ESPECIAL | O PESADELO DO ABUSO EMOCIONAL, FÍSICO E SEXUAL ANO XII
TRABALHO Como a ciência pode ajudar na entrevista de emprego
TÉDIO Tecnologia é aliada no combate à sensação de desânimo psicologia
psic nálise
n urociência
FAXINA CEREBRAL
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ISSN 1807-1562
00292
As tubulações que limpam o lixo tóxico durante o sono
Jej
Riscos e benefícios do
Há indícios de que a restrição calórica combata Alzheimer, Parkinson e aumente a longevidade. Mas especialistas alertam: não é recomendado para todos
carta da editora
Hora de fechar a boca?
H
á séculos nossa espécie convive com a prática do jejum – seja por necessidade, em razão de tempos de grande escassez, por opção, em razão de motivos religiosos ou, mais recentemente, adotando a abstenção alimentar (e em muitos casos a restrição calórica intensa) para perda de peso ou até motivo de saúde. A questão, porém, é polêmica. Especialistas reconhecem que o fasting induz a um processo chamado autofagia, importante na reciclagem de material intracelular, capaz de contribuir para manter positivamente o metabolismo energético, evitando a degradação e favorecendo a reciclagem de proteínas, glicogênio ou lipídeos, relacionados com doenças neurodegenerativas como Parkinson e Alzheimer. Mas essa é só uma parte da história. Estudos apontam também que o jejum prolongado pode causar danos ao nosso corpo quando feito de maneira desregulada. Alguns profissionais são assertivos: ficar muitas horas sem comer faz mal, asseguram. Outros alertam para o fato de que a prática não é para qualquer pessoa, porém, pode trazer benefícios. As pesquisas com seres humanos ainda são escassas nessa área, mas as discussões que nos últimos meses têm aparecido cada vez com mais frequência nas redes sociais mobilizam muita gente. Também nesta edição, outro tema se destaca: dois textos sobre diferentes abordagens do abuso. O artigo da advogada Allison Bressler, especializada em psicologia social, trata da violência contra a mulher. O texto do psicólogo brasileiro Luca Loccoman fala da atração sexual (muitas vezes inconfessa) por crianças. Em ambos os casos, todos os envolvidos – incluindo agressores (ou potenciais agressores) precisam de atenção para que situações trágicas possam ser evitadas. Muitas vezes, as pessoas em grave situação de risco podem estar mais próximas do que imaginamos, ao alcance de um olhar, uma palavra. Mas é importante que, antes de mais nada, haja disponibilidade para ouvir. Boa leitura!
GLÁUCIA LEAL, editora-chefe
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sumário | maio 2017
CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
capa
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O poder do jejum por Ulrike Gebhardt Abster o organismo de alimentos por alguns períodos pode ajudar a combater a depressão, estimular a reciclagem dos neurônios, fortalecer a memóriaHDW« diminuir sintomas de demência. A privação, porém, não é um consenso. Médicos e pesquisadores dizem que, em muitos casos, pode ser prejudicial
14 As duas faces do narcisismo Psicólogos propõem “subdivisão do traço de personalidade, necessário para a autoestima, mas que em excesso é prejudicial
28 O fascínio pelos sonhos por Moacyr Scliar
O simbolismo das produções oníricas sempre intrigou as pessoas desde a Antiguidade. Hoje atrai psicanalistas e neurocientistas
especial
40 Medicamento para diabetes combate Alzheimer? A metformina, um remédio seguro e barato, pode desacelerar ou reverter a demência e o comprometimento cognitivo
42 Faxina cerebral por Maiken Nedergaard e Steven A. Goldman
Abuso 55 emocional, físico e sexual As variadas formas de violência, muitas vezes praticadas por pessoas afetivamente próximas, deixam marcas não só no corpo, mas também no psiquismo e podem culminar em desfechos fatais. Mulheres e crianças são as principais vítimas
56 Uma história como tantas outras 70 A estranha atração por crianças 4
Enquanto dormimos, ocorre uma espécie de limpeza orgânica para retirar lixo tóxico do cérebro. O acúmulo de resíduos está associado a distúrbios de memória e aprendizagem
50 Culturas diversas, emoções mais explícitas Habitantes de países que ao longo de sua história receberam maior quantidade imigrantes costumam exibir o que sentem com maior clareza
52 Um pouco de ciência para arrumar emprego Pesquisas mostram quais comportamentos aumentam as chances de obter a colocação profissional desejada
seções 3 CARTA DA EDITORA
6 PALAVRA DO LEITOR
8 ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades, psicologia e psicanálise
11 NA REDE O que há para ver e ler na internet
26 NEUROCIRCUITO Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
36 CIÊNCIA PARA VIVER MELHOR
Está entediado? O computador sabe! por Rachel Nuwer
novidade Um universo de conhecimento ao alcance de um toque Parceria entre Biblioteca Pearson e Mente e Cérebro permite acesso a centenas de livros e artigos Imagine ter diante dos olhos um mundo repleto de informações da mais alta qualidade sobre psicologia, psicanálise, neurociência, orientação vocacional, avaliação neuropsicológica, psiquiatria, educação e filosofia que podem ser consultadas a qualquer momento. Uma parceria entre Mente e Cérebro e Biblioteca Pearson Clinical Brasil proporciona exatamente isso aos leitores. São 16 edições, 12 mensais impressas da revista (também em versão digital) e quatro especiais digitais sobre temas específicos, além do acesso à biblioteca virtual da editora Pearson, uma plataforma com centenas de livros disponíveis para serem acessados onde, quando e quantas vezes o leitor quiser. Os dois produtos têm tradição no universo do conhecimento, da divulgação científica e da formação profissional. Em quase 13 anos de circulação no Brasil, Mente e Cérebro, integrante do grupo Scientific American Internacional, publicou aproximadamente 1.500 artigos e mais de 1.700 notas voltados para profissionais da área da saúde mental, em especial psicólogos (de diferentes abordagens), psicanalistas e estudantes dessas áreas. Entre os colaboradores frequentes estão alguns dos mais renomados professores e pesquisadores do Brasil e do exterior. A biblioteca também tem tradição considerável: há 150 anos a Pearson está no mercado, presente em 80 países. Uma das vantagens do acesso ao catálogo – reconhecido pelo Ministério da Educação (MEC) como acervo complementar dos cursos de psicologia – é a constante atualização das centenas de títulos que podem ser lidos no tablet, no computador ou no smartphone, tanto modelos IOS quanto Android. Ao assinar por um ano, de R$ 606,20 por R$ 302,60, o desconto é de 50%. E todo esse material estará disponível por menos de R$ 0,90 por dia. Para maiores informações acesse www.lojasegmento.com.br.
80 LIVROS/LANÇAMENTOS
colunas 12 PSICANÁLISE Ricos e pobres na universidade
Acompanhe a @mentecerebro no Instagram Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
por Christian Ingo Lenz Dunker
82 LIMIAR Memória, sono, sonhos e pesadelos por Sidarta Ribeiro
www.mentecerebro.com.br NOTÍCIAS Notas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos. A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
maio 2017 • mentecérebro
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SOFRIMENTO ANIMAL Não tenho constrangimento de dizer que chorei ao ler “Pelo fim de um legado cruel”, na edição 291, de abril, de Mente e Cérebro. É muito triste que animais sejam maltratados com tanta naturalidade, mesmo que a própria ciência (que os sacrifica muitas vezes sem nenhuma necessidade) já tenha comprovado que eles são capazes de pensar, reconhecer sentimentos alheios e, claro, têm dor e medo. Só por esse fato já deveríamos pensar muito antes de fazer experiências necessárias. Que diremos então daquelas que são totalmente dispensáveis? Eliana Cavalcante – Salvador, BA ética
Edição no 292, maio de 2017, ISSN 1807156-2. Editor-chefe: Carsten Könneker Gerentes editoriais: Hartwig Hanser e Gerhard Trageser Diretores-gerentes: Markus Bossle e Thomas Bleck
A DROGA QUE PODE
A história das crianç as que aprenderam a enxergar
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Fiquei impactada ESPECIAL | com a reportagem especial “Para tratar a dependência química – Quando o remédio pode matar”, publicada na edição 291, de abril, sobre ibogaína, uma substância que poderia ajudar Técnicas moder nas tantas pessoas a se investigam processos complexos livrar do sofrimento que ocorrem O caminho ra no cérebro da dependência entender copa mo nascem química e ainda não está regulamentada no Brasil. O texto muito bem editado e contextualizado deveria ser usado como material de reflexão nas salas de aula. Impressionante também “A história das crianças que aprenderam a enxergar”, da mesma edição. Sandra Regina Gomes Rio de Janeiro, RJ A
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Pelo fim de um
legado cruel
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Ao longo dos anos, experimentos que separam filhotes de macacos de suas mães têm causado sofrimento profundo e desnecessário. Pesquisadores conscientes do mal que a ciência pode fazer argumentam que essas práticas precisam acabar por Barbara J King
A AUTORA BARBARA J KING é douto a em biologia bioantropóloga professora do College of Wil iam & Mary estudou babuínos no Quênia e grandes macacos em cativeiro 62
