ESPECIAL |
A DROGA QUE PODE CURAR A DEPENDÊNCIA. OU MATAR O PACIENTE ANO XII
SENTIDOS A história das crianças que aprenderam a enxergar
ADULTOS COM AUTISMO Os desafios de ingressar no mercado de trabalho psicologia
psicanálise
neurociência
CIÊNCIA
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O caminho para entender como nascem
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ISSN 1807-1562
00291
O legado cruel dos experimentos desnecessários em animais
Técnicas modernas investigam processos complexos que ocorrem no cérebro
pensamentos e emoções
carta da editora
Cérebros empenhados em desvendar o cérebro
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shutterstock
as últimas três décadas a neurociência vem colocando em xeque muito do que sabíamos, ou pensávamos saber, sobre o funcionamento do cérebro. Talvez uma das mais importantes constatações – base para uma série de outras, aliás – seja a de que o complexo emaranhado de circuitos cerebrais está em constante transformação. Com o desenvolvimento tecnológico, as barreiras da biologia e da medicina foram rompidas e os pesquisadores se valem de conhecimentos da física, da informática, da matemática, da engenharia computacional para ampliar conhecimentos. Até porque, quanto mais estudos são feitos, mais fica claro que ainda sabemos pouco – até mesmo sobre funções de áreas cerebrais. Uma frente importante, que deve marcar grande avanço na área neurocientífica, é o projeto Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies (BRAIN), lançado em abril de 2013, nos Estados Unidos, com o objetivo ambicioso de ampliar significativamente a compreensão do funcionamento da mente humana – e, em última instância, encontrar formas mais eficientes de tratar, prevenir e curar quadros graves como Alzheimer, esquizofrenia, autismo, epilepsia e traumatismos no cérebro, que afetam milhões de pessoas em todo o planeta. Hoje, passados quatro anos e investidos mais de US$ 1,5 bilhão no programa, um dos grandes desafios a serem vencidos ainda está relacionado ao aprimoramento de métodos e tecnologias capazes de medir e acompanhar a atividade cerebral com precisão. Por isso, a primeira fase da iniciativa, ainda em andamento, tem como foco o desenvolvimento de novos métodos e equipamentos para o monitoramento da atividade cerebral. O curioso é que essa pequena maravilha que cada um de nós carrega dentro da cabeça seja ainda tão misteriosa e exija tanta tecnologia e tanto trabalho (cerebral) para que possamos entender suas dinâmicas. Em tempos de tanta incerteza política, econômica e social parece difícil fazer prognósticos, mas é reconfortante saber que iniciativas como a BRAIN continuam em curso – e podem trazer incontáveis possibilidades de diminuir o sofrimento humano. O caminho é longo, mas é reconfortante saber que, de uma forma ou outra, estamos no caminho. Boa leitura!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
[email protected]
sumário | abril 2017
CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
capa
18
14 A ilusão de fatos alternativos por Susana Martinez-Conde e Stephen L. Macknik
A um passo de entender como o cérebro dá origem a pensamentos e emoções por Rafael Yuste e George M. Church Apesar dos avanços nos últimos anos, ainda é um grande desafio para a ciência compreender como percepções e raciocínios conscientes se formam. Para tentar desvendar esse mistério, neurocientistas recorrem a novas tecnologias
especial
Pode parecer estranho, mas nenhum de nós jamais experienciou o mundo diretamente – o que temos é uma simulação da realidade mediada pelo cérebro. Algumas “regras” com base científica podem ajudar na “busca pela verdade”
34 Quando os autistas crescem por Jennifer Richler
O mercado de trabalho costuma priorizar profissionais sociáveis, mas essa característica não é o forte de jovens com transtorno do espectro autista (TEA). Apesar disso, eles podem oferecer contribuições valiosas. Alguns projetos têm ajudado a diminuir preconceitos e ampliar oportunidades
44 Proteínas perigosas Preocupados com o aumento de casos de doenças neurodegenerativas associadas ao avanço da idade, como Parkinson e Alzheimer, pesquisadores se concentram em decifrar o mecanismo de transferência de substâncias deformadas
50 A história das crianças
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Para tratar a
dependência
química
Derivada de um arbusto africano, a ibogaína é uma substância não regulamentada no Brasil, usada em terapia para pessoas que desejam abandonar o uso compulsivo de drogas. Embora haja indícios de que seja mais eficiente do que qualquer outro tratamento, há grande risco de causar a morte do paciente
68 Quando o remédio pode matar 4
que aprenderam a enxergar por Pawan Sinha
Existem na Índia cerca de 400 mil jovens cegos; muitos deles não recebem educação e, com frequência, são vítimas de abusos. Cirurgias corretivas permitem que recuperem a visão e ajudam cientistas a compreender melhor como o cérebro processa a apreensão de imagens
62 Pelo fim de um legado cruel por Barbara J. King
Ao longo dos anos, experimentos que separam filhotes de macacos de suas mães têm causado sofrimento profundo e desnecessário. Pesquisadores conscientes do mal que a ciência pode fazer argumentam que essas práticas precisam acabar
especial digital
seções 3 CARTA DA EDITORA
A ciência do sono Noites em claro afetam capacidades cognitivas como concentração, habilidade de resolução de problemas lógicos e memória operacional. Dormir bem, no entanto, nem sempre é fácil. A insônia já é considerada um problema de saúA ciência do de pública, muitas vezes associada a quadros como obesidade, depressão, ansiedade e psicose. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que um terço da população mundial enfrente problemas para dormir. Na sociedade contemporânea não faltam estímulos para nos manter acordados. Ainda que já não persista a determinação das “oito horas obrigatórias de sono” – uma vez que a necessidade muda em diferentes fases da vida e mesmo de um indivíduo para outro – todos os achados científicos recentes indicam que dormir não faz bem apenas para o corpo, mas é indispensável para a saúde psíquica. Esse e outros temas relacionados aos processos de adormecimento são apresentados em artigos da edição especial Mente e Cérebro 58 – A ciência do sono. Veja como baixar o seu em www.mentecerebro.com.br. EDIÇÃO ESPECIAL ANO XII
psicologia • psicanálise • neurociência
58
6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
SONO
O que acontece quando adormecemos Epidemia de insônia
A relação entre comida e descanso
Dormir, lembrar, esquecer
Sonhos que nos preparam para a morte
46 CIÊNCIA PARA VIVER MELHOR Mecanismos do
Hora de dormir!
Dormir, lembrar e esquecer
sono
por John Pavlus
Dormi é um p ocesso ativo, dete m nado por ri mos b o óg cos, ndispensável para man er boas cond ções ps qu cas, ís cas e cogni ivas Nos últ mos anos, a c ência em feito p og essos mpor an es e desvendado o que ocorre no corpo e na men e quando adormecemos
Novos es udos comp ovam o pape essencial do sono na consol dação de memórias – especia mente as traumát cas Neuroc en is as, ps có ogos, ps cana is as e méd cos discutem mecanismos envolv dos nos processos de adormecer, sonha e aco dar
por Ivana Gritti
por Stephani Suther and
32/60 NEUROCIRCUITO Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
A AUTORA
A AUTORA
IVANA GR TTI é professora na faculdade de Medicina da Universidade de Mi ão tália
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STEPHANI SUTHERLAND é neurocientista e jornalista científica
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Sonhos que nos preparam para a morte
Epidemia de
insônia São mui os os fa o es que o nam o descanso no u no nsat sfatór o. Para a gumas pessoas esse s n oma chega a comp ome er a v da p ofiss onal, socia e a etiva, causando g aves consequências ís cas e men ais
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Produções onír cas que su gem no fim da v da não são apenas delír os a eatór os: têm sent do e função de nos reconfortar e forta ece emociona mente para en rentar o desconhec do
Por Ch ara Palmerini por Emma Badgery jornalista
LIVROS/LANÇAMENTOS A AUTORA CH ARA PALMERINI é doutora em filosofia e jorna is a cient fica
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colunas 12 PSICANÁLISE Liberdade ou justiça?
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
por Christian Ingo Lenz Dunker
82 LIMIAR O amor à meia-noite por Sidarta Ribeiro
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
abril 2017 • mentecérebro
5
palavra do leitor www.mentecerebro.com.br
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ENDER O PSICO
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Como funciona a rede social dos bichos
RONCO
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Uma epidemia barulhenta e perig osa
Muito linda a edição 290, de março, de Mente e Cérebro. Parabéns às editoras pela escolha dos textos, sempre A molécula muito bem escritos do e interessantes. Cientistas desvend am mistérios da dop ami O artigo de capa para compreende na r melhor os mecanis mos de vários tipos de desconstrói muitos dependência, da memória, das vari ações de humor e da doe mitos e crenças nça de Parkinson a respeito do funcionamento dos centros de prazer no cérebro. Excelente! Destaco também o artigo do psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker. Nestes nossos dias em que se discute o “papelão” do papelão na carne podre fornecida pelos grandes frigoríficos brasileiros, convém mesmo pensar sobre o uso que fazemos dos animais, os abusos e as cargas que depositamos sobre eles. Em “Amando os animais e seus limites”, Dunker abre espaço para reflexão a respeito desses seres que “podem ser parte de nossa recuperação psíquica, mas também se prestam a suportar, silenciosos, nossas formas mais patológicas de expressão de afeto e perversão”. Aline S. Cury – São Paulo, SP
TERAPIA
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Drogas psicodélica s contra ansiedade e depressão
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prazer
COLORIDA Quero compartilhar o prazer que tive ao ler a edição 290 de Mente e Cérebro. Desde a capa, toda colorida e chamativa, até os textos científicos, sempre tão curiosos e elucidativos. Sou fã e já ansiosa para a próxima publicação. Letícia Scarp – Bauru, SP SEM ESCLARECIMENTOS Achei superficial o artigo “O desafio de aprender outras línguas”, da edição 289. O uso de uma linguagem rebuscada não acoberta o fato de que pouco ou nada foi esclarecido sobre o assunto. Informações realmente irrelevantes como “no Brasil menos de 3% da população é fluente em inglês”. Ora, em um país formado de imigrantes como o Brasil, quantos falam russo, alemão, japonês, ou seja, quantos são bilíngues, mesmo que
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Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez
não falem inglês? Fora o fato de que muitas escolas oferecem a opção de estudar o espanhol como segunda língua! A autora do artigo, sendo jornalista, ficou presa a nomes, datas e descrições de experimentos, sem realmente entrar no mérito do aprendizado. Sonia Regina Rocha Rodrigues Santos, SP
especialmente o texto “O desafio de aprender outras línguas”. Sugeri a leitura para meus alunos e foi um sucesso. O tema que poderia ser árduo é apresentado em linguagem clara e atraente. As orientações práticas baseadas em estudos neurocientíficos são mesmo muito eficientes e fazem toda a diferença na aquisição de um novo idioma. Maria Cristina Fernandes São Paulo, SP
SUCESSO COM OS ALUNOS Sou professora de inglês e francês e, embora não tenha o hábito de escrever para as publicações que acompanho, resolvi abrir uma exceção desta vez. Toda a edição 289 está muito boa (li inteirinha em um único fim de semana). Mas me agradou
EM MOVIMENTO Revista Mente e Cérebro, parabéns!!! Sempre com assuntos muito relevantes, como a importância de mexer o corpo como terapia no tratamento da
depressão, na edição 289. Deyse Vaske – via Facebook DIGITAL Ter Mente e Cérebro em formato digital é outra coisa! Já estou lendo a última edição. A matéria de capa é fantástica, muito bem fundamentada! Parabéns pela revista e sua versão digital! Tiago Romio – via Facebook ESPECIAL SONO Gostei do Especial Mente e Cérebro 58 – A ciência do sono. Só não me acostumei ainda a não ter meu exemplar físico, ao vivo e a cores para pegar, marcar e até emprestar. Césare Pelegrino – Recife,PE
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO! Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
[email protected] ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. A premiada deste mês é Aline S. Cury – São Paulo, SP.
13º Curso de Gerenciamento do Stress
de Stress da ISMA-BR 17º Congresso (International Stress Management Association) Internacional de Qualidade 19º Fórum de Vida no Trabalho
9º
Encontro Nacional de Qualidade de Vida na Segurança Pública
9º
Encontro Nacional de Qualidade de Vida no Serviço Público
5º
Encontro Nacional de Responsabilidade Social e Sustentabilidade
XEXPOSIÇÕES
A arte abraça a loucura Em cartaz no Museu de Arte do Rio, Lugares do delírio reúne obras de artistas como Bispo do Rosário e Lygia Clark – o fio condutor da mostra é a reflexão sobre o conceito de sanidade mental
U
m dos maiores artistas brasileiros viveu por mais de 50 anos em um hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. Diagnosticado com esquizofrenia, Arthur Bispo do Rosário encheu sua cela na antiga Colônia Juliano Moreira com roupas, barcos e assemblages feitos de lixo. E ele não é o único artista plástico que viveu em instituições psiquiátricas: há o gaúcho Luiz Guides, autor de desenhos geométricos com tinta guache, morador do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre. Ou o cearense Maurício Flandeiro, que constrói miniaturas lúdicas de navios, oratórios e castelos com metais descartados. Em cartaz no Museu de Arte do Rio, a mostra Lugares do delírio reúne trabalhos desses e outros artistas, alguns mais, outros menos conhecidos do grande público, mas que têm em comum a fusão de arte e loucura em suas obras ou em sua trajetória de vida. “A intenção é colocar em suspenso a delimitação entre o normal e o dito ‘louco’”, diz a curadora Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), que selecionou cerca de 150 trabalhos den8
SÉRIE DE ESCULTURAS PARA VESTIR Novos costumes, de Laura Lima, e fotografias de Cildo Meireles estão entre os trabalhos selecionados pela curadora, a psicanalista Tania Rivera
tro dessa temática. Um dos destaques é Camisa de força (1969), de Lygia Clark, artista conhecida por seus objetos relacionais – peças feitas com materiais cotidianos, como sacos de plástico e redes, que ela usava para propor interações sensoriais com o espectador. Entre os demais artistas contemporâneos selecionados por Rivera estão Cildo Meireles, com obras como Razão/ Loucura (1976), e Laura Lima, autora das peças Novos costumes – esculturas de vinil que o público pode vestir e ter a oportunidade de transitar com a perspectiva de sentir um misto de fantasia e desconforto. A psiquiatra Nise da Silveira é homenageada na mostra com algumas obras do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, criado por ela na década de 50 para abrigar as obras de arte produzidas por internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde ela fundou um ateliê de arte-terapia que revelou verdadeiros artistas entre os pacientes. Lugares do delírio. Museu de Arte do Rio – MAR. Praça Mauá, 5, Centro, Rio de Janeiro. De terça a domingo, das 10h às 17h. Informações: (21) 3031-2741. R$ 20; grátis às terças. Até 18 de junho.
associação livre Instituto Tomie Ohtake recebe obras interativas de Yoko Ono
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fotos divulgação
espire (1966), Sonhe (1964), Sinta (1963), Imagine (1962) – obras que orientam os espectadores a executar ações simples e introspectivas por alguns minutos – marcam a trajetória artística de Yoko Ono, um dos maiores nomes da arte performática no mundo. O Instituto Tomie Ohtake exibe até junho uma retrospectiva de 65 “peças de instruções” produzidas pela artista japonesa desde os anos 60. A artista plástica trabalha com a ideia de que a obra é efêmera, uma interação momentânea do espectador com o objeto ou performance pensados pelo artista. Assim, propõe que as pessoas usem as mãos para conver-
sar com desconhecidos através de furos em uma parede na instalação Pintura para apertar as mãos (pintura para covardes) (1961), escrevam memórias sobre a figura materna em Mamãe é linda (1997) ou pendurem seus desejos na Árvore dos pedidos para o mundo (2016). Uma série de filmes completa a mostra – entre eles, um vídeo da performance Peça corte, de 1965, na qual o público podia cortar um pedaço da roupa da artista e levar consigo. ÁRVORE DOS PEDIDOS PARA O MUNDO (2016), instalação que convida os visitantes a escrever seus desejos
O céu ainda é azul, você sabe – Yoko Ono. Instituto Tomie Ohtake. Avenida Faria Lima, 201 (entrada pela rua Coropés, 88). Pinheiros, São Paulo. De terça a domingo, das 11h às 20h. Informações: (11) 2245-1900. R$ 12. Até 28 de junho. abril 2017 • mentecérebro
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associação livre
raphael domingues filho. sem titulo, 1949. guache e nanquim sobre papel. coleção museu de imagens do inconsciente, rio de janeiro.
XARTE CINÉTICA
Abraham Palatnik e os “camafeus” de Nise da Silveira
C
emygdio de barros. universal, 1948. óleo sobre tela. coleção museu de imagens do inconsciente, rio de janeiro.
riadora de um ateliê de arte-terapia dentro do centro psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro dos anos 50, a psiquiatra Nise da Silveira chamava de forma carinhosa seus pacientes que se expressavam por meio das tintas e da argila – eram seus “camafeus”, ela dizia. Alguns deles, com o tempo, mostraram que a arte ia muito além de aliviar seu sofrimento psíquico – produziram peças de grande valor artístico, segundo críticos de arte. O que pouco se sabe, porém, é da influência desses artistas revelados por Nise para o trabalho do potiguar Abraham Palatnik, a maior referência em arte cinética no Brasil. Quando jovem, Palatnik trabalhou como monitor no ateliê e, em contato com os internos, viu suas convicções em relação à arte serem “demolidas”, em suas próprias palavras. Inspirado por eles, abandonou os pincéis e o papel para usar luz e movimento como matéria-prima e criar obras que mudam a todo tempo – os objetos cinéticos –, em exposição na retrospectiva do artista no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Em referência à sua trajetória, a seleção traz também pinturas de dois camafeus, Raphael Domingues e Emygdio de Barros, considerados pela crítica dois grandes nomes da pintura brasileira. Barros, nas palavras do falecido crítico Ferreira Gullar, pode ser definido como “um dos únicos gênios da pintura brasileira”. Os objetos de Palatnik são construídos com hastes e fios metálicos com círculos de madeira coloridos em suas extremidades, que se movem com a ajuda de motores – mas a impressão de quem observa é que o movimento é lógico e natural, como móbiles – ou constelações, usando as palavras do artista.
CCBB Rio exibe pinturas e objetos cinéticos (à esquerda) do artista; a mostra traz também trabalhos de Raphael Domingues (no alto) e Emygdio de Barros (acima), internos do Hospital Psiquiátrico Pedro II que frequentaram o ateliê de arte terapêutica que foi inspiração para a trajetória de Palatnik
Brasil Rio de Janeiro. Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro. De quarta a segunda, das 9h às 21h. Informações: (21) 3808-2020. Grátis. Até 23 de abril. 10
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abraham palatnik
Abraham Palatnik – A reinvenção da pintura. Centro Cultural Banco do
o que há para ver e ler
| na rede
XTEATRO
Monólogo aborda perdas e enlouquecimento crise política e econômica que abateu o Brasil durante a curta presidência de Fernando Collor de Melo, nos anos 90, é o pano de fundo do monólogo Nefelibato, sobre um homem que tem um surto psicótico depois de descobrir que suas economias foram confiscadas pelo governo. O ator Luiz Machado dá voz ao personagem Anderson, que, depois de passar um tempo internado em um manicômio, foge para viver nas ruas como um andarilho. Entre delírios e memórias confusas sobre seu passado, apresenta lampejos de lucidez ao refletir sobre a vida e a condição humana. “Viver na rua é o caminho que ele encontrou para continuar vivo”, explica o diretor Fernando Philbert.
renata maria
A
NEFELIBATO mergulha nos pensamentos de um homem que passa a viver nas ruas depois de sofrer um surto psicótico
Nefelibato. Teatro Candido Mendes. Rua Joana Angélica, 63, Ipanema, Rio de Janeiro. De terça a quinta, às 20h30. Informações: (21) 2523-3663. R$ 40. Até 27 de abril.
Cadeira de rodas inteligente permite que paraplégicos se locomovam de pé
CONTATO VISUAL E MOBILIDADE: o dispositivo com estabilidade em vários tipos de terreno fica na vertical quando necessário
abril 2017 • mentecérebro 11
reprodução/29acres.org
U
m dispositivo que promete mais independência e a prevenção de problemas médicos associados à posição horizontal em paraplégicos. Essa é a proposta da UpNRide, cadeira inteligente criada pela startup israelense de mesmo nome, fundada e liderada por Amit Goffer, ele próprio paraplégico desde os anos 90, vítima de um acidente de carro. Criador de uma cadeira específica para pessoas paralisadas do quadril para baixo, a ReWalk, Goffer conseguiu agora construir um protótipo de cadeira que ele mesmo pode usar. O dispositivo usa uma tecnologia que mantém o corpo centralmente estável, possibilitando que a pessoa circule por vários tipos de espaço, se sente e fique de pé quando quiser. Segundo Goffer, a possibilidade de manter contato visual no mesmo nível das outras pessoas tem um impacto dramático sobre a autoestima de quem não tem os movimentos. A cadeira ainda está em testes clínicos, mas a previsão é que chegue ao mercado ainda este ano, com custo entre U$$ 15 mil e US$ 50 mil. A página da startup traz informações e vídeos da cadeira: upnride.com.
psicanálise
inconsciente a céu aberto
Liberdade ou justiça?
