa de creaturis) de que faz talvez parte um tratado, De Resurrectione, que figura como tal nos manuscritos e data de antes de 124639; e um Comentário às Máximas de Pedro Lombardo. Nestas duas obras Alberto trata do Purgatório. O De Resurrectione é talvez o equivalente de um tratado «De novissimis», dos «fins últimos», que teria constituído a terminação da Summa de
lerminando no Julgamento Final sem que se trate «da beatitude eterna, das coroas eternas e da casa e das moradas de Deus» que haviam sido anunciadas. Após ter-se debruçado sobre a ressurreição em geral na primeira parte e sobre a ressurreição do Cristo na segunda, Alberto aborda na terceira a ressurreição dos maus. Os «lugares das penas», declara, são «o Inferno, o Purgatório, o limbo das crianças e o limbo dos patriarcas». Sobre a questão de saber se o Inferno é um lugar, Alberto diz que o Inferno é duplo: há um inferno exterior que é um lugar material e um inferno interior que é a pena sofrida pelos condenados, onde quer que estejam; o lugar do inferno situa-se «no coração da terra» e lá as penas são eternas. As «autoridades» citadas são sempre Agostinho, depois Hugo de Saint-Victor e, sobre os problemas do lugar e do fogo, Gregório, o Grande, e o Purgatório de S. Patrick. Sobre questões de lógica é invocado Aristóteles. Segundo o De Resurrectione o Purgatório é mesmo um lugar, situado próximo do Inferno. É justamente a parte superior do Inferno. Se Gregório e Patrick falam do Purgatório nesta terra é porque há casos de aparições cá em baixo de almas do Purgatório que receberam permissão especial para fazerem advertências aos humanos. Os textos de Hugo de Saint-Victor e de S. Paulo (I, Coríntios, III), este último ilustrado com comentários de Agostinho, afirmam que os pecados veniais são desfeitos no Purgatório. Esta demonstração, que permite a Alberto recorrer às subtilezas de uma demonstração lógica baseada em Aristóteles, é bastante longa. A seguir, Alberto trata mais rapidamente da intensidade e da natureza das penas do Purgatório. É de opinião que as almas do Purgatório não sofrem penas inferiores porque beneficiam da luz da fé e da luz da graça, e o que lhes falta é, provisoriamente, a visão beatífica; mas esta privação não deve confundir-se com as trevas interiores. Os demónios contentam-se com levar ao Purgatório as almas a serem purgadas, mas não as purgam. Enfim, no Purgatório não existe pena do gelo (gelidicium) , pois esta pena castiga a frieza na fé - o que não é o caso das almas que devem ser purgadas. Alberto não menciona a pena principal que é o fogo porque teve ocasião de a assinalar a propósito do Inferno, quando fez a distinção entre fogo do Purgatório e fogo do Inferno. Enfim, àqueles que, como Agostinho, pensam que as penas do Purgatório são mais «amargas» (o acerbitas) do que qualquer pena cá em baixo no mundo, e a outros que pensam que em relação às penas do Inferno estas penas não são mais do que é a imagem do fogo em relação ao verdadeiro fogo ou um ponto em relação à linha, responde fazendo apelo à lógica e elevando o debate. Chama em seu auxílio Aristóteles (Física, I, 3, c. 6 - 206b 11-12) que declara que só se pode comparar o que é comparável, ou seja,
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Entre os dominicanos Continuemos em Paris mas recuemos alguns anos para examinar a doutrina do Purgatório dos dois maiores mestres dominicanos: Alberto, o Grande, e Tomás de Aquino. A cronologia não é sem importância neste meio dos teólogos parisienses, mas mais vale talvez escolher outro contexto que não o da sucessão dos ensinamentos em Paris. Uma linha doutrinária dentro de cada uma das duas grandes ordens mendicantes é, sem dúvida, o melhor fio condutor. Alberto, o Grande, dá o essencial das suas ideias sobre o Purgatório entre 1240 e 1248. São vulgarizadas em 1268 por um discípulo seu, Hugo Ripelin de Estrasburgo. Marcaram a obra original de outro discípulo de Alberto, esse um grande espírito, Tomás de Aquino, que expõe a primeira vez a sua concepção do Purgatório nas suas aulas em Paris, entre 1252 e 1256 (comenta as Máximas de Pedro Lombardo quase ao mesmo tempo que Boaventura) e cujas ideias serão passadas à escrita por um grupo de discípulos, após a sua morte em 1274. Este «bloco» dominicano representa o supra-sumo do equilíbrio escolástico entre os métodos aristotélicos e a tradição cristã, o «optimum» da construção «racional» no ensino e no pensamento universitários do século XIII. O génio doutrinário de Alberto e de Tomás prolonga-se na vulgarização assegurada pelo Compendium de Hugo de Estrasburgo e pelo Suplemento à Súmu/a Teológica de Reginaldo de Piperno e seus colaboradores. 1. A depuração escolástica do Purgatório:
A/berto, o Grande
o finito com o finito. Portanto o problema da acerbitas é de excluir. A diferença entre o Purgatório e o Inferno não é uma questão de intensidade mas de duração. Por outro lado, aquilo a que a alma aspira no Purga. tório não é a reencontrar o corpo mas a reunir-se a Deus. Eis como se deve entender Agostinho que não pensava no fogo do Purgatório. Esta terceira parte do De Resurrectione termina com um tratamento de conjunto dos lugares das penas (De locis poenarum simul). Nisto Alberto mostra bem a consciência plena da unidade do sistema dos lugares do além. Unidade material e espiritual: há uma geografia e uma teologia do além. Quanto ao problema dos «receptáculos das almas», Alberto considera-o sob três pontos de vista. O primeiro consiste em examinar se o receptáculo é um lugar definitivo ou um lugar de passagem. Se é um lugar definitivo, dois casos há a considerar: a glória e a pena. Se se trata da glória, só existe um lugar, o reino dos céus, o Paraíso. Se se trata da pena, devemos distinguir um lugar onde só existe a pena da perda, e que é o limbo das crianpas, e um lugar com a pena da perda e a pena dos sentidos e que é a geena, o Inferno. Se o receptáculo é apenas um lugar de passagem, então é preciso distinguir entre pena da perda sozinha - (é o limbo dos patriarcas) e pena da perda e pena dos sentidos simultaneamente, que é o Purgatório. Um segundo ponto de vista consiste em apreciar a causa do mérito. O mérito pode ser bom ou mau ou bom e mau ao mesmo tempo (bonum conjuctum mala). Se é bom, é o reino dos céus que convirá. Se é mau, é por causa de um pecado pessoal ou estranho (ex culpa propria aut aliena). Ao pecado pessoal responde a geena, ao pecado estranho (o pecado original) o limbo das crianças. Se é feito de uma mistura de bem e de mal, não pode tratar-se de um mal mortal que seria incompatível com a graça que está ligada ao bem. É portanto um mal venial que pode provir de uma falta pessoal ou estranha. No primeiro caso ir-se-á para o Purgatório, no segundo para o limbo dos patriarcas. Por fim podemos partir do que há nos lugares. Estes lugares podem ter quatro qualidades: serem aflitivos, tenebrosos, luminosos e letificantes ou gratificantes (afflictivum, tenebrosum, luminosum, laetificativum), Se o lugar é letificante e luminoso, é o reino dos céus. Se é aflitivo e tenebroso porque não contém a visão beatífica, é o purgatôrio'"; se é directamente tenebroso mas não aflitivo, é o limbo das crianpas; se é indirectamente tenebroso mas não aflitivo, é o limbo dos patriarcas. Alberto dá-se conta de que não esgotou todas as combinações possíveis entre as quatro qualidades dos lugares, e demonstra
de racionalização de uma crença que vimos nascer tanto pela imagem como pelo raciocínio, pelos textos de autoridades como pelas descrições fantásticas, por entre erros, lentidões, hesitações, contradições e que está agora amarrada numa construção bem estreita - mas também porque, melhor do que qualquer outro escolástico, a meus olhos Alberto soube criar a teoria do sistema do Purgatório tal como ele nascera mais ou menos empiricamente meio século antes. Este texto apresenta outros interesses. Alberto sabe harmonizar melhor do que ninguém, dentro do sistema de uma crença como o Purgatório, aquilo que depende da imaginação e aquilo que decorre da lógica, o que vem das autoridades e o que é trazido pelo raciocínio. Põe os diabos fora do Purgatório mas deixa-os chegar à beira dele. Recusa o frio mas aceita o quente, o fogo. Distingue um espaço interior e um espaço exterior, a reconhece que o além é um sistema de lugares materiais. Refuta as comparações grosseiras mas faz da comparação um elemento legítimo e mesmo necessário à noção do sistema do além. Se existe vontade de depurar o imaginário, não é por hostilidade de princípio, mas quando esse imaginário é contrário à lógica, à verdade, ou ao sentido profundo da crença. Este texto mostra também que para Alberto é importante, se não essencial, distinguir bem o Purgatório do Inferno. Também isto decorre para ele do sistema. O Purgatório corresponde a um certo estado de pecado, aquele em que o mal se mistura com o bem. Daí resulta primeiro que o sistema é no fundo tripartido e não «pentapartido» (aut est bonum aut est ma/um aut bonum coninactum maio: ou o bem, ou o mal, ou o bem unido ao mal). De onde resulta, sobretudo, que o Purgatório é um médio descentrado, desterrado para o bem, para o alto, para o céu, para Deus, porque o mal que ele implica é um mal venial, não mortal, enquanto o rem é, como todo o bem, o da graça. E pois errado acreditar que toda a ideia de Purgatório r.o século XIII foi no sentido da «infernização». Se, como se verá, foi mesmo essa tendência que o Purgatório seguiu por fim, é na opção por uma pastoral do medo feita pela Igreja institucional da época - onde os inquisidores manipulavam a tortura simultaneamente cá em baixo e no além - que se deve procurar a razão. No Comentário às Máximas, que deve ter seguido de perto o De Resurrectione, o tratamento dado por Alberto, o Grande, ao Purgatório é mais completo, mais aprofundado e apresenta uma certa evolução. São sempre, bem entendido, os destaques XXI e XLV do livro IV que dão lugar à exposição sobre o Purgatório. Resumindo o comentário do mestre dominicano, expo-lo-ei no seu desenvolvimento pois de novo ele valoriza o cunho pessoal de Alberto e revela qual o percurso percorrido até chegar a posições que nem sempre concordam exactamente com as do De
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Resurrectione.
No destaque XXI42 Alberto examina os seguintes pontos: é verdade que há pecados depois da morte como disse Cristo no Evangelho: «Aquele que pecar contra o Espírito Santo, isso não lhe será remido, nem neste século nem no século futuro» (Mateus, XII, 32)? Esses pecados são os pecados veniais a que Agostinho alude ao falar de madeira, de feno e de palha (I Corintios, Hl; 12)?Deve acreditar-se que essa purgação será feita por um fogo purgatório e transitório, e que esse fogo será mais severo do que tudo que o homem possa sofrer nesta vida (Agostinho, Cidade de Deus, XXI, 26) porque Paulo diz (I Corintios, lU; 15) que se será salvo como através do fogo (quasi per ignem ), o que deveria levar a desprezar esse fogo? Alberto examina estas perguntas e responde-Ihes em doze artigos: Artigo primeiro: Serão alguns pecados veniais remidos depois desta vida? A resposta é afirmativa e baseia-se nas autoridades, designadamente em Gregório, o Grande, no livro IV dos Diálogos, e em argumentos dos quais retenho dois: 1) depois da morte já não é altura para aumentar o mérito mas sim para utilizar o mérito (adquirido cá em baixo) nos fins para os quais ele é pertinente; 2) a própria pena da morte apagaria os pecados se fosse cumprida para esse fim, como sucede com os mártires, mas não é esse o caso com os moribundos vulgares (in aliis communiter morientibus). O Purgatório está estreitamente ligado à conduta geral cá em baixo no mundo e é feito para o comum dos mortais. Artigo 2: Que significa a edificação da madeira, do feno e da palha (paulo, I Corintios, lU; 12)? Resposta: as diferentes espécies de pecados veniais. Autoridades invocadas: S. Jerónimo e Aristóteles. Artigo 3: Qual é o alicerce desses edificios? Parece que não pode ser a fé, visto que a fé só está virada para as boas obras e os pecados veniais não são boas obras. Resposta: no fundo, o alicerce é mesmo a fé que conserva em nós a esperança. Os materiais dão ao edifício a sua substância, mas quanto às paredes, é a esperança inclinada para as coisas eternas; e no topo está o amor (charitas) que é o lugar da perfeição. A reflexão sobre o Purgatório implanta-se assim sobre uma teologia das virtudes fundamentais. O artigo 4 é crucial para Alberto. Trata-se, com efeito, de responder à pergunta: «Há ou não um fogo purgatório depois da morte?» De facto, como Lombardo não conhecia ainda o Purgatório, responder a esta pergunta era comprometer-se, ao mesmo tempo, com a existência do Purgatório e com a do fogo purgatório, tanto mais delicada quanto está no centro dos debates contemporâneos sobre o Purgatório com os Gregos, e quando os «doutores do Purgatórios (a expressão é minha, não de Alberto), Agostinho e Gregório, o Grande, duvidaram desse fogo. Alberto, depois de examinar um certo número de autoridades e de objecções racionais, responde repetindo: «É a isso que chamamos Purga306
tório» Retoma o versículo de Mateus, XII, 31-32, o texto de Paulo, I Corintios, IH, 15, acrescenta-Ihes o testemunho de um narrador grego anônimo que, num espírito ecuménico, faz contribuir para um acordo sobre a existência do fogo purgatório depois da morte, utiliza também Aristóteles e, feito notável, o santo Anselmo do Cur Deus homo, traçando assim em proveito da existência do Purgatório uma impressionante linha filosófica e teológica, desde os antigos gregos até ao século XII Iatino e grego. Aborda em seguida, como é seu hábito e como fazem geralmente os escolásticos, os argumentos racionais, enumerando as vantagens de uma purgação depois da morte. A todas as objecções Alberto responde misturando habilmente o adjectivo (purgatorius,fogo subentendido) e o substantivo purgatorium: «De qualquer maneira é necessário, segundo a razão e a fé, que haja um (fogo) purgatório (purgatorius), Estas razões são principalmente morais e delas resulta, de maneira concordante, que existe um Purgatório (purgatorium).»
Quanto às hesitações de Agostinho, Alberto afirma que elas não' diziam respeito à existência do Purgatório mas à interpretação do texto de S. Paulo. Lembra que, por outro lado, outros santos falaram expressamente do Purgatório e que negar a sua existência é uma heresia. Alberto, seguido pelo seu discípulo Tomás de Aquino, vai neste ponto mais longe do que qualquer outro teólogo do seu tempo. No que diz respeito às razões «morais», Alberto não se refere ao fogo e volta aos problemas da purgação. Desfaz as objecções contra o Purgatório refutando o paralelismo entre o bem e o mal, acrescentando à balança da justiça o peso do amor e afirmando que Deus «depois da morte só recompensa o que se lhe assemelha pelo amor e não condena senão os que se desviaram dele e o odeiam ... Nenhum dos que são purgados será condenado.» O artigo 5 responde a uma pergunta ao mesmo tempo teórica e prática: «Porque é que as penas do Inferno têm vários nomes e as do Purgatório só um, que é o fogo?» É que, segundo Alberto, o Inferno é feito para punir e há muitas maneiras de punir, por exemplo pelo frio assim como pelo calor. O Purgatório, em compensação, que é feito para purgar, não pode fazê-lo senão com um elemento que tenha força purgativa e consumptiva. Não é o caso do frio mas é o caso do fogo. Aqui Alberto faz visivelmente apelo ao seu gosto pelas ciências naturais. Depois de no artigo 6 ter completado a sua exegese da primeira epístola aos Corintios, a propósito do ouro, da prata e das pedras preciosas, e recorrendo também ele à distinção aristotélica entre a luz, a chama e a brasa, Alberto aborda no artigo 7 o problema da purgação voluntária e involuntária. Conclui que as almas querem ser purgadas e salvas mas que querem ser purgadas no Purgatório só porque não têm 307
outra possibilidade de serem salvas e libertas. A sua vontade é condicioO artigo 8 diz respeito aos pecados veniais dos condenados. Parece um exercício escolar: os condenados são-no para todo o sempre não pelos seus pecados veniais mas pelos seus pecados mortais. O artigo 9 apresenta, como em Boaventura, a questão de saber se as almas no Purgatório são punidas pelos demónios. Como o doutor franciscano, Alberto pensa que os demónios não são os ministros dos pecados do Purgatório, mas não tem a certeza. Em compensação, avança uma hipótese interessante para as visões do além: pensa que os demónios se deleitam com o espectáculo das penas das almas do Purgatório e que por vezes assistem a ele. «E, diz ele, o que se lê às vezes», e explica assim uma passagem da Vida de S. Martinho. Havia quem sustentasse que, como segundo essa Vida, o diabo ficava muitas vezes à cabeceira do santo, e sabia, segundo as suas obras, que ele não seria condenado, era por isso que esperava poder levá-I o para o Purgatório quando morresse. A hipótese de Alberto destrói esta interpretação. O artigo 10 trata longamente - a actualidade obriga ... - do «erro de alguns gregos que dizem que ninguém entre no Céu ou no Inferno antes do dia do Julgamento, e antes fica em lugares intermédios (in locis mediis) à espera de ser transferido (após o Julgamento) para um ou para outro». No fim de um debate em que expõe demorada e objectivamente as concepções dos gregos, Alberto conclui que sem dúvida alguma se pode ir para o Céu ou para o Inferno quer logo a seguir à morte quer entre a morte e o Julgamento Final - o que legitima o tempo do Purgatório e permite acreditar que as almas saem de lá mais ou menos depressa, o que, por sua vez, justifica os sufrágios. Alberto baseia a sua conclusão, em que repete que a recusa desta opinião é uma heresia e até uma heresia muito grave (haeresis pessima}, no Evangelho (Lucas, XXV, 43 e XVI, 22), no Apocalipse (VI, lI) e nas epístolas de Paulo (Hebreus, Il, 40) e ainda em argumentos racionais, como de costume. Entre estes argumentos retenho um especialmente interessante para o contexto sócio-ideológico da época. Do lado grego argumenta-se que os mortos formam uma comunidade e que, à maneira das comunidades urbanas onde se decide em comum (in urbanitatibus in quibus in communi decertatur'l ), a decisão para o conjunto dos eleitos e dos condenados tem de ser tomada e executada no mesmo momento. Alberto, por seu turno, faz notar que não é justo não dar aos trabalhadores (operarii ) o seu salário logo que tenham acabado de trabalhar e recorda que se vê (videmus ) a pessoa que contratou trabalhadores agrícolas dar um prémio (consolatio specialis) aos trabalhadores melhores'". Ora - é uma ideia cara a Alberto - se se fala de salário justo (problema teórico e prático do seu tempo), não se deve es-
quecer que Deus é supremamente justo. Ser-se-ia tentado a dizer que ele é () mais justo dos patrões, dos «dadores de trabalho». Os artigos 11 e 12 tratam da confissão e não falam do Purgatório mas, ao evocarem os problemas da culpa (culpa), os pecados mortais e veniais, tocam nele indirectamente. Encontramos aqui o contexto penitencial em que, de Lombardo a Alberto, o Grande, se desenrolou o debate teológico Nobreo novo Purgatório. É no artigo 45 da primeira parte do destaque XLIV deste comentário que Alberto, o Grande, nos dá a melhor exposição, que seja do meu conhecimento, do sistema geográfico do além no século XIII. A questão posta é: «Há cinco receptáculos para as almas depois de ficarem separadas dos corpos?». A solução é a seguinte: «A isso devo dizer que os receptáculos das almas são diversos e diversificam-se assim. São um lugar de desfecho ou de passagem. Se se trata de um lugar de desfecho, são dois: segundo o mau mérito o Inferno, segundo o bom mérito o Reino dos Céus. Mas o desfecho segundo o mau mérito, quer dizer o Inferno, é duplo segundo o mérito próprio e segundo um pacto com a natureza; ao primeiro caso corresponde o inferno inferior dos condenados, ao segundo o limbo das crianças, que é o inferno superior ... Se se trata de um lugar de passagem, isso pode resultar da falta de mérito próprio ou da falta de pagamento do preço ... No primeiro caso é o Purgatório, no segundo o limbo dos patriarcas antes da vinda do Cristo'".» Portanto, só há de facto três lugares: o Paraíso, o Inferno, que se desdobra em geena e em limbo para as crianças (em vez do antigo inferno superior que prefigurava o Purgatório), e o Purgatório (também ele ligado a uma outra metade, o limbo dos patriarcas; mas este está vazio e fechado para sempre depois da descida do Cristo). Solução elegante para o problema dos três e dos cinco lugares, obtida por uma argumentação puramente abstracta, ainda que, evidentemente, haseada na Escritura e na tradição. Enfim, no artigo 4 do destaque XLV sobre os sufrágios dos defuntos, Alberto reafirma a eficácia dos sufrágios pelos defuntos do Purgatório, lembra que eles dependem do foro da Igreja, sublinha que o amor da Igreja militante (charitas Ecc/esiae militantis) é a fonte dos sufrágios e que se os vivos podem fazer com que os mortos beneficiem com os sufrágios, a inversa não é verdadeira'". Aprecia-se o enriquecimento desde o De Resurrectione. E certo que a natureza da obra conduzia Alberto mais ou menos para aí: partir de Lombardo levava-o a reencontrar o laço com o meio do nascimento do Purgatório, com a teologia dos sacramentos e da penitência, e a evocação dos sufrágios impunha o tema da solidariedade entre os vivos e os mortos. Mas sente-se que o pensamento de Alberto se aprofundou entretanto. A obrigação de produzir provas da existência do Purgatório faz com que
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nada.
r
exponha novos argumentos. O seu processo das «autoridades» enriqueceu-se e diversificou-se. A sua exegese dos textos, especialmente da primeira epístola de Paulo aos Corintios, degradou-se. Quando considera o que se passa no Purgatório concentra-se mais no processo da purgação do que nas penas. Trata mais longamente o tempo do Purgatório abordando a duração das estadas individuais mais ou menos longas, enquanto no De Resurrectione se contentara com dizer que o Purgatório duraria até ao Julgamento Final mas não para além dele. Ao falar dos sufrágios invoca a comunhão dos santos e recorre a comparações que inserem o texto numa visão aguda das realidades económicas, sociais, políticas e ideológicas do seu tempo. Enfim, reúne numa só exposição o sistema dos lugares do além, e ao precisar que o limbo dos patriarcas só existiu até à vinda do Cristo, reduz o sistema dos cinco lugares a quatro e na realidade a três, quer dizer à lógica profunda da geografia do outro mundo cristão. Alberto, o Grande, é, entre os eclesiásticos, aquele que mais clara e firmemente tratou o Purgatório e que, talvez à custa de alguns silêncios e de algumas habilidades, lhe deu um estatuto teológico, se assim posso dizer, elevado, sem se opor às crenças comuns nem defender teses incompatíveis com elas.
2. Um manual de vulgarizacão
teológica
A sua influência prosseguiu através da obra de vulgarização teológica de um dos seus discípulos que, aliás, foi publicada com as obras completas de Alberto. Refiro-me ao Compendium theologicae veritatis (Compêndio da verdade teológica) elaborado pelo dominicano Hugo Ripelin, superior do convento dos pregadores de Estrasburgo entre 1268 e 1269, também chamado Hugo de Estrasburgo. Atribui-se-Ihe a data de 126847• No livro IV está explicada com clareza a geografia do além e o desaparecimento do seio de Abraão a propósito da descida do Cristo aos infernos. Para se saber a que inferno Cristo desceu deve notar-se que inferno tem dois sentidos e designa quer a pena quer o lugar da pena. No primeiro sentido diz-se que os demónios trazem sempre o inferno consigo. Se inferno designa o lugar da pena devem distinguir-se quatro (lugares). Há o inferno dos condenados onde se sofre a pena dos sentidos e da perda (privação da presença divina) e onde se encontram as trevas interiores e exteriores, quer dizer a ausência de graça: é um luto eterno. Por cima encontra-se o limbo das crianças onde se sofre a pena da perda mas não a dos sentidos, e lá existem trevas exteriores e interiores. 310
Por cima deste lugar há o Purgatório (Hugo emprega o masculino e não o neutro purgatorium, subentendendo portanto locus, lugar) onde existe a pena dos sentidos e da perda ao mesmo tempo, e há também as trevas exteriores mas não as interiores, pois pela graça existe lá a luz interior porque se vê que se será salvo. O lugar superior é o limbo dos pais santos (dos-patriarcas) onde houve a pena da perda mas não a dos sentidos, e também lá houve as trevas exteriores, mas não as trevas da privação da graça. Foi a este lugar que o Cristo desceu e de lá libertou os seus, e assim «mordem) o inferno, pois trouxe uma parte dele e deixou outra, mas no que toca aos eleitos Deus destruiu completamente a morte, como diz Oseias, XIII, 14: «Eu serei a tua morte, ó morte, serei a tua mordedura, Inferno.» Também se chamava a este lugar seio de Abraão, o céu do empíreo, pois Abraão está lá daqui em diante. Em nenhum destes lugares existe passagem para outro, excepto outrora do terceiro para o quarto, quer dizer do Purgatório para o limbo dos pais santos (patriarcasj'".
purgatorius
°
Se este texto lembra as concepções de Alberto, o Grande, nos Comentários às Máximas, deve notar-se que o Purgatório é apresentado num conjunto infernal e não está tão nitidamente separado do limbo das crianças, que Alberto colava ao Inferno depois de ter afastado dele o Purgatório. A este respeito, Hugo é mais conservador do que Alberto, e a sua concepção revela o processo de «infernização» do Purgatório. Em compensação, o seu esforço de racionalização coloca-se mais deliberadamente numa perspectiva histórica, aliás fiel à do espírito de Alberto. O desaparecimento histórico do seio de Abraão está muito bem realçado, mas sabemos que não foi a descida do Cristo aos infernos (quer dizer, em termos históricos positivos, os tempos evangélicos), que fez esbater-se ou subir aos céus o seio de Abraão, mas sim o nascimento do Purgatório na viragem do século XII para o século XIII. No que respeita ao Purgatório, o essencial encontra-se no livro VII Sobre os últimos tempos (de ultimis temporibus) onde preenche os capitulos 11 a VI entre o primeiro capítulo dedicado ao fim do mundo e os capítulos que tratam do Anticristo'". O Compendium começa por afirmar que o Purgatório é a esperança pois os que lá estão «sabem que não estão no Inferno». Muitas razões, acrescenta ele, fazem com que tenha de existir um Purgatório. Primeiro, como disse Agostinho, o facto de haver três espécies de homens: os muito maus, os muito bons e os nem muito maus nem muito bons que têm de se desembaraçar dos seus pecados veniais pela pena do Purgatório. As outras seis razões dependem essencialmente da justiça e da necessidade da purificação baptismal antes de se fruir a visão beatifica. Mas logo que são purgadas, as almas voam para o Paraíso, para a glória. A pena do Purgatório é dupla: pena da perda e pena dos sentidos e é muito severa (acerba). O fogo do Purgatório é simultaneamente corporal 311
e incorporal, não por metáfora mas por imagem, por semelhança «como um leão verdadeiro e um leão pintado» ambos reais mas, como diríamos hoje, com a diferença que separa um verdadeiro leão de um leão «de papel». Sobre a localização do Purgatório, Hugo remete ao que disse a propósito da descida do Cristo aos infernos e acrescenta que, estando o Purgatório situado, segundo a lei comum, num compartimento do Inferno, certas almas podem, por dispensa especial, purgar-se em certos locais onde pecaram, como revelam algumas aparições. Os sufrágios da Igreja (cap. IV) servem não para se obter a vida eterna mas para se ser libertado da pena, quer se trate de mitigação da pena quer de uma libertação mais rápida. Há quatro tipos de sufrágios: a oração, o jejum, a esmola e o sacramento do altar (missa). Estes sufrágios só podem beneficiar aqueles que cá em baixo no mundo mereceram poder tirar proveito deles após a morte. De uma maneira original e curiosa, o Compendium acrescenta que os sufrágios podem também aproveitar aos eleitos e aos condenados. Aos eleitos por acréscimo, pois a multiplicação dos eleitos por adjunção das almas libertadas do Purgatório aumenta a glória «acidental» do conjunto dos bem-aventurados. Aos condenados por diminuição pois, em sentido inverso, a diminuição do número de condenados aligeira a pena do seu conjunto. Se esta argumentação é especiosa no que toca aos eleitos, parece-me absurda no que aos condenados diz respeito. Aqui a máquina escolástica, ávida de simetrias, parece-me ter descarrilado. Enfim, como fizera Boaventura, o Compendium declara que os laicos não podem fazer os mortos beneficiar de sufrágios senão pela realização de boas obras. Os beneficiários de indulgências não podem transferi-Ias nem para os vivos nem para os mortos. Em compensação, o Papa e só ele pode dispensar aos defuntos, ao mesmo tempo, indulgências por autoridade e o sufrágio das boas obras por amor (charitas). Assim a monarquia pontifical estende para fora do domínio do mundo cá em baixo o seu poder sobre o além: passa a enviar - por canonização - santos para o Paraíso e a subtrair almas ao Purgatório.
definir em algumas páginas o lugar do Purgatório na mais completa estrutura teológica do século XIII, a de Tomás de Aquino. Tomás de Aquino tratou do Purgatório por várias vezes na sua ubra5o• Tomás, filho do conde de Aquino, nascido no castelo de Roccasecca na Itália do Sul no fim de 1224 ou no princípio de 1225, ingressado nos dominicanos em Nápoles em 1244, faz os seus estudos em Nápoles, em Paris e em Colónia com Alberto, o Grande. E quando é bacharel de Máximas em Paris, entre 1252 e 1256, que elabora não um verdadeiro comentário aos Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo mas um Escrito (Scriptum ), uma série de perguntas e debates sobre esse texto. Nele fala evidentemente do Purgatório nas questões XXI e XLV no livro IV. Definiu-se o plano do Scriptium de Tomás como resultante de uma organização «totalmente centrada em Deus». É composto por três partes: «Deus no seu ser, as criaturas como vindas de Deus, as criaturas como regressadas a Deus".» A terceira parte, dedicada ao regresso (redditus), desdobra-se. É no segundo painel desta terceira parte que se trata do Purgatório. Tomás trata também do Purgatório em vários escritos polémicos contra os Muçulmanos, os Gregos e os Arménios e, de maneira mais genérica: os pagãos, incluindo também provavelmente Judeus e hereges. São leitos em Itália, a maioria em Orvieto, em 1263 e 1264: são o Contra errares Grecorum (Contra os erros dos Gregos) composto a pedido do Papa Urbano IV, o De rationibus fidei contra saracenos, Graecos et Armenos ad Cantarem Antiochiae (Das razões de fé contra os Sarracenos, os Gregos e os Arménios, para o chantre de Antioquia) e o livro IV da Summa contra Gentiles (Súmula contra os pagãos). Falarei deles mais adiante
Esforcei-me por mostrar como alguns grandes escolásticos falaram do Purgatório, afirmando com veemência a sua existência mas mantendo algumas hesitações quanto à sua localização, mostrando-se discretos sobre os seus aspectos mais concretos e concedendo-lhe um lugar relativamente insignificante no seu sistema teológico. É ainda hoje delicado
ao tratar do Purgatório nas negociações entre Gregos e Latinos. O Purgatório aparece ainda no De Maio (Do Mal), debates travados em Roma em 1266-1267. Tomás de Aquino morre a 7 de Março de 1274 na abadia cisterciense de Fossanova quando ia a caminho do 11concílio de Lyon. Deixa inacabada a sua grande obra, a Súmula teológica (Summa theologiae ) onde, à maneira de Boaventura no Breviloquium, mostra a sua preocupação em retomar numa exposição mais pessoal (e, ao contrário de Boaventura, muito mais vasta) os problemas abordados no Scriptum sobre os Quatro Livros de Máximas de Pedro Lombardo. Um grupo de discípulos dirigidos por Reginaldo de Piperno termina a Súmula acrescentando-lhe um Suplemento tirado no seu essencial de escritos anteriores de S. Tomás e mais especialmente do Scriptum. É esse o caso no que diz respeito ao Purgatório que, fazendo parte da exposição sobre «os fins últimos», aparecia quase no fim da obra. Vou concentrar a minha análise no Suplemento reportando-me, quanc do ror caso diISSO, ao S'cnptum 52 .
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3. O Purgatório no centro da intelectualidade: so do homem a Deus
Tomás de Aquino e o regres-
Compreendo as objecções que esta escolha pode suscitar. O Suplemento não é um texto autêntico de S. Tomás, mesmo tendo sido redigido por discípulos conscienciosos e respeitadores, desejosos de utilizar apenas textos do próprio Tomás. A montagem dos excertos deforma o pensamento de Tomás e trai-o duplamente: tornando-o mais rigido e ' empobrecendo-o, fazendo de uma fase relativamente antiga da sua doutrina o coroar do seu edificio teológico. Mas o Suplemento não tem apenas a vantagem da citação textual e da coerência; representa aquilo que o clero da Baixa Idade Média considerou ser a posição definitiva de Tomás sobre os problemas do além. A questão LXIX do Suplemento diz respeito à ressurreição e, em primeiro lugar, aos «receptáculos das almas depois da morte» (é a questão I do destaque XLV do comentário do livro IV das Máximas). Parece que 01 autores do Suplemento vêem o programa da Súmula duma maneira predominantemente linear, marcada por sinais cronológicos do tipo «antes, durante, depols'?». Na perspectiva do redditus, do regresso da criatura aDeus, orienta todo o processo a partir desse fim e não de uma trajectória histórica. No capítulo seguinte tentarei explicar a ideia do tempo do Purgatório para a massa dos fiéis do século XIII como sendo uma combinação de tempo escatológico e de tempo sucessivo. De todos os grandes escolásticos do século XIII, S. Tomás parece-me o mais alheio à experiência comum dos homens do seu tempo no que respeita aos fins últimos. E, na mais forte acepção do termo, um pensamento arrogante. Neste pensamento de eternidade, o lugar de uma realidade tão transitória como o Purgatório não é muito importante, tanto mais que lá a criatura já não tem mérito. Tenho a impressão de que Tomás trata do Purgatório como de uma questão imposta, uma «questão que está no programa», para usar a giria universitária, e não um problema fundamental. Usando um vocabulário que não é o seu, direi que o Purgatório lhe parece «vulgar». Creio que devo manter na doutrina tomista do Purgatório a relativa rigidez que lhe deu o Suplemento. A questão da morada das almas depois da morte divide-se em sete artigos: «I) Há determinadas moradas destinadas às almas depois da morte? 2) Elas vão para lá logo depois da morte? 3) Podem sair de lá? 4) A expressão "o seio de Abraão" designa um limbo do Inferno? 5) Esse limbo é o mesmo que o Inferno dos condenados? 6) O limbo das crianças é o mesmo que o dos patriarcas? 7) Deve distinguir-se um número preciso de receptáculos?» À primeira pergunta Tomás responde pela afirmativa mas depois de ter partido de duas opiniões aparentemente contrárias de Boécio (ea opinião comum dos sábios é que os seres incorpóreos não estão num lugar») e de Agostinho (XII Super Genesim ad litteram) que são, como é sabido,
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os seus pensadores cristãos preferidos. Aliás, dá dessa loc~lização uma definição abstracta: «As almas separadas ... podem .ser.destinados cert?s lugares corpóreos correspondentes ao seu grau de dignidade» e elas estao lá «como num lugar» (quasi in loco). Voltam~s a encontrar o fam~so quasi que recorda o quasi pe~ ignem de Ag~stl~h?, ~m compe~saçao, de Aquino faz com que a mais elevada e mais dinanuca concepçao teológica e a psicologia comum se encontrem, quando declara que «as almas, pelo facto de saberem que tal ou tal lugar lhes está desti~ad?, ficam por isso alegres ou tristes: é assim que a sua morada contribui para a sua . 54 recompensa ou para o seu castigo ». _. _ No artigo 2, ele conclui - baseando-se na comparaçao da graVItaça~ dos corpos: «Como o lugar que é destinado a uma alma corresponde a recompensa ou ao castigo que ela mereceu, logo que essa alma sal do corpo ou fica submersa no Inferno ou voa. pa~a o ~~u, a menos que, neste último caso, uma dívida para com a Justiça divina retarde o seu . _ ,. 55 voo, obngando-a a uma purgaçao previa .» No decorrer da discussão, para justificar a saída das almas do Purgatório antes do Julgmento Final onde todos os corpos, cujas almas o tiverem merecido se tornarão gloriosos em conjunto, ele declara, em resposta aos argumentos dos teóricos da comunidade (os urbanitates de Albert~, o Grande) e dos gregos: «A glorificação simultânea de todas as almas Impõe-se menos do que a de todos os corpos.», ., , . O artigo 3 trata dos espectros, esse grande capitulo do imagmano das 56 sociedades excessivamente ignorado até agora pelos historiadores . T~más de Aquino está visivelmente pr~ocupa?o com a nat~r~~ das apanções, visões e sonhos, com a sua mamfestaça? durant~ a ~gíhll; ou o son~, com o seu carácter aparente ou real. A SOCIedadecnsta medieval dominou maios seus sonhos e a respectiva interpretação 57 . Eleitos, condenados e almas do Purgatório podem, segundo Tomás, que tem em conta, ainda que com relutância visível, a literatura das visões: sair ~os seus respectivos lugares no além e aparecer aos vivos. Deus so permite estas saídas para instrução dos vivos e, no caso dos condenados e em men~r grau das almas do Purgatório, para os aterrori~ar (ad terr~re?,,), Os eleitos podem aparecer à sua vontade, os outros 80 com p~r~llss~o de Deus. Tanto com os eleitos como com os condenados, as apançoes sao, graças a Deus (sou eu que o digo, mas suponho não estar a forçar a opinião de Tomás), raras: «Os mortos, se vão para o Céu, a sua união com a vontade divina é tal que nada lhes parece permitido que não seja conforme com.as disposições da Providência; se estão no Inferno, sentem-se de tal maneira esmagados pelas suas penas que pensam mai~ em se lame~t~r do que em aparecer aos vivos.» Restam aqueles q~e e~tao no Purgatório, como testemunha Gregório, o Grande. Esses «vem Implorar sufrágios», I?~s também a eles, como se verá, Tomás tem o cuidado de limitar ao mmimo os
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passeios. Em compensação, a partida para o Céu das almas purgadas ne Purgatório é normal. Artigo 4: O seio de Abraão era bem um limbo do Inferno mas depois da descida do Cristo aos infernos já não existe. Aqui Tomás segue 01 ensinamentos do seu mestre Alberto, o Grande. No artigo 5 ele precisa que «o limbo dos patriarcas ocupava provavelmente o mesmo lugar que O Inferno ou um lugar próximo, ainda que superior». O artigo 6 distingue O limbo das crianças e o dos patriarcas. O primeiro ainda existe mas, como essas crianças apenas são culpadas do pecado original, não são passíveis senão das punições mais leves e o próprio Tomás interroga-se se, em vez de punição, não se tratará de um atraso da glorificação (di/a tio gloriae~. No artigo 7 Tomás esboça uma tipologia dos receptáculos do além 8. Primeira hipótese: «Se os receptáculos correspondem ao mérito ou ao desmérito» deveria então haver duas moradas no além: o Paraíso para O . mérito e outra morada :para o desmérito. Segunda hipótese: «E num mesmo e único lugar que os homens durante a vida merecem ou desmerecem.» É então possível admitir uma mesma e única morada destinada a todos depois da morte. Terceira hipótese: esses lugares devem corresponder aos pecados que podem ser de três espécies: original, venial e mortal. Deveria então haver três receptáculos. Pode também pensar-se no «ar tenebroso que é representado como a prisão dos demónios» e no Paraíso terrestre onde se encontram Henoch e Elias. Há, portanto, mais de cinco receptáculos. O que não é tudo. Pode ainda pensar-se que é preciso um lugar para a alma que deixa o mundo só com o pecado original e pecados veniais. Não pode ir para o céu nem para o limbo dos patriarcas visto que não possui a graça, nem para o limbo das crianças visto que lá não existe pena dos sentidos, devido ao pecado original, nem para o Purgatório porque não se fica lá sempre, quando lhe é devida uma pena eterna, nem para o Inferno, visto que só o pecado mortal condena a ele. Curiosa hipótese que leva em conta o limbo dos patriarcas que foi definitivamente fechado pelo Cristo e que concebe o pecado venial como uma culpa não remível depois da morte, não dependendo do Purgatório. Mas, como os receptáculos correspondem ao mérito e ao desmérito dos quais existe um número infinito de graus, pode também distinguir-se um número infinito de receptáculos para o mérito ou para o desmérito. Também não se pode excluir que as almas sejam punidas cá em baixo nos locais onde pecaram. E assim como as almas em estado de graça mas carregadas de pecados veniais têm uma morada especial, o Purgatório, distinto do Paraíso, também as almas em estado de pecado mortal mas que realizaram algumas obras boas pelas quais deveriam ser recompensadas, devem ter um receptáculo especial, distinto do Inferno. Enfim, assim como, antes da vinda do Cristo, os Pais esperavam a glória da alma, 316
esperam agora a glória do corpo. Assim como esperavam num receptáculo especial antes da vinda do Cristo, deveriam agora esperar noutro lugar diferente daquele para onde irão após a ressurreição, ou seja, o Céu. Depois de percorrer assim as hipóteses, Tomás dá a sua solução: os receptáculos das almas são diferentes conforme os seus diferentes estados. Aqui Tomás usa um termo, status, que vai conhecer grande êxito no século XIII; designa tanto as diversas condições socioprofissionais dos homens cá em baixo, como os diferentes estatutos jurídicos, espirituais e morais dos indivíduos. A sua principal referência é de natureza jurídica. Detecta-se nela a influência do direito sobre a teologia. As almas em estado de receber no momento da morte a recompensa final em bem vão para o Paraíso, as almas em estado de a receber em mal vão para o Inferno, as que estão carregadas apenas com o pecado original vão para o limbo das crianças. A alma cujo estado não lhe permite receber a retribuição final vai para o Purgatório, se é por causa da pessoa; se é .6 por causa da natureza iria para o limbo dos patriarcas, mas este já não existe desde a descida do Cristo aos infernos. Tomás justifica então esta solução. Baseando-se no pseudo-Dionísio e em Aristóteles (Ética. 11,8, 14), afirma que «há uma única maneira de ser bom, mas muitas de ser mau». Portanto, só há lugar para a recompensa do bem, mas vários para os pecados. Como morada, os demónios não têm o ar mas o Inferno. O Paraíso Terrestre refere-se ao mundo cá em baixo e não faz parte dos receptáculos do além. A punição do pecado nesta vida está fora de questão, pois não arranca o homem ao estado de mérito ou de desmérito. Como o mal nunca se apresenta no estado puro e sem mistura de bem e, reciprocamente, para atingir a beatitude, que é o bem soberano, é preciso ser-se purgado de todo o mal, e se não for esse o caso no momento da morte, tem de existir para essa purgação completa um lugar depois da morte. É o Purgatório. E Tomás acrescenta que aqueles que estão no Inferno não podem estar privados de todo o bem; as boas obras realizadas nesta terra podem valer aos condenados uma mitigação da pena. Sem o citar, Tomás lembra-se aqui sem dúvida de Agostinho e da sua hipótese de uma «condenação mais tolerável» para os «não inteiramente maus». Existem assim quatro moradas abertas no além: o Céu, o limbo das crianças, o Purgatório e o Inferno; e uma fechada, o limbo dos patriarCIlS. Se bem que a existência de um lugar para a purgação depois da morte não lhe ofereça qualquer dúvida em si, Tomás não se interessa pelo seu carácter intermédio mas pela sua existência temporária. Na perspectiva de eternidade em que se coloca, só há três lugares verdadeiros no além: o P .iraiso celestial, o limbo das crianças e o Inferno. De lodos os sistemas escolásticos, o sistema tomista é o que tem a visão mais completa e mais rica dos problemas respeitantes aos lugares do 317
-.------------11 além, mas é também o mais «intelectual», o mais distante da mentalidade comum da sua época. A questão LXX trata da condição da alma separada do corpo e da pena que lhe é infligida pelo fogo corpóreo. Corresponde a uma parte (questão XXXIII, artigo 3) do Scriptum sobre o destaque XLIV do livro IV das Máximas de Pedra Lombardo. Nela Tomás defende a concepção de um fogo corpóreo. O Suplemento apresenta aqui uma questão sobre a pena devida ao pecado original sozinho, quer dizer o limbo das crianças, e uma questão sobre o Purgatório que os editores da edição leonina'" colocam em apêndice. Têm sem dúvida razão, pois o projecto de Tomás não parece dever inscrever-se nessa altura dos desenvolvimentos que interrompem o movimento da exposição dos fins últimos no plano de conjunto da Súmula. E sublinham ao mesmo tempo que o Purgatório não era uma peça essencial no sistema da Súmula. Mas vou tratá-lo agora porque o meu propósito, esse, centra-se no Purgatório. A questão sobre o Purgatório apresenta oito perguntas'", I) Existe um Purgatório depois desta vida? 2) As almas são purgadas e os condenados punidos no mesmo lugar? 3) A pena do Purgatório excede qualquer pena temporal nesta vida? 4) Essa pena é voluntária? 5) As almas do Purgatório são castigadas pelos demónios? 6) O pecado venial é expiado pela pena do Purgatório quanto à culpa? 7) O fogo purgatório liberta da imputação da pena? 8) Desta pena uns são libertados mais depressa do que outros? A justiça de Deus, responde Tomás à primeira pergunta, exige que aquele que morreu depois de se ter arrependido dos seus pecados e de ter recebido a absolvição mas não terminou a sua penitência seja punido depois da morte. Portanto «aqueles que negam o Purgatório falam contra a justiça divina: é um erro que afasta da fé». O apelo aqui feito à autoridade de Gregório da Capadócia surge como uma habilidade na polêmica com os gregos. E Tomás acrescenta que «visto que a Igreja ordena "que se reze pelos defuntos para que eles sejam aliviados dos seus pecados", o que não pode visar senão aqueles que estão no Purgatório, quem nega o Purgatório resiste à autoridade da Igreja e é herege». Adere assim à opinião de Alberto, o Grande. À segunda pergunta Tomás responde com uma geografia do além um tanto diferente da topografia e dos argumentos apresentados na questão XLIX que acabámos de ver. Esta diferença não parece ter incomodado os autores do Suplemento, mas é uma razão mais para rejeitar esta questão em apêndice, como fizeram os editores da edição leonina. Devemos agora examinar esta outra hipótese da localização do Purgatório. «A Escritura nada diz de preciso sobre a localização do Purgatório», nota Tomás, e não existe argumento racional decisivo'". Mas, segundo as declarações 318
dos santos e as revelações feitas a muitos vivos, é provável que o lugar tio Purgatório seja duplo. De acordo com «a lei comum», o lugar do
Purgatório é um lugar inferior (subterrâneo) contíguo ao Inferno e é o mesmo fogo que queima os justos no Purgatório e os condenados, que estão, no entanto, num lugar situado por cima. Segundo «a distribuição» vê-seque alguns são punidos em diversos lugares cá em baixo «seja para edificação dos vivos, seja para alívio dos mortos, que dão a conhecer aos vivos a sua pena para que estes a suavizem com os sufrágios da Igreja. Todavia, Tomás é hostil à ideia de que se faça o Purgatório no lugar onde IIC pecou. E também aqui está visivelmente preocupado em restringir ao , . mmnno a presença de espectros na terra 62 . Enfim, Tomás recusa a opinião dos que pensam que, segundo a lei comum, o Purgatório está situado por cima de nós (ou seja, no céu), pois IlS almas do Purgatório seriam intermediárias entre nós e Deus quanto ao estatuto. Impossível, responde ele, visto que elas são punidas não pelo que têm de superior, mas pelo que têm em si de inferior. Argument~ bem especioso, próximo do jogo de palavras, e que lembra as falsas etimologias ao gosto do clero medieval. Seja como for, esta observação é interessante porque mostra que Tomás participa na «infemização» do Purgatório no século XIII, mas que havia membros do clero que pensavam que o Purgatório não era subterrâneo mas quase celestial. São os precursores de Dante que fará a montanha do Purgatório erguer-se sobre u terra, em direcção ao céu. Quanto à dureza da pena do Purgatório (terceira pergunta), Tomás acha que tanto na pena da perda como na pena dos sentidos, «o grau mínimo de uma e de outra ultrapassa a maior pena que se possa sofrer cá em baixo». A dureza da pena do Purgatório não provém da quantidade de pecado punido, mas da situação daquele que é punido, porque? pecado é punido mais duramente no Purgatório do que cá em baixo. E visível que Tomás não quer caucionar a ideia de que possa haver uma relação quantitativa entre o pecado cometido cá em baixo e as penas sofridas no Purgatório. Ainda que insista na justiça de Deus nestes problemas, não fala de proporcionalidade. Não se compromete seja como for na via de uma contabilidade do além. Pensando, em resposta à quarta pergunta, que a pena do Purgatório é voluntária, não porque as almas a desejam mas porque sabem que é a maneira de serem salvas, Tomás refuta a opinião dos que julgam que as almas do Purgatório estão de tal modo absorvidas nas suas penas que não sabem que estas as purgam e supõem-se condenadas. As almas do Purgatório sabem que serão salvas. Como Alberto, o Grande, Tomás pensa que não são os demónios que atormentam as almas do Purgatório, mas que é possível que eles as acompanhem até lá e se deleitem a vê-Ias sofrer. É a resposta à quinta pergun319
ta. Às sexta e sétima questões Tomás replica que o fogo purgatório purga de facto pecados veniais, mas aqui parece considerar esse fogo um fogo metafórico. Sobre este ponto parece partilhar as hesitações de Santo Agostinho. Enfim, se Tomás responde afirmativamente à questão de saber se no Purgatório alguns são libertados mais depressa do que outros (esboça então um comentário a I Corintios, 111,10-15) e se desta vez emprega a palavra «proporção», é para evocar, na apreciação da dureza das penas do Purgatório, a intensidade e a duração ao mesmo tempo. Quer decerto evitar que se instaure uma aritmética grosseira do tempo do Purgatório. Retomando o fio da sua exposição sobre os fins últimos, os autores do Suplemento põem Tomás, na questão LXXI, a tratar do problema dos sufrágios pelos mortos com a ajuda da segunda questão do destaque quarenta e cinco do Scriptum sobre o Livro IV das Máximas de Lombardo. É o tratamento mais aprofundado que conheço desta questão, antes do 'I o XIX 63 . Tomas ' responde a catorze perguntas: 1) Os sufrágios por secu um morto podem aproveitar a outro? 2) Os mortos podem ser ajudados pelas obras dos vivos? 3) Os sufrágios feitos por pecadores podem aproveitar aos mortos? 4) Os sufrágios feitos para os defuntos são úteis àqueles que os fazem? 5) Os sufrágios são úteis aos condenados? 6) São úteis aos que estão no Purgatório? 7) São úteis às crianças que estão no limbo? 8) São úteis aos bem-aventurados? 9) A prece da Igreja, o sacrificio do altar e a esmola são úteis aos defuntos? 10) As indulgências concedidas pela Igreja são-lhes úteis? 11) As cerimónias das exéquias são-lhes úteis? 12) Os sufrágios são mais úteis àqueles a quem se destinam do que aos outros defuntos? 13) Os sufrágios feitos para muitos ao mesmo tempo são tão úteis a cada um como se lhe fossem unicamente destinados? 14) Os sufrágios comuns são tão úteis aos que não têm outros como os sufrágios especiais e os sufrágios comuns aos que beneficiam de uns e de outros? Eis o essencial das respostas de Aquino, sobretudo na perspectiva do Purgatório, pela ordem que julgo não dever alterar com receio de me afastar mais do pensamento de Tomás: 1. Os nossos actos podem ter dois efeitos: adquirir um estado, adquirir um bem consecutivo a um estado, como uma recompensa acidental ou a remissão de uma pena. A aquisição de um estado só pode conseguir-se por mérito próprio. Assim é quanto à vida eterna. Em compensação, por causa da «comunhão dos santos» (sanctorum communio), é possível oferecer boas obras a outrem por uma espécie de doação: as preces conseguem-lhes a graça, cujo bom uso pode dar a vida eterna com a condição de que a tenham merecido por si mesmos. Equilíbrio admirável entre o mérito individual e a solidariedade, a caridade colectiva. 2. «O laço de amor que une os membros da Igreja não vale só para os vivos mas também para os defuntos que morreram em estado de amor
(charitas) ... Os mortos vivem na memória dos vivos ... e assim os sufrágios dos vivos podem ser úteis aos mortos». Ao afirmar isto, Tomás refuta a opinião de Aristóteles segundo o qual (Ética, I, 11) «não há comunicação possível entre os vivos e os mortos». Mas isto apenas serve para as relações da vida civil, não da vida espiritual, baseada na caridade, no amor de Deus «para quem os espíritos dos mortos estão vivos». É a mais bela exposição que encontrei dos laços entre os vivos e os mortos a propósito do Purgatório. 3. Sim, mesmo os sufrágios dos pecadores são úteis aos mortos porque o valor dos sufrágios depende da condição do defunto e não do que está vivo. Actuam, aliás, à semelhança dos sacramentos que são eficazes por si próprios, independentemente daquele que actua. 4. Na sua condição de satisfatório (expiatório da pena) o sufrágio passa a ser propriedade do defunto que é o único a poder beneficiar dele; mas na sua condição de meritório da vida eterna, pela caridade de que provém, pode ser útil àquele que o recebe e àquele que o dá. 5. Sim, segundo certos textos (designadamente 11 Macabeus, XII, 40) os sufrágios podem ser úteis aos condenados, mas Tomás pensa que se deve entender a condenação no sentido mais lato, e que isso vale sobretudo para a pena do Purgatório. De qualquer maneira, tem a ver com milagre e deve acontecer raramente (talvez fosse o caso do imperador Trajano). Tomás aproveita para refutar as opiniões de Corígenes de Prêvostin, dos discípulos de Gilbert de Ia Porrée e de Guillaume d' Auxerre. E refuta de novo, desta vez muito explicitamente, toda a ideia de proporcionalidade, mesmo que apoiada por uma citação de Gregório, o Grande. 6. Os sufrágios são úteis aos que estão no Purgatório e são-lhes mesmo especialmente destinados, pois Agostinho disse que os sufrágios se dirigem aos que não são nem inteiramente bons nem inteiramente maus. E a multiplicação dos sufrágios pode até anular a pena do Purgatório. 7. Estes sufrágios são inúteis às crianças mortas sem baptismo, que não estão em estado de graça, pois não podem mudar o estado dos defuntos. 8. São também inúteis aos bem-aventurados visto que o sufrágio é uma ajuda que não convém, portanto, àquele a quem nada falta. 9. A condição da utilidade dos sufrágios é a união no amor (charitas) entre «os vivos e os mortos». Os três sufrágios mais eficazes são a esmola, como principal efeito da caridade, a oração, o melhor sufrágio segundo a intenção, e a missa, pois a eucaristia é a fonte de caridade e é o único sacramento cuja eficácia é comunicável. As missas mais eficazes são as que incluem preces especiais pelos defuntos, mas a intensidade da devoção de quem a celebra ou a manda celebrar é essencial. O jejum também é útil, mas menos, porque é mais exterior. O mesmo acontece com a oblação de velas ou de óleo enaltecida por S. João Damasceno.