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riados em isolamento social total ou parcial, agarrados a “mães” de pano ou arame, filhotes de macacos resos submetidos aos experimentos de privação materna do psicólogo americano Harry F Harlow, nos anos 50, passavam por terríveis sofri mentos Desesperados, automutilavam se e apresentavam outros s nais de ansiedade e depressão profunda (veja quadro na pág seguinte) Com base no princíp o de que estudos com animais pod am ajudar a entender a relação entre cu dados maternos e depressão em humanos, a pes quisa de Harlow ainda é discutida em aulas de ps cologia, antropologia e b olog a Exemplo de crueldade e falta de ética, exper mentos ajudaram o pesquisador americano, nascido em 1905, a constatar que as necessidades de um bebê são muito mais complexas do que aplacar a fome; o anseio de se vincular afetivamente a alguém pode induzir humanos e macacos a esco has aparentemente pouco lógi cas ou até desconfortáveis O mais triste é que a profunda dor imposta aos primatas não está confinada aos reg stros histór cos Filhotes de macacos resos ainda são separados à força de suas mães por pesquisadores em laboratórios e submetidos a formas de estresse que os deixam psicológica e emoc onalmente traumatizados abril 2017 mentecérebro 63
SÓ OU EM EQUIPE? Sobre “Grupos descobrem mentiras melhor do que uma pessoa sozinha”, da edição 290. Bobagem. Os pesquisadores deveriam fazer a pesquisa reversa e perceber que grupos também caem mais rapidamente em mentiras do que voluntários sozinhos. Aliás, grupos fazem qualquer coisa mais rapidamente d i l d dã
PSICANÁLISE 1 Adoro Mente e Cérebro, mas tenho sentido falta de textos sobre a história da psicanálise. Amei a série que fizeram sobre esse assunto. Gostaria que fosse ampliada. Rosana Simões Mogi das Cruzes, SP PSICANÁLISE 2 Já há duas edições, não tenho encontrado os ótimos artigos sobre psicanálise que Mente e Cérebro costuma publicar. Temos excelentes profissionais nessa área e a revista é um veículo privilegiado para a divulgação de seus textos. José Ricardo Schiavon Rio de Janeiro,RJ
SONO Parabéns pela Mente e Cérebro Especial A ciência do sono, em versão digital. Walter Júnior – Osasco
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANH Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail
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XEXPOSIÇÃO
Corpo, desejo e transgressão nas obras de Teresinha Soares Escultura e pinturas produzidas nos anos 60 e 70 estão entre os destaques de mostra individual da artista no Masp, em São Paulo
A
os 90 anos, Teresinha Soares guarda memórias de uma trajetória pouco comum: foi professora primária e miss em sua cidade natal, Araxá, em Minas Gerais, e, com 40 anos e mãe de cinco filhos, despontou como artista plástica, chamando atenção pelas inovadoras instalações, telas e performances que abordam o sexo e o corpo. Apesar da curta duração da carreira como artista – entre os anos 60 e 70 –, Teresinha é reconhecida como pioneira na abordagem artística de pautas feministas, como o prazer sexual da mulher e a objetificação do corpo feminino. O Museu de Arte de São Paulo (Masp) exibe até agosto uma coletânea das principais produções da artista, além de fotografias e vídeos de suas performances, na mostra individual Quem tem medo de Teresinha Soares?. 8
O trabalho de Teresinha evoca diretamente o de outra contemporânea, Lygia Clark, pela proposta interativa e sensorial. Isso se vê na performance Camas – formas de corpos femininos recortadas em madeira foram colocadas sobre camas decoradas nas cores de times de futebol, com a inscrição “Ela me deu bola”, onde as pessoas podiam deitar e criar suas próprias performances, refletindo sobre o machismo que permeia as relações afetivas. “Nada melhor para representar o corpo que a cama. Ela é o seu berço, nela você encontra prazer, descanso e sonhos. É onde nasce a vida e encaramos a morte”, disse Teresinha sobre a obra realizada em 1970 e registrada em imagens. Um dos destaques da mostra individual da artista no Masp é a instalação Caixa de fazer amor (1967), um dos
associação livre
seus primeiros trabalhos – uma engenhoca que lembra um moedor de carne prestes a processar dois rostos indefinidos, unidos por um coração (ou por testículos, dependendo da perspectiva). Estão expostas também pinturas da série Acontecências (1967), que abordam a satisfação de fantasias e o desejo, como Mamãe eu quero (1967), e a coletânea de serigrafias Eurótica (1970), sobre a autoexploração da sensualidade do corpo, a despeito da repressão cultural à vivência livre do prazer pela mulher, baseada nas experiências da artista. “Eu me descobri por mim mesma, aprendi a sentir meu corpo, a redesenhar minhas zonas erógenas, a buscar o prazer sem culpa nem castigo”, explicou Teresinha em entrevista à historiadora da arte Marília Ribeiro. A retrospectiva é a primeira grande mostra individual da artista em mais de 40 anos.
fotos: jorge bastos
TRABALHOS DA CURTA CARREIRA ARTÍSTICA DE TERESINHA: escultura Caixa de fazer amor (1967), serigrafia da série Eurótica (1970) e pinturas Mamãe eu quero (1967)
Quem tem medo de Teresinha Soares?. Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateaubriand (Masp). Avenida Paulista, 1578, São Paulo. De terça a domingo, das 10h às 18h. Informações: (11) 3149-5959. R$ 30 (gratuito na terça). Até 6 de agosto. maio 2017 • mentecérebro
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associação livre XTEATRO DRAMA CONTA A HISTÓRIA DE RAPAZ que visita a família do companheiro morto e finge ser apenas um amigo
Uma inusitada sessão de terapia em grupo rês casais de idades e condições financeiras muito diferentes que frequentam uma mesma psicóloga são confrontados com uma proposta inusitada – quando pensam que vão passar por mais uma sessão comum de terapia de casal, descobrem que a terapeuta planejou um encontro no qual eles mesmos deveriam conduzir a sessão naquele dia. Assim se inicia Baixa terapia, texto do argentino Matías Del Federico encenado no Teatro Tuca, em São Paulo. No enredo marcado por humor e ironia, a psicóloga que nunca aparece deixa para os pacientes uma garrafa de uísque e um guia com instruções de como devem desenvolver a sessão. Como é de se esperar, os casais, embriagados e cheios de questões a resolver, vão fazer confissões e entrar em discussões que vão divertir o espectador e despertar algumas identificações com os variados conflitos trazidos pelos personagens. Nas apresentações de todos os últimos sábados de cada mês, haverá tradução do espetáculo em linguagem de libras e acesso a audiodescrição por tablet.
divulgação
ANTÔNIO FAGUNDES PROTAGONIZA texto de humor argentino sobre três casais que frequentam uma mesma psicóloga
renato mangolin
T
Espetáculo aborda luto e homofobia
J
á adaptado para o cinema e para os palcos em diversos países, o texto Tom na fazenda, do dramaturgo canadense Michel Marc Bouchard, recebe sua primeira versão no Brasil. Em cartaz no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro, o drama conta a história de um rapaz que, em luto com a morte do seu namorado, decide visitar a família dele, que vive em uma área rural. Tom, no entanto, não previa o nível de preconceito dos parentes do companheiro, que não sabiam abertamente sobre sua homossexualidade e, abalado emocionalmente, apresenta-se como mero amigo. As cenas mais dramáticas ocorrem entre o protagonista e seu cunhado agressivo e homofóbico, vivido pelo ator Armando Babaioff, que traduziu e produziu o texto de Bouchard, autor premiado, reconhecido pelos textos densamente psicológicos com temática LGBT. “Ele parte da sexualidade para falar de relações humanas”, diz Babaioff.
Baixa Terapia. Teatro Tuca (Teatro da PUC). Rua Monte Alegre, nº 1024, Perdizes,
Tom na fazenda. Oi Futuro. Rua Dois de Dezembro, 63,
São Paulo. Sexta, às 21h30, sábado, às 20h, e domingo, às 19h. Informações: (11) 3670-8455. R$ 60 (sexta), R$ 80 (sábado) e R$ 70 (domingo). Até agosto.
Flamengo, Rio de Janeiro. De quinta a domingo, às 20h. Informações: (21) 3131-3060. R$ 30. Até 15 de maio.
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o que há para ver e ler
| na rede
Três curtas-metragens que abordam redes sociais e “relações líquidas”
O
pensador Zygmunt Bauman criou o conceito de modernidade líquida para se referir à dinâmica atual das relações, marcada pela fragilidade dos laços afetivos. A internet tem papel fundamental nessa nova configuração – ela reforça a ilusão de que estamos a todo tempo Você vive uma vida Instagram? (Do you live an Instagram life?) O vídeo produzido pela organização Ditch the Label e postado em seu canal faz uma crítica ácida aos alter egos que muitos jovens criam no Instagram. O filme de três minutos revela os bastidores de fotografias compartilhadas no aplicativo – usuários na maioria das vezes passam horas produzindo e editando com recursos de filtros e iluminação imagens do seu dia a dia: um café da manhã, uma saída para jantar, a mesa de trabalho. Por trás da aparente espontaneidade, há todo um aparato tecnológico e tempo despendido para apresentar uma realidade pessoal interessante ao olhar do outro (veja em: http://bit.ly/2mS0qfU).
conectados com outras pessoas e que nos relacionamos de alguma maneira com elas. Selecionamos aqui três interessantes curtas-metragens disponíveis no YouTube que fazem refletir sobre o impacto das redes sociais no comportamento e nas relações.
Uma vida social (A social life) O filme de 8 minutos escrito e dirigido pela cineasta americana Kerith Lemon, vencedor de quatro festivais de curta-metragem, conta a história de Meredith, uma bonita mulher de 20 e poucos anos que sofre sintomas de depressão e ansiedade e, confinada em sua casa, posta várias vezes ao dia fotos de sua vida aparentemente movimentada – se maquia para compartilhar a imagem de um suposto “primeiro encontro”, cria cenas coloridas com alimentos para falar sobre sua “cozinha-terapia” e mal se alimenta. A autora divulgou o filme completo em seu canal, Kerith Lemon Pictures (veja em: http://bit.ly/1U4csMk).