“T
emos o direito a ser iguais quando nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.” Nessa afirmação de Boaventura de Sousa Santos (Reconhecer para libertar, Civilização Brasileira, 2003) apresenta-se, de modo sintético, um dos maiores paradoxos da modernidade. Aspirações de liberdade, autonomia e independência parecem acirrar nossa paixão individualista e egoísta. Mas a liberdade tem um problema constitutivo que é saber onde ela começa. Seu início se dá no berço de cada um? Na forma como cada um livremente encontra um destino para o que herdou? Tudo parece depender de
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qual é o momento que vamos escolher para dar início à história: a gênese divina, a origem das espécies, a Revolução Francesa, a abolição da escravatura ou a última prova da Fuvest? O direito de ser diferente é o que podemos chamar de liberdade. Ocorre que a diferença gera distinção, comparação e mérito de tal maneira que ela se explica por si mesma. Diferença gera mais diferença. No reino da pura liberdade vigora a justiça bíblica de Mateus: “quem muito tem, mais lhe será dado, quem pouco tem, mesmo este pouco lhe será tirado”. É comum que se erga aqui, contra os excessos óbvios da liberdade individual, o argumento coletivo da justiça. Aqui o problema é inverso, ou seja, saber quando a justiça termina. O conhecido dilema da flauta indiana proposto por Amartya Sen serve para exemplificar o dilema: se temos três crianças e apenas uma flauta, parece óbvio que esta deve ser dada para a única que sabe tocar o instrumento. É verdade, mas uma verdade encarcerada no presente. Basta acrescentarmos a ideia de que no futuro a segunda criança pode vir a aprender a tocar flauta e que ter o instrumento é o maior estímulo para isso que se perceberá como a justiça incapaz de pensar seu próprio futuro é falha. Bastaria olhar para o passado e ver que a terceira criança foi quem trabalhou para construir a flauta que nosso juízo de justiça se altera imediatamente.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
Frequentemente esquecemos essa divisão constitutiva nas relações de gênero, nos dilemas familiares e em nossas pequenas decisões cotidianas. Divisão que estrutura também nossas formas de sofrimento. Um sofre com o sentimento agudo de injustiça, o outro, com a falta crônica de liberdade. Mas a palavra-chave na asserção do pensador português, e nas chamadas epistemologias do sul, não é justiça nem liberdade, mas reconhecimento. O problema de sua formulação é que ele a coloca apenas em termos de direitos. Temos direito à justiça e liberdade assim como aos bens simbólicos da igualdade e da diferença. Para a psicanálise, o direito é o território do gozo, assim como o reconhecimento é a terra do desejo. O novo moralismo brasileiro, seja ele de direita ou de esquerda, está fortemente orientado por uma espécie de crise de reconhecimento. Uma crise formada pelo excesso de experiências de falso reconhecimento: leis que não pegam, direitos que não valem, exceções por toda parte. Um estado livre de democracia formal. Uma crise formada também pela intolerância ao gozo, ódio à diferença e impulso mórbido a praticar a justiça sem memória e uma liberdade sem futuro. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto), shutterstock (imagem)
O novo moralismo brasileiro, seja de direita ou de esquerda, está fortemente orientado por uma espécie de crise de excesso de experiências de falso reconhecimento
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subjetividade
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ilusão de fatos alternativos
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Pode parecer estranho, mas nenhum de nós jamais experienciou o mundo diretamente – o que temos é uma simulação da realidade mediada pelo cérebro. Algumas “regras” com base científica podem ajudar nessa “busca pela verdade” por Susana Martinez-Conde e Stephen L. Macknik
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penúltimo fim de semana de janeiro marcou a tomada de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e o momento em que a expressão “fatos alternativos” se juntou a “pós-verdade” e “notícias falsas”. Na ocasião, foi registrado o primeiro choque do presidente americano com a imprensa. O mote foi um tanto bizarro e mesquinho: o tamanho da multidão durante o evento. Em seu discurso um dia depois, Trump atacou jornalistas e redes de televisão por “mentirem” sobre a quantidade de pessoas presentes, ao mostrarem “um campo vazio” no National Mall. “Olhei para fora, o local estava cheio, parecia ter 1 milhão, 1,5 milhão de pessoas”, disse Trump. Mais tarde, o secretário de imprensa Sean Spicer continuou a defender a declaração do presidente enquanto criticava a mídia. O debate sobre o que constitui a realidade objetiva e subjetiva provavelmente perdurará. Enquanto isso, nós, autores deste artigo, neurocientistas especializados no estudo da percepção errônea e da ilusão, temos algumas OS AUTORES SUSANA MARTINEZ-CONDE E STEPHEN L. MACKNIK são professores de oftalmologia do Centro Médico SUNY Downstate, no Brooklyn, em Nova York. São autores, com Sandra Blakeslee, de Truques da mente: o que a mágica revela sobre nosso cérebro (Zahar, 2011). O livro ganhou o prêmio Prisma de melhor livro de ciência do ano, nos Estados Unidos.
observações a fazer. Nossa pesquisa se concentra justamente nos erros cognitivos e de percepção que cometemos na vida cotidiana, bem como nos truques inteligentes concebidos por pintores e ilusionistas para fazer com que os espectadores experimentem algo além do óbvio. Poderíamos mesmo dizer que estudamos enganos e desvios – dois conceitos que se tornaram inesperadamente relevantes para a cena política. Repetidas vezes, tivemos a oportunidade de comprovar no laboratório que nossos sentidos não são confiáveis: não importa quão certo estejamos de que nossa percepção dos eventos que nos rodeiam são como vemos, ainda assim podemos estar completamente errados. Uma parte principal do problema é que ninguém experimenta a realidade diretamente. Cada visão, som ou sentimento que qualquer um de nós já passou por filtros biológicos e pelos sofisticados mecanismos cerebrais de processamento de informações. A verdade é que, na prática, nenhum de nós nunca experienciou o mundo diretamente, mas apenas uma simulação mediada pelo cérebro. E essa representação não corresponde necessariamente à realidade. Ainda que nossos sentidos não possam compreender completamente o mundo que nos cerca, existem regras precisas para o jogo de obter conhecimento imparcial e formas de medir a realidade objetiva. Veja como o método científico e a ciência da ilusão podem ajudar: abril 2017 • mentecérebro 15
subjetividade REGRA 1: Não podemos determinar o que é verdade, mas é possível estabelecer o que é falso ossa imagem da realidade evolui cada vez que aprendemos algo novo sobre o mundo. No século 17, Isaac Newton mostrou que a física aristotélica não era a verdade completa. Por sua vez, o relativismo da física quântica ampliou e, sob muitos aspectos, superou a física newtoniana. Cada descoberta subsequente nos impulsiona a novas constatações: está sempre presente a possibilidade de que uma nova observação imprevista derrubará – ou pelo menos mudará – o que se aceita até agora como verdadeiro. Assim, um princípio fundamental da ciência é que, ao passo que nenhuma quantidade de dados pode verificar uma hipótese, uma única observação contraditória é capaz de refutá-la. Em outras palavras, as hipóteses não podem ser comprovadas como verdadeiras, embora possam ser comprovadas como falsas. Se há uma coisa em que o método científico se destaca é o fato de que é possível refutar proposições. A hipótese de Donald Trump sobre o tamanho da multidão era possivelmente razoável de sua posição privilegiada no estrado. Como observado no texto publicado no
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POSSE DO TRUMP janeiro 2017
Washington Post, o presidente pode ter levado em conta que a multidão se estendia até a parte de trás do National Mall. Ou talvez ele tenha mentido. De qualquer forma, as hipóteses só podem sobreviver enquanto os dados as sustentam. E fotografias aéreas, estimativas de cientistas e o número de passageiros de transporte público fornecido pelo Washington Metropolitan Area Transit (WMAT) rejeitam a afirmação da Casa Branca de que a multidão presente na posse de Trump foi a maior da história.
REGRA 2: Alta confiança não é igual à prova objetiva
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embra-se do vestido viral? O fenômeno das mídias sociais começou com a foto de um vestido, fotografado sob ambígua iluminação azul e amarela. Aproximadamente metade da humanidade viu a roupa nas cores branca e dourada; a outra metade viu em azul e preto. Tanto os partidários de uma opinião quanto os de outra se sentiam igualmente confiantes em sua avaliação e, por mais que tentassem, não podiam ver a roupa de outra maneira. Podemos pensar nas duas interpretações concorrentes do vestido como dois conjuntos igualmente válidos de “fatos alternativos”. Exceto por uma coisa: se iluminássemos o vestido com uma luz branca simples, ele ficaria azul e preto para qualquer pessoa. Todos podemos imaginar cenários alternativos para qualquer acontecimento: sequências de eventos que poderiam ter ocorrido, mas nunca aconteceram realmente. A recente série de TV Amazon Video The man in the high castle situa-se num universo distópico no qual as potências de determinado grupo venceram a Segunda Guerra Mundial. Talvez haja uma realidade alternativa em que o presidente Trump teve a maior audiência já registrada num evento – no entanto, não foi o que aconteceu em nosso universo.
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SEM AMBIGUIDADE: iluminação branca
AMBÍGUO: duas fontes de luz
REGRA 3: A percepção depende da perspectiva, mas a subjetividade não é uma medida da realidade
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ossa fiação neural é constituída de tal forma que é praticamente impossível para os seres humanos pensar, ou mesmo entender algo, em termos absolutos, por mais simples que seja. Nossos olhos não contam fótons da maneira como o medidor de luz de um fotógrafo o faz. Em vez disso, vemos o mundo como um padrão de contrastes: o mesmo círculo cinzento pode parecer preto para nós se rodeado por branco e branco se rodeado por preto. Nossa percepção depende do contexto e da perspectiva. Chamamos de ilusões aqueles casos em que nosso relativismo subjetivo se afasta dramaticamente dos dados objetivos (como quando vemos um círculo cinza como branco, embora o medidor de luz do fotógrafo prove que não é assim). Algumas das percepções mais deslumbrantes confiam no uso engenhoso da perspectiva. Kokichi Sugihara, um matemático do Japão e vencedor por mais de uma vez da competição da Melhor Ilusão, construiu rampas em que bolas de madeira parecem rolar ladeira abaixo. No entanto, um ponto de vista diferente revela que o movimento ascendente é apenas uma ilusão e que na realidade as bolas não estão se movimentando. Nos Estados Unidos, muito se falou sobre como a percepção pode ter afetado as reivindicações da Casa Branca a respeito do tamanho
O relatório da Casa Branca sobre o tamanho da multidão não era notável devido à sua imprecisão, mas sim pela confiança nas informações incorretas. Se Trump dissesse que 1 milhão de pessoas pareciam estar na inauguração, mas que ele não sabia o número real, o relato poderia ter parecido mais cativante do que inquietante. Estimativas também não são fáceis quando estamos próximos demais de uma situação, ou mesmo fazemos parte dela. Talvez por isso seja tão compreensível por que é mais efetivo conversar com um psicólogo sobre algum problema do que com um amigo interessado em nos ajudar, mas dificilmente isento afetivamente. Não raro, quando estamos em meio a uma multidão, empacotados como sardinhas, imaginamos haver milhões de pessoas no mesmo evento e ficamos surpresos depois de descobrir, com base em imagens aéreas, dados do departamento de trânsito e estimativas de especialistas, que havia menos de meio milhão de pessoas. A diferença entre a percepção e o que de fato se verificou realça quão difícil é avaliar o tamanho de uma situação enquanto fazemos parte dela – mesmo para cientistas perceptuais acostumados a desconfiar de seus sentidos.
da multidão inaugural. Há a questão do ponto de vantagem de Trump a partir do estrado, o que pode ter influenciado sua percepção sobre números maiores. Mas a assessoria de imprensa do governo tomou outro rumo, argumentando que as fotos aéreas fizeram a multidão de Trump parecer menor do que na vida real, devido ao uso sem precedentes de revestimentos de chão brancos para proteger a grama no Mall. Considerando que o grande número de pessoas vestidas com roupas escuras de inverno deve ser geralmente mais fácil de analisar contra um fundo branco do que contra um escuro. Sem mencionar o fato de que os revestimentos de assoalho brancos foram usados pela primeira vez em 2013, para a cerimônia da segunda posse de Barak Obama, e ainda estavam no lugar – mas menos visíveis devido à maior multidão – durante a Marcha das Mulheres, no dia seguinte à inauguração. Em nossa nova era americana de notícias falsas e tristeza pós-verdade, a busca por verdade objetiva e fatos (não alternativos) tornou-se mais crítica do que nunca. Os cientistas e os jornalistas devem unir forças nesse esforço comum e não hesitar em chamar atenção para as falsidades presentes e futuras, seja por erros inocentes ou por tentativas francas de induzir em erro. Considerando que a pós-verdade é uma ilusão – sem base na realidade –, a verdade real é impermeável aos nossos desejos, emoções ou crenças. O método científico nos ensina que só alcançaremos a verdade rejeitando obstinadamente cada pedaço de desinformação que está em nosso caminho. Os relatórios investigativos e a verificação de fatos agressiva serão cruciais para nos levar até lá. abril 2017 • mentecérebro 17
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A um passo de entender como o
cérebro
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dá origem a
pensamentos e emoções por Rafael Yuste e George M. Church
OS AUTORES RAFAEL YUSTE é professor de ciências biológicas e neurociência na Universidade Columbia e codiretor do Instituto de Circuitos Neurais da Fundação Kavli. GEORGE M. CHURCH é professor de genética na Universidade Harvard e fundador do PersonalGenomes.org.com, uma fonte de acesso aberto para dados sobre genomas humanos, neuroimagens e caracteres comportamentais e cognitivos.
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A forma como produzimos raciocínios conscientes continua sendo um dos grandes mistérios da ciência. Na tentativa de compreender esse processo, neurocientistas recorrem a novas ferramentas para analisar o funcionamento dos circuitos neurais e tecnologias que registrem ou controlem a atividade de circuitos neurais
pesar de mais de um século de pesquisas ininterruptas, cientistas que se dedicam a pesquisar o cérebro ainda desconhecem o funcionamento do órgão de um quilo e meio, em média, sede física da atividade humana consciente. Muitos tentaram lidar com esse problema examinando os sistemas nervosos de organismos mais simples. Na verdade, mais de 30 anos se passaram desde que cientistas mapearam as conexões entre cada uma das 302 células nervosas do verme Caenorhabditis elegans. O diagrama das conexões do invertebrado, no entanto, não permitiu compreender como essas conexões dão origem a comportamentos como alimentação e impulsos sexuais. Faltavam informações relativas à atividade dos neurônios em comportamentos específicos A dificuldade em estabelecer ligação entre a biologia e o comportamento em humanos é ainda maior. A mídia rotineiramente menciona exames que mostram atividade em locais específicos do cérebro quando nos sentimos rejeitados ou falamos um idioma estrangeiro, por exemplo. Essas notícias podem dar a impressão de que a tecnologia atual fornece percepções essenciais sobre o funcionamento do cérebro, mas não é bem assim. Um exemplo notável desse descompasso é um estudo muito divulgado, que identifica uma célula do cérebro em particular capaz de disparar um impulso elétrico em resposta ao rosto da atriz Jennifer Aniston. Apesar da polêmica da descoberta, alguns cientistas comparam a constatação à captação de uma mensagem de alienígenas, um sinal de vida inteligente no Universo, mas sem nenhuma indicação sobre o sentido da transmissão. O fato é que ainda somos completamente ignorantes a respeito de como a atividade elétrica pulsante desse neurônio influencia nossa capacidade de reconhecer o rosto de Aniston e depois relacioná-lo a um clipe de um programa de televisão. Para que o cérebro reconheça a atriz, provavelmente é necessária a ati-
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vação de um conjunto enorme de neurônios, todos se comunicando por um código neural que ainda não foi decifrador. O neurônio capaz de identificar a atriz também exemplifica a encruzilhada que a neurociência atingiu. Já temos técnicas para registrar a atividade de neurônios individuais em humanos vivos, mas, para avançar de forma significativa, a área precisa de novas tecnologias que permitirão a cientistas monitorar e também alterar a atividade elétrica de milhares ou mesmo milhões de neurônios – técnicas capazes de decifrar o que o pioneiro neuroanatomista espanhol Santiago Ramón y Cajal chamou de “a selva impenetrável, onde muitos investigadores se perderam”. Esses métodos inovadores poderiam, em princípio, começar a preencher a lacuna entre o disparo de neurônios e a cognição: percepção, emoção, tomada de decisão e, por fim, a própria consciência. Decifrar os padrões exatos da atividade cerebral subjacente ao pensamento e ao comportamento também fornecerá percepções críticas sobre o que acontece quando circuitos neurais deixam de funcionar em distúrbios psiquiátricos e neurológicos – esquizofrenia, autismo, Alzheimer ou Parkinson. Apelos para um salto tecnológico no estudo do cérebro começam a ser ouvidos
UM ÚNICO NEURÔNIO é capaz de identificar uma pessoa específica; no estudo em que foi usada foto de Jennifer Aniston, uma célula específica dispara no cérebro impulso elétrico quando voluntários visualizam a imagem da atriz
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RAMÓN Y CAJAL chamava o cérebro de “selva impenetrável”: ainda hoje a neurociência desafia pesquisadores
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fora dos laboratórios. Há pouco mais de três anos, o governo dos Estados Unidos anunciou o início de um projeto de grande escala: o Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies Initiative, ou Iniciativa BRAIN, um grande empreendimento de pesquisa. O projeto, com um nível de financiamento inicial de mais de US$ 100 milhões, visa o desenvolvimento de tecnologias para registrar sinais de células cerebrais em número muito maior e até de áreas completas do cérebro. O BRAIN complementa outros grandes projetos em neurociência fora dos Estados Unidos. O Human Brain Project (Projeto Cérebro Humano), financiado pela União Europeia, é uma ação de US$ 1,6 bilhão, já com mais de uma década, voltado para o desenvolvimento de uma simulação de todo o cérebro em computador. Projetos de pesquisa ambiciosos de
neurociência também foram lançados na China, no Japão e em Israel. Investigar como células cerebrais processam o conceito de Jennifer Aniston – ou algo comparável ao que deparamos por meio da experiência subjetiva ou percepções do mundo externo – é atualmente um obstáculo intransponível. Exige deslocar a medição de um neurônio para a compreensão de como um grupo dessas células pode se envolver em interações complexas que dão origem a um todo integral maior – que cientistas chamam de propriedade emergente. A temperatura de qualquer material ou o estado magnético de um metal, por exemplo, só surge a partir de interações de uma multidão de moléculas ou átomos. Considere o elemento químico carbono: os mesmos átomos podem se ligar tanto para criar dureza de diamante como a maciez de grafite, que se desgasta facilmente, formando palavras no papel. Propriedades emergentes como dureza e maciez não dependem de átomos individuais, mas do conjunto de interações entre eles. O cérebro provavelmente também apresenta propriedades emergentes totalmente ininteligíveis a partir de inspeção de neurônios individuais, ou mesmo de uma pintura grosseira de baixa resolução da atividade de enormes grupos de neurônios. A percepção de uma flor ou a recuperação de uma memória de infância podem ser discernidas apenas observando-se a atividade dos circuitos cerebrais que transportam sinais elétricos ao longo de cadeias complexas de centenas ou milhares de neurônios. Embora neurocientistas estejam familiarizados com esses desafios há muito tempo, ainda não têm ferramentas para gravar a atividade de circuitos individuais que fundamentem a percepção ou a memória, ou que deem origem a comportamentos complexos e funções cognitivas. Uma tentativa de superar esse impasse começou a reunir um mapa das conexões anatômicas, as sinapses, entre neurônios – empreendimento conhecido como conectonomia. O Projeto Conectoma Humano, lançado nos Estados Unidos, pretende fornecer um diagrama da fiação estrutural do cérebro. Mas, como no caso do verme, esse mapa é só um ponto de partida. Apenas ele
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não conseguirá documentar os sinais elétricos em constante variação que produzem processos cognitivos específicos. Para fazer esse registro necessitamos de técnicas sofisticadas de medição de atividade elétrica, superiores às tecnologias disponíveis – que permitem observar um quadro preciso da atividade de grupos relativamente pequenos de neurônios, ou imagens não nítidas de áreas cerebrais grandes, mas ainda sem a resolução necessária para identificar circuitos cerebrais tão específicos. Registros em boa escala atualmente são feitos inserindo eletrodos finos como agulhas nos cérebros de animais de laboratório para acompanhar o disparo de um neurônio isolado, o impulso elétrico acionado após a célula receber sinais químicos de outras células cerebrais. Quando um neurônio é estimulado adequadamente, a tensão elétrica através da membrana exterior da célula se inverte. Essa mudança de tensão induz canais de membrana a introduzir sódio ou outros íons carregados positivamente. A entrada, por sua vez, produz um “pico” elétrico que percorre o axônio – a projeção longa da célula – estimulando-o a enviar um sinal químico próprio para outros neurônios e assim continuar a propagar o sinal. Registrar apenas um neurônio é análogo a tentar seguir o enredo de um filme em alta definição enquanto observa apenas um pixel. Fica impossível ver o filme como um todo. Também é uma técnica invasiva que pode provocar danos ao tecido cerebral assim que os eletrodos penetrarem nele. No outro lado do espectro, métodos que registram a atividade coletiva de neurônios em todo o cérebro também são inadequados. No familiar eletroencefalograma (EEG), inventado por Hans Berger na década de 20, eletrodos são fixados no crânio e medem a atividade elétrica combinada de mais de 100 mil células nervosas logo abaixo – o EEG registra as oscilantes “ondas” de amplitude ascendente e descendente que ocorrem em poucos milésimos de segundos, embora não possa decidir se qualquer neurônio individual está ativo. A ressonância magnética funcional (RMf) – que produz as familiares manchas coloridas iluminando áreas ativas do cérebro – registra atividade em todo o cérebro de forma não invasiva, mas apenas
lentamente e com baixa resolução espacial. Cada elemento de imagem ou voxel (um pixel tridimensional) é um conjunto de cerca de 80 mil neurônios. Além disso, a RMf não localiza a atividade neuronal diretamente, mas apenas mudanças secundárias no fluxo sanguíneo no interior desses voxels. UMAS SOBRE AS OUTRAS Para obter um quadro de padrões emergentes de atividade cerebral, cientistas precisam de novos dispositivos sensoriais que consigam gravar a partir de conjuntos de milhares de neurônios. A nanotecnologia, com novos materiais quase sempre inferiores às dimensões de moléculas individuais, pode ajudar nas gravações em grande escala. Matrizes de protótipos foram construídas incorporando mais de 100 mil eletrodos em uma base de silício; esses equipamentos conseguiram registrar a atividade elétrica de dezenas de milhares de neurônios na retina. Maior refinamento dessa tecnologia permitirá o empilhamento dessas matrizes em estruturas tridimensionais, diminuindo os eletrodos para evitar danos aos tecidos e estendendo eixos para penetrarem profundamente no córtex cerebral, a superfície mais externa do cérebro. Esses progressos possibilitariam a gravação de centenas de milhares de neurônios em humanos, discernindo as propriedades elétricas de cada célula.
EMBRIÕES DE PEIXE-ZEBRA em microscópio: organismos transparentes permitem que cientistas visualizem o que ocorre no interior desses animais
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Nos últimos anos, biólogos têm tomado emprestadas técnicas desenvolvidas por físicos, químicos e geneticistas para monitorar neurônios vivos em animais acordados, o que facilita a compreensão dos processos biológicos Eletrodos são apenas um modo de monitorar atividades neuronais. Técnicas além dos sensores elétricos abrem caminho nos laboratórios. Biólogos tomam emprestadas técnicas desenvolvidas por físicos, químicos e geneticistas e começam a visualizar neurônios vivos em animais acordados, vivenciando suas rotinas diárias. Um indício do que pode surgir ocorreu no ano passado, quando Misha Ahrens e seus colegas, no campus Janelia Farm do Howard Hughes Medical Institute, em Ashburn, Virgínia, usaram uma larva de peixe-zebra para imageamento microscópico do cérebro inteiro. O peixe-zebra é um dos organismos favoritos dos neurobiólogos porque é transparente em estado larval, permitindo a fácil inspeção do seu interior. No experimento, os neurônios do peixe-zebra foram geneticamente modificados para fluorescência quando íons de cálcio penetraram na célula após um disparo. Um novo tipo de microscópio iluminou o cérebro do animal, projetando uma lâmina de luz sobre todo o órgão enquanto uma câmera fazia fotos a cada segundo dos neurônios se iluminando. A técnica usada, denominada imageamento de cálcio, é pioneira e foi criada por um de nós (Yuste), possibilitando a gravação de 80% dos 100 mil neurônios do peixe-zebra. Mas, quando em repouso, muitas regiões do sistema nervoso da larva do peixe-zebra acendiam e apagavam em padrões desconhecidos. Desde que Berger apresentou o EEG, pesquisadores sabem que o sistema nervoso está, basicamente, sempre ativo. O experimento com o peixe-zebra traz esperança de que novas tecnologias de imagem possam ajudar no desafio maior da neurociência – a compreensão do disparo persistente e espontâneo de grandes grupos de neurônios. 24
Esse experimento é apenas o começo, pois neurocientistas necessitam de melhores tecnologias para descobrir como a atividade cerebral dá origem ao comportamento. Novos tipos de microscópios precisam ser projetados para imagens simultâneas tridimensionais da atividade neuronal. Além disso, o imageamento de cálcio opera lento demais para rastrear o disparo rápido dos neurônios e é incapaz de medir os sinais inibitórios que contêm a atividade elétrica na célula. Neurofisiologistas trabalhando em parceria com geneticistas, físicos e químicos tentam melhorar técnicas ópticas que, em vez de mensurar o cálcio, registrem a atividade neuronal diretamente pela detecção de alterações na tensão elétrica da membrana. Corantes que alteram suas propriedades ópticas conforme a voltagem oscila – depositados sobre o neurônio ou integrados por meio da engenharia genética na membrana celular – podem melhorar o imageamento de cálcio. Esta técnica alternativa, conhecida como imageamento de voltagem, pode permitir que pesquisadores registrem a atividade elétrica de cada neurônio em um circuito neural completo. LUZ, CÂMERA, PADRÃO O imageamento de voltagem ainda está engatinhando. Químicos devem melhorar a capacidade dos corantes de mudar a cor ou outras características enquanto um neurônio dispara. Biólogos moleculares já estão construindo sensores de tensão geneticamente codificados; essas células leem uma sequência genética para produzir uma proteína fluorescente, enviada à membrana exterior das células. Lá, essas proteínas alteram a intensidade em que se tornam fluorescentes, em resposta a alterações na tensão elétrica de um neurônio. Como acontece com os eletrodos, mate-
Mensagem celular Neurocientistas necessitam de formas mais eficientes e menos invasivas de observar circuitos cerebrais, em que sinais elétricos passam de um neurônio a outro. Várias tecnologias – algumas em uso, outras apenas presentes nos projetos de pesquisadores – podem permitir gravação de milhares e até mesmo milhões de neurônios. Elas substituirão métodos lentos e imprecisos que, quase sempre, exigem sondas elétricas invasivas.