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10. Sim, a indulgência é aplicável aos mortos pois «não há razão para que a Igreja possa transferir os méritos comuns, fonte das indulgências, para os,vivos e não para os mortos». Sobre este ponto a cautela de Tomás falha. E demasiado «homem de Igreja». 11. Tomás é ainda mais liberal do que Agostinho de quem se reclama, no que respeita à utilidade das pompas fúnebres. Agostinho dizia que «tudo o que se faz pelo corpo dos defuntos de nada lhes serve para a vida eterna, e não passa de um dever de humanídades'". Para Tomás o cerimonial do enterro pode ser indirectamente útil aos mortos, dando ocasião a boas obras a favor da Igreja e dos pobres, e incitando à oração pelo defunto. Melhor ainda, sepultar um defunto num santuário ou num lugar santo, com a condição de não ser por vã glória, pode valer ao morto a ajuda do santo junto do qual tenha sido enterrado. Nisto, Tomás é bem do seu tempo e da sua ordem. Dominicanos (e franciscanos) acolhem e até atraem a sepultura dos laicos (principalmente dos poderosos e dos ricos) para as suas igrejas e cemitérios, e os laicos procuram cada vez mais o favor de beneficiar da sepultura nas igrejas, até aí reservada ao clero e aos religiosos. Mas o mais interessante neste artigo é talvez o facto de S. Tomás, apoiando-se num versículo de S. Paulo (Efésios, V, 29): «Ninguém odiou jamais a sua própria carne», declarar que «fazendo o corpo parte da natureza humana, é natural que o homem o ame». Está-se longe do desprezo monástico tradicional pelo corpo, «essa abominável vestimenta da alma»65. 12. Apesar da comunhão dos santos, Tomás pensa que os sufrágios são úteis principalmente àqueles a quem são destinados mais do que a outros, porque para ele conta sobretudo a intenção do vivo que faz o sufrágio, visto que o morto não pode já merecer mais. Não se deixa convencer pelo argumento segundo o qual os ricos podem ser mais bem ajudados por este sistema individual no Purgatório do que os pobres. A expiação da pena, responde ele, não é quase nada em comparação com a posse do reino dos céus, e aí os pobres são favorecidos. 13. «Aquele que reza não pode, com a mesma oração, satisfazer igualmente vários ou um só.» Tomás inclina-se aqui decididamente para o indivíduo, se não para o individualismo. 14. «Pode acreditar-se que,por efeito da misericórdia divina, o excedente dos sufrágios especiais, superabundantes para aqueles a quem são destinados, é aplicado a outros defuntos que estão privados de tais sufrágios e que têm necessidade de ajuda». Ao longo de todas estas questões, Tomás mostrou-se sensível aos problemas da dívida, da transferência de bens. O seu vocabulário serve-se naturalmente da terminologia jurídico-económica. Tomás recusa a contabilidade do além mas não afasta dele certas transacções que lembram mais o meio dos pequenos nobres endividados do que o dos comerciantes.
Será necessário dizer que o seu pensamento continua sempre fundamentalmente religioso? Continua a preocupar-se mais com estados do que com coisas, com condições do que com lugares, com ser do que com ter. Falta completar ou matizar a exposição do Suplemento com a ajuda de duas passagens das obras autênticas de S. Tomás que permitem também observar a evolução do seu pensamento sobre este ou aquele ponto, desde o Scriptum sobre as Máximas de Pedro Lombardo. Na parte - a mais importante - da Súmula teológica escrita pelo próprio Tomás, noto duas passagens em que se trata do Purgatório. No artigo VIII da questão LXXXIX da primeira parte da Súmula Tomás trata das aparições de mortos, dos espectros. Faz notar que estas aparições se devem incluir entre os milagres de Deus que permite que elas aconteçam quer por acção dos anjos bons, quer por acção dos demónios. Tomás assemelha estas aparições às que se produzem em sonhos e sublinha que nos dois casos elas podem suceder com o desconhecimento dos mortos, que são no entanto o seu conteúdo. De facto, Tomás não evoca aqui o Purgatório - ainda que fale dos sufrágios pelos mortos - e, curiosamente, não faz alusão ao caso particular em que os espectros estão bem conscientes da sua sorte e da sua condição de espectros, visto que vêm implorar os sufrágios dos vivos. Sente-se aqui de novo a inquietação de Tomás face a esses vagabundos do além a quem procura limitar tanto quanto possível o número e a independência. São inteiramente manipulados por Deus e não podem obter licença para sair do seu receptáculo ou da sua prisão senão «por uma dispensa especial de Deus» (per specialem Dei despensationem), A bem dizer, o mais interessante para a nossa pesquisa é que Tomás reintegra aqui as suas teorias sobre a alma separada (do corpo) numa reflexão sobre os lugares e as distâncias (distantia localis, artigo VII desta questão LXXXIX). A separação é um obstáculo ao conhecimento? Os demónios são favorecidos pela rapidez e a agilidade dos seus movimentos (celeritas motus, agilitas motus)? Distância espacial especialmente importante em relação à luz divina, mas também distância temporal, pois as almas separadas poderão conhecer o futuro? Tomás, se está reticente quanto a uma espacialização «vulgar» das situações no além, está também consciente da importância de uma reflexão abstracta sobre o lugar e o tempo ligados um ao outro mas segundo sistemas diferentes: porque a distância espacial e a distância temporal não dependem de uma mesma «razão» 66. No artigo XI da questão VII do De Maio (Do Mal, 1266-1267) Tomás pergunta-se ainda se os pecados veniais são remidos depois da morte, no Purgatório. A sua resposta é, bem entendido, afirmativa, mas o que lhe interessa é demonstrar que entre pecado mortal e pecado venial não existe uma diferença de gravidade mas uma diferença de natureza. Por outro lado, volta ao problema da culpa (culpa) e da pena. No Scriptum sobre
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o livro IV das Máximas, ele pensara, como Lombardo, que «na outra, vida o pecado venial é remido, mesmo quanto à culpa, pelo fogo do purgatório, àquele que morre em estado de graça, porque essa pena, sendo de certo modo voluntária, tem a virtude de expiar todas as faltas compatíveis com a graça santificante». Mas no De Maio «o pecado venial já não existe no Purgatório quanto à culpa; logo que a alma justa se liberta dos laçoa do corpo, um acto de caridade perfeita apaga a sua culpa da qual apenas restará a pena a expiar, estando a alma num estado em que lhe é impossível merecer uma diminuição ou o perdão dessa pena 67». Como sempre, o que interessa a Tomás é o pecado, a condição da alma, e não as contingências de um lugar transitório a cujo respeito se contenta em definitivo com afirmar a existência, porque ele está na Fé o na autoridade da Igreja e é conforme às demonstrações racionais das relações entre Deus e o homem.
A recusa do Purgatório
1. Os hereges Em oposição à aprovação escolástca do Purgatório, temos a recusa dos hereges e dos gregos. A oposição dos hereges do Purgatório assenta tanto no plano teórico como no plano prático, como se verá adiante. Radica também numa velha e tenaz recusa das orações pelos mortos, dos sufrágios, a qual já vimos como contribuiu no fim do século XII para levar os ortodoxos a formularem mais claramente a existência do Purgatório. Recusados pelos hereges de Arras em 1025, os sufrágios foram-no novamente em 1143-1144 pelos de Colónia, contra quem o prelado Eberwin de Steinfeld pede a ajuda a S. Bemardo: «Eles não admitem que existe um fogo purgatório depois da morte, e ensinam que as almas vão imediatamente para o repouso ou para o castigo eternos no momento em que deixam a terra segundo as palavras de Salomão: "se uma árvore cai rara o Sul ou para o Norte, a árvore fica onde caiu" (Eclesiastes, 11, 3)6 .» Na época em que provavelmente, como se viu, Bemardo de Fontcaude expressa contra os valdenses a nova estrutura do além, uma Súmula contra os hereges que foi erradamente atribuída a Prévostin de Cremona mas que, segundo os editores, deve datar do fim do século XII, menciona a hostilidade de hereges chamados «Passagins» às orações pelos mortos, e nessa altura fala do Purgatório. Como nesse texto o Purgatório existe mas os defuntos estão ainda divididos em quatro e não em três categorias, os últimos anos do século XII parecem uma data pertinentef".
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À recusa dos «Passagins» a Súmula dá a solução seguinte que segue de perto as ideias de Agostinho: Oramos pelos vivos, indiferentemente, mesmo que sejam maus, porque ignoramos se eles serão condenados ou eleitos. Mas oramos sobretudo pelos nossos irmãos e pelos mortos; não pelos inteiramente bons porque eles não têm necessidade disso nem pelos inteiramente maus porque não lhes seria útil, mas pelos medianamente bons que estão no Purgatório, não para que se tornem melhores mas para que fiquem livres mais cedo, e pelos medianamente maus, não para que sejam salvos mas para que sejam menos castigados?", A crónica de Raul (Ralph), abade do mosteiro cisterciense de Coggeshall em Inglaterra entre 1207 e 1218, a propósito de uma aventura de juventude de Gervásio de Tilbury, evoca as ideias de hereges chamados publicanos 71, espalhados por várias regiões de França e principalmente em Reims onde se manifestam por um episódio de feitiçaria entre 1176 e 1180: «Pretendem eles que as crianças não devem ser baptizadas antes de atingirem a idade da razão; acrescentam que não se deve orar pelos mortos, nem pedir a intercessão dos santos. Condenam o matrimónio e pregam a virgindade para mascararem a sua luxúria. Destestam o leite e todos os seus derivados, assim como todos os alimentos provenientes do coito. Não acreditam no fogo purgatório depois da morte e pensam que a
alma, logo ~ue se liberta, vai imediatamente para o repouso ou para a condenação .» No século XIII todos os tratados sobre heresias e hereges incluem a negação do Purgatório entre os erros da maioria dessas seitas (muitas vezes mal diferenciadas pelos autores «ortodoxos») e em especial dos valdenses. Num tratado para uso dos pregadores - de que falarei - que o dominicano Étienne de Bourbon redigirá nos anos que precederam a sua morte ocorrida em 1261, diz ele dos valdenses da região de Valença cerca de 1235: «Declaram eles também que não existe punição purgatória senão nesta vida presente. Para os mortos, nem os bons oficios da Igreja nem nada que possa fazer em seu favor tem qualquer efeíto'".» Anselmo de Alexandria (na Itália do Norte), inquisidor dominicano, redigiu entre 1266 e 1270 um tratado onde se esforça por distinguir valdenses e cátaros e, entre os valdenses, os da Lombardia e os de Lyon. No número das crenças comuns aos dois grupos de valdenses ele inclui a negação do Purgatório: «Como os Transmontanos, os Lombardos não acreditam no Purgatório, no juramento, no direito à justiça... E (para uns e outros) também não existe Purgatório. Nada se ganha com visitar os túmu~~~~~:Ss:lt~:'r:~~~~~4~»cruz,
construir
igrejas, orar, dizer missas ou dar
A mesma censura no famoso Manual do Inquisidor do dominicano 8emardo Gui, fruto de uma longa experiência relatada quase no fim
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Se, ao nível da pastoral e da polémica, a luta da Igreja contra 01 hereges que negavam o resgate depois da morte a levou, como se viu, a adoptar e a definir a crença num lugar de purgação das penas após a morte, o Purgatório, no fun do século XII foram os debates de ordem teológica, as negociações entre membros das hierarquias eclesiásticas la-
tina e grega que levaram a Igreja a exprimir as suas primeiras formulações dogmáticas do Purgatório no século XIII. O Purgatório nasceu nas aspirações e nasceu também nas lutas. Depois da ruptura de 1054, resultado do lento aprofundar da separação entre cristianismo latino e cristianismo grego iniciada no século IV78 se tanto, não faltaram as discussões e as negociações para a reunião das duas Igrejas. A questão do além não teve nisso qualquer interferência. A Igreja grega, que estivera, aliás, na origem da elaboração doutrinária que iria conduzir ao Purgatório, não desenvolvera esses germes. Contentara-se com uma vaga crença na possibilidade de resgate depois da morte e com a prática, pouco diferente da latina, de preces e de sufrágios pelos mortos. Mas enquanto a crença latina se expandia no nascimento de um terceiro lugar do além e na remodelação profunda da geografia do outro mundo, o problema do Purgatório saltou para o primeiro plano das discussões e das dissenções. Foi essencialmente à volta do problema do fogo do Purgatório que se desenrolou a primeira fase do debate. Continuando no século XIII, é preciso primeiro recordar que, durante a primeira metade do século, as negociações depararam sobretudo com um obstáculo político, além das dificuldades propriamente religiosas. O papado apoia o império latino estabelecido em Constantinopla pela quarta cruzada em 1204, enquanto os gregos apenas reconhecem o imperador bizantino sediado em Niceia. No meio destas diligências eis que irrompe o Purgatório. Como diz com graça e com razão o padre Daniel Stiernon: «O fogo! Pois, está bem, há também o fogo do Purgatório que um ano depois inflamará os espíritos. Da Apúlia onde brotara a chamazinha em Novembro de 1235, o incêndio atingirá o trono patriarcal, se é verdade que Germano lI, interpelado no novo debate, redigiu um libelo sobre este tema, causa bem candente que deixará vestígios duradouros 79 .•. » De facto, o primeiro vestígio importante do debate greco-Iatino sobre o Purgatório data de pouco antes. Trata-se do relato de uma controvérsia que no fim de 1231, no mosteiro grego de Casola perto de Otrante, opôs Georges Bardanês, metropolita de Corfu, e um enviado do Papa, o franciscano Bartolomeu. O relato, talvez incompleto, é do prelado grego. Georges Bardanês declara que os Irmãos Menores «preconizam a falsa doutrina de que existe um fogo purificador (xop KCXeCXp'tTjplOV) para onde são levados aqueles que morrem depois de se terem confessado mas que não tiveram tempo de fazer penitência pelos seus pecados, e são purificados antes do Julgamento Final, obtendo a satisfação da pena»80. A autoridade avançada pelos franciscanos é a de «S. Gregório o Diálogo», quer dizer, Gregório, o Grande, assim baptizado pelos gregos para o distinguir de muitos outros gregórios. Eis como se terá desenrolado a discussão:
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da vida, no começo do século XIV: «Os Valdenses também negam qUI haja um Purgatório para as almas depois desta vida e, por consequência, afirmam que as preces, as esmolas, as missas e outros piedosos sufrágios em favor dos mortos não servem para nada.» E ainda: «Dizem também e ensinam aos seus adeptos que a verdadeira penitência e o Purgatório para os pecados só podem ter lugar nesta vida, não na outra ..• Do mesmo modo, segundo eles, as almas, quando deixam o corpo, vão imediatamente ou para o Paraíso, se devem ser salvas, ou para o Inferno, se devem ser condenadas, e que não há outro lugar (morada) para at almas depois desta vida senão o Céu e o Inferno. Dizem também que as orações pelos mortos não os ajudam nada, uma vez que os que estão no Paraíso não precisam delas e para os que estão no Inferno não h' repouso ".» Quanto aos Cátaros, a sua atitude face ao Purgatório parece ter sido mais complexa. Voltarei a isto. Os documentos respeitantes às crençaa concretas, designadamente em Montaillou, mostram-nos uma posição bastante confusa e cheia de cambiantes. Os textos teóricos aqui examínados insistem, de um modo geral, numa atitude negativa em relação ao Purgatório. Em 1250, na sua Súmula sobre os Cátaros e os Pobres di Lyon (Summa de Catharis et Pauperibus de Lunduno ), Rainerius Saeconi, um herege convertido por Pedro de Verona e que veio a ser domínicano e inquisidor como este, tendo escapado a um atentado qUI custou a vida a Pedro (logo transformado pela Igreja em S. Pedro Mártir) escreve: «O segundo erro deles é que, segundo eles, Deus não inflige qualquer castigo purgatório, pois negam totalmente o Purgatório, nem qual~uer punição temporária, pois esta é infligida pelo diabo nesta vida" .» Dos Cátaros, ainda Italianos, baptizados de Albanos ou Albaneses (muitas vezes com a corruptela Albigenses), uma pequena súmula anónima, feita provavelmente por um franciscano entre 1250 e 1260, diz que não só eles não acreditam no Purgatório como também não acreditam no Inferno porque este não foi criado pelo Deus que, segundo o Génesis, criou o mundo, ou seja, Lúcifer. Nesta .perspectiva, «eles dizem que . não há fogo purgatório nem Purgatório» 7 • 2. Os gregos
A questão posta pelo latino, que se chamava Bartolomeu, era mais ou menos esta: «Quero saber de vocês, gregos, para onde vão as almas daqueles que morreram sem fazer penitência e que não tiveram tempo para cumprir os castigos ... )81 ( «epitímias» que os seus confessores Ihes haviam imposto.» A nossa resposta, a dos gregos: «As almas dos pecadores não vão daqui para o Inferno eterno, porque a~u7le ~ue d~ve julgar todo o universo ainda não veio com a sua glória para distinguir os Justos dos pecadores; vão, sim, para lugares sombrios que dão o antegozo dos suplícios que esses pecadores devem suportar. Pois, assim como para os justos foram preparados em casa do Pai vários lugares e diversos repousos, segundo a palavra do Salvador82, assim existem também diversas punições para os pecadores.» O latino: «Nós não temos essa crença, antes acreditamos que existe de um modo especial um fogo «purgatório», quer dizer83 fogo que purifica, e que por esse fogo, aqueles que passam deste mundo sem se arrependerem, como os ladrões, os adúlteros, os assassinos e todos aqueles que cometem pecados veniais, sofrem durante um certo tempo e purificam-se das máculas dos seus pecados, e a seguir ficam libertos da punição.» «Mas, meu excelente amigo, digo eu, aquele que acredita em tais coisas e as ensina parece-me um perfeito partidário de Origenes. Com efeito, Origenes e os que o seguem preconizaram a doutrina do fim do Inferno, e até os demónios, passados muitos anos, obteriam o seu perdão e ficariam libertos da punição eterna. Depois, tu só tens que apelar à tua sabedoria ao referires-te às palavras do Evangelho ditas por Deus, visto que o Senhor clama que estes, 08 justos, irão para a ressurreição da vida, enquanto os pecadores (irão) para a ressu~eição do julgamento'". E ainda: "Ide para longe de mim, para o fogo extenor e eterno, preparar-vos para o diabo e seus anjos!8511E noutra passagem: "Onde houver lágrimas e ranger de dentes86", e onde estão os vermes que não acabam e o fogo que não se extingue'".» Uma vez que o Senhor faz tantas e tais ameaças contra os que partem desta vida não purificados (pela penitência) das más acções e dos crimes quem ousará concordar que existe um fogo purificador e um pretenso fi~ da punição antes da decisão do julgamento do Juiz? Mas se fosse possível, de alguma maneira arrancar antes (do Julgamento Final) aos suplícios aque!es qu~ partem .daqui de baixo, culpados seja de que pecados for, o que teria Impedido o muito fiel e amado de Deus, Abraão, de tirar do fogo inextinguível o rico sem misercórdia, quando este implorava, com palavras capazes de comover profundamente, uma simples gota de água que caísse da ponta do dedo, para se refrescar? Mas ele ouviu: «Tu, meu filho, tu fruístes os teus bens durante a vida, enquanto Lázaro só recebeu males. Agora rezamos a ele e tu sofress'", E ensinava que há um abismo profundo e intransponível entre ele e Lázaro, o pobre. Mas como o irmão menor escutava tudo isto sem se deixar convencer, e tapava os ouvidos, mostrámos-Ihe os textos dos Pais, que trazem Deus (= inspirados por Deus) respeitantes às Santas Escri-
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turas, a fim de que, tomado de respeito perante a autoridade dos maiores mestres, ele abandonasse as suas objecções. As autoridades ficou na sua.
das Escrituras
não abalaram
o franciscano
e cada um
A primeira defmição pontificaI do Purgatório (1254) Nos últimos anos do pontificado de Inocêncio IV, o clima dos debates entre gregos e latinos modificou-se e pensou-se que se encaminhavam para um acordo quando o Papa morreu em 1254. Algumas semanas antes da sua morte, em 6 de Março de 1254, o pontífice enviara ao seu núncio junto dos gregos em Chipre, o cardeal Eudes de Châteauroux, uma carta oficial (sub catholicae) que constitui uma das mais importantes datas da história do Purgatório. O Papa, pensando que existiam pontos comuns suficientes entre os gregos e os latinos, e deixando na sombra a questão bicuda do momento da passagem pelo fogo purgatório antes ou depois da ressurreição dos mortos, pede (de uma maneira bastante autoritária, para dizer a verdade) que os gregos subscreveram uma definição do Purgatório: Uma vez que a Verdade afirma no Evangelho que, se alguém blasfema contra o Espírito Santo, esse pecado nunca lhe será remido nem neste século nem no outro: pelo que nos é dado a entender que algumas culpas são perdoadas no tempo presente e outras na outra vida; visto também que o apóstolo declara que a obra de cada um, seja ela qual for, será posta à prova pelo fogo e que, se ela arder, o obreiro sofrerá a sua perda mas ele próprio será salvo; visto que os próprios gregos, segundo se diz, acreditam e professam verdadeiramente e sem hesitação que as almas dos que morrem depois de terem recebido a penitência mas sem terem tido tempo para a cumprir, ou que morrem sem pecado mortal mas culpados de (pecados) veniais ou de culpas mínimas, são purgados depois da morte e podem ser ajudados pelos sufrágios da Igreja, nós, considerando que os gregos afirmam não encontrar entre os seus doutores um nome adequado e certo para designar o lugar dessa purgação, e que, por outro lado, segundo as tradições e a autoridade dos santos Padres, esse nome é o Purgatório, desejamos que no futuro essa expressão seja igualmente aceite por eles. Pois, nesse fogo purgatório, os pecados (não, decerto, os crimes e faltas capitais que antes não seriam remidos pela penitência) ligeiros e mínimos são purgados; se eles não forem remidos no decurso da existência, pesam na alma depois da morte'". Esta carta é o registo do nascimento lugar.
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doutrinário
do Purgatório
como
---------------o segundo
concílio de Lyon e o Purgatório
(1274)
Em 1274 o segundo concílio de Lyon deu um novo passo. Convém talvez evocar antes um dos numerosos episódios que marearam as negociações recheadas de polémicas entre gregos e latinos durante o terceiro quarto do século XIII. Em 1263 Tomás de Aquino foi chamado a dar a sua opinião como perito na polémica com os gregos. Nicolau de Durazzo, bispo de Crotona, «sábio em latim e em grego» escrevera um Libelo sobre a procissão do Espírito Santo e da Trindade contra os erros dos Gregos (Libellus de processione spiritus sancti et de fide trinitatis contra errores Graecorum) do qual em 1262 foi enviada uma cópia latina ao Papa Urbano IV que solicitou a opinião de Tomás de Aquino. O Libelo, que interessava sobretudo ao fiJioque, pretendia demonstrar que os gregos do século XIII nem sequer eram fiéis aos Pais da Igreja grega que teriam professado as mesmas doutrinas que os latinos. O Libelo era de facto uma trapalhada 90 de falsificações e de falsas atribuições. O papado sonhava no entanto fazer dele o documento de base para as negociações com os gregos. Tomás de Aquino experimentou, parece, «uma sensação de mal-estar» com a leitura do Libelo. Não pôs em causa a autenticidade dos textos citados pelo Libelo mas contestou a validade de uma parte deles, e preferiu frequentemente recorrer a outras autoridades. A influência do Libelo não fez porém diminuir o alcande do Contra errores Graecorum (Contra os Erros dos Gregos) elaborado por Tomás no Verão de 1263 em Orvieto e que veio a ser, para os latinos, um arsenal de argumentos contra os gregos". O essencial, trinta e dois capítulos, diz respeito à procissão do Espírito Santo na Trindade, e sete curtos capítulos são dedicados, cinco deles à primazia do papado romano e os dois restantes à consagração do pão ázimo para a Eucaristia e ao Purgatório. Neste último caso, Tomás defende a existência do Purgatório da maneira que será retomada no Suplemento da Súmula Teológica que já vimos. Entretanto a situação política criada a seguir à tomada de Constantinopla pelos Gregos e ao restabelecimento do Império bizantino na sua integridade aparente conduziu a uma tentativa de reconciliação entre latinos e gregos que teve como resultado o segundo concílio de Lyon em 127492. A união entre latinos e gregos era desejada por razões políticas pelo Papa Gregório X, que via nela uma das condições prévias necessárias ao êxito da cruzada que pretendia organizar, e pelo imperador Miguel VIII Paleólogo que queria não só evitar um eventual ataque de CarIos de Anjou mas também retomar, como bem demonstrou Gilberto Dagron, uma importante política tradicional de «ligação orgânica entre o Ocidente e o Oriente». 330
Ambiguamente discutida e sem ir até ao fundo dos problemas, com o imperador a forçar a mão à hierarquia grega, a união f<;>iprocla~ada em 16 de Janeiro de 1275 depois de ter sido deposto o patnarca Jose I, que a desaprovara. Iria ser "etra morta, ~as pe~tiu que o Pur~atório se. instalasse melhor na Igreja latina. A formula fOI um comprormsso enunciado pelo Papa Clemente IV numa carta enviada em 4 de Març~ ~e 1267 a~ imperador Miguel VIII. Foi retomada numa carta de Gregono X a MIguel Paleólogo de 24 de Outubro de 1272 e na profissão de fé que o imperador mandou em resposta, em Março ,~e 1274. Tomou-se u~ ~nexo da constituição Cum sacrosancta do concilio, promulgada com ligeiras alterações de redacção em 1 de Novembro de 1274. Eis o conteúdo: Mas, por causa de diversos erros que alguns introduziram por ignorância e outros por malícia, ela (a Igreja romana) diz e procl~a que aqueles que ca?D em pecado depois do baptismo não devem ser rebaptizados, mas que, por ~a verdadeira penitência, obtêm o perdão dos seus pecados. Que se, ver~adelr~mente arrependidos, eles morrerem em caridade antes de terem, por íntermedio dos dignos frutos de penitência, satisfeito pelo que cometeram ou omitiram, as suas almas, conforme nos explicou o irmão João, são purgadas depois da morte por penas purgatórios ou purificadoras, e, para abrand~mento dessas penas, servem-Ihes os sufrágios dos vivos fiéis, ou seja, o~.sa~rifiCJosdas missas, as preces, as esmolas e outras obras piedosas que os fiéis ~em o costume de oferecer pelos outros fiéis segundo as instituições da Igreja. As almas daqueles que, depois de terem recebido o baptismo, n~o contraíram qualquer outra mácula de pecado, e também aquelas que, depois de terem con~raIdo a mácula do pecado, dela foram purificadas, ou enquanto estavam amd.a no corpo ou depois de terem contraído a mácula do pecado, foram dele purificadas ou enquanto estavam no corpo ou depois de se terem despojado do corpo, 93 como se disse atrás, são imediatamente recebidas no céU . O texto está atrasado em relação à carta de Inocêncio IV, vinte an~s antes. Trata de «poenis purgatoriis seu catharteriis», a pal.avra grega latinizada correspondente à palavra latina que os gregos haviam helenizado. Mas a palavra purgatorium, o purgatório, não aparece. ~ão ~ .trata nem de lugar nem de fogo. Este atraso será devido apenas a hos~llldad~ dos gregos, ou virá também das reticências de alguns meios teológicos OCIdentais? Não é possivel..., tanto mais que alguns documentos fazem supor que, pelo menos na chancelaria imperial bizantina, estavam pr?nto~ a aceitar a palavra purgatório. Com efeito, lê-se nas profissões de fe enviadas por Miguel VIII em 1277 aos Papas João XXI e.Nicolau 1.11,as pena~. do purgatório ou do purificador, tanto na versão latina (poenis purga tom seu catharterii) como na versão grega (1tOlVCI1S1toupytX'toptOU nroi
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K
o Purgatório e as mentalidades: o importante não é isto.
Oriente e Ocidente
É antes, como bem viu A. Michel, o facto de, «no ponto de vista dogmático, o texto imposto aos gregos representar seguramente a doutrina católica. É o equivalente de uma definição ex cathedra9s». É a primeira proclamação da crença no processo purgatório, se é que não no Purgatório, como dogma. O segundo facto interessante é que, a nível dogmático, o Purgatório nunca mais será definido pela Igreja como um lugar preciso ou como um fogo, nas duas assembleias que instaurarão definitivamente o dogma do Purgatório no cristianismo romano: o concílio de Ferrara-Florença em 1438-1439, de novo face aos gregos'", e o concílio de Trento em 1563, desta vez contra os protestantes. A minha convicção continua a ser que, apesar das reticências dos teólogos e da prudência da instituição eclesiástica, o êxito do Purgatório é devido à sua espacialização e ao imaginário cujo desenvolvimento pleno permitiu. Mas antes de vermos o êxito «popular», o êxito maciço do Purgatório, do lugar purgatório, no século XIII, desejaria salientar, num documento ligado ao debate entre gregos e latinos, uma confissão que explica as atitudes profundas dos cristãos do Ocidente quando do nascimento e da vulgarização do Purgatório. Depois do segundo concílio de Lyon (1274), Miguel VIII Paleólogo esforçou-se por fazer respeitar a união pelo clero bizantino. Os mosteiros do Athos eram um dos principais centros de resistência. Em Maio de 1276 a polícia imperial, no decurso de uma «surtida ao Athos», expulsou e dispersou os monges e fez prisioneiros dois deles, Niceforo e Clemente, que o imperador, por deferência para com os latinos, mandou conduzir num barco veneziano a São João de Acre, onde foram entregues ao núncio pontifica!. Este não é qualquer um. É um dominicano, Tomás de Lentini, que quarenta anos antes recebera Tomás de Aquino na ordem. O núncio, que é também bispo de Acre e patriarca de Jerusalém, teve uma discussão franca com os dois monges gregos e finalmente limitou-se a fixar-Ihes residência em Chipre'", No debate surgiu a questão do Purgatório, pois é bem do purgatório (rô 1tUpJ(
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o LATINO: E o Purgatório, que dizeis dele? . OS GREGOS: O que é o Purgatório e qual fOI a ESCritura que vo-lo ensinou? • . O LATINO: A de Paulo, quando diz que (os homens) ~o postos a prova pelo fogo: «Se a obra de alguém for. consumida, ele sofrera a sua perda, mas ele próprio será salvo, e desta maneira como pelo fogo.» OS GREGOS: Na verdade, o castigo não te~ fim. . . O LATINO: Eis o que nós dizemos: se alguem, depois de ter ~do, fOI confessar-se e recebeu uma penitência e morreu antes d~ ter cumpndo ~sa penitência, os anjos levarão a sua alma para ~ fogo punficador, quer dizer, para aquele rio de fogo, até que ele tenha terminado o.tempo que fal~ do que lhe fora fixado pelo (pai) espiritual, esse t~po
O LATINO: Em que lugar repousam agora as almas dos justos e onde as dos pecadores? , • OS GREGOS: Segundo a palavra do Senhor, os justos como Lazaro estão no seio de Abraão, e os pecadores como o rico sem.pie,?ade.no fogo da geen~. O LATINO: Muitos simples fiéis da nossa Igr~Ja tem. dificuldade em aceitar isso. A restauração (apocatástase) dizem el~s, ainda nao chegou e, por essa razão, as almas não experimentam nem castigo nem repouso. Portanto, se assim é .
Aqui, no momento de completar uma informação para ~ós e~sencia.l, o manuscrito apresenta uma lacuna. Na minha interpretaçao exíste pOIS uma parte hipotética. .. Noto antes de mais o recurso, paradoxal neste latmo, a~ conceito. de apocatástase de Origenes, mas o importante parece-me ser ~ao a doutI?-n~ mas as disposições mentais dos latinos a que alude Tomas de Lentini.
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Muitos simples fiéis já não se contentam com a oposição geena/seio di Abraão, Inferno/Paraíso depois da morte individual. A necessidade do Purgatório, de uma última peripécia entre a morte e a ressurreição, di um prolongamento do processo de penitência e de salvação para lá desta falsa fronteira da morte tomou-se uma exigência das massas. Vox populi... Pelo menos no Ocidente.
NOTAS
I Entre os títulos de quodlibeta mencionados por P. GLORIEUX, IA littérature ftIIldlibétique de 1260 à 1320, 1925, só aparece um quodlibet sobre o Purgatório. É de "omás de Aquino e data do Natal de 1269: «Se se pode ser mais ou menos depressa IIhcrtadode uma mesma pena no Purgatório» (utrum aequali poena puniendi in purga'ur/u, unus citius possit liberari quam alius, quod. 11, 14, p. 278). 2 A 219" e última proposição condenada em 1277 diz respeito ao fogo do além
.m
grande precisão: «Que a alma separada (do corpo) não pode de maneira alguma Illfrer com o fogo» (quod anima separata nullo modo patitur in igne). Trata-se, aliás, dI! ensino na Faculdade das Artes e não de Teologia. Cf. R. HISSETTE, Enquête ,.., /(!S 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277, Lovaina-Paris 1977, pp. 311·312 . .1 A bibliografia da escolástica do século XIII é enorme. As sínteses estão mais Incluídasna filosofia do que na teologia. Para uma vista de conjunto recorre-se aos lI"ISicos, E. GILSON, La Philosophie au Moyen Âge,3' ed., Paris, 1947, M. DE WlJLF, Histoire de Ia philosophie médiévale, 6" ed., t. Il, Lovaina, 1936. F. VAN NTEENBERGHEN, IA Philosophie au XIII' siécle, Lovaina-Paris, 1966. Os grandes lIColásticosdo século XIII distinguiram bem entre filosofia e teologia. A fronteira nem IGmpreé fácil de definir e depende da definição que se der destas duas ciências. No eonjunto - e isto é válido para as melhores - parece-me que estas sínteses não distin,uem suficientemente as duas disciplinas. Um esboço rápido mas sugestivo da filosofia medievalna sociedade foi dada por F. ALESSIO, «li pensiero dell'Occidente feudale» In Filosfie e Societâ, t. I, Bolonha, 1975. Em C. TRESMONTANT, IA Métaphysique • christianisme et Ia crise du treiziême siécte, Paris, 1964, encontra-se uma interpretaylo original. "GUILLEULMUS ALTISSIODORENSIS, Summa aurea, ed. Pigouchet, Paris, 1500, reedição anastática, Francfort-sur-le-Main, Minerva, 1964, livro IV, foI. ('CCIVv e CCCVv. 5 É ainda nesta rubrica que o encontramos no ficheiro metódico da excelente bibliotecada Universidade Gregoriana em Roma. 6 Sobre Guillaume d'Auvergne ver o livro já ultrapassado de Noêl VALOIS, Guillaume d'Auvergne, sa vie et ses ouvrages, Paris, 1880; o.estudo de J. KRAMP, «Des Wilhelm von Auvergne Magisterium Divinale» in Gregorianum, 1920, pp. 538-584 e 11,121, pp. 42-78, 174-187; e sobretudo A. MASNOVO, Da Guglielmo d'Auvergne a San Tommaso d'Aquino, 2 vols., Milão, 1930-1934.