imagens: captura de tela
Olá, estranho! (Hello stranger!) A animação criada pela cineasta americana Kirsten Lepore faz uma crítica invertida aos relacionamentos virtuais. Um provocante boneco de massa nu flerta diretamente com o espectador, dizendo palavras de afeto. Convida-o para atentar para as próprias emoções e ver o pôr do sol. O vídeo de menos de 3 minutos teve mais de 1,5 milhão de visualizações em poucos dias. Surpreendem os comentários dos usuários: não são raras as pessoas que reagem à provocação e falam sobre sua solidão. Postado no canal The Clockwise Witness (veja em: http://bit.ly/2nJ4E8G). maio 2017 • mentecérebro 11
psicanálise
inconsciente a céu aberto
Não basta aproximar a desigualdade; só é possível compartilhar um percurso – de desejo ou de amor, de angústia ou de gozo – sem se perguntar, o tempo todo, quem vai pagar a conta
N
os dez últimos anos a universidade brasileira produziu um encontro inédito. Pela primeira vez, ricos e pobres conviveram em uma situação de igualdade de meios. Saímos da assimetria tão amarga que restringia este encontro à convivência entre patrões e empregados, à convivialidade familiar com os funcionários ou ao drama da ascensão social destituída de capital social ou cultural. Vários fatores concorreram para a produção desta nova paisagem: financiamentos estatais massivos, sistemas de cotas, mudança da representação social da educação, ampliação do número de vagas em universidades públicas. Junto com a diferença de classe surgiu uma nova sensibilidade para as diferenças de gênero, etnia, modos de sofrimento ou sintomas. O experimento continua em curso, mas agora que ele se consolida já podemos avistar com mais clareza os novos problemas que temos pela frente. Quem viveu este período pode sentir a mudança de temperatura na sala de aula. São alunos por um lado mais tímidos e, por outro, mais posicionados. A consciência da situação parece ter instituído antes de tudo um cuidado e uma atenção para a própria diferença. São trajetórias e formas de vida distintas que subitamente se encontram, sem aparente preparo preliminar. Uma aluna me confidencia seu constran-
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gimento quando conta sua viagem a Paris, no retorno das férias, e se vê diante do olhar da colega querida, que jamais saiu do país. Outra me diz que se obriga a evitar palavras estrangeiras para não constranger as colegas que nunca frequentaram cursos de línguas. Uma terceira me conta o vexame criado pelos preços dos cosméticos preferidos de sua família. Resultado: silêncio respeitoso. Do outro lado há os que se orgulham da façanha, que retomam suas origens e começam a apreender o tamanho do sacrifício e da desigualdade que compunha a realidade, até então apenas intuída pelas lentes das telenovelas. Há também os que se retraem com medo agudo de arriscar um comentário que revele sua fragilidade ou falta de repertório. Agrupam-se na turma do mesmo ônibus, amigam-se com os próximos e procuram espaços e ex-
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
periências que os libertem do complexo de impostura e ilegitimidade. Se a vergonha é o afeto que denuncia a presença da fantasia, de fato este é o afeto que preside este encontro. Vergonha de constatar como a fantasia que o rico tem sobre o pobre é pobre. E a fantasia que o pobre tem do rico é igualmente frágil. Resultado: silêncio obsequioso. Não basta aproximar a desigualdade, chacoalhar bem e esperar que da linda mistura surja uma nova realidade. Assim como não é suficiente colocar crianças em inclusão escolar e esperar que uma verdadeira mudança aconteça pela mágica das coabitações. Não creio também que aulas de integração social ou discussões transversais regradas alcancem a essência da matéria. A real interessância do outro começa quando é possível compartilhar um percurso – de desejo ou de amor, de angústia ou de gozo – sem se perguntar, o tempo todo, quem vai pagar a conta. Isso só vai acontecer quando a “chapa esquentar” na sala de aula e o antagonismo puder ser reconhecido como uma experiência de saber comum, mais além dos direitos burocráticos de ocupar espaços. CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
arquivo pessoal (foto), shutterstock (imagem)
Ricos e pobres na universidade
(21)4004-2124*
personalidade
As duas faces do
narcisismo Para entender melhor esse traço – necessário para a autoestima, mas que em excesso prejudica relacionamentos –, psicólogos criam “subdivisão”, com base em características de personalidade
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arcisismo é um daqueles termos bastante usados por muita gente, mas nem sempre da forma como o fazem psicólogos e psicanalistas. No senso comum, aliás, muitas vezes assume conotação pejorativa, como sinônimo de egoísmo ou orgulho. Para a psicanálise, é um aspecto fundamental para a constituição psíquica. Nos primeiros anos de vida, é importante ter a sensação de que somos amados e valorizados para um desenvolvimento emocional saudável. Aos poucos, porém, conforme vamos crescendo e nos fortalecemos, percebemos que as frustrações são inevitáveis e podemos sobreviver a elas. Fundamental para confirmar e sustentar a autoestima, o amor-próprio se traduz de maneiras variadas, que incluem desde cuidados consigo mesmo até tolerância aos próprios erros e capacidade de se expor, seja dançando ou falando em público, por exemplo. O exagero, no entanto, indica a fixação numa identificação vivida na infância – o que pode comprometer relacionamentos tanto na vida pessoal quanto profissional e causar grande insatisfação. Atualmente, vários psicólogos consideram uma distinção entre dois aspectos marcantes do narcisismo: busca de admiração e reconhecimento de um lado; competição e tendência a desenvolver rivalidades do outro. Pesquisas recentes se dedicaram a investigar o comportamento de um tipo específico de profissional, associado à busca literal de aplausos: os atores. As observações revelam nuances interessantes de personalidades em que predominam traços narcísicos. Por exemplo, os artistas pareciam desejar a admiração muito mais fortemente do que a maioria 14
das pessoas, no entanto tendiam a ser menos competitivos do que a média: almejavam ser o centro das atenções, mas não necessariamente tentavam impedir que os outros alcançassem esse lugar. Esse novo jeito de compreender o narcisismo, considerando duas dimensões, aparece pela primeira vez em um artigo publicado no Journal of Personality and Social Psychology. “Teorias e medidas anteriores abordavam o traço a partir de uma construção unitária, relacionando aspectos denominados “agênticos”, como assertividade e dominância, com antagônicos, agressividade e desvalorização dos outros, por exemplo”, observa o psicólogo Mitja Back, professor da Universidade de Münster, na Alemanha, principal autor do estudo. Juntar esses dois elementos, porém, pode confundir a compreensão do comportamento narcisista. A equipe de Back estudou centenas de indivíduos saudáveis e descobriu que as características relacionadas a esse tipo de personalidade podem ser agrupadas em duas categorias que, de qualquer forma, servem para manter a autoimagem positiva. Quem se autopromove pode aumentar as chances de conseguir elogios, enquanto aqueles que assumem uma posição defensiva, não raro, tentam humilhar outros para se defender de críticas. A busca pela admiração e a rivalidade provocam efeitos diferentes sobre a linguagem do corpo, a qualidade dos relacionamentos e a personalidade. O artigo mais recente sobre o tema, publicado na Social Psychological and Personality Science, mostra que atores e estudantes de teatro foram considerados por si
mesmos e por outros como mais preocupados com a admiração quando comparados com pessoas que não eram da área. “Embora ganhar papéis relevantes exija competir com os colegas, trabalhar em grupo requer colaboração – e esse aspecto também os atrai: os resultados mostram que atores tendem a apresentar poucos comportamentos de rivalidade”, diz o coordenador da pesquisa, psicólogo Michael Dufner, da Universidade de Leipzig, na Alemanha, que colaborou com Back nos dois artigos. “Esse resultado nos faz pensar que, embora as pessoas sejam egoístas, não vão necessariamente ‘puxar o tapete’ das outras.” Back observa ainda que aquilo que nos atrai em parceiros sociais à primeira vista não costuma ser o que nos deixa satisfeitos em relações de longo prazo. “Mas em todos os casos um fato tende a se repetir: mesmo que pessoas com traços predominantemente narcisistas apresentem um lado brilhante e encantador, quase sempre é questão de tempo antes que essa imagem se desfaça e aqueles que estão por perto se afastem”, acredita Back. (Por Mateus Hutson)
reprodução
O rapaz que se apaixonou pela própria imagem Segundo o mito grego, Narciso era uma criança tão bela que sua mãe resolveu pedir conselhos ao sábio Tirésias sobre o futuro do garoto. O ancião lhe disse que o menino teria uma vida curta se mirasse a própria imagem. Na adolescência, Narciso era um jovem belíssimo, mas muito orgulhoso. Um dia, inclinou-se num lago para matar a sede, quando viu seu reflexo e encantou-se pela própria imagem. Deslumbrado, não comia nem dormia. Uma jovem chamada Eco, apaixonada por ele, tentava chamar sua atenção, mas Narciso só olhava para si mesmo. Realiza-se, então, a profecia de Tirésias: o rapaz mergulha no espelho e desaparece no encontro impossível, perdendo-se na própria imagem, sem perceber a possibilidade de um encontro efetivo com Eco. Com base no mito, Freud desenvolveu um dos conceitos mais importantes de sua teoria – o narcisismo. Mencionado pela primeira vez em seus escritos em 1909, é apresentado como uma fase própria do desenvolvimento humano, quando se realiza a passagem do autoerotismo, do prazer centrado no próprio corpo, para o reconhecimento e a busca da satisfação fora de si mesmo. (Da redação) maio 2017 • mentecérebro 15
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J Cientistas descobrem que abster o organismo de alimentos por alguns períodos pode ajudar a combater a depressão e estimular a reciclagem dos neurônios. Alguns estudos em animais revelam que a prática tem potencial para fortalecer a memória, aumentar a vitalidade e até diminuir sintomas de demência. A privação, porém, não é um consenso entre médicos e pesquisadores e, em muitos casos, pode ser prejudicial por Ulrike Gebhardt
A AUTORA ULRIKE GEBHARDT é bióloga e jornalista com especialização em divulgação científica.