Imageamento de voltagem
Fita codificadora de DNA
Esta técnica implanta um corante em um neurônio para determinar se a célula está ativa. O sensor se torna fluorescente quando um campo elétrico sobre a superfície da membrana celular muda sua carga elétrica, conforme transporta um sinal. Um detector (não mostrado) registra o evento e também pode monitorar a atividade de muitos outros neurônios, marcados com o mesmo corante.
Uma abordagem radicalmente nova – uma fita codificadora molecular – evidenciaria uma única cadeia de DNA com uma sequência conhecida de letras ou nucleotídeos, no interior celular, próximo à superfície. Uma enzima, a DNA polimerase, então, acrescentaria novos nucleotídeos que se ligariam para formar uma molécula de cadeia dupla (à esquerda). Quando um neurônio dispara, um influxo de íons de cálcio através de um canal de membrana recém-aberto faz com que a enzima adicione o nucleotídeo errado (à direita), erro que poderia ser detectado quando a cadeia de DNA fosse sequenciada posteriormente.
Sensor óptico acende quando um neurônio dispara
Canal de cálcio fechado
DNA polimerase modificada geneticamente
Nucleotídeos errados
Interior da célula
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Membrana da célula
Canal de cálcio aberto
Superfície da célula
A DNA polimerase adiciona novos nucleotídeos que se ligam a uma cadeia de DNA já existente
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capa riais não biológicos avançados originários da nanotecnologia podem ajudar. Em lugar de corantes orgânicos ou marcadores genéticos, um novo tipo de sensor de voltagem pode ser feito de pontos quânticos – pequenas partículas semicondutoras que exibem efeitos da mecânica quântica e podem ser adaptados precisamente em suas propriedades ópticas, como a cor ou intensidade de luz emitida. Os nanodiamantes, outro novo material importado da óptica quântica, são altamente sensíveis a mudanças em campos elétricos que ocorrem enquanto a atividade elétrica de uma célula oscila. As nanopartículas também podem ser combinadas com corantes
orgânicos convencionais, ou geneticamente modificados, produzindo moléculas híbridas em que uma nanopartícula pode servir como “antena” para amplificar sinais de baixa intensidade, produzidos por corantes fluorescentes, quando um neurônio é ativado. Outro desafio técnico que se impõe para visualizar a atividade neuronal é a dificuldade de enviar luz e coletá-la de circuitos neurais profundos, abaixo da superfície do cérebro. Para resolver esse problema, desenvolvedores de neurotecnologia começam a receber colaboração de pesquisadores de óptica computacional, engenharia de materiais e medicina, que também devem enxer-
Manipulando circuitos Além de observar correntes elétricas que fluem pelos circuitos, neurocientistas querem cada vez mais ligar e desligar circuitos individuais, para que possam aprender a controlar formas específicas de atividade cerebral. Um dia essas tecnologias recentes, duas das quais se baseiam em sinais ópticos (abaixo), podem controlar ataques epiléticos ou tremores de Parkinson.
Como funciona a optogenética A sinalização óptica e a engenharia genética se combinam para ativar um circuito cerebral em um animal vivo. Primeiro, um gene de uma proteína sensível à luz, uma opsina, é colocado em um vírus que, após a injeção num animal, envia o gene para o interior dos neurônios. O promotor de DNA no material genético inserido assegura que apenas certos neurônios produzam a opsina, um canal iônico, e a insiram nas suas membranas superficiais. Um sinal de uma fibra óptica no interior de um crânio de camundongo abre o canal, deixando íons carregados penetrarem no neurônio, desencadeando uma corrente pela célula. Promotor (visa neurônios específicos) Vírus
Membrana celular Canal de opsina fechado
Opsina é produzida por neurônios selecionados
Gene opsina
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Canal de opsina aberto
Sinal de luz
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Vírus é injetado em camundongo
Canal abre em resposta a sinal óptico, permitindo que íons entrem e iniciem um impulso elétrico na célula
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gar através de objetos sólidos de forma não invasiva: pele, crânio ou o interior de um chip de computador. Cientistas já sabiam há tempos que parte da luz que atinge um objeto sólido se dispersa e que os fótons dispersos podem, em princípio, revelar detalhes do objeto em que é refletida. A luz de uma lanterna na mão, por exemplo, a ilumina como uma luz difusa, sem dar indícios sobre a localização óssea ou da vasculação sob a pele, mas informações sobre o caminho da luz capturada através da mão não se perdem inteiramente. Ondas luminosas desordenadas dispersam, e depois interferem entre si. Esse padrão luminoso pode
ser trabalhado como imagem com uma câmera, e novos métodos computacionais podem então reconstruir uma imagem do que está no interior de um corpo – técnica usada no ano passado por Rafael Piestun e seus colegas da Universidade de Boulder, no Colorado, para enxergar através de um material opaco. Essas e outras técnicas ópticas também podem ser combinadas, incluindo as usadas por astrônomos para corrigir distorções de imagem provocadas pela atmosfera na luz das estrelas. A óptica computacional pode ajudar a visualizar o brilho fluorescente que emana de corantes, iluminados quando os neurônios da subsuperfície disparam.
Como funciona a optoquímica Uma técnica alternativa conhecida como optoquímica evita a necessidade de engenharia genética pesada. Primeiramente, um paciente engoliria uma pílula contendo uma molécula ativada pela luz – uma jaula – ligada a um neurotransmissor que regula a atividade de um neurônio. Após o conteúdo da pílula atingir o cérebro, um pulso de luz de um endoscópio, ou enviado de uma fonte externa ao crânio, operaria o neurotransmissor para ligar e abrir um canal na membrana celular para permitir entrada de íons. Os íons, então, acionariam o disparo de neurônios, enviando um impulso elétrico que viaja para a célula. Molécula ativada pela luz (jaula) Neurotransmissor
Canal iônico fechado
Luz libera o neurotransmissor para se ligar a um canal iônico e desencadear um impulso elétrico Íon
Sinal de luz Canal iônico aberto Neurônio
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de DNA também pode desempenhar papel crítico em um futuro mais distante para monitorar a atividade neuronal. Um de nós (Church) se inspirou no campo da biologia sintética, que manipula materiais biológicos como se fossem engrenagens de máquinas. Conforme a pesquisa avança, animais de laboratório podem ser geneticamente modificados para sintetizar uma “fita codificadora molecular”, molécula que muda de forma específica e detectável quando um neurônio é ativado. Em um cenário, a fita codificadora seria feita de uma enzima denominada DNA polimerase, que se liga à outra e é uma sequência preestabelecida de nucleotídeos (“letras” que são os blocos de construção do DNA). Um influxo de íons de cálcio, gerado após o disparo do neurônio, faz com que a polimerase produza uma sequência diferente de letras – ou seja, provocando “erros” na posição esperada de nucleotídeos. A cadeia dupla resultante de nucleotídeos poderia ser sequenciada posteriormente de cada neurônio de um animal experimental. LIGA OU DESLIGA Uma técnica inovadora chamada sequenciação fluorescente in situ produziria um registro de diferentes padrões de mudanças, os erros da fita codificadora inicial, que corresponde tanto à intensidade quanto ao sincronismo de cada um dos muitos neurônios em determinado volume de tecido. O laboratório de Church constatou a viabilidade dessa ideia usando uma fita codificadora de DNA alterada por íons de magnésio, manganês e cálcio. Além disso, a biologia sintética prevê a possibilidade de células artificiais agirem como sentinelas biológicas que patrulham o corpo humano. Uma estrutura celular geneticamente modificada poderia servir como eletrodo biológico, com diâmetro inferior ao de um fio de cabelo, para ser colocado junto a um neurônio usado na detecção de seu disparo. Esse padrão de disparo poderia ser gravado por um circuito integrado de tamanho nanométrico no interior da célula sintética – “poeira eletrônica”, que poderia transmitir dados coletados por uma ligação sem fio a um computador próximo. Esses dispositivos manométricos – mistura híbrida de peças
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A PERCEPÇÃO DE UMA FLOR ou a recuperação de uma memória de infância podem ser discernidas apenas observando a atividade dos circuitos cerebrais que transportam sinais elétricos ao longo de cadeias complexas de centenas ou milhares de neurônios
Algumas dessas técnicas ópticas inovadoras já são utilizadas com sucesso para produzir imagem de interiores de animal ou cérebros humanos com parte do crânio removido, permitindo que cientistas visualizem mais que um milímetro no interior do córtex. Com maior refinamento, elas poderiam oferecer uma maneira de olhar através da espessura do crânio. Mas o imageamento óptico não penetrará o suficiente para detectar estruturas profundas no interior do cérebro, embora outra invenção recente possa ajudar a resolver esse problema. Em uma técnica chamada de microendoscopia, neurorradiologistas inserem um tubo estreito, mas flexível, na artéria femoral e o manobram para várias partes do corpo, incluindo o cérebro e permitindo que guias de luz microscópicas inseridas no tubo façam seu trabalho. Uma equipe do Instituto Karolinska, em Estocolmo, demonstrou um extroducer (extrodutor) – dispositivo que permite que a artéria ou vaso por onde o endoscópio é passado seja perfurado com segurança, o que torna qualquer parte do cérebro, e não apenas a vasculatura, acessível à inspeção por várias tecnologias de imageamento ou de registros elétricos. Elétrons e fótons são os candidatos mais óbvios para gravar a atividade cerebral, ainda que não sejam os únicos. A tecnologia
A óptica computacional pode ajudar a visualizar o brilho fluorescente que emana de corantes iluminados quando os neurônios da subsuperfície disparam eletrônicas e biológicas – seriam alimentados por um transmissor de ultrassom externo ou mesmo do interior celular, usando glicose, trifosfato de adenosina ou outra molécula. Para entender o que ocorre na vasta rede de circuitos neurais do cérebro, pesquisadores devem fazer mais que apenas fotos. Precisam ligar ou desligar grupos selecionados de neurônios para testar o que as células fazem. A optogenética, técnica amplamente adotada por neurocientistas nos últimos anos, envolve o uso de animais geneticamente modificados para que seus neurônios produzam proteínas sensíveis à luz, derivadas de bactérias ou algas. Quando expostas a um comprimento de onda luminoso em particular, passando por uma fibra óptica, essas proteínas fazem os neurônios ativarem ou desligarem. Cientistas aplicaram a técnica para ativar circuitos neurais envolvidos no prazer e em outras respostas de recompensa e nos movimentos prejudicados típicos do mal de Parkinson. Chegaram a usar a optogenética para “implantar” falsas memórias em ratos. A necessidade de engenharia genética significa que a optogenética pode exigir longos protocolos de aprovação antes de ser testada ou utilizada como terapia em humanos. Uma alternativa mais prática para algumas aplicações foi demonstrada pela inserção de neurotransmissores, substâncias que regulam a atividade dos neurônios, em uma substância sensível à luz chamada “jaula”. Exposta à luz, a jaula se rompe e as substâncias químicas que ela abriga escapam e se tornam ativas. Em colaboração com o laboratório de Yuste, o neurocientista Steven Rothman, da Universidade de Minnesota, colocou no córtex cerebral exposto de ratos quimicamente induzidos a produzir convulsões de epilepsia, rutênio contendo GABA (um neurotransmissor que induz a atividade neural a diminuir). Um pulso de luz azul no cérebro liberava GABA e fazia as convulsões
diminuírem. Abordagens “optoquímicas” semelhantes são usadas atualmente para investigar a função de circuitos neurais selecionados. A ideia é que essas estratégias possam ser mais amplamente usadas como terapia de algumas doenças neurológicas ou distúrbios mentais. Um caminho longo ainda se estende da pesquisa básica até as aplicações clínicas. Cada ideia nova para a medição e manipulação de atividade neural em grande escala terá de ser testada em drosófilas, vermes e roedores antes de passar para humanos. Um esforço intensivo pode permitir que pesquisadores registrem imagens e controlem opticamente grande parte dos 100 mil neurônios em um cérebro de drosófila está bastante adiantado. Instrumentos para capturar e modular a atividade neural do cérebro de um camundongo desperto podem não ser possíveis em cinco anos. Algumas tecnologias, como eletrodos finos para corrigir avarias em circuitos neurais em pacientes deprimidos ou epilépticos, já são realidade em pequena escala e seu uso deve se ampliar em breve. Conforme as neurotecnologias crescem em sofisticação, cientistas necessitarão de melhores formas de gerenciar e compartilhar enormes compilações de dados. O imageamento das atividades de todos os neurônios no córtex do camundongo poderia gerar 300 terabytes de dados compactados em uma hora, mas isso não é de forma alguma uma tarefa impossível. Unidades de pesquisa sofisticadas, semelhantes aos observatórios astronômicos, centros de genoma e aceleradores de partículas, poderiam receber, integrar e distribuir esse tipo de dados digitais. Assim como o Projeto Genoma Humano gerou o campo da bioinformática para lidar com dados de sequenciamento, a neurociência computacional poderia decodificar o funcionamento do sistema nervoso inteiro. abril 2017 • mentecérebro 29
PARA SABER MAIS The human brain project: creating a european research infraestructure to decode the human brain. Katrin Amunts e outros, em Neuron, volume 92, issue 3, págs. 574-581, novembro de 2016. Como os Estados Unidos estão utilizando a ciência para melhorar a saúde? Fernanda de Negri e Cristina Caldas, em Radar, volume 47, págs. 23-29, novembro de 2016. The WU-minn human connectome project: an overview. David C. Van Essen Ugurbil e outros, em Neuroimage, volume 80, págs. 62-79, outubro de 2013. The NIH brain initiative. Thomas R. Insel et al. em Science, vol. 340, págs. 687-688, 10 de maio de 2013. The brain activity map project and the challenge of functional connectomics. A. Paul Alivasatos em Neuron, vol. 74, nº 6, págs 970974, 21 de junho de 2012. 30
A capacidade de analisar petabytes de dados fará mais que ordenar enorme volume de novas informações. Poderá lançar base para novas teorias sobre como a cacofonia de disparos nervosos se traduz em percepção, aprendizado e memória. A análise de megadados também pode ajudar a confirmar ou eliminar teorias que não puderam ser testadas antes. Uma teoria intrigante postula que os muitos neurônios envolvidos na atividade de um circuito desenvolvem sequências de disparo conhecidas como atratores e podem representar estados cerebrais emergentes – um pensamento, memória ou decisão. Em um estudo desenvolvido há alguns anos, um camundongo deveria decidir se atravessaria uma parte ou outra de um labirinto virtual projetado em uma tela. Essa ação acendeu dezenas de neurônios que apresentaram mudanças dinâmicas na atividade semelhantes às de um atrator. SAÚDE E ECONOMIA Uma melhor compreensão dos circuitos neurais pode melhorar o diagnóstico de quadros como Alzheimer e autismo, e permitir um entendimento mais profundo de suas causas. Em vez de diagnosticar e tratar esses problemas apenas com base em sintomas, seria possível procurar alterações específicas na atividade dos circuitos neurais específicos descobertos como a base de cada transtorno e administrar terapias para corrigir essas anomalias. Por extensão, o conhecimento sobre as raízes da doença provavelmente se traduziria em benefícios não apenas individuais, mas também econômicos para a medicina e a biotecnologia. Como no projeto genoma, há questões éticas e jurídicas, principalmente se essa pesquisa levar a formas de discernir ou alterar estados mentais, resultados que exigiriam salvaguardas cuidadosas para o consentimento do paciente, além da preservação da privacidade.
Para que as diferentes iniciativas sobre o cérebro tenham sucesso, cientistas e seus apoiadores devem se concentrar no objetivo de imageamento e controle de circuitos neurais. A ideia para a Iniciativa BRAIN nasceu de um artigo na revista Neuron, em junho de 2012. Nela, nós e nossos colegas sugerimos uma colaboração a longo prazo entre físicos, químicos, nanocientistas, biólogos moleculares e neurocientistas para desenvolver um “mapa da atividade cerebral” criado com o uso de novas tecnologias para medir e controlar a atividade elétrica de circuitos cerebrais completos. Como cientistas, sabemos que a finalidade da pesquisa sobre o cérebro é vasta e a Iniciativa BRAIN poderia facilmente transformar-se em uma lista de desejos, tentando satisfazer aos interesses amplos das diversas subdisciplinas da neurociência, reduzindo-se a um complemento aos projetos de neurociência já disponíveis seguidos por muitos laboratórios individuais, que trabalham de forma independente. Se isso ocorrer, o progresso será casual e os principais desafios técnicos nunca serão solucionados. Precisamos de cooperação entre as disciplinas acadêmicas. Construir instrumentos para obter a imagem de voltagem em milhões de neurônios simultaneamente em todas as regiões cerebrais é uma conquista que só pode ser alcançada com esforço contínuo de uma grande equipe interdisciplinar de pesquisadores. Assim, a tecnologia poderia ser oferecida em larga escala, compartilhada pela comunidade neurocientífica. Somos apaixonados por manter o foco em tecnologia nova para gravar, controlar e decodificar os padrões de picos elétricos a linguagem do cérebro. Acreditamos que sem essas novas ferramentas a neurociência permanecerá num gargalo e não conseguirá detectar propriedades emergentes do cérebro por trás de uma série virtualmente infinita de comportamentos. Melhorar a capacidade de compreender e utilizar a linguagem de picos e neurônios é o caminho mais promissor para fazer surgir uma grande teoria de como funciona o órgão mais complexo da natureza.