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7 Alan E. Bemstein apresentou em Fevereiro de 1979 perante a Medieval Assoe tion of the Pacific uma exposição sobre William of Auvergne on punishment after deatlt, cujo texto teve a amabilidade de me comunicar. Concordo geralmente com a sua interpretação. Penso que exagerou por um lado e a propósito de Amo Borst, a influêne cia da luta contra os Cátaros sobre as suas ideias a respeito do Purgatório, e por outl'O lado as contradições que existiriam na sua doutrina do fogo purgatório. Alan E. Bem •• tein empreendeu uma investigação sobre «Hell, Purgatory and Community in XllIth. century France». 8 «De loco vero purgationis animarum, quem purgatorium vocant, an sit proprius, " deputatus purgationi animarum humanarum, seorsum a paradiso terrestri, et inferno, atque habttaüone nostra, quaestionem habeu (De universo, capo LX). GUILlELMUS PARISIENSIS, Opera Omnia, Paris, 1674, I, 676. Quanto ao lugar do Purgatório es~ nos capítulos LX-LXI-LXII (pp. 676-679) desta edição. Quanto ao fogo do Purgatório nos capítulos LXlII"LXIV-LXV (pp. 680-682). 9 Pontos estes que, quanto a mim, não são secundários. 10 A. PIOLANTI,
I".
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21 Sobre todos estes problemas ver A. MICHEL, artigo «Purgatoire» in Dictionnaire de théologie catholique, col. 1239-1240. 22 «Utrum in poena purgatorii sit minor certitudo de gloria quam in via... cuja conclusão é «in purgatorio est maior certitudo de gloria quam in via, minor quam in patria» (Opera, t. IV, fol. 522-524). 23 Patria vem de S. Paulo: Hebreus, XI, 14: «Aqueles que assim falam mostram claramente que estão à procura de uma pátria.» 24 Segunda questão do artigo 11 da primeira parte do destaque XXI. 25 lbid., fol, 939-942. 26 Segunda parte do destaque XX. 27 Artigo 11 da primeira parte do destaque XXI. 28 Boaventura pronunciou no concílio de Lyon em 1274, alguns dias antes de morrer, o discurso solene da sessão de oflcialização da união entre os gregos e os latinos. 29 Artigo Hl desta mesma questão. 30 Artigo 11 do destaque XLIV. 31 Capo 11 da sétima parte. 32 Capo III da mesma parte. 33 BOA VENTURA, Opera, t. V, fol. 282-283. Os irmãos de Quaracchi fizeram depois uma edição mais manejável do Breviloquium, como para o Comentário às Máximas. 34 Opera, t. IX, pp. 606-607. 35 A primeira epístola de Paulo aos Coríntios, 111, 10-15, mas também das autoridades sobre o Antigo Testamento (Job, lI, 18, Provérbios XIII 12) e de S. Paulo (11 Timóteo, IV, 7-8: Hebreus, IX, 15) cuja relação com o Purgatório parece distante. 36 Ibid., p. 608. 37 Sobre a importância da oração na teologia de 8oaventura, o que ainda enraíza mais o Purgatório no seu pensamento, ver Zelina ZAFARANA, «Pietâ e devozione in Sun Bonaventura» in S. Bonaventura Francescano (Convénio do Centro de Estudos Nobre a espiritualidade medieval, XIV, Todi, 1914, pp. 129-157). 38 Sobre Alberto, o Grande, ver O. LOTTIN, «Ouvrages théologiques de saint Albert le Grand» in Psychologie et mora/e aux Xll" et XII!' siêcles, voI. VI, Gembloux, 1960, pp. 237-297 e Albertus Magnus Doctor Universalis 1280/1980, ed. G. Meyer e A. Zimmermann, Mayence, 1980. 39 De Resurrectione, ed. W. Kübel in Alberti Magni Opera Omnia, t. XXVI, MuniquefW, 1958. A questão 6 De purgatorio encontra-se nas páginas 315-318 e a questão 9 De locis poenarum simul, pp. 320-321. 40 Pode notar-se que Alberto, que neste texto emprega habitualmente o substantivo purgatorium, usa aqui o epíteto purgatorius (ignis subentendido). Sobre este uso ver adiante a propósito do Comentário às Máximas. 41 Alberto refuta uma última objecção: «Podendo haver muitas diferenças entre os méritos para os que vão ser salvos, condenados ou purgados, deve haver também mais de cinco receptáculos». Resposta: «Devem separar-se as diferenças gerais das diferen••as particulares. Haverá "casas" no interior dos "receptáculos".» Requinte da divisão lógica que é também uma referência ao Evangelho de João. 42 Este destaque XXI do Comentário ao Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo encontra-se na edição das obras de Alberto, o Grande, de Auguste 8orgnet, B. Alberti Magni... opera omnia, t. 29, pp. 861-882, Paris, 1894.
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43 Pierre MICHAUD-QUANTIN, no seu grande livro Universitas. Expressions. mouvement communautaire dans le Moyen Âge latin, Paris, 1970, pp. 105 e 119, f. notar que Alberto, o Grande «ao estudar a acção das colectividades divide-as etJI urbanitates da sociedade civil e congregationes da Igreja». O uso da palavra surgiu-lhe no debate dos teólogos a propósito da interdição pronunciada pelo Papa Inocêncio IV de excomungar colectividades, importante decisão deste pontífice genovês, Alberto tratou deste problema um pouco antes no seu Comentário ao Livro IV •• Máximas (destaque 19, artigo VII, Opera, t. 29, p. 808; o nosso texto está na página 876 do mesmo volume). Pierre Michaud-Quantin faz notar que «no mesmo contexto, Boaventura emprega congregatio para qualquer agrupamento civil ou religioso». 44 Ibid., 1. 29, pp. 877-878. 45 ALBERTI MAGNI, Opera omnia, ed, A. Borgnet, 1. 30, pp. 603-604. 46 Ibid., 1. 30, p. 612. 47 O Compendium theologicae veritatis foi publicado por Bourgnet no tomo 34 dai Opera omnia de Alberto, o Grande, Paris, 1895. eobre Hugo de Estrasburgo consultar G. BONER, Über den Dominikaner Theologen Hugo von Strassburg, 1954. 48 Compendium ... IV, 22. Alberti Magni ..., Opera omnia, ed. A. Borgnet, vol. 34. p.147. 49 Ibid., pp. 237-241. soSobre Tomás de Aquino ver M.-D. CRENU, Introduction à l'étude de saillt Thomas d'Aquin, Montréa!-Paris, 1950. J.-A. WEISREIPL, Friar Thomas d'Aquino, his Life, Thought and Works, Oxford, 1974. Thomas von Aquino. Interpretation Rezegtion. Studien und Texte, ed. W. P. Eckert, Mayence, 1974. 1 M. CORBIN, Le chemin de Ia théologie chez Thomas d'Aquin, Paris, 1974, p.267. 52 Utilizei a edição da Súmula Teológica publicada com uma tradução e notas pe edições da «Revue des Jeunes chez Desclée et Cie.» O Purgatório encontra-se no opÚllt culo sobre O Além que contém as questões 69 e 74 do suplemento, Paris, Tournal, Roma, 21 ed., 1951, com uma tradução de J. D. Folghera e notas e apêndices de L. Wébert: a palavra purgatorium ocupa 6 colunas no Index Thomisticus, Sectio lI, concordantia prima, ed. R. Busa, vol, 18, 1974, pp. 961-962. 53 Ver as notas de J. Wébert no opúsculo indicado na nota anterior, p. 287. 54 Ibid., p. 13. ss Ibid., p. 17. 56 Ver em todo o caso as páginas pioneiras de J. DELUMEAU, La Peur en Oc dent (XI~-XVJIr siécles), Paris, 1978 (ver Index sv. revenants) e de H. NEVEtlX, «Les lendemains de Ia mort dans !es croyances occidentales (cerca de 1250-cerca 1300)>>in Annales E.S.e. 1979, pp. 245-263. Jean-Claude Schmitt e Jaeques Chiffoles levaram a cabo pesquisas sobre as aparições na Idade Média. S7 Ver J. Le GOFF, «Les rêves dans Ia culture et Ia psychologie collective !'Occident mêdiéval» in Scolies, I, 1971, pp. 123-130, retomados em Pour un au Moyen Âge, Paris, 1977, pp. 299-306 [tradução portuguesa da Editorial Estampa, Lisboa, 1980). Alberto, o Grande, abordou decididamente o problema no seu trata De somno et vigilia. S8 S. TOMAS DE AQUINO, Somme théologique. L'au-delà, pp. 38-46. S9 Edição destinada a ser a edição modelo, se não oficial, das obras comple de Tomás de Aquino, assim chamada porque foi empreendida em 1882 por iniciati do Papa Leão XIII, promotor do neotomismo, Esta edição ainda não está to minada.
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60 S. TOMÁS DE AQUINO, L'au-delà, pp. 97-128. Esta questão retoma elemendo destaque XXI do Livro IV das Máximas de Pedro Lombardo no Scriptum de Tomás. 61 «de loco purgatorii non inuenitur aliquid expresse determinatum in scriptura, nec nuiones possunt ad hoc efficaces induci» (Ibid., p. 105). 62 O comentado r da nossa edição do Suplemento, o padre J. Wébert, fica em todo o ualO escandalizado com o caso que Tomás de Aquino faz dos relatos de aparições de upectros: «Parece-me estranho, escreve ele, que S. Tomás leve em consideração os relatos sobre os mortos que expiam em certos lugares terrenos. Faz pensar nas "al10118 penadas" dos contos fantásticos» (pp. 304-305). Quanto a mim, espanto-me com a pouca familiaridade do comentador moderno com a literatura medieval das visões e com a mentalidade comum no século XIII, as quais S. Tomás, por muito intelectual que fosse, tinha de ter em conta e em certa medida partilhava. 63 A questão LXXI encontra-se nas páginas 129-203 da nossa edição (ver nota p. 355). 64 De cura pro mortuis gerenda, capo XVIII. 65 Este desprezo - sobretudo monástico - pelo corpo não impediu os pensadores uriatãos da Idade Média (incluindo os monges) de estarem convencidos de que só podia ser salvo «de corpo e alma», por meio do próprio corpo. 66 Summa theologiae, Ia Pars, q. LXXXIX, art, VII, 2" edição romana, Roma, 1920, p. 695, «non est eadem ratio de distantia loei, et de distantia temporis». 67 A. MICREL, art. «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. I 240. O texto do Scriptum in IV um Sententiarum, dest. XXI, q. 1, a 1 encontra-se nlK páginas 1045-1052 da edição Moos. O texto do De Maio, q. 7, a. 11 encontra-se nls gáginas 58~-~90 da edição de Marietti, Quaestiones disputatae. Texto original entre as cartas de S. Bemardo na Patrologie latine, t. 182, col. fl76-680. Everwini Steinfeldensis praepositi ad. S. Bernardum, apresentação e tradução Inlllesa em W. L. WAKEFIELD e A. P. EVANS, Heresies of the High Middle Ages, Nova Iorque-Londres, 1969, p. 126 e ss, (a passagem sobre o fogo purgatório está na lI. 131). 69 Os «Passagins» professavam uma observância estrita do Antigo Testamento, Incluindo a prática da circuncisão. Foram classificados entre as seitas «judaizantes», " primeira menção a seu respeito é de 1184, a última de 1291. Parece terem ficado uonfinados à Lombardia e terem estado activos pouco antes e pouco depois de 1200. Ver R. MANSELLI, «I Passagini» in Bol/etino deil'Instinao storico italiano per il medio "'li e Archivio Muratoriano, LXXXV, 1963, pp. 189-210. Aparecem ao lado dos cátarm mas diferentes deles nesta Summa contra Haereticos aseribed to Praepositinus 111Cremona, ed, J. N. Garvin, e J. A. Corbett, Notre-Dame, (Indiana), 1958 e traduylu inglesa parcial in WAKEFIELD e EVANS, Heresies of lhe High Middle Ages, p, 173 e ss. 70 Ibid., pp. 210-211. 71 Este nome, deformação dos «Paulicianos» orientais, serviu no Ocidente para de.i~ar qualquer ~ipo d~ ~erege. O texto latino original encontra-se em Radulphi de Coggeshall Chronieon "flKlieanum, ed. J. Stevenson, Londres, 1875, pp, 121-125, tradução inglesa em WAKEFIELD e EVANS, p. 251. 73 O texto latino original foi editado nos excertos do Tractatus de diversis materiis I'rlwdicabilibus publicados por A. LECOY de Ia, MARCHE, Anecdotes historiques I~Kendes et apoloques tirées du recueil inédit d'Etienne de Bourbon, domintcain du 1118
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XIII" siécle, Paris, 1877, pp. 202-299. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVA p.347. 74 Texto latino publicado por A. DONDAINE, «La hiérarchie cathare en Italie, Le Tractatus de Hereticis d'Anselme d'Alexandrie, O.P ... » in Archivum fratr praedicatorum, XX, 1950, p. 310-324. Tradução inglesa in WAKEFIELD e EVA pp.371-372. 75 Bernardo Gui, nascido em Limousin em 1261 ou 1262, ingressado nos Pr res em 1279, formado em Montpellier, foi inquisidor sobretudo na diocese de Toul se. No fim da vida foi bispo de Lodêve. O Manual do Inquisidor deve ter sido aca em 1323-1324. Foi editado com uma tradução francesa de G. Mollat nos clássicos história de França na Idade Média, VIII/IX, 2 vol., Paris, 1926-1927. Os textos cita encontram-se no capítulo 11 da 5" parte. 76 A Summa de Sacconi foi editada por A. Dondaine no prefácio da sua obra Traité néo-manichéen du XIII" siêcle: o Liber de duobus principiis, suivi d'un frag. de rituel cathare. Roma, 1939, pp. 64-78. Tradução inglesa em WAKEFIELD EVANS, pp. 333-334. 77 Esta Brevis summula contra errores notatos hereticorum foi editada por Céles Douais na Somme des autorités à l'usage des prédicateurs méridionaux au XIII" siê Paris, 1896, pp. 125-133. Tradução inglesa em WAKEFIELD e EVANS, pp. 35 -356. 78 Para uma ideia de conjunto ver Y. M. J. CONGAR, «Neuf cents ans ap Notes sur le Schisme oriental» in L'Église et les Églises: neuf siécles de doulour séparation entre l'Orient et /'Occident. Études et travaux ojJerts à dom Lambert Be dom, I, Chevetogne, 1954. Cf. de um ponto de vista menos vasto, os estudos de D. NICOL reunidos em Byzantium: lts Ecc/esiastical History and Relations with the W. tem World, Londres, 1972. 79 D. STIERNON. «Le problême de l'union gréco-Iatine vu de Byzance: de main 11 à Joseph ler (1232-1273)>>in 1274, Année chamiére. Mutations et Continuü (Colóquio de Lyon-Paris, 1974). Paris, C.N.R.S., 1977, p. 147. 80 P. RONCAGLIA, Georges Bardanés métropolite de Corfou et Barthélemy /'ordre franciscain, Les discussions sur le Purgatoire (15 de Octobre-17 NovembrO 1231). Estudo critico com texto inédito, Roma, 1953, p. 57 e ss. I 81 Epitimies: actos de penitência e de mortificação. 82 João, XIV, 3. 83 Bardanês emprega aqui o termo 1tOP'Y'tOplO'Y neologismo para traduzir a palavra" latina. 84 João, V, 29. 85 Mateus, XXV, 41. 86 Mateus, XXV, 51. 87 Marcos, IX, 43-48. 88 Lucas, XVI, 25. 89 Tradução ligeiramente corrigida tirada do artigo «Puragatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. 1248. Du Cange citou esta carta no seu célebre glossário na· palavra Purgatorium. Eis, no latim original, as passagens importantes para o nosse. objectivo: «Nos, quia locum purgationis hujus modi dicunt (Graeci) non fuisse sibi ab' eorum doctoribus certo et proprio nomine indicatum, illum quidem juxta traditiones " auctoritates sanctorum patrum purgatorium nominantes volumus, quod de caetero apud iIlos isto nomine appeletur» 90 Ver J. A. WEISHEIPL, Friar Thomas d'Aquino, pp. 168-170.
,,. Ver A. DONDAINE, «Nicolas de Crotone et les sources du Contra errores thuecorum de saint Thomas» in Divus Thomas, 1950, pp. 313-340. n Ver a secção do colóquio 1274 Année charniêre (publicado em 1977 pelas edições dI! C.N.R.S.) dedicada a Byzance et /'Union (pp. 139-207) com os artigos de D. Stiernon, já citados; J. Darroiizês, J. Gouillard e G. Dagron. Ver também B. ROBERG, /)Ir Union zwischen der griechischen und der lateinischen Kirche auf den lI. Konzi/ von '.Vlln. 1274. Bona, 1964. Sobre as atitudes bizantinas em relação ao além espera-se um próximo livro de Gilbert Dagron. Agradeço a Évelyne Patlagean por me ter comuniIlIIdo o texto do seu estudo «Bizâncio e o seu outro mundo. Observações sobre alguns ,.llIlos» a aparecer no colóquio Faire croire (Escola Francesa de Roma, (979). 93 Segundo o artigo «Purgatoire» do Dictionnaire de théologie catholique, col. 1249·1250. 94 Ver A. MICHEL, ibid.. col. 1249-1250. 'Ij Ibid., col. 1249-1250. 96 Ver designadamente De Purgatorio Disputationes in Concilio Florentino Habitae, L. Petit et G. Hofmann, Roma, 1969. 97 Ver J. DARROUZES, «Les documents grecs concernant le concite de Lyon» in /174. Année charniére, pp. 175-176. O texto citado, extraído do Procés de Niciphore 1/177) foi editado por V. LAURENT e J. DARROUZES, Dossier grec de l'Union de I.Vlln (1273-1277). Arquivos do Oriente cristão, 16, Paris" 1976, pp. 496-501.
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IX - O TRIUNFO SOCIAL: A PASTORAL E O PURGATÓRIO
No século XIII o Purgatório triunfou na teologia e no plano dogmático. A sua existência é certa, tomou-se uma verdade da fé da Igreja. Sob uma forma ou sob outra, num sentido muito concreto ou mais ou menos abstracto, é um lugar. Oficializa-se a sua formulação. Vem dar sentido pleno a uma prática cristã muito antiga: os sufrágios pelos mortos. Mas os teólogos e a hierarquia eclesiástica controlam-no, limitam-lhe a expansão no imaginário. Ao nível em que vou agora colocar-me (tanto quanto o historiador pode captá-lo), o da recepção do Purgatório pelas massas, pelo conjunto dos fiéis e pelas diversas categorias profissionais, os progressos do Purgatório são ainda mais impressionantes. Quando a Igreja faz descer o Purgatório das alturas da razão teológica para a prática pastoral, mobilizando os recursos do imaginário, o êxito parece ser enorme. No fim do século XIII o Purgatório está por toda a parte, na prática, nos testamentos (timidamente), na literatura em língua vulgar. O Jubileu de 1300 será o seu triunfo pelo encontro das aspirações das massas dos fiéis com as prescrições da Igreja. As oposições esbatem-se, entre os intelectuais e até entre os hereges. Só a imagem continua refractária a esse triunfo: conservadorismo da iconografia? Dificuldades na representação de um mundo intermédio, temporário, efémero? Cautela da Igreja, preocupada em manter o Purgatório próximo do Inferno ou mesmo «infernizá-lo» para evitar representações mais tranquilizadoras do que assustadoras?' O Purgatório nasce numa perspectiva de localização porque é preciso encontrar um lugar para as penas que purgam, porque o vaguear das almas penadas já não é suportável. Mas o espaço e o tempo estão sempre ligados, mesmo que esse lugar não seja simples, como no-lo recorda Tomás de Aquino.
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o tempo
contado
a Purgatório é também um tempo, visto que podemos defini-lo co um inferno «temporário». Há, pois, um tempo de Purgatório, e esse te po que também se define na viragem do século XII para o século XI insere-se no repensar geral das estruturas temporais nessa época. Até então a vida e as mentalidades eram dominadas por uma ideol gia do tempo por um lado e pela experiência de uma multiplicidade tempos por outro. A Igreja ensinava a teoria das seis idades do mund que chegara à sexta e última idade, a da velhice ou decrepitude e, firmar solidamente o universo numa historicidade marcada por doi grandes acontecimentos do passado (a criação seguida da queda e a E carnação do Cristo, origem da redenção) ela estava orientando o tem no sentido de um fim: o Julgamento Final e a absolvição do tempo eternidade. Acreditava e afirmava que esse fim estava próximo e es convicção teve como consequência preocuparem-se pouco com o peri do, muito curto, que separava a morte individual da ressurreição d corpos e do julgamento geral. Indivíduos e grupos exigentes e contes tários, ou as duas coisas ao mesmo tempo, introduziram duas varian neste esquema. Uns desejavam um rejuvenescimento do mundo, o regresso da Igrej primitiva, forma cristã do mito da idade de ouro, outros e por vezes mesmos acreditavam e esperavam que, de acordo com o Apocalipse, fim do mundo seria precedido por provações do Anticristo, mas ant por uma longa época de justiça, o Millenium. No começo do século XIII o milenarismo, condenado desde há muito pela Igreja, encontra um novo profeta, o abade Joaquim de Flore cujas ideias inflamam, ao longo do século, numerosos adeptos, principalmente entre os franei •• canos". Por outro lado, a vida dos homens era pontuada por uma multiplieis dade de tempos: o tempo litúrgico, o tempo do calendário anunciado. controlado pela Igreja e diariamente indicado pelos sinos dos edificio .. religiosos, o tempo dos trabalhos campestres estreitamente dependente dos ritmos naturais mas marcado por ritmos calendarizados mais ou menos cristianizados: ciclo dos doze dias do princípio do ano tradicional, do Natal à Epifania, tempo de Carnaval e de Quaresma, tempo das Rogações e de S. João, época das colheitas, o tempo feudal marcado pelo. trabalhos da Primavera e pelas datas do prazo de pagamento das rendas, as grandes assembleias do Pentecostes. Todos tempos repetitívoa, se não circulares. Todavia desenham-se segmentos de tempo linear, períodos revestido. de um sentido. Decorrem de uma nova aplicação da memória individual. colectiva. A memória que se exerce sobre as recordações do passado não 344
pode recuar mais de uma centena de anos, como demonstrou Bernard Uucnée3. Ao nível dos poderosos e da nobreza, ela combina-se com a dllta fornecida por um escrito, por um foral conservado mais ou menos por acaso, e pelas lendas sobre os antepassados, os fundadores das linhapns, para permitir a elaboração das genealogias". Principalmente e para nossa reflexão, ela está na fonte da memória dos mortos, tão viva sobretudo em Cluny nos séculos XI e XII, ainda antes de o Purgatório ser localizado. A redacção de obituários chamados Livros de Memória (Li"ri memoriales) e a instauração no dia seguinte a Todos-os-Santos, em 2 de Novembro, de uma Comemoracão por todos os Defuntos, exprime essa memória inscrita nos livros e na liturgia dos mortos que serão salvos para " da mortes. No século XII, o que caracteriza as novas atitudes em relação ao tem!l0 é a combinação entre o tempo escatológico e o tempo terrestre cada vez mais penetrado de linearidade e sobretudo cada vez mais entrecortado de normas, de pontos de referência, de porções de tempo. Este tempo sucessivo que é também o tempo da narração é particularmente sensível na literatura narrativa que conhece uma extraordinária voga depois de 1150 e sobretudo depois de 1200: os pequenos poemas narrativos, os contos em verso, o romance, tornam-se em poucos decénios géneros de sucesso". a êxito do Purgatório é seu contemporâneo, ou melhor, os dois fenómenos estão ligados. O Purgatório introduz uma Intriga na história individual da salvação, e essa intriga prossegue para além da morte. as defuntos quando morrem têm de entrar num tempo escatológico, quer vão eternamente para o Inferno ou para o Paraíso, quer esperem durante todo o tempo que separa a morte individual do Julgamento Filial num lugar neutro mas sombrio, cinzento, do tipo do shéol judaico, ou então em receptáculos como o seio de Abraão. Mas a teoria dos receptáculos que, no fundo, tivera até ao século XII os favores do cristianismo, transforma-se a ponto de não ser mais do que uma expressão de escola. () limbo dos padres, dos patriarcas, foi definitivamente encerrado, o seio de Abraão esvaziou-se, Henoch e Elias moram sozinhos no Paraíso terrestre. Apenas restam o limbo das crianças e o Purgatório. Apesar de alguns sinais de hesitação vindos sobretudo de Agostinho, este último está daí em diante, no século XIII, bem delimitado nas suas fronteiras temporais. Só se entra lá depois da morte. A purgação não começa na terra. a desenvolvimento das crenças e das práticas de penitência favoreceu sem dúvida o nascimento do Purgatório. Mas a concepção «penitencial» do Purgatório de um Guillaume d'Auvergne não se encontra depois dele com a mesma força. Tomás de Aquino dá a resposta teórica sublinhando que não pode haver penitência senão durante a vida e pena só depois da morte. Portanto a entrada no Purgatório só 345
começa com a morte. Tal como não usurpa o tempo terreno, o Purgatório também não rouba no tempo propriamente escatológico, no pós-ressurreição. Na verdade, o «fogo» purgará não durante o Julgamento Final mas sim antes. O mais importante é que, para os defuntos individuais, o tempo do Purgatório nã9 cobrirá obrigatoriamente todo o período entre a morte e a ressurreição. E mesmo mais provável que a alma do Purgatório seja libertada antes do Julgamento, mais ou menos rapidamente, mais ou menos cedo, segundo a qualidade e a quantidade dos pecados a purgar e a intensidade dos sufrágios oferecidos pelos vivos. Eis, pois, que no além se instala um tempo variável, mensurável e ainda mais manipulável. Daí a precisão com que os narradores de aparições de almas do Purgatório e a. próprias almas indicam, nos seus discursos aos vivos, o tempo decorrido depois da morte, o tempo já cumprido no Purgatório, por vezes as pre- . visões da duração da pena ainda a purgar" e sobretudo do momento em que se deixa o Purgatório pelo céu do Paraíso, o que permite medir O tempo passado no Purgatório. E aqui que se procura instaurar um cálculo, uma contabilidade sobre a relação entre a quantidade de pecados cometidos na terra, a quantidade de sufrágios produzidos em reparação desses pecados e o lapso de tempo passado QO Purgatório. Com as suas considerações sobre a proporcionalidade, Alexandre de Hales deu uma espécie de justificação teórica a esses cálculos que Tomás de Aquino se esforçou por conter. O desenvolvimento do sistema de indulgências abrirá a porta a todos os excessos dessa contabilidade. Assim são postos em relação, de qualquer maneira, o tempo terreno e o tempo do além, o tempo do pecado e o tempo da purgação. O sistema do Purgatório tem ainda duas consequências capitais. A primeira é dar uma renovada importância ao período que precede a morte. E certo que os pecadores sempre foram prevenidos contra a morte súbita e convidados a prepararem-se a tempo, para escaparem ao Inferno. Mas para evitar uma condenação tão pesada era preciso actuar depressa e bem, não levar uma vida demasiado escandalosa, não cometer um pecado demasiado exorbitante, ou, no caso de o cometer, fazer uma penitência exemplar o mais depressa possível, de preferência uma peregrinação a um lugar distante. Para aqueles a quem a ordem monástica podia abrir-se facilmente, eruditos seculares, nobres, poderosos, tomar o hábito quando chegava a velhice e a decrepitude era uma boa garantia. Daí em diante o sistema do Purgatório permite definir na prática comportamentos mais matizados mas igualmente decisivos se se trata de escapar apenas ao Purgatório. O melhor meio é, à falta de uma vida santa, a penitência - cada vez mais precedida de confissão - mas há ainda in extremis esperança de escapar ao Inferno e de se ser passível apenas do Purgatório, se pelo menos se iniciou o arrependimento. A contricão final toma-se cada vez 346
mais o último recurso para beneficiar do Purgatório. Os últimos ~ns~~lOtes adquirem assim uma intensidade suplementar? pois s~ p~a a maioria dos moribundos já há muito tempo é tarde d~ mais para l~ ~lrectamente para o Céu, é ainda tempo de salvação atraves do Purgatono. Parece-me, ~o contrário do que diz Philippe Ariês em O Homem f~rante a.~orte, que e a partir do século XIII que «daí em diante ~ar~ ~hilippe Ariés trata-se dos séculos XIV-XV) a sorte da alma imortal e decidida no mo~ento da morte física» e que o Purgatório é uma das causas fundamentaIs desta dramatização do momento da mortes. , Philippe Ariês prossegue: «Cada ~ez hayera menos .lugar para os espectros e suas manifestações.» Também venfico, a partir ~~ seculo ,XIII e com excepção do pequeno número de almas do Purgatono, o nu~e:o ainda mais pequeno de eleitos ou de condenados que «po.r pe~lssao especial» de Deus fazem curtas aparições aos vivos para edificação destes mas sem se entregarem à vagabundagem. Se compararmos A Lenda D;urada do dominicano Jacopo de Varazze, escrita por vo~ta d~ .1260, com as descrições dos habitantes de Montaillou perante os inquisidores meio século depois, ficamos impression~dos com a ~~gabundagem das almas à volta desses aldeões hereges hostis ao Purga tono e com .a gra~de ausência de espectros no livro do pregador interessado em difundir a , . 9
crença no Purgatono . . O Renascimento assistirá, no entanto, ao regresso dos espectros, pois se o Purgatório continua então a desempenhar o seu papel de laço entre os vivos e os mortos, enriquecendo até essa função com nov~s formas de devoção, parece já não funcionar bem como lugar de reclusao ~as almas penadas. Alguns historiadores do século XVI chamaram a atençao para a vagabundagem recomeçada e para as danças nos cemitérios, terrenos dos , . 10 espectros escapados ao Purgatono . Mas não acho que Philippe Ariês tenha razão ao acrescenta~: ~(Em compensação, a crença - durante muito tempo reservada aos sábios e aos teólogos ou poetas - no Purgatório como lugar de espera, to~ar-se-á verdadeiramente popular, mas não antes dos meados do século XVII.» Interrogam-se até se em certas regiões, na de Toulouse, por exemplo, a voga do Purgatório não acabou no século XVII~ll... . O sistema do Purgatório tem uma segunda consequencla: implica uma definição relativamente concisa dos laços - entre os vivos e os mortos eficazes no caso dos sufrágios. . . A quem aparecem as almas do Purgatório para pedir .socorr?? .PnmelTO à família carnal ascendentes ou descendentes. Depois ao conjuge - e es~ecialmente no s6culo XIII é import~~te o p~p~l ~as viúvas dos m?rt~s do Purgatório. A seguir, às suas famílias artificiais e, antes de ~als? as ordens monásticas a que pertencem se são monges, ou a que estãoligados se são laicos. Enfim, o defunto pode aparecer a um supenor: e eVI347
dente no caso de um monge que vem solicitar um superior do convento, ou da abadia, mas encontra-se também o caso de um vassalo, de um familiar, de um servo que se dirige ao seu senhor, ao seu patrão, como se o dever de protecção por parte do senhor, estabelecido no contrato feudal, continuasse para além da morte, no decurso desse tempo ao mesmo tempo diferente e suplementar que é o tempo do Purgatório. Pouco a pouco, do século XIII ao século XVI, a solidariedade do Purgatório ser' . arrastada nas novas formas de sociabilidade das confrarias. Mas não devemos iludir-nos; e Philippe Ariês, se datou como demasiado tardio esse momento essencial, compreendeu bem que o Purgatório dá outro sentido à fronteira da morte. Se, por um lado, parece tomá-Ia mais transponível, estendendo sobre a encosta do além a possibilidade de remissão dos pecados, por outro põe termo à passagem da vida para a eternidade (gloriosa ou não) como se de um tecido temporal sem costura se tratasse. Aproveitando o termo de Gabriel Le Bras, direi que, para um número crescente de defuntos, abre-se no além um «estágio» entre a vida terrena e a recompensa celeste. O esquema temporal do Purgatório, tal como se exprime nas aparições e se revela nas relações entre vivos e mortos, pode descrever-se assim: pouco tempo depois da morte (alguns dias ou alguns meses, raramente mais) um defunto que está no Purgatório aparece a um vivo a quem estava ligado na terra, informa-o com maiores ou menores delongas da sua situação, do além em geral e do Purgatório em particular, e convida-o a levar a cabo ou a encomendar a outro parente ou pessoa próxima ou a uma comunidade, sufrágios (jejuns, preces, esmolas e, sobretudo, missas) em seu favor. Promete comunicar-lhe numa próxima aparição a eficácia (ou ineficácia) dos sufrágios realizados. Esta reaparição pode fazer-se a um ou a dois tempos. Se há uma primeira aparição, o morto indica geralmente ao vivo que porção da pena já cumpriu. A maioria das vezes uma porção simples, a metade ou um terço, materializada pela aparência exterior do espectro cujo «corpo» (ou «vestuário») são metade negros (tempo que falta cumprir) ou um terço brancos e dois terços negros, etc. Podemos espantar-nos (e os homens do século XIII, ainda pouco familiarizados com um Purgatório banalizado, manifestaram esse espanto) por a estada no Purgatório surgir, na maior parte das vezes, como muito breve, da ordem de dias ou de meses, se bem que num dos primeiros casos mais interessantes, o do usurário de Liêge, a purgação dure catorze anos " 12 ' , em dOISpenodos de sete anos . E que o tempo parece muito longo no Purgatório, por causa da dureza (acerbitas) das penas sofridas. Um dia aparece a alguns, como se verá, tão comprido como um ano. Esta intensidade do tempo do Purgatório é notável a vários títulos. É primeiro uma solução, ainda que grosseira, para o problema da proporcionalidade entre tempo terreno e tempo no além purgatório que põe em relação tempos 348
desiguais e mesmo diferentes. É também o recurso a um conceito psicológico (o sentido subjectivo da duração) bem de acordo com a crescente «psicologização» que caracteriza a literatura da mesma época. Enfim - e não é o menos espantoso nem o menos importante -, o tempo do Purgatório inverte-se em relação ao tempo do além tradicional do folclore. Este e assim definido no contra-tipo 470 da classificação dos contos populares por Aarne-Thompson+': «Anos vividos como dias: os anos passados no outro mundo parecem dias por causa do esquecimento» e, mais ainda, porque lá a vida é agradável. A passagem do branco além céltico para o além muito duro do Purgatório levou à inversão da sensação de tempo. Evolução notável: neste jogo de inversões entre a cultura erudita e a cultura folclórica, é geralmente o folclore que imagina um mundo ao invés. Mas aqui o pensamento erudito, que recebeu do folclore o tema do além de onde se regressa, procede por sua própria conta a uma inversão. Nisto vê-se bem o jogo dos empréstimos recíprocos e dos passos simétricos da cultura erudita e da cultura folclórica. Vejo aqui uma das provas da presença do folclore no seio da génese do Purgatório'". Recordemos a Viagem de Bran, por exemplo, no fim da qual, quando Bran e os companheiros querem voltar à terra de onde partiram, depois do seu périplo pelas ilhas maravilhosas que não são senão o além, ao saltar do navio para terra um deles cai desfeito em cinza «como se tivesse vivido muitas centenas de anos na terra». No século XIII, a literatura das visões não esgotou a sua sedução sobre ouvintes e leitores. Daí em diante as viagens pelo além dão lugar, aberta e nomeadamente, ao Purgatório.
Novas viagens pelo além
Nos primeiros anos do século um cisterciense alemão, Conrado, que foi monge em Clairvaux e depois abade de Eberbach, no Taunus, escreve uma série de milagres e de historietas ao retratar os começos da ordem, O Grande Exórdio Cisterciense ou o Relato dos Começos da Ordem Cisterciense (Exordium Magnum Cisterciense Sive Narratio de Initio Cisterciensis Ordinis). Nele se encontram várias histórias de espectros. O Purgatório raramente é citado porque a obra apresenta-se como a história de um tempo, o século XII, e até 1180 ele ainda não existia. Numa história tirada do Livro dos Milagres, escrito em 1178 por Herbert de Clairvaux, um castelão dado à violência e à rapina, Baudouin de Guise, da região de Reims (que no entanto venerava Pedro, abade de Igny) morrera arrependendo-se mas sem ter tido tempo de fazer penitência. Na própria noite da .ua morte, aparece a um monge invocando o auxílio de S. Bento, enquanto um anjo aparece a Pedro de Igny para pedir sufrágios da comunidade cisterciense pelo morto. Algum tempo depois, dois anjos 349
levam diante do altar da igreja da abadia de Igny, à presença do abade Pedro, o defunto com hábitos negros mas com bom aspecto e feitos de bom tecido. O abade compreende que as vestes negras são sinal de penitência e que esta aparição diante do altar dá a entender que o morto será salvo. Como depois ele não apareceu mais, teve-se a certeza de que fora recebido nos lugares purgatórios (in locis purgatoriis ), promessa de salvação futura. Vê-se que o sistema não funciona bem visto que o morto não volta para informar os vivos da sua passagem do Purgatório para o Paraíso15• Noutra história é Santo Agostinho que aparece numa visão a um santo monge de Clairvaux para o conduzir através de inúmeros lugarea de penas até à entrada do poço da geena 16. Ainda noutro caso Conrado propõe-se mostrar como a prova do fogo purgatório é temível e aterradora: conta a história de um monge que, antes de morrer, é conduzido em espírito aos lugares infernais (ad loca infemalia), onde a breve visão que tem se aproxima muito do Purgatório de S. Patrick (e do Apocalipse de Paulo), e depois a um lugar de refrigério (ad quemdam refrigerii locum). Conrado explica que os mortos são recebidos neste lugar depois de terem sido purgados dos seus pecados com mais ou menos rapidez segundo a quantidade e a qualidade dos pecados, e cita o sermão de S. Bernardo quando da morte de Humberto, superior de Clairvaux, em que o santo dissera que os pecados cometidos cá em baixo deviam ser pagos cem vezes mais até ao último tostão nos lugares purgatórios (in purgatoriis locis) 17. Recordações de um tempo em que o Purgatório se preparava para nascer mas ainda não existia, estas visões e aparições do Magnum Exordium Cisterciense têm um perfume arcaico. O Purgatório está em compensação bem presente nas visões relatadas um pouco mais tarde por dois beneditinos ingleses, herdeiros da grande tradição céltica e anglo-saxónica desde Bede. O primeiro, Roger de Wendover, monge da grande abadia de Saint-Albans, falecido em 1236, conta nas suas Flores das Histórias (Flores historiarum), datadas de 1206, a viagem de Thurchill ao além'", Quando trabalhava no seu campo, este camponês da aldeia de Tidstude, na diocese de Londres, vê aparecer um homem que diz ser S. Julião Hospitaleiro e que o previne de que virá buscá-l o na noite seguinte para o levar junto do seu patrono S. Tiago de que é devoto, e para lhe mostrar, por permissão divina, segredos escondidos aos homens. Chegada a noite, vem com efeito acordá-Io no seu leito e faz-lhe sair a alma do corpo que fica no leito mas não inanimado. O seu guia fá-lo entrar numa grande e esplêndida basílica que não tem paredes excepto uma, não muito alta, a norte. S. Julião e S. Domnius, guardas da basílica, levam Thurchill a visitá-Ia. São os lugares que Deus destina aos mortos sejam eles condenados ou salvos pelas penas do Purgatório (per purgatorii poenas). Junto
du parede Thurchill vê almas manchadas de preto e branco. As mais brancas são as mais próximas da parede e as negras as mais distantes. Ao lado da parede abre-se o poço do Inferno e Thurchill sente o seu odor rétido. Esse odor, diz-lhe Julião, é um aviso por ele não pagar as suas dizimas à Igreja. Mostra-lhe a seguir a leste da basílica um grande fogo purgatório pelo qual passam almas antes de serem purgadas num outro purgatório, esse gelado, um lago muito frio onde a passagem é regulada por S. Nic~lau (que já encontrámos como santo do Purgatório). Por fim, 11M almas passam mais ou menos depressa por uma ponte com estacas e pregos aguçados para a montanha do Paraíso (o monte de alegria, mons /luudii). Regressados ao centro da basílica, Julião e Domnius mostram a 'l'hurchill a triagem e a pesagem das almas. S. Miguel Arcanjo, S. Pedro e S. Paulo procedem a elas em nome de Deus. S. Migue1 faz passar as almas todas brancas pelas chamas do fogo purgatório e pelos outros lugares de penas sem que elas fiquem feridas, e leva-as para o monte do Paraíso. As que estão manchadas de branco e preto, S. Pedro fá-Ias entrar no fogo purgatório para aí serem purgadas pelas chamas. Q~anto às almas todas negras são objecto de pesagem entre S. Paulo e o diabo, Se a balança se inclina para o lado de S. Paulo, este leva a alma para ser purgada no fogo purgatório; se se inclina para o lado do diabo, este leva-a para o Inferno. 'l'hurchill, acompanhado de S. Domnius, visita a seguir demoradamente o Inferno guiado por Satanás, excepto o inferno interior. Aproximando-se do átrio de entrada do monte de alegria apercebe-se de que S. Miguel faz nvançar as almas que esperam mais ou menos depressa em proporção com o número de missas que os amigos e a Igreja universal mandaram dizer pela sua libertação. Depois percorre rapidamente muitas casas do monte paradisíaco com S. Miguel por guia e termina com uma volta pelo Paraíso terrestre. S. Julião aparece-lhe de novo e ordena-lhe que conte o que viu. Daí em diante, no dia de Todos-os-Santos, Thurchill contará a sua visão. Fá-lo em linguagem vernácula e admiram-se por aquele rústico anteriormente sem cultura e com dificuldade de falar, dar prova de uma bela eloquência nestes relatos'". Esta descrição cheia de arcaismos agrupa, de facto, em três lugares, Paraíso, Inferno e Purgatório, o mundo do além, mas a divisão geográfica não é perfeita. O Inferno inclui uma parte superior e outra inferior, o Paraíso contém muitas casas e a sua montanha parece-se com a torre de BabeI, e o Purgatório é feito de três pedaços colados uns aos outros: o fogo, o lago gelado e a ponte.
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o Purgatório
celebrado: os «exempla»
Estas histórias ainda só eram destinadas a um auditório limitado, o dos mosteiros; faltava-Ihes chegar às massas laicas.
o grande
meio de difusão do Purgatório é o sermão e dentro sermão, as historietas com que os pregadores recheiam as suas homil e que fazem passar a lição através do divertimento da anedota. Este curs? a uma f~rma narrativa curta é um dos meios principais pelo qual Igreja moderniza o seu apostolado, mantendo-se porém dentro de u longa t~a~i.ção. Na ocorrência es.tas historietas edificantes, estas exemp comp~t.lblhzam-se - apesar de diferenças notórias - com as narrações Gregono, o Grande, nos seus Diálogos. Ora essas narrações são com sab~~os, um marco essencial no caminho do Purgatório. O e~cont decisivo no século XIII entre o Purgatório e o exemplum é a consecu retumbante do cenário que, seis séculos e meio antes, Gregório, o Grau de, esboçaraê" . O se?Dão teve ~emp.reum lugar importante no apostolado da Igrej mas o seculo XIII e o seculo do renascimento do sermão no seio de discurso novo, mais directo, mais realista, do qual os irmãos mendican são em breve os principais promotoresê'. O sermão - e as suas incrus ções, os exemp/a - é o grande meio de comunicação de massas do sécul XIII, a mensagem recebida po~ todos os fiéis, mesmo havendo algun. desertores da rmssa e e~ e~pecIal da pregação, mais dados a ser pilarei de taberna do que de Igreja. O sermão recheado de exempla já não' apenas ~m momento esperado do oficio, desenvolve-se separadamente, nas Igrejas ou nas pra.ças, prefiguração da conferência e do «meetings, A par com os malabanstas cujo público é sobretudo de nobres, os pregadores da .moda tornam-se os «ídolos» das multidões cristãs. Mostramolhes, ensinam-lhes, o Purgatório.