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pinguim-rei é um grande jejuador. Durante cinco meses no ano, a ave não come um peixe sequer, sobrevive do depósito de gordura do próprio corpo e pode perder quase metade de seu peso, em torno de 15 kg, vivendo em temperaturas abaixo de 60°. Já os seres humanos reagem de forma bem diferente. Exceto em situações extraordinárias de escassez, em geral estamos sempre comendo – com exceção de quando dormimos. A obrigação de termos sempre de ingerir três refeições diárias foi, durante gerações, tão fixamente colocada na nossa consciência que renunciar a essa tradição pode parecer inconcebível. E vale lembrar que, entre as refeições, muita gente “belisca”, toma refrigerantes refrescantes, come guloseimas, frutas e, no fim do dia, se rende a uma taça de vinho ou uma cerveja , às vezes acompanhadas de algum salgadinho. A indústria alimentícia fica contente com esse hábito, mas o nosso corpo não. “Somos uma sociedade de abundância; a comida sempre à nossa disposição e, ao mesmo tempo, nos movimentamos pouco”, observa o pesquisador Dieter Melchart, professor de medicina complementar e alternativa da Universidade Técnica de Munique. Esse excesso deixa marcas, que podem se traduzir em patologias como obesidade, diabetes, acidentes vasculares cerebrais (AVCs), hipertensão, cardiopatias e Alzheimer. 17
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Hoje talvez pareça difícil não desfrutar de hábitos adquiridos nas últimas décadas, a ponto de nos esquecermos de que, assim como os outros animais, durante muito tempo sobrevivemos sem celulares, açúcar e fast -food. A vida na Terra se desenvolveu regida pelos ritmos naturais, do dia e da noite, do clima frio e quente, da fartura e da escassez. “Considerando isso, é possível pensar que poderíamos nos readaptar e mudar o hábito de comer sem parar”, diz Melchart. “Mesmo sem dispor de um laboratório bem equipado, o médico e filósofo Paracelso (1493-1541) já sabia disso no século 16.” Atualmente, existem comprovações de que o excesso de alimento prejudica o corpo, em especial o cérebro. A dieta baseada em alimentos industrializados e processados, com altos índices de gordura, é a mais nociva. Por outro lado, aqueles que já renunciaram à comida perceberam que o processo envolve uma causa superior. “Depois de passados os três primeiros dias, considerados os mais difíceis, há uma melhora no humor em dois terços dos pacientes”, afirma o naturopata Andreas Michalsen, médico do Hospital Immanuel, de Berlim, onde um grupo de 800 pessoas jejua voluntariamente pelo bem da saúde. MAIS HORMÔNIOS DA FELICIDADE Por mais paradoxal que pareça, a evolução biológica mostra que, quando sentimos fome, durante um curto espaço de tempo, é liberada uma sensação de bem-estar. Mas atenção: “Quem simplesmente ficar sem comer durante três dias, sem preparação para isso, provavelmente adoecerá e pode até morrer”, alerta Michalsen. Por isso, no cur18
so da evolução, nossa espécie foi agraciada com uma espécie de “programa de jejum”. Assim que ocorre uma escassez de comida, o cérebro muda a chave para “eufórico” e cuida para que a pessoa não recue, mas sim procure ativamente por comida. É uma reação parecida com a provocada por antidepressivos: o corpo recebe quantidades menores do aminoácido triptofano – que o organismo não consegue produzir por si só, precisa do alimento para esse processo –, importante para a produção do neurotransmissor serotonina. Para compensar essa deficiência, durante a sinapse o sistema nervoso reduziria o número de transportadores de serotonina, que normalmente eliminam o transmissor novamente. É o mesmo processo que ocorre com os medicamentos prescritos para o tratamento contra a depressão, que funcionam como inibidores seletivos de receptação de serotonina. Nesse caso, elevam-se a concentração de terminações nervosas, o tempo de residência e o efeito dos “hormônios da felicidade”. E o que acontece quando alguém vive durante alguns dias com menos de 500 calorias? “Depois de 24 horas a glicose do açúcar armazenada no fígado começa a se quebrar. Na sequência, o cérebro implora por açúcar e, como não obtém, precisa mudar o metabolismo”, explica Melchart. “Dessa forma, são iniciados processos como a gluconeogênese, na qual o corpo produz glicose a partir de fontes alternativas. A gordura do corpo é consumida e fornece ácidos graxos livres para que os tecidos possam produzir energia. O cérebro retira sua energia da nova formação de glicose e dos recém-formados corpos cetônicos – compostos orgânicos formados no
SIMILAR AO EFEITO DO ESPORTE, o jejum parece aumentar a resistência física; pesquisadores enfatizam, porém, que são necessárias mais pesquisas para comprovar essa teoria
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Fechar a boca de maneira saudável “Qualquer um que jejua de tempos em tempos passa a se abster de forma mais fácil dos alimentos e a obter uma visão mais crítica da própria existência”, acredita o médico Dieter Melchart. Ele afirma, no entanto, que somente pessoas comprovadamente saudáveis devem utilizar método desenvolvido pelo médico Hellmut Luetzner. A prática não é recomendável para pessoas idosas e doentes, crianças, gestantes, lactantes e pessoas propensas a distúrbios alimentares. Segundo o método, nada sólido deve ser consumido durante uma semana, somente caldos de legumes, chás específicos para jejum e sucos de frutas e de verduras. Ele salienta também que a experiência deve ser guiada por profissionais. Mas jejuar não significa necessariamente alimentar-se uma semana apenas de caldo de legumes nem ficar sem comer por intervalos de vários dias. Existem variações dessa dieta, que podem ser integradas à vida diária, dependendo de cada situação e do estado físico de cada
pessoa. Há situações em que durante cinco dias da semana se come normalmente e nos outros dois dias a pessoa faz jejum, tal como proposto pela nutricionista britânica Michelle Harvie, da Universidade de Manchester. Pesquisas recentes sugerem que é benéfico à saúde o corpo sempre “esperar” e se preparar por um período longo sem ingestão de alimentos. Algumas pessoas tentam fazer uma pausa de 16 horas entre as refeições. Isso significa, por exemplo, jantar às 10h e só voltar a se alimentar às 12h do dia seguinte. Com isso, a digestão sofre uma pausa, os níveis de insulina caem num processo de longo prazo e o fator de crescimento neural BDNF aumenta. É importante deixar claro que quem se interessar pela prática deve primeiro debater o tema com um médico. maio 2017 • mentecérebro 19
capa fígado a partir de ácidos graxos (veja quadro abaixo). Graças a esse processo, a pessoa pode sobreviver 30 dias ou mais sem comer nada sólido, dependendo, claro, da constituição do corpo de cada um. FOME SAUDÁVEL Viver no limite pode trazer algumas vantagens, desde que a experiência seja acompanhada por médicos e psicólogos, apenas durante alguns dias – e jamais deve ser feita por conta própria, sem assistência de profissionais. Em países da Europa e nos Estados Unidos já existem “clínicas de jejum”.De acordo com o especialista em biologia celular Valter Longo, da Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles, a restrição alimentar desacelera o envelhecimento e pode também ter efeito positivo no tratamento de câncer. “Há casos em que o jejum de fato pode ajudar a combater a doença, mas também existem situações em que pode agravá-la; o limite entre o que faz bem e o que faz mal é muito tênue”,
observa o doutor em farmacologia Gustavo Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que trabalha com modelos neuronais mimetizados em doenças de Alzheimer, Parkinson e Huntington in vitro, no Laboratório de Farmácia/Setor Modo de Ação de Drogas da universidade. “Quando a restrição calórica, independentemente da estratégia utilizada, promove perda de peso, geralmente resulta em melhora na saúde metabólica, reduzindo a inflamação sistêmica e, consequentemente, o risco de doenças crônicas como aterosclerose, diabetes e câncer”, diz a nutricionista Bruna Zavarize Reis, doutoranda em ciências dos alimentos/nutrição experimental, no Laboratório de Nutrição-Minerais da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). Mas faz um alerta: jejum não é ausência total de alimentos e é diferente de restrição calórica intensa. “Os estudos que avaliam os efeitos do jejum intermitente se encaixam nessa premissa, já visto que a maioria deles
“Em princípio faz mal” Não é à toa que a questão do jejum ou mesmo da redução drástica de ingestão calórica causa polêmica. Se a privação de nutrientes for muito longa, os efeitos passam a ser negativos. O professor de farmacologia da Unifesp Gustavo Pereira ressalta que a autofagia contribui para a reciclagem celular e o jejum é um indutor metabólico, capaz de diminuir a morte de neurônios, o que contribui para a saúde cerebral. Ressalta, porém, que se esse processo for longo demais para o organismo, a célula pode começar a degradar componentes benéficos – daí o perigo do excesso. E o que pode ser considerado demais varia muito de uma pessoa para outra. Atualmente não há comprovação científica a respeito do tempo que o jejum e a redução calórica devem ser adotados sem causar prejuízos. Quando ficamos várias horas sem nos alimentar, as reservas de glicose do organismo diminuem e outras fontes de energia, como proteínas e gordura, passam a ser utilizadas pelo organismo. Quanto mais longo for o jejum, mais gordura e proteínas serão consumidas. Quando isso acontece, os índices metabólicos diminuem, o humor se altera, a pessoa fica mais irritável, 20
o processo de cetose torna o hálito desagradável, podem ocorrer crises de enxaqueca, gastrite e hipoglicemia. Dentro de um longo período, uma alteração grave pode ser a chamada hipoglicemia rebote, ou seja, a pessoa deixa de produzir insulina pela não ingestão de nenhum tipo de carboidratos e quando o jejum é interrompido, há uma elevada secreção de insulina, eventualmente maior do que a necessária, levando à hipoglicemia. Jejuar por muitos dias pode trazer danos graves ao corpo, principalmente queda de resistência imunológica e infecções. “Em princípio, jejum prolongado faz mal”, afirma o diretor técnico do Serviço de Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Apesar de considerar os estudos sobre os benefícios de interromper a alimentação por longos períodos, ele é cauteloso: “Uma porção de fatos coerentes resultam, necessariamente, numa verdade”. Outro risco é o jejum intermitente ser usado como uma desculpa para mascarar transtornos alimentares como anorexia e bulimia, que em cerca de 20% dos casos levam pacientes, em geral mulheres, à morte. (Da redação)