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Batimentos cardíacos podem enganar percepções Pessoas muito sensíveis a seus estados internos, como a consciência da pulsação do próprio sangue, tendem a ser mais propensas a transtornos de ansiedade e pânico
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ocê sente seu coração batendo? A maior parte das pessoas não consegue, a menos que estejam agitadas ou com medo. Isso ocorre porque, em condições normais, o cérebro disfarça essa percepção para garantir um equilíbrio delicado e necessário: precisamos ser capazes de sentir o músculo cardíaco disparar ocasionalmente para reconhecer o medo ou a excitação. Porém, perceber o ritmo constante na maior parte do tempo nos distrairia demais ou até nos enlouqueceria. Atualmente, várias pesquisas sugerem, no entanto, que, devido à forma como o cérebro compensa (e disfarça) nossos batimentos, ele poderia estar vulnerável a ilusões sensoriais. Cientistas de uma equipe do Instituto de Tecnologia Federal Suíço, em Lausanne, conduziram uma série de estudos com 143 participantes e constataram que os voluntários levavam mais tempo para identificar um objeto que “aparecia e sumia” quando surgia em sincronia com seus batimentos cardíacos. Utilizando uma ressonância magnética funcional, os especialistas notaram também que a atividade na ínsula, uma área cerebral associada à 32
autopercepção, era suprimida quando as pessoas viam essas imagens sincronizadas. Os pesquisadores que conduziram o estudo, publicado em maio de 2016 no Journal of Neuroscience, sugerem que o objeto era suprimido pelo cérebro, pois se “misturava” com todas as outras alterações do corpo que ocorrem com cada batimento cardíaco, das quais não nos damos conta: os olhos fazem movimentos minúsculos, a pressão ocular muda ligeiramente, o tórax se expande e se contrai. “O cérebro ‘sabe’ que o batimento é proveniente da própria pessoa, por isso é como se não se incomodasse com as consequências sensoriais desses sinais”, diz Roy Salomon, um dos autores do estudo. Outra pesquisa já havia mostrado que as pessoas percebem mais prontamente que um órgão ou membro de realidade virtual é realmente o seu próprio quando surge junto a um estímulo que “aparece e some” em sincronia com seus batimentos cardíacos. Na extremidade oposta do espectro estão resultados de es-
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tudos que revelam que as sensações cardíacas podem intensificar o processo de identificação de ameaças. Indivíduos detectam com mais facilidade imagens assustadoras que aparecem ao mesmo tempo que os batimentos cardíacos e as consideram mais intensas. Talvez em razão de um batimento cardíaco perceptível estar frequentemente associado ao medo e à ansiedade, o cérebro tende a confundir o estímulo sincronizado, como se estivesse associado à reação de estresse que nos impulsiona a lutar ou fugir. A descoberta ajuda a explicar por que as pessoas muito sensíveis a seus estados internos, incluindo a consciência de seus batimentos cardíacos, tendem a ser mais propensas a transtornos de ansiedade e pânico. Para a maioria de nós, porém, o coração continua sua labuta sem ser notado – e pode ser que as peculiaridades perceptuais relacionadas também não estejam sendo notadas. (Por Diana Kwon) abril 2017 • mentecérebro 33
saúde mental
Quando os autistas crescem É frequente que empresas busquem profissionais flexíveis, sociáveis, com boa rede de contatos e capacidade de interação – justamente aspectos de que pessoas diagnosticadas com TEA não dispõem. Em compensação, podem ter outras habilidades muito valiosas. Felizmente, alguns projetos têm ajudado a diminuir o preconceito e ampliar as oportunidades para esses jovens por Jennifer Richler
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aria* tem autismo. Sempre teve dificuldade para fazer amigos, mas se saía bem nos estudos, tirava boas notas. A escola onde estudava oferecia serviços de apoio para alunos com distúrbios do desenvolvimento, o que a ajudou a ingressar numa faculdade local. “No entanto, quando esse tipo de suporte cessou após a graduação, ela praticamente desmoronou”, recorda a mãe, Amira. No primeiro mês na universidade, Maria parou de frequentar as aulas e deixou de completar as tarefas. Depois de algum tempo, evitava a todo custo sair do dormitório. Desistiu da faculdade e voltou para casa, passando a permanecer o dia todo no quarto durante 23 horas por dia. A história de Maria não é incomum. Muitos pais comparam a experiência do filho com autismo de sair do ensino médio com a de “cair de um penhasco”. “De forma geral, crianças e adolescentes com necessidades especiais têm mais facilidade de conseguir atendimento em instituições do que os mais velhos”, reconhece Ana Maria Mello, superintendente da Associação de Amigos do Autista (AMA), mãe de um rapaz de 37 anos com comprometimento intelectual pronunciado. “Meu filho mesmo não tem condições de trabalhar, mas mesmo para os que têm mais autonomia, infelizmente, há pouquíssimas opções
A AUTORA JENNIFER RICHLER é doutora em psicologia clínica pela Universidade de Michigan e escritora científica. (Colaboração de Gláucia Leal, editora de Mente e Cérebro) 34
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para esse público.” Na própria AMA, com cerca de 200 funcionários, existem só dois contratados pelo regime de cotas. “Como o próprio nome diz, o transtorno do espectro autista (TEA) aparece em variados graus e, de fato, nem todos estão aptos a trabalhar, mesmo em tarefas simples, como empacotar objetos”, explica a superintendente. Além disso, muitos sequer têm a vontade de seguir alguma atividade profissional; é preciso fazer primeiro um trabalho com os jovens que poderiam seguir um encaminhamento mais autônomo. INTELIGÊNCIA E DIFICULDADE Espera-se que na idade adulta eles estejam qualificados profissionalmente e encontrem uma ocupação que os ajude a obter alguma autonomia. Até recentemente, quase não existia esse tipo de trabalho para um segmento crescente da população: adultos com autismo de alto funcionamento, mesmo em países industrializados. Estudos americanos, aliás, mostram que esse grupo é subempregado em comparação com pessoas com deficiências cognitivas mais graves, o que pode favorecer a solidão e o abatimento emocional. A combinação única entre inteligência comum ou alta e dificuldades ALBERT EINSTEIN apresentou alterações de desenvolvimento na infância que sugerem autismo; ele só aprendeu a falar com 3 anos e não manifestou nenhum sinal de genialidade quando criança
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de compreensão social pode deixar esses jovens adultos em uma situação frustrante: muitos apresentam os mesmos objetivos que seus pares com desenvolvimento considerado típico e, ainda que se esforcem, as oportunidades são raras. Pais, psicólogos, médicos, pesquisadores e educadores reconhecem o problema. Nos últimos anos, surgiram nos Estados Unidos alguns projetos voltados para o atendimento desse grupo negligenciado. Atualmente, por exemplo, Maria está matriculada num plano de estágio em um dos programas mais bem estruturados, o Aspire (veja quadro na pág.38), com base no Hospital Geral de Massachusetts (MGH). Ela trabalha meio período e diz gostar da socialização com os colegas. “Sair, conversar, usar o transporte público tem sido uma grande mudança”, diz Amira. A prevalência da síndrome continua a subir e, cada vez mais, pessoas com o diagnóstico entram na idade adulta. Alguns projetos buscam facilitar essa transição à medida que a pessoa cresce. O espectro do autismo abrange um vasto conjunto de sintomas, mas todos com o diagnóstico têm algo em comum: a falta de facilidade de interação social. Adultos jovens que participam de programas específicos manifestam esses prejuízos de diversas formas. Para muitos, é difícil identificar emoções alheias, discernir o tópico da conversa e a maneira apropriada de se comportar em público ou compreender os próprios sentimentos e as necessidades. Obviamente essas dificuldades pesam muito na hora de encontrar e manter um emprego. Pessoas com outros tipos de problema, como distúrbios da fala e linguagem, dificuldades de aprendizagem e até mesmo deficiência intelectual, apresentam taxas muito mais elevadas de emprego, o que sugere que os números entre os adultos com autismo não podem ser explicados somente pelos prejuízos. “Em geral, as empresas buscam profissionais flexíveis, sociáveis, com boa rede de contatos e capacidade de interação, e é justamente nessas áreas que a pessoa com autismo tem dificuldade”, observa a psicóloga Fernanda Lima, diretora de formação da Specialisterne. A empresa social foi fun-
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saúde mental
“PAIXÃO PELOS DETALHES pode ser muito útil para o mercado”, diz a psicóloga Fernanda Lima (ao lado), diretora de formação da Specialisterne; há um ano no Brasil, programa favorece socialização, prática de habilidades específicas, autoconhecimento e desenvolvimento de técnicas de gerenciamento de estresse
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dada há 13 anos na Dinamarca, quando um diretor do departamento de tecnologia de informação (TI), pai de um menino autista, na ocasião com 7 anos, viu que o filho havia desenhado um complexo índice de um mapa, extremamente preciso, com mais de 500 caracteres, incluindo letras e números – e não havia cometido um erro sequer. Hoje, está em 32 cidades em 15 países, onde possibilitou a colocação profissional de mais de mil pessoas, vinculadas diretamente aos escritórios e por meio de parcerias. A consultoria chegou ao Brasil há um ano e até agora já foram formadas 33 pessoas, 13 delas colocadas no mercado de trabalho e as demais em processo de inclusão porfissional. As contratações ocorreram nas cidades de São Paulo e São Leopoldo e, em breve, no Rio de Janeiro. Mas a proposta é aumentar esse número e, para isso, neste mês (abril) terá início um novo curso de formação em São Paulo, com duração de cinco meses. Em 2015, no Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, foi iniciado um debate na Organização das Nações Unidas (ONU) entre representantes da Specialisterne e as duas maiores empresas mundiais do setor de TI, a SAP e a HP, para apresentar os benefícios de contratar pessoa com TEA. A SAP tem hoje mais de cem contratados e a HP, 37. “A ideia não é que as empresas sejam benevolentes em relação a essas contratações, mas percebam o valor agregado que essa mão de obra especializada oferece”, salienta a psicóloga. Entre as vantagens profissionais de pessoas autistas de alto funcionamento (com os quais a Specialisterne trabalha) estão características como excelente memória, facilidade de raciocínio lógico e de manter a atenção prolongada no desempenho de uma tarefa que outros poderiam considerar desinteressante e tediosa, habilidade para detectar erros e padrões repetitivos, perseverança, honestidade (até pela falta de familiaridade com a dissimulação). “É o que chamamos de ‘paixão pelos detalhes’, que pode ser tão útil para o mercado”, diz Fernanda Lima. A estimativa é que, pelo mundo afora, mais de 80% dos adultos com diagnóstico de autismo estejam fora do mercado de trabalho. “O fato é que, apesar das iniciativas
que temos hoje, esses jovens estão em alto risco, principalmente após a saída do ensino médio, um período atribulado em que devem encontrar maneiras de participar do mundo do trabalho e da vida acadêmica”, afirma o psicólogo Paul Shattuck, professor na Universidade Drexel. Segundo ele, essa situação existe, em parte, porque os serviços de apoio foram criados levando em conta as necessidades de pessoas com deficiência intelectual, e não evoluiu muito ao longo do tempo. “Quem tem quociente intelectual (QI) mediano, mesmo que apresente dificuldades e peculiaridades na interação social, raramente consegue ajuda”, diz. Isso é realidade para abril 2017 • mentecérebro 37
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Pessoas que precisam de pessoas Um rapaz de 19 anos, de pele clara e cabelos escuros, chamado Mateus, permanece no centro de um círculo, cercado por seus pares sentados em cadeiras dobráveis. “Preciso ganhar dinheiro rapidamente. O que devo fazer?”, pergunta. “Roubar todo o ouro da cidade... ou assaltar um banco em Paris!”, exclama Dani. “Trabalhar turnos de 24 horas para o resto da vida”, Nicolas sugere. “Vender os braços e as pernas”, diz Jane, que escuta muitas risadas. Esses jovens adultos com autismo participam de um jogo de improvisação chamado Bad advice (mau conselho), promovido no Aspire. A pessoa no centro do círculo apresenta um problema a ser resolvido, enquanto o restante tenta chegar à pior sugestão possível. Além de ser uma atividade divertida para “quebrar o gelo”, o exercício oferece o conceito de “prós e contras” sociais; a premissa é que ensinar como não se comportar em situações coletivas registra nos participantes, de maneira implícita, como devem agir. Depois, começa mais uma sessão de grupo Excursões de Sábado do Aspire. Para a maioria dos clientes, os encontros proporcionam um passeio extremamente necessário. Embora muitos com autismo sejam considerados distantes e desinteressados na socialização, para outros tantos, o oposto é verdadeiro. Um estudo da Universidade do Missouri com adultos diagnosticados com a síndrome, publicado em abril passado, revela que uma boa parte sofre com a solidão e o isolamento, o que pode levar à depressão e à ansiedade. O afastamento social pode ser grave: um estudo nacional feito com adolescentes com autismo, publicado em 2011, mostra que mais da metade não havia se aproximado de um amigo no ano anterior. E, quando outro grupo de pesquisadores perguntou aos pais de adultos com a síndrome sobre 38
necessidades não atendidas dos filhos, muitos citaram a interação coletiva. Um grande número de autistas nessa idade anseia se relacionar socialmente, mas não sabe como. A excursão oferece uma oportunidade não só de desfrutar da companhia um do outro, mas de praticar habilidades em que os jovens adultos têm dificuldade, como o que a equipe chama de “atividades cotidianas” – tarefas como organizar um passeio e gerir tempo e dinheiro. Após o jogo de improvisação e antes que o grupo sinta o vento de primavera no início da tarde, os profissionais da Aspire lembram a todos que vão assistir a um filme no centro da cidade durante a semana. Eles reveem a programação para o dia, verificam a rota de metrô para o cinema e distribuem carteiras com cartões de débito pré-carregados e bilhetes de metrô. No caminho de ida e volta do teatro, há bastante tempo para praticar outra habilidade essencial: a conversa. Dan, um jovem com o cabelo muito rente e óculos de sol, pergunta a data de aniversário dos colegas para ler o horóscopo num aplicativo de smartphone. Atualmente, as saídas são tranquilas. Depois do evento, todos costumam se reunir para discutir os “altos e baixos”. (Consenso: assistir ao filme Lego foi considerado positivo; Caminhar contra o vento, negativo.) No entanto, há percalços ocasionais. Em uma viagem para o Arsenal da Marinha, com um grupo diferente, um dos membros, cansado de caminhar, se deitou para descansar em uma cama a bordo de um navio. Essas situações complicadas podem ser uma boa oportunidade de discutir comportamentos sociais adequados – por exemplo, explicando que, em algumas ocasiões, é necessário agir de forma diferente em público e no privado. O programa Aspire realiza a maior parte das intervenções coletivamente, em vez de
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trabalhar no caso a caso. “Acreditamos que ações individuais não são desafiadoras; entendemos que o grupo é um dos lugares mais poderosos para aprender aptidões”, observa o psicólogo Scott McLeod. Ao mesmo tempo, esse contexto é possível causar mais segurança e previsibilidade do que diversas situações cotidianas, o que pode permitir que os clientes se sintam menos apreensivos e pratiquem habilidades que talvez de outra forma não os deixassem à vontade. “A razão de não demonstrar determinada capacidade social, em geral, se deve a fatores muito mais complexos do que apenas não ter tal habilidade”, completa. Em muitos casos, outras questões pesam, como ansiedade, dificuldade de compreender a perspectiva alheia ou simplesmente não assimilar o propósito de certos comportamentos coletivos. É por isso que o Aspire evita simplesmente desenvolver aptidões nos clientes, uma abordagem que, segundo McLeod, “falhou completamente”.
Poucos estudos (e distantes entre si) abordam a melhor forma de ajudar adultos com autismo a aprender e a praticar habilidades sociais. O programa desenvolveu um estilo de trabalho a partir de diversos métodos com base em evidências psicológicas. Um tutor enfatiza os pontos fortes do cliente e oferece comentários positivos e negativos, uma técnica apoiada nos princípios da psicologia positiva. Eles também encorajam os participantes a raciocinar sobre os pensamentos e sentimentos subjacentes ao comportamento alheio e próprio, um princípio central da terapia cognitivo-comportamental. “A premissa é que podemos aprender aptidões coletivas por meio da troca com os pares, respeitando o próprio tempo e o do outro. Mas, se não temos ideia do que está em jogo, isso se torna superficial. Tudo se desfaz ao encararmos uma situação diferente”, argumenta Dot Lucci. “Por isso, propomos algo diferente.” abril 2017 • mentecérebro 39
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SUCESSO PROFISSIONAL: Temple Grandin, de 69 anos, diagnosticada com autismo na infância, é Ph.D. em ciência animal, professora universitária e projetista de equipamentos e instalações para agropecuária
muitos adultos que participam do Aspire. Apesar de o rótulo “síndrome de Asperger” não estar mais incluído no DSM-5, o manual psiquiátrico de transtornos mentais, muitos clientes do programa carregam esse diagnóstico ou se identificam com ele. Outros preferem autismo de alto funcionamento ou TID, que se refere ao transtorno invasivo do desenvolvimento, outro termo que não aparece mais no DSM, mas está associado a um nível relativamente alto de habilidades. Mesmo quando essas pessoas encontram emprego, em geral as empresas costumam oferecer regime de voluntariado ou de meio período. Um levantamento mostrou que apenas 27 dos 48 participantes da amostra já haviam trabalhado desde o ensino médio; destes, apenas um era capaz de se sustentar. Já o Aspire, não disponível no Brasil, foi lançado há 12 anos, quando se separou do YouthCare (um programa de assistência a jovens), um projeto maior, que atende crianças com diversos tipos de problemas de saúde mental. O psicólogo clínico e diretor-executivo do Aspire, Scott McLeod, esclarece que o número de diagnósticos havia aumentado. E a YouthCare recebia muitos casos de pacientes no espectro. Os conselheiros decidiram, então, que precisavam de um programa voltado exclusivamente para o autismo. Segundo a psicóloga escolar e diretora do programa, Dot Lucci, o objetivo é abor40
NO TRABALHO Alex se senta à mesa em uma conferência ao lado de seu supervisor, Kevin Heffernan. Ele está chegando ao fim de seu estágio de 14 semanas na divisão de Imobiliário Corporativo da Liberty Mutual. O rapaz conseguiu a vaga por meio do programa Aspire, que coloca profissionalmente jovens adultos com autismo em empresas nos arredores de Boston, além de oferecer apoio e orientação. Alex está entusiasmado com a experiência. “A oportunidade me deu um motivo para acordar”, diz. A experiência também lhe ensinou habilidades de trabalho essenciais, como fazer tabelas dinâmicas no Excel, algo de que se orgulha muito, a julgar pelo sorriso tímido em seu rosto quando menciona isso. Heffernan conta que assim que terminar o estágio o garoto pode se candidatar a alguns cargos na empresa, e tem boas chances de conseguir uma vaga. “O céu é o limite para ele”, diz sorrindo. Não é somente sua capacidade de trabalho que impressiona o supervisor, mas também a forma como interage com os colegas. Antes de Alex começar a trabalhar, Heffernan foi avisado de que o rapaz era tímido e ficava ansioso em algumas situações sociais. “Meu radar ficava ligado”, admite o patrão. Mas com o tempo Alex foi se sentindo mais à vontade com os colegas de trabalho. “Ele está indo muito bem, obrigado”, comemora Heffernan. Estudos sobre programas de treinamento profissional para pessoas com autismo, embora preliminares, sugerem que a abordagem pode ajudar os mais crescidos, como Alex, a ter sucesso. Por exemplo, em um ensaio clínico do programa de transição do en-
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dar o que a equipe do Aspire chama de três S: self-awareness (autoconhecimento), social competency (competência social) e stress management (gestão do estresse). Ela afirma que muitos que participam do projeto são brilhantes. “Mas, se você não é consciente de si nem apto socialmente e é incapaz de lidar com a ansiedade, nem toda inteligência do mundo pode ajudar. Nessas condições, dificilmente a pessoa será capaz de conseguir se manter um emprego ou permanecer num relacionamento”, argumenta.
sino médio – projeto SEARCH, que atende adultos com a síndrome nos Estados Unidos, os participantes completaram um programa de estágio de nove meses incorporado em um negócio grande da comunidade, como um hospital, por exemplo, em que passaram por diferentes postos de trabalho e aprenderam diversas habilidades práticas, como usar o transporte público para chegar ao local. Eles tiveram também apoio individualizado de especialistas em autismo. Enquanto isso, o grupo de controle recebeu os serviços-padrão prestados pela escola. Os dados são animadores: dos 24 adultos que concluíram o estágio, 21 conseguiram um emprego, em comparação com apenas um dos 16 entre os outros voluntários. Essa diferença se manteve por três meses. E talvez ainda mais importante: os que participaram do programa ganharam independência ao longo do tempo – isto é, precisavam cada vez menos de suporte – o que, infelizmente, não foi observado no grupo de controle. O projeto oferece orientação, atividades sociais em grupo e oportunidades de estágio. O Aspire dispõe também de serviços que
Muitos projetos usam atividades em grupo que auxiliam quem tem a síndrome a circular melhor em contextos sociais; a partir daí, podem generalizar essas habilidades para o cotidiano
facilitam a aproximação entre os estudantes, como o acampamento de verão do primeiro ano, em que os alunos têm a oportunidade de desenvolver habilidades práticas relacionadas à vida no campus. Assim que ingressam na faculdade, podem se inscrever no programa de tutoria do Aspire. Cada participante conhece um universitário bem articulado no campus, com quem forma um par. Esse aluno ajuda a pessoa com autismo a se familiarizar com os serviços e principais recursos, oferecendo suporte contínuo. Para quem tem deficiência intelectual, programas como Next Steps (próximos passos), da Universidade Vanderbilt, permitem que os alunos tenham aulas ao lado de co-
Anatomia cerebral do autismo A atividade dos neurônios-espelhos é reduzida no córtex pré-motor de autistas, o que talvez explique a dificuldade deles para perceber intenções alheias. Disfunções dessas células nervosas no córtex do giro do cíngulo anterior e no córtex insular possivelmente são a causa de sintomas afins, como ausência de empatia. Deficiências no giro angular podem redundar em problemas de linguagem. Quem sofre do distúrbio costuma apresentar alterações estruturais no cerebelo e no tronco encefálico.
Córtex cingulado anterior Controla empatia e outras emoções
Córtex pré-motor Controla movimentos e percebe intenções
Giro angular Processa informacões sensoriais e compreensão de linguagem
Córtex insular Relaciona-se com a dor e com reações de desagrado
Cerebelo Tronco encefálico
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saúde mental
legas, aprendam competências profissionais e sociais e ganhem um certificado após dois anos. Nos Estados Unidos, outras iniciativas para adultos com a síndrome também focam o emprego e a educação continuada. Um exemplo é o Programa de Estágio da Faculdade, com base em Indiana, Califórnia, Massachusetts e Nova York, voltado para estudantes universitários no espectro do autismo que não apresentam prejuízos intelectuais. O projeto SEARCH também atende esse perfil ou quem apresenta qualquer prejuízo significativo no desenvolvimento. É importante fazer essas distinções por causa da grande variabilidade de funcionamento de pessoas com autismo. Não é fácil oferecer tratamento a essa população tendo em vista a heterogeneidade dentro do espectro. Dife42
renciar os casos também ajuda a assegurar programas de financiamento – a maioria vem de doações filantrópicas privadas, o que permite oferecer auxílio financeiro às famílias dos clientes. Esses programas favorecem não só conseguir emprego, mas também mantê-lo com sucesso, o que, muitas vezes, exige ter de lidar com situações delicadas. Um dos estagiários do Aspire se mostrou bastante angustiado, por exemplo, depois de encontrar um colega de trabalho de etnia diferente da sua. Disse ao supervisor que não poderia trabalhar com essa pessoa porque já havia passado por uma experiência negativa com alguém da mesma cultura. Ana Maria Mello, da AMA, também se lembra de que, em uma entrevista de um candidato a uma vaga de emprego, ouviu do rapaz que nove horas era “muito cedo” para começar a trabalhar e ele não gostava de acordar cedo. “Sincero e sem rodeios”, comenta. Essas situações podem ser desconfortáveis, mas McLeod enxerga isso como uma ótima oportunidade de aprender onde mais importa: na hora e na vida real. De fato, “fazer intervenções no cotidiano”, como ele mesmo diz, é a chave da abordagem do Aspire. “Um dos principais desafios para quem tem a síndrome é a transferência e generalização das habilidades”, argumenta. Ele acredita que compreender a perspectiva do outro pode fazer sentido num consultório terapêutico, mas ser algo extremamente difícil de praticar na vida diária. DE OLHO NO FUTURO Maria se senta com um pequeno grupo de homens e mulheres jovens à mesa numa sala de reuniões, esperando começar o seminário semanal de estágio. Ela conversa com uma garota morena e sorridente chamada Nicole enquanto os outros verificam os smartphones. Um quadro de avisos na parede tem um papel que diz: “Eu almejo...”. Logo ao lado, há algumas estrelas desenhadas com metas escritas pelos clientes, desde sonhos a coisas simples: “Seja um piloto da Nascar”; “Chegue ao trabalho cinco minutos antes”; “Pergunte aos outros sobre seus interesses”. O psicólogo clínico Bretton Mulder, diretor do
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A ansiedade costuma ser um obstáculo para quem tem o distúrbio; por isso, é importante que essas pessoas aprendam métodos como meditação, ioga e rotina de exercícios, que as ajudem a relaxar
departamento de adolescentes e jovens adultos do Aspire, começa a sessão perguntando aos estagiários como foram as coisas nas primeiras duas semanas de trabalho. Maria se queixa de que levou duas horas para pegar seu crachá de segurança na MGH, onde tem atuado na área de gestão de materiais. Outros mencionam problemas de tráfego ou da socialização por meio da música. Depois de ouvir o grupo, Mulder discute maneiras de distinguir comentários relacionados ao tema na hora de participar de reuniões. Fala também sobre a importância de evitar julgar colegas de trabalho com base na aparência ou no nível de educação, por exemplo. Durante a reunião, sem se dar conta, Nicole interrompe seus companheiros, mas logo em seguida percebe. Coloca uma das mãos sobre a boca e gentilmente sinaliza com a outra na direção de quem estava na vez de falar, como se dissesse, “Opa... vá em frente”. McLeod destaca que para muitas pessoas com a síndrome é um desafio demonstrar esse nível de autoconsciência exemplificado por Nicole. “No autismo, a dificuldade de compreender a perspectiva alheia pode vir acompanhada da confusão entre si e o outro”, explica. Para ajudar os participantes do Aspire e de outros programas a descobrir a própria identidade, os tutores os incentivam a refletir sobre suas forças, fraquezas, seus pensamentos e sentimentos. Um processo que pode levar a importantes compreensões: “Sou uma pessoa brilhante, mas que costuma reagir intensamente a certos estímulos sensoriais”, exemplifica McLeod. Os clientes são encorajados a partilhar esses aspectos relevantes da personalidade com amigos ou colegas de trabalho, o que tende a favorecer a aceitação e compreensão mais rapidamente. Considerando a autoconsciência como base mental e as habilidades sociais aplicadas como componentes práticos, um terceiro fator, não raro deixado de lado, mas crucial para auxiliar adultos no espectro do autismo, é a capacidade de lidar com o estresse. Muitos projetos, incluindo o Aspire, ensinam a seus clientes técnicas da meditação mindfulness e ioga, por exemplo. Os dados preliminares indicam que, com esses
três pilares, muitos clientes conseguem arrumar um trabalho e, em algum momento, dispensar os programas de apoio. No entanto, a prevalência do transtorno continua crescendo. Uma em cada 68 crianças tem autismo, segundo estimativas de 2010 dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), um aumento de 30% em relação aos números publicados em 2008. Pesquisas recentes sugerem que uma das principais razões dessa diferença se deve ao diagnóstico mais frequente precisamente do perfil atendido pelo Aspire: pessoas cognitivamente mais capazes. Embora o projeto ainda não tenha mensurado os resultados, os dados da pesquisa sugerem que os clientes e suas famílias estão bem satisfeitos. Para algumas pessoas como Maria, o programa tem sido uma espécie de bote salva-vidas. O estágio na MGH pode não ser o emprego dos sonhos. “Qualquer um pode fazer isso”, ela diz a seus colegas com naturalidade durante o seminário de estágio. No entanto, Maria encara isso como um grande passo em direção ao seu objetivo de longo prazo, que é ser paramédica. E, talvez mais importante, Amira conta que a equipe ajuda a filha a se sentir “respeitada e admirada. Essas pessoas enxergam as possibilidades e o potencial que ela tem”. Como resultado, a perspectiva de Maria mudou drasticamente. “Ela costumava dizer que não tinha futuro”, desabafa a mãe. “Agora, minha filha faz planos.” *Os nomes dos personagens foram alterados para proteger a privacidade das pessoas ouvidas.
PARA SABER MAIS Competitive employment for youth with autism spectrum disorders: early results from a randomized clinical trial. Paul H. Wehman e outros, em Journal of Autism and Developmental Disorders, vol. 44, nº 3, págs. 487500; março de 2014. When children with autism become adults. Fred R. Volkmar e Julie M. Wolf, em World Psychiatry, vol. 12, nº 1, págs. 78-80; fevereiro de 2013. Autism, grown up: autistic and seeking a place in an adult world. Amy Harmon, em The New York Times, 18 de setembro de 2011.
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neurociência
Proteínas perigosas
Preocupados com o aumento de casos de doenças neurodegenerativas associadas ao avanço da idade, como Parkinson e Alzheimer, pesquisadores se concentram em decifrar o mecanismo de transferência de substâncias deformadas, na esperança de encontrar novos tratamentos
O
primeiro passo para tratar ou prevenir uma doença frequentemente é descobrir sua etiologia, ou seja, sua origem, o que a provoca. No caso de disfunções neurodegenerativas, a descoberta do que as alimenta, feita há duas décadas, mudou muita coisa em relação ao que os cientistas imaginavam até então: todos esses quadros considerados graves e ainda hoje sem cura – incluindo Alzheimer, Parkinson, Huntington e a esclerose lateral amiotrófica (ELA ou doença de Lou Gehrig) – envolvem o acúmulo de proteínas “defeituosas” em células cerebrais (como se estivessem “mal dobradas”). Normalmente, quando uma proteína se dobra erroneamente, a célula a destrói, mas, à medida que uma pessoa envelhece, esse mecanismo de controle de qualidade começa a falhar e proteínas deformadas tendem a se acumular. Na doença de Huntington, por exemplo, a proteína huntingtina, utilizada para muitas funções celulares, dobra mal e se acumula. Sintomas como dificuldades musculares, irritabilidade, diminuição da memória, falta de controle de impulsos e deterioração cognitiva acompanham esse processo.