Duas passagens são particularmente significativas. A primeira está
num modelo de sermão Aos esposos (Ad conjugatos): «A contrição
!acques de Vitry é um dos primeiros autores de modelos de sermões che~os d~ exemp/a qu~ iriam s~r m.uito utilizados depois. Formado pela U~l1~ersldade de Pans nos pnmeiros anos do século XIII, pároco de Oigmes no No~e de França, em contacto com o meio das beguinas (ess~s mulh~res re~Iradas no meio das cidades para aí levarem uma existência a meio carmnho entre a das laicas e a das freiras), pregador célebre entre ~a parte da cristandade, sobretudo em França, bispo de Acre na Palestina e, por fim, cardeal bispo de Tusculum (morre em 1240): é um p:rsonagem considerávell/ê Nas suas recolhas de sermões o Purgatório nao ~cupa grande lugar, mas vê-se nele o novo sistema do além bem acreditado e oferece-nos particularidades interessantes. Com efeito, deve acrescentar-se aos seus exempla as partes teóricas dos sermões que exprimem as suas concepções.
transforma a pena do inferno em pena do Purgatório, a confissão em pena temporal, a satisfação conveniente em nada. Na contrição o pecado morre, na confissão é retirado da casa, na satisfação é enterrado'".» Ex.posição notável que liga o Purgatório à contrição e ao processo penitencial e que sublinha o regresso decisivo do Inferno para o Purgatório. Num modelo de sermão para os domingos, Jacques de Vitry evoca a Ideia de um repouso dominical no Purgatório: «Faz parte da devoção Acreditar, e muitos santos o afirmam, que no dia do Senhor as almas dos defuntos repousam ou, pelo menos, sofrem castigos menos duros no Purgatório até segunda-feira, quando a Igreja tem o hábito de os socorrer na sua compaixão, celebrando uma missa pelos defuntos. Assim, é a justo título que são privados do beneficio desse repouso dominieul aqueles que não honraram cá em baixo o dia do Senhor, recusando Abster-se dos trabalhos servis e dos negócios do século ou, pior ainda, entragando-se a comezainas e à bebida e a outros desejos carnais, dando-se lascivamente a danças e canções, e que não tiveram receio de sujar e de desonrar os domingos com querelas e discussões, com propósitos vãos e ociosos, com palavras maldizentes e temerárias'".» Transposição do repouso sabático no Inferno para uma trégua dominical no Purgatório, ligação entre o comportamento ao domingo cá em baixo e a pena de domingo no além. A Igreja amarrou decididamente o Pnrgatório à prática terrena num paralelismo edificante. Dos modelos de sermões de Jacques de Vitry destinados ao conjunto lias situações humanas (sermones vulgares ou ad status) apenas aproveito dois exempla em que o Purgatório tem um papel fundamental. O primeiro, talvez proveniente do cisterciense Hélinand de Froimont, veio das lendas tecidas em volta de Carlos Magno e dirige-se «àqueles que choram a morte de parentes ou amigos». Situa-se pois nas novas formas de sociabilidade entre os vivos e os mortos. Um cavaleiro do séquito de Carlos Magno numa expedição contra os Sarracenos em Espanha pede por testamento a um parente que, depois da sua morte, venda o seu cavalo em beneficio dos pobres. O parente, indelicado, fica com o cavalo. Ao fim de oito dias o morto aparece-lhe, censura-lhe ter retardado a sua libertação do Purgatório e anuncia-lhe que no dia seguinte ele expiará a sua culpa com uma morte horrível. No dia seguinte aparecem corvos negros que levam o infeliz pelos ares e o deixam cair sobre um rochedo onde parte a cabeça e morre'". O papel dos vivos para com os mortos do Purgatório é evocado com bastante subtileza e a diferença entre pecado venial e pecado mortal fica bem ilustrada. Aqui o objectívo é incitar ao cumprimento das disposições testamentárias, em especial quando se tr ita
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Um precursor: Jacques de Vitry
de cláusulas reparadoras, pelos testamenteiros. O jogo Purgatório/Inf no enriquece a panóplia das ameaças. O s~gundo exemplum mal evoca o Purgatório, mas nem por isso menos Importante e está ligado às prédicas a favor da cruzada. U mulher ,im~ede o marido ~e ir ouvir um sermão pela cruzada preg pelo propno Jacques de Vitry. Mas ele consegue ouvi-lo por uma j Ia, e quando o pregador anuncia que esta penitência permite evitar p~~a~ p~rgatórias e a pena da g~ena, e obter o reino dos céus, foge vigilância da mulher, salta pela Janela e vai ser o primeiro a tomar cruz2~. Cruza~a, indulgência e Purgatório, evocação do sistema trip do alem, também aqui se apresenta um modelo onde o Purgatório des penha um papel intermédio cada vez mais importante.
Em forma de diálogo que lembra Gregório, o Grande o cisterciense Ce.sário de Heisterbach elaborou entre 1219 e 1223 u~ Diálogo dOI MIlagres, na verdade uma recolha de historietas em que assistimos 4 tr~nsformação do relato tradicional do milagre em exemplum, conto 27 e?Ificante. ._ Mas esta r;c~lha tem ~a orientação que é uma peregrinaçao do cnstão aos fins últimos, ao alem. As doze etapas desta peregrina-
\lIo que constituem os doze livros (destaques) do Dia/ogus miracu/orum do a conversão, a contrição, a confissão, a tentação, os demónios, a aimplicidade, a Virgem Maria, as visões, a eucaristia, os milagres, os moribundos e a recompensa dos mortos'". Este último capítulo é, evidentemente, aquele onde o Purgatório aparece em plenitude, quer pelo número e os pormenores dos exempla quer pela estrutura da obra. A estrutura do décimo-segundo e último destaque é simples. A da recompensa dos mortos é tripla. Para uns é a glória do Céu (Paraíso celeste), para outros são ou as penas eternas do Inferno ou as penas temporárias do Purgatório. Em cinquenta e cinco exempla, vinte e cinco são dedicados ao Inferno, dezasseis ao Purgatório e catorze ao Paraíso. Por esta simples contagem se vê que, apesar de Cesário ser um espírito liberal e misericordioso e a «infernizaçâo» do Purgatório não ter atingido a intensidade a que chegará mais tarde no mesmo século, o Inferno continua u ser o lugar de onde se extraem mais lições. Causar medo constitui uma preocupação, se não primeira pelo menos essencial'". Entre Inferno e Paraíso, porém, o Purgatório conquistou para si um lugar praticamente igual. Mas o Purgatório não esperou pelo último destaque do Dialogus miraculorum para aparecer. Andrée Duby citou oito «exempla do Purgatório», entre os quais alguns importantes para a doutrina do Purgatório visto por Cesário ". Na verdade, se o Purgatório faz daí em diante parte do último capítulo das súmulas cristãs, o que trata dos «fins últimos», dos novissima, encontra-se também no horizonte de cada etapa da vida espiritual. Apresentarei quatro exempla importantes dos primeiros livros antes de tratar do bloco de exempla do Purgatório do último «destaque», No primeiro capítulo que trata da conversão, Cesário de Heisterbach conta a história de um estudante pouco dotado que, para ter êxito nos estudos, aceita, a conselho do diabo, recorrer à magia. Segurando na mão um talismã que Santanás lhe deu, brilha nos exames. Mas fica doente e em artigo de morte confessa-se a um padre que o faz deitar fora o talismã. Morre e a sua alma é transportada para um vale horrível onde espíritos com mãos de unhas compridas e afiadas brincam com ela como se fosse uma bola, e ao brincarem ferem-na gravemente. Deus tem piedade dele e ordena aos demónios que deixem de torturar aquela alma. Esta reintegra o corpo do estudante que volta à vida. Assustado com o que viu e experimentou, converte-se e faz-se monge cisterciense, vindo a ser abade de Morimond. Trava-se então um diálogo entre o noviço e o monge, ou seja, Cesário. O noviço pergunta se o lugar de tormentos do estudante era o Inferno ou o Purgatório. Cesário responde que, se o vale das penas pertencesse ao Inferno, isso significaria que a sua confissão não fora acompanhada de contrição e verdade é que ele consentiria em ficar
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Dois grandes divulgadores do Purgatório
É entre os religiosos das ordens e no contacto ainda mais estreito co os meios urbanos que devemos procurar os grandes divulgadores do Purw gatório por meio da prédica e dos exempla. E eis dois deles, eminen entre todos os ou!r~s: São bem diferentes de Jacques de Vitry e o cOQ, traste entre eles dOISe Igualmente grande. São dois monges, um cistercien •• e o outro dominicano, e viveram nos dois primeiros terços do século XIQ mas ~m morreu em 1240 e o outro vinte anos depois, em 1261: um • alemao e o seu ponto de referência geográfico e cultural é Colónia, cOe quanto o outro é francês e a sua experiência vai da formatura universi« tária em Paris até à sua actividade como inquisidor num grande círculo ao redor do Convento dos Pregadores de Lyon. Porém, ambos escrevem obras para uso directo ou indirecto dos pregadores e ambos rechearam di exempla os seus tratados a ponto de eles terem sido (erradamente) considerados compilações de exempla. Um e outro dão sobretudo uma grande importância ao Purgatório tanto nos exempla como na construção teórica em que se Inserem. Com eles surge nitidamente o além triplo Inferno Purgatório e Paraíso, num equilíbrio relativo que culminará co~ a Div~ na Comédia. 1. O cisterciense Cesário de Heisterbach
à
com a pedra mágica mas recusara render homenagens ao demónio. N entanto, o que impede Cesário de falar explicitamente do Purgatório respeito deste abade de Morimond é o facto de não haver anjos na sua visão mas sim demónios. Ora o mestre de Cesário nas escolas de Colónia.. Rudolfo, ensinara-lhe que os demónios nunca tocavam numa alma eleita e que eram os anjos bons que a levavam para os lugares do Purgatório,' «se ela for digna do Purgatório» - expressão que indica que o Purgatório é promessa de Paraíso, esperança, concessão da justiça misericordiosa d.
Deus".
A
.
No capítulo da contrição, o segundo, Cesário conta a história de um jovem monge quê deixou o convento, fez-se salteador de estrada e foi mortalmente ferido durante o cerco a um castelo. Antes de morrer confessa-se e os seus pecados parecem tão grandes ao confessor que este não encontra penitência para lhe dar. O moribundo sugere mil anos de Purgatório ao fim dos quais espera a misericórdia divina; e antes de expirar pede ao padre que leve a um certo bispo uma carta em que lhe roga que reze por ele. Morre e é levado para o Purgatório. O bispo, que nunca deixara de amar aquele ex-monge apesar da sua apostasia, reza e manda rezar por ele durante um ano todo o clero da sua diocese. Passado um ano o morto aparece-lhe «lívido, descamado, magro, vestido de negro», Agradece todavia ao bispo porque esse ano de sufrágios lhe retirara mil anos de Purgatório e declara que mais um ano de ajuda o libertaria totalmente. O bispo e o seu clero repetem os esforços. Ao cabo do segundo ano, o morto reaparece ao bispo «de cogula branca e com ar sereno». quer dizer com o hábito cisterciense. Anuncia a sua partida para o Paraíso e agradece ao bispo, pois aqueles dois anos lhe haviam sido contados por dois mil anos. O noviço fica maravilhado com o poder da contrição do morto e com o poder das preces que o libertaram. Cesário sublinha que a contrição é mais eficaz do ~ue os sufrágios que podem diminuir a pena mas não aumentar a glória" . A história de um jovem monge cisterciense de Heisterbach que se encontra no último livro do Dialogus miraculorum, Cristiano, contém igualmente muitos ensinamentos sobre a contabilidade do Purgatório segundo Cesário. Trata-se de um monge muito piedoso, impregnado durante a vida de um perfume aromático semelhante ao odor de santidade, mas fraco de espírito, favorecido com visões da Virgem, dos anjos, do próprio Jesus, mas atormentado por provações de tentação, como perder o dom das lágrimas que lhe é restituído por um beijo num crucifixo. A sua última provação é uma doença terrível. Aparece-lhe Santa Agata que o exorta a suportar com resignação aquela doença, pois sessenta dias de sofrimento ser-lhe-ão contados por sessenta anos. Sessenta dias após esta aparição, no dia da festa de Santa Ágata, morre. Segundo Cesário, os propósitos de Santa Agata podem ser interpretados de duas maneiras: 356
ou esses sessentas dias de doença o purgaram dos seus pecados como !Ie fossem sessenta anos de Purgatório, ou a maneira como ele suportou o sofrimento durante sessenta dias conseguiu para ele um mérito de sessenta anos33. Cesário interpreta da maneira activa, valorizadora e não meramente negativa, a acção dos méritos cá de b~ixo do mundo. Como no caso anterior, Cesário privilegia a vontade actrva do homem de preferência às virtudes passivas. A história do monge Cristiano de Hemmenrode pretende por em eVIdência o poder da Virgem Maria. Este Cristiano, também ele ~astante ingénuo, ainda antes de ser monge ~ enquanto ~studante e depOls. padre resiste a várias tentações e é favorecido com visoes por Santa Mana Madalena e sobretudo pela Virgem Maria. Já monge em Hemmenrode, u.m dia em que sonhava com as penas do Purgatório tem um~ vi~ão: a Virgem, rodeada por outras virgens e acompanhada do fale.cldo Impera~or Frederico Barba Ruiva, preside ao seu funeral. Leva consigo para os ceus Il alma do defunto que multidões de demónios reclamam em vão, soprando sobre ela colunas de fogo. Anjos conduzem a alma até um grande fogo e comunicam-lhe que depois da morte ela voltará àquele lugar e ~erá de passar através daquele fogo. Regressado à ~i~a, Cristiano. continua a levar no mosteiro a sua vida santa cheia de visoes e de humildade. Esta humildade explica-se pelo facto de não só ter perdi?o a virgin~ade na sua juventude mas também por ter dois filhos nat~rals, am?os mgressad.o.s, aliás, na ordem cisterciense. Tem portanto maior necessidade do auxilio da Virgem Maria. Esta atende-o tanto que n.o moment~ da ~ua ~orte a Virgem e o Menino Jesus aparecem-lhe vestindo o habito Clsterclen~e. e quando ele morre recebem-no no Paraíso. A visão do fogo do Purgatono • se ven 'fiICOUpor tan t o 34 . nao . No caso dos dois Cristianos, Cesário quis mostrar que o pior nunca está assegurado e que o primeiro Cristiano sou~ escapar ao Infem~ ~ara ir para o Purgatório, enquanto ao segundo foi poupado o Purgatono e
I
•
dado o Inferno. . Os exemplo do décimo segundo e último «destaque» respeítantes a? Purgatório formam, numa primeira abordagem, trê~ g~pos, segundo cntérios em que se misturam considerações novas e. l~elas tradlcl0n~ls. ~ que está em primeiro lugar no espírito da é~~a e ligar o novo alem .as categorias de pecados. De acordo com a tradição .esta, em ~ompensaça?, a preocupação de fornecer pormenores sobre os dl.feren~es ~~os de sufrágios. Enfim, caracteristico do século XIII é o desejo de ínsisnr na dureza das penas do Purgatório, evidente até num espinto pleno de mansuetude como o de Cesário. . . O primeiro grupo (oito exemplo, dos números 24 a ~Al) ~lZ, 'pOlS, .respeito à avareza (cupidez), à luxúria, à magia, à desobediência, a obstinação perversa, à superficialidade e à preguiça. .. 357
o usurário
de Liege: Purgatório
e capitalismo
Notam-se os pontos fortes deste texto. A ênfase posta no valor dOI laços conjugais numa altura em que a Igreja procura impor um modelO matrimonial de monogamia baseada na igualdade dos dois cônjuges, fi a um modelo aristocrático masculino todo orientado para a salvaguarq do património e pouco respeitador do carácter único e indissolúvel dOi laços conjugais'". No sistema dos sufrágios pelas almas do Purgatório slQ no geral as estruturas do parentesco aristocrático que actuam, e nelas Q' papel da mulher é secundário. Aqui, pelo contrário, no meio urbano ti burguês, o laço conjugal passa para primeiro plano, no além como 01. em baixo. O sistema de proporcionalidade temporal entre o tempo dOI' sufrágios terrenos e o tempo das penas do Purgatório e a ocorrência d•• aparições reguladas pela divisão dessa relação de tempo, dois períodos dt
"te anos terrenos indicados pelas vestes do morto, sucessivamente negras • brancas. A evocação da panóplia dos sufrágios: esmolas, jejuns, preces, vlllilias, onde faltam as missas mas que uma forma extrema de comunhão do" santos completa e resume: a penitência de substituição do vivo sob a rurma de erernitismo penitencial no meio urbano: a vida de reclusão. A precisão, a nível do vocabulário, sobre as relações entre Inferno e Purgalório, a passagem do vocabulário infernal das Escrituras para o vocabu"rio do novo Purgatório que aspira a ele, Inferno, e conserva lerllPorariamente - a sua dureza. . Mas o mais espantoso não é isto. A surpresa deste texto (que o foi provavelmente também para os ouvintes e os leitores deste exemplum) é u facto de o herói, o beneficiário desta história, ser um usurário. Num momento em que a Igreja redobra esforços contra a usura severamente eondenada no segundo (1139), terceiro (1179)37 e quarto (1215) concílios de Latrão, no segundo concílio de Lyon (1274) e ainda no concílio de Viena (1311), no momento em que se desenvolve entre a cristandade uma campanha contra a usura, particularmente intensa no começo do IlÓculoXIII na Itália do Norte e em Toulouse, e em que a avareza está vias de roubar ao orgulho o primeiro lugar entre os pecados mortais'", quando os fiéis têm sempre debaixo dos olhos esse tema favorito da imaginária romana - o usurário, presa certa do Inferno, puxado pura a geena pela bolsa recheada que lhe pende do pescoço, ei-lo, o usuririo, salvo por uma hipotética contrição final e pela dedicação da espo111. apesar da resistência da Igreja representada pelo topo da sua hierarquia. Demonstrei noutro livr039 como, na linha deste exemplum, no decurso do século XllI e em determinadas condições, o usurário vai ser arrancado 10 Inferno e salvo por e através do Purgatório. Avancei mesmo a opinião provocadora de que o Purgatório, ao permitir a salvação do usurário, contribuíra para o aparecimento do capitalismo. Aqui desejaria sobretudo realçar o papel do Purgatório no domínio socioprofissional. Uma das !'unções do Purgatório foi, com efeito, subtrair ao Inferno aquelas cate.orjas de pecadores que, pela natureza e gravidade da sua culpa, ou pela hostilidade tradicional à sua profissão não tinham anteriormente hipótese de lhe escapar. Por um lado, há pecados gravíssimos, designadamente no meio monástico, como a apostasia ou a luxúria que podem beneficiar, pelo preço de uma permanência mais ou menos longa no Purgatório, da salvação flnal, quando o seu caso era até então desesperado. Têm de facto a possibilidade, principalmente em Cister, de serem favorecidos pela intensidade do culto mariano em pleno desenvolvimento - e que intercessor mais eficaz do que a Virgem em casos aparentemente desesperados? - e pela solídez dos laços comunitários da ordem. Mas, por outro lado, as cate-
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o
exemplum que abre a série parece-me de particular a história do usurário de Liêge:
importância.
o MONGE: Um usurário de Liêge morreu na nossa época. O bispo dou expulsá-lo do cemitério. A mulher dele foi junto da cúria apostólica implorar que ele fosse enterrado em Terra Santa. O Papa recusou. Ela ar mentou então a favor do esposo: «Disseram-me, Senhor, que marido e m são apenas um e que, segundo o apóstolo, o homem infiel pode ser salvo esposa fiel. Aquilo que o meu marido se esqueceu de fazer, eu, que sou parte do seu corpo, fá-lo-ei em seu lugar. Estou pronta a entrar em e1au por ele e a resgatar a Deus os seus pecados» Cedendo aos rogos dos card o Papa mandou o morto para o cemitério. A mulher passou a viver ao lado seu túmulo, fechou-se como reclusa e esforçou-se dia e noite por aplacar para salvação da sua alma, por meio de esmolas, jejuns, orações e vigílias. cabo de sete anos apareceu-lhe o marido vestido de negro e agradeceu«Deus te pague, pois graças às tuas provações fui retirado das profun do Inferno e das penas mais terríveis. Se me prestares tais serviços duran mais sete anos, ficarei completamente livre.» Ela assim fez. Ele apareceude novo passados sete anos, mas desta vez vestido de branco e com um ar fe «Graças a Deus e a ti fui hoje libertado,» O NOVIÇO: .Como pode ele dizer-se liberto do Inferno, lugar onde existe resgate possível? O MONGE: As profundezas do Inferno significam a dureza do Purgat6i rio. Assim quando a Igreja reza pelos defuntos dizendo: «Senhor Jesus Criltof Rei de Glória, liberta as almas de todos os fiéis defuntos da mão do Inferno. das profundezas do abismo, etc.», não está a rezar pelos condenados, mil pelos que podem ser salvos. A mão do Inferno, as profundezas do abismo. querem dizer aqui a dureza do Purgatório. Quanto ao nosso usurário, nlo teria ficado livre das suas penas se não tivesse manifestado uma contriçlt fmaes.
.m
gorias socioprofissionais desprezadas e condenadas, os que derra sangue, os manipuladores de dinheiro, os maculados de impureza ter esperança, se cá em baixo no mundo souberam agradar suficientem te (também com os seus tesouros de iniquidades?) aos seus próximos. como a Virgem, aqui é a esposa que pode operar maravilhas e a legisl bem como a jurisprudência anti-usurárias do século XIII interessam devotadamente pelas viúvas de usurários.
o Purgatório
é a esperança
Um segundo exemplum baseado na cupidez faz com que a uma fi cisterciense apareça um superior recentemente falecido, com um as lívido e débil, o hábito coçado, o qual lhe revela que vai finalmente fi liberto do Purgatório quando de uma solenidade da Virgem Maria, ças aos sufrágios de um dos seus monges. Pasmo da freira: toda a gente julgava tão «santo»! Causa da sua passagem pelo Purgatório: levado avareza, aumentou para além das conveniências os bens do mostei Aqui actua um sistema triplo de relações intercistercienses, um su rior, um monge e uma freira. As mulheres têm um papel importante funcionamento do Purgatório, particularmente em Cister e muito el cialmente em Cesário de Heisterbach'". O pecado da freira de Sion en Frise é muito grave. Foi seduzida um prelado e morreu ao dar à luz. Antes de morrer, confiou-se à I família carnal: o pai, a mãe, duas irmãs casadas e um primo direi Mas estes, sem esperança de poderem salvá-Ia, tanto o seu caso lhes rece evidente, não se preocupam com sufrágios. Assim, ela vai solici um abade cisterciense que fica admirado com a sua aparição porque a conhece. Cheia de vergonha, pede timidamente «ao menos um salmo algumas missas» sem se atrever a revelar-lhe a sua culpa nem a sua id tidade completa. Por fim ele encontra uma tia da morta, também o freira cisterciense, que lhe explica tudo. Alertam os pais que reencon a esperança, bem como a família carnal e todos os monges e freiras província. A história não diz como termina esta mobilização, mas a pida salvação da pecadora não oferece dúvidas. A Virgem não interv directamente neste salvamento, mas o nome próprio da heroína - úni indicação que ela ousa confiar ao abade - é Maria. Este breve relato, fei com muita delicadeza e verdade psicológica, realça a função essencial Purgatório, nesse começo do século XIII. OS pais da infeliz desesperar e depois reencontraram a esperança (de animae ejus salute desesperantes., spe concepta). O Purgatório é a esperança": : Outro exemplum apresenta um marido orando pela esposa defun que aparecera à sua cunhada, uma reclusa, para a informar das duril" 360
mas penas que sofria no Purgatório. Esta mulher que parecia boa e honesta entregara-se a práticas de magia para conservar o amor do marido. O noviço, sem pensar na faceta supersticiosa deste comportamento, fica impressionado com a severidade de Deus para com pecados que ele considera pecadilhos. Atenção, parece dizer o texto, o nosso ponto de vista não é forçosamente o de Deus42. Cesário reforça. Deus é muito rigoroso, mesmo quezilento. Quando os monges não obedecem a todas as prescrições dos superiores e lhes opõem uma resistência obstinada, mesmo que - dei Me trate de e coi COIsaspequenas, D eus, esse, nao eixa passar na d a43 . Depois da negligência, eis o seu oposto, a teimosia, punida no Purgatório. Uma teimosia que é, também ela, uma forma de desobediência. Um mestre-escola que se fizera monte no mosteiro de Pruilly mostrara-se de um rigor que o seu abade tinha em vão tentado moderar. Morreu e, uma noite, o abade que se encontrava na Igreja para as laudes viu surgir no coro três personagens semelhantes a velas a arder. Reconheceu-as: no meio estava o mestre-escola tendo ao lado dois conversos recentemente falecidos. O abade disse ao monge defunto: «Como vais? - Bem», responde o outro. O abade, que se lembrava da sua obstinação, admira-se: «Não sofres nada por causa da tua desobediência?» A aparição confessa: «Sim, sofro muitos e enormes tormentos. Mas como a minha intenção era boa, o Senhor não me condenou.» Quanto aos conversos, o abade admira-se por um, que foi apóstata, brilhar mais do que o outro a quem nada havia a censurar, e o monge explica-lhe que, depois do seu pecado, o primeiro arrependeu-se e ultrapassou em fervor o segundo, que não passava de um pusilânime. Aqui intervém um pormenor interessante: para deixar um testemunho irrefutável da sua aparição, uma prova da existência do Purgatório de onde se pode regressar por um instante, o monge defunto dá um tal pontapé no estrado onde se cantam os salmos que o deixa rachado. Assim nasce uma «relíquia» do Purgatório. São relíquias destas, datando as mais antigas do fim do século XIII e as mais recentes de meados do nosso século xx, que estão reunidas no pequeno Museu do Purgatório em Roma. Que lição tirar deste exemplum? Cesário e o noviço estão de acordo ao ver confirmado o sistema de valores de S. Bento que reprova tanto os que se obstinam no rigor como os que são demasiado «superficiais»44. É uma exaltação da moderação beneditina confirmada pelo Purgatório. A alusão à superficialidade é uma transição hábil para falar no caso do sacristão João, do mosteiro de ViIlers, homem religioso mas que foi superficial nas palavras e nos actos (in verbis et signis}, Condenado ao Purgatório, aparece ao seu abade que fica aterrorizado'". Por fim, nesta revista dos pecados monásticos punidos no Purgatório, eis castigada a preguiça. Um abade de Hemmenrode observava em tudo a disciplina da ordem, mas era renitente para trabalhar com as mãos jun361
tamente com os irmãos. Antes de morrer, prometeu a um monge a q amava .entre todos os outros, aparecer-lhe trinda dias depois da mo para o informar do seu estado. Na data prevista manifesta-se brilhan da cintura pala cima, mas todo negro para baixo. Reclama ~rações ~o.n§;s e aparece de no,:o para an~nciar a sua libertação do Pur t<:>no . O noviço pede entao para ser mformado da hierarquia dos suf g10S. As orações são mais eficazes para os mortos do que as esmo Alguns exempla vão dar-lhe a resposta. Eis primeiro o. caso d~ u~ morto que aparece a um amigo e lhe diz q . a escala e a segwnt.e: pnmeiro as orações, os sufrágios a bem dizer um tanto mornos, depois as esmolas e sobretudo as missas. Na missa o Cri ••• , ora, e o seu corpo e o seu sangue são as esmolas?". Um nobre adole~nte que se fez converso em Clairvaux guardava reb~~o de ~a. quinta. Um primo-irmão defunto aparece-lhe e pede a~xilio de tres missas para se libertar de enormes tormentos. Ditas as t missas re~pareceu para a~~dece~ e afirmou que não deviam admirar ••• ' com as Virtudes da eucanstia, pois uma breve absolvição podia ser s ciente para libertar certas almas'". E então 9ue se vê aparecer o monge Cristiano de Heisterbach de q . se falou atras, que morrera na ausência do abade. Quando este voltou ~assados set~ dias bastou-lhe dizer «Que descanse em paz» para que Cri •• bano fosse libertado do Purgatórío'". Mas é n~ssário q~e. a intercessão - por muito modesta que seja •. venha de um íntermediáno eficaz. Uma beneditina do mosteiro de Rindorp, perto de Bona, era devota de S. João Evangelista. Depois de morrer. apareceu a um~ freira que ~ra também sua irmã carnal e rezava por ela, para lhe anunciar a sua salda do Purgatório. Mas revela-lhe que o seu mtercessor não f?ra S._João mas ~. Bento, que se limitara a ajoelhar perante Deus em mtenção dela. ASSIm se recorda aos monges e às freiru a vantagem que há em honrar os santos fundadores da sua ordem'? . .O~últimos exempla de Cesário sobre o Purgatório têm por objective insistír na dureza das penas do Purgatório. O noviço perguntou a Cesário se era verdade ~ue a .m~is insignificante pena do Purgatório era superior a q~_alquer pena .1magmavel deste mundo. Cesário responde dando a opínrao de um teologo que consultara sobre o assunto. «Não é verdade, respondeu este, a menos que se fale do mesmo género de pena: por exempl~, o fogo do Purgatório é mais forte do que qualquer fogo terrestre, o fno mais asp~ro do qu~ qualquer frio cá em baixo, etc.». Mas pode haver no Purgatono penas inferiores a certas penas terrestres. Mesmo , reconhece~do a dureza das penas do Purgatório, Cesário, espírito mode- . ~a~o, desejoso ~e mostrar toda a maleabilidade do sistema do Purgatório, insiste ?~amplitude das penas do Purgatório, que oferece o maior leque de puniçoes.
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Assim, uma pequena freira de nove anos do mosteiro de Mont-Saint.Bauveur, próximo de Aix-Ia-Chapelle~ irmã Gertrudes, aparece a .~a eompanheira do convento da mesma Idade, com quem tinha o hábito de tagarelar durante o oficio. Condenada a cumprir o seu .P.urgat.óri? nos locais onde pecara, teve de voltar quatro vezes para participar, mV1Ilvel excepto para a amiga, no oficio do convento. O noviço vê que esta .. pena foi pequena ao lado de algumas penas terrenas 51 . Por filID, C esano propõe um exemplum que mostra o que I?oderíamos ~hamar de grau zero do Purgatório. Uma criança pequena muito pura, Guilherme, que entrara na ordem morreu ao fim de um ano de provações. Aparecendo a um monge, disse-lhe estar em sofrimento. Este fica atemorizado: «Se tu, inocente, és castigado, o que me acontecerá a mim, pobre pecador? - Sosseresponde o menino morto, o que eu estou a sofrer é apenas estar privado da visão de Deus.» Algumas orações durante ~te dias b~s~ram para que ele reaparecesse, protegido pelo manto da Virgem Mana, indo para o Paraíso. Cesário apresenta aqui um Purgatório próximo do limbo das crianças t faz notar que o caso do pequeno Guilherme não é excepcional: um teólogo afirmou-lhe que um certo número de justos, que apenas tê~. a til piar pecados veniais insignificantes, têm como castigo no Purgatono isão dee D eus 52 . lerem privados durante um certo tempo d a visao Aqui Cesário atinge um ponto extremo da dout~na do. Purgató~~. Não só abre ao máximo o leque das penas, mas tambem articula explicitumente a reflexão teológica sobre o Purgatório com uma outra preocupução que, sem ser mencionada, deve estar-lhe muitas ~ezes ~ga~a: a reflexão sobre a visão beatifica. Para dar todas as suas dimensões a reflexão teológica da Idade Média sobre o tempo intermédio, o tempo que separa o momento da morte do da ressurreição e do julgamento geral, é necessário ter-se em consideração o facto de no Purgatório, ameaçado pelo lado de baixo pelo Inferno a que as almas purgadas conseguiram escapar, estas serem atraídas para o alto por esse apelo do Par~so que, em casos limite, pode reduzir-se à falta única mas essencial da Visão beatifica. É precisamente entre os grandes teólogos do século XIII que a doutrina da visão beatífica dos justos, imediatamente após o julgamento particular, toma a sua forma defínitiva'". O Purgatório, nestes .casos limites superiores, pode ser em definitivo um testemunho da realidade de uma visão beatifica anterior ao Julgamento Final. Este passar revista ao Purgatório de Cesário termina lembrando que algumas visões mostram que o Purgatório pode estar situado em diversos lugares deste mundo. Gregório, o Grande, deu disto exemplos. Mas o mais convincente é o do Purgatório de S. Patrick. Afirma ele: «Que aquele que duvida do Purgatório vá à Irlanda e entre no Purgatório de S. Patrick, e não duvidará mais das penas purgatórias ".»
'li.
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Para ~I~m de to~os os aspectos que sublinhei, compreende-se o que p~ra Cesano de Heisterbach, testemunha e actor privilegiado da instal çao d~ lugar ~o Purgatório nas crenças dos cristãos da Idade Média, essencial do ~lsteI?a do Purgatório. E antes de mais o culminar de p~~cesso ~mtenclal onde a contrição final, como vimos no caso do USQe rano de Llege: p~r exemplo: ~ condição necessária e suficiente, mas cuj etap~s ~normals sao a contnçao, a confissão e a penitência. É a seguir I definição de um lu~ar. e. de ~a pena ainda não completamente estabílízado~ mas ~ue se individualizam cada vez mais em relação à terra, eJI relaçao ao. h~bo~ em relação ao Paraíso, mas sobretudo em relação ao Inferno. Dlstmgu,lf.bem o Purgatório do Inferno é uma preocupação fundamental de Cesano. Há t~mbém um exercício de contas por vezes um pouco simplista ma. que se s~tu:a entre os hábitos monásticos de contabilidade simbólica e nov~~ h~bltos de uma contabilidade prática que se estende do comércio' pemtencia. Acima ~e t,:,do Cesá?o insiste na solidariedade entre os vivos e 01 mort?s, solidariedade cujo modelo é para ele a família cisterciense onde se reun.em o pa~e?tesco carnal do meio nobre e o parentesco artificial da co~um~ade rehgIosll:' m~s onde assomam também novas solídariedades conjugais o,:, pro~sslOnals, das quais o caso do usurário de Líêge é O exemplo mais notavel.
o.
2. O dominicano Étienne de Bourbon e a «infemizacão» do Purgatório Entre o Diáologo dos Milagres do cisterciense Cesário de Heisterbach (cerca. de .1~20) e ? Tratado das Prédicas (Tractatus de diversis matertis praedicabilibus) feito no período que vai de 1250 a 1261 data e t dei . m que a sua mor e o elXOU inacabado, pelo dominicano Etienne de Bourbon a atmosfera do Pur~atório muda. Já não é de esperança mas de medo. ' O autor, n~scld<:>em Belleville-sur-Saône cerca de 1195, fez os seus estudos em Saint-Vincent de Mâcon e depois na Universidade de Paris antes de en~r~r para a Ordem dos Pregadores. Saiu muitas vezes do convento dominicano de Lyon e, como pregador e inquisidor, andou por ~uvergn~, Le Forez, Borgonha e os Alpes. No fim da vida entregou-se a re~ac~o d~ ~m grande tratado para uso dos pregadores onde, também ele, m~n~ vanos ~~xe"!pla.Mas em vez de os colher principalmente na sua propna exp.en~~cla como fizera Cesário, em quem a maioria dos exempla er.am hlsto~cas recentes que ouvira contar, Étienne foi buscá-los ta~to as fontes hvrescas como à tradição contemporânea. Além disto, ~elxou menos autonomia aos seus relatos, subordinando-os mais estntamente a um plano modelado sobre os sete dons do Espíritor
'
.Sant055. Étienne de Bourbon deixa-se levar por um espírito escolástico que o faz multiplicar divisões e subdivisões, por vezes muito artificialmente. O Purgatório constitui o título ou capítulo cinco do primeiro dom do Espírito-Santo, o dom do temor (De dono timoris f", Este primeiro livro do dom do temor compreende dez títulos: 1) das sete espécies de temor; 2) dos efeitos do temor do Senhor; 3) que é preciso temer a Deus; 4) do Inferno; 5) que é preciso temer o Purgatório futuro; 6) do temor do Julgamento Final; 7) do temor da morte; 8) do temor do pecado; 9) que se deve temer o perigo presente; 10) da qualidade dos inimigos do género humano (os demónios). Logo de início Étienne de Bourbon introduz-nos num cristianismo de medo, onde o Purgatório é encaixado num contexto de temor escatológico, a par e muito próximo do Inferno. Trata-se, pois, do Purgatório do quinto título. Este título é, por sua vez, dividido por Étienne de Bourbon, mas de maneira artificial, em sete capítulos, porque o dominicano leonês organiza as suas exposições segundo números simbólicos (sete, dez, doze, etc.). Estes sete capítulos são dedicados ao Purgatório presente, ao Purgatório futuro, à natureza dos pecadores e das culpas que têm a ver com o Purgatório, às sete razões que devemos ter para temer o Purgatório repartidas por três capítulos e, finalmente, aos doze tipos de sufrágios que podem ajudar as almas do Purgatório. Regressando a uma concepção tradicional geralmente abandonada na sua época, Étienne de Bourbon pensa que a vida terrena pode ser considerada um primeiro purgatório onde se pode ser purgado de doze maneiras cuja enumeração pouparei ao leitor. Não há aqui qualquer argumentação mas apenas autoridades sobre os Testamentos, umas após outras. O segundo capítulo pretende provar a existência de um purgatório das almas despojadas dos corpos no futuro. As provas são autoridades (Mateus, XII, Gregório, o Grande, Diálogos IV, Paulo, I Coríntios, III), e um conjunto de textos do Velho Testamento que falam do fogo e de provação no futuro. Uma vez que depois da morte deve haver remissão dos pecados, tem de existir um lugar apropriado para essa última purgação que não pode ser nem o Inferno nem o Paraíso. Étienne condena os hereges - sobretudo os valdenses - «que dizem que não há pena purgatória no futuro» e negam os sufrágios pelos mortos. Num daqueles deslizes que lhe são habituais, Étienne evoca então as oito espécies de pena de que trata o livro das Leis, sem dizer em que é que elas podem ter a ver com o Purgatório, e declara que os que negam o Purgatório pecam contra Deus e contra todos os sacramentos. Quem é castigado no Purgatório? No começo do terceiro capítulo Étienne define três categorias de pecadores destinados ao Purgatório: os que «se converteram» tarde de mais, os que ao morrerem só têm pe365
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cados veniais e aqueles que não fizeram penitência suficiente cá em b ' no mundo. Um desenvolvimento breve resume-se praticamente a um pido come?tário da segunda epístola de Paulo aos Coríntios, IIl, 10-15 Os capitulos quatro, cinco e seis são consagrados às razões que homem tem para temer a pena do Purgatório e que são sete: a dure (acerbitas), a diversidade (diversitas), a duração (diuturnitas ), a este ' dade (sterilitas), a qualidade dos tormentos (tormentorum quaiitas) pequeno número de auxiliares (subveniencium paucitas ) e a nocivida (dampnositas).
Estas características negativas da pena do Purgatório são ilustra-. das principalmente com a ajuda de exempla. Assim, o Purgatório .' S. Patrick com a descrição das suas torturas tirada do Apocalipse dt' Pa~lo é.longamente evocado para mostrar ao mesmo tempo a dureza ~'. a diverslda,d~ das penas. A duração refere-se à sensação que as almas têJD no Purgatório de que no tempo passa muito lentamente, por causa dot sof?ID~ntos que lá suportam. A equivalência é essencialmente uma equi~ valência de resgate entre o mundo cá de baixo e o além. Etienne avan9a com alguma reserva (forte. talvez, diz ele) que se pode resgatar num dia um ano de Purgatório. A esterilidade decorre da impossibilidade de adquirir méritos depois da morte, a nocividade vem da carência da visão de I?eus. Ao contrário dos que, como Cesário de Heisterbach, parecem considerar que a P?~açã? .de Deus é a pena mais pequena das que se suportam no Purgatono, Etienne lembra que estar privado nem que seja por um só dia da visão de Deus não é pequeno prejuízo. E chega ao exagero: . os santos prefeririam, se fosse necessário, estar no Inferno mas vendo Deus a estar no Paraíso sem o ver. Nestas páginas bastante obscurantistas esta tirada sobre a visão beatífica introduz como que um raio de sol. Sobre a qualidade dos tormentos, Etienne remete para o que diz du penas do Inferno, o que é significativo. O pequeno número de auxiliarei tem a ver com o pessimismo de Étienne. Segundo ele, «os vivos esquecem depressa os mortos» e estes, no Inferno, gritam como lobo «Ten~e piedade de mim, tende piedade de mim, ao menos vós, amigo. meus, pois a mao do Senhor tocou-me.» E ainda: «Os amigos de ocasião os amigos no m~ndo são semelhantes a um cão que, enquanto o peregrino esta sentado a mesa segurando um osso na mão, dá ao rabo em sinal de afecto por ele, mas quando ele tem as mãos vazias já não o reconhece.» E é de novo ~ aproximação ao Inferno, «pois o Inferno é muito esquecido», . Por fim Etienn~ de Bourbon trata longamente os doze tipos de sufrágros que podem ajudar as almas do Purgatório. Também aqui são os exempla que vêm dar testemunho. A exposição do dominicano é bastante. confusa, mas po.demos elaborar assim a lista dos doze sufrágios: a ~ssa, a oferenda piedosa, a oração, a esmola, a penitência, a peregrinaçao, a cruzada, a execução de legados piedosos, a restituição de bens 366
Injustamente adquiridos, a intercessão dos santos, a fé, os sufrágios gerais da Igreja baseados na comunhão dos santos. Três preocupações parecem animar Étienne: insistir no papel dos próximos (aqueles que mais podem pelas almas do Purgatório são os parentes do morto, os «seus» sui - e os seus amigos amiciy; sublinhar o valor dos sufrágios executados pelos bons, os justos e, por fim, recordar o papel da Igreja na distribuição e controlo 'destes sufrágios. Está fora de questão mencionar aqui os trinta e nove «exempla do Purgatório» de Étienne de Bourbon, tanto mais que muitos deles são tirados de fontes antigas que vimos ou citámos, Gregório, o Grande, Rede, Pedro, o Venerável, Jacques de Vitry, etc. Citarei três deles de entre aqueles que Étienne afirma ter recolhido da boca de outros, e que introduz com a palavra audivi «ouvi dizer». O primeiro caso tem todavia probabilidades de ser de origem livresca, pois encontra-se nos Otia imperialia de Gervásio de Tilbury (cerca de 1210),a menos que o seu informador o tenha lido em Gervásio. ~m todo o caso, é interessante comparar a versão de Gervásio com a de Etienne. Recordo a versão de Gervásio de Tilbury: Há na SicíJia uma montanha, o Etna, ardendo com um fogo sulfuroso, perto da cidade de Catânia ..., as pessoas do povo chamam a esta montanha Mondjibel e os habitantes da região contam que, pelas vertentes desertas, apareceu na nossa época o grande Artur. Aconteceu um dia que um palafreneiro do bispo de Catânia ficou cheio de preguiça, por ter comido de mais. O cavalo que ele escovava escapou-se e desapareceu. O palafreneiro procurou-o em vão pelas escarpas e precipícios da montanha. Com crescente inquietação, pôs-se a explorar as cavernas escuras do monte. Um carreiro muito estreito mas plano conduziu-o a um prado muito grande, encantador e cheio de todas as delícias. Lá, num palácio construído por encanto, encontrou Artur deitado num leito real. O rei, ao saber o motivo da sua vinda, mandou entregar o cavalo ao rapaz para que este o restituisse ao bispo. E contou-lhe como, ferido outrora numa batalha contra o seu sobrinho Modred e o duque dos Saxões, Childerico, lá jazera durante muito tempo procurando curar as suas feridas constantemente reabertas. E, segundo os indígenas que mo contaram, enviou presentes ao bispo que os mandou expor à admiração de uma multidão de pessoas confundidas com esta história inaudita".
E a de Étienne de Bourbon: Ouvi dizer a um certo irmão da Apúlia chamado João, que dizia ser da região onde o acontecimento se produzira, que um homem procurava um dia o cavalo do seu patrão na montanha Etna onde se encontra, dizem, o Purgatório, perto da cidade de Catânia. Chegou a uma cidade onde se entrava por urna pequena porta de ferro. Informou-se junto do porteiro sobre o cavalo
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que procurava. Este respondeu-lhe que deveria ir à corte do seu senhor q lho entregaria ou o informaria. Rogou ao porteiro que lhe dissesse o q deveria fazer. O porteiro disse-lhe que se livrasse de comer de um prato q lhe iriam oferecer. Naquela cidade ele viu uma multidão tão grande como população da terra, de todos os géneros e de todos os oficioso Tendo atravasado muitos palácios chegou a um onde viu um principe rodeado dos se ofereceram-lhe muitos pratos e ele recusou-se a provar deles. Mostraram-I quatro leitos e disseram-lhe que um deles estava preparado para o seu patrão os outros três para os usurários. E este príncipe disse-lhe que fixava um dia obrigatório para o seu patrão e os três usurários, se não seriam trazidos ,: força, e deu-lhe uma taça de ouro com tampa de ouro. Disseram-lhe q. não a destapasse e que a levasse ao seu patrão como sinal, para que bebeall', dela. Deram-lhe o cavalo; ele regressa e desempenha-se da sua missão. AbfC1l1 a taça, e sai de lá uma chama ardente, lançam-na ao mar com a taça e o m~. inflama-se. Os outros homens, se bem que se tivessem confessado, mas só por medo e não por verdadeiro arrependimento, no dia aprazado são levado. ' sobre quatro cavalos negros'". .