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não observa diferença significativa nos parâmetros metabólicos quando comparam o grupo que realiza jejum com aquele que adota restrição calórica contínua; dessa forma, os efeitos benéficos não podem ser atribuídos necessariamente ao jejum intermitente, e sim à perda de peso proporcionada por ele.” O biogerontólogo italiano Luigi Fontana, pesquisador do Instituto de Saúde Pública da Universidade de Washington em Saint Louis, defende o efeito positivo do jejum no sistema cardiovascular. O médico Mark Mattson, do Instituto Nacional da Idade, em Baltimore, vai mais longe: aposta que a prática é capaz de “tornar funções cerebrais mais eficientes e prevenir doenças degenerativas”. Embora tenha vários adeptos entre biólogos e médicos, o assunto é polêmico. O efeito do jejum no organismo foi estudado, na maioria das vezes, apenas em animais. Nos laboratórios de pesquisa sobre o tema, vivem levedura, larvas e moscas. No entanto, os preferidos para a experiência são os camundongos e ratos. Nas gaiolas em que as tigelas estão sempre abastecidas com comida, os animais parecem preguiçosos. Já os roedores que recebem menos calorias vivem mais e de forma mais saudável que os colegas que têm comida à disposição. Animais que temporariamente jejuam mostram mais equilíbrio no metabolismo das taxas de açúcar, e os marcadores inflamatórios do sangue caem, assim como a pressão arterial e a frequência cardíaca. Com o processo de jejum acontece também algo na cabeça: são criados novos neurônios a partir de células-mãe, e isso ocorre especialmente numa área fundamental para a memória, o hipocampo. As interconexões com a rede neural mudam e as células fazem novas ligações entre si. A experiência mostra que os animais obtêm melhores resultados em testes de memória e de aprendizado. Os neurônios de camundongos, que são geneticamente suscetíveis a doenças como epilepsia, AVC, Alzheimer ou Parkinson, se mostram mais frágeis depois da redução de calorias. AUMENTO DA RESISTÊNCIA Segundo Michalsen, dos experimentos com animais, dois principais mecanismos favorá-
veis à influência do jejum podem ser deduzidos: a diminuição de sinais que danificam o cérebro e promovem a perda de nervos e o nível elevado permanente de insulina e de mediadores inflamatórios. Por outro lado, a falta de comida estressa o organismo, o que o leva a reagir de forma defensiva. Assim, as células aumentam a produção de enzimas que protegem o corpo dos compostos reativos do oxigênio ou reparam os danos no DNA. Por consequência, os animais sobrevivem por mais tempo. Similar ao efeito do esporte, o jejum parece aumentar a resistência. Esse efeito, em que influências negativas têm repercussões positivas, é conhecido como hormesis (palavra grega para estímulo, impulso). Pelo menos quatro das principais células e moléculas – corpos cetônicos, BDNF, mitocôndrias – e processos autofágicos se cristalizam, produzindo o efeito benéfico do jejum ao cérebro. A cetona, assim como a gordura no fígado, produz o ácido B-hidroxibutírico, passando a barreira de sangue do cérebro e servindo células neurais com glicose como combustível. Uma alimentação rica em cetona nos experimentos com ratos resultou na diminuição das conexões proteicas típicas de Alzheimer, beta-amiloide e tau – como as descobertas do pesquisador Mark Mattson já indicavam em 2013. O estudo revelou também que os animais se mostravam mais dispostos e menos ansiosos. Os corpos cetônicos simultaneamente
LONGOS PERÍODOS SEM INGESTÃO de alimentos causam mudanças no metabolismo; substâncias prejudiciais, como marcadores inflamatórios, diminuem e isso favorece o crescimento de células neurais
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Horário certo para fechar a boca por Bruna Zavarize Reis
A ideia de utilizar o jejum intermitente para a perda de peso partiu da observação dos padrões alimentares dos nossos ancestrais e de muitos outros mamíferos, caracterizados pela ingestão de energia de forma não contínua. De fato, o organismo humano tem a capacidade, adquirida ao longo da evolução, de armazenar glicose e substratos energéticos de maior duração, como ácidos graxos no tecido adiposo. No jejum intermitente a pessoa permanece por longos períodos –16 ou até 24 horas, por exemplo –, com pouca ou nenhuma ingestão calórica e, na sequência, se alimenta normalmente. Embora seja mais comum a alternância de 24 horas de jejum/restrição e dieta convencional, atualmente existem vários protocolos aplicados nos estudos experimentais que avaliam os efeitos do jejum intermitente: redução calórica extremamente baixa (sem jejum) em dois ou três dias da semana, com dieta normal nos outros; uma semana de restrição calórica (cerca de 1.300 kcal/dia) alternada com uma semana de dieta normal etc. No entanto, não existe homogeneidade de protocolos para o jejum intermitente, o que pode dificultar a comparação entre os estudos. A estratégia do jejum intermitente muitas vezes é utilizada como uma terapia
nutricional, principalmente para pacientes hospitalizados (pré ou pós-operatório) e para pessoas que, por qualquer motivo, ficam impossibilitadas de realizar alguma refeição por um período prolongado (médicos durante a realização de cirurgias longas, por exemplo). Nesses casos de jejum involuntário é fundamental o acompanhamento de um nutricionista para reduzir a inadequação da ingestão de nutrientes, minimizar a sensação de fome e o desconforto causados pela privação de alimentos. Se a proposta é perder peso, outros fatores devem ser considerados. Um deles: restringir o consumo alimentar a uma refeição ao dia pode comprometer a qualidade da dieta. Após uma privação energética prolongada, a pessoa tende a selecionar alimentos com elevada densidade energética, reduzindo a ingestão de fibras, vitaminas e minerais. Outro ponto: sabemos hoje que o café da manhã (geralmente omitido no jejum intermitente) é a principal refeição responsável pela ingestão de diversas vitaminas e minerais. Além disso, realizar apenas uma refeição por dia exclui a possibilidade de colocar em prática dois dos principais pilares da nutrição: variedade e equilíbrio.
BRUNA ZAVARIZE REIS é nutricionista, mestre em nutrição humana aplicada, doutoranda em ciências dos alimentos/nutrição experimental, no Laboratório de Nutrição-Minerais da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP).
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Efeitos sobre o organismo O jejum afeta todo o corpo humano. No cérebro, que se comunica com todos os órgãos envolvidos no metabolismo energético, a neuroquímica e as atividades das redes neurais são alteradas e se ajustam à diminuição de calorias. Esse processo se dá no hipocampo (fundamental para a memória), estriado (que participa dos processos de controle dos movimentos), o hipotálamo (envolvido no mecanismo de ingestão de alimentos e regulação da temperatura) e o tronco cerebral (que controla a circulação e o sistema digestivo). O neurotransmissor acetilcolina estimula o sistema nervoso parassimpático, que inerva o
intestino, o coração e os vasos sanguíneos. O processo acelera a atividade intestinal, os batimentos cardíacos e a pressão sanguínea. Na ausência de suprimentos, o estoque armazenado em forma de glicogênio logo se esgota. O fígado, ao contrário, produz corpos cetônicos, que podem usar as células nervosas como combustível alternativo para geração de energia. O fígado e as células do tecido muscular são mais reativos ao hormônio insulina, que regula o açúcar no sangue. Ademais, jejuar também reduz, nos órgãos e no cérebro, processos danosos de decomposição advindos de reações alérgicas ou de estresse oxidativo, causado pelos radicais de oxigênio. Striatum
Cérebro • Aumento da produção de fatores de crescimento de nervos como o BDNF • Aumento da formação de novas células nervosas (neurogênese) • Formação de novas ligações celulares cerebrais • Aumento da produção de mitocôndrias para produzir energia • Aumento da resistência contra o estresse oxidativo • Diminuição das reações inflamatórias
Hipotálamo Hipocampo Tronco cerebral
Veias sanguíneas • Diminuição da glicose na corrente sanguínea e a insulina • Diminuição da saturação do hormônio leptina • Aumento da grelina, conhecida como hormônio da fome • Aumento da produção dos corpos cetônicos, fontes de energia
Nervo do parasimpático
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Musculatura • Otimização do metabolismo • Aumento da sensibilidade para insulina • Aumento da resistência contra o estresse oxidativo • Diminuição da temperatura corpórea
Coração • Redução de batimentos cardíacos • Redução da pressão arterial • Aumento da resistência ao estresse oxidativo Fígado • Aumento de glicogênio • Aumento da formação de glicose (gliconeogênese) • Aumento da perda de gordura • Aumento da produção de corpos cetônicos como fonte de energia alternativa Intestino • Redução do consumo de energia • Diminuição de reações inflamatórias • Diminuição da proliferação de células
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MECANISMO CELULAR AUTOFÁGICO proposto pelo neurocientista japonês Yoshinori Ohsumi, ganhador do Nobel de Medicina de 2016
aumentam a produção de fatores de crescimento como BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro), que favorece autoproteção e a proliferação de neurônios. A produção do BDNF em animais e em humanos diminui de acordo com a idade, assim como o consumo excessivo de alimentos, a falta de exercícios e a propensão a ter doenças neurodegenerativas como o Parkinson e o Alzheimer. Cabe aqui uma pergunta: não seria mais fácil, portanto, administrar porções de BDNF para proteger o cérebro contra a demência como uma fonte da juventude de terapia alternativa? “Não, isso não funciona dessa maneira”, diz Mark Mattson. Ele explica que o fator de crescimento está diretamente relacionado à função da atividade individual dos neurônios e trabalha individualmente no nível das sinapses. O sistema não é controlado ou induzido diretamente, mas sim indiretamente – como por meio de esportes, de uma alimentação com poucas calorias e até pela vontade de desenvolver o intelecto com novas atividades. 24
ENTRE HOMENS E CAMUNDONGOS Com todos esses efeitos, aparentemente, jejuar melhora o funcionamento do cérebro, retardando os efeitos da idade – ou ainda diminuindo, em taxas significativas, a propensão de doenças neurodegenerativas como o Alzheimer. Os experimentos com animais mostraram que a dieta afeta as estruturas cerebrais e as funções da rede neural. Mas e se o estudo fosse aplicado aos humanos? Será que os resultados também seriam semelhantes aos do estudo proposto com ratos? Observa-se que o jejum alivia as dores de pacientes com reumatismo, hipertensão e sobrepeso. Jejuar também diminui a incidência do desenvolvimento de fatores de risco, como o estresse oxidativo – que causa demência –, reduz os marcadores inflamatórios e ainda aumenta o nível de glicose e insulina no sangue. Em 2013, o estudo da pesquisadora Lucia Kerti e seus colegas, da Berliner Charité, encontrou mais uma referência: o aumento permanente nos níveis de açúcar no sangue afeta a microestrutura do hipocampo em homens e mulheres. Essas pessoas têm um desempenho pior em testes de memória do que aquelas que possuem um índice de açúcar mais baixo no sangue. De qualquer forma, há diferenças entre o jejum em homens e roedores. Por exemplo: no hipocampo, a formação de novas células nervosas na fase adulta é muito mais intensa em ratos do que em humanos. Outro exemplo: o hormônio da fome (grelina), que
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A redução de calorias em animais também tem um efeito positivo nas mitocôndrias, conhecidas como “usina de energia das células”. O experimento mostrou que a geração de energia dessas células é mais efetiva e mais apta a formar novas células. Além disso, a falta de comida estimula o processo de reciclagem dos tecidos nervosos. Tudo que não é usado, como organelas e macromoléculas danificadas, é digerido. Graças a esse processo de limpeza celular chamado de autofagia. Esta foi a conclusão do biólogo celular japonês Yoshinori Ohsumi, ganhador do Nobel de Medicina de 2016. A célula remove potenciais materiais danosos que voltam para o sistema como matéria-prima.