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Evidências crescentes sugerem que o acúmulo de proteínas mal dobradas não só marca doenças neurodegenerativas, mas também que a transmissão dessas proteínas de uma célula a outra faz com que a doença progrida. Pesquisadores observaram migração de proteínas mal dobradas entre células nas doenças de Alzheimer e Parkinson. Diversos experimentos relatados na revista científica Nature Neuroscience sugerem que o mesmo processo se aplica à doença de Huntington. Em testes, pesquisadores suíços mostraram que a proteína huntingtina que passou por mutação em tecido cerebral doente pode invadir tecido cerebral saudável quando os dois são colocados juntos. E quando a equipe injetou a proteína alterada no cérebro de um camundongo vivo, ela se espalhou através dos neurônios em um mês – mais ou menos como príons se espalham, explica o cientista Francesco Paolo Di Giorgio, coordenador do estudo, do Institutos Novartis para Pesquisa Biomédica em Basileia, na Suíça. Príons são proteínas defeituosas que viajam pelo organismo afetando outras proteínas, como obser-
thomas deerinck science source
vado na doença da vaca louca. Mas, de acordo com Di Giorgio, não se sabe se as substâncias envolvidas na doença de Huntington de fato “convertem” outras proteínas, como fazem príons “verdadeiros”. “Cientistas ainda precisam determinar se o movimento de proteínas ruins é essencial para a progressão da doença”, diz o cientista Albert La Spada, geneticista da Universidade da Califórnia em San Diego, que não participou do estudo. Mas, se ficar provado que o deslocamento delas pelo organismo é essencial, então terapias talvez possam visar esse caminho. “Se conseguirmos descobrir como esse processo ocorre, talvez sejamos capazes de desenvolver tratamentos para evitar isso”, acredita La Spada. Além disso, esses tratamentos poderiam ser potencialmente aplicáveis a outras doenças neurodegenerativas. O próximo passo é crucial: pesquisadores
tentarão bloquear a disseminação de proteínas mal dobradas e examinarão se isso alivia os sintomas ou retarda a progressão da doença. Encontrar terapias para essas doenças é fundamental, já que atualmente não há nada a fazer diante da morte das células produtoras da dopamina na substância negra. A grande arma da medicina para combater o Parkinson, por exemplo, por enquanto são medicações e cirurgias, além de fisioterapia, terapia ocupacional e, quando necessário, fonoaudiologia. Mas todas essas medidas agem apenas sobre os sintomas. Segundo a Associação Brasil Parkinson, uma em cada cem pessoas com mais de 65 anos tem a doença. Aproximadamente 50 mil novos casos de Parkinson são diagnosticados todos os anos só nos Estados Unidos, e especialistas estimam que essa prevalência no mínimo dobrará até 2030 devido ao envelhecimento populacional.
“MAL DOBRADAS”: acúmulo de proteínas em células cerebrais
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ciência para viver melhor
Hora de
dormir!
A excessiva carga de trabalho e os apelos (implícitos ou explícitos) da vida moderna para que as pessoas permaneçam acordadas “sequestram” valiosas horas de descanso. Por isso mesmo, assumir conscientemente a responsabilidade pela qualidade do próprio sono pode ser fundamental para a saúde física e mental. Para isso, porém, é preciso mudar alguns hábitos bastante arraigados. Aceita o desafio? Por John Pavlus, jornalista científico
A
privação de sono é um problema cada vez mais comum em todo o planeta. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), no mundo uma em cada três pessoas tem dificuldade para dormir. Poderíamos atribuir a responsabilidade por essa dificuldade – que muitas vezes se traduz num sintoma – aos inúmeros estímulos que a energia elétrica e as inovações tecnológicas nos proporcionam ou mesmo à enorme carga de trabalho de muita gente. As causas sociais e culturais da falta de sono são inegáveis, mas revelam apenas uma parte da questão. A responsabilidade pela qualidade é também pessoal e intransferível: embora muitos reclamem das noites maldormidas e milhões recorram ao uso de medicações, em grande parte dos casos os hábitos na hora de apagar a luz e abandonar-se nos “braços de Morfeu” (o deus dos sonhos, na mitologia grega) não costumam ser dos melhores. Não raro, deixamos para o momento valioso, que antecede o adormecer, atividades (como checar redes sociais) que terminam roubando boa parte de nossa disposição para dormir. 46
shutterstock
Cientistas sabem atualmente que as consequências das noites maldormidas são sentidas tanto no corpo quanto na mente (veja quadro na pág. 48). Vários estudos já têm associado o sono desregulado ao envelhecimento acelerado, ao aumento do risco de obesidade e a alterações prejudiciais no sistema imunológico e cardiovascular. A boa notícia é que em muitas situações – que não envolvem patologias específicas, em que a insônia é um sintoma – dormir melhor pode ser mais simples do que parece. Prestar atenção em alguns hábitos e comportamentos pode marcar a diferença entre acordar descansado e disposto no dia seguinte ou sentir como se o mundo estivesse desabando sobre sua cabeça no momento em que o despertador toca de manhã.
Leve a sério a iluminação. Ler em tela eletrônica pouco antes de pegar no sono pode inibir a produção de melatonina, um hormônio que ajuda a nos embalar para esse momento. Mas, embora seja verdade que aparelhos digitais possam imitar o efeito da claridade do dia e influenciar o tempo do relógio interno do corpo, o neurocientista Russell Foster, da Universidade de Oxford, que há anos estuda os ritmos circadianos, observa que, no final das contas, a quantidade de luz importa mais do que a qualidade. “A luminosidade provoca um efeito de alerta no cérebro, mas a intensidade da luminosidade que esses dispositivos eletrônicos portáteis emitem é relativamente baixa”, argumenta Foster. “Realmente, para algumas pessoas a luz dos aparelhos interfere bastanabril 2017 • mentecérebro 47
ciência para viver melhor
Passar noites em claro tem vários efeitos, inclusive sobre nossa capacidade de concentração, resolução de problemas e aprendizagem. “Um adulto em estado de vigília contínua por 21 horas tem aptidões equivalentes às de alguém alcoolizado a ponto de ser legalmente impedido de dirigir”, afirma o professor Sean Drummond, da Universidade da Califórnia em San Diego. Segundo ele, passar duas ou três noites seguidas dormindo tarde e acordando cedo pode provocar o mesmo efeito. Ou seja, do ponto de vista da cognição, é como se dormir bem (obviamente sem excessos) nos tornasse mais inteligentes – pelo menos mais do que podemos ser quando passamos tempo demais acordados. Uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Lübeck, na Alemanha, com 191 adultos mostrou que dormir bem durante a noite é fundamental para nos lembrarmos melhor do que aprendemos. Isso ocorre porque durante o descanso ocorre a síntese de proteínas responsáveis pelo desenvolvimento de conexões neurais, o que aprimora habilidades como a memória. Quando dormimos, nosso cérebro seleciona as informações acumuladas, guardando aquilo que considera importante, descartando o supérfluo e fixando, assim, lições que aprendemos ao longo do dia. Por esse motivo, quem dorme mal, geralmente, tem dificuldade em lembrar-se de situações simples, como episódios ocorridos no dia anterior ou nomes de pessoas próximas. (Da redação)
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Tome “banhos de fótons” de manhã. As mesmas células dos olhos que dependem de luz baixa para facilitar o sono também necessitam de uma exposição de brilho logo cedo para voltar a sincronizar o ritmo circadiano. “O ciclo do corpo humano dura um pouco mais de 24 horas; por isso, sem esse efeito estabilizador da luminosidade matinal, nosso relógio interno começa a oscilar”, explica Foster. Em outras palavras, isso pode nos levar a ir para a cama cada vez mais tarde, ainda que tenhamos de acordar no mesmo horário todas as manhãs, o que, gradualmente, provoca um acúmulo de déficit de sono. O melhor remédio para combater isso é a luz natural do começo do dia. Mas, se o emprego, a geografia ou os filhos obrigam você a se levantar antes do amanhecer, procure aumentar a intensidade luminosa da casa ao máximo possível até a hora em que puder tomar sol de verdade. Deixar as janelas abertas para que os primeiros raios dos dias entrem no quarto, por exemplo, costuma ser uma medida simples e eficiente. A maioria das lâmpadas de ambientes internos tem pelo menos o mesmo brilho que o céu ao amanhe-
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Uma soneca para ficar mais inteligente
te no descanso, mas não podemos deixar de lado o fato de que, ironicamente, a última coisa que a maioria de nós faz antes de ir para a cama é acender as lâmpadas mais potentes do banheiro enquanto escova os dentes, o que às vezes é até mais prejudicial ao sono.” Além de preferir a leitura em papel às telas digitais (pelo menos à noite), uma providência útil, portanto, pode ser investir na instalação de um regulador de luminosidade. Outra opção é se preparar com uma antecedência de uma hora a 30 minutos antes do horário que planeja realmente adormecer e começar a apagar as lâmpadas, mantendo apenas luminárias ligadas, inclusive no banheiro, no momento da higiene bucal ou mesmo do banho. Seja lá o que decidir fazer, busque minimizar a exposição à luz.
cer – entre 400 e 1000 lux (unidade científica para medir a iluminância). Foster recomenda “tomar banhos” de 1000 a 2000 lux na parte da manhã. Isso ajuda a garantir o estado de alerta e a acertar o relógio biológico para ter uma diminuição adequada do ritmo no final da tarde. Se desejar maior rigor, é possível baixar aplicativos para smartphones que medem a luminosidade por metro quadrado e apontam exatamente a quantidade de luz em cada ponto da casa.
Aprimore seus sonhos. As funções oníricas provocam polêmicas, mas alguns estudos recentes têm mostrado que os sonhos de fato podem nos ajudar a aprender e a encontrar soluções para problemas do dia a dia. Uma dessas pesquisas, conduzida pelo bioquímico Robert Stickgold, diretor do Centro do Sono e da Cognição da Escola de Medicina Harvard, mostra que voluntários que foram orientados a encontrar a saída de um labirinto se saíram melhor quando haviam sonhado anteriormente com conteúdos relacionados à tarefa. E o sonho lúcido (em que a pessoa se torna capaz de controlar a experiência sem acordar) pode ajudar a aumentar a produção de insights oníricos e diminuir os efeitos da ansiedade. “Diversos trabalhos científicos indicam que pessoas que têm um sonho lúcido por mês ou mais são mais resistentes para enfrentar eventos estressantes”, diz o psicólogo Tore Nielsen, da Universidade de Montreal, pesquisador do sono. Segundo ele, podemos nos preparar para ter essa experiência de forma espontânea, cultivando o hábito de nos perguntarmos durante o dia: “Estou sonhando?”. A tendência é que façamos o mesmo dormindo, o que pode nos permitir perceber o que acontece e assumir o controle. “Evidências mostram que podemos voar, explorar ideias criativas e lidar com pesadelos nessas circunstâncias de forma lúcida”, afirma. Nielsen salienta, porém, que é importante insistir em prestar atenção aos so-
nhos. Registrar o que sonhamos e refletir sobre os significados cifrados que se apresentam também pode ser muito útil na resolução de problemas – por isso, ajudaria bastante deixar papel e caneta perto da cama. Com frequência, psicanalistas ajudam seus pacientes a obter compreensões bastante aprofundadas sobre aspectos psíquicos com base na análise dos sonhos que lhes são relatados.
Vá para a cama antes. Enquanto pesquisava para produzir este artigo, encontrei uma quantidade aparentemente inesgotável de truques para melhorar o sono, desde um “cochilo de cafeína” ao meio-dia (beber uma xícara de café e depois dormir por 20 minutos) até manter um pé para fora das cobertas durante a noite. Mas, segundo Stickgold, a coisa pode ser até mais simples. “Recomendo às pessoas que façam uma experiência: ir para a cama 30 minutos mais cedo do que o habitual, a cada noite, por uma semana”, diz. Se você costuma se deitar à meia-noite, por exemplo, passe para 23h30 e assim por diante, até conseguir dormir (ou pelo menos estar pronto para dormir) às 20h30. “Se depois desse período estiver três horas e meia “para trás” em tudo, então interrompa a experiência; mas aposto que isso não acontecerá, é mais provável que a pessoa esteja mais eficiente, bem-disposta e com esse tempo extra para dormir”, acredita o bioquímico. Talvez atitudes como deixar de lado o celular, desligar a televisão, reduzir a luminosidade, acordar com luz natural entrando pela janela, prestar atenção nos próprios sonhos e se propor a deitar mais cedo pareçam banais demais – e até nos remetam à rotina de nossos antepassados. Mas cientistas garantem que podem realmente funcionar. Leia mais sobre o tema na edição especial de Mente e Cérebro 58, A ciência do sono, em versão digital. Veja como baixar seu exemplar em www.mentecerebro.com.br. abril 2017 • mentecérebro 49
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A história das crianças que
aprenderam a enxergar
A Índia tem uma das maiores populações infantis com problema de visão, algo em torno de 400 mil. Muitos desses meninos e meninas não recebem educação e, com frequência, são vítimas de abuso físico e sexual. Cirurgias corretivas feitas até mesmo em pacientes com mais de 20 anos permitem que inúmeras pessoas recuperem essa capacidade e ajudam cientistas a compreender melhor como o cérebro processa a visão por Pawan Sinha
O AUTOR PAWAN SINHA é doutor em neurociência computacional, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). 50
M
inha mãe costumava manter uma pequena tigela de vidro azul com trocados perto da porta da nossa casa, em Nova Déli. Ao sair,ela pegava algumas moedas como esmola para pobres que viviam nas ruas da cidade. Devido à rapidez com que qualquer um pode se tornar insensível à abundância de miséria humana na Índia, sempre fiquei impressionado com a adesão inabalável dela a esse ritual. A tigela ficou sem uso por meses, enquanto minha mãe lutava contra o câncer. Quando voltei para a Índia, em 2002, um ano após sua morte, percebi que era um dos poucos itens dela que o meu pai havia conservado. E mal sabia que isso mudaria a minha vida. Numa tarde de inverno, durante minha visita, ao sair de casa para encontrar um amigo busquei algumas moedas na tigela e as coloquei no bolso. Estava muito frio e fiquei feliz em encontrar um táxi com as janelas que fechavam bem, coisa rara em Nova Déli. Após alguns minutos o táxi parou em um cruzamento. Surpreendentemente, havia pouco tráfego e notei uma pequena família
imagens cortesia do projeto prakash
amontoada ao lado da rua. Tirei as moedas, abri a janela e acenei para eles. Lentamente vieram até mim, com as duas crianças segurando o sári da mulher. Foi angustiante ver as crianças descalças e magras vestidas com trapos de algodão fino. Para agravar meu desconforto notei que as crianças, com seis ou sete anos de idade, também eram cegas. Enquanto a pequena família tremia fora do meu táxi, pude observar a catarata nos olhos das crianças. Isso me surpreendeu, porque só tinha visto essa degeneração em pessoas idosas. O sinal abriu. Depositei as moedas na mão da mulher e observei a família desaparecer enquanto o táxi se afastava. Nos dias seguintes os rostos das crianças me assombraram. Tentei saber o máximo que pude sobre a cegueira infantil na Índia e o que li foi chocante.
A Índia abriga uma das maiores populações de crianças cegas do mundo, estimadas em cerca de 400 mil. A deficiência visual, aliada à pobreza, compromete profundamente a qualidade de vida das crianças; além disso, as taxas de mortalidade são extremamente altas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que até 60% das crianças morrem um ano após ficarem cegas. Menos de 10% dessas crianças recebem educação. Para as meninas cegas o panorama é ainda mais terrível. Muitas ficam confinadas em casa e sofrem abuso físico ou sexual. Esses números angustiantes tornaram-se ainda mais preocupantes para mim quando li que grande parte do sofrimento era desnecessário; a cegueira em cerca de 40% das crianças é tratável ou evitável. Muitos jovens, no entanto, nunca recebem atendimento médico. As
ESCOLAS PARA CEGOS na Índia ajudam a encontrar crianças candidatas à cirurgia de correção da visão
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sentidos
O Projeto Prakash ajuda a delinear o cenário do que pode ou não ser conseguido quando uma criança ganha visão em idade tardia instalações de tratamento estão concentradas nas grandes cidades e quase 70% da população da Índia vive em vilarejos. Essas circunstâncias significam que uma criança cega em uma família rural pobre está destinada a viver uma vida escura e tragicamente curta. Absorvi esses números com uma sensação de incredulidade. Afinal, eu havia crescido na Índia. Como pude ter permanecido alheio a esse drama? E como essas cenas podem manifestar-se tão contrariamente à narrativa popular da Índia como uma superpotência econômica emergente? Decidi fazer outra viagem para o país. Visitei aldeias em torno de Déli, no estado sulino de Andhra Pradesh e no delta do Ganges, em Bengala Ocidental. As muitas crianças cegas que conheci me convenceram de que as estatísticas foram baseadas em fatos. A pobreza desesperada que testemunhei nessas aldeias me ajudou a entender por que tantas crianças ficavam sem tratamento. Minha experiência naquela tarde de inverno, em Nova Déli, marcou o início de uma jornada pessoal que ainda não terminou. Como cirurgião resolvi ajudar essas crianças cegas a recuperar a visão. Como cientista percebi que isso representava uma oportunidade valiosa para responder a uma das questões mais desafiadoras da neurociência: como o cérebro aprende a ver? A RESPOSTA EM UMA PERGUNTA Desde meus dias de pós-graduação no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) essa questão tanto me fascinava quanto frustrava. Como é que estímulos desordenados de cores, brilhos e texturas que colidem com a retina a cada momento se organizam em um conjunto significativo de objetos que se transforma em, digamos, os contornos dos braços e torso de uma garota dançando – e no xadrez azul e verde de sua saia pregueada? 52
A principal abordagem para estudar como o sistema visual se desenvolve está relacionado a experiências com bebês. A capacidade limitada de uma criança em compreender, responder e até mesmo permanecer acordada por longos períodos restringe o âmbito de questões que podem ser propostas de maneira plausível. Outro complicador são as mudanças simultâneas que podem ocorrer em subsistemas cerebrais relacionados, mas distintos, conforme a criança cresce – regiões responsáveis pela motivação, concentração de atenção e controle dos movimentos dos olhos. Sabendo de tudo isso, no verão de 2002, me vi às voltas com duas questões aparentemente não relacionadas. Como o cérebro aprende a fazer com que a informação visual tenha sentido? Com as lembranças de minha experiência em Nova Déli ainda frescas, como eu poderia ajudar a oferecer cirurgias de restauração de visão para crianças congenitamente cegas? Ainda me lembro da emoção de perceber que as duas questões se complementavam – uma trazia a resposta para a outra. Seguir o progresso de uma criança com a visão recém-recuperada pode nos ajudar a entender a aprendizagem visual, e o financiamento científico aplicado a esse empreendimento de pesquisa ajudou a oferecer tratamentos. Fiquei maravilhado em constatar como as duas necessidades se encaixaram tão bem e, de forma um pouco autocentrada, como ambas estavam relacionadas à minha vida. Ao retornar para o MIT descrevi a meus colegas um plano para prosseguir a pesquisa que combinava esses objetivos científicos e humanitários. A maioria ficou entusiasmada, mas alguns manifestaram cautela em embarcar nessa empreitada ambiciosa antes de receber fundos. Entendi o risco, mas me senti compelido a avançar com o plano. Enviei um pedido ao Instituto Nacional de Olhos (parte do Instituto Nacional de Saúde), nos Estados Unidos. Fiquei um pouco apreensivo pela dúvida de ser viável pedir dinheiro a uma agência do governo americano para financiar cirurgias na Índia. Além disso, o empreendimento era logisticamente complexo e se ressentia de dados prelimina-
res sobre sua praticidade. Mas o comitê de avaliação enxergou o potencial científico e humanitário do trabalho e me concedeu uma subvenção exploratória para verificar a viabilidade da proposta. Fiquei emocionado. Era minha primeira bolsa pelos NIH. O passo seguinte foi identificar um parceiro médico na Índia onde as crianças cegas pudessem receber atendimento cirúrgico de qualidade. Um centro oftalmológico se destacou: o Hospital de Caridade de Olhos Shroff (SCEH), em Nova Déli. Tinha excelentes instalações pediátricas e seus médicos saudaram o projeto como uma oportunidade de ajudar crianças cegas e de se envolverem em pesquisas. Todas as peças do desafio estavam montadas. Ainda assim, precisávamos de um nome que refletisse nossa dupla missão de trazer luz para a vida das pessoas e lançar luz sobre questões científicas. Não precisei pensar muito. A palavra luz na antiga língua indo-europeia, o sânscrito, é prakash. Agora tínhamos um nome com um toque atraente: Projeto Prakash. UMA PEQUENA INCISÃO Realizamos o projeto em vários estágios. Primeiro, identificamos as crianças e, em alguns casos, até mesmo jovens adultos que poderiam se beneficiar do tratamento por meio de triagem oftalmológica estabelecida em acampamentos em zonas rurais. Uma equipe de ortópticos, oftalmologistas e outros profissionais de saúde examinaram crianças com problemas de visão (erros de refração), infecções oculares e cegueira tratável (principalmente por catarata congênita e dano à córnea resultante de cicatrização). Crianças selecionadas como candidatas ao tratamento foram para o hospital em Nova Déli para um exame mais minucioso, incluindo oftalmoscopia (para observação do fundo do olho), ultrassom dos olhos, avaliação da saúde geral e condição física para a cirurgia. Datas foram definidas após consulta com o responsável por cada uma delas. A cirurgia de catarata em uma criança é muito mais complexa que em um adulto. A cirurgia pediátrica exige anestesia geral e cuidados pós-operatórios intensivos. O pro-
cedimento cirúrgico envolve a divisão da lente opaca endurecida em pedacinhos, com a retirada dos fragmentos por uma pequena incisão na borda da córnea e substituição da lente natural danificada por uma sintética. O Projeto Prakash subvenciona os custos aproximados de US$ 300,00 – e o retorno das crianças para acompanhamentos pós-operatórios periódicos. Com o projeto em curso, uma preocupação me incomodava. Eu refletia se nossa intervenção cirúrgica, embora bem-intencionada, chegava tarde demais para ser útil. Ultrapassamos, talvez, um período crítico no início da vida que requer uso intensivo dos olhos e dos circuitos cerebrais visuais, intervalo após o que a capacidade visual não pode ser desenvolvida? A ideia não era absurda. O cirurgião inglês William Cheselden (1688-1752) fez o primeiro relato de estabelecimento tar-
ACAMPAMENTOS DE TRIAGEM: atendimento em escolas e aldeias busca crianças que poderiam se beneficiar de cirurgias ópticas
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PREPARATIVOS: criança se submete a um exame oftalmológico para determinar posterior adequação ao tratamento
dio de visão em 1728, em um menino de 13 anos, nascido com catarata nos dois olhos. Cheselden percebeu que o menino continuou com visão muito prejudicada, mesmo após a remoção das oclusões. Estudos controlados de privação visual em animais pintaram um quadro sombrio semelhante. Torsten Wiesel e David Hubel, dois ganhadores do Prêmio Nobel em 1981, descreveram as drásticas consequências da privação visual precoce em gatos. Nesse contexto é natural questionar se oferecer cirurgias de olhos no final da infância serviria a algum propósito útil. Senti, no entanto, que os tratamentos valiam a pena. Era arriscado confiar muito em relatos antigos, como os de Cheselden. Efeitos cirúrgicos deficientes poderiam ter causado danos nos tecidos ópticos, resultado de técnicas cirúrgicas grosseiras, como a intracapsular, um recurso antiquado para remoção de catarata. A maioria dos estudos com animais observou o fechamento por sutura de um olho, enquanto as crianças do Prakash sofriam de oclusão nos dois olhos. De modo surpreendente, privar a visão em um único olho tem consequências mais negativas que quando os dois são afetados. Ainda discu54
tíamos se alguma função visual poderia ser desenvolvida após o tratamento da cegueira tardia na infância. AGORA ENXERGAMOS! O filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910) descreveu o mundo perceptivo de um bebê como “uma confusão florescente e perturbadora” que precede a maturação do sistema visual. A questão para o Projeto Prakash era se esse período, um bombardeio complexo de cor, forma e movimento – talvez uma fase inicial de desenvolvimento visual – espelha as experiências das crianças do Prakash com visão nova, alguns com idade de 20 anos ao experimentarem essa sensação pela primeira vez. Se o sistema visual não passar pelos primeiros passos complexos, mas necessários, a organização das imagens pode ser obtida de forma significativa? O termo “organização”, aqui, tem dois significados. Para uma pessoa “ver”, as várias partes de uma imagem devem ser coerentes em objetos distintos, um processo denominado organização intramodal. No segundo requisito, a organização intermodal está relacionada à interação da visão com os demais sentidos.