De Gervásio a Étienne, o Purgatório sem nome é chamado pelo seu. nome, a cidade perdeu o seu encanto, o fogo do Purgatório anuncia-se pelo fogo da taça, os leitos preparados já não são de repouso mas leitos de tortura, o cavalo prefigura os cavaleiros negros condutores de almas, anunciadores da morte. Como bem observou Arturo Graf, de um texto para o outro a história «ínfernizou-ses-". Uma outra história teria sido contada a Étienne de Bourbon por um irmão padre, velho e piedoso. Havia uma vez um preboste que não temia a Deus nem aos homens. Deus teve piedade dele e deu-lhe uma grave doença. Ele gastou em medicamentos e noutros meios tudo o que possuía e não tirou nenhum proveito. Passados cinco anos e continuando a estar doente não podia levantar-se, já não tinha nenhum meio de subo sistência e desesperou por causa da sua pobreza, do seu estado miserável e dos seus sofrimentos, e começou a murmurar contra Deus que o fazia viver tanto tempo em tal miséria. Foi-lhe enviado um anjo que o censurou por assim blasfemar, exortou-o a ter paciência e prometeu-lhe que, se suportasse os seus males durante mais dois anos, ficaria plenamente purgado e iria para o Paraíso. O outro respondeu que não era capaz, que preferia morrer. O anjo disse-lhe que teria de escolher entre dois anos de sofrimento e dois dias de pena no Purgatório antes de Deus o mandar ir para o Paraíso. Ele escolheu dois dias no Purgatório, foi levado pelo anjo e enviado para o Purgatório. A dureza (acerbitas ) da pena pareceu-lhe tão insuportável que antes de se ter passado meio dia já ele julgava estar ali há uma infinidade de dias. Pôs-se a gritar, a gemer, a chamar mentiroso ao anjo, a dizer que ele não era um anjo mas um diabo. O anjo veio, exortou-o a ter paciência, censurou-lhe o ter blasfemado e afir-
mou-lhe que só estava ali havia pouco tempo. Ele suplicou ao anjo que o eonduzisse ao seu estado anterior e afirmou que, se ele o permitisse, estava pronto a suportar pacientemente os seus males não só durante dois anos mas até ao Julgamento Final. O anjo consentiu e o preboste suportou ~acientemente todos os seus males durante os dois anos complementares . Eis bem claramente - se não ingenuamente - patenteadas a proporcionalidade elementar entre os dias no Purgatório e os anos na terra e a dureza da pena do Purgatório infinitamente superior a qualquer pena cá em baixo. . Último exemplum: «Ouvi dizer, conta Etienne de Bourbon, que uma criança de uma grande familia morreu com a idade de nove anos. Para se entregar às suas brincadeiras aceitara um empréstimo com juros da família do pai e da mãe (sic). Não pensou nisso no momento de morrer e, se bem que se tivesse confessado, não restituiu o dinheiro.» Apareceu pouco depois a um dos seus e disse que estava a ser castigada severamente por não ter pago o que devia. A pessoa a quem apareceu informou-se e saldou todas as dívidas. A criança reapareceu-lhe, anunciou que estava liberta de todas as penas e tinha um ar muito feliz. Esta criança era o filho do duque de Borgonha, Hugues, e a pessoa a quem apareceu era a própria mãe do . te ev~cad o ~ m~duque, sua avó, que mo contou 61 .» E'IS esq~e~atIcamen canismo da aparição das almas do Purgatono e realçada a ímportancia da restituição de bens para a libertação do Purgatório. Este tomo~-se um instrumento de salvação e, ao mesmo tempo, um regulador da Vida económica cá em baixo no mundo. O tratado de Étienne de Bourbon parece ter tido um grande êxito e os seus exemplo foram muitas vezes utilizados. Assim se expandiu a imagem de um Purgatório «infernizado», banalizado, objecto de cálculos simplistas. Vou referir-me a uma recolha de exemplo por rubricas classificadas por ordem alfabética o Alphabetum narrationum (elaborado nos primeiros anos do século XIV pelo dominicano Amold de Liêge e que deu origem a muitas cópias mais ou menos fiéis em latim e em línguas ver:náculas .. inglês, catalão e francês - nos séculos XIV e xv), para dar uma Imag~m final dos exempla do Purgatório. Oferece-nos catorze exempla na rubnca Purgatório (purgatorium), os quais se agrupam em oito temas. Quatro dizem respeito às penas do purgatório, à sua intensidade, duração e temor que inspiram: «As penas do Purgatório ,s~o diversas» (nl!676), ? ~u~ significa que não se reduzem ao fogo purgatono, «a pena do Purgatono e dura (acerba) e longa», conforme ensinou Agostinho, «a pena do Purgatório, mesmo que dure pouco, parece durar muito tempo», no que encontramos o tempo invertido do além folclórico, «o purgatório», enfim, «é mais temido pelos bons do que pelos maus», o que o situa mais próxi no
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As ordens mendicantes desempenham o papel dos cistercienses no enquadramento espiritual da sociedade durante o século XIII. Mas enm os dominicanos como entre os franciscanos uma parte dos irmãos continua próxima da tradição monástica. Assim, o contemporâneo de Êtienne de Bourbon, Gérard de Frachet, dá uma imagem sensivelmente diferente do interesse dos Irmãos Pregadores pelo Purgatório. O testemunho de Gérard de Frachet é precioso sobretudo para a divulgação da crença no Purgatório no interior da ordem dominicana. Este natural de Limoges originário de Châlus (Haute- Vienne), ingressado nOI Pregadores em Paris em 1225, superior de Limoges e depois provincial da província da Provença, falecido em Limoges em 1271, escreveu uma história da ordem dominicana e dos seus memorabilia entre 1203 e 1254. Compreende ela cinco partes. A primeira é dedicada aos começos da ordem, a segunda a S. Domingos, a terceira ao mestre-geral Jourdain de Saxe, sucessor de Domingos à frente da ordem, a quarta à evolução da ordem (de progressu ordinis) e a quinta à morte dos irmãos. Esta estrutura da obra é significativa. A quinta e última parte exprime bem as atitudes de um meio religioso representativo da tradição e da inovação dentro da Igreja. A morte dá à vida o seu sentido e situa-se no ponto de encontro da existência terrena com o destino escatológico. Gérard de Frachet testemunha bem esta focagem no momento da morte em relação com o pós-morte, que explica também o êxito do Purgatório. Examinemos mais de perto esta quinta parte das «Vidas dos Irmãos da Ordem dos Pregadores» ou «Crónica da Ordem de 1203 a 1254». Representa todos os casos, possíveis para os irmãos, das maneiras de mor-
rer, e das condições do além. Primeiro, trata dos mártires da Ordem, dos mortos bem-aventurados, das visões e revelações que acompanham a morte. Depois vêm as situações no pós-morte. É aqui que se coloca, em primeiro lugar, a evocação dos irmãos que estão no Purgatório, a qual precede os estratagemas do diabo, as maneiras de ajudar os defuntos, a triste sorte dos apóstatas e, pelo contrário, a glória daqueles que, depois da morte, se ilustram através dos milagres. Os exempla dos irmãos no Purgatório ocupam pois a posição intermédia, de chameira, que é bem a do novo lugar. Gérard de Frachet propõe catorze exempla, catorze histórias de Purgatório que não se inserem num tratado como acontecia com Cesário de Heisterbach ou Étienne de Bourbon. São para glória da ordem, ou antes, para seu uso interno, alternando os casos felizes e gloriosos com os que devem fazer os irmãos reflectir. Lembram o Exordium magnum de Conrado de Eberbach para a ordem cisterciense no começo do século e, principalmente em relação a Cesário, respiram um ar muito tradicional. Primeira história: no mesmo dia morrem num convento de Colónia um velho pregador e um noviço. Ao fim de três dias o noviço aparece. O seu fervor valeu-lhe uma passagem muito breve pelo Purgatório. Pelo contrário, o pregador só aparece passado um mês. Os seus comprometimentos com seculares valeram-lhe esta provação mais longa mas, em compensação, tem uma sorte mais brilhante, como revelam as vestes ornadas com pedras preciosas, uma coroa de ouro, recompensa das conversões que obteve. As catorze histórias seguintes passam-se em Inglaterra. Em Derby, um jovem irmão em artigo de morte passa da alegria à angústia. Alegria porque S. Edmundo e depois a Virgem aparecem-lhe. Angústia porque, embora se soubesse eleito quase com certeza, receia que os pecados veniais (modica ) de que está carregado lhe valham, apesar de tudo, a condenação. Aviso de que a fronteira entre pecados veniais e mortais, entre Purgatório e Inferno, é estreita. O irmão Ricardo, leitor em Inglaterra, vê no seu leito de morte aparições terríveis, e depois é-lhe revelado que será salvo graças à ajuda dos seus irmãos dominicanos e também à dos franciscanos que ele sempre amara. Aviso, pois, no sentido da colaboração entre as duas ordens. O irmão Alain, superior em York, assaltado também ele por visões aterradoras no momento de morrer, prefere permanecer num fogo terrível até ao Julgamento Final, a rever a figura dos diabos que lhe apareceram. O Purgatório, na sua forma mais penosa, vale portanto mais do que Inferno no seu aspecto mais visível. Um pároco, aterrado pela visão que lhe anuncia o Inferno, ingressa nos dominicanos e, depois de morrer, aparece ao seu confessor para lhe revelar que fora salvo e que ele também o será.
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do Paraíso do que do Inferno mas testemunha também a sua dureza. dizem respeito à localização do Purgatório, que admitem ser na te «Alguns são purgados entre os vivos» e «alguns fazem o seu purgató entre aqueles junto de quem pecaram». Felizmente, dois têm a ver com ot sufrágios: «A pena do Purgatório é suavizada pela oração- e «a pena do Purgatório é anulada pela missa». Os exempla são tirados de Gregório, O Grande, de Pedro, o Venerável, do Purgatório de S. Patrick, dos cister« cienses Hélinand de Froimont e Cesário de Heisterbach, de Jacques de Vitry e do dominicano Humbert de Romans, autor de um «dom de temon (De dono timoris) muito próximo de Étienne de Bourbon'S. Completarei este estudo da difusão do Purgatório com o sermão e O exemplum no século XIII, evocando por um lado a biografia dos primeircs dominicanos e a prédica entre as beguinas e, por outro, a continuação da exploração das visões do Purgatório para fins políticos.
Dominicanos
no Purgatório
°
As duas histórias seguintes passam-se «em Espanha», em Santa (hoje Portugal). Numa vemos um irmão passar pelo Purgatório po foi assistido por seculares no momento da morte, e na outra um ou irmão ter a mesma sorte por se ter gabado de cantar bem. Um irmão italiano de Bolonha sofre, também ele, no Purgatório, ter gostado em excesso de arquitectura. Um irmão português de Lisbol punido igualmente no Purgatório, porque se ocupou de mais de man critos, enquanto o irmão Gaillard d'Orthez é visto numa aparição com peito e os flancos queimados por se ter interessado de mais pela cons ção de novos conventos, e pede orações aos irmãos. O irmão João lestier de Limoges passou sete dias no Purgatório por causa dos defeitos e atesta que a pena que lá se sofre pelos pecados veniais é muí intensa. E indica que os anjos o foram buscar para o levarem para Paraíso. . Esta indicação é muito interessante, pois anuncia a iconografia Purgatório: veremos anjos estendendo a mão a defuntos para os fi sair do novo lugar e os fazer subir ao céu. O irmão Pedro de Toulouse, embora tivesse sido muito dedicado à • ordem e apesar do número de conversões que conseguira, revela em nhos que passou vários meses no Purgatório não se sabe por que pecad Um excelente irmão morrera com o terror estampado no rosto. Q do aparece, alguns dias depois da morte, perguntam-lhe a razão de terror. Ele responde por meio do versículo do Livro de Job, 41, 1 «Quia territi purgabuntur»: «porque serão purgados em terror.» Enfim. um .último irmão sofre um suplício devido à sua paixão pelo vinho, que bebia puro. Estes exempla mostram alguns traços do sistema do Purgatório: • duração, as aparições. São sobretudo instrutivos porque revelam como são usados no interior da Ordem dos Pregadores - toda uma casuístioa dos pecados veniais por um lado, uma imagem dos irmãos por outro mais próximas das preocupações tradicionais do meio monástico, d~ que se pretendiam diferentes, do que das tendências intelectuais com que - a exemplo de algumas grandes figuras - se queria caracterizá-los, !?epois dos irmãos pregadores eis também as mulheres animadas pelo desejo de levar uma nova forma de vida religiosa, a quem se propõe que meditem sobre o Purgatório: as beguinas.
.1 uma vida devota a meio caminho entre a vida das religiosas e a das
No século XIII, as beguinas constituem um meio muito interessante. Estas mulheres retiram-se para casas individuais ou habitadas por um pequeno número delas situadas no mesmo bairro da cidade para levarem
laicas. Seduzem e inquietam simultaneamente e são objecto de um apostolado especial por parte da Igreja. Ao estudar a pregação praticada em 1272-1273 na capela de Santa Catarina da beguinaria de Paris, que S. Luís fundara cerca de 1260, pelos pregadores na sua maioria dominicanos e franciscanos, Nicole Bériou encontrou muitas vezes o Purgatório'", Um mostra os mortos gloriosos no Paraíso, representado por Jerusalém, exortando os seus irmãos que se encontram no Purgatório, representado pelo Egipto. As penas do Purgatório são pesadas e devemos preocupar-nos com os nossos parentes que lá Ie encontram, atormentados e impotentes'". Outro incita as beguinas a rezar por «aqueles que estão no Purgatório» para que Deus liberte «os seus prisioneiros da prisão do Purgató. &5 rio.» . Vemos definir-se a ideia de que há vantagem em rezar pelos que estão no Purgatório porque, logo que estiverem no Paraíso, eles rezarão por aqueles que os arrancaram ao Purgatório. «Não serão ingratos», afirma o segundo pregador. Outro ainda incita a rezar pelos que estão no Purgatório, não pelos do Inferno, por aqueles que estão na prisão do Senhor e, em linguagem vernácula, «gritam e vociferam» e que os vivos devem libertar com as suas esmolas, jejuns e orações'". Um sublinha que não se deve esperar pelo Purgatório ou pelo Inferno para se cumprir a penitência?", enquanto um franciscano, evocando a lista das oito categorias de pessoas pelas quais se deve habitualmente rezar (pro quibus solet orari), inclui nela as que estão no Purgatório'", Um terceiro explica que se deve fazê-lo especialmente «pelos parentes e amigos» 69. Este indica que o primeiro fruto da penitência é libertar da pena do Purgatório 70, e aquele avisa: «São loucos os que dizem: "Ora, farei a minha penitência no Purgatório" pois não há comparação entre a dura~ão da pena do Purgatório e qualquer pena cá em baixo no mundo I.)) Particularmente interessante é a declaração de um pregador franciscano no Dia de Ramos. Não quer ser um daqueles confessores «grandes avaliadores de almas» (non consuevi esse de illis magnis ponderatoribus) que enviam uns para o Inferno e outros para o Paraíso. «O caminho intermédio, diz ele, parece-me mais seguro. Como não conheço o coração dos diferentes homens, prefiro enviá-los para o Purgatório e não para o Inferno por desespero, e o resto deixo-o ao mestre supremo, o Espírito Santo, que ensina os nossos corações a partir de dentro72.) Terá havido uma expressão mais bela da função do Purgatório?! Este pequeno corpus de sermões às beguinas parisienses realça três aspectos fundamentais do Purgatório: 1) E a prisão de Deus. Trata-se pois do grande encerramento das almas e a sua libertação impõe-se às
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o Purgatório
e as beguinas
orações dos vivos porque se coloca na longa tradição cristã das pr pelos prisioneiros oriunda dos primeiros séculos de perseguição e estim lada pelos sentimentos de justiça e de amor. 2) O Purgatório obriga solidariedade entre os vivos e os mortos, em que insistem quase tod os pregadores. 3) Enfim, o Purgatório está estreitamente ligado à penit cia, quer esta liberte dele, quer aquele a termine.
o Purgatório
e a política
Numa crónica do começo do século XIV composta no Convento dOI! Dominicanos de Colmar encontra-se uma história que mostra que o Purgatório continua a ser uma arma política nas mãos da Igreja. É a história, de um mimo que viu no Purgatório Rudolfo de Habsburgo (1271-1290) filho de Rudolfo, rei dos Romanos. • A história, contada pelo dominicano Otto, é suposta ter acontecido em Lucerna. Havia nesta cidade dois amigos, um ferreiro e um mimo chamado Zalchart. Um dia o mimo foi representar num local onde •• realizava um casamento. Entretanto o ferreiro morreu e apareceu a Zal. chart montado num grande cavalo e levou-o e à sua sanfona para uma montanha que se abriu para os deixar entrar. Lá encontraram muitos importantes personagens falecidos, entre os quais Rudolfo, duque de AI. sácia, filho do rei dos Romanos Rudolfo. Estes mortos aproximaram-li de Zalchart e pediram-lhe que anunciasse às suas mulheres e aos seus amigos que eles estavam a sofrer grandes penas, um por ter roubado, outro por ter praticado a usura, e rogavam aos seus parentes vivos que restituíssem aquilo de que eles se tinham apossado. Rudolfo confiou também a Zalchart uma mensagem para os seus herdeiros, pedindo-lhes que procedessem à restituição de um bem usurpado, e encarregou-o de anunciar a seu pai o rei dos Romanos que também ele morreria dentro de pouco tempo e viria para aquele lugar de tormentos. Como selo de autenticidade imprime-lhe no pescoço com dois dedos duas marcas dolorosas. Depois de a montanha o devolver ao mundo dos vivos, ele entrega as mensagens que lh~ foram confiadas mas os sinais (intersigne - intersignum) do pescoço infectam-se e ele morre ao fim de dez dias. Toda a história mergulha num clima folclórico: o ferreiro é um demónio condutor de almas e o mimo um rabequista do diabo. Quanto a este Purgatório, é de tal maneira «infernizado» que, quando Zalchart pergunta a Rudolfo «Onde estais?», este responde: «No Inferno ".» O Purgatório penetra também no mundo dos santos e na hagiografia, O século XIII é a época em que a santidade passa a ser controlada pelo papado, em que os santos já não se fazem através da vox populi (na condição de ter sido sancionada por milagres), mas através da vox Ecclesiae, 374
Il voz da Igreja. É também a época em que a concepção de santidade evolui, em que, a par com o milagre sempre necessário para reconhecer um santo, as virtudes, a qualidade da vida, a aura espiritual contam cada vezmais. S. Francisco de Assis, para além dos mártires, dos confessores e dos taumaturgos, encarna um novo tipo de santo cujo modelo directo é o próprio Cristo?". Mas há uma piedade popular, uma devoção de massas que tocam tanto os intelectuais como o povo e que se alimentam nas fontes tradicionais da hagiografia. A par com as vidas individuais de santos, divulgam-se recolhas de lendas hagiográficas elaboradas num novo espírito, que os próprios catálogos medievais chamam de «lenda noVil»,legenda nova. É verdade que o público privilegiado destas «lendas» é o «pequeno mundo do clero vivendo em comunidade» e o «grande público» não é atingido directamente por estas recolhas. Mas, por intermédio dos pregadores e dos artistas que, com frescos, miniaturas e esculturas se inspiram largamente nestas lendas, também ele é atingido, tanto mais que um vasto movimento de tradução, adaptação e encurtamento em linguagem vulgar põe estas lendas ao alcance da parte do mundo monástico que não entendia o latim, os conversos e as freiras, e abre-lhes assim um caminho directo para a sociedade dos laicos".
o Purgatório
na «lenda dourada»
Nesta produção hagiográfica a Itália chega relativamente tarde mas, no século XIII, cerca de 1260, produz a lenda que, apesar da sua mediocridade, conhecerá o maior êxito, a Lenda Dourada (Legenda aurea) do dominicano Jacopo de Varazze. Amálgama de fontes diversas, a Lenda dourada nem por isso é menos aberta a temas «modernos» de devoção. E favorável ao Purgatório que surge em primeiro plano em dois dos seus capítulos, o que é dedicado a S. Patrick e o que trata da Comemoração das almas. Ao Purgatório
de S. Patrick atribui ele a seguinte origem: «Quando S. Patrick pregava na Irlanda e não tirava disso grandes frutos, pediu ao Senhor que lhe mostrasse um sinal para assustar os irlandeses e os levar a fazer penitência. Por ordem do Senhor, traçou num determinado local um grande círculo com o seu bordão e eis que a terra se abriu no interior do círculo e surgiu um poço muito grande e profundo. Foi revelado a S. Patrick que ali era um lugar do Purgatório. Se alguém lá quisesse descer não lhe faltaria mais nenhuma penitência par.a cumprir e não suportaria outro purgatório pelos seus pecados. Muitos não regressavam e os que regressavam tinham de lá estar desde uma manhã até à manhã seguinte. Ora entravam lá muitos que não regressavam.» Jacopo de Varazze resume a seguir o opúsculo de H. de Saltrey (que não menciona) mas muda o 375
nome do herói substituindo o cavaleiro Owein" por um nobre cha Nicolau. Nesta lenda inserida no calendário litúrgico, onde os grandes perí e os grandes momentos do ano litúrgico dão origem a exposições dou nárias sumárias, o Purgatório encontra-se na Comemorarão das A/mal 2 de Novembr078. Esta exposição aborda logo ao princípio o probl do Purgatório. A comemoração é apresentada como um dia destinado levar.sufrá~os ~os,def~n~o~~u~ não são ajudados por benesses especi A ongem e.~tnbUlda a mtcratrva do abade de Cluny, Odilon, segun Pedro Damião. O texto que conhecemos está alterado de maneira a f: de Odilon não o ouvinte do relato do monge regressado da peregrina mas a testemunha directa dos gritos e lamentos não dos defuntos to rados mas dos demónios furiosos por verem que as almas dos mortos são arrancadas pelas esmolas e as preces. Jacopo de Varazze responde a seguir a duas perguntas: 1) Quem ea no Purgatório? 2) O que pode fazer-se pelos que lá estão? O domini " ligúrico dado às divisões numeradas como um estudante subdivide primeira pergunta em três: 1) Quem deve ser purgado? 2) Por quem? 3 Onde? Existem - resposta à primeira subpergunta - três categorias di purgandos: 1) os que morrem sem terem terminado completamente a sua penitência; 2) os que descem ao Purgatório (qui in purgatorium cendunt) porque a penitência que lhes foi imposta pelo confessor é in'" rior a? que de~a ser (Jacopo prevê também, aliás, o caso em que ela seja supenor ao devido e valha ao defunto um acréscimo de glória); 3) aqueles que «levam consigo madeira, feno e palha» e, através desta referência à. p.rimeira epístola de Paulo aos Corintios, Jacopo visa os pecados vemais. Ao desenvolver estes princípios Jacopo esboça uma aritmética do Purgatório, dizendo por e~e?Iplo que «se se tivesse de suportar uma pena d. dOIS~eses no Pu.rgatono, poder-se-ia ser ajudado (pelos sufrágios) d. maneira a ser-se libertado ao fim de 'rm mês». _ Seguindo Ag~stin~o, ele precisa que a pena do Purgatório, ainda que nao seja eterna, e murto dura e excede qualquer pena terrena, até os torme~tc:>sdos.mártires. Jacopo leva bastante longe a «infemização» do Purgatono, pOISpensa que são os demónios, os anjos maus, que atormentam os defuntos no Purgatório. Enquanto outros supõem que Satanás e 01 demónios vêm assistir com prazer aos tormentos dos expurgados, aqui pelo contrário, são os anjos bons que vêm (talvez) assistir e os consolam: Os mortos do Purgatório têm ainda outra consolação: esperam a «glória futura (o Céu), sabendo estar certos». E em relação a esta glória futura t~m .uma certeza ~
M,."
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e esperam. Porém, in fine. Jacopo da Varazze, que no fundo não tem qualquer ideia pessoal e justapõe as opiniões de un.s e outros, afi~a como conclusão desta pergunta que mais vale acreditar que a pumçao do Purgatório não é executada pelos demónios mas apenas por ordem de Deus. Sobre a pergunta seguinte, a localização do Purgatório, depois ~e ter emitido a opinião dominante na sua época, Jacopo e~~~era tambén: d~ enfiada outras opiniões que não lhe parecem contradltonas em relação a primeira. Opinião comum: «A purgação faz-se num 10c8;1situa?~perto do Inferno chamado Purgatóri079.» Mas acrescenta: «E a opimao da maioria dos entendidos (sapientes) mas outros pensam que ele se situa no ar e na zona tórrida.» E prossegue: «No entanto, por dispensa divina, certos lugares são por vezes destinados a certas almas, seja para abreviar a sua punição, seja prevendo a sua libertação mais rápi~a, ou para nos edificar ou ainda para que a punição se cumpra nos locais do pecado, ou ainda graças às preces de um santo.» Em defesa destas últimas hiP?t~ses, cita algumas autoridades e exemplos tirados sobretudo de Gregono, o Grande mas também da história do mestre Silo proveniente de ,Pedro, o Chantre, mas que reencontramos em Jacques de Vitry e em Etienne de Bourbon e, para o último caso, a intervenção de um santo, remete para o Purgatório de S. Patrick. . _ . Dos sufrágios diz muito classicamente que quatro ~lpOSsa~ ~speclalmente eficazes: as oraçõs dos amigos, as esmolas, a missa e o Jejum ..Invoca a autoridade de Gregório, o Grande (história de Paschase e muitas outras), de Pedro, o Venerando, de Pedro, o Chantre, o segundo livro dos Macabeus, Henrique, o Grande, célebre mestre parisiense da. segunAda metade do século e uma história interessante porque evoca as indulgências ligadas à cruzada, no caso a cruzada contra os albigenses: «As i~d~lgências da Igreja são igualmente eficazes. Por exemplo, um nuncio pontifical pedira a um guerreiro valoroso que fosse combater n~ cruz::da contra os albigenses ao serviço da Igreja, concedendo-lhe uma indulgência para o pai defunto; passou lá quarenta dias e, ao cabo desse período, apareceu-lhe o pai irradiando luz e agradeceu-lhe a sua líbertação'".» Por fim designa a categoria dos medianamente bons como a que aproveita com os sufrágios. Numa última palinódia volta à sua ideia de que os sufrágios dos vivos maus não aproveitam às almas do Pur~~tório, par~ dizer que isto não se aplica à celebração de missas, sempre validas, ne?I a realização de boas obras de que o defunto tivesse encarregado o VIVO, ainda que mau. . ' Este longo desenvolvimento termina por um exemplum brado da Cronica do cisterciense Hélinand de Froimond, do começo do século XIII, e cuja acção é suposta desenrolar-se na época de Carlos Magno, em 807 exactamente. «Um cavaleiro que partia para a guerra de Carlos Magno 377
"
j.
A literatura hagiográfica oferece um testemunho surpreendente da popularidade do Purgatório. No Purgatório as almas têm necessidade de auxílio. Este vem-íhes sobretudo dos parentes, dos amigos, das suas comunidades. Mas nio caberá aos santos, a determinados santos, cumprir o seu dever de inter~ss?re~, de a~iIiadores? É ~erdade que a Virgem, mediadora por exceIência, e particularmente acnva. Um certo santo Nicolau está prestes a J~tar aos seus numerosos patrocínios o do Purgatório, se assim se pode dizer. Mas um caso é especialmente notável. O século XIII assiste ao esboçar do. cult~ de uma verdadeira santa do Purgatório, Santa Lutgarda. E uma cistercíense do mosteiro beneditino de Saint-Frond talvez uma simples conversa, .que morreu cega em 1246 no mosteiro de Aywiêres, no Brabante,. na diocese de Namur. Parece ligada ao meio das beguinas e esteve relacionada com Jacques de Vitry de quem recebeu pelo menos um~ carta, e com a tal Maria de Oignies, beguina célebre, cuja vida foi e~n.ta por Jacques de Vitry. Deixou nome principalmente na história da mística, em que contribuiu, juntamente com algumas beguinas, para promover a devoção ao Coração do Crist082. . Um dominicano bem conhecido, Tomás de Cantímpré, escreveu a sua Vida logo depois de ela ter morrido, entre 1246 e 1248. Mas Lutgarda não será ca~onizada oficialmente. Lutgarda, de que ele nos diz que nunca conseguru falar francês (não quereria conservar a língua da sua cultura
de origem, o flamengo, no contacto com os laicos?), parece ter sido ~ tanto suspeita aos olhos da Igreja oficial. Inocêncio IV or~enou a To~~s de Cantimpré que corrigisse a primeira redacção da sua VIda. O dominicano apenas chama Lutgarda de «piedosa» (pia), nunca ?e santa (s~ncta ou beata) mas foi considerada e honrada como santa «a moda antiga». Segundo a sua Vida, especializara-se na libertação das almas do Purgatório. Conta no seu activo pessoas notórias, até mesmo célebres, que auxiliou. A primeira de que nos falam é Simão, abade de Fouilly, «um homem fervoroso mas duro para quem de si dependia», falecido prematuramen~e. Tinha uma predilecção pela piedosa Lutgarda a quem a su~ ~orte mU1~o perturbou. Cumpriu penitências especiais (afflictiones} e Jejuns e pediu ao Senhor a libertação da alma do defunto; o Senhor respondeu-lhe: «Graças a ti serei benevolente para com aquele por quem oras.» Mílitante decidida da libertação das almas do Purgatório, Lutgarda responde: «Senhor, não deixarei de chorar e não me satisfarei com as tuas promessas enquanto não vir livre aquele por quem te imploro.» Então o Senh,?~ apareceu-lhe e mostrou-lhe a alma em pessoa que o acompanhava, ja liberta do Purgatório. «Depois do que Simão apareceu frequentem~n~e a Lutgarda e disse-lhe que teria passado quarenta anos no Purgatório se as suas orações não o tivessem socorrido junto de Deus misencordíoso'".» No momento de morrer, a bem-aventurada Maria de Oignies confirmou que as preces, os jejuns e os esforços de Lutgarda tinham um gran~e poder. E predisse: «Debaixo do céu, o mundo não tem intercessor mais fiel nem mais eficaz para libertar com as suas preces as almas do Purgatório do que a dama Lutgarda. Durante a vida realizou muitos milagres espirituais e depois da morte reali~-los-á c~rpora~s84.» ., . O próprio cardeal Jacques de Vitry podena ter Sido um beneficiário da intercessão de Lutgarda. Quatro dias depois da sua morte, Lutgarda, que não soubera dela, foi transportada ao Céu e viu a alma de Jacques d.e Vitry levada por dois anjos para o Paraíso. «O espírito de Lutgarda felicitou-o e disse: "Reverendíssimo Padre, ignorava a tua morte. Quando deixaste o teu corpo?" Ele respondeu: "Há quatro dias e passei três o<;>ites e dois dias no Purgatório." Ela admirou-se: "Porque não me fizeste sinal, a mim, sobrevivente, logo que morreste, para que eu te libertasse da. tua pena com o auxílio das orações das nossas irmãs? - O Senhor, replicou ele, não quis entristecer-te com a minha pena e preferiu confortar-te ~~m a minha libertação e a minha glorificação, terminado o meu purgatono . Mas tu vais em breve seguir-me". Ao ouvir estas palavras a piedosa Lutgarda veio a si e anunciou às irmãs com grande alegria a s.uam,orte, o seu purgatório e a sua glorificação.» Segundo Tomás de Cantlmpre,.ess: purgatório de Jacques de Vitry teve uma segunda testemunha, um irmao do
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contra os Mouros pediu a um parente que vendesse o seu cavalo e dCSII dinheiro aos pobres se ele morresse na guerra. Depois da morte do ca leiro este. parente ficou com o cavalo que muito lhe agradava. Po tempo depois apareceu- lhe o defunto brilhando como o Sol e disse"Bom parente, durante oito dias fizeste-me sofrer as penas do Purgatô por causa do cavalo cujo preço não deste aos pobres; mas não o levar para o Paraíso (impune non feres) pois hoje mesmo os demónios v levar a tua alma para o Inferno enquanto eu, purgado, vou para o rei de Deus." Logo se ouviram no ar como que clamores de leões de ursos. . de lobos, e ele fOIlevado da terra 81 .» Reconheceu-se neste uma' versão di um dos dois exempla sobre o Purgatório que se encontram nos sermo",~ vulgares de Jacques de Vitry - mas também em Eudes de Chêriton • Tomás de Cantimpré. E um clássico das colecções de exempla. Retomad~ na Lenda dourada. será um pouco o vademecum do Purgatório DO seculo. XIII. Nele se encontra o essencial do processo do Purgatório desdt , Agostinho, com alguns textos mais recentes destinados a contribuir com complementos teóricos e explicações. >
Uma santa do Purgatório: Lutgarda
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convento dos dominicanos de Roma, onde Jacques de Vitry foi prim enterrado, ao qual Deus também revelou no quarto dia depois de mo o seu purgatório e a sua glorificação'". Enfim, a bem-aventurada Maria de Oignies apareceu a Lutgarda pediu-lhe que interviesse a favor do amigo de ambas, Baudoin de Bar zon, superior de Oignies, anti~o capelão de Aywiêres, a quem promete ajudar no momento da morte 6. E Tomás de Cantimpré conclui: «Ó venerável Maria, como és verdedeira no teu testemunho, fiel na tua promessa, tu que te dignaste ir pedir' piedosa Lutgarda o sufrágio das suas preces para todos os mortais, t1& que, quando ainda estavas nesta terra, pediste àquela que era a mata poderosa que libertasse as almas do Purgatório e que, sublimada n•• alegrias celestiais, vieste ainda pedir o seu auxílio para um amigo d••
funtol»
Os vivos e os mortos: testamentos e obituários
o
Purgatório aparece também nas principais manifestações das nov •• formas de solidariedade entre os vivos e os mortos no século XIII. OS primeiros documentos em que se pensa são os testamentos. É pre-. ciso reconhecer que o Purgatório parece apenas fazer neles uma tímida aparição nesse século XIII. Só se introduzirá verdadeiramente no século XIV, e mesmo assim de maneira diferente segundo as regíões'". Por exemplo, num testamento como o de Renaud de Borgonha, conde de Montbéliard, que data de 1296 (com o acrescentamento de um codicilo em 1314) trata-se mesmo de aliviar a alma do futuro defunto pagando li suas dívidas e mandando dizer missas pelo aniversário da sua morte «para remédio da alma» (a expressão «pro remedio animae» é tradicional dos actos de doação e depois nos testamentos) e evocam-se portanto sufrágios pelos defuntos que estão no Purgatório, mas o nome não' pronunciado'". Seria necessário estudar a atitude das ordens mendicantes das quais se sabe que foram por um lado grandes «captadoras dto . testamentos» e, por outro lado, grandes divulgadores do Purgatório, pe. 10 menos nos sermões e nos exempla. Não foram elas que no decurso do século XIII substituíram os cistercienses no papel de vulgarizadoras do Purgatório?
O.
Os estabelecimentos religiosos conservam sempre livros de memórias dos mortos. Mas os necrológicos do período anterior dão lugar a novo. memoriais a que se chamará obituários e, se o Purgatório não aparece neles directamente, os seus progressos influenciam muito esta transformação, como pensa o especialista Jean-Loup Lemaitre. 380
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A partir do fim do século XII, com a redescoberta do testamento, com a multiplicação dos legados piedosos, com o desenvolvimento da crença no Purgatório, a documentação necrológica toma um aspecto sensivelmente diferente. Uma simples inscrição recomendando uma comemoração e sufrágios é substituída por uma inscrição acompanhada por um oficio a celebrar. O officium plenum, até então excepcional, toma-se progressivamente de regra. Sendo o oficio dos mortos, solene ou não, super-errogatório, importava assegurar a respectiva celebração por meio de fundos, e daí a modi~cação do carácter das notícias. Ao lado do nome do defunto, da sua qualidade e da sua função, acrescentaram-se os elementos constitutivos desses fundos instituídos geralmente em forma de renda: base, devedores, sucessão destes, por vezes mesmo definindo-se as modalidades de emprego: distribuição ao celebrante, aos ajudantes, aos sineiros. Por vezes define-se mesmo o tipo de oficio a celebrar. Em certos casos a legação de fundos era feita em vida do beneficiário e o oficio era então uma missa, a maioria das vezes da Virgem ou do Espírito Santo, que passaria a ser missa de aniversário após a sua morte. O processo de inscrição variou e evoluíu. Primeiro,. inscrevia~-se ~ado a lado os óbitos dos membros da comunidade, de associados espíntuaís e os fundos de aniversário para os quais as modalidades de execução eram indicadas. Progressivamente a inscrição destes fundos passou a ser preponderante e suplantou as inscrições automáticas e graciosas de simples nomes a comemorar. Era sempre lícito relembrar no capítulo ou no refeitório os nomes dos defuntos para quem os sufrágios da comunidade eram requeridos, mas o essencial era saber quais os oficios dos mortos que deviam celebrar, em intenção de quem deviam ser ditos, que pitança, que soma em dinheiro, segundo os casos, estava ligada a essa celebração. O livro tinha pois um duplo uso, mas já s~ servia para inscrever os óbitos da comunidade. com fundos. . E por esta razão que se vê desaparecer progressivamente destas compilações, a partir do século XIII, os membros da comunidade (sobretudo nas comunidades monásticas) em proveito dos laicos, burgueses e nobres, preocupados com assegurar a sua salvação e encurtar a estada no Purgatório por meio de outorga piedosa de fundos'". Enfim, encontra-se pelo menos um testemunho explícito do lugar ~upado pelo Purgatório nas preocupações dos membros de uma confran~, associações cuja grande preocupação, à semelhança dos colegas funerarios da Antiguidade, era velar pelos funerais e pelos sufrágios dos membros defuntos da confraria. Encontra-se esta referência no alvará da confraria dos barbeiros de Arras de 1274. Este texto, cujo original foi escrito em linguagem vernácula, em f~ancês antigo, visto que uma das partes - os barbeiros - é formada por laicos que não sabem latim - é dos mais significativos. O Purgatório está no centro desta asso' .iação de tipo sociedade ajuramentada própria do novo mundo urbano entre os membros de ambos os sexos de uma profissão dirigida por pessoas eleitas de tipo comunal (presidente da Câmara e 381
abnotacés) e a comunidade de uma das novas ordens religiosas mendicaa tes, os dominicanos, estreitamente ligados no seu aposto lado à nova s0ciedade urbana. Saibam todos os que existem ou vão existir que o superior dos IrmlOl Pregadores de Arras e o convento dos ditos Irmãos concederam, pela autoridade do mestre da Ordem, aos barbeiros de Arras uma caridade (confraria). fazer em honra de Deus e de Nossa Senhora e de Monsenhor S. DomingOl. Concederam-lhes três missas todos os anos perpetuamente a todos os irmão. • irmãs que nela entrarem, nela permanecerem e lá morrerem. A primeira mi••• é no dia da trasladação de Monsenhor S. Domingos e as duas outras nOl aniversários dos seus pai e mãe falecidos. E outorgaram-lhes plena associaçlo (compaignie) e plena participação de todos os bens que existirem e vierem • existir no seu convento de Arras e para toda a ordem e santa cristandade, para todos os vivos que se mantiverem em caridade e em graça e, por aquelol que morrerem, para encurtar as suas penas no Purgatório e apressar o seu repouso eterno. A todas estas coisas mencionadas o superior e os irmão. associam (acompaigne ) todos os homens e todas as mulheres que entrarem neste convento por intermédio do presidente da câmara e dos almotacés que os barbeiros lá puserem. E para certificar e tornar estável (estande: estável, firme) e provável tudo isto, o superior e o convento dos ditos irmãos selaram este documento com o seu selo, o que foi feito no ano da Encarnação d, Nosso Senhor MCC e XLVII, no mês de Abril90. Sobre este texto - na verdade o único deste género que conheço e que chegou até nós - formularei duas hipóteses. A primeira tem a ver com o papel dos mendicantes difusores de novas atitudes perante a morte, na divulgação do Purgatório. A segunda é o interesse pelo Purgatório manifestado por uma profissão suspeita, desprezível, esses barbeiros-cirurgiões em contacto com o corpo e o sangue, que eram incluídos nos oficios desonestos - inhonesta mercimonia. Como aconteceu com os usurários, não verão os barbeiros no Purgatório uma melhor oportunidade para escapar ao Inferno? Uma das consequências dos progressos do Purgatório não será reabilitar, na perspectiva da salvação, as categorias sócioprofissionais espiritualmente frágeis e consolidar religiosamente a sua ascensão social?
o Purgatório
em língua vulgar: o caso francês
u Menestrel de Reims encontra-se, bem entendido, o Purgatório. Mas a produção literária, em francês por exemplo, tomou-se tão abundante no século XIII que apenas é possível efectuar uma sondagem. Parece-me, pelas amostras dadas por alguns eruditos'", que o Purgatório se toma uma espécie de acessório nos diversos géneros literários. Como assinala o Vocabulário de Francês Antigo de Tobler-Lommatzch, nunca se fala do Purgatório na epopeia (género anterior ao Purgatório, ainda que se tenham composto canções de gesta no século XIII) e a primeira obra literária que o menciona é o Espurgatoire saint Patriz de Maria de França. Um cavaleiro italiano, Filipe de Novare, jurista, escritor, interessado nos negócios com a Terra Santa e com Chipre, escreve depois de reformado com mais de sessenta anos e depois de 1260, em francês, que é a lingua literária da cristandade, um tratado onde resume a sua experiência, Os Quatro Tempos da Idade do Homem. Os jovens, segundo Filipe, ~me~ tem muitas imprudências e mesmo loucuras. Fazem pouca pemtência ca ,. 92 em baixo no mundo, e terão de fazer uma grande e longa no Pu rgatono. No Romance de Baudouin de Sebourc pode ler-se: Vai para o Paraíso Sem passar pelo Purgatôno", o que lembra o papel intermédio, a situação de passagem do Purgatório. Gautier de Coincy, cónego de Soissons, autor da mais abundante e reputada colecção de Milagres de Nossa Senhora (Miracles de Notre-Dame) em verso (1223), fala do Purgatório como lugar de castigo: No Purgatório ajustam-se as contas Ele foi para lá levado pelas más acpões Que em vida cometeu e praticou", Jehan de Journi, proprietário da Picardia, escreve na sua Dízima de Penitência (Dfme de pénitence ) composta em Chipre em 1288: Um homem prudente deve moderar-se Enquanto pode resistir Que dê esmolas enquanto vive Porque na morte isso ajudá-to-á A ir para o Purgatório A fim de se purificar para o Paraiso" ...
Haveria outra investigação a empreender na literatura em língua vernácula. O seu interesse seria informar-nos sobre a difusão do novo além nas obras literárias directamente «consumidas» pelos laicos. Nas compilações de exempla em língua vulgar ou nas crónicas «topa-a-tudo» como
Mas o mais interessante de todos estes textos literários é, sem dúvida, uma passagem do conto em verso A Corte do Paraíso (La cour de paradis):
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Por isso vos diz no dia das Almas E depois do Dia de Todos-os-Santos Tenham todos a certeza; Conta-nos a história De que as almas do Purgatório Repousam durante esses dois dias; Mas as que não tiverem perdão E forem condenadas pelos seus pecados Tenham todas a certeza De que não terão repouso nem permanência. A ligação entre a festa de Todos-os-Santos e a Comemoração daa Almas (1 e 2 de Novembro) está fortemente marcada, e os laços destel duas solenidades com o Purgatório nitidamente sublinhados. A origina. lidade destes versos reside sobretudo no seguinte: se o sabat infernal, O descanso hebdomadário dos condenados do Inferno é negado, em com. pensação aparece a ideia de uma trégua de dois dias no Purgatório, em vez da ideia de Jacques de Vitry de um repouso dominical. O Purgatório «infernizou-se» decididamente a ponto de ser transferido para ele o tema de um repouso imaginado para a geena. Justamente na viragem do século XIII para o século XIV, um grande acontecimento permitiu ao Purgatório uma promoção ao encontro daa intenções da Igreja e das aspirações dos fiéis. Foi o Jubileu de 130096•
As indulgências para o Purgatório:
o Jubileu de 1300
Neste ano o Papa Bonifácio VIII, já empenhado na sua luta com o rei de França Filipe, o Belo, e, através deste, com a sociedade laica cristã que suportava cada vez menos o jugo pontifical, convocou pela primeira vez a Roma todos os fiéis para a celebração do jubileu, em memória da lei mosaísta expressa no capítulo XXV do Levítico. Tratava-se de uma espécie de super-ano sabático, ano de expiação e de repouso, de libertação e de regresso às origens, que deveria repetir-se passados sete vezes sete anos, quer dizer de cinquenta em cinquenta anos. Ano jubilar simbólico que decerto nunca foi efectivamente realizado. Também aqui o cristianismo substituiu judaísmo e o Evangelho anunciou «um ano da graça do Senhor» (Lucas, IV, 19). Desde a Alta Idade Média que o jubileu, sem ser praticado pela Igreja, fora integrado por alguns autores eclesiásticos nas novas concepções cristãs da penitência e do perdão. É portanto normal que o jubileu ressuscitado se junte ao recente Purgatório também ele ligado, histórica e teoricamente, à penitência. Isidoro de Sevilha definira nas suas Etimologias o jubileu como um ano de remissão (remissionis annus I": Ano de absolvição cujos promo384
tores de 1300 assinalaram também que era o início de um novo século. Consecução penitencial, ele oferecia aos fiéis uma espécie de substituto do Millenium controlado bem de perto pela Igreja e pela Santa Sé. Nesta altura o Papa concedeu aos peregrinos de Roma indulgência plena (plenissima venia peccatorum), a completa remissão dos pecados que até então só era dada aos cruzados, e estendeu o beneficio dessa indulgência aos mortos, ou seja às almas do Purgatório. Esta extensão nunca vista das indulgências fez-se tardiamente e de uma maneira de certo modo indirecta. Foi por uma decisão do Natal de 1300 que Bonifácio VIII concedeu a indulgência plena a todos os peregrinos que morreram durante a peregrinação, quer fossem a caminho quer estivessem em Roma, e às pessoas que, tendo a firme intenção de realizar a peregrinação, tinham sido disso impedidas'". A medida era pois de maior importância. Parecia que o Papa decidia «a libertação instantânea de todas as penas para certas almas do Purgatôriosf". É certo que a teoria do poder pontifical já fora de certo modo estabelecida, nomeadamente, como já vimos, por S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. Mas, segundo parece, nunca fora aplicada. A possibilidade de os vivos libertarem os mortos do Purgatório nunca fora até então exercida senão per modum suffragii, pela transferência para os mortos dos méritos que os vivos adquiriam através de boas obras. Parece que o poder pontifical em matéria de libertação das almas do Purgatório permaneceu teórico até ao século xv, após esta explosão. O canonista Alessandro Lombardo, falecido em 1314, bem repetiu, por exemplo, que o Papa podia ir em socorro dos que estão no Purgatório com a ajuda de indulgências indirectamente ou «acidentalmente», que podia conceder indulgências a todos quantos «oram ou fazem bem aos defuntos que estão no Purgatório»; mas os seus sucessores do século XIV não se atreveram, tanto quanto se sabe, a usar deste poder exorbitante sobre o além. Porém a iniciativa, embora limitada, fora tomada. Uma etapa fora ultrapassada na inserção das indulgências no sistema do Purgatório.