Alimento e religião O jejum é utilizado há centenas de anos em práticas religiosas e assume várias conotações. De barriga vazia, imersos na contemplação e na oração, imagina-se que os fiéis tenham novos insights e ampliem suas percepções. A prática estaria a serviço da purificação da alma e do arrependimento, ajudaria a afastar o mal, favorecer a meditação avançada e até a redenção ou a iluminação. As prioridades são diferentes para as distintas religiões. Comum a todas é a reflexão sobre o que realmente é importante: a busca do sagrado. Para os judeus, há várias datas fixas para o jejum. A maior data de celebração em que a prática se aplica no calendário judaico é o Yom Kippur. No 17º dia do mês do calendário judaico tradicional, a privação de comida funciona como um sinal de arrependimento. São 25 horas de jejum nessa ocasião: comer, beber, trabalhar, exercitar o corpo e até fazer sexo é proibido, a data é reservada para celebrar orações e cultos. No cristianismo, há dois longos períodos de jejum: 40 dias antes do Natal, nos dias do Advento, que começam em 11 de novembro, e 40 dias antes da Páscoa. Na prática, porém, o tempo de jejuar nos dias do Advento (exceto na Igreja Ortodoxa) ficou no passado. Os cristãos veem a abstinência como penitência, uma forma de se preparar para tomar
está diretamente ligado ao controle do apetite e do sono, melhora a memória e a curva de aprendizagem nos ratos. No entanto, no estudo de 2016 do Instituto Max Planck de Psiquiatria, em Munique, liderado por Martin Dresler, não houve a demonstração de melhora de performance em memória em humanos mesmo quando administradas doses adicionais de grelina . “Mark Mattson mostrou em vários experimentos que se pode inibir a evolução de doenças neurodegenerativas em animais, mas em humanos estamos em fase de transição dessa descoberta”, explica Andreas Michalsen. “O que parece ter sido bem promissor nos experimentos com ratos precisa ser ainda testado em pessoas. Os estudos controlados parecem ainda sofrer com a falta de dados antes, durante e depois do jejum dos seguintes fatores: volume cerebral, plasticida-
decisões importantes e para o encontro com Deus. O ato é acompanhado de orações e pelo compromisso de ajudar os pobres e necessitados. Jejuar é um dos cinco pilares do Islã que o Alcorão prescreve aos muçulmanos. No islamismo jejua-se no período do Ramadã (o nono mês no calendário lunar islâmico) como sinal de devoção a Deus. Nesse período, não é permitido ingerir nenhum tipo de alimento, líquido ou sólido, entre o amanhecer e o pôr do sol. Já no hinduísmo, não há nenhuma época prevista para o jejum, embora a renúncia à comida seja uma forma de punição pelos pecados. Para o budismo, o jejum está associado ao compromisso de controlar a própria mente. Em algumas linhas budistas, monges e monjas optam pelo voto de não comer mais nada após o almoço, por exemplo. Uma das razões está no empenho para que nada atrapalhe a meditação, nem mesmo a sensação incômoda de peso e sonolência provocada por refeições fartas.
de sináptica, performance cerebral e análises bioquímicas dos líquidos cerebrais. Contudo, ninguém precisa esperar até que haja resultados tão detalhados em seres humanos. Os efeitos positivos do jejum já são considerados incontestáveis desde a época de Paracelso. O lado positivo do jejum – assim como na dieta saudável e no treinamento físico – é que todos podem fazer algo pela saúde. “Quando o corpo é bem preservado, obviamente o risco de adquirir diabetes diminui”, comenta Michalsen. Não há evidências que comprovem que essa doença regride em uma idade mais avançada. Pessoas de origem asiática não costumam ter a mesma propensão a ganhar, ao longo dos anos, barrigas tão salientes quanto as dos ocidentais – também não têm diabetes nem Alzheimer na mesma proporção – assim como os pinguins-reis na Antártica.
PARA SABER MAIS Impact of intermittent feasting on health and disease processes. Mark P. Mattson, Valter D. Longo, Michelle Harvie, em Ageing Research Reviews, disponível online, 31 de outubro de 2016. Intermittent energy restriction and weight loss: a systematic review. CS Davis, RE Clarke, SN Coulter e outros, em European Journal of Clinical Nutrition, Vol. 70, págs. 292 -299, 25 de novembro de 2015.
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COGNIÇÃO
Pintinhos e humanos pensam os números da mesma forma
Pense em um número. Agora imagine um maior. Tente visualizar os dois na sua frente. Se você enxerga o menor do lado esquerdo, apenas confirma um dado encontrado frequentemente: tendemos a posicionar números no espaço da esquerda para a direita. Cada vez mais evidências, incluindo pesquisas com bebês lactentes pré-verbais, sugerem que nascemos com essa tendência que pode ser facilmente influenciada pela cultura e alterada. O curioso é que um estudo publicado há alguns meses pela Science, por uma equipe de pesquisadores da Universidade de Trento, na Itália, mostra que bebês de uma espécie completamente diferente também preferem colocar os algarismos maiores nessa ordem. Os cientistas treinaram pintinhos de três dias de vida para andar em torno de um painel em busca de alimento. Num primeiro momento, alguns filhotes aprenderam a encontrar comida atrás de uma divisão em que havia cinco pontos desenhados. Em seguida, os cientistas, coordenados pela psicóloga cognitiva Rosa Rugani, substituíram o painel por outros dois. Quando essas novas separações mostravam duas mar26
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Assim como as crianças, filhotes de galinha parecem ter preferência inata por algarismos menores à esquerda e maiores à direita
neurocircuito
cações cada uma, os bichos caminhavam inicialmente para a marca da esquerda em 70% das vezes. Quando os painéis exibiam oito, os pintinhos tendiam a escolher o número da direita, como se tivessem certa preferência pela disposição numérica. Os pesquisadores repetiram então o experimento com outros filhotes que foram treinados com divisões exibindo 20 pontos e testados com marcação de oito ou 32. Surpreendentemente, em ambos os ensaios, os animais viraram à esquerda para os números pequenos e à direita para os grandes. Os cientistas escolheram como menor o oito em um contexto e maior no outro para mostrar que o efeito depende de quantidades relativas, e não de qualquer preferência absoluta por algum número. Os resultados confirmam fortemente a ideia de que essa predisposição é inata. A pesquisa indica, porém, que essa preferência pode ser facilmente modificada pela experiência; por isso, é bem provável que substituí-la não represente muita dificuldade para cérebros jovens numa cultura que escreve nesse sentido. Falantes de árabe, por exemplo, mostram tendência espacial inversa. Outros povos que escrevem da direita para a esquerda e os dígitos na outra direção, como em hebraico, não mostram nenhuma predileção particular. Os autores do estudo sugerem que esses resultados estão relacionados com o fato de que cérebros não são simétricos. O hemisfério direito domina o processamento visuoespacial, levando a uma preferência para o lado esquerdo do espaço para comandar a atenção – o que talvez explique por que tendemos a pensar nos “primeiros” números nessa direção enquanto contamos. O esquema espacial pode surgir também de um mapa físico dos algarismos no cérebro, algo encontrado em humanos no córtex parietal posterior direito, mas ainda não observado em animais. (Por Simon Makin, jornalista)
Geometria e atenção aos sentimentos dos outros A lista de habilidades cognitivas das galinhas continua crescendo com cada nova descoberta científica. O neurocientista Giorgio Vallortigara, da Universidade de Trento, na Itália, mostrou que pintos jovens têm a capacidade de distinguir números e utilizar noções de geometria. Quando apresentados a um triângulo, por exemplo, eles identificam qual deve ser a forma do desenho final com todas as suas partes. Outra pesquisa desenvolvida pela cientista Joanne Edgar, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, revelou que, assim como os humanos, essas aves são capazes de sentir empatia. No experimento, galinhas mães observavam enquanto seus pintinhos recebiam um inofensivo sopro de ar que fazia esvoaçar sua plumagem macia. Os filhotes perceberam o sopro como ameaça e manifestaram sinais clássicos de estresse, como o aumento da frequência cardíaca e queda de temperatura. Curiosamente, suas mães ficaram perturbadas ao observar a reação dos pintinhos, emitiram mais cacarejos e apresentaram os mesmos sinais de estresse que os filhotes, embora elas mesmas não tivessem recebido o sopro de ar e os filhotes não estivessem em perigo evidente. Essas descobertas indicam que galinhas conseguem se colocar na posição de outros da sua espécie, uma capacidade previamente observada apenas em um pequeno número de animais, a maioria mamíferos e, claro, humanos. maio 2017 • mentecérebro 27
inconsciente
O fascínio pelos
sonhos O simbolismo cifrado e transcendente das produções oníricas sempre intrigou as pessoas e suscitou, desde a Antiguidade, os mais variados estudos e interpretações, dos míticos e proféticos aos psicanalíticos e neurofisiológicos por Moacyr Scliar
Este texto foi publicado há dez anos no Especial Mente e Cérebro Sonhos. Moacyr Scliar (1937-2011), membro Academia Brasileira de Letras, foi colaborador da revista desde a primeira edição, em setembro de 2004. Publicou 77 artigos e em fevereiro de 2011 foi veiculado seu último texto, no qual falava sobre adoecimento e morte. Ele faleceu dia 27 de fevereiro daquele ano. A republicação deste texto é uma homenagem ao médico e escritor, estudioso de psicanálise.