Nossa capacidade de segmentar uma imagem em objetos separados é tão afinada que parece não exigir esforço. Abrimos os olhos e o mundo está lá, uma coleção ordenada de coisas. No entanto, descobrimos que a experiência de uma criança do Prakash logo após ganhar a visão é diferente. As pessoas com visão recém-adquirida exibem profundas deficiências. Não conseguem organizar as muitas regiões de cores e brilhos diferentes em conjuntos maiores. Muitas características de objetos comuns – as partes sobrepostas de dois quadrados ou a parte de uma bola delineada pelas costuras em sua superfície – são percebidas como objetos totalmente separados e não componentes de estruturas maiores. É como se a cena visual para uma pessoa com visão recém-adquirida fosse uma colagem de várias áreas independentes de cor e luminosidade, semelhante a uma pintura abstrata. Esse excesso de fragmentação perceptiva torna difícil detectar objetos inteiros. A falha dos pacientes do Prakash levanta uma questão que preocupa cientistas há quase um século: que sinais permitem que nós, com visão normal, analisemos imagens complexas corretamente? A resposta parece estar na maneira como o cérebro organiza naturalmente estímulos visuais pelo que são conhecidos como heurísticas de agrupamento (referidas como pistas da Gestalt de agrupamento, nomeadas segundo o movimento de pesquisa psicológica no início do século 20). Uma regra básica programada no sistema visual induz, por exemplo, linhas organizadas em uma imagem a serem agrupadas porque provavelmente elas decorrem de limites de um mesmo objeto. Nenhum desses indícios parece eficaz para as crianças do Prakash imediatamente após recuperar a visão, mas mudanças interessantes ocorrem com o tempo. Lembro-me vividamente de SK, o primeiro paciente do Prakash a nos dar esse indício. Era um jovem de 29 anos, que conhecemos em um albergue para jovens cegos, lotado nos arredores de Nova Déli. Um exame rápido revelou que ele tinha afacia congênita (de phakos, palavra grega para “lente/lentilha”), doença rara em que uma criança nasce sem o cristalino. O mundo visual de SK era muito prejudicado.
Ele havia se adaptado a essa situação deslocando-se com uma bengala branca e estudando em braille. De forma notável, tudo o que foi necessário para corrigir sua afacia foram óculos de US$ 20,00, que compensariam seu cristalino ausente, mas pelos quais ele não conseguia pagar. Fizemos óculos para SK e depois testamos sua visão. O que nos impressionou de imediato foi que, ao contrário de nossas expectativas ingênuas, SK não pareceu especialmente entusiasmado com a melhora da visão. Nossos testes revelaram que seu mundo visual era uma coleção impressionante de regiões de cores e brilhos diversos, com pouco recurso para juntá-las em entidades coerentes. Mesmo simples desenhos de linhas, como um círculo sobrepondo um quadrado, pareciam a ele um conjunto de peças interligadas de forma estranha (apesar de sua familiaridade prévia com conceitos de quadrados e círculos pelo tato). SK teve dificuldade em delinear objetos inteiros em imagens fotográficas. Sombreamento e sombras, sobreposições e oclusões representavam obstáculos intransponíveis; cada região de um tom ou luminância diferente parecia um objeto distinto.
EM CIRURGIA: médicos cuidadosamente removem a catarata, permitindo que uma criança veja claramente pela primeira vez desde o nascimento
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EQUIPADA PARA VER: menina é submetida a um exame pós-cirúrgico com o optômetro para obter uma receita de óculos
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Curiosamente, essa confusa mescla de regiões se consolidou em estrutura significativa com a introdução de um sinal visual especial: movimento. Imagens que eram irremediavelmente confusas para SK quando estáticas tornaram-se interpretáveis quando suas partes constituintes se moviam. Vídeos de SK examinando uma imagem mostram uma transformação quase mágica criada em resposta ao movimento. Seguimos as experiências de SK com a visão por vários meses. Ele continuou apresentando dificuldades na interpretação de imagens estáticas. Assim que começamos a nos resignar com a ideia de que as aptidões de análise de imagens dele pudessem estar per-
manentemente comprometidas, a situação mudou. Um ano e meio após a intervenção inicial, sem qualquer treinamento além de sua exposição ao mundo visual ao seu redor, SK obteve melhora significativa. Ele conseguia analisar corretamente imagens estáticas esparsas e expressou a felicidade que sentia em relação à sua visão melhorada. Foi uma conclusão gratificante para um capítulo que nos deixou em suspense. Em estudos posteriores com outros pacientes muito mais jovens encontramos uma repetição dessa experiência. Muitos meses após termos dificuldades na tarefa de análise de imagem, eles começam a ter sucesso na organização de suas percepções em objetos coerentes. O tempo necessário para adquirir essa habilidade parece depender da idade em que a criança recebeu tratamento porque as mais jovens aprendem mais rapidamente que as mais velhas. O que se oculta nessa melhora? A teoria sugere que o movimento pode desempenhar o papel de “professor”, treinando o sistema visual a analisar as imagens mesmo quando são estáticas. Com a regra de que “coisas que se movem juntas se pertencem”, o sistema visual de uma pessoa pode, por fim, aprender a agrupar imagens via atributos estáticos, como cor e orientação. O cérebro, claro, faz mais que escolher os elementos de uma cena visual. Também se conecta com os domínios do som, tato, olfato e paladar, criando um panorama sensorial via organização intermodal. Filósofos e neurocientistas se preocupam há séculos em como a visão está conectada ao som e a outros sentidos. Em 1688, o cientista irlandês William Molyneux (1656-1698) escreveu ao filósofo inglês John Locke: “Suponha que um homem nasça cego e, adulto, é ensinado pelo tato a distinguir entre um cubo e uma esfera do mesmo metal.... Suponha, depois, o cubo e a esfera colocados sobre uma mesa, e o homem cego, veja. Pergunto eu: com sua visão, antes de tocá-los ele poderia distinguir e dizer qual é o globo, qual o cubo?” Locke incluiu a pergunta de Molyneux na edição de 1692 de sua famosa monografia intitulada Ensaio sobre o entendimento humano. A dúvida de Molyneux cristalizava uma série
de questões fundamentalmente importantes: como podemos conectar os diferentes sentidos em uma percepção unificada da realidade? Nascemos com esse mapeamento mental do mundo ou ele deve ser aprendido pela experiência? Pode ser adquirido mais tarde na vida? A busca dessas ideias por Locke, George Berkeley, David Hume e outros empiristas influencia questões vitais para a neurociência contemporânea. Ao avaliar se as crianças do Prakash podem vir a associar a visão com os outros sentidos, tivemos a oportunidade de abordar diretamente a questão de Molyneux. Trabalhamos com crianças logo após suas cirurgias ópticas e as fizemos participar de um experimento de “ajustamento com a amostra”. A criança vê ou toca um objeto simples em um fundo branco (a amostra) e, posteriormente, tem de escolher entre dois objetos diferentes apresentados visualmente ou pelo tato. O caso de YS, um menino envolvente de 8 anos, com catarata congênita grave nos dois olhos, oferece um exemplo ilustrativo. Como a maioria das crianças do Prakash, YS se sen-
tiu confortável no segundo dia após a cirurgia e pronto para trabalhar com a equipe de pesquisa. No teste, uma folha de intervenção garantiu que YS não pudesse ver as mãos. Ele receberia um objeto (a “amostra”) para sentir nas mãos e, depois, o devolveria. Então, receberia a amostra e outro objeto nas mãos e pediriam para devolver o primeiro. YS não teve nenhuma dificuldade em escolher a amostra em todos os pares de objetos apresentados a ele. Da mesma forma, no domínio puramente visual, seu desempenho foi impecável. No entanto, na tarefa de transferência crucial, reconhecer visualmente o que sentiu com a mão, o seu desempenho despencou. Quatro outras crianças com quem trabalhamos exibiram o mesmo padrão de resultados. Essas descobertas levam-nos a acreditar que a questão de Molyneux provavelmente tem uma resposta negativa: nenhuma transferência discernível de informações do tato à visão ocorre imediatamente após o início da visão. Por mais interessante que esse resultado pareça, talvez haja algo ainda mais intrigante.
Um novo mundo Quando crianças e jovens do Projeto Prakash veem o mundo pela primeira vez têm dificuldade em montar as peças de uma cena como um todo. Uma fotografia de meninas dançando demonstra os problemas envolvidos. Fragmentos de cor, brilho e textura devem ser organizados pelo sistema visual em objetos coerentes.
A ilustração do meio representa a localização dos diversos elementos. O sucesso ocorre quando uma coleção de objetos estáticos, com limites definidos (à direita), começa a se mover. O cérebro integra passos ritmados e braços ao ar na percepção de uma entidade integral única, a forma dos corpos das dançarinas.
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sentidos Quando testamos YS uma semana mais tarde, ficamos surpresos ao descobrir que seu desempenho na tarefa de transferência havia evoluído de praticamente aleatório a um nível quase perfeito. Duas outras crianças observadas também apresentaram melhoras semelhantes. Em períodos tão curtos quanto de algumas semanas, as crianças do Prakash começaram a atingir a proficiência em identificar visualmente um objeto que haviam sentido pelo tato, apontando para uma capacidade latente na aprendizagem rápida de associar diferentes sentidos. Tomados em conjunto esses estudos sugerem que muitos anos de cegueira congênita não impedem o desenvolvimento da capacidade visual sofisticada em idade relativamente avançada. Essa percepção acaba sendo uma boa notícia para nós sob as perspectivas científicas e clínicas. Confirma a existência de plasticidade neural – a capacidade do sistema visual, por exemplo, de se adaptar a novas experiências – mesmo tarde na infância ou em jovens adultos e sugere que, com base em nossas experiências, crianças se beneficiariam de cirurgias oculares. Esse conhecimento fundamentou a base para um programa de pesquisa contínuo em profundidade sobre o desenvolvimento visual no fim da infância. Trabalhando com participantes do Prakash entre 6 e mais de 20 anos, realizamos avaliações de várias funções visuais. As descobertas desses testes até agora
indicam que alguns aspectos fundamentais da visão, como acuidade visual (com que precisão um padrão visual pode ser resolvido), contraste espacial (alterações na acuidade como mudanças de contraste de imagem) e estabilidade óptica, são comprometidos pela privação prolongada. Esses déficits parecem permanentes, pois essas medidas não atingem níveis normais, mesmo um ano mais tarde. Quando observamos além dessas medições básicas em direção das chamadas funções visuais de ordem superior, no entanto, encontramos evidências de aquisição de aptidão significativa. Em especial, a capacidade de diferenciação de objetos em uma imagem e de ligação com outros sentidos. As crianças do Prakash também apresentaram melhoras na capacidade de detectar rostos e raciocinar mentalmente sobre o arranjo espacial de objetos observados. O NOVO CENÁRIO Esses resultados começam a nos dar uma ideia de conjunto do que pode ou não ser alcançado quando uma criança acessa a visão em idade tardia. Por um lado, as funções visuais não desaparecem irremediavelmente se os olhos e as áreas do cérebro para o processamento visual não estão sujeitos a uso intensivo durante o “período crítico”, que se acredita durar nos primeiros anos da infância. Por outro, a experiência visual inicial é inegavelmente im-
Apenas as partes e não o todo Os traçados de uma criança com visão recém-adquirida revelam uma visão fragmentada até mesmo de figuras bidimensionais. Cada área de caixas sobrepostas foi percebida separadamente, como indicado pelos rabiscos vermelhos. O menino também viu segmentos de uma vaca e de uma bola e sua sombra – todos delineados em verde – como objetos distintos. Por isso, não conseguiu identificar nenhuma das imagens. 58
portante para o desenvolvimento normal das habilidades como visão de alta resolução. Os primeiros resultados fornecem um ponto de partida para um rico conjunto de novas investigações e algumas podem estar bem distantes da cegueira. Com base nos estudos do Prakash estamos desenvolvendo software para descobrir automaticamente categorias de objetos visuais em vídeos – rostos, por exemplo. Além disso, os tipos de deficiências que encontramos em crianças que integram as informações visuais logo após a recuperação de visão assemelham-se aos relatados em estudos com crianças com autismo. Essa ligação provisória já foi identificada em uma série de estudos em meu laboratório que busca investigar as causas dos distúrbios de processamento sensorial no autismo. A jornada futura promete ser ainda mais emocionante que o árduo percurso feito até agora. Uma questão frequente diz respeito à relação entre a estrutura do cérebro e seu funcionamento. Pretendemos usar a ressonância magnética funcional para examinar as mudanças no córtex cerebral de uma criança com visão recém-adquirida, comparando o que acontece quando o tratamento começa em idades diferentes para determinar até que fase do desenvolvimento o cérebro consegue se reorganizar. Também será possível determinar, nos casos em que a cirurgia é realizada relativamente tarde, se outros sentidos – o tato ou a audição, por exemplo – podem ter sequestrado a área do córtex normalmente reservada para o processamento visual. O Projeto Prakash enfrenta dificuldades enormes – o mais importante é expandir sua extensão e programas de tratamento e possibilitar a integração das crianças na sociedade. Nossos planos para enfrentar esses desafios são ambiciosos: propomos começar pela criação do Centro para Crianças Prakash – uma instituição que integre tratamento médico, educação e pesquisa. O centro terá um hospital pediátrico, um centro de pesquisa de neurociência de ponta e uma unidade de reabilitação de crianças recém-tratadas para que possam receber o máximo de benefício em seu tratamento. O projeto até agora executou triagem oftalmológica de cerca de 40 mil crianças que
Especialistas usam ressonância magnética funcional para examinar as mudanças no córtex dos pequenos pacientes com visão recém-adquirida para determinar até que fase do desenvolvimento o cérebro consegue se reorganizar vivem em algumas das aldeias mais pobres e negligenciadas do norte da Índia. Cerca de 450 crianças com deficiência visual receberam tratamento cirúrgico e acompanhamento e mais de 1.400 foram submetidas a tratamentos farmacológicos e ópticos. Devido à magnitude do problema, no entanto, isso tudo é apenas o começo. Eu e meus alunos sentimos enorme satisfação com as conclusões que emergiram do Projeto Prakash, mas o trabalho também nos afetou em um nível mais profundo, mais pessoal. Cada criança cega com quem trabalhamos apresentou uma história singular de dificuldades e isolamento social. Igualmente exclusiva é a mudança de vida que cada criança enfrenta após o tratamento. SK voltou para seu estado natal com esperanças renovadas de alcançar seu objetivo acalentado – ser professor. JA, que foi tratado aos 14 anos, pode agora, seis anos mais tarde, andar pelo caótico tráfego de Déli sozinho. A mãe de três meninos que nasceram com catarata e receberam tratamento no ano passado deixou de ser hostilizada por seus vizinhos da aldeia como portadora de uma maldição. Dois irmãos que têm visão há apenas alguns meses, depois de suportar oito anos de cegueira congênita, agora estão entusiasmados com a perspectiva de mudarem para uma escola para crianças normais. Essas transformações servem como testemunho do poder de colaboração: a dívida que o Projeto Prakash tem com cientistas, médicos, educadores e patrocinadores que se uniram para promover avanços tanto na pesquisa clínica quanto em ciência básica. E eu, pessoalmente, claro, tenho uma dívida de gratidão para com uma tigela de vidro azul e a pessoa muito especial a quem ela pertenceu.
PARA SABER MAIS The newly sighted fail to match seen with felt. Richard Held et al. em Nature Neuroscience, vol. 14, nº 5, págs. 551-553, maio de 2011. Pawan Sinha on how brains learn to see. TED, novembro de 2009. www.ted.com/talks/ pawan_sinha_on_how_ brains_learn_to_see.html Site do Project Prakash: www.projectprakash.org
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MOVIMENTO
Cuidado! Não olhe demais para jogadores desajeitados
Se você é craque em algum esporte, talvez não tenha muita paciência para observar novatos em ação. O que, aliás, pode ser bom. Um novo estudo constatou que os mais experientes podem ter o desempenho prejudicado ao assistir principiantes. Em experimentos online relatados no periódico Scientific Reports, pesquisadores solicitaram a especialistas em atirar dardos que assistissem a vídeos de novatos em ação para, em seguida, tentar prever onde os objetos arremessados iriam cair. Os profissionais receberam devolutivas sobre suas percepções ao longo do processo, o que ajudou a melhorar suas estimativas. Os resultados mostram que, à medida que os especialistas se tornavam mais precisos para prever os comportamentos dos iniciantes, pioravam em relação ao próprio desempenho no esporte. Interessante notar que esse efeito não teve a ver com as previsões em relação às ações dos novatos. Não é de hoje que pesquisadores debatem se os neurônios do sistema motor estão envolvidos na compreensão dos comportamentos de outras pessoas. Até agora, as pesquisas anteriores haviam somente traçado correlação ou foram inconclusivas. Nesse novo estudo, 60
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O sistema neuromotor é influenciado pela análise das ações de principiantes
neurocircuito
porém, o fato de que o desempenho de especialistas tende a piorar progressivamente à medida que sua capacidade preditiva aumenta fornece evidências causais de que o sistema motor está envolvido, pelo menos em alguns aspectos (especificamente com a estimativa dos resultados), na compreensão de ações alheias, argumenta o neurocientista Gowrishankar Ganesh, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Industrial no Japão. Especialista em robótica, ele é coautor do estudo com o neurocientista japonês Tsuyoshi Ikegami, do Centro de Informação e Redes Neurais, em Osaka. Os autores esperam que o trabalho possa um dia ajudar na reabilitação cognitiva e motora. Mais imediatamente, eles sugerem que os atletas devem evitar se concentrar demais na prática dos companheiros de equipe menos qualificados. Treinadores, por outro lado, talvez não precisem se preocupar em desviar os olhos dos aprendizes. “Embora as evidências sejam preliminares, os dados sugerem que quem ensina tende a ser menos prejudicado”, diz Ganesh. “Acreditamos que a ampla experiência pode permitir ao professor aprender como não ser tão afetado pelo processo.” (Por Tori Rodriguez, jornalista)
Pensando com o corpo O prejuízo do desempenho depois da observação atenta de comportamentos exemplifica o funcionamento da cognição incorporada: o sistema motor precisa compreender o movimento realizado pelos outros – e essas ações são afetadas pelas novas informações apreendidas pelo corpo. Confira outros exemplos dessa habilidade, já revelada em estudos anteriores: A capacidade de jogadores de beisebol de prever onde a bola irá pousar depende de como eles se movem em relação a ela, e não da habilidade cerebral de calcular a trajetória. Os atletas se movem em qualquer direção que mantenha a bola a uma velocidade constante em seu campo de visão. Quando dançarinos assistem a alguém dançar num estilo familiar, sua atividade cerebral dispara como se eles mesmos executassem os movimentos. A resposta neural é menos concentrada quando observam um tipo de dança desconhecida. Encenar uma história nos ajuda a recordar dela. Um estudo mostra que os participantes que representaram um monólogo se recordavam melhor do texto depois de 30 minutos, em comparação com aqueles que somente liam, discutiam ou respondiam perguntas sobre a história.
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ética
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Pelo fim de um
legado cruel Ao longo dos anos, experimentos que separam filhotes de macacos de suas mães têm causado sofrimento profundo e desnecessário. Pesquisadores conscientes do mal que a ciência pode fazer argumentam que essas práticas precisam acabar por Barbara J. King
A AUTORA BARBARA J. KING é doutora em biologia, bioantropóloga, professora do College of William & Mary, estudou babuínos no Quênia e grandes macacos em cativeiro.
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riados em isolamento social total ou parcial, agarrados a “mães” de pano ou arame, filhotes de macacos resos submetidos aos experimentos de privação materna do psicólogo americano Harry F. Harlow, nos anos 50, passavam por terríveis sofrimentos. Desesperados, automutilavam-se e apresentavam outros sinais de ansiedade e depressão profunda (veja quadro na pág. seguinte). Com base no princípio de que estudos com animais podiam ajudar a entender a relação entre cuidados maternos e depressão em humanos, a pesquisa de Harlow ainda é discutida em aulas de psicologia, antropologia e biologia. Exemplo de crueldade e falta de ética, experimentos ajudaram o pesquisador americano, nascido em 1905, a constatar que as necessidades de um bebê são muito mais complexas do que aplacar a fome; o anseio de se vincular afetivamente a alguém pode induzir humanos e macacos a escolhas aparentemente pouco lógicas ou até desconfortáveis. O mais triste é que a profunda dor imposta aos primatas não está confinada aos registros históricos. Filhotes de macacos resos ainda são separados à força de suas mães por pesquisadores em laboratórios e submetidos a formas de estresse que os deixam psicológica e emocionalmente traumatizados. abril 2017 • mentecérebro 63
ética
Abandono, mutilação e estupro
universidade do wisconsin
As colônias de macacos da Universidade do Wisconsin são numerosas – e a cada ano nascem muitos pequenos macacos que geralmente crescem na mesma jaula com suas mães. Interessado em verificar o que determina o apego dos pequenos, o psicólogo Harry Harlow tirou os recémnascidos das mães e os colocou em gaiolas nas quais construiu dois tipos de “mães de aluguel”. A primeira era macia, coberta com panos quentes e aconchegantes, com uma mama falsa, absolutamente vazia, no centro. A segunda era, na verdade, uma máquina, um conjunto de caixas metálicas das quais se projetava um tipo de chupeta de onde vinha o leite para os bebês. Segundo a lógica de Harlow, se o determinante do apego fosse a necessidade de alimento, então os macaquinhos passariam mais tempo com a mãe metálica que os amamentava. Inesperadamente, no entanto, isso não aconteceu. Os bebês passaram muito tempo aconchegados entre os “braços” da mãe macia e foram àquela mecânica apenas pelo tempo estritamente necessário para se alimentar. Antes de tudo isso acontecer, no entanto, houve dias de grande sofrimento: as mães naturais, privadas de seus bebês, gritavam desesperadas. Os recémnascidos, por sua vez, sozinhos nas gaiolas com as mães de aluguel, manifestavam evidentes sinais de ansiedade, se mexiam incessantemente em busca de sua mãe natural e somente depois de alguns dias se resignavam e escolhiam a substituta. Harlow, no entanto, estava exultante: não é o alimento que determina o apego, mas sim o toque. É o tato que transmite a necessidade de amor dos bebês e o acolhimento materno. “Não estamos surpresos ao descobrir que o contato é
HARRY HARLOW faz experiência com filhote e um dos bonecos que usou na década de 50
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uma variável importante e necessária para o vínculo e o amor, mas não esperávamos que suplantasse tão completamente a variável do alimento”, explicou Harlow. Mas o pesquisador acreditava que deveria haver algo mais nesse processo, provavelmente ligado à visão: as mães de aluguel tinham rostos muito estilizados, feitos com dois botões e uma linha para a boca. O que aconteceria se os bonecos tivessem a cara de uma macaca de verdade? O segundo experimento de Harlow partiu dessa pergunta. Ele pediu a um colaborador que confeccionasse uma máscara realista de macaca. O filhotinho destinado a esse experimento, no entanto, nasceu antes do tempo: foi colocado na gaiola com a mãe de aluguel sem rosto, esperando até que a máscara ficasse pronta. E, quando finalmente a mãe de pano ganhou feições, os experimentadores registraram uma reação inesperada: o pequeno macaco entrou em pânico, atacou o novo rosto a ponto de destruí-lo, chegando a deixar o manequim completamente sem cabeça, apenas para reaver sua mãe sem rosto. Ou seja, a visão, o segundo determinante do apego, dependeu do que o pequeno registrou nos primeiros momentos de vida, a marca que ficou “impressa” para ele, o imprinting. Passado algum tempo, os experimentos de privação de Harlow começaram a ser considerados, mesmo por seus pares, muito cruéis: os filmes que ele mesmo gravou falam por si e despertam empatia para com os macaquinhos tão brutalmente arrancados dos cuidados das mães. Mas nesses filmes há também algo de novo e poderoso: a demonstração de que as necessidades de um bebê são muito mais complexas do que a simples fome e de que o anseio de se vincular afetivamente tem o poder de induzir as escolhas aparentemente pouco lógicas, como a de um boneco de pano sem nenhuma expressão. No final dos anos 50, após a euforia dos primeiros anos, os cientistas do laboratório
No Laboratório de Etologia Comparada (LCE), do Instituto Nacional de Saúde Infantil e do Desenvolvimento Eunice Kennedy Shriver, em Poolesville, Maryland, chefiado pelo psicólogo Stephen Suomi, os filhotes com frequência são literalmente arrancados das mães horas após o nascimento. Por 22 horas ao dia (24 horas nos fins de semana), esses bebês não têm companheiros de gaiola com os quais interagir. Sei, por meu trabalho com filhotes de babuínos selvagens em liberdade no Quênia – macacos que têm uma organização social semelhante à do reso –, que esse regime resulta em uma terrível distorção na vida natural dos animais. Na natureza, os macaquinhos vivem no centro seguro de um matriarcado, amorosamente cuidados por um grupo de fêmeas aparentadas. Eles brincam com seus pares e exploram seu mundo, mas voltam correndo para o aconchego e a proteção do ser mais importante de sua vida, a mãe. No LCE, em contrapartida, os filhotes sem mãe são submetidos a pressões (como serem intencionalmente amedrontados quando estão sozinhos) em pesquisas destinadas
DE PELÚCIA: todos os anos, na frente do Primate Research Center da Universidade do Wisconsin, em Madison, no mesmo complexo em que Harlow realizou seus experimentos, grupos americanos de luta pelos direitos dos animais se reunem para cerimônia inspirada no shivá, um ritual judaico de luto, do qual participam dezenas de macacos de pelúcia. O objetivo do Animal Liberation Front é chamar a atenção para as pesquisas que usam animais, especialmente primatas
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de Harlow começaram a perceber os efeitos nefastos da privação. Os primeiros macaquinhos usados nos experimentos haviam crescido manifestando graves distúrbios psíquicos: apresentavam todas as características de uma psicose autística, incluindo lesões autoinfligidas. Os colegas que visitavam a Universidade do Wisconsin encontravam pobres animais que mordiam os próprios dedos até se mutilar. Quando Harlow decidiu verificar que tipo de mães se tornaram as macaquinhas submetidas à privação, isso não foi possível, pois não conseguia fazê-las acasalar: elas recusavam qualquer contato com o macho e eram muito agressivas. Depois de várias tentativas, o pesquisador escolheu um caminho cruel, que veio a ser muito contestado: amarrou-as para que os machos pudessem agarrá-las e fecundá-las – e, sem rodeios, chamou a prática de “experimento do estupro”. Essas macacas submetidas a mais essa violência revelaram-se mães terríveis: algumas mataram os bebês, outras os maltrataram e outras ainda os ignoraram. Ficou evidente que o apego à mãe substituta inanimada não fora suficiente para criar exemplares adultos equilibrados. Harlow, em seguida, introduziu um terceiro elemento, após o toque e a visão: o movimento. Repetiu o experimento com mães de aluguel capazes de se balançar, e os macacos ficaram um pouco melhor. Adicionando meia hora por dia de contato e brincadeira com uma macaca de verdade, os pequenos cresceram de forma normal. Incrivelmente, bastou pouco: meia hora de interação social se mostrou suficiente para evitar graves psicoses. A notícia se espalhou, sobretudo, no âmbito das instituições para a infância como escolas e orfanatos: não basta alimentar, aquecer e manter as crianças limpas para torná-las adultos saudáveis. É preciso tocá-las e, sobretudo, brincar com elas. (Por Daniela Ovadia, jornalista)
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ética
Animais capazes de refletir sobre seus próprios pensamentos
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Há muito se pensava que os humanos detinham o monopólio da metacognição, a habilidade de perceber os próprios estados mentais e pensar a respeito deles. Essa capacidade já foi verificada em macacos em cativeiro e, mais recentemente, as pesquisadoras Alexandra Rosati, da Universidade Harvard, e Laurie Santos, da Universidade Yale, que observaram 120 macacos resos
semisselvagens procurando alimentos dentro de tubos, também constataram esse funcionamento mental sofisticado nesses animais (veja ilustração). Ao se deparar com dois cilindros, a maioria dos macacos se aproxima do espaço entre os tubos. Ou seja: considera opções e escolhe a estratégia mais eficiente. Esse trabalho evidencia a presença de processos metacognitivos em macacos semisselvagens, o que mais uma vez nos faz questionar o uso desses animais em experimentos dolorosos do ponto de vista físico e emocional.