A persistente
hostilidade ao Purgatório
Esta decisão de Bonifácio VIII quando do jubileu de 1300, que foi um grande êxito é, de certo modo, o ponto de interrupção do triunfo do Purgatório no século XIII. Mas não devemos esquecer que, nessa viragem do século, o Purgatório só tem partidários entre a cristandade. E há os hereges. Ainda no começo do século XIV, em 1335 e em Giaveno no Piemonte, muitos valdenses declaram ao inquisidor dominicano: «Na outra vida 385
só existem o Paraíso mundo 100.»
e o Inferno
e o Purgatório
apenas
existe ne.
Porém noutros casos, alguns suspeitos francamente hereges ou qUi passam por o. ser, parecem acomodar-se mais ou menos ao Purgat6rio o~ porque (j integraram num contexto de crenças folclóricas sobre O além ou porque foram sensíveis ao imaginário do Purgatório. E. ~ ~so de uma mulher, Rixenda, que em 1288 é interrogada pela . Inquisição em Nar~~ne '. Parece pertencer ao meio das beguinas ligadu aos. franciscanos espmtuaís, Declara ela que há oito anos, pelo S. Mateua ~(fol transportad~ para o Céu e ~u Jesus em pé e sentado e sua mãe Maria Junto dele e ao pe deles S. Francisco», Acrescenta que «pôde ver o seu pai e a sua mãe no Purgatório expiando os seus pecados e eles lhe disseram que par~ os salvar ... (há ~qui uma lacuna no manuscrito) e disseram que g;aças as suas preces muitas almas são arrancadas ao Purgatório, especialmente seu pai e sua mãe e uma prima direita Aucradis. Diz tambénl que no seu arrebatamento viu ~a mulher, Feralguiêre de Béziers, sobreca:re~da de. penas, .sendo açoitada e espancada no Purgatório durante tres
condenação eterna pois basta ser um cristão fiel que se confessou e se arrependeu para não ser condenado ... » Todavia, Pierre Durand é uma excepção. Segundo as revelações feitas li Arnaud Gélis a condição normal das almas dos defuntos é vaguearem e irem visitar as igrejas: «Fazem penitência indo a diversas igrejas. Uns vão mais depressa outros mais lentamente, e os que têm penitência maior vão mais depressa. É assim que os usurários correm como o vento; mas os que têm uma penitência mais pequena caminham mais lentamente. Não ouvi falar de ninguém que sofresse outra penitência além da movimentação, excepto o referido Pierre Durant que passou pelo fogo do Purgatório. Assim, quando deixam de visitar as igrejas, vão para o lugar do Repouso onde ficam até ao dia do Julgamento, segundo me disseram esses defuntos'P'» Quando Amaud Gélis abjura, volta a ter mais consideração pelo Purgatório: «Sobre o primeiro artigo, negando o erro que ele contém, afirmou que embora tivesse acreditado nisso que se mencionou, crê agora firmemente que as almas dos homens e mulheres defuntos vão para o Purgatório onde cumprem a penitência que não cumpriram no mundo. Terminada esta, vão para o Paraíso celeste onde estão o Senhor Cristo, a . . t 105 Santa VIrgem, os anjos e os san os .» Outra forma de resistência ao Purgatório encontra-se designadamente em certos religiosos e poetas, especialmente em Itália. Uns, conservadores, tradicionalistas, querem acreditar na velha oposição Inferno/Paraíso e fecham os olhos perante esse novo terceiro lugar, criação de teólogos intelectuais. Bonsevin dalla Riva106, um milanês que viveu na segunda metade do século XIII, da Ordem dos Humiliates, escreveu um Libro delle Tre Scritture onde, entre a escritura «negra» que descreve as doze penas do Inferno e a escritura «dourada» que mostra as doze glórias do Paraíso, o que existe não é o Purgatório mas a Encarnação, a Paixão do Redentor, que constitui a escritura «vermelha» feita do sangue do Cristo. Na mesma época um outro poeta, o franciscano Giacomino da Verona só retém das «escrituras» de Bonsevin a negra e a dourada num poema Da Jerusalém Celeste e da Babilónia Infernal onde, entre as alegrias do Paraíso e as penas do Inferno, não existe lugar sequer para as purgações intermédias. A alusão às «subtilezas» dos teólogos (v. 19), a oposição nítida entre o bem e o mal: o mal conduz à morte com o anjo perdido o bem dá a vida com o bom Jesus (v. 331-332).
. 'do10 d o P urgatono , . parecem visar a exclusão do plano mterme 387
107
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Para outros a hostilidade, se não ao Purgatório pelo menos a ce exageros piedosos que têm a ver com ele, parece vir do receio de enco tr~r n~le superstições pagãs. Assim, numa passagem do seu célebre Specchio di ve~apenttenza, on~e denuncia «as opiniões falsas e vãs que ficaraaa do p~~aDJsmo ou foram introduzidas pela falsa doutrina do demónio», O dominicano Jacopo Passavanti ataca «a vaidade e cupidez dos mortaia que querem dirigir a justiça divina e que pelas suas obras, palavras, oferendas pretendem tirar prematuramente as almas do Purgatório. B uma grande presunção e um erro perigoso»!". Há quem considere Bonsevin dalla Riva e Giacomino da Verona precursores de Dante. O génio e a audácia do poeta da Divina Comédia SÓ saem mais realçados por contraste.
NOTAS
1 Talvez investigações aturadas permitam encontrar uma iconografia do Purgatório mais precoce do que habitualmente se julga (ver o Apêndice III). 2 Sobre Joachim de Flore e o milenarismo, ver a obra de M. REEVES, The Influence of Prophecy in the Later Middle Ages. A Study in Joachimisme, Oxford, 1969, e o belo livro de Henry MOTIU, La Manifestation de l'Esprit selon Joachim de Fiore, Neuchâtel, Paris, 1977. A obra inspirada mas por vezes contestável de Norman COHN, The Pursuit of the Millenium, Londres, 1957, trad. franc., Les Fanatiques de l'Apocalypse, Paris, 1963, sensibilizou o grande público para os movimentos milenalistas do século XI ao século XVI. 3 B. GUENÉE, «Temps de l'histoire et temps de Ia mémoire au Moyen Âge» in Bulletin de Ia Société de l'Histoire de France, nO 487, 1976-77, pp. 25-36. 4 Ver K. HAUCK, «Haus und Sippengebundene Literatur mittelalterlicher Adelsgeschlechter» in Mitteilungen des Instituis für Õsterreichische Geschichtsforschung, 62, 1954, pp. 121-145 retomado em Geschichtsdenken UM Geschichtsbild im Mittelalter, Wege der Forsehung, XXI, 1961. G. DUBY, «Remarques sur Ia Iittérature gênêalogique en France aux XI" et XII" siécles» in Comptes rendus de l'Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, 1967, pp. 123-131. G. DUBY, «Structures de parenté et noblesse. France du Nord xr-xrr siêcles» in Miscellanea Mediaevalia in memoriam J. F. Niermeyer, 1967, pp. 149-165, ambos retomados em Hommes et Structures du Moyen Âge, Paris, 1973, pp. 267-298. L. GENICOT, Les Généalogies, Typologie des Sources du Mouen Âge occidental, fase. 15, Turnhout, 1975. 5 Ver os trabalhos atrás citados, pp. 149-150. 6 Sobre o êxito dos géneros narrativos nesta época ver os fascículos 12 (Le Roman por J.-Ch. Payen e F. N. M. Diekstra, 1975) e 13 (Le Fabliau por O. Jodogne eLe Lai narratifpor J. Ch. Payen, 1975) da Typologie des sources du Moyen Age occidental e La littérature narra tive d'imagination: des genres littéraires aux techniques d'expression (Colóquio de Estrasburgo, 1959), Paris, 1961. Faz falta um estudo de conjunto sobre o «fenómeno narrativo» na Idade Média e a sua explosão no século XIII. 7 Não escapará ao leitor que esta expressão que veio a ser corrente, «purgar a sua pena», vem da crença no Purgatório. 8 Philippe ARIES, L'Homme devam Ia mort, Paris, 1977, p. 110. 9 H. NEVEUX, «Les lendemains de Ia mort au Moyen Age» in Annales E.S.e., 1979, pp. 245-263.
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Jean DELUMEAU na sua grande síntese sobre La peur en Occident du XIVXVllr siêcle (1978), Jean WIRTH, no seu belo estudo sobre La jeune fllle et Ia (Pe~uisa sobre as teses macabras na arte germânica do Renascimento), 1979. I Michelle BASTARD-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine 111 XIV" siêcle et au début du XV" siêcle» in Annales du Midi, pp. 5-34: «Êxito efémero • escala do tempo histórico; parece que no século XVIII o Purgatório já não está ao centro das preocupações religiosas dos naturais de Toulouse, a acreditar-se no leitemunho dos testamentos» (p. 5, nota 2). 12 Ver adiante, pp. 358-360. 13 A. AARNE e S. THOMPSON, The Types of the Folktale, 21 ed. revista, Hei. sinquia, 1964, p. 161. 10
critica. Andrée Duby, a quem agradeço pelas suas informações e sugestões, prepara um importante trabalho sobre o Dialogus miraculorum. 29 Num texto notável que teve a amabilidade de me comunicar, Alberto .Forni acentua que para os ouvintes de sermões o tema do Purgatório «é fonte de terror». É verdade, mas noutros contextos a «infernização» do Purgatório não é levada tão longe. A. FORNI, «Kerigma e adattamento. Aspetti della predicazione cattolica nei secoli XII-XIV» (a aparecer no Bullettino dell'Istituto Storico Italiano per iI Medio Evo},
25 The Exempla or illustrative stories from the sermones vulgares of Jacques de Vitry, ed. Th. F. Crane, Londres, 1890, reimp. Nelden, 1967. Edição preciosa pelas suas nota.s, mas medíocre pelo texto, e que separa os exempla do contexto do sermão, o que ~~pede que se avalie o seu significado. O exemplum citado é o nOXCIV, pp. 52-53. Ibid., nOCXXII, p. 56. 27 Ver Fritz WAGNER, «Studien zu Caesarius von Heisterbach» in Analecta Cistercensia 29, 1973, pp. 79-95. 28 CÉSÁRIO DE HEISTERBACH, Dialogue miraculorum ed. J. Strange, Colónia-Bona-Bruxelas, 1951. F. Wagner anuncia no seu artigo atrás citado uma nova edição
30 São os exempla I, 32 (conversão de um abade de Morimond que ressuscitou); 11, 2 (monge apóstata que se fez salteador de estrada e no momento da morte se arrependeu e escolheu dois mil anos no Purgatório); m, 24 (tendo um confessor cometido o pecado de sodomia com um adolescente, arrependeu-se profundamente mas não ousou confessar-se; depois de morto aparece ao adolescente, conta-lhe as suas penas e exorta-o a confessar-se); 111, 25 (um noviço cisterciense que morre antes de ter podido confessar-se escapa ao Purgatório confessando-se a um padre numa aparição em sonhos); IV, 30 (tentações e visões do jovem monge de Heisterbach, Cristiano, que Santa Bárbara preveniu de que sessenta dias de uma doença dolorosa cá em baixo serão contados por sessenta anos no Purgatório); VII, 16 (Cristiano, monge de Hemmenrode, devoto da Virgem Maria, vê numa visão a sua alma atravessar um grande fogo mas ir finalmente para o Paraiso); VII, 58 (um bandido aceita não cometer nenhuma má acção no sábado em honra da Virgem e deixa-se enforcar e decapitar: escapa assim ao Purgatório); XI, 11 (o converso Mengoz ressuscitado pelo padre Gilberto conta que viu no além mortos que seriam libertados do Purgatório dentro de trinta dias). 31 I, 32, ed. Strange, I, pp. 36-39. 3211, 2, ed. Strange, I, pp. 58-61. 33 IV, 30, ed. Strange, I, pp. 198-202. 34 VII, 16, ed. Strange, 11, pp. 17-23. 3S XII, 24, ed. Strange, 11, pp. 335-336. 36 Ver G. DUBY, Le Chevalier, Ia femme et le prêtre. Le mariage dons Ia France féodale, Paris, 1981. 37 Recusa-se mesmo a sepultura aos usurários. 38 L. K. LITTLE, «Pride Goes before Avance: Social Change and the Vices in Latin Christendom» in American Historical Review, 76, (1971), 16-49. 39 J. Le GOFF, «The Usurer and Purgatory» in The Dawn of Modem Baking (Centro de Estudos Medievais e do Renascimento, Universidade da Califórnia, Los Angeles) New-Haven-Londres, 1979, pp. 25-52. 40 Dialogus miraculorum, XII, ed. Strange, Il, pp. 336-337. 41 Ibid., XII, 26, pp. 337-338. 42 Ibid., XII, 27, pp. 338-339. 43 Ibid., XII, 28, p. 339. 44 Ibid., XII, 29, pp. 339-340. 45 Ibid., XII, 30, pp. 340-341. 46 Ibid., XII, 31, pp. 341-342. 47 Ibid., XII, 32, p. 342. 48 lbid., XII, 33, pp. 342-343. 49 lbid., XII, 34, p. 343. 50 Ibid., XII, 35, pp. 343-344. 51 Ibid., XII, 36, pp. 344-345. 52 Ibid., XII, 37, pp. 346-347.
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14 Jean-Claude Schmitt, nas suas investigações sobre os espectros, interessa- •• particularmente por este aspecto. 15 CONRADO D'EBERBACH, Exordium magnum cisterciense, Il, 23, ed. Griesser, Roma, 1961, pp. 143-147. Agradeço a M. Philippe Dautrey que prepara um estudo sobre A Morte cisterciense por me ter chamado a atenção para estes textoe, 16 Também tirado do Liber miraculorum de Herbert, ibid., p. 229. 17 Ibid., pp. 332-334. 18 Ver o Apêndice IV, pp. 443-444. 19 Chronica ROGERI DE WENDOVER, Flores Historiarum, t. 11, Londres, 1887, pp. 16-35. Mathieu Paris, também monge de Saint-Albans, falecido em 1259, nas sua Grandes Chroniques (Chronica Majora) onde continua Roger de Wendover, conteQ. tou-se com recopiar palavra por palavra a história de Thurchill tal como a encontrou em Fleurs des Histoires, MATTHAEI PARISIENSIS, Monge de Sancti Albani, Chronica Majora, 1. lI, Londres, 1874, pp. 497-511. 20 S';?bre o exemplum ver o fascículo L'Exemplum da Typologie des sources tIN Moyen Age occidental, no prelo, de a. BREMOND, J. Le GOFF e J.-Cl. SCHMITI, 21 A velha obra de A. LECOY De La MARCHE, La chaire franpaise au MoJl'lf Age, spécialement au Xlll" siêcle, Paris, 1886, reimp. em Genebra, 1974, sobre a pli. dica, continua a fornecer informações e ideias preciosas. Ver também de J. Le GOFF. J.-CI. SCHMITT, «Au XIII" síêcle: une parole nouvelle» in Histoire vécue du peupl, chrétien (sob a orientação de J. DELUMEAU), vol. I, Toulouse, 1978, pp. 257-279. 22 Sobre Jacques de Vitry, Alberto FORNI, «Giacomo de Vitry, Predicatore e soeiologo» in La Cultura XVII/I. 1980, pp. 34-89. 23 JACQUES DE VITRY, Sermones vulgares, Sermão 68 Ad conjugatos, inédito. Transcrição de Marie-Claire Gasnault sobretudo segundo os manuscritos Cambrai 53
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A
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Ver H. DONDAINE, «L'object et le medium de Ia vision béatifique chez lei théologiens du XIIle siêcle», in Revue de théologie antique et médiévale, 19, 1952. pp. 60-130. Sobre a crise do século XIV provocada pela negação da visão beatífica iln Papa João XXII ver M. DYKMANS, Les sermons de Jean XXII sur Ia vision béatiflque, Roma, 1973. 54 Dialogus miraculorum, XII, 38 e XII, 39, pp. 347-348. 55 Sobre o tema dos sete dons do Espírito Santo nos séculos XII e XIII (os septenários estão na moda: sacramentos, pecados capitais, artes liberais, etc.) ver O. LOT· TIN, Psychologie et Morale aux Xll" et XIII' siêcle, t. IlI, Problémes de moralc Lovaina, 1949,. capo XVI, «Les dons du Saint-Esprit du Xlf" siêcle à l'êpoque de saint Thomas d'Aquin», pp. 327-456. 56 Está em preparação uma edição do tratado de Étienne de Bourbon em colaboração entre «l'Ecole nationale des chartes» (Paris), o «groupe d'anthropologie historique de I'Occident médiéval de l'École des Hautes Études en sciences socíaless (paris) e «l'Istituto Storico Italiano per il Medio Evo» (Roma). A transcrição do De dono timoris foi assegurada por Georgette Lagarde, a quem agradeço vivamente, a partir do manuscrito latino 15970 da Biblioteca Nacional de Paris onde o Purgatório ocupa os fólios 156-164. Uma antologia de exempla tirados da compilação de Étienne do Bourbon foi publicada no século passado por A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques, légendes et apologues tirés du recuei! inédit d'Étienne de Bourbon, dominicain du XIIr siêcle, Paris, 1877. O autor extraiu 14 exempla respeitantes ao Purgatório que se encontram nas pp. 30-49. Madame Lagarde transcreveu a totalidade dos 39 exempla sobre o Purgatório. Humbert de Romans, mestre geral dos Pregadores, compôs no Convento dos dominicanos de Lyon, para onde se retirara entre 1263 e a sua morte em 1277, uma compilação de exempla, o Liber de dono timoris ou Tractatus de habundancia exemplorum que aguarda ser editado de maneira critica e ser estudado. Está muito próximo do tratado de Étienne de Bourbon. 57 • GERVASIO DE TILBURY, ed. LEIBNIZ, Scriptores rerum brunsvicensium, I, 921 ;8 LIEBREC:HT, Des Gervasius von Tilbury Otia imperia/ia, Hanover, 1856, p. 12. 9 Texto latino em A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques ..., p. 32. 5 Arturo GRAF, «Artú nell'Etna» in Leggende, miti e superstizioni dei Medio Evo, Turim, 1925. 60 A. LECOY DE LA MARCHE, Anecdotes historiques .... pp. 30-31. 61 Ibid., p. 43. 62 Agradeço a Colette Ribaucourt que transcreveu um manuscrito inédito do Alph~~etum narrationum por ter tido a gentileza de me comunicar os «exempla do Purgatono». Sobre o Alphabetum narrationum ver J. Le GOFF; «Le vocabulaire des exempla d'aprês YAtphabetum narrationum» in La lexicographie du latin médiéval (aetas do colóquio de Paris, 1978), Paris, 1981. . Se se quiser ter uma ideia aproximada do lugar do Purgatórionos exempla medievais pode consultar-se o Index exemplorum de F. C. Tubach que examinou as principais compilações de exempla dos séculos XIII e XIV. Assinala trinta temas de exempla do Purgatório. No fascículo da Tipologia das fontes da Idade Média ocidental sobre o exemplum podem encontrar-se indicações quanto aos méritos e defeitos desse instrumento de trabalho: F. C. TUBACH, Index exemplorum. A Handbook of Medieval Religious Tales.Pi' Communications, nO204, Helsínquia, 1969. 63 Nicole BERIOU, «La prédication au béguinage de Paris pendant l'annêe liturgique 1272-1273», extraído de Recherches augustiniennes, volume XIII, 1978, pp. \05-·229. 53
392
~)'\Ibid., p. 124. 65 Ibid., p. 124. 56 Ibid., p. 129. 67 lbid .. p. 138. 68 Ibid., p. 143. 69 Ibid., p. 154. '10 Ibid., p. 160. 71 Ibid., p. lB5, n. 253. /2 Ibid., p. 221. 73 E. KLEINSCHMIDT, «Die Colmarer Dominikaner Geschichtsschreibung im 11. und 14. Jahrhundert» in Deutsches Archiv [ür Erforschung des Mittelalters, 28, lIeft, 2, 1872, pp. 484-486. 74 Ver o belo livro de André VAUCHEZ, La Sainteté en Occident aux demiers siêcles du Moyen Âge (1198-1431). Recherches sur les menta/ités religieuses médiévalcs, Roma, 198\. 75 Sobre as lendas latinas, a excelente obra de Guy PHILIPPART, Les /égendiers iatinset autres manuscrits hagiographiques, Tipologia das fontes da Idade Média ocidental, Turnbout, 1977. Em 1980 Jean-Pierre Perrot defendeu na Universidade de l'aris-11l uma tese interessante sobre um conjunto de lendas do século XIII em francês. Prosseguem os estudos sobre lendas em inglês e alemão. 76 A edição do texto latino da Légende dorée p<;>r Th. Graese, Dresde-Leipzig, 1846, loi feita apenas a partir de um único manuscrito. A tradução medíocre para francês de Roze, Paris, 1900 (reed. em 1967) deve preferir-se a de Téodor de Wyzewa, Paris, 1902, embora mais difícil de encontrar. 77 Legendo aurea, ed. Graese, pp. 213-216. 78 lbid., pp, 728-739. 79 «Purgantur in quodam loco juxta infernum posito qui purgatotium dicitur», ibid., [J.730. Ibid., p. 736. Ibid., p. 739. 82 Sobre Lutgarda ver S. ROISIN. «Sainte Lutgarde d'Aywiêres dans son ordre et son temps» in Co//ectanea Ordenis Cisterciensium reformatorum, VIII, 1946, pp. 161-172. L. REYPENS, «Sint Lutgarts mysticke opgang» in Ons geest Erf., XX, 80 81
!946.
Vila, 11, 4 ACla Sanctorum, 16 de Junho, Junho, IV, ed. Paris-Roma, 1867. Vila, lI, 9, ibid., p. 198. 85 Vita, m, 5, ibid., p. 205. 86 Vila, Hl, 8, ibid., p. 206. 87 Cf. J. CHIFFOLEAU, La comptabilité de l'Au-delà, les hommes, ia mort et Ia région comtadine à Ia fin du Moyen Âge, Rome, 1981, e M. Bastard-Fournie, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIV" et au début.do x.ye siêcle», in Annales du Midi, 1980, 5-34, designadamente pp. 14-17 (e n. 65). 88 J.-P. REDOUTEY, «Le testament de Renaud de Bourgogne, Comte de Montbêliard», in Société d'émulation de Montbéliard, vol. LXXV, fase. 192, 1979, pp. 27-57. Ver a notícia breve de P. C. TIMBAL, «Les legs pieux au Moyen Age» in La Mort au Moyen Âge, colóquio da Sociedade de historiadores medievalistas, Estrasburgo, 1975, Estrasburgo 1977, pp. 23-26. 89 J.-L. LEMAITRE, Répertoire des documents nécrologiquesfranpais. sob a orientação de P. Marot, Recueil des historiens de la France, 2 vol., Paris, 1980, pp. 23-24. 83
84
393
900t t '. exto ongmal foi publicado G F AGN l'his~fjre de l'":dr:strie en France, t. I, P~~:, 1898. IEZ, Documents pour servt« ~ _ Aproveitei os exemplos dados por TOBLER-LO . Wõrterbuch VII 1969 col 209 . MMATZCH, AltjrfUlzosLfC/w YEN Le 'tif 6-2097, s.v. purgatotre e as referências de J -Ch "A Genebra u repenttr ~ Ia littérature française médiévale (des origine~ à Il.W) tóri ' s.v, purgatoire, mas apenas os textos onde se menciona explicitarncnl • ~a~~:f.a ono, o que, por exemplo, não é o caso do «conto piedoso» Le chevalier ,,:
x - O TRIUNFO rormco.
A «DIVINA COMÉDIA»
ti '.' ~;6~
. 92 PHILIPPE DE NOV ARE, IV âges d'omes ed M de FréviU P . «c~lfait lijones po de penitance ou siêcle; si estue; qu;i/ /~ [ace grfUlte~t laons,1888, p.l] toire,» J' ligue en purll" 93 L'R I 94 E omans ~ B~udouin de Sebourc, XVI, 843, in Tobler-Lommatzch VII 2097 n purgatOlre c est Ia somme ' ,. Menez en fu por les meffaix ' 9S Qu'en sa vie out ouvrez et fait (ibid.) Et sages home amesurer Se doit si ke puisse durer S'aumosne tant qu'iJ iert en víe Si qu'a Ia mort li fache aie De li mener en purgatoire Pour lui poser net en Ia gloire ... LeD' de •. 96 ~ penitence, 2.885 (citado por Tobler-Lommatzch VII 2097) Arseruo FRUGONI II Gi U bil di " '" Storico Italiano per i/ Medi~e:o e A h ~~ M,Borufa.clO VIII»> in Bollettino del/'Islilulll Incontri nel Medio e», Bolonha 1';7~Vlpo 7;~~~o7rU11/o, 1950, pp. 1-121, retomado em 97·PL, 72,222. "p..
: Bul/arium Anni Sancti, ed. H. Schmídt, Roma, 1949, p. 35. 100A. FRUGONI, Incontri nel Medioevo, p. 106. 197~'oP~'
~70~~~~8,E;:~C~ ~~~~~~t~~8~ella
societâ piemontese dei trecento,
Turim,
Inquisuio UI Rlxendinfanaticam in I Von DOLLING . _ des Mittelalters, Munique 1890' t II 706-7 ER, Beitrãg« zur Sekten. 102 J DUVERNOY ."" pp. 11. 1978, I, 354. ' Le registre d'Inquisition de Jacques Fournier, Paris-Haia.
geschichte
Ibid., p. 160. 163. 105 Ibid., p. 167. 106 BONVESIN DALLA RIV ALe' Consultei a edição de Leandro B ' opere .vo/gan, ed. G. Contini, I, Roma, 1941. Riva Pisa 1902 De IAI?ENE,.// libro deI/e Tre Scritture di Bonvesin dalla , , . vo aos meus amigos Girolamo Arn ldi R I cimento dos textos de Bonvesin daUa Riva e de Giaco:U eda a~u Manselli o conhe107 GIACOMINO DA VERONA, IA Gerusalemme no erona:.. ed. E. Barana, Verona, 1921. Utilizei a edição de R Br cele~/~:;O ~abl.lo~~ infemale, Duecento, I, Nápoles, 1960, pp. 627-652. . oggIru-. ontini ID Poeti dei 108 JACOPO PASSA VANTI Lo S. '. pp. 387-391. ' 'pecchio di vera penitenza, ed. M. Lenardon, 103
104
nu., p.
Pouco depois de terem passado cem anos sobre o seu nascimento, o Purgatório beneficia de uma oportunidade extraordinária: o génio poético de Dante Alighieri, nascido em Florença em 1265, confere-lhe definitivamente um lugar de eleição na memória dos homens. Entre o seu exílio em Florença em 1302 e a sua morte em Ravena em 1321, Dante compôs a nivina Comédia cujos dois primeiros cantos, ou seja, o Inferno e o Purgatório já estavam terminados em 1319, como prova uma carta do erudito bolonhês Giovanni dei Virgilio. Não é apenas para mostrar a obra do acaso na história do Purgatório que termino este estudo com a Divina Comédia. E também não é apenas rara, no fim deste livro, deixar o Purgatório nas alturas onde Dante o colocou. É igualmente, é sobretudo, porque Dante, através de uma obra de excepção, reuniu numa sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo rasto segui nesta obra. li Purgatorio é uma conclusão sublime para a lenta génese do Purgatório. É também, de entre estas imagens possíveis e por vezes concorrentes do Purgatório que a Igreja, ao afirmar o essencial do dogma, deixara à escolha da sensibilidade e da imaginação dos cristãos, a mais nobre representação do Purgatório nascida do espírito humano. Na selva dos comentários dos estudiosos de Dante, entre os quais seria ridículo pretender incluir-me, segui o simples caminho de uma leitura desapaixonada do poema em que o meu guia era a lembrança dos numerosos textos que haviam precedido a Divina Comédia na busca do Purgatório '. Traçarei, em primeiro lugar, esse percurso.
o sistema
dantesco do Purgatório
Dante já disse muito a esse respeito no último verso do Inferno. O poeta e o seu guia, Virgílio, saíram para «tornar a ver as estrelas». O Purgatório não é subterrâneo. Está ao nível da terra sob o céu estrela394
395
do. Um velho sábio da Antiguidade, Catão da Útica recebe-os porque é O guarda do Purgatório. Este é uma montanha cuja parte inferior é uma antecâmara, um lugar de espera onde estão na expectativa os mortos que ainda não são dignos de entrar no Purgatório propriamente dito. A montanha ergue-se no hemisfério sul, ocupado, segundo Ptolomcu que segue Dante, por um oceano deserto impenetrável para os homens vivos. Eleva-se nos antípodas de Jerusalém (Ill, 3, IV, 68 e ss.). O Purgatório propriamente dito é abordado pelos dois peregrinos no canto nono, quando Virgilio anuncia ao seu companheiro: Chegaste agora ao Purgatório Vê lá em baixo a falésia (balzo) que o cerca Olha a entrada no sítio em que ela parece interrompida (v. 49-51).
O Purgatório é formado por sete círculos ou cornijas sobrepostas (cerchi, cerchie, cinghi, cornici, giri, gironi), cuja circunferência vai dimi-
nuindo à medida que se sobe. Ali as almas purgam os sete pecados capitais: por sua ordem, o orgulho, a inveja, a cólera, a preguiça, a avareza, a gula e a luxúria. No cume da montanha Virgílio e Dante entram no paraíso terrestre onde se passam os seis últimos cantos do Purgatório (XXVIII a XXXIIn. No limiar do paraíso terrestre Virgílio abandona a sua tarefa e diz àquele que conduziu até então:
ção profunda desses lugares marginais na crença e nas práticas. O verdadeiro sistema do além adoptado pela massa dos fiéis não foi o sistema dos cinco lugares mas o dos três lugares. No entanto, os limbos também estão presentes na Divina Comédia. Os dois limbros: o dos antigos sábios e dos patriarcas, o das crianças do mundo cristão. Sente-se Dante dilacerado entre a sua admiração, o seu reconhecimento, o seu afecto pelos grandes espíritos pagãos - a escolha de Virgilio para guia é plena de sentido -, a sua piedade e a sua ternura pelas crianc.inhas mort~s de tenra idade, por um lado, e, por outro lado, a sua estreita ortodoxia cristã. Ninguém poderá ser salvo no céu sem ter recebido o baptismo. Mas os duplos habitantes dos limbos não cessam de perseguir Dante ao longo de toda a sua peregrinação. Para os sábios e os justos de antes de Cristo há dois destinos diferentes. Os que viveram sob a antiga lei foram salvos pelo Cristo que desceu àquela parte do Inferno que constituía o limbo dos patriarcas, e fê-Ias bem-aventurados (Inferno, IV, 61):
.0 poeta desaparece deixando em lágrimas Dante a quem logo aparece Beatriz que será a sua guia na última fase da peregrinação, no terceiro reino, o Paraíso. Ninguém melhor do que Dante exprimiu a ligação entre o sistema da Criação cá em baixo no mundo e no além. Do Inferno emerge-se ao nível do mundo intermédio e temporário, o da terra, de onde se eleva para o céu a montanha do Purgatório coroada pelo Paraíso terrestre que já não se situa num canto perdido do universo mas ao seu nível ideológico, o da pureza, entre o auge da purificação no Purgatório e o início da glorificação no Céu. Aqui parecem relativamente sacrificados os limbos, sobre os quais no século XIII os teólogos profissionais se tinham complacentemente entendido, sem que a isso tenha correspondido, parece, uma implanta-
e que Ele fechou definitivamente. Quanto aos pagãos, têm de ficar a esse nível de trevas, mas Deus concedeu-lhes no ponto mais alto dos infernos, ao nível do primeiro círculo, um castelo nobre (nobile castello) onde vivem «num prado de fresca verdura», limitado por um lado por «um lugar aberto, luminoso e elevado» (Inferno, IV, 106 e ss.). Os sábios antigos, cuja evocação e reminiscências não cessam de acompanhar Dante no decurso da sua peregrinação, estão também explicitamente presentes no Purgatório: são eles Aristóteles e Platão e tantos outros de que recorda «o desejo sem fruto» do verdadeiro Deus (III, 40-45); é Juvenal que Virgílio evoca descendo para «o limbo do inferno» (XXII, 14); é Estácio, perguntando ansiosamente a seu mestre Virgílio se os grandes escritores romanos estão condenados e Virgílio respondendo-lhe que estão com ele «no primeiro recinto da cega prisão», onde falam frequentemente da montanha, do monte do Purgatório, onde residem as suas amas, as Musas (XXII, 97 e ss.). Foi aliás um deles que Deus pôs como guarda da montanha do Purgatório: Catão de Útica. Alguns admiram-se por verem essa função confiada a um pagão que, ainda por cima, se suicidara. Mas Dante tinha a maior admiração por aquele que, pelo preço da própria vida, fora o campeão da liberdade (Purgatório, I, 70-75). No Banquete Virgílio faz dele o símbolo do cidadão, do herói da vida cívica que julga ter nascido «não para si próprio mas para a pátria e para o mundo inteirov'. Quanto às crianças mortas antes do baptismo e apenas marcadas pelo pecado original, estão com os sábios pagãos naquele mesmo castelo do
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Não esperes que eu te diga mais nem que te faça sinal Livre, recto e são é o teu arbítrio E seria um erro não lhe obedecer: Por isso faço-te soberano e dou-te a coroa e a mitra (XXVII,
139-142).
primeiro círculo do Inferno, o que é revelado por Virgílio ao trovador Sordel que encontra no antepurgatório: Existe lá em baixo um lugar ensombrado não por tormentos Mas apenas por trevas, onde os lamentos Não soam como gritos e não são mais do que suspiros É lá que eu moro com os pequenos inocentes Que os dentes da morte morderam antes De terem sido lavados do pecado humano (VII, 28-33).
Ainda no Paraíso, Dante evocará as criancinhas retidas no limbo do Inferno: Mas depois que veio o tempo da graça Sem o perfeito baptismo do Cristo Essa inocênciafica retida lá em baixo (XXXII,
com evocá-Ia de maneira significativa no segundo canto do Purgatório quando, na nau do anjo barqueiro, «as almas cantam todas juntas em uníssono o salmo CXIII In exitu Israel de Aegypto que se cantava na Idade Média enquanto se transportavam os mortos de sua casa para a Igreja e depois para o cemitério (lI, 46-48). O essencial está na ascensão dessa montanha constantemente referida (eele sobe» ao longo de todo canto)" e a que se chama mesmo «o monte sagrado» (U sacro monte, XIX, 38), o monte santo (U santo monte, XXVIII, 12). A esta montanha, em dois daqueles versos de que tem o segredo para evocar várias sensações ao mesmo tempo, Dante define-a como um puy, breve designação de vulcão, e como que erguida em direcção ao céu onde deve conduzir: e eu dirigi o meu olhar para o pico que do sítio mais alto se ergue para o céu (e diedi il viso mio incontro al poggio che'nverso il ciel piú alto si dislaga) (111, 14-15).
82-84).
Se Dante soube dar ao Purgatório todas as suas dimensões foi porque compreendeu o seu papel de intermediário activo e o mostrou graças à sua encarnação espacial e à figuração da lógica espiritual em que se insere. Dante soube estabelecer a ligação entre a sua cosmogonia e a sua teologia. Alguns comentadores afirmaram que ele introduzira - quase como verbo-de-encher - na Divina Comédia os conhecimentos adquiridos na frequentação, segundo as suas próprias palavras, das «escolas religiosas e das discussões dos filósofos» a que se entregara de corpo e alma após a morte de Beatriz em 1290. Quem não vê que a sua cosmogonia, a sua filosofia e a sua teologia são a própria matéria - a matéria e o espírito - do seu poema? O Purgatório é bem «esse segundo reino» entre o Inferno e o Paraíso. Mas Dante tem desse além intermédio um conceito dinâmico e espiritual. O Purgatório não é um lugar intermédio neutro, é orientado. Vai da terra onde os futuros eleitos morrem, ao céu onde fica a sua morada eterna. No decurso do seu itinerário eles purgam-se, tomam-se cada vez mais puros, aproximam-se sempre mais do topo, das alturas a que se destinam. De entre todas as imagens geográficas que o imaginário do além oferecia a Dante desde há tantos séculos, ele escolhe a única que exprime a verdadeira lógica do Purgatório, aquela onde se sobe, a montanha. Para Dante que realiza, na invocação dos fins últimos, a síntese entre o mais novo (o Purgatório) e o mais tradicional (o temor do Inferno e o desejo do Céu), não existe cristalização dos sentimentos à volta da morte. Contenta-se
398
Montanha muito alta, muito escarpada, muito penosa de escalar. Virgílio arrasta literalmente Dante e trepam de gatas: subíamos pela fenda aberta na rocha e de todos os lados as paredes esmagavam-nos e debaixo de nós o solo reclamava pés e mãos quando estávamos na aresta superior da alta falésia, num lugar descoberto «meu mestre, disse eu, que caminho vamos tomar?» ele para mim: «que nenhum dos teus passos desça: avança apenas atrás de mim para o alto da montanha» (IV,31-38).
o cume era tão alto que desafiava
a vista
(IV,4O).
Este «segundo reino» que é todo um mundo, por sua vez está dividido em sete regiões a que Dante também chama reinos: são os «sete reinos» pelos quais Virgílio pede ao porteiro Catão que os deixe passar, a ele e a Dante: Deixa-nos ir pelos sete reinos (1,82).
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De um destes reinos para o seguinte, de uma cornija para a que 1M está por cima, os viajantes sobem escadas, degraus escarpados (scale scaglioni, scallo, gradi, etc.). Ei-los, por exemplo, quando sobem da quarta para a quinta cornija: entre as duas paredes da dura rocha (XIX,48).
espiritual mais elevada. Enfim, a purgação faz-se pela oração que purifica a alma, fortifica-a na graça de Deus e exprime a sua esperança". O princípio que explica a distribuição das almas pelas cornijas do Purgatório é o amor. Virgílio explica a Dante o seu mecanismo quando vão a meio da montanha, entre a terceira cornija, a dos coléricos, e a quarta, a dos preguiçosos. Dante interroga o seu guia durante uma paragem que não deve interromper a lição que vai recebendo progressivamente: Meu doce irmão, diz-me, que ofensa se expia neste círculo onde estamos? Se os nossos passos pararem, que não parem os teus ensinamentos
A montanba da purgação Mas esta montanha é a da purgação e esse é bem o acto essencial que lá se produz. Este tema é posto logo de início por Dante: E eu cantarei este segundo reino onde a alma humana se purga e se torna digna de subir ao céu (I, 4-6).
Virgílio, dirigindo-se a Catão, recorda que mostrar essa purgação a Dante é o objectivo daquela parte da sua viagem:
(XVII, 82-84).
O fundo comum a todos os pecados é a ausência de amor de Deus, quer dizer do bem. O amor desviado para o mal, o amor tíbio de mais, o amor transformado em ódio, eis o movimento profundo do pecado; sobre a montanha do Purgatório restaura-se o verdadeiro amor, a escalada do Purgatório é uma subida para o bem, o retomar da navegação em direcção a Deus, atrasada pelo pecado. Dante reúne aqui as metáforas da montanha e do mar naquele lugar onde o monte surge do oceano. Com efeito, Virgilio responde:
e agora quero mostrar-lhe esses espíritos que se purgam sob a tua guarda
o enfraquecido amor do bem restaura-se para o seu dever, aqui regressa e retoma a sua batida o remo indevidamente retardado
(I, 65-66).
(XVII, 85-87)5.
~o meio da purgação colectiva, Dante atenta nas purgações individuais. E, por exemplo, o caso do poeta Guido Guinizelli na sétima cornija, a dos libidinosos: Sou Guinizelli e já estou a purgar-me (XXVI,92).
A purgação na montanha faz-se de três maneiras: por uma punição material que mortifica as paixões más e' incita à virtude. Pela meditação sobre o pecado a purgar e sobre a virtude oposta: de certo modo, existe no Purgatório um tratado das virtudes e dos vícios. Meditação facilitada pelo .exemplo de mortos ilustres ou conhecidos encontrados nas cornijas. AqUI Dante desenvolve a utilização tradicional dos mortos do Purgatório para fins políticos (e que poeta foi mais político do que ele?) numa lição 400
A lei do progresso
Toda a lógica deste purgatório montanhoso está no progresso que se consegue ao subir: a cada passo a alma progride, torna-se mais pura. É uma ascensão em sentido duplo, sentido fisico e sentido espiritual. O sinal deste progresso é o aligeiramente da pena, como se a escalada se tornasse mais fácil, a montanha menos escarpada, para a alma cada vez menos carregada de pecados. Logo no antepurgatório Virgilio anunciou-o a Dante: E ele para mim: «Esta montanha é tal que sempre lá em baixo no princípio ela é difícil mas quanto mais o homem se eleva, menos ela faz sofrer» (IV,88-90).
401
E de novo as imagens da escalada e da navegação misturadas: Assim, quando ela se tornar tão suave Que te seja fácil subi-Ia Como é fácil descer de barco a favor da corrente, então estarás no fim deste caminho
de eleitos e lá sofrem; mas a justiça de Deus que é perfeita e se confunde com a misericórdia e a esperança e que reina nesses lugares atenua os sofrimentos que vão diminuindo à medida que se sobe. Na sexta cornija, Dante diz ao seu amigo Forese Donati que a montanha onde se encontra e para onde Virgílio o levou é o lugar que levanta e dignifica:
(IV, 91-94).
A partir da primeira comija já há melhoria; os corredores verticais são substituídos por escadas:
De lá os seus incitamentos levaram-me para o alto subindo e contornando a montanha que dignifica aqueles que o mundo tornou defeituosos (XXIII, 124-126).
... Vem, aqui estão os degraus daqui em diante sobe-se mais facilmente (XII, 92-93).
o Purgatório No alto desta primeira escada Dante evoca a lei de progressão que é também uma lei de progresso: Estávamos no cimo da escada lá onde pela segunda vez se interrompe a montanha que apaga o mal enquanto a subimos (XIII, 1-3).
Na comija seguinte um anjo faz notar aos alpinistas a continuação das melhorias, num clima mais descontraído: Diz-nos ele com voz alegre: subi por aqui Por uma escada bem menos íngreme do que as outras (XV, 35-36).
À chegada à quinta comija onde os mortos choram estendidos com a face contra o chão, pedem-lhe auxilio, invocando o princípio do progresso da ascensão:
e os pecados
Este Purgatório é bem aquele onde os pecados são expiados, mas Dante parece ter esquecido, pelo menos em parte, os ensinamentos dos teólogos. Não são os pecados veniais os que lá se expiam, pecados de que Dante não fala a não ser talvez quando alude a eles ao evocar o amor excessivo pela família, um desses pecados «leves» já citados por Agostinho. Mas no entanto, no essencial, purgam-se nas sete comijas os sete pecados capitais tal como no Inferno. Dante, sempre consciente da lógica profunda do Purgatório, vê nele um inferno temporário que lembra os tormentos infernais merecidos pelos mesmos pecados mas também eles cometidos de maneira menos grave, seja porque foram parcialmente apagados pelo arrependimento e a penitência, seja porque foram menos inveterados do que os dos condenados, seja porque somente em parte mancharam uma vida animada pelo amor de Deus em tudo o resto. Um anjo marca simbolicamente Dante por esses pecados à entrada do Purgatório, traçando com a ponta da espada sete vezes a letra P (peccato, pecado) sobre a sua testa. «Arranja maneira de lavar quando estiveres lá dentro, esses ferimentos», diz ele
Ó eleitos de Deus, cujos sofrimentos São suavizados pela justiça e pela esperança Guiai-nos até aos degraus que sobem mais alto (XIX, 76-78).