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reprodução
A ESCADA DE JACÓ, Marc Chagall
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m Gênesis, capítulo 39, José está numa pior. A mulher de Putifar, a cujas investidas ele resistiu, intrigou-o junto ao marido, que mandou prender o jovem hebreu. Tudo muda, porém, quando, ainda na prisão, José começa a revelar-se intérprete de sonhos, primeiro dos servidores do faraó do Egito e depois do próprio faraó. O famoso sonho das sete vacas magras que devoram sete vacas gordas (e que se traduziria em sete anos de abundância seguidos por sete de más colheitas) vale para José, que havia sido vendido como escravo por seus irmãos, um elevado cargo governamental. A passagem bíblica traduz a importância que os sonhos tinham no mundo antigo e que têm em muitas culturas. Isto se deve ao caráter do próprio sonho, um evento que ocorre de forma espontânea, involuntária, que assume formas estranhas, bizarras e dá ao sonhador a sensação de uma mensagem que transcende os limites da realidade cotidiana. Mensagem que pode vir até da divindade. maio 2017 • mentecérebro 29
inconsciente
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HIPÓCRATES, conhecido como “o pai da medicina”, acreditava que os sonhos podiam ser inspirados por divindades, mas também teriam causas naturais e seriam evidências do estado físico do sonhador
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A valorização dos sonhos na Bíblia hebraica não é exceção. Na antiga Mesopotâmia há referências a práticas divinatórias baseadas em sonhos já no segundo milênio antes de Cristo. Os egípcios os interpretavam como mensagem dos deuses; o papiro de Deral-Madineh (cerca de 2000 a.C.) dá instruções acerca de como obter uma mensagem onírica do deus Serapis; o postulante tinha de passar a noite num dos muitos templos dedicados ao deus e assim “incubar” seu sonho. Os Vedas, textos sagrados da Índia antiga (escritos provavelmente entre 1500 e 2000 a.C.), contêm interpretações de sonhos, interpretações estas que tinham de ser correlacionadas com o período da noite em que o sonho ocorrera e com o temperamento do sonhador. Na China, Chuang-tzu (século IV a.C.) sustentava ser impossível diferenciar o sonho do mundo real. Conta-se que certa vez ele sonhou que era uma borboleta; quando acordou, não sabia se era uma borboleta agora sonhando que era homem ou se era um homem que havia sonhado ser borboleta... Os sonhos relatados nas culturas do Oriente Médio tinham uma série de características em comum. Em primeiro lugar, o sonhador quase sempre era uma pessoa importante, como o faraó. Em segundo lugar, o sonho ocorria em um momento de crise, ou de proximidade de crise, mesmo que o sonhador disso não se desse conta. Em terceiro lugar, os sonhos frequentemente tinham caráter simbólico, não acessível ao sonhador, necessitando por isso de interpretação. Na Grécia antiga o sonho desempenhava papel transcendente; na obra homérica aparece várias vezes, mas a autoridade mais influente nesta matéria foi, sem dúvida, Aristóteles. Segundo ele, os sonhos têm origem no próprio órgão das emoções, o coração, e resultam dos movimentos dele. O sonho tem caráter profético e é também um incentivo, um roteiro, para futuras ações do sonhador. Já os estoicos dividiam os sonhos em três grupos: aqueles que vinham de divindades, aqueles que vinham de seres malignos e os que nasciam da própria alma do sonhador. Os gregos também valorizavam o sonho do ponto de vista da saúde e doença. Aristóteles sustentava que, por meio deles, um
bom médico podia prever o surgimento de enfermidade, a cura ou o óbito. Hipócrates, o pai da medicina, também pensava assim. Reconhecia a existência de sonhos inspirados pelas divindades, mas assinalava que causas naturais, ligadas ao corpo, podiam ser evidências do estado físico deste. Esse posicionamento, aliás, perpassa toda a obra hipocrática; naquela época, a epilepsia, por exemplo, era considerada uma “doença divina”, evidência de que deuses se haviam apossado do corpo da pessoa. Nada disso, dizia Hipócrates, a epilepsia tem causas naturais, como outra enfermidade qualquer. No caso dos sonhos, quando se referem a lutas ou guerras, indicam uma desordem orgânica. Ao contrário, sonhar com o sol e a lua é sinal de boa saúde. E há equivalências; os rios, por exemplo, são análogos ao sistema circulatório. Se estiverem transbordando, indicam pletora, excesso de sangue; se estiverem secos, sugerem anemia, falta de sangue. Que o sonho era importante do ponto de vista da saúde, mostra-o o culto a Asclépio ou Esculápio, o deus da medicina, realizado no templo de Epidauro. Ali o enfermo era admitido. Depois de ritos purificadores, era conduzido ao abaton, um lugar reservado aos crentes, e onde deitava em um clinos, leito (daí vem a palavra “clínica”). Ali deveria dormir. Tudo dando certo, Asclépio lhe apareceria em sonhos, às vezes acompanhado de suas filhas, Higeia, a deusa da higiene, e Panaceia, a deusa da cura. Ou, então, podia aparecer sob a forma de serpente (a serpente enrolada no caduceu é símbolo da medicina). Em matéria de interpretação de sonhos, seguramente a obra mais importante da época é a Oneirocritica, trabalho em cinco volumes escrito no século II d.C. por Artemidoro, da cidade de Daldis (Ásia Menor) e que comporta a análise de mais de três mil sonhos. Para Artemidoro, os sonhos se dividem em não preditivos e preditivos. Os não preditivos compreendem os pesadelos e o phantasma, termo que parece indicar as alucinações hipnagógicas que comumente ocorrem quando a pessoa está adormecendo (sensação de queda, por exemplo). Os sonhos preditivos comportam três tipos: oneiros, que é alegórico, passível de interpretação; horama,
Para Aristóteles, o sonho tem caráter profético, e é também um incentivo, um roteiro, para futuras ações do sonhador; por serem bastante subjetivos, variam de uma pessoa para outra explicitamente preditivo, antevisão; e chrematismos, em que aparece um deus anunciando algo. Para bem interpretar um sonho, Artemidoro estabelece regras, cuja validade qualquer psicanalista moderno endossaria: é preciso conhecer a pessoa que sonhou, sua vida, seu caráter, seu estado de ânimo, as circunstâncias em que vive. Outro autor importante viveu no século IV d.C. Trata-se de Ambrósio Teodósio Macróbio, um dos chamados cristãos neoplatônicos. Como Artemidoro, Macróbio faz uma classificação dos sonhos e assinala a importância da atividade onírica como iniciação ao conhecimento da própria alma. Na Roma antiga, a interpretação dos sonhos não era tão valorizada como na Grécia. Uma exceção é representada pelo filósofo do século II d.C, Tertuliano, para quem os sonhos poderiam provir de deuses, de demônios, de causas naturais ou de um estado de êxtase. Enquanto isto, o Talmud, coleção de comentários religiosos judaicos coletados entre os séculos II a.C. e III d.C., retomava a tradição bíblica da interpretação de sonhos, porque “um sonho não interpretado é como uma carta que não é aberta”. O cristianismo, de início, aceitou a ideia grega de que os sonhos pudessem ter origem divina. Cipriano, bispo de Cartago por volta de 250 d.C., afirmava que os concílios da Igreja eram guiados por Deus por meio de sonhos e visões dos participantes. Santo Agostinho descrevia certos sonhos como dádivas do Senhor. No século V, o bispo Sinésio escreveu (em uma única noite, segundo a tradição) um tratado sobre os sonhos, defendendo a ideia de que eles são proféticos, surgindo da própria alma, que alberga a imagem de acontecimentos futuros e as transmite à “fantasia”, uma espécie de vida que ocorre na profundidade do ser. Mas a possibilidade de que os sonhos pudessem ter também caráter pecaminoso ou sacrílego começou a emergir e veio inclusive a maio 2017 • mentecérebro 31
inconsciente
Com o monitoramento da atividade cerebral durante o sono, tornou-se possível estabelecer uma relação objetiva entre a atividade onírica e o funcionamento do organismo tornar-se uma preocupação da Inquisição. Já a cultura islâmica valorizava muito os sonhos; boa parte do Corão foi transmitida por Deus a Maomé através de sonhos. Nas culturas ditas “primitivas”, o sonho também tem papel importante, indicando, por exemplo, o melhor lugar para caçar ou encontrar uma erva curativa, ou alertando sobre uma ameaça à saúde. Entre os ojibwa, índios que vivem nos Estados Unidos e no Canadá, os sonhos fazem parte do rito de iniciação. Quando chegam à puberdade, e antes de ter relações sexuais, os jovens, depois de um jejum prolongado, são levados a um lugar isolado onde devem dormir; espera-se que durante o sonho tenham contato com imagens protetoras, não humanas (uma águia, por exemplo), e delas recebam uma “bênção”. “Se sonhares bem, terás uma vida longa e boa”, dizem os anciãos da tribo. Para muitos aborígenes australianos, a expressão “tempo do sonho” refere-se ao tempo que precedeu a existência do mundo real. Espíritos ancestrais vieram, então, ao mundo e fizeram surgir a terra, as plantas, os animais. A ESTRADA DO REAL O sonho é fundamental na iniciação do xamã. O termo saman, que vem de um idioma siberiano, significa “calor interno” e refere-se aos poderes mágicos e espirituais desses feiticeiros tribais. O xamanismo, prática que pode ser encontrada na Ásia, África, América, não depende de iniciativa pessoal; o indivíduo recebe um chamado, em geral sob a forma de sonho, no qual tipicamente o sonhador é arrebatado para um lugar longínquo, seu corpo sendo feito em pedaços. Entre os dyak de Bornéu, os iniciados informam que seu cérebro é removido e lavado, de modo a “limpar” o pensamento. Nessas culturas, as pessoas muitas vezes incorporam a seus sonhos os símbolos 32
resultantes de mitos tribais. O que é o mito? É uma narrativa, em geral de caráter sagrado, que proporciona uma explicação para os fenômenos da vida e do Universo. Joseph Campbell, estudioso do assunto, define a relação entre mito e sonho da seguinte maneira: “Mitos são sonhos partilhados, sonhos são mitos privados”. Os povos possuem mitos; os sonhos possuem pessoas. Freud (1856-1939), o pai da psicanálise, começou a estudar os sonhos depois de anos de pesquisa neurológica, à qual havia se dedicado no começo de sua carreira médica. Estagiando no serviço do psiquiatra Jean Martin Charcot, em Paris, observou vários casos de histeria, então muito comum entre mulheres, impressionando-se com a conotação sexual da doença e com o fato de as pacientes não se darem conta da causa dos problemas, o que sugeria a existência de um mecanismo não consciente. A princípio, usava o hipnotismo para tratar seus doentes, mas depois optou por um método terapêutico baseado na livre associação e na análise dos sonhos como forma de chegar aos conflitos; do sonho, particularmente, dizia que era a “estrada real”, ou seja, o caminho privilegiado para o inconsciente. Falava por experiência própria; no processo de autoanálise ao qual se submeteu durante um período atormentado de sua existência (a partir de 1892), os sonhos desempenharam papel fundamental. Começou a registrá-los e analisá-los. Foi quando se deu conta de que correspondem a desejos não realizados, muitas vezes de natureza sexual. Mas tais desejos aparecem de forma disfarçada, por causa da censura interna do ego; se assim não fosse, o sono seria impossível. Por essa razão precisam ser interpretados por meio do tratamento psicanalítico. Os sonhos, para Freud, têm um conteúdo manifesto, aquilo que aparece sob forma de imagens, e um latente, o significado oculto. O conteúdo latente é disfarçado através de processos como o simbolismo (a fantasia inconsciente se expressa sob a forma de um objeto: um bastão pode ser o pênis, uma caixa, a vagina), a condensação (dois ou mais símbolos se fundem), o deslocamento (que associa obje-
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SETE VACAS MAGRAS devoram sete vacas gordas: a famosa passagem bíblica indica a importância do sonho no mundo antigo. Ao lado, detalhe de um mosaico florentino do séc. 13
tos aparentemente não conectados). Imagens resultantes da realidade cotidiana podem aparecer sob a forma de “restos diurnos”. Para Freud, os sonhos são análogos às fantasias neuróticas; ora, considerando que é praticamente impossível diferenciar os sonhos de neuróticos dos sonhos de pessoas ditas normais, ele concluía que todos somos neuróticos, em maior ou menor grau. As ideias de Freud a respeito da atividade onírica estão na obra A interpretação dos sonhos, publicada em 1899 (mas datada 1900), considerada seminal para a psicanálise e da qual ele muito se orgulhava. Dizia que um dia uma placa seria colocada na casa onde morava (e onde dormia e sonhava) com os dizeres: “Nesta casa, em 24 de julho de 1895, o segredo dos sonhos foi revelado ao doutor Sigmund Freud”. A data marca a ocorrência daquele que fora o sonho mais famoso de Freud, o “sonho de Irma”, uma de suas pacientes. No dia anterior, um colega e amigo de Freud observara que “Irma” não parecia evoluir muito bem. No sonho, Freud examina a garganta de “Irma” e descobre que ela tem uma espécie de infecção, o que lhe dá grande alívio: ele não era culpado pelo fato de a paciente não ter melhorado. Ou seja, o sonho preenchia um desejo inconsciente do médico.