a avaliar sua reação e, assim, entender fatores de risco no desenvolvimento que levam a doenças mentais em humanos. De acordo com literatura revisada pelos pares do LCE, esses filhotes sofrem consequências comportamentais e biológicas por toda a vida, incluindo saúde frágil, aumento no estresse, incompetência maternal e agressão anormal. Claro que pesquisas nesse campo são importantes, mas revisões sistemáticas nos mostram que modelos animais não se transpõem bem para a saúde mental humana. Tratar doenças psiquiátricas em humanos exige atenção direta a pressões reais em nossa vida – não tensões artificiais que infligimos aos filhotinhos resos. Pesquisas de diversos tipos, inclusive neuroimagem e acompanhamento de longo prazo do cotidiano de pacientes, têm conseguido avanços substanciais nessa empreitada. Dizer que esse tipo de pesquisa respeita as diretrizes acadêmicas sobre cuidados com animais não é uma justificativa. De forma geral, as exigências para aprovar experimentos invasivos em primatas (e outros animais) são muito baixas. Como Lawrence Arthur Hansen destacou há dois anos no Journal of Medical Ethics, comitês de supervisão são compostos desproporcionalmente pelas mesmas
pessoas cujo meio de vida depende da continuidade desses experimentos: pesquisadores de animais e veterinários de instituições. Um primeiro passo para corrigir essa distorção seria incluir conhecedores do tema – cientistas sociais e especialistas em bioética, por exemplo – não beneficiados diretamente por recursos concedidos a esses projetos. Hansen adverte que também é necessária uma mudança na cultura institucional para garantir que comitês avaliem mais diretamente as relações entre benefícios e danos. Fiquei impressionada pelos paralelos com o caso da pesquisa com chimpanzés dos Institutos Nacionais de Saúde, considerada “desnecessária” por uma revisão independente do Instituto de Medicina em 2011. Estudos biomédicos com esses primatas haviam sido reiteradamente aprovados por juntas de revisão e comitês sobre cuidados com animais. O processo de supervisão não protegeu eticamente esses chimpanzés no laboratório no passado e não está protegendo eticamente os macacos nos laboratórios agora. Não é preciso ser contra todas as pesquisas biomédicas em primatas não humanos para ver como algumas pesquisas biomédicas estão ultrapassadas e equivocadas. É hora de pôr fim ao cruel legado de Harlow.
especial
Para tratar a
dependência
química
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Derivada de um arbusto africano, a ibogaína é uma substância não regulamentada no Brasil, usada em terapia para pessoas que desejam abandonar o uso compulsivo de drogas. Embora haja indícios de que seja mais eficiente do que qualquer outro tratamento, há grande risco de causar a morte do paciente
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especial
Quando o remédio pode matar A ibogaína, uma substância antidependência, ilegal nos Estados Unidos, poderia curar mais usuários de drogas do que qualquer outro tratamento – mas há grande risco de causar a morte dos pacientes por James Nestor
O AUTOR JAMES NESTOR é jornalista, autor do livro Deep: freediving, renegade science, and what the ocean tells us about ourselves (Houghton Mifflin Harcourt, 2014, não publicado no Brasil CHECAR). 68
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especial
U
m enxame de gafanhotos enche sua visão. Nuvens carregadas cobrem o teto do quarto. Suor pinga de sua testa, peito e mãos. Você tem dificuldade de respirar. As paredes à sua volta se dobram e retorcem. Você cobre os olhos, mas as cenas se desenrolam com a mesma intensidade. Uma plateia em algum lugar bate palmas. As janelas de seu quarto desaparecem num negrume e surgem cem televisores do tamanho de selos, cada um reprisando um momento de sua infância: as letras exatas de uma música que você escutou uma vez no rádio quando tinha dois anos, ou a cor de suas meias soquetes numa festa de aniversário no jardim de infância, ou o timbre da voz de seu avô. Essa cena se funde em outra mais sinistra de demônios, adagas e exércitos de diabos. Você quer fugir, mas não pode. Não consegue acordar nem mover o corpo. É isso que está vivendo Shea Prueger, presa por 48 horas. “Isso não é o tipo de coisa que qualquer um jamais iria querer repetir”, afirma ela, enquanto balança em uma cadeira de vime em uma casa na Costa Rica, cerca de 50 km a oeste da capital, San José. A jovem de 29 anos vivia em Nova York, trabalhava como modelo – e injetava heroína nas veias. Hoje ela está recordando uma desesperada tentativa, feita há cinco anos, para acabar com a dependência de opiáceos com uma droga psicoativa chamada ibogaína. Prueger tinha tentado metadona, Suboxone, Narcóticos Anônimos e outros tratamen70
tos. Nada funcionou. Então, por dois dias, em 2011, ela ficou deitada em um colchão em um quarto com paredes de concreto em uma clínica clandestina na Guatemala, incapaz de se mover, nauseada, enquanto sua mente sondava os recantos mais profundos do inferno. Ela permaneceu “limpa” durante nove meses, teve uma recaída uma vez em junho de 2012 e diz que não usou quaisquer narcóticos desde então. “A ibogaína fez por mim o que nenhum outro tratamento de reabilitação pode fazer”, afirma. Adictos reabilitados e alguns cientistas argumentam que uma dose de ibogaína, uma substância derivada da raiz de um arbusto da floresta tropical africana, o Tabernanthe iboga, contém moléculas capazes de “zerar” os centros de adicção do cérebro, libertando as pessoas de suas “fissuras”. À medida que as alegações sobre a substância se espalharam, centenas, talvez milhares, de pessoas têm procurado clínicas localizadas principalmente no México e na América Central, onde a droga pode ser obtida. Em 2006, havia poucas clínicas que ofereciam ibogaína operando ao redor do mundo; hoje, de acordo com algumas estimativas, existem cerca de 40. Operadores dessas instalações alegam que uma dose pode restringir comportamentos adictivos, assim como a depressão, de até 70% dos pacientes. Considerando que seja real, essa taxa de sucesso faria da ibogaína um remédio extremamente necessário para um problema em franca explosão. A maioria das pesquisas in-
juan arredondo
dica que a dependência de heroína dobrou desde 2007, chegando a mais de 1 milhão de adictos hoje. O aumento do uso de agulhas, lamentavelmente, também desencadeou uma nova onda de infecções por HIV. Em termos gerais, em 2014, 7,1 milhões de americanos tinham algum tipo de problema sério com drogas, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde (NSDUH, na sigla em inglês). Muitos procuram ajuda, mas fazem isso em vão. Entre 40% e 60% dos pacientes dependentes de opiáceos tratados vão reincidir. Em torno de 80% o fazem se pararem de tomar metadona, a mais comum terapia de substituição de opiáceos. Defensores da ibogaína afirmam que ela é mais eficaz porque funciona em muitos caminhos neurais ao mesmo tempo, não apenas em um, como outros tratamentos. Encorajadas por essas ideias, duas empresas comandadas por cientistas, uma com financiamento
parcial do Instituto Nacional para o Abuso de Drogas (NIDA, em inglês), nos Estados Unidos, estão desenvolvendo medicamentos baseados em derivados da ibogaína. Mas a droga tem um problema: pode matar seus usuários. É por essa razão que é proibida nos Estados Unidos, onde recebe a designação mais restritiva possível da DEA, o órgão para o controle/combate de drogas. Durante o tratamento, pacientes frequentemente sofrem de arritmia, que pode levar a uma parada cardíaca e, às vezes, à morte. Relatos médicos publicados ligam a ibogaína a 19 fatalidades em 3.500 terapias entre 1990 e 2008. Como clínicas informais, como a da Guatemala, podem não monitorar todos os eventos negativos, o Royal College de Psiquiatria, no Reino Unido, estima que a taxa de mortalidade possa ser até mais alta, chegando a uma em cada 300 tratamentos. Estudos animais sugerem que a substância,
ESPERANÇA EM PÓ: em clínica na Costa Rica, doses de pó de ibogaína são preparadas para pacientes; droga é ilegal em alguns países devido aos efeitos tóxicos
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especial
Clínicas no exterior estão atraindo milhares de viciados porque a droga é ilegal nos Estados Unidos; ela foi associada a problemas cardíacos fatais. Alguns neurocientistas contestam que ela seja mais eficiente que a metadona; outros tentam transformá-la em recurso de tratamento convencional
quando não mata, produz danos cerebrais duradouros. “Precisamos de ibogaína? Não se houver uma parte tóxica”, diz Herbert Kleber, psiquiatra do Centro Médico da Universidade Columbia. No entanto, adictos desesperados, desiludidos com metadona, aconselhamento e outros tratamentos, não se deixam dissuadir por essas advertências. Muitos deles veem a ibogaína – e todos os seus riscos de paradas cardíacas e degenerações cerebrais – como sua última e melhor chance de ficar novamente saudáveis. UMA ESTRANHA VIAGEM A ibogaína não fez sua estreia farmacêutica como um tratamento para dependências químicas. Em pequenas quantidades, de cerca de 8 mg, ela funciona como um estimulante. De 1939 a 1970, uma empresa farmacêutica francesa produziu em massa um comprimido da droga, chamado Lambarène, como uma cura para depressão, letargia e doenças infecciosas. As propriedades estimulantes tornaram a ibogaína suficientemente popular entre atletas para que o Comitê Olímpico Internacional proibisse seu uso nos anos 60. Por volta dessa época, o falecido pesquisador científico americano Howard Lotsof, então viciado em heroína, aos 19 anos, tomou um pouco de ibogaína por causa de seus efeitos alucinógenos e disse a outros adictos que a droga também reduzira seu desejo compulsivo de usar heroína. A notícia se 72
espalhou, e viciados começaram a usar doses maiores, de até 20 mg/kg de peso corporal, para ajudá-los a largar seu hábito. Alguns estudos animais sobre ibogaína e adicção foram publicados no final dos anos 80 e sugeriram que a substância amenizava sintomas de abstinência. As clínicas estrangeiras começaram a abrir as portas. Shea Prueger desenvolveu um entusiasmo fanático pela substância. Depois de ter sentido os poderes curativos da ibogaína em 2011, ela começou a ministrar a droga a outros adictos. Agora, ela é administradora-chefe da Envision Recovery, uma popular clínica de ibogaína em Puntarenas, na Costa Rica. É ilegal usar ibogaína como remédio no país – embora a posse individual pareça ser permitida –, e a Envision não está licenciada como centro de tratamento para dependências químicas, de acordo com seu fundador, Lex Kogan. Ainda assim, toda semana Prueger e Kogan hospedam até meia dúzia de pacientes que sofrem de dependência de álcool, opiáceos, anfetaminas e remédios controlados em uma casa estilo fazenda de oito quartos, construída sobre um penhasco íngreme em um bairro suburbano cercado por uma vegetação exuberante. Enfermeiros trabalham no local, monitorando pacientes para quaisquer efeitos adversos. Kogan e Prueger não têm formação médica formal. No final de dezembro de 2014, Bryan Mallek, na época um jovem da Flórida de 29 anos com aspecto frágil, apareceu pedindo ajuda. Ele vinha usando heroína por 15 anos e metadona havia seis meses. Já tinha tentado se afastar das drogas dezenas de vezes. Nada funcionou. Quando o entrevistei, Mallek estava no décimo de um programa de 18 dias, sentado num velho sofá na sala comunitária da clínica. Vinha tomando pequenas doses de ibogaína para testar suas respostas físicas a reações perigosas, em preparação para uma dose maior. Uma linha intravenosa estava presa a seu braço direito, alimentando-o com uma solução eletrolítica para manter seu corpo hidratado enquanto ele se alimentava apenas de frutas e água. No dia seguinte, Mallek estava deitado sobre os lençóis de uma cama queen-size. Ele não tinha tomado nenhum opiáceo havia 12
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horas e tinha acabado de entrar nos primeiros estágios da crise de abstinência – suores e calafrios. Durante os dois dias anteriores, uma enfermeira realizava regularmente eletrocardiogramas para monitorar o coração e os ritmos dos movimentos musculares do rapaz. Depois que um paciente ingere ibogaína, sua frequência cardíaca diminui, o que é uma das razões por que a droga é considerada tão perigosa. Monitorar cuidadosamente a saúde do coração ajudará a detectar arritmias, caso um tratamento seja necessário. Após fazer o exame, a enfermeira declarou que o coração e os sinais vitais de Mallek estavam saudáveis. Ele estava pronto para iniciar o tratamento. Prueger se aproximou com uma cápsula gelatinosa que continha 200 mg de ibogaína. A Envision compra a substância branca, em forma de pó, de um contato na África do Sul, diz Kogan, que passa pela alfândega no aeroporto da Costa Rica com recipientes plásticos Tupperware e nunca foi barrado. Mallek engoliu a cápsula, relaxou a cabeça no travesseiro, fechou os olhos e se preparou para dois dias de alucinações. “Estou aqui e pronto”, comunicou ele com a voz trêmula. “Quero ir agora.” A Envision tratou mais de mil adictos nos últimos cinco anos, conta Kogan. Assim como Mallek, essas pessoas inicialmente recebem várias doses pequenas para detectar problemas como arritmias, seguidas da dose elevada, destinada a produzir os efeitos de controle da dependência. Kogan e Prueger
DEPENDENTE DE HEROÍNA, Bryan Mallek (acima) aguarda ansioso o tratamento com ibogaína na clínica Envision. Ao lado, Shea Prueger e Lex Kogan administradores da clínica, acreditam que a ibogaína pode curar também a depressão
acompanharam o progresso de pacientes por meio de telefonemas e e-mails voluntários ao longo de meses e até anos, e eles afirmam que esse regime pode curar 75% das pessoas que os procuram. Tais alegações soam bem, mas não há ciência sólida para corroborá-las, diz Luis Eduardo Sandí Esquivel, diretor do Instituto de Alcoolismo e Farmacodependência da Costa Rica, a agência governamental que licencia centros de tratamento para adicções. Clínicas que oferecem ibogaína estão apenas se aproveitando de pessoas vulneráveis, acusa ele: operadores criam rituais místicos em torno da droga e dizem aos viciados: “A ibogaína reprogramará o cérebro e eliminará a dependência. E é claro que as pessoas pagam somas enormes por uma proposta tão bonita e mágica, mas isso está longe da realidade”. Sandí diz receber relatos de complicações médicas graves e recaídas que levam a visitas de retorno, embora sua agência não teabril 2017 • mentecérebro 73
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nigel dodds/alamy latinstock
GALHO, EXTRATO E PÓ de ibogaína: em um dos estudos sobre os efeitos da droga, dois terços dos pacientes conseguiram chegar à metade do processo antes de desistir; um terço completou os 12 meses previstos; os dados preliminares mostraram que todos se beneficiaram de alguma forma com a redução em sintomas de abstinência
tamento. Essa porcentagem é favorável em comparação com a de viciados que param de tomar metadona: somente 20% destes não têm reincidências. Schenberg constatou também que adictos que receberam múltiplas terapias de ibogaína ficaram longe de drogas por mais tempo ainda: um período médio de 8,4 meses. O antropólogo médico Thomas Kingsley Brown conduziu um estudo não publicado que acompanhou 30 usuários crônicos de drogas por um ano após terem recebido tratamento com ibogaína em duas clínicas no México. Brown, que trabalha com a Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos na Califórnia, e seus colegas chamavam essas pessoas todos os meses e lhes davam um questionário denominado Índice de Severidade de Adicção, que mede o progresso em várias áreas problemáticas associadas à dependência, como bem-estar psiquiátrico e social. Dois terços dos pacientes conseguiram chegar à metade do estudo antes de desistir; um terço completou todos os 12 meses. Os dados preliminares mostraram que todos se beneficiaram do que Brown qualifica como “enorme redução em sintomas de abstinência”. Os que concluíram o ano tiveram melhorias significativas em bem-estar social. O estudo não os acompanhou por mais tempo; portanto, Brown não sabe quantos reincidiram nas drogas, se é que algum reincidiu. Apesar do comentário depreciativo de Mallek sobre “terapia verbal”, Brown considera que a ibogaína não pode funcionar bem sem ela. O aconselhamento ajuda pacientes a identificar causas da dependência, como trauma emocional ou dor física, e a ibogaína, argumenta ele, interrompe as “fissuras, os desejos compulsivos físicos e reprime sintomas de abstinência. Esse duplo efeito pode, de acordo com Brown, “fortalecer bastante a determinação de pessoas de viver novamente vidas sóbrias e honestas”.