Esta nova interrupção sintética lembra alguns dados essenciais do Purgatório: as almas que lá moram estão prometidas ao céu, são almas 402
(IX, 112-114).
Com efeito, à saída de cada cornija um anjo apagará uma das chagas, um dos pecados marcados sobre a fronte ,de Dante. No décimo-sétimo canto, depois de Virgílio ter explicado a Dante a lista das infracções ao amor, esclarece-o também, à luz desse princípio, sobre o sistema dos sete pecados capitais. 403
As três primeiras formas da transformação do amor do bem em amor do mal são as três espécies de ódio ao próximo, ou antes o amor do mal do próximo ('I mal che s'ama e dei prossímo). São a vontade de o humilhar, a impossibilidade de suportar a sua superioridade, o desejo de se vingar de qualquer ofensa. Os três primeiros pecados capitais são pois: o orgulho, a inveja e a cólera (XVII, 112-123). Há, por outro lado, três formas de um outro amor: «que se dirige para o ~m mas segundo uma corrupção da ordem» (XVII, 125 e ss.). Virgílio deixa a Dante o cuidado de descobrir, na sequência da sua ascensão as três formas desse amor corrupto. Serão elas a avareza, a gula e a luxúria. No centro do sistema inscreve-se o relaxamento do amor, o amor tíbio, o amor «lento» (lento amore). É o pecado que se expia a meia altura da montanha: essa indolência, esse aborrecimento da vida nascido no meio monástico, a que se chama em latim accedía (de onde o italiano accídia) de que se purgam os «tristes» (tristi} da quarta cornija. Verifica-se que esta lista dos sete pecados capitais é também uma lista hierárquica, pois elevando-se de cornija em cornija as almas progridem. Também aqui Dante se mostra tradicionalista e inovador simultaneamente. T,radicionalista porque põe à cabe~a dos pecados o orgulho, quando no seculo XIII a avareza o suplantara . Inovador porque considera mais graves os pecados do espírito cometidos contra o próximo, o orgulho a inveja, a cólera, do que os pecados da carne cometidos em grande parte contra o próprio, a avareza, a gula, a luxúria. Para este último vício, Dante faz beneficiar do Purgatório, tal como condenara ao Inferno, os libidinosos, tanto homossexuais como heterossexuais (canto :XXVI). No mecanismo do pecado que conduz ao Purgatório, Dante parece ter sido especialmente sensível ao carácter tardio do arrependimento. Volta a isso por várias vezes. É, no antepurgatório, Belacqua convencido de que lhe é inútil ir até à porta do Purgatório que continuará a estar-lhe fechada, «Porque, diz ele, adiei até ao fim os salutares suspiros»
senão com ajuda (XI, 127-129). Daí a surpresa de Dante por encontrar no Purgatório, menos de cinco anos depois de ter morrido, Forese Donati, cujo pouco zelo no arrependimento o fazia julgá-lo no antepurgatório lá em baixo num lugar onde o tempo é restaurado pelo tempo (XXIII, 83-84).
O antepurgatório
, I
I
A originalidade de Dante está, com efeito, no facto de imaginar que muitos pecadores, antes de penetrarem no espaço onde se desenrola o processo de purgação, fazem um estágio num lugar de espera, o antepurgatório, no sopé da montanha. Pode supor-se que, estando cada vez mais o Purgatório prometido aos que se contentavam com um acto de contrição in extremis (já em Cesário de Heisterbach se adivinhava isso), Dante julgou necessário, por muito inclinado que estivesse a acreditar largamente na justiça de Deus, instituir essa provação suplementar, a espera junto do Purgatório. É uma multidão inquieta, ignorante do caminho para o Purgatório, que pergunta a Virgílio e a Dante: Se o sabeis, Mostrai-nos
o caminho que leva à montanha (lI, 59-60)
A Dante, que no antepurgatório pergunta ao seu amigo Caselia: Mas tu, como te atrasaram tantas horas?
este contenta-se com responder:
(IV, 132). É a multidão daqueles que receiam a morte violenta e, por isso,
só se arrependeram no último momento: «Morremos todos outrora de morte violenta e fomos pecadores até à hora última»
Nenhum mal me fizeram, mas o anjo que leva consigo quem lhe agrade e quando lhe agrada, mais de uma vez me recusou a passagem pois a sua vontade é o reflexo de uma vontade justa (11, 94-97).
(V, 52-53).
Na primeira cornija recordam-lhes que um morto que tenha esperado a última hora para se arrepender não pode ser admitido no Purgatório
É ele que recorda como sendo realidade a velha lenda segundo a qual as almas dos mortos não condenados mas que têm de se purgar, se reúnem em Ostia, junto da foz do Tibre:
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Virgilio tem de o acalmar. A montanha é bem um lugar de castigos. Eis, por exemplo, na segunda cornija, a dos invejosos, o chicote, se bem que as cordas sejam entrançadas de amor,
Foi assim que, quando eu contemplava o mar, lá onde a água do Tibre se torna salgada, fui apanhado por ele com benevolência e ele estendeu as asas em direcpão àquela foz porque é lá que sempre se reúnem as almas que não têm de descer ao Aqueronte (11, 100-105).
o orgulhoso provençano Galvani ficou a dever apenas a uma acção piedosa que foi para ele uma humilhação ter escapado à espera no antepurgatório. Para pagar o resgate de um amigo seu, mendigou na praça principal da cidade:
I
II
Este círculo castiga O pecado da inveja, e é por isso que as cordas do chicote são entranpadas de amor (XIII, 37-39).
Estas sombras dos invejosos sofrem penas ainda piores, pois um fio de ferro atravessa as pálpebras de todas e os pescoços, como se faz aos gaviões selvagens se não estão quietos
Essa acpão tirou-lhe a pena do exílio (XI, 142).
(XIII, 70-72).
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Guido Guinizelli, esse, já pode purgar-se «Porque, diz ele a Dante, arrependi-me antes dos meus últimos dias» (XXVI,93).
Foi na época em que Dante fez a sua viagem pelo além que aconteceu uma circunstância que remove os obstáculos à porta do Purgatório e empurra para a montanha a multidão de almas que esperam. São as indulgências decididas pelo Papa Bonifácio VIII por ocasião do jubileu de 1300. Casella di-lo a Virgílio e a Dante ao falar do barqueiro Catão: Para falar verdade, há três meses que ele recebe em paz quem quer entrar.
Entre os pecados cometidos na terra e a intensidade e duração destes castigos, especialmente o tempo de espera no antepurgatório, existe, para lá do nível da montanha onde se purga a culpa, essa proporcionalidade em que reconheci uma das características do sistema do Purgatório. O filho legítimo de Frederico 11, Manfredo, que morreu excomungado, declara no antepurgatório: É verdade que aquele que morre em conflito com a Santa Igreja, mesmo que no fim se arrependa, tem de ficar no exílio fora desta vida trinta vezes o tempo que ficou na sua teimosia
nn, 136-140).
(11,98-99).
E Belacqua: Que melhor testemunho se poderia encontrar da perturbação provocada pela inovação de Bonifácio VIII nas práticas relacionadas com o Purgatório? Não só não entra quem quer e como quer, como não deve pensar-se que o Purgatório dantesco é já um Paraíso. As suas cornijas ressoam de lamentos e gemidos. Ao aproximar-se dele, Dante, em sonhos, fica aterrorizado. Estremece e toma-se lívido, como um homem a quem o medo faz gelar (IX,42). 406
Primeiro é preciso que o céu gire à minha volta durante o mesmo tempo em que o fez durante a minha vida, enquanto eu espero cá fora porque retardei até ao fim os salutares suspiros (IV, 130-132).
Examinando em imaginação essa proporcionalidade, Estácio, o grande admirador de Virgílio, garante que teria de boa vontade passado mais um ano suplementar no Purgatório para ter podido viver na terra ao mesmo tempo que Virgílio (XXI, 100-102). 407
Este fogo é tão forte que impede Dante de se lançar nos braços do seu mestre Guido Guinizelli
Mas Dante retoma a afirmação vinda de Agostinho, segundo a qúal as penas do Purgatório são superiores à pior das penas terrenas. Fá-lo no seu jeito imaginativo, utilizando o relevo montanhoso que deu ao Purgatório:
No entanto, por causa desse fogo
o fogo Dante faz frequentemente alusão àquilo que, antes dele, se identificou mais ou menos com a pena do Purgatório, o fogo. No pesadelo que o atormenta ao aproximar-se da montanha, Dante ve em sonhos um fogo:
me aproximei mais (XXVI, 102),
Chegámos entretanto ao sopé da montanha. Aiencontrámos rochas tão escarpadas Que a agilidade das pernas era em vão Entre Lerici e Turbia; o mais ermo, o mais duro montão de pedregulhos é uma escada fácil e espaçosa se o compararmos com aquelas rochas (III, 46-51).
1UÜJ
enquanto o trovador Arnaut Daniel se perde no fogo que o purifica (XXVI, 102).
I
I
Enfim, no momento de deixar o Purgatório pelo Paraíso terrestre, é preciso passar através da parede de fogo. O anjo da última cornija anuncia-o: Não se vai mais longe se primeiro não se sofrer a mordedura deste fogo; ó almas santas entrai nele...
A
Aí tive a impressão de que ardíamos e o incêndio imaginário tornou-se tão pungente que foi preciso o meu sono interromper-se (IX, 31-33).
(XXVII, 10-11).
1 Dante olha o fogo com apreensão: Inclinei-me por cima das minhas mãos postas olhando o fogo, e imaginei com nitidez corpos humanos que outrora vira arder
Dante julgou-se no Inferno:
(XXVII, 16-18).
Escuridão de inferno, escuridão de uma noite privada de qualquer estrela; um céu estéril, ensombrado de nuvens tanto quanto é possível, não pôs diante da minha vista um viu tão espesso como este fumo que nos cobriu (XVI, 1-5).
Virgílio tranquiliza-o: Podes estar certo de que, se no seio desta chama tivesses de ficar mil anos e mesmo mais, ela não poderia queimar-te um único cabelo (XXVII, 25-27).
Na sétima e última cornija o fogo queima os libidinosos (XXV, 137): Aqui o flanco da montanha dardeja chamas para cima e do fundo da ravina sopra para o alto um vento que os empurra para trás e os afasta da borda: de maneira que tinham de caminhar pelo lado descoberto um a um; e eu temia o fogo por este lado, e pelo outro temia cair no abismo (XXV, 112-117). 408
A provação é no entanto penosa, se bem que Virgílio tenha entrado no fogo à frente dele: Quando estive nesse fogo, era no vidro em fusão que me teria lançado para ~e refrescar, de tal maneira o incêndio era imenso (XXVII, 49-51). 409
d' Auvergne, à grande tradição dos teólogos do século XII que haviam firmado o Purgatório na penitência. É. no antepurgatório, o canto do Miserere, canto de humildade necessário à expiação e à purificação (V, 22-24). É, no momento de transpor a porta do Purgatório, o simbolismo perfeito e subtil dos três degraus que lhe dão acesso.
É preciso que Virgílio lhe fale de Beatriz sem parar e que uma voz chame por eles cantando da outra borda para que Dante suporte a provação. Fogo-que lembra o Inferno, mas que no entanto é diferente dele. No momento em que vai deixar Dante, Virgílio recorda-lhe:
o fogo
temporário e o que é eterno, Tu viste-os, meu filho
Vi uma porta e por baixo três degraus de cor diferente, que lhe davam acesso e um porteiro que não dizia palavra.
(XXVII, 127-128).
Purgatório
A vanpômos para eles e o primeiro degrau era de um mármore branco, tão claro e tão polido que eu me via nele como num espelho, tal como sou.
e Inferno: o arrependimento
É certo que por diversas vezes o Purgatório lembrou a Dante o Inferno. Se a montanha com as suas nove moradas, o antepurgatório, as sete comijas do Purgatório e o Paraíso terrestre anuncia as nove esferas do Paraíso, no momento de a transpor ela recorda-lhe sobretudo os nove círculos/do Inferno. No entanto, Dante assinala a diferença fundamental que existe entre o Inferno e o Purgatório e que ele toma perfeitamente .nítida, Primeiro, pela estreiteza da porta (IX, 75) que constrasta com a grande abertura da porta do Inferno e lembra a porta estreita da salvação segundo o Evangelho: «Entrai pela porta estreita. Largo e espaçoso é, com efeito, o caminho que leva à perdição, e há muitos que o tomam; mas estreita é a porta e apertado o caminho que leva à vida e há poucos que o encontram» (Mateus, XLVII, 13-14). E ainda: «Lutai para entrar pela porta estreita, pois muitos, diga-vos eu, procurarão entrar e não poderão» (Lucas, XIII, 24). Dante é ainda mais explícito: Ó como estes caminhos de chegada são diferentes dos do Inferno, pois aqui é entre cânticos que se entra, e lá em baixo é entre terríveis lamentos.
Dante, mais e melhor do que qualquer outro, faz do Purgatório o lugar intermédio do além, mas subtrai o seu Purgatório à «infernização» a que a Igreja o submete no século XIII. Mais ortodoxamente fiel à lógica do Purgatório, nesse intervalo desigualmente distante dos dois extremos, pendendo para o Paraíso, Dante apresenta o Purgatório como ~ lugar da esperança e do início da bem-aventurança, da entrada progressiva na luz. É que, de uma certa maneira e para além da maioria dos grandes escolásticos, Dante é fiel, como o fora quase em excesso Guillaume 410
I
O segundo era escuro, mais negro do que avermelhado, feito de um tipo de pedra tosca e calcinada, rachada ao comprimento e à largura. Por cima, o terceiro, macipo, parecia-me de pôrfiro, tão vivo como o sangue que sai de uma artéria. Pelos três degraus acima para meu agrado, me levou o meu guia, dizendo: «Pede humildemente que ele te abra esta porta.»
(IX,76-108). «Esta cena», como bem explica o comentário da edição bilingue francesa do Centenário, «é uma representação da penitência: o anjo representa o padre, silencioso, pois é o pecador que deve dirigir-se a ele. Os três degraus de cores diferentes simbolizam os três ~ctos do sacra.mento: a confissão, a contrição e o cumprimento, actos diferentes em ~l mesmos mas que constituem entre os três o sacramento, tal como os tres degraus 7 conduzem a um só limiar .» O primeiro degrau simboliza a contrição (contritio cordis) que deve tomar o penitente branco como mármore. O segundo representa a confissão (confessio oris) que provoca no penitente o vermelho escuro da vergonha. O terceiro encama a penitê~cia propriamente dita. que é de um vermelho vivo como o ardor da candade, do amor, que anima agora o penitente. Neste limiar da purgação
o morto
quele 411
. penitente,
. ainda que penetre
na-
E assim, arrependendo-nos e perdoando, saímos para fora da vida reconciliados com Deus que inflama os nossos corações do desejo de o ver
mundo, onde pecar já não está no nosso poder
(XXVI, 131-132),
(V, 55-57).
deve, como homem que sempre é, dotado de livre arbítrio, manifestar a sua vontade de purgação. Dante segue Virgílio até ao Purgatório «de boa vontade» (di buona voglia). No meio do Purgatório, Estácio lembra a Virgílio e a Dante que a alma deve querer purificar-se.
No antepurgatório Buonconte de Montefeltro conta que o seu arrependimento no momento de morrer o colocou entre ~s mãos do .anjo de Deus para grande despeito do anjo do Infem?, ~o diabo, que Vl~ a s~ presa escapar-lhe por meio de uma pequena lagnma, per una lacrimetta:
Da sua purificacão só o seu querer faz prova que, como é livre de mudar de morada, vem surpreender a alma e obtém para ela o feliz resultado da sua vontade
O anjo de Deus agarrou-me e o do Inferno gritava: «ó tu que vens do céu, porque me defraudas? Levas contigo o que existe nesse de imortal por uma pequena lágrima que mo rouba»
(XXI, 61-63)8.
(V, 104-107).
Quando Dante descobre na cornija dos avaros, envergonhado e tentando esconder-se, o Papa Adriano V, interpela-o aSSlID:
Assim Dante terá fixado a lição abstracta dos escolásticos que se perguntam se a pena do Purgatório é «voluntária». Penitência que envolve também a sua parte de amargura (a acerbitas dos teólogos e dos pastores). Assim os avaros e os pródigos da quinta cornija:
«... Espírito em que as lágrimas amadurecem o fruto sem o qual não podemos voltar a Deus ...)
(XIX, 91-92).
o mal
da avareza aparece nitidamente neste lugar na purgapão das almas convertidas e nenhuma pena naquele monte é mais amarga
(XIX, 115-117).
Ainda no Paraíso terrestre a bela dama Matelda que, cantando e dançando, recebe Dante ainda acompanhado por Virgílio, canta o salmo XXXII, um salmo da penitência: Beati, quorum tecla sant peccata!
(XXVIII, 40).
Neste processo penitenciaI o arrependimento é particularmente importante e é bom que ele se manifeste por lágrimas. As vítimas de morte víolenta que estão no antepurgatório, apesar do pouco tempo que tiveram antes de expirarem puderam, no entanto, não só arrepender-se mas também perdoar aos seus assassinos e aos seus carrascos. 412
Nesta quinta cornija estende-se à beira do abismo a multidão daqueles que, pelas suas lágrimas, fazem o mal dissolver-se,
E l
i
Aqueles em quem gota a gota se funde pelos olhos o mal que ocupa o mundo inteiro
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(XX, 7-8).
"
Ao entrar no Paraíso terrestre, Dante recordará uma última vez que para experimentar aquela felicidad«; é 'preciso tê-Ia pago primeiro com o arrependimento que faz correr as lágrimas (XXX, 145).
A esperança
Mas Dante insiste, no Purgatório reina a esperança. As almas, dotadas de um corpo imaterial - é o tema incansavelme~te repe~,do das sombras que se procura em vão abraçar/ - são almas libertas, ja salvas. 413
A esperança exprime-se muitas vezes pela oração. Todo o Purgatório está recheado de orações e de cânticos. Dante soube integrar no poema a liturgia que os escolásticos mantiveram à parte a maioria das vezes. E a imagem dos mortos do Purgatório em oração será precisamente aquela que os artistas do fim da Idade Média escolherão para distinguir o Purgatório do Inferno. Aqui não há esperança alguma, então para que serve rezar? Lá, pelo contrário, a certeza da salvação deve materializar-se em orações, ser testemunhada e apressada por elas. Esperança simbolizada pelo branco e pelo verde, cores da pureza e da esperança. Logo durante os primeiros passos dos viajantes no antepurgatório aparece o branco.
Verdes, semelhantes às folhas novas recentemente nascidas eram os seus mantos que, agitados por asas verdes, esvoaçavam atrás deles ao vento da sua corrida (VIII, 25-30). Logo que ouviu as asas verdes cruzarem o ar a serpente fugiu ... (VIII, 106-107).
E acontece na primeira cornija o grande episódio da recitação do Pater pelos orgulhosos, do qual dizem o último versículo, o que apela
Depois por cada lado eu vi aparecer um não sei quê de branco e por baixo pouco a pouco outra brancura surgia
à libertação do mal, apenas como pró-forma pois, libertos do pecado, já não têm daí em diante necessidade dele.
(11, 22-24).
Virgilio encoraja Dante e exorta-o a procurar a luz:
Esta última prece, Senhor bem-amado, já não se faz por nós, que não temos mais necessidade, mas por aqueles que ficaram atrás de nós (XI, 22-24).
e tu conserva bem a tua esperança, meu doce filho (lH,66).
Quando os peregrinos começam a sua ascensão, são de novo impelidos pelo desejo, pela esperança e pela luz,
As primeiras almas que Dante vê no antepurgatório afortunadas» (11, 74), eleitas ... Ó vós, bem realizados,
Ó
são já «almas
espíritos já eleitos (lH,73),
mas aqui o homem deve voar sobre as asas ágeis e as plumas do grande desejo, como disse aquele guia que me dava esperança e me iluminava com a sua luz (IV, 27-30).
Passam as almas do antepurgatório em oração: Ali oravam as mãos postas Federigo Novel/o e o de Pisa...
diz-lhes Virgílio dirigindo-se a elas. Aos invejosos da segunda cornija, Dante diz também: Ó vós, almas que tendes a certeza de ver a luz mais alta (XIII, 85-86).
A salvação das almas do Purgatório é determinada pela justiça de Deus que castiga mas que é também misericórdia e graça, e progride também pelo resto de vontade das próprias almas. Na cornija dos avaros, Hugo Capeto assinala-o:
(VI, 16-17).
Os anjos que ali velam têm mantos e asas cor de esperança: E vi sair das alturas e descer às profundezas dois anjos, com duas espadas reluzentes, truncadas e privadas das pontas.
414
Por vezes um de nós fala em voz alta e outro em voz baixa segundo o ardor que impele a nossa caminJu:ula, tornando os nossos passos ora mais longos, ora mais curtos (XX, 118-120).
415
A ajuda dos vivos O progresso na purgação e na ascensão ao céu depende sobretudo da ajuda dos vivos. Aqui Dante retoma plenamente a crença nos sufrágios. Se a maioria dos mortos do Purgatório reclama a ajuda de um parente ou de um amigo, outros apelam mais à comunhão dos santos. Manfredo, enquanto espera a entrada no Purgatório, pede ao poeta que revele o seu estado, quando voltar à terra, à filha e à sua «doce Constança» que, sabendo-o excomungado, poderá julgá-lo também condenado, pois aqui, com a ajuda dos de lá de baixo, pode-se avançar muito
rm, Belacqua desespera
145).
Nino Visconti, vanna a ajudá-lei.
também ele, pede a Dante que incite a sua neta Gio-
quando estiveres para lá das grandes ondas diz à minha Giovanna que interceda por mim lá em cima onde se dá resposta aos corapões inocentes (VIII, 70-72). Os orgulhosos que próprios, tanto quanto nho da reciprocidade Dante junta-se ao seu
recitaram o Pater pedem ajuda aos vivos pois eles está no seu poder (e Dante parece entrar no camidos méritos), rezam pelos que estão na terra, e apelo:
de entrar em breve no Purgatório, Se naquele outro lado se reza sempre pelo nosso bem sobre a terra, que devem então dizer e fazer por essas almas aqueles cuja vontade tem boas raizes? Deve-se ajudá-Ias bem a lavar-se das máculas que levaram daqui de baixo, para que, puras e leves, possam elevar-se até às esferas estreladas
a menos que venha em meu auxílio uma prece, surgida de um corapão vivo e em santa grapa (IV, 133-134). Jacopo dei Cassero solicita a ajuda de todos os habitantes
de Fano: (XI, 31-36).
Peco-te, se alguma vez vires essa região que está situada entre a Romanha e a que pertence a Carlos faz-me o favor das tuas orações em Fano, e que os que lá estão se prostemem bem diante dos altares para que eu possa expiar as minhas graves ofensas
No Purgatório há portanto almas que foram esquecidas; há também as que foram socorridas. Uma natural de Siena, Sapia, que se arrependeu tarde de mais, foi ajudada pelo seu compatriota Pier Pettigano, um franciscano:
(V,68-72). Buonconte de Montefeltro lher Giovanna e pelos seus:
queixa-se de ter sido abandonado
pela mu-
nem Giovanna nem os outros se preocupam comigo e é por isso que eu ando entre aqueles de cabeça baixa
Quis estar em paz com Deus no fim da minha vida; mas a minha dívida não teria sido diminuída pela penitência se não se lembrasse de mim nas suas santas preces Pier Peuigano, que por caridade se comoveu a meu favor (XIII, 124-129).
(V,89-9O). Dante fica como que acabrunhado com as reclamações que esperam diante da porta do Purgatório:
destas almas
Logo que me libertei de todas aquelas sombras que somente tinham pedido que se rezasse a fim de que para elas viesse depressa a hora de se tomarem santas
Por vezes uma alma do Purgatório pede a Dante que solicite a seu favor não os vivos, mas Deus. Como na comija dos coléricos, Marco o Lombardo: Peco-te que intercedas por mim quando estiveres lá em cima (XVI, 50-51).
(VI, 25-27).
416
417
í! I
É também a ajuda de Deus que Estácio invoca para as almas do Purgatório na quinta cornija: Que ele possa em breve mandá-Ias para o alto (XXI,72).
Mas, está claro, os que sofrem no Purgatório solicitam ainda mais a intercessão da Virgem e dos santos, como os invejosos da segunda cornija: OUFO gritar «Maria. orai por nôsl» e gritar: ((Miguel» e «Pedro» e «Todos os Santos»
(XIII, 50-51).
o tempo do Purgatório
Nesta temporalidade sinfónica o tempo é feito da ligação do tempo da viagem de Dante com o tempo vivido das almas do Purgatório entre as quais ele passa, é feito sobretudo dos diferentes tempos misturados dessas almas postas à prova entre a terra e o céu, entre a vida terrena e a eternidade. Tempo acelerado e tempo retardado, tempo em vaivém entre a memória dos vivos e a inquietação dos mortos, tempo ainda ligado à história e já absorvido pela escatologia. No Purgatório até a duração é regulada pelo progresso das almas. Esta articulação do tempo dos homens é marcada na eternidade divina por prodígios, que sublinham os únicos acontecimentos que podem produzir-se no Purgatório. Quando Virgílio e Dante estão na quinta cornija, a dos avaros, eis que a montanha treme: E nós esforçávamo-nos por avançar pela estrada tanto quanto era permitido ao nosso poder quando senti, como qualquer coisa que desaba, tremer a montanha. e veio-me um frio glacial semelhante ao frio que ataca aquele que caminha para a morte (XX, 127-129).
A viagem de Dante e Virgílio ao Purgatório dura quatro dias de tempo pascal, o da ressurreição, da vitória sobre a morte, da promessa de salvação: um dia, o da Páscoa, no antepurgatório, dois dias, segunda e terça-feira de Páscoa no monte do Purgatório, o quarto, quarta-feira, no Paraíso terrestre. Durante toda a viagem, Dante anota cuidadosamente o movimento do sol e dos astros que os iluminam na sua ascensão circular e simbolizam a graça de Deus que os acompanha e leva para o céu as almas do Purgatório. Mas é todo o canto do Purgatório que está semeado de anotações temporais. No Inferno as únicas indicações sobre tempo eram as que demarcavam a viagem de Virgílio e Dante. No Paraíso o tempo será abolido mesmo para a breve fassagem de Dante. O Purgatório é, pelo contrário, um reino no tempo! . Dante integra a situação do tempo do Purgatório no conjunto do tempo da história, o tempo máximo de permanência no Purgatório é o que se estende da morte ao Julgamento Final. Aqui o poeta dirige-se ao leitor: Vais ouvir como Deus quer que a dívida seja paga: não te detenhas na forma do martírio: pensa no que se seguirá. pensa que na pior das hipóteses ele não pode persistir para lá da grande setenpa (X, 107-111). 418
E todavia, coisa estranha, eis que se elevam cânticos de alegria: Depois. de todos os lados elevou-se um grito tal que o mestre (Virgílio) virou-se para mim dizendo: «Não tenhas medo enquanto eu te guiar» «Gloria in excelsis Deo» cantavam todos... (XX, 133-137).
No canto seguinte Estácio vai explicar aos dois peregrinos o significado daquele tremor de terra: (estas alturas) tremem quando uma alma se sente purificada tão perfeitamente que se ergue e se põe em movimento para subir ao céu e esse grito (que ouvistes] acompanha-a (XXI, 58-60).
Esta perturbação dos acontecimentos no Purgatório é pois o voo das almas tornadas dignas de subir ao céu e capazes de para lá voarem. Este tremor e este clamor é a agitação produzida pela passagem de uma alma do tempo para a eternidade. 419
o purgatório
dantesco é também, é ainda sem dúvida o tempo do sofrimento e da provação. As almas do Purgatório estão privadas da verdadeira alegria, a da visão beatífica, pois, como diz tristemente o Papa Adriano V, Assim como o nosso olhar não se dirige para o alto. fIXO que está nas coisas terrenas, assim aqui a justiça fâ-lo mergulhar na terra (XIX,
Esta claridade vem também dos anjos que levam para o Purgatório a luz celestial derramada nas suas faces: Eu distinguia bem as suas cabeças louras mas os meus olhos perdiam-se no reverbero dos seus rostos (VIU, 34-35).
No momento de entrar na segunda cornija, Virgílio olha o sol:
118-120).
«ó doce luz. entro confiando em ti pelo novo caminho... A caminho da luz
os teus raios serão sempre os nossos guias»
Mas o Purgatório é todo aspirado para o alto. Beatriz não virá substituir Virgílio para guiar Dante até ao Paraíso senão no Paraíso terrestre, senão no canto trigésimo primeiro, mas logo no antepurgatório Virgílio anuncia-a a Dante: Sei que me compreenderás;falo de Beatriz que tu verás lá em cima. no alto deste monte. risonha e feliz
(XIII, 16-21).
Ao subir da segunda para a terceira cornija, Dante fica mesmo deslumbrado: senti pesar sobre a minha fronte um resplendor de luz bem maior do que antes e fiquei espantado com estas coisas desconhecidas (XV, 10-12).
(VI, 46-48).
Os escolásticos interrogavam-se sobre se são os demónios ou os anjos que se ocupam das almas do Purgatório. Dante responde sem hesitação que são os anjos bons, os anjos do céu, os anjos de Deus. Há o da entrada que marca sobre a fronte os sete Pês dos pecados capitais, e também, em cada cornija, o que lá introduz as almas e os peregrinos, e que à saída, apara o P correspondente ao círculo ultrapassado. Sobretudo e apesar dos episódios de escuridão, de fumo, de noitesmas são noites sob as estrelas -, a montanha do Purgatório é progressivamente envolvida pela claridade. A ascensão é uma caminhada para a luz. Entre as trevas do Inferno e a luz do Paraíso, o Purgatório é um lugar que mergulha num claro-escuro que não cessa de se iluminar 1I. Logo de início, na praia da ilha à beira-mar, o sol ergue-se e restitui as suas cores à paisagem como ao rosto de Dante. Estendi para ele as faces ainda molhadas de lágrimas e nelas ele fez reaparecer a sua cor que o Inferno escurecera (I, 127-129). 420
E Virgilio explica-lhe: Não te admires se te deslumbrarem os servidores do céu... é um mensageiro que vem convidar o homem a elevar-se mais alto (XV, 28-30).
O Paraíso terrestre já está finalmente banhado de luz celestial As trevas fugiam por lodos os lados (XXVII,
112).
Tem lugar a última purificação. De uma nascente correm dois rios dos quais um..o Letes, tira ao homem a recordação do seu pecado, e o outro, o Eunué (que é uma invenção de Dante), restitui-lhe a lembrança de todo o bem que praticou (XXVIII, 127-132). Última palavra de Dante sobre o processo de penitência e de purgação em que a memória desempenha um
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papel tão importante. É a metamorfose definitiva da memória, também ela lavada do pecado. O mal está esquecido, só subsiste a memória do que há de imortal no homem, o bem. A memória, também ela, atingiu o limiar escatológico. Eis pois Dante em contacto com a verdadeira claridade:
NOTAS
Ó esplendor de viva luz eterna (Ó isplendor di viva luce ettema)
(XXXI, 139).
O poeta, que terminou a viagem ao Purgatório, bebe a água do Eunué e, qual alma purgada, chega ao último verso do Purgatório puro e pronto a subir até às estrelas (puro e disposto a salire alie stelle).
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1 Utilizei a edição bilingue publicada quando do sétimo centenário do nascimento do poeta, em 1965, pelos Libraires associés, Paris, 1965, com o texto italiano a partir da última edição da Società Dantesca Italiana, a tradução de L. Espinasse-Mongenet revista por Louise Cohen e Claude Ambroise e uma publicação de Paul Renucci. Também me foram úteis a tradução e os comentários originais, ricos e densos de André Pézard na Biblioteca da Pleiade saídos também em 1965. Um quadro oportuno da estrutura do Purgatorio encontra-se na Edizione dei Centenario de Tutte le Opere di Dante, ao cuidado de Fredi Chiapelli, Milão U. Marsia, 1965. O breve artigo «Purgatorio» do Dante Dictionary é útil pela caracterização do Purgatório dantesco tanto do ponto de vista topográfico como ideológico. Encontram-se indicações interessantes sobre a localização e a descrição do Purgatório no antigo estudo de Edoardo COLI, Ii paradiso terrestre dantesco, Florença, 1897. Entre os comentários, o de G. A. Scartazzini é retomado e revisto por Giuseppe Vandelli na edição critica da Società Dantesca Italiana, 2' ed., Milão, 1960. André Pézard distingue o de G. TROCCOLl, Il Purgatorio dantesco. Utilizei também o de Charles S. SINGLETON, Dante Alighieri, The Divine Comedy, Purgatorio, 2: Commentary, Princeton, 1973, e as notas da edição de Natalino Sapegno, Florença, 1956. De um ponto de vista importante na minha óptica, o da teologia, pode sempre ler-se o estudo clássico do padre MANDONNET, Dante, le théologien, Paris, 1935 que se combina com Dante et /a philosophie de Étienne GILSON, Paris, 1939. Sobre os precursores de Dante nas visões e descrições do além, citarei, além de H. R. PATCH, The Other World According To Descriptions In Medieval Literature, 1950; A. D'ANCONA, I precursori di Dante, Florença, 1874; M. DODS; Forerunners of Dante, Edimburgo, 1903; DIELS, «Himmels und Hõllenfahrten von Homer bis Dante» in Neues Jahrbuch, XLIX, 1922, p. 239 e ss.; A. RUEGG, Die Jenseitvorstellungen vor Dante, Einsiedeln e Colónia, 1945, e sobretudo Giosuê MUSCA, «Dante e Beda» in Studi Storiei in onore di Ottorino Bertolini, Il, 1972, pp. 497-524. Devo à amizade de Girolamo Arnaldi ter podido consultar em excelentes condições os comentários mais antigos à Divina Commedia publicados por G. Biagi, G. L. Passerini, E. Rostagno, La Divina Commedia nella figurazione artistica e nel secolare commento, Turim, 1931. Os comentários mais antigos (os do século XIV, os únicos a que me cingi) são sobretudo filológicos. 2 «Onde si /egge (o De Senectude de Cícero) di Catone che non a sé, ma a Ia patria e a tutto 10 mondo nato esser credea» (Convivio, IV, XXVII, 3).
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r m.
3 I, 108; 11, 60, 122; 46; IV, 38, 39; VI, 48; VII, 4, 65; VIII, 57; X, 18; XII, 24, 73; XIV, I;XV, 8; XIX, 117; XX, 114, 128; XXI, 35, 71; XXII, 123; XXV, 105; XXVII, 74; XXVIII, 101; XXX, 74 e ainda no Paraíso XV, 93; XVII, 113, 137. 4 Cf. Dante Dictionary, p. 534. 5 Ed el/i a me: «L'amor dei bene scemo dei suo dever quiritta si ristora, qui si ribatte il mal tardato remo.» Belos versos, difíceis de traduzir ... 6 Cf. L. K. LIlTLE, «Pride goes before Avarice. Social Change and the Vices in Latin Chrístendom» in American Historical Review, LXXVI, 1971. 7 É a edição com a tradução de L. Espinasse-Mongenet indicada na nota I, p. 449. A citação encontra-se na página 604. 8 Della mondizia sol voler fa prova che, tutto libero a mutar convento, l'alma sorprende, e di voler le giova. 9 ot ombre vane.fuor che nell'aspetto! Tre volte dietro a lei le mani avvinsi, tante mi tomai con esse ai petto (11, 79-81). 10 Ver um sugestivo estudo de Luigi BLASUCCI, «La dimensione dei tempo neI Purgatorio» in rApprodo Letterario, 1967, pp. 40-57. Sobre a tradução em termos psicológicos destes dados teológicos, inteligentes observações de A. MOMIGLIANO no seu comentário ao Purgatorio, Florença, 1946, designadamente sobre a «nostalgia insieme terreno e celeste, che unisce in una medesima malinconia le anime che aspirano alia Ratria celeste e il pellegrino che ha in cuore Ia lontana patria terreno». J Ver M. MARTI, «Simbologie luministiche neI Purgatorio» in Realismo dantesco e altri studi, Milão-Nápoles, 1961.
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A RAZÃo DO PURGATÓRIO
A história do Purgatório na sociedade cristã não termina no começo do século XIV. A sua inserção em profundidade na devoção cristã e depois católica, os seus momentos mais fervorosos, os mais «gloriosos», datam dos séculos XV a XIX. Às formas tradicionais de publicidade vem acrescentar-se a imagem 1• O fresco, a miniatura, a gravura e os conjuntos artísticos das capelas e dos altares especializados dão enfun ao imaginário do Purgatório a possibilidade de se concretizar. Desprovidas da força do delírio literário que afligem certas visões do além, a arquitectura, a escultura e a pintura garantem ao Purgatório a sedução da visão directa, rematam o triunfo da sua localização, da sua materialidade, do seu conteúdo''. Os desenvolvimentos não são menos importantes em matéria de crenças e de práticas. O Purgatório fizera uma aparição limitada nos testamentos. Mais ou menos a partir do século XIV, mais ou menos cedo, mais ou menos intensa segundo as regiões, é uma penetração que por vezes confina com a invasão''. Surgem instituições para suprir a carência de testamentos, ou reforçá-los no apelo à generosidade dos fiéis. Nas regiões meridionais de França, por exemplo, onde subsistem reticências, se não resistências, ao julgamento particular e ao terceiro lugar, vulgariza-se «a taça das almas do Purgatório» que se faz circular na igreja no momento da missa para recolher «o dinheiro dos fiéiS) e que vai alimentar «a obra do Purgatório» bem estudada por MicheUe Bastard-Foumíer. São os trocos da comunhão dos santos. Estas representações figuradas, estas práticas, revelam transformações, um alargamento das crenças ligadas ao Purgatório. A devoção que se exprime pelos altares e pelos ex-votos às almas do Purgatório mostra que daí em diante não só essas almas adquiriram méritos mas podem também dirigi-los aos vivos, restituir-lhes, devolver-lhes a sua assistência. Eis assegurada a reversibilidade dos méritos de que se duvidava nos séculos XII e XIII e que era então quase sempre negada. O sistema da solidariedade entre os vivos e os mor-
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tos através do Purgatório tornou-se uma cadeia circular sem fim, uma corrente de reciprocidade perfeita. O anel fechou-se. Por outro lado, a criaçã? de uma «taça das almas do Purgatório» prova que os sufrágios, para Ia da comemoração do 2 de Novembro, se aplicam a todos os mortos que se supõe estarem no Purgatório, mesmo que o fiel pense que a sua oferenda servirá sobretudo para encurtar as provações dos «seus» mortos. A comunhão dos santos manifesta-se em plenitude. A sua aplicação está generalizada. No século XIII o Purgatório apenas tinha dado lugar a formas limitadas de espiritualidade - se exceptuarmos o grande poema dantesco. Santa Lutgarda era uma ardente auxiliar das almas do Purgatório mas parece não ter unido explicitamente essa devoção à corrente mais profunda de espiritualidade de que foi uma das pioneiras, designadamente na piedade ao Coração do Cristo. Oriunda do meio das beguinas, essa devoção que se desenvolve com Hadewijch e Mechtilde de Magdeburg, depois com as monjas beniditinas Mechtilde e Gertrude de Hackeborn, no fim do século XIII, inspira sobretudo o meio das monjas de Helfta, na Saxónia. Com Gertrudes, a Grande, falecida em BOiou 1302, o Purgatório entra na esfera da mística mais elevada e atingirá o topo (ou as profundezas) do misticismo com Santa Catarina de Génova (1147-1510), autora de um
do conceito de morte que era o horizonte principal da sua busca. No entanto e como já demonstrei, no século XIII o Purgatório modificou a atitude dos cristãos perante os últimos momentos da vida. O Purgatório dramatizou essa última parte da existência terrena, carregando-a de intensidade misturada de temor e de esperança. O essencial, a escolha do Inferno ou do Paraíso, visto que o Purgatório era a antecâmara certa do Paraíso, podia ainda jogar-se no minuto derradeiro. Os últimos instantes eram também os da última oportunidade. Creio no entanto que falta expliçar a relação entre o Purgatório e a morte no período que vai do século XIV ao século XX.
No campo dogmático e teológico, é também entre meados do século e o começo do século XVII que o Purgatório se entroniza na doutrina da Igreja católica, ainda contra os gregos no concílio de Florença (1439), contra os protestantes no concílio de Trento (1562). Trento, questão de teólogos e de governantes mais do que de pastores, embora inserindo irrevogavelmente o Purgatório no dogma, mantém à distância, como no século XIII, o imaginário do terceiro lugar, o qual ocupa também um lugar modesto nas duas grandes sínteses em que o Purgatório se radica na teologia da catequese pós-concílio de Trento, a dos jesuítas Bellarmin e Suarez. Mas o Purgatório vive ainda mais intensamente nas grandes expressões ~atólicas entre os séculos XV e XIX. Há um Purgatório do gótico ~ameJante e da devotio moderna, um Purgatório da Contra-Reforma, esta claro, mas sobretudo talvez um Purgatório clássico, um Purgatório barroco, e finalmente um Purgatório romântico e um Purgatório ao gosto da congregação de Saint-Sulpice, Os historiadores mais importantes d~s atitudes perante a morte entre os séculos XVI e XX, Philippe Ariês, Pierre Chaunu, François Lebrun, Alberto Tenenti e Michel Vovelle abriram nas suas grandes obras um lugar para o Purgatório, não tão definido como seria desejável", É verdade que o Purgatório, esse grande desconhecido da história, é uma peça do além, mesmo que se trate de um além perecível e não, ao menos aparentemente, de uma componente essencial
No momento de terminar este livro onde tentei mostrar e explicar a formação do sistema do além cristão entre os séculos IV e XIV, sistema ideológico e imaginário, sou tomado de inquietação. O meu propósito foi sugerir que neste sistema o lugar-chave foi o elemento intermédio, efêmero, frágil e no entanto essencial, o Purgatório, que ganhou o seu lugar entre o Paraíso e o Inferno. Mas será ele a verdade do sistema? Não poderemos perguntar-nos se o elemento motor, organizador, não foi esse Paraíso que tão pouco suscitou o interesse dos historiadores e que, se consulto as minhas notas, não me parece tão insípido e monótono como se diz? Essa planície banhada por grandes rios, transfigurada pela luz, rumorosa de cânticos de uma harmonia perfeita, impregnada de perfumes estranhos, repleta da inefável presença divina que se revela na quinta essência e na infinita amplidão do empíreo, continua a ser um mundo por descobrir". Além do Purgatório, esperança e certeza de salvação, exigência de justiça mais graduada e mais precisa, de preparação mais atenta à pureza perfeita requerida na última etapa do «regresso», o que anima o sistema, não será a promessa do Cristo crucificado ao bom ladrão: «Hoje tu estarás comigo no Paraíso» (Lucas, XXIII, 43)? O Purgatório estaria tão inclinado para o Paraíso, a despeito das imagens infernais, que o motor da crença cristã católica seria esse desejo do céu que atrairia para ele as almas do Purgatório numa sequência ininterrupta de regressos a Deus pontuados pelos trovões jubilosos da Divina Comédia. Nesta perspectiva, eu não teria decifrado suficientemente, por trás do quase-silêncio dos textos, o problema da visão beatífica cuja privação, mais do que ser o grau zero do Purgatório, seria a última estância antes da eternidade. Não seria do lado da «duração extra» como lhe chama Pierre Chaunu, ou do «suplemento de biografia» como se lhe refere Philippe Ariês, que se deveria procurar, depois da vida terrena, a chave espaço-tempo do Purgatório, mas do lado do vazio necessário antes da visão beatífica, antes da eternidade. Teria João XXII razão? O Purgatório seria mais uma pré-eternidade do que uma pós-existência?