O psiquiatra suíço Carl Jung (1875-1961) a princípio trabalhou com Freud, mas depois rompeu com ele e criou suas próprias teorias. Cunhou a expressão “inconsciente coletivo”, um nível da mente, herdado e partilhado por toda a humanidade, que produz mitos, visões religiosas... e sonhos. Nesses encontramos temas comuns, os arquétipos. Exemplo de arquétipo é a Grande Mãe, em cuja figura várias deusas do Oriente Médio foram calcadas. Jung também formulou os conceitos de persona e sombra. Persona é a “máscara” atrás da qual nos ocultamos na vida cotidiana. Pessoas que assumem sua persona são propensas a ter sonhos nos quais aparece a sombra, o oposto da persona. Como exemplo, Jung cita o sonho de um funcionário público obcecado com regulamentos e com a honestidade, e que de noite sonha que um ladrão irrompe em sua casa: o ladrão é a sombra. ROTEIROS, LABIRINTOS E PESADELOS Sonhos são experiências altamente subjetivas e, portanto, extremamente variáveis de pessoa a pessoa; como observou Freud, existem até mesmo aqueles que não se lembram dos sonhos e concluem, erroneamente, que não sonharam. Isso durante muito tempo se constituiu em obstáculo para uma correlação objetiva entre a atividade onírica e o funciomaio 2017 • mentecérebro 33
inconsciente
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O SONHO DO DEUS hindu Vishnu, retratado em pintura do séc.18: é comum as pessoas incorporarem nos sonhos os mitos de suas próprias culturas
namento do organismo, particularmente do cérebro. Porém, à medida que foram surgindo métodos de registro da atividade nervosa, como a eletroencefalografia (EEG), eletro-oculografia e eletromiografia, as pesquisas puderam avançar. Constatou-se então que o sono não é uma coisa só; pode ser dividido em fases ou estágios. O estágio 1 é o do início do sono; o estágio 2 é o do sono leve; e os estágios 3 e 4 correspondem ao sono profundo, no qual ocorre o movimento rápido de olhos (rapid eye movement, REM). Nesta fase, a atividade cerebral é maior e semelhante àquela da vigília; a atividade muscular é inibida, com exceção dos músculos oculares, que se movimentam rapidamente – daí a denominação. Em meados dos anos 1950 foi postulado que o sonho estava associado ao sono REM, mas depois foi constatado que se sonha em todas as fases. No período REM, contudo, os sonhos tendem a ser mais detalhados e parecem ter um “roteiro”. A ocorrência dos sonhos é explicada pela chamada hipótese da ativação-síntese, por meio da qual estímulos originários do tronco 34
cerebral ativam o cérebro frontal, a parte mais “evoluída” de nosso sistema nervoso, que tenta dar “coerência” a tais estímulos; lesões nessa região frontal, mesmo com preservação do sono REM, tornam o sonho impossível. A hipótese ainda é objeto de discussão; trabalhos mostram que o tronco cerebral não é essencial para o ato de sonhar, nem mesmo o sono REM. De 26 pacientes que tiveram lesão no tronco cerebral, com desaparecimento do sono REM, só um perdeu a capacidade de sonhar. Animais também sonham? Uma experiência feita com ratos sugere que sim. Quando esses roedores são colocados num labirinto, o que acontece comumente em laboratório, ativa-se uma região cerebral conhecida como hipocampo; a ativação continua no sono REM. É como se estivessem “ensaiando” para a atividade que faziam quando estavam acordados. Esta ideia do “ensaio”, aliás, é usada em uma teoria evolucionista, darwiniana, do sonho. Nossos antepassados trogloditas enfrentavam um grande número de ameaças. Nos sonhos, eles podiam “en-
saiar” para enfrentá-las, aumentando assim as chances de sobrevivência e transmitindo a habilidade para a progênie. A hipótese explicaria também por que o sono REM é mais frequente em recém-nascidos, podendo durar cerca de oito horas, declinando depois ao longo da vida. A longa duração do sono REM seria igualmente um “ensaio”, um passo importante no aprendizado e no processamento de memórias, um auxílio importante nos embates da vida. Essas pesquisas contrariam as ideias freudianas? Não necessariamente. O sono REM seria um desencadeador dos sonhos. Mas os sonhos em si, as imagens que neles aparecem, seriam condicionados por nosso psiquismo, por nossos desejos. Perturbações do sono REM podem se traduzir em pesadelos e em terror noturno. Pesadelos são muito comuns; ocorreram em cerca da metade de estudantes universitários americanos acompanhados durante um período de duas semanas. Outra pesquisa mostrou uma frequência de 8% na população geral. Além dos distúrbios do sono REM, há outros fatores desencadeantes: medicamentos, enfermidades, problemas respiratórios durante o sono (apneia, ou interrupção da respiração) e problemas psíquicos como o estresse pós-traumático, que surge após a pessoa ter vivido uma situação de grande tensão (na guerra, por exemplo). Já o terror noturno é um episódio que se acompanha de pânico e agitação. Afeta cerca de 4% da população, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e é mais comum em crianças. Como o pesadelo, pode ser causado também por problemas orgânicos e psíquicos. DRAMATURGIA NOTURNA O potencial criativo do sonho sempre impressionou artistas e cientistas e parece corresponder à realidade: um trabalho mostra que a capacidade de associar palavras aumenta cerca de 30% imediatamente após um sonho. Há, na história, pelo menos dois exemplos famosos de criatividade associada a sonho. O primeiro é o do poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (1772-1834). Quando vivia numa fazenda no interior da Inglaterra, por conta de uma indisposição, tomou tintura de ópio
(que causa sono) e adormeceu enquanto lia um texto descrevendo a construção do palácio do imperador mongol Kubla Khan. Em sonho compôs um poema sobre esse palácio, que, segundo ele, não teria menos de 200 a 300 linhas. Acordando, tratou de colocá-lo no papel, mas foi interrompido pela visita de alguém. Quando tentou terminar a tarefa, viu que já era impossível recapturar as imagens de sua mente. O segundo exemplo é o do químico alemão August Kekule von Stradonitz, que, em 1890, tentava descobrir a maneira pela qual os átomos de carbono se dispõem na molécula do benzeno, um derivado do petróleo. Problema difícil e obsessivo; certa vez, pensando no problema, o químico adormeceu em frente à lareira. No sonho, as chamas se transformaram em serpentes, uma das quais mordeu o próprio rabo, criando uma imagem circular que deu a Kekule a solução do problema: os átomos se dispõem sob a forma de anel. Detalhe interessante: a serpente que morde o próprio rabo é uma figura muito presente na mitologia e na alquimia. É um símbolo de autofecundação, uma imagem de padrão cíclico, do fim retornando ao princípio. Tanto na arte como na literatura, o clima onírico aparece com frequência. Os textos de Franz Kafka, por exemplo, lembram pesadelos. “O sonho é puro drama”, diz o dramaturgo Eugène Ionesco. Por causa disso, muitas tentativas têm sido feitas para aproveitar o potencial criativo dos sonhos. Uma delas é aquilo que se chama “sonho lúcido”: a pessoa tem consciência de que está sonhando e procura estabelecer um controle “lúcido” sobre a experiência. Transforma-se num “oneironauta”, num explorador de sonhos. O assunto foi objeto de estudos em universidades, mas atrai também místicos, ocultistas, escritores de auto ajuda e grupos new age. Existem na internet quase dois milhões de referências a respeito. O fato é que, apesar de todo o conhecimento acumulado, ainda há muita coisa a ser descoberta acerca dos sonhos. Escreveu o espanhol Calderón de la Barca (1600-1681): “La vida es sueño/y los sueños, sueños son”. Não: os sonhos não são apenas sonhos, são uma porta de entrada para a nossa vida, que é esta esplêndida e desafiadora mistura de sonho e realidade.
PARA SABER MAIS Noite: a vida noturna, a linguagem da noite, o sono e os sonhos. A. Alvarez. Companhia das Letras, 1996. A interpretação dos sonhos. Sigmund Freud. Delta, 1954. Dreamtime & Dreamwork. Stanley Krippner. Putnam, 1990. The innocence of dreams. Charles Rycroft. Pantheon Books, 1979. Los sueños y las sociedades humanas. Gustave E. von Grunebaum. Sudamericana, 1964.
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ciência para viver melhor
Está entediado? O computador sabe! Muitas vezes, a sensação combinada de desânimo e desinteresse está associada à dificuldade de se conectar com os estímulos externos e perceber as próprias necessidades; esse estado mental provoca estresse, dificulta a aprendizagem e, às vezes, nos leva a comer por compulsão. A novidade é que a tecnologia pode ser uma aliada para combater esse estado Por Rachel Nuwer, jornalista
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ão importa quantas coisas você tenha para fazer nem mesmo a diversidade de opções para se divertir. De repente, é como se tudo fosse muito sem graça. É um misto de preguiça