nha poderes legais para fazer qualquer coisa a respeito. “Acho que (clínicas) apelam para o sofrimento e a dor de pessoas e oferecem soluções mágicas. É uma manipulação”, diz ele. Existem alguns estudos realizados por cientistas brasileiros que sustentam a noção de que a ibogaína é terapêutica (veja quadro na pág. 78). Em 2014, uma pesquisa liderada pelo neurocientista brasileiro Eduardo Schenberg, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reavaliou as histórias de 75 adictos um ano depois de terem tomado uma grande dose de ibogaína. (Schenberg conduziu entrevistas telefônicas e corroborou dados com médicos que atenderam esses pacientes durante check-ups periódicos.) Ele descobriu que 61% deles permaneceram “limpos” durante cinco meses e meio após um único tra-
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O LIMIAR DA SEGURANÇA Nenhum dependente levará uma vida decente, é claro, se a ibogaína os matar. Os riscos cardíacos foram bem documentados. Existe também o potencial de causar danos ao cérebro. Na década de 90, vários estudos animais con-
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duzidos na Universidade Johns Hopkins mostraram graves lesões cerebrais e degeneração de células cerebelares de Purkinje – grandes neurônios que controlam aspectos da função motora – em ratos que receberam doses de cerca de 100 mg/kg de ibogaína (equivalente a uma dose humana de mais ou menos 16 mg/kg). Além disso, em 1996 um estudo da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos mostrou, em ratos que receberam 100 mg/kg da droga, um enorme aumento da proteína glial fibrilar ácida (GFAP, em inglês), o que pode enfraquecer a estrutura de células do cérebro e da medula espinhal, em certas partes do cérebro: até 215% no tronco cerebral e até 142% no estriado. Não houve efeito observado no cerebelo. A extensão de danos em células de Purkinje e o potencial para danos decorrentes de grandes aumentos ou picos de GFAP parecem vinculados à dosagem. Quando pesquisadores do Albany Medical College ministraram doses de 40 mg/kg de ibogaína a ratos viciados em opiáceos (cerca de 6,5 mg/kg em humanos de tamanho normal; a grande dose de Mallek foi de aproximadamente 8 mg/kg), não houve nenhuma degeneração observável em células de Purkinje. Num estudo da Universidade do Arkansas e do Centro Nacional para Pesquisa Toxicológica, alguns ratos receberam doses mais baixas, de 25 mg/kg, mais de uma dezena de vezes por um mês, sem evidências observadas de neurotoxicidade. Em humanos, doses menores (de apenas 4,5 mg/kg) provaram ser fatais para um paciente confirmado. O status restritivo como substância de classe I da ibogaína e a falta de fontes de financiamento tornaram quase impossível pesquisadores realizarem estudos toxicológicos clínicos em humanos para descobrir por quê. Em 1993, Deborah Mash, neurofarmacologista na Escola de Medicina da Universidade de Miami, conseguiu aprovação do FDA, órgão do governo americano que controla alimentos e medicamentos, para começar um estudo de segurança da ibogaína em voluntários dependentes de cocaína. Os resultados iniciais foram positivos: as primeiras doses, de 1 e 2 mg/kg, não prejudicaram ninguém. Mas, quando Mash procurou obter financia-
mento do NIDA para conduzir pesquisas com doses mais elevadas e iniciar um estudo mais abrangente, que incluía investigar a segurança, medir o tempo que levava para pacientes metabolizarem a droga e determinar se nessas pessoas quaisquer genes afetavam esses resultados, o instituto recusou, alegando que a ibogaína era simplesmente imprevisível demais para ensaios clínicos em humanos. “É o pesadelo de qualquer farmacologista”, diz Frank Vocci, ex-chefe de pesquisa de abuso de drogas no FDA, que supervisionou estudos de ibogaína no NIDA nos anos 90. Um dos principais problemas com a droga é que era muito difícil estimar uma dose previsível e segura para uma população variada. “Examinamos os estudos e encontramos algo como duas fatalidades por cem pessoas que
PREOCUPAÇÕES CARDÍACAS: na Envision, enfermeiros examinam Mallek para verificar ritmos cardíacos anormais
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Quando um opiáceo forte como a heroína entra no corpo, provoca uma liberação de dopamina e outros neurotransmissores nos centros de recompensa, criando o “barato”; se a pessoa continua a usar a substância, as redes neurais nos centros de recompensa do cérebro se acostumam a esse estímulo
tinham tomado ibogaína”, diz Vocci. “Não se pode executar um programa com tal risco. Os dados de segurança são ruins demais.” Mash, porém, achou que seus resultados iniciais significavam que ela estava no caminho certo (de uma descoberta), apesar dos receios do NIDA. Com financiamento de investidores privados e dos próprios pacientes, ela continuou sua pesquisa sobre o metabolismo, a segurança e a eficácia da droga em mais de 300 usuários crônicos em uma clínica na ilha caribenha de San Cristóbal, de 1996 a 2004. Usando dados de acompanhamento de pacientes após o tratamento, Mash relatou que a desintoxicação com ibogaína bloqueou pelo menos 90% dos sintomas de abstinência em usuários crônicos de heroína. Mais da metade dos pacientes permaneceu “limpa” um ano após o tratamento, segundo relatos pessoais e entrevistas com familiares. Mash usou esse trabalho para desenvolver uma teoria sobre como a ibogaína funciona no cérebro e o que a torna tão poderosa. Da perspectiva molecular, todos os momentos eufóricos da vida – de alegria, satisfação e excitação – são resultado de dopamina, serotonina e outras substâncias químicas, chamadas neurotransmissores, que emitem sinais por meio de bilhões de células nervosas nos centros de recompensa do cérebro. Quanto mais neurotransmissores estiverem ativos nessas áreas, melhor nos sentimos. Quando um opiáceo forte como a heroína entra no corpo, provoca uma liberação de dopamina e outros neurotransmissores nos 76
centros de recompensa, criando o “barato”. Se uma pessoa continua usando heroína, o cérebro se acostumará à presença constante da droga, e as redes neurais nos centros de recompensa se adaptarão. Se uma pessoa para o uso, corpo e cérebro começam a ansiar pelas substâncias químicas que não estão mais ali, e o resultado são as “fissuras”. A ibogaína funciona, explica Mash, porque não se limita a substituir a heroína num desses caminhos neurais, como faz a metadona, por exemplo. No corpo, a ibogaína se dissocia em noribogaína, que afeta vários caminhos – inclusive o sistema de dopamina, juntamente com circuitos que envolvem neurotransmissores como a serotonina e a acetilcolina – que interagem para repassar ou bloquear sinais de desejos compulsivos (veja pág. 75). Mas, sem verbas, Mash não foi capaz de verificar ou explicar mais detalhadamente esse trabalho preliminar. “O ‘x’ da questão é que, sem verbas dos Institutos Nacionais de Saúde ou de um patrocinador da indústria farmacêutica, não se avança”, diz ela. PROCESSO DE DESINTOXICAÇÃO Para Stanley Glick, os custos e benefícios da ibogaína se equilibrariam muito mais facilmente com menos efeitos colaterais. Professor emérito no Centro Médico de Albany, Nova York, Glick ouviu falar pela primeira vez sobre o potencial e os perigos da droga na década de 90. Ele e o químico Martin E. Kuehne começaram a tentar destilar os agentes ativos da ibogaína, deixando todos os seus componentes tóxicos para trás. Em 1996, os dois desenvolveram um análogo sintético de ibogaína chamado 18-metoxicoronaridina, ou 18-MC. Nos anos 90, pesquisas com animais de laboratório mostraram que o 18-MC bloqueava receptores nicotínicos alfa-3 beta-4 no cérebro, que, acredita-se, desempenham um papel significativo na dependência, sem afetar o sistema serotoninérgico. Pesquisadores acreditam que esse sistema é em grande parte responsável pelas alucinações causadas pela ibogaína. “Ele exerce um efeito inibidor sobre qualquer coisa que aumente demais o nível de dopamina”, diz Glick – tudo, de heroína a álcool e alimentos. Na década passada, Glick liderou vários
estudos sobre a eficácia da ibogaína e do 18MC para conter vícios em roedores e humanos. Após algumas tentativas frustradas anteriores de levar o 18-MC ao mercado, em 2009 ele formou uma parceria com a Savant HWP, empresa privada de desenvolvimento de medicamentos. Em setembro de 2014, a Savant HWP recebeu mais de US$ 6,5 milhões do
NIDA para conduzir ensaios humanos com o 18-MC. Os resultados de um estudo duplo-cego, controlado por placebo e não publicado, realizado em 2014 pela empresa parceira da Savant HWP no Brasil, mostraram que todos os voluntários que receberam dosagens terapêuticas de 18-MC não sofreram efeitos adversos da droga, isto é, alucinações, rea-
UMA TEORIA SOBRE OS EFEITOS NO CÉREBRO Drogas como a heroína causam desejos muito intensos ao aumentar a atividade da substância química cerebral dopamina. Uma substância chamada noribogaína pode inibir a dopamina de várias maneiras, de acordo com uma teoria de Deborah Mash, neurofarmacologista da Universidade de Miami. A noribogaína impede a liberação de dopami e também afeta dois outros caminhos no cérebro que podem control molécula, explica ela. Mas, como a noribogaína vem de uma substân mãe, a ibogaína, que já matou pessoas, estudar seus efeitos é difícil
ACETILCOLINA
debora mash: “the role of the habeluna in drug addiction, “de kenia m. velasquez et al. em frontiers in human neuroscience, vol 8, artigo nº 174, 28 de março de 2014
SEROTONINA As áreas da rafe dorsal e mediana têm neurônios que produzem o neurotransmissor serotonina. A noribogaína incita essas células a enviar mais serotonina para a substância negra, desacelerando a atividade de neurônios produtores de dopamina.
A noribogaína estimula neurônios nas habênulas que produzem o neurotransmissor acetilcolina. Essa substância química inibe a atividade de neurônios de dopamina mais adiante no circuito retransmissor de recompensa da adicção, ou dependência.
Giro cingulado
Habênula Hipotálamo Núcleo dorsal da rafe Núcleo mediano da rafe
Amígdala ATV
Hipocampo
Substância negra
DOPAMINA Neurônios produtores de dopamina na substância negra (ou nigra) e na área tegmental ventral (ATV) são estimulados por drogas adictivas. A noribogaína, que se liga a receptores nesses neurônios, inibe a liberação de dopamina e limita seu efeito sobre outras áreas, inclusive a habênula, a “estação de retransmissão” do circuito de adicção.
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especial HÁ INDÍCIOS DE EFICIÊNCIA, MAS AINDA FALTAM PESQUISAS No Brasil, o uso da ibogaína também é uma questão polêmica. A substância não tem registro nem foi avaliada pela Anvisa quanto a segurança e eficácia. Ou seja, não poderia ser comercializada no país. Apesar disso, basta digitar o nome do produto em sites de busca para encontrar a oferta de terapia em pelo menos quatro sites. Em novembro do ano passado, a agência suspendeu a fabricação de todos os produtos irregulares de cinco empresas. Uma das empresas notificadas, o Centro de Referência em Tratamento Alternativo, alegava que o produto formulado com ibogaína “estimula a mente a sonhar, mesmo com a pessoa acordada e consciente, sem mudança na percepção do meio ambiente e sem ilusões, aceleração de pensamentos e dificuldade de concentração”. A assessoria de imprensa da Anvisa informa que a substância “não consta no rol de substâncias de uso controlado ou proscrito (proibido) no país e até o momento não existem produtos registrados como ibogaína”. “Não nos foram apresentados dados de publicações técnico-científicas ou estudos não clínicos e clínicos que suportem a segurança e eficácia dessa substância ou do derivado vegetal de iboga. Portanto, não é possível conhecer quais os benefícios da utilização nem quais os efeitos colaterais que pode causar.” Uma revisão científica a respeito do uso da ibogaína no tratamento da
DERIVADA DE UM ARBUSTO da floresta tropical africana, a substância pode ajudar dependentes químicos a superar desejos compulsivos de consumir drogas porque restaura vias neurais danificadas, segundo defensores da terapia
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dependência química realizada pelas pesquisadoras brasileiras Deborah Thomaz Duarte de Azevedo e Maria Célia Vitor de Souza Brangioni, do Serviço de Estudos e Atenção a Usuários de Álcool e Outras Drogas, da Universidade de Brasília (UnB), revelou que já foram registradas mortes em decorrência da ingestão de ibogaína. De acordo com as autoras da pesquisa, estudos toxicológicos em primatas demonstraram que a ibogaína é segura nas doses recomendadas para o tratamento da dependência química, mas há casos em que o uso pode causar arritmias ventriculares. Os efeitos colaterais mais comuns, no entanto, são náusea, vômito, fotossensibilidade, discretas alterações da pressão arterial, tremores e ataxia, que ocorrem nas primeiras horas após a ingestão da ibogaína, com remissão completa após 48 horas. As médicas reconhecem indícios preliminares da eficácia da ibogaína nos processos de desintoxicação de opioides, na estabilização e manutenção da abstinência de curto prazo em dependentes de drogas enquanto se preparam para iniciar o tratamento de longo prazo. Segundo elas, “a ibogaína parece ter o benefício adicional de ajudar o paciente a consolidar sua resolução de interromper o uso abusivo de substâncias e ganhar autocontrole sobre seus comportamentos destrutivos”. Ainda assim, ressaltam a necessidade de mais investigações sobre propriedades farmacológicas e segurança do uso terapêutico da substância. (Da redação)
ções cardíacas, danos em células de Purkinje ou qualquer outra neurotoxicidade. A Savant HWP planeja conduzir ensaios clínicos de 18MC no Brasil com fumantes. Mash não está muito atrás. Inspirada pelos resultados de oito anos de ensaios com ibogaína em San Cristóbal, ela ajudou a fundar a DemeRx, uma empresa privada de pesquisa para o desenvolvimento de medicamentos que trabalha para levar ao mercado a noribogaína, outra droga derivada da ibogaína. Em outubro de 2014, com base na pesquisa da empresa, cientistas da Nova Zelândia concluíram um estudo de segurança da noribogaína em 36 homens voluntários saudá-
veis, livres de drogas. Eles receberam várias doses terapêuticas orais da droga ou um placebo e, em seguida, foram monitorados ao longo de 216 horas. Os cientistas disseram que não houve efeitos adversos nem do placebo nem da noribogaína. Pesquisas iniciais sugerem que a noribogaína, assim como o 18-MC, também pode conter sintomas de abstinência e controlar dependência química, mas sem os mesmos efeitos colaterais. Estudos toxicológicos pré-clínicos da DemeRx ainda inéditos demonstraram que a noribogaína, com duas semanas de exposições crônicas, não causa alguns dos problemas neurológicos observados por outros estu-
dos: degeneração de células cerebelares de Purkinje ou ativação da proteína GFAP. A empresa entrou com um pedido de autorização para uma nova droga investigacional (IND, na sigla em inglês) nos Estados Unidos para a noribogaína, e estão em curso hoje estudos de prova de conceito para a droga. O grupo de pacientes que mobiliza Glick e Mash inclui também pessoas com uma doença muito mais comum: depressão. Hoje, um em cada 10 americanos toma algum antidepressivo; nas mulheres de 40 e 50 anos, o total é de um em quatro. Fármacos “que melhoram o humor”, como a fluoxetina, mais conhecida pelo nome comercial Prozac, agem como inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRSs), bloqueando a reabsorção de serotonina por um neurônio. A serotonina é um neurotransmissor que desempenha um papel no envio de mensagens no cérebro; um aumento de serotonina intensifica a atividade cerebral, que parece melhorar o humor de pacientes com depressão. Mas o Prozac e outros ISRSs nem sempre são eficazes. Segundo estudo de 2010 publicado no periódico científico Journal of the American Medical Association, placebos tiveram o mesmo efeito que ISRSs na maioria das pessoas com depressão moderada ou leve. Um estudo financiado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, de 2006, constatou que cerca de 70% dos usuários de ISRSs sentiram os mesmos sintomas depressivos após 14 semanas. Desiludidos, vários pacientes se voltam para a ibogaína para normalizar seu suposto desequilíbrio químico. DEMANDA E OFERTA Lex Kogan diz que cerca de 80% dos pacientes que sofrem de depressão e buscam a Envision Recovery param de tomar ISRSs e vão embora saudáveis após o tratamento. Embora não haja corroboração científica para essa alegação, ele diz que sua clínica registrou um aumento de 300% em usuários de ISRSs em comparação com três anos atrás; tais pacientes agora são 30% dos clientes da clínica. Kogan prevê que esses números dobrarão nos próximos anos. E Glick crê que um análogo não tóxico da ibogaína será uma adição importante ao arsenal de antidepressivos.
Na Envision, quatro dias depois de ter recebido sua grande dose de ibogaína, Mallek estava com pressa para fazer as malas antes de pegar um ônibus para a costa oeste da Costa Rica, onde faria turismo. “Vou ver alguns macacos, sentar em uma praia, não importa!”, anunciou. Seu rosto estava corado, e ele estava falante e cheio de energia. “Não sinto fissuras nem nenhum sintoma de abstinência”, disse sorrindo. “As pessoas tentam parar de tantas maneiras diferentes, e todas elas falham. Mas isso funciona para todos. Essa coisa é um milagre.” Mallek, porém, está enganado. De fato, a ibogaína não funciona para todo mundo. Nem sequer funcionou para Mallek dessa vez. Ele permaneceu “limpo” por quatro meses e então teve uma recaída. Pacientes como ele e as preocupações sobre danos causados pela droga são as razões por que – até haver ensaios clínicos controlados com placebos, randômicos e duplo-cegos em vários centros – a ibogaína permanecerá às margens de terapias para dependências químicas, relegada a clínicas não regulamentadas. E nada dessa rigorosa pesquisa está no horizonte, porque as preocupações de segurança tornam improvável que instituições governamentais nos Estados Unidos ou na Europa destinarão verbas para ela. Empresas farmacêuticas privadas demonstraram pouco interesse na droga por causa desse mesmo perigo e porque ela não é facilmente patenteável. Ainda assim, o grande número de adictos que procuram expurgar seus demônios significa que a ibogaína não desaparecerá tão cedo. Mallek, por exemplo, não culpou a droga por sua recaída; em vez disso, responsabilizou a própria fraqueza. “Não quero dizer que a ibogaína devolve às pessoas suas vidas, trata-se mais de que ela dá às pessoas a capacidade de retomarem suas vidas”, escreveu-me num e-mail. “Mas liberdade sem sabedoria pode ser uma coisa perigosa.” Mallek achou também que tinha adquirido algum conhecimento, pelo menos no que tange a suas falhas pessoais. Determinado a “ficar limpo”, ele estava planejando uma viagem de volta à Envision para um tratamento de acompanhamento. Não importa quais os riscos.
PARA SABER MAIS Noribogaine reduces nicotine self-administration in rats. Qing Chang et al., em Journal of Psychopharmacology, vol. 29, nº 6, págs. 704-711; junho de 2015. The anti-addiction drug ibogaine and the heart: a delicate relation. Xaver Koenig e Karlheinz Hilber, em Molecules, vol. 20, nº 2, págs. 2208-2228; fevereiro de 2015. Treating drug dependence with the aid of ibogaine: a retrospective study. Eduardo Ekman Schenberg et al., em Journal of Psychopharmacology, vol. 28, nº 11, págs. 993-1000; 29 de setembro de 2014. Ibogaine in the treatment of substance dependence. Thomas Kingsley Brown, em Current Drug Abuse Reviews, vol. 6, nº 1, págs. 3-16; 2013.
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livros | lançamentos PERFIS
Freud, Mary Baker e Franz Mesmer
A cura pelo espírito. Stefan Zweig. Zahar, 2017. 360 págs. R$ 69,90
PSICANÁLISE
SAÚDE MENTAL
PSICOLOGIA E PRÁTICA
ANSIEDADE
O papel do silêncio
Lacan e psiquiatria
Obra de referência
TOC para leigos
A gramática do silêncio em Winnicott explora os sentidos do silêncio no processo psicanalítico. O psicanalista Sergio Gomes percorre as teorias de Donald Winnicott e de outros nomes da Escola Inglesa de Psicanálise para traçar relações entre as comunicações analista-analisando e mãe-bebê nos primeiros anos de vida, quando a língua falada ainda não é possível e a transmissão de informação ocorre além de palavras.
Uma interface entre as teorias de Jacques Lacan e a psiquiatria. Em Elogio a Jacques Lacan, o médico e psicoterapeuta Wilson Castello de Almeida confronta a noção de que as ideias do psicanalista francês são de difícil compreensão para pessoas que não estudam psicanálise, apresentando suas teorias de forma mais acessível para profissionais da saúde mental. O autor analisa a prática clínica lacaniana, destacando suas contribuições para a psicoterapia.
Reformulada de acordo com os critérios diagnósticos do DSM-5, a quinta edição do Manual clínico dos transtornos psicológicos é um guia prático para estudantes e profissionais da saúde mental. Organizado por David Barlow, diretor do Centro de Ansiedade e Transtornos Relacionados da Universidade de Vermont, o livro apresenta um panorama de métodos de intervenção baseados nos avanços da pesquisa nos campos da psiquiatria e da psicoterapia cognitivo-comportamental.
Com prevalência estimada em 2,5% da população, o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é um transtorno de ansiedade que se caracteriza por comportamentos repetitivos, como verificar vezes seguidas se a porta foi trancada ou lavar as mãos várias vezes em poucas horas. Em Mentes e manias, a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa explica o TOC de forma simples e clara para o público leigo. A intenção é esclarecer da perspectiva da psiquiatria pessoas com os sintomas ou quem convive com elas sobre o diagnóstico e tratamentos.
A gramática do silêncio em Winnicott. Sergio Gomes. Zagodoni Editora, 2017. 240 págs. R$ 60,00
Elogio a Jacques Lacan. Wilson Castello de Almeida. Summus Editorial, 2017. 264 págs. R$ 86,80
Manual clínico dos transtornos psicológicos – Tratamento passo a passo. David H. Barlow (org.). Artmed, 2016. 784 págs. R$ 170,00
Mentes e manias – TOC: transtorno obsessivocompulsivo. Ana Beatriz Barbosa Silva. Principium, 2017. 240 págs. R$ 39,90
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imagens: divulgação
A importância da mente nos processos de adoecimento e de cura passou a ser mais bem aceita pela comunidade científica apenas no início do século passado, com a disseminação das teorias de Sigmund Freud. Escrito pelo austríaco Stefan Zweig em 1931, A cura pelo espírito traça o perfil do criador da psicanálise e de outras duas personalidades pioneiras no estudo das relações entre mente e corpo: Franz Mesmer, pesquisador da hipnose, e Mary Baker Eddy, estudiosa das relações entre fé e saúde e criadora do movimento Ciência Cristã. Volume da série Stefan Zweig, a obra traz também uma relação de correspondências – inéditas em português – trocadas entre o autor e Freud, de quem era amigo.
DESENVOLVIMENTO INFANTIL
Poder do afeto A psicanalista Sue Gerhardt discute a influência do afeto sobre o desenvolvimento cognitivo e emocional em Por que o amor é importante – Como o afeto molda o cérebro do bebê. Resultado de anos de pesquisa e atuação profissional da autora no Oxford Parent Infant Project (OXPIP), organização que oferece atendimento psicoterápico a bebês na Inglaterra, a obra traz orientações para que pais, profissionais da educação infantil e responsáveis por políticas públicas possam contribuir para formar crianças menos propensas a desenvolver transtornos psíquicos.
Por que o amor é importante – Como o afeto molda o cérebro do bebê. Sue Gerhardt. Artmed, 2017. 302 págs. R$ 57,00
Um baralho para tratar sintomas de TDAH Cerca de 5% das crianças no mundo apresentam sintomas que caracterizam o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). O diagnóstico é clínico, sem evidência neurobiológica, mas acredita-se que os sintomas, como dificuldade de controlar comportamentos impulsivos e de sustentar a atenção, possam estar relacionados a alterações em áreas do cérebro associadas às funções executivas, habilidades muito importantes para o aprendizado e a socialização. Considerando a complexidade do TDAH, a psicóloga Luciana Tisser desenvolveu um baralho ilustrado para auxiliar os psicólogos a trabalhar os sintomas com seus pacientes de forma lúdica. A criança é estimulada a se identificar com os desenhos das 36 cartas, que trazem exemplos de situações comuns do TDAH – como interromper com frequência as falas de outras pessoas e não acompanhar explicações –, e descobrir o que os personagens fazem para buscar conviver melhor com os sintomas. A ferramenta pode ser usada também por professores e pais. O objetivo da autora é possibilitar que a criança se conscientize, fortaleça sua autoestima e desenvolva um papel mais ativo em seu tratamento.
TDAH: baralho do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade.
Luciana Tisser. Sinopsys, 2017. 36 cartas. R$ 119,00
abril 2017 • mentecérebro 81
limiar neurociências
O amor à meia-noite
E
m chimpanzés, bonobos e humanos, a etologia documenta com nitidez o duplo instinto de amor e ódio, emoções teoricamente opostas, mas umbilicalmente ligadas na prática. Em certas circunstâncias agradáveis, somos fornalhas de prazer e carinho. Em outras situações, perigosíssimas, locomotivas de agredir e eliminar. Ecos renitentes de milhões de anos caçando comida e sexo, cuidando de filhotes frágeis e fugindo de predadores letais, principalmente os da própria espécie. Somos uma mistura louca de emoções porque resultamos da longa caminhada que sempre premiou o melhor comportamento para os queridos, e o pior comportamento para os “outros”. Nessa encruzilhada de instintos e razão, contraditoriamente sofremos, gozamos e pensamos. Nossos conhecimentos nas diversas áreas da ciência já permitiriam redimir de uma vez por todas o sofrimento material e psíquico, concedendo ao instinto do amor a vitória final sobre a morte. Mas enormes muralhas de tradições e preconceitos se levantam contra o projeto libertário, e o âmago da luta se dá na repressão do corpo, tanto da maioria feminina quanto da minoria gay, em frequente associação com o racismo. Não é por acaso que o suingue e o tesão da dança vêm dos quadris da África. Fundamentalistas de diferentes culturas divergem em muitas coisas, mas são igualmente pa-
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triarcais, castradores, caretas e letais. O embate é explosivo e parece longe de se definir. No último século, as lutas feministas e LGBT se afirmaram e obtiveram vitórias épicas. A aceleração da transmissão de informações e a luta por direitos legítimos resultaram numa conscientização sem precedentes sobre respeito, igualdade e liberdade. As vítimas do patriarcado rejeitam ativamente viver com medo dos trogloditas. Entretanto, a massa ignara, os iletrados, os “bugres, mulatos e analfabetos” dos sertões do Goiás profundo a Nova Déli são presa fácil do preconceito e da intolerância recebidos em doses cavalares via televisão aberta. Por tudo isso, foi histórico o programa Amor e sexo, exibido dia 9 de
SIDARTA RIBEIRO
fevereiro, pela Rede Globo, dedicado à desconstrução elegante mas didática do porco-chauvinismo brazuca. Fernanda Lima e seus convidados, entre os quais o heroico Ney Matogrosso, trouxeram ao público brasileiro uma conversa franca, relaxada e inteligente sobre temas tão ofensivos ao patriarcado quanto a obrigação masculina de transar, a proibição do choro, a cantada gay e o fio-terra. O programa foi de uma pedagogia firmíssima, em que Fernanda periodicamente pausava o frenesi do showbiz e explicava com todas as palavras que ser homem com H não é ser machocrata. Dedo na ferida e noutras partes, perguntas claras e celebração da libido. O programa terminou com um bailado sensual em que os dançarinos coalesceram em torno de um homem nu. Momento de verdadeira ofensiva ideológica do amor contra a morte, tão frontal quanto o belo desnudamento abraçado por homens e mulheres no horizonte cenográfico. Batalha franca contra o machismo, capaz de agitar os vastos pastos dos que comem toda a relva verde dos fiéis. Guerrilha cultural na maior rede de TV aberta do Brasil – ainda que à meia-noite. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
andrei verner (foto); shutterstock (imagem)
O programa Amor e sexo, exibido dia 9 de fevereiro, pela Rede Globo, apresentou uma desconstrução elegante e didática de ideias machistas