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Tratado do Purgatório. XV
Mas a minha inquietação não vem daqui. No desenrolar de toda esta história, não teria sido a preocupação principal da Igreja manter o inferno eterno? O fogo purgatório temporário não teria sido a exaltação do fogo inextinguível? O segundo reino não terá sido o degrau protector do reino infernal? O Purgatório não teria sido o preço pago pela Igreja para conservar a arma absoluta, a condenação eterna? Seria a luz sulfurosa de um período do catolicismo, o que corresponde ao cristianismo de medo de Jean Delumeau. Compreender-se-ia talvez melhor a atitude actual da maioria dos católicos e da Igreja para com o Purgatório. Atitude que visa o conjunto do sistema do além, mas mais particularmente o Purgatório. Para a Igreja trata-se, mais uma vez na sua história, de realizar um aggiornamento que cada um de nós pode, conforme a sua crença, considerar uma lenta mas perseverante caminhada para a realização de um cristianismo «ideal», simultaneamente regresso às fontes e consecução, ou reduzir a uma simples recuperação da marcha caótica da história por uma instituição atrasada. Seja como for, o imaginário do além faz mais uma vez as despesas de uma atitude que, sob o signo da depuração, rejeita as formas «primitivas» das crenças. Para bem dos espíritos informados do passado, respeitadores dos outros, ansiosos de equilíbrio, dizem eles, como Y. M. Congar: «Mais uma vez será necessário purificar as nossas representações e desembaraçar-nos, se não das imagens, pois não podemos pensar sem elas e há-as válidas e mesmo belas, pelo menos de certas imaginações",» Quem não aderiria ao desejo de afastar a visão de torturas, propriamente infernais ou pretensamente purgatórias, cuja inspiração em práticas terrenas que estão longe de ter desaparecido, é por de mais evidente? Do programa traçado pelo grande teólogo dominicano deve reter-se a vontade de unir duas tendências que a história opôs excessivamente: adaptar as crenças à evolução das sociedades e das mentalidades sem mutilar o homem de uma parte fundamental da sua lembraça e do seu ser: o imaginário. A razão alimenta-se de imagens, é a história profunda que no-lo revela. Temo, com efeito, que, nesse desejo de depurar, o Purgatório fique a perder, pois, como julgo ter demonstrado, o seu aparecimento, o seu desenvolvimento e a sua difusão estão de tal modo ligados ao imaginário que o padre Congar teve de encontrar tonalidades quase origenistas para o salvar nas concepções actuais da hierarquia católica. Do lado dos fiéis parece-me que o desinteresse pelo Purgatório se explica de outra maneira e talvez mesmo por razões inversas. Do lado do clero há a «desinfernização» e a desmaterialização do Purgatório. Do lado dos fiéis e dos homens sensíveis à evolução das crenças religiosas há um crescendo de desapego em relação ao tempo intermédio do além. De novo a nossa época, sobretudo nas sociedades ditas desenvolvi-
das, concentra as suas interrogações, as suas esperanças e as suas angústias em dois pólos. Primeiro cá em baixo no mundo e, se abstrairmos do número ínfimo de verdadeiros «desinteressados», o olhar dirige-se para o horizonte da morte, onde os velhos modelos do acto de morrer estalam por todos os lados. Como morrer? Para os católicos e para os homens de todas as fés e para os que, pura e simplesmente, devem pensar na sua morte, a opção parece espartilhar-se entre paraísos e infernos, projecção dos sonhos cá de baixo e de um temor que encontrou uma nova realidade imaginária. O apocalipse nuclear hoje: um apocalipse cuja aterradora experiência se fez cá em baixo 7• Porém haverá sempre, espero, um lugar nos sonhos do homem para a nuance, para a justiça/justeza, para a medida em todos os sentidos do termo, para a razão (ó Purgatório racional!) e para a esperança. Faço votos por que não possamos dizer em breve que, na verdade, o Purgatório teve o seu tempo.
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NOTAS
Ver o Apêndice III. Sobre as diversas formas do «êxito» do Purgatório ver Michelle BASTARD-FOURNIÉ, «Le Purgatoire dans Ia région toulousaine au XIve siêcle» in A.1I1ItÚeS du Midi, 1980, pp. 5-7. No que respeita à iconografia do purgatório, campo vasto ainda largamente inexplorado, deve mencionar-se o estudo pioneiro de Gaby e Michel VOVELLE, Vision de Ia mort et de l'au-delâ en Provence d'aprês les autels des âmes • purgatoire (xJt"-xr siêcles), Paris, 1970. Não consultei a tese inédita, que eu saiba, de Madame A.-M. VAURILLON-CERVONI, L'iconographie du Purgatoire au Moylm Âge dans le Sud-Ouest, le centre de Ia France et en Espagne, Toulouse, 1978, que parece dizer respeito ao fim da Idade Média e ao século XVI. 3 Remeto às observações de M. Bastard-Fourniê, em especial a propósito do belo trabalho de Jacques ChitToleau a respeito de Avignon e a Comtat Venaissin, p. 17, n. 65, e mais genericamente p. 7. 4 Ph. ARIÉS, L'Homme devant Ia mort, Paris, 1977, P. CHAUNU, La Mort à Paris - xvr, xv/r, xVIIr siêcles, Paris, 1978. F. LEBRUN, Les Hommes e/Ia mort en Anjou, Paris, 1971. M. VOVELLE, Piété baroque et décbrisüantisation en Provence, Paris, 1973, Id., Mourir autrefois. Altitudes collectives devant Ia mort aux xv/r et xV/Ir siêcles, Paris, 1974, Id., «Les attitudes devant Ia mort: problêmes de mêthodes, approches et lectures ditTérentes» in Annales E.s.C., 1976. Num livro que recebi quando escrevia esta conclusão, Pierre Chaunu caracterizou o Purgatório no século XV de maneira notável que está de acordo com os resultados da minha pesquisa, Eglise, culture et société. Essais sur Réforme et contre-Réforme 1517-1620, Paris, 1981, designadamente pp. 378-380 a propósito do concílio de Trento. Nele retoma uma afirmação do seu livro de 1978 (p. 131) vinda em parte de um meu esboço de 1975: J. Le GOFF,«La naissance du Purgatoire (XII" et XIII" siêcles)» in La Mort au Moyen Âge (colóquio de Estrasburgo 1975, prefácio de P. CHAUNU), Paris, 1977, p. 710. «A explosão do Purgatório, escreve ele (p. 64), a explosão e a substantivacào da pena purgatória pode ser datada com extrema precisão. Acontece entre 1170 e 1180, tanto quanto as nossas séries heterogéneas permitem avaliar. Explode como uma bomba atómica no fim da instalação de uma massa crítica de transformação,» Viu-se que sou mais subtil. S Ver R. R. GRIMM, Paradisus Coelestis, Paradisus Terrestris. Zur Auslegungsgeschichte des Paradises im Abendland bis um 1200, Munique, 1977. 6 Y. CONGAR, Vaste monde, ma paroisse. Vérité et dimensions du salut, Paris, 1966, capo VII: «Que savons-nous du Purgatoire?», p. 76. Ver também Y. CONGAR, «Le Purgatoire» in Le mystére de Ia mort et sa 'célébratíon, Lex orandi, 12, Paris, 1956, pp. 279-336. 7 Relembro o sentido etimológico de apocalipse: descoberta, revelação.
APÊNDICE I , BIBLIOGRAFIA DO PURGATORIO
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A actual bibliografia do Purgatório é considerável. M.uitas obras d~dicadas à história do Purgatório são mal informadas e anlII~a~asde espirito polêmico entre os católicos ~ os pro!estantes e al?o!ogetlco entr~ ~s católicos. Tem-se muitas vezes a impressao de que a V1~aodo Purgatório dos eruditos católicos não se renovou desde Bellarmin e Suarez ate a primeira metade do século xx. O grande artigo de A. MICHEL, «Puratório» no Dicionário de Teologia Católica de E. VA~AN!, E. M~N~ENOT e E. AMANN, t. 13, 193~, col..l ~63-1326, ~U1tOnco, contlOu~ a ser fundamental. O seu espírito e tradICiOnal e antlprotestante. A me lhor síntese pareceu-me ser a de A. PIOLANTI, «11 ~ogma del purga~rio» in Euntes docete, 6, 1953, pp. 287-311. O artigo, «Fegfeuer» o Lexicon jür Theologie und Kirche, IV, 1960, co~. 49-?5 ~ breve. A obra AK Fegfeuer Die chrtstltchen Vorstellundo protestan t e E . FLEISCHH ,. d . gen vom Geschick der Verstorbenen geschichtlich dargestel!t,_1969, ,~tlna~ da a informar os seus correligionários so~re a poslça~ catohca, e simpática mas não nos chegou directamente, informa defiCientemente e não está isenta de erros. . LAN A obra mais sugestiva é a do etnólogo e histonado~ Marcus .DAU, Hõlle und Fegfeuer in Volksglaube, D~chtung un! Klr~henlehr~, Heid lb 1909 É lamentável que as suas informações sejam antlga~ e p:rc~:~' e sob;etudo que sofra do desprezo do etnólogo pela crono~ogta. Sobre a exegese medieval de um texto essencial para o desen~olvlme~to do Purgatório, ver J. GNILKA? '". I Kor. 3, 10 ein Schrij"tzeugms jür das Fegfeuer? Eine exegetisch-hlstorlsche Untersuchung, Dusseldorf, 195~ antiga história do Purgatório foi renovada pelos traba~os excele~Évolution de Ia doctrine du Purgatoire chez saint tes d e J osep h NTEDIKA , . ,. de l' -d I' Au ustin. Estudos agostiniano~, Paris, 1966 e L Evocatzo~ . au .e a da:s Ia priére pour les morts. Etudes de patristique et de liturgie latine, Lovaina, Paris, 1971.
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Em J. GOUBERT e L. CRISTIANI, Les plus beaux textes sur l'au-delà, encontra-se uma antologia de textos de valor e nível diferentes, mas com alguns significativos sobre o Purgatório.
T .•
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«PURGATORIUM»:
APÊNDICE II HISTÓRIA DUMA PALAVRA
o facto essencial é o aparecimento, na segunda metade do século XII, ao lado do adjectivo purgatorius, a, um, do substantivo purgatorium. Curiosamente, este acontecimento linguístico que me parece um sinal da evolução capital das crenças respeitantes ao além escapou aos historiadores do Purgatório ou pouco lhes chamou a atenção. Até Joseph Ntedika se engana ao atribuir a Hildebert de Lavardin ou Hildebert du Mans (falecido em 1133) o privilégio de ter sido o primeiro a empregar a palavra purgatorium (Evolution de ia doctrine du Purga to ire chez saint Augustin, p. 11, n. 17). Encontra-se o mesmo erro no artigo «Fegfeuer» do Lexicon für Theologie und Kirche, vol. IV, col. 51. A. PIOLANTI contenta-se com dizer: «Neste século (o XII) aparecem os primeiros esboços do tratado De purgatorio (o adjectivo transformara-se em substantivo)» (<<11dogma dei Purgatorio» in Euntes Docete, 6, 1953, p. 300); E. FLEISCHHAK pretende, sem dar referências (pudera!. ..), que «a palavra purgatorium foi usada desde a época carolíngia» (Fegfeuer ... 1969, p.64). Para poder afirmar como faço que o termo aparece muito provavelmente entre 1170 e 1180 é necessário corrigir algumas falsas atribuições de textos ou emendar a edição de certos textos anteriores a 1170 (usado sobretudo nas expressões ignis purgatorius, poena( e) purgatoria( e), loca purgatoria, e a forma in (locis) purgatoriis) onde purgatorium como substantivo só aparece porque a edição foi feita a partir de manuscritos posteriores a 1170, onde o copista substituiu naturalmente, por exemplo, ignem purgatorium por purgatorium simplesmente, dado o emprego habitual do substantivo na sua época. Pedro Damião (falecido em 1072) no seu sermão LIX para a festa de S. Nicolau, sem empregar o termo purgatorium, teria distinguido o lugar purgatório entre as cinco regiões que podem acolher o homem; 1) regia dissimilitudinis (cá em baixo); 2) paradisus claustralis (o paraíso cá em baixo, quer dizer o claustro); 3) regia expiationis, o lugar da expiação 432
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- o purgatório; 4) regia gehennalis, o inferno; 5) paradisus supercoelestis, o paraíso celestal. Para distinguir a região da expiação, usa a expressão loca purgatoria (P L, 144, col. 838). Mas reconheceu-se que este texto não é de Pedro Damião, mas do falsário notório, Nicolau de Clairvaux (falecido depois de 1176), que foi secretário de S. Bemardo. Por exemplo, F. DRESSLER, Petrus Damiani. Leben und Werk (Anselmiana XXXIV), Roma, 1954. Apêndice 3, pp. 234-235 fornece, na lista dos 19 sermões que muito provavelmente não devem ser atribuídos a Pedro Damião, o sermão 59, e acrescenta que eles são «provavelmente» de Nicolau de Clairvaux, «einem gerissenen Fâlscher». Cf. J. RYAN, «Saint Peter Damiani and the sermons of Nichoias de Clairvaux: a clarification» in Medieval Studies, 9, 1947, 151-161. Aliás, a Patrologie latine da Migne publicou duas vezes o mesmo sermão (59), uma primeira vez sob o nome de Pedra Damião (PL, 144, col. 835-839) e uma segunda vez sob o de Nicolau de Clairvaux (PL, 184, cal. 1055-1060). Nicolau de Clairvaux é talvez também o autor do sermão 42 «De quinque negotiationibus et quinque regionibus» atribuído a S. Bemardo, muito próximo do de Pedro Damião mas onde o sistema dos três lugares (dentro dos cinco) e a palavra purgatório (purgatorium) surgem com uma nitidez que me parece impossível antes de 1153, data da morte de S. Bemardo: Tria sunt loca, quae mortuorum animae pro diversis meritiis sortiuntuer: infernus, purgatorium, caelum (S. BERNARDO, Opera omnia, ed. J. Leclercq-H. M. Rochais, 6, I, p. 259). Dom Jean Leclercq e H. M. Rochais tiveram a amabilidade de me reafirmar por escrito e de viva voz o que haviam escrito em diferentes artigos: J. LECLERCQ, «Les collections de sermons de Nicolas de Clairvaux» in Revue bénédictine, 1956; H. M. ROCHAIS, «Enquête sur les sermons divers et les sentences de saint Bernard» in Analecta soe, 1962, a saber, que nada permitia decidir pela não-atribuição a S. Bemardo do sermão 42, se bem que nada permita igualmente atribuir-lhe a paternidade com segurança: «Mantivemos o De diversis 42 como de S. Bemardo se trata de um texto de que existem várias redacções devidas não ao próprio S. Bemardo, mas a Nicolau de Clairvaux e outros, o que explicaria a introdução de elementos mais tardios» (J. Leclercq, carta de 5 de Outubro de 1979). Madame Monique-Cêcile Garand, que teve a gentileza de examinar por mim os manuscritos latinos 2571 da Biblioteca Nacional de Paris e 169 de Cambrai - talvez os mais antigos -, sugere prudentemente, sob critérios paleográficos, que o primeiro deve ser do terceiro quarto do século XII (mas talvez de antes da canonização de Bemardo em 1174, sendo que a palavra sanctus não figura no título e terá sido acrescentada no ex-libris) e o segundo da segunda metade do século. Poderá pois pensar-se numa data próxima de 1170. Estou convencido de que o primeiro sermão não é de S. Bemardo e data pelo
menos de uma vintena de anos depois da sua morte. Cf. igualmente, sobre Nicolau de Clairvaux, G. CONST ABLE, The /etters of Peter the Venerable /I, Nicho/as of Montieramey and Peter the Venerable, pp. 316-330, Cambridge (Mass.), 1967. Antes de S. Bemardo a palavra purgatorium teria sido encontrada num texto de Hildebert de Lavardin, bispo de Mans e arcebispo de Tours (falecido em 1133), e o excelente Ntedika, como já se viu, aceitou essa atribuição errada. O sermão 85 Jerusalem quae aedificatur publicado com os sermões de Hildebert por Beaugendre em 1708 e reproduzido pela Migne, Patrologie latine, 171, col. 741 (hi, qui in purgatório po/iuntur) foi atribuído a Pedro, o Devorador, por HAURÉAU, «Notice sur les sermons attribués à Hildebert de Lavardin» in Notices et extraits des manuscritu ... , XXXII, 2, 1888, p. 143. Cf. A. WILMART, «Les sermons d'Hildebert» in Revue Bénédictine, 47, 1935, pp. 12-51. A atribuição a Pedro, o Devorador, foi confirmada por M. M. LEBRETON, «Recherches sur les manuscrits contenant des sermons de Pierre le Mangeur» in Bulletin d'Informations de L'I.R.H.T., 12 (953), pp. 25-44. M. François Dolbeau teve a amabilidade de me fazer notar que nos manuscritos mais antigos destes sermões, que por sua vez confirma como sendo de Pedra, o Devorador, encontra-se in purgatorio (ms 312 (303) e 247 (238) de Angers, do fim do século XII) mas que o fragmento de frase inteira onde se encontra in purgatorio falta num manuscrito mais antigo, o 227 (218) da Biblioteca Municipal de Valenciennes, de meados do século XII. Como me parece que o substantivo purgatorium se encontra realmente numa carta enviada em 1176 pelo beneditíno inglês Nicolas de Saint-Albans ao cluniacense Pierre de Celle (em 1180-1182, segundo informação amavelmente fomecida por A.-M. Bautier); Porro facto levi per purgatorium transitu intravit in gaudium Domini sui (PL, 202, col. 624), e que Pedra, o Devorador, falecido em 1179, se é que empregou no sermão Jerusalem quae aedificatur o substantivo purgatorium não o emprega nunca no De sacramentis composto entre 1165 e 1170, julgo que os empregos mais antigos de purgatorium como substantivo seriam de cerca de 1170 no cisterciense Nicolau de Clairvaux, no beneditíno Nicolau de Saint-Albans e no mestre secular da Escola de Notre-Dame de Paris, Pedro, o Devorador. Resta um problema que não pude esclarecer de maneira decisiva. Encontra-se na edição de um tratado anónimo, De vera et falsa poenitentia, publicada pela Migne e atribuída pela Idade Média a Santo Agostinho, mas que data, na verdade, do fim do século XI ou mais provavelmente da primeira metade do século XII, o termo purgatorium usado como substantivo: ita quod nec purgatorium sentiunt qui in fine baptizantur (PL, 40, 1127). O facto de nalgumas linhas mais adiante o texto falar de ignis
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purgatíonís nada prova mas deixa isolada a palavra purgatorium sobre a qual estou convencido de que só ficou nos manuscritos a partir do fim do século XII, quando o texto primitivo devia ser ignem purgatorium. Não restam dúvidas, na verdade, de que o De vera et falsa poenitentia data de antes do meio do século XII, pois foi citado não só por Pedro Lombardo falecido em 1160 (PL, 192, 883) mas também pelo Decreto de Graciano, escrito cerca de 1140 (PL, 187, 1559, 1561, 1637). Infelizmente, apesar dos meus esforços, ajudado por M. François Dolbeau, M. Agostino Paravicini Bagliani e Mme Marie-Claire Gasnault, não pude consultar o manuscrito do De vera et falsa poenitentia anterior ao fim do século XII, e a minha convicção continua a ser uma hipótese. Só posso desejar uma edição científica deste texto fundamental para a história da penitência, tema essencial da teologia e da prática religiosa no século XII. Cf. A. TEETAERT, La Confession aux laiques dans l'Église latine depuis le VIII" jusqu'au XIV siêcle, Paris, 1926, pp. 50-56, e C. FANTINI, «Il tratatto ps. agostiniano De vera et falsa poenitentia» in Ricercche di storia religiosa, 1954, pp. 200-209. Sobre a maneira como a expressão ignis purgatorius se transformou a partir do fim do século XII em purgatorium, quando o substantivo do texto mais recente e o adjectivo do texto primitivo estavam no mesmo caso gramatical, eis um exemplo significativo. Alexandre de Hales na sua Glosa das Máximas de Pedro Lombardo (entre 1223 e 1229), cita o De potestate legandi et solvendi de Richard de Saint- Victor, falecido em 1173, da seguinte maneira: «per incendium purgatorii scoria peccati excoquitur» (Glossa in IV libros Sententiarum Petri Lombardi, liv. IV, dest. XX, ed. Quaracchi, 1. IV, p. 354). Ora o texto original de Richard de Saint- Victor é: «per incendium purgatorii ignis scoria peccatí excoquitur» (PL, 196, 1177). No fim do século XII e no começo do século XIII purgatoríum e ignis purgatoríus coexistem quase como sinónimos e por vezes nos mesmos autores. Pierre de Celle, a quem Nicolas de Saint-Albans escreve cerca de'Tl Sü falando de purgatoríum (a propósito de S. Bernardo), emprega no seu tratado De disciplina claustrali, feito em 1179, apenas a expressão ignis purgatorius (PL, 202, col. 1133). Como os manuscritos mais antigos de várias obras do século XII não foram conservados, será dificil detectar com segurança os empregos mais antigos de purgatorium. Madame Anne-Marie Bautier teve a gentileza de me assinalar uma das mais antigas definições do Purgatório que se encontra numa vida de S. Victor, mártir de Mauzon, recentemente editada por F. DOLBEAU (Revue historique ardennaise, 1. IX, p. 61): Purgatorium ergo, locum conflationis, ergastulum purgationis, iste sanctus repperít in gremio ecclesiae in qua conflari injuriis et passionibus meruit, quibus ad remunerationem victoriae laureatus pervenit» Verifica-se que certos santos (e foi o que se pen-
sou de S. Bernardo) não vão directamente para o Paraíso e passam pelo Purgatório. Se se consultar os dicionários e glossários do latim medieval, vê-se que o exemplo mais antigo de purgatorium citado por DU CANGE é a carta de Inocêncio IV a Eudes de Châteauroux de 1254. J. F. NIERMEYER (Mediae Latinitatis Lexícon Minus, Leyde, 1976) diz: «subst. neutro purgatorium, o Purgatório, the Purgatory, S. XIII». A. BLAISE no seu Dictionnaire latin-francais des auteurs du Moyen Âge (Corpus christianorum Continuatio Maedievalis, Turnhout, 1975, pp. 754-755) diz que a palavra aparece no século XII enquanto anteriormente empregava-se uma perífrase como purgatorius ignis e cita o pseudo-Agostinho (o De vera et falsa poenitentia), a carta de Inocêncio 111do começo do século XIII e o sermão de Hildebert de Lavardin que deve ser restituído a Pedro, o Devorador, (falecido em 1179). Indica também o sentido de «local penitencial situado numa ilha e chamado "purgatório de S. Patrick" ou Patrick». J.-H. BAXTER e Ch. JOHNSON (Medieval Latin Word - List from British and Irish Sources, Oxford, 1934) dão simplesmente «purgatorium, purgatório (ecl.), c. 1200». R. E. LATHAM no seu Revised Medieval Latin Word-List from Britísh and Irish Sourees (Londres, 1965) distingue «purgatorium (teol.) e. 1150 e purgatorium Sancti Patricii (in Lough Derg) c. 1188». Julgo que a data de cerca de 1150 vem da data de 1153 atribuída, na tradição do Purgatorium Sancti Patricii, à aventura do cavaleiro Owein. A data (e provavelmente a história) é fantasista. Para as línguas vernáculas em francês a menção mais antiga de purgatório aparece provavelmente sob a forma espurgatoire no Espurgatoire Saint-Patriz de Marie de France, cerca de 1190 (ou no princípio do século XIII, entre 1208 e 1215, na hipótese de F. W. LOCKE, in Speeeulum, 1965, pp. 641-646). O meu amigo Josef Macek faz-me notar que em checo a palavra que designa o Purgatório Oõistec só aparece nos anos 1350-1380 em traduções de obras latinas. Mas este Purgatório parece mal diferenciado do limbo ou mesmo do inferno. Para Jean Hus, o Purgatório é «o terceiro inferno» (tretie pehlo in Vyhlad viery, Ms M, Biblioteca da Universidade de Brno, MK, fol. 16 a). Ainda no começo do século XV os taboritas recusam-se a acreditar no Purgatório e fazem um jogo de palavras entre oõistec e osistec (mentira) ou chamam ao Purgatório purgáé, quer dizer purgativo. Sobre a recusa do Purgatório entre os Valdenses e os Hussitas, ver Romolo CEGNA, «Le De reliquiis et de veneratione sanctorum: De purgatorío de Nicola della Rosa Nera detto da Dresda (di Cerruc), maitre à Prague de 1412 a 1415», Mediaevalia Philosophiea Polonorum, t. XXIII, Wroclaw-Varsóvia-Cracóvia-Gdansk, 1977.
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APÊNDICE III AS PRIMEIRAS IMAGENS (Ver as quatro páginas de ilustracães extra-texto)
No artigo FEGFEUER (Purgatório) do excelente Lexicon der christlichen lkonographie, ed. Kirschbaum, vol. 11, 1970, col. 17, W. BRAUNFELS escreve: «No mundo figurado do paleocristianismo como no da Idade Média, até ao fim do século XIV não se encontra qualquer representação do Purgatório». Embora me pareça certo que a iconografia do Purgatório só se expandiu no fim do século XIV, encontram-se todavia representações do Purgatório durante o século precedente e uma investigação iconográfica atenta revelaria sem dúvida uma colheita mais rica de imagens do Purgatório anteriores ao fim do século XIV. Apresento aqui três dessas representações: 1) A mais antiga, para a qual o Padre Gy chamou a minha atenção, é uma miniatura que se encontra no folheto 49 do Breviário de Paris, chamado Breviário de Filipe, o Belo (Paris, Biblioteca Nacional, manuscrito latino 1023). Este manuscrito, que data do período 1253-1296 e que, segundo critérios formais, deve ser situado perto de 1296, é muito provavelmente o breviário cuja ilustração foi encomendada por Filipe, o Belo, a um célebre pintor parisiense, mestre Honoré, em 1296, como testemunha o inventário do tesouro do Louvre desse ano. A miniatura de pequenas dimensões (3,5 em x 4 em) do folheto 49 representa provavelmente um julgamento de almas por Deus. O Cristo em majestade e dois serafins que o acompanham ocupam cerca de dois terços da altura da miniatura. Na parte inferior vêem-se quatro almas do Purgatório, duas ainda imersas no fogo e duas sendo tiradas do fogo por dois anjos que romperam o tecto de nuvens. A figura compreende quatro lugares em camadas: um céu dourado, uma zona de nuvens, uma zona sub-lunar quadriculada e o fogo (Cf. V. LEROQUAIS, Les Bréviaires manuscrits des bibliothéques publiques de France, t. lI, Paris, 1934, nO 487, pp. 465-485).
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2) Uma miniatura que oferece ao mesmo tempo diferenças e semelhanças com a imagem anterior encontra-se no Breviário parisiense chamado Breviário de Carlos V que foi talvez executado por uma mulher da família real francesa, entre 1347 e 1380, data em que se encontra na Biblioteca de Carlos V (paris, Biblioteca Nacional, manuscrito latino 1052, folheto 556 verso, cf. LEROQUAIS, t. IH, pp. 49-56). A miniatura, também de pequenas dimensões, está datada «da comemoração dos mortos», quer dizer de 2 de Novembro, enquanto a anterior ilustra o Salmo CXIV, Salmo Dilexi, onde o salmista agradece a Javé tê-lo libertado das malhas do shéol. O Cristo não figura nesta miniatura, ao contrário da anterior. Dois grandes anjos levam para o céu duas almas que já só têm os pés no fogo. Onze cabeças de almas representando uma multidão destas almas do Purgatório e as diferentes condições sociais (lá se reconhecem o papa, o bispo, etc.) estão mergulhadas no fogo. Há três lugares em camadas: um céu azul muito delgado (cerca de um décimo da altura), uma zona intermédia quadriculada ocupando mais de metade da altura, um mundo infernal feito de rochas silicosas com um grande buraco cheio de fogô. Devo o conhecimento e a reprodução desta miniatura à amabilidade de M. François Avril. 3) A terceira representação do Purgatório encontra-se num fresco da catedral velha de Salamanca que representa todo o sistema do, além no começo do século XIV segundo a concepção dos quatro lugares. A esquerda (para quem olha) o Céu e à direita o Inferno. No centro receptáculos com almas representando à esquerda o Purgatório, à direita os limbos. No receptáculo superior do Purgatório um anjo vem buscar uma alma para a conduzir ao céu. Uma inscrição data esta pintura de 1300 da era espanhola, o que daria 1262, mas M. François Avril pensa que, por razões de estilo, este fresco não pode ser anterior à primeira metade do século XIV. Devo a reprodução desta pintura à amabilidade do professor Luis Cortes. Cf. José GUDIOL RICART, Ars Hispanica, voI. 9, Pintura Gótica, Madrid, 1955, p. 47.
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APÊNDICE IV TRABALHOS RECENTES
Já depois de terminar este livro (Janeiro de 1981) tive conhecimento de diversos estudos mais ou menos ligados ao Purgatório. Paolo SANTARCANGELI em NEKYIA, La discesa dei poeti agli Inferni, Milão, 1980, evoca o Purgatório de S, Patrick e a Irlanda (p. 72) a propósito da geografia simbólica dos Infernos situados nas ilhas. Três estudos importantes foram dedicados às visões e às viagens do além. O primeiro, de Michel AUBRUN, «Caractêre et portée religieuse et sociale des Visiones en Occident du VIe au XIe siêcle», apareceu nos Cahiers de civilisation médiévales, Abril-Junho 1980, pp. 109-130. O autor analisa com argúcia a atmosfera religiosa e psicológica destas visões. Destaca com perspicácia a atitude da hierarquia eclesiástica que oscila entre a reserva e a recuperação que se inscrevem no quadro da desconfiança da Alta Idade Média em relação aos sonhos. Não põe o «problema» do Purgatório porque o seu estudo fica-se pelo começo do século XII, mas nota justamente a presença, na visão de Drythelm de Bede, de uma espécie de «Purgatório-penitência a nordeste» e de «Purgatório-espera a sudeste». Esta dicotomia do Purgatório corresponde aos dois «além» da tradição céltica, o quase-infernal e o quase-paradisíaco, e anuncia o Purgatorio de Dante com a sua antecâmara. O grande medievalista soviético Aaron J. GURJEWITSCH (cuja obra sobre Les Catégories de Ia culture médiévale, 1972, traduzida para alemão com o título Das Weltbild des mittelalter/ichen Menschen, Dresde, 1978, aparecerá brevemente em tradução francesa nesta Bibliothéque des Histoires da Gallimard) enviou ao colóquio organizado em Paris em Março de 1981 pelo Centro Nacional de Investigação Científica sobre o Temps chrétien (séculos IV a XIII), colóquio em que não pôde participar, um texto importante que será publicado nos Annales E.S.e. sobre O Indivíduo e a Imaginapão do Além (L'individu et l'imagination de l'au441
de/à). Gurjewitsch censura a Pierre Chaunu e principalmente a Philippe
Ariês terem baseado as suas ideias sobre o Purgatório em fontes que só o aceitam tardiamente (testamentos e sobretudo iconografia) enquanto outras, essenciais, fazem datar de mais cedo o seu nascimento e difusão. Estou de acordo com ele por considerar que essas outras fontes - as visões do além e os exempla que largamente utilizei neste livro - são indispensáveis e dão outra imagem da história do Purgatório. Ambos concluímos que o período crucial é o fim do século XII e o princípio do século XIII. Mas creio que Gurjewitsch, por sua vez, esqueceu de mais a teologia, a liturgia e as práticas religiosas. Penso como ele que o Purgatório e o conjunto do sistema do além revelados por essas fontes mostram um processo de individualização da morte e do além que insiste cada vez mais no julgamento individual logo após a morte. Mas o conjunto das fontes e em especial as que falam dos sufrágios fazem notar que, como demonstrei, esta promoção da salvação individual se combina com a acção das comunidades a que pertence o indivíduo, quer se trate de comunidades terrestres de parentesco carnal ou artificial, quer da comunidade sobrenatural da comunhão dos santos. Em Abril de 1981 Claude CAROZZI apresentou na XXIXe Settimana di Storia du Centro Italiano di Studi sull'Alto Medioevo de Spoleto dedicada ao tema Popoli e paesi nella cultura altomedievale uma comunicação notável- que aparecerá no volume das relações e debates da semana - intitulada: A Geografia do Além e o seu Significado Durante a Alta Idade Média. E um bosquejo da tese que prepara sobre a literatura das visões entre os séculos VI e XIII. O Purgatório estava no centro da sua exposição. Estou de acordo com ele quanto a sublinhar-se a importância da geografia no desenvolvimento das crenças do além e a distinguir-se como etapas principais: os Diálogos de Gregório, o Grande, a visão de Drythelm de Bede, a politização do além na época caroIíngia, e evolução decisiva no sentido da precisão dos grandes textos do século XII e do começo do século XIII. Mas divergimos num ponto que considero essencial. Claude Carozzi fala do Purgatório a partir do século VIII, quando não do século VI. E «realista» onde eu sou «nominalista» e acredito no significado capital das mudanças de vocabulário; e é assim levado a ver no fim do século XII o nascimento do Inferno - um além de castigos eternos bem diferenciado - e não o do Purgatório. A título de piada provocadora esta hipótese é sugestiva, mas não creio que esteja de acordo com a realidade histórica. Claude Carozzi estudou com muita erudição e inteligência um género literário. Um fenómeno histórico como o nascimento do Purgatório deve ser explicado por um conjunto de fontes analisadas no seu contexto histórico global. Mas o meu resumo simplifica muito as teses de Claude Carozzi. Será preciso esperar pela conclusão e publicação da sua tese de cuja riqueza e interesse estou certo.
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Estes estudos recentes levam-me a recordar e a afirmar que não estudei todas as visões do além que conservámos, para o período que vai do século VIII ao século XIII. Penso que apenas pus de parte textos que nada acrescentavam à minha demonstração, num sentido ou noutro, apesar do interesse que pudessem ter. A palavra purgatorium não existe, está claro, em nenhum desses textos. Vou dizer rapidamente, a título de exemplos, porque não aproveitei algumas dessas visões analisadas pelos três autores que acabo de citar, como o tinham sido - ainda que de maneira menos pormenorizada e numa perspectiva menos histórica - pelos autores antigos como Becker, Dods, MacCullogh, Seymour, Patch e mais recentemente Dinzelbacher. Alta Idade Média: século VII. A Visão de Bonellus (PL, t. 87, col. 433-5). O abade espanhol Valera, falecido no último decénio do século VII, conta a viagem ao além do monge Bonellus. Durante um êxtase é levado por um anjo para um habitáculo, uma célula esplendorosa de pedras preciosas que será a sua futura morada se continuar com as suas práticas ascéticas. Num segundo êxtase um demónio leva-o para o poço do Inferno. Nenhuma palavra alude a qualquer purgação mas alguns detalhes evocam o sistema do futuro Purgatório. O lugar está situado nas profundezas da terra, e contém um fogo aterrador no qual os demónios lançam as almas. Bonellús vê lá um diabo horrível acorrentado mas que não deve ser Satanás, pois só lhe mostram «o poço inferior do abismo onde as penas são mais intensas e mais cruéis». Um pobre que ele socorrera na terra procura vir em seu auxílio - alusão ao sistema dos sufrágios. Resiste graças ao sinal da cruz, como acontecerá no Purgatório de S. Patrick. Finalmente é conduzido à terra. Não existe, repito, qualquer ideia de purgação, apenas uma hierarquia dos lugares de punição. O sistema é dualista: lugar muito agradável sem nome, abismo (abyssus) chamado inferno (infemus). Alta Idade Média: século VII. A Visão de Barontus (678/9)) (MonuGermaniae Historica, Scriptores Rerum Merovingicarum, V, pp. 337-394). Barontus, monge do mosteiro de Longoretus (Saint-Cyran, perto de Bruges), levado por dois demônios durante uma doença grave, é socorrido pelo santo arcanjo Rafael e por S. Pedro, que lhe mostram as quatro portas do Paraíso e lhe deixam entrever o Inferno onde multidões de homens e mulheres reunidos por categorias de pecados são torturadas pelos diabos. Nada de purgação.
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Alta Idade Média: século VIII. A Visão do monge de Wenlock (cerca de 717) (Monumenta Germaniae Historica Epistolae, t. 3, pp. 252-257).
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No século XI: Otloh de Saint-Emmeran. Otloh de Saint-Emmeran e de Fulda (1010-1070) autor da primeira autobiografia da Idade Média que se chegou a comparar com as Confissões de Santo Agostinho, escreveu um Livro de Visões (PL, t. 146, col. 341-388) que se situa na tradição monástica e relata visões que ele próprio teve ou que encontrou em autores, o principal dos quais Gregório, o Grande, nos Diálogos. Entre essas visões de estranhos encontra-se a do monge de Wenlock contada por S. Bonifácio (col. 375-380) e a de Drythelm narrada por Bede (380-383). Dada a antiguidade das fontes de Otloh, não só o Purgatório não aparece nestas visões, mas mesmo as expressões ignis purgatorius, poenae purgatoriae só aparecem raramente'. Por exemplo, na visão catorze, um monge de um mosteiro da Boémia, Isaac, vê num prado muito agradável os santos Gunther, Maurício e Adalberto que lhe dizem que tiveram de «passar pelo fogo purgatório» antes de ir para aquele refrigerium. Otloh nada traz, pois, de novo, ao futuro Purgatório. Pode notar-se, por entre os apartes interessantes das visões, a sua tendência para insistir, por um lado, na espoliação dos bens monacais pelos laicos como causa dos seus castigos no além (na visão sete um proprietário rural culpado deste crime aparece aos seus dois filhos numa cavalgada aérea) e, por outro, para utilizar estas visões para fins políticos. Por exemplo, a visão do monge Isaac destina-se a mostrar a supremacia da cadeira episcopal de Ratisbona sobre a de Praga. A visão dezassete mostra a imperatriz Teofânia, mulher de Othon 11 e mãe de Othon lU, aparecendo a uma monja para lhe pedir que a tire dos tormentos que sofre no além, porque, à moda das mulheres orientais, exibiu na terra vestes luxuosas de mais. Belo exemplo da utilização do além para exprimir o fosso cultural entre o Ocidente e o Oriente!
No começo do século XIII: a visão de Thurchill. Retomo a visão de Thurchill, visão literalmente espantosa e que expliquei há alguns anos no meu seminário, mas sobre a qual não me alarguei (atrás, pp. 350-351) porque, sendo, grosso modo, contemporânea do Purgatório de S. Patrick, provavelmente ligeiramente posterior, não fez o sucesso do Purgatório, ao contrário do opúsculo de H. de Saltrey. Esta visão datada de 1206 é talvez obra do cisterciense inglês Ralph de Coggeshall. Foi incluída pelos beneditinos Roger de Wendover nas suas Flores historiarum e Mathieu Paris, falecido em 1259, nas suas Chronica Majora. Thurchill, camponês simplório da região de Londres, é levado durante o sono através do além por Santo Julião, o Hospitaleiro, e S. Domnius que, a pedido de S. Tiago, o levam a fazer a peregrinação ao além. No interior de uma grande basílica sem paredes parecida com um claustro monástico, visita «os lugares de castigo dos maus e as moradas dos justos». O vocabulário a respeito do Purgatório reúne, como é normal no início do século XIII, expressões arcaicas (loca poenalia, ignis purgatorius) e o novo substantivo purgatorium (per purgatorii poenas). A geografia do além de Thurchill é ainda um tanto confusa e o Purgatório, obedecendo à imagem arcaica dos receptacula animarum, ainda não está bem unificado. Assim, por entre outros lugares purgatórios, há um purgatório dirigido por S. Nicolau (qui huic purgatorio praeerat). A visão de Thurchill apresenta duas particularidades representativas da mentalidade do começo do século XIII: a importância dada ao acto de pesar as almas, que se reencontra na escultura gótica, e a associação ao Purgatório de uma tipologia de habitantes dos lugares das penas do além, misturando pecados capitais (o castigo de um orgulhoso) e pecados das categorias sociais (punições de um padre, de um cavaleiro, de um jurisconsulto, forma interessante do esquema trifuncional da sociedade). O que sobretudo impressionou os exegeses da visão de Thurchill foi o carácter teatral da visão que culmina no episódio espantoso em que o peregrino assiste ao espectáculo, ao jogo (ludus vestros) dos demónios com as torturas dos habitantes do Purgatório (p. 503). Henri REY -FLAUD (Para uma dramaturgia da Idade Média - Pour une Dramaturgie du Moyen Âge, Paris, 1980, pp. 82-83) fez a aproximação entre a visão de Thurchill e o movimento teatral da época e designadamente com o Jogo de S. Nicolau, inteiramente contemporâneo, do natural de Arras Jean Bode!. Parece todavia que, tal como para a iconografia, esta teatralização do Purgatório terá abortado e os mistérios terão continuado a funcionar segundo o sistema dualista do Paraíso e do Inferno. Por fim, a terceira grande visão do além, com as do Purgatório de S. Patrick e de Thurchill da passagem do século XII para o século XIII, a do monge Eynsham (Evesham), igualmente incluída no Chronicon Anglicanum de Ralph de Coggeshall (ed. J. Stevenson, 1875, pp. 71-72),
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Numa carta à abadessa Eadburge de Tenet, S. Bonifácio conta a visão dum monge da abadia inglesa de Wenlock, no Shropshire. Alguns anjos fizeram-no dar a volta ao globo terrestre e depois mostram-lhe os poços de fogo dos infernos e ele ouve os lamentos e os gritos das almas que estão no inferno inferior. Mostram-lhe também um lugar muito agradável que lhe designam como o paraíso de Deus. O único ponto interessante para a pré-história do Purgatório é a existência de um ponto sobranceiro a um rio de fogo de onde caem almas que são mergulhadas no rio ou intei~as ou só por uma parte do corpo, ou por metade do corpo, ou até aos Joelhos ou até às axilas. «São, dizem-lhe, as almas que depois de deixarem a vida mortal não estavam completamente libertas de certos pecados leves e precisavam de um castigo piedoso do Deus misericordioso, para serem dignas de Deus.» É, sem a palavra, a ideia de purgação. Mas este texto está bastante atrasado em relação à visão de Drythelm de Bede, quase contemporânea.
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nas Flores historiarum de Roger de Wendover e na Chronica Majora de Mathieu Paris (vol. 11,pp. 243-244), está demasiado próxima da Visão de Drythelm e nela o Purgatório está por de mais fragmentado para que eu a aproveite. - François Dolbeau teve a amabilidade de me indicar um artigo de Brian GROGAN: «Eschatological Teaching of the Early Irish Church» surgido em Biblical Studies, The Medieval lrish Contributions, ed. M. McNamara. Proceedings of the lrish Biblical Association, nO I, Dublin, 1976, pp. 46-58. Menciona muito o Purgatório. Sem o dizer com clareza, pois emprega o termo prematuramente, B. Grogan confirma que o Inferno e o ignis purgatorius só se distinguem um do outro no fim do século XII e que o Purgatorium Sancti Patricii é o primeiro texto relativo à Irlanda em que aparece a palavra purgatorium. - Recebi, sem poder utilizá-Io, o artigo de GiIbert DAGRON «La perception d'une difTérence: les débuts de Ia "Querelle du Purgatoire't» (Actes du xV" congrês intemational d'Etudes byzantines, IV, Histoire, Atenas, 1980, pp. 84-92).
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AGRADECIMENTOS
Esta investigação beneficiou de muitas ajudas. Em primeiro lugar, a dos membros do Grupo de Antropologia Histórica da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais: Andrée Duby, Marie-Claire Gasnault, Georgette Lagarde, Colette Ribaucourt, Jean-CIaude Schmitt e da minha colega e amiga Anne Lombard-Jourdan. Ainda de Paris, ao Instituto de Investigação e de História dos Textos do C.N.R.S., a François Dolbeau e Monique-Cécile Garand, ao Comité Du Cange, Anne-Marie Bautier, ao Léxico do Latim filosófico medieval, Annie Cazenave, e à equipa da Biblioteca de Saulchoir que me fizeram beneficiar da sua competência e da sua gentileza. Em Roma, os meus amigos Girolamo Amaldi e Raoul Manselli dispensaram-me a sua ciência e a sua atenção. Encontrei uma ajuda incomparável na Biblioteca da Escola Francesa, junto de Noêlle de La Blanchardiêre, de Pascale Koch e de todo o pessoal. Jean-Claude Maire-Vigueur, director dos estudos medievais, e Jacques Chiffoleau, membro da Escola, deram-me um apoio múltiplo. Georges Vallet, director da Escola e André Hartmann permitiram-me, ao receber-me de uma maneira perfeita na Piazza Navona, redigir em condições inigualáveis a maior parte da obra. Na Biblioteca do Vaticano, Agostino Paravicini-Bagliani antes de mais, mas também Louis Duval-Arnould e Monsenhor Joseph Sauset não me regatearam nem a sua ciência nem a sua amabilidade. Pude assim trabalhar em excelentes condições na Biblioteca da Universidade Pontifical Gregoriana. O P. Reinhard Elze, director do Instituto Histórico Alemão e o Dr. Goldbrunner, bibliotecário, adivinharam mesmo as minhas necessidades e os meus anseios. A três amigos que me trouxeram em diversas fases deste trabalho, e designadamente na critica estabelecida do manuscrito, uma ajuda inestimável: ao P. Pierre-Marie Gy, a Jean-Claude Schmitt, e muito particularmente a Jacques Revel, exprimo a minha especial gratidão. 447
• Christine Bonnefoy e, ocasionalmente, Simone Brochereau contribuíram com os seus cuidados e gentileza para a realização deste livro. A todas e a todos o meu mais profundo reconhecimento.
10 editor moderno fez por várias vezes um uso abusivo do termo purgatorium nos títulos que deu às visões.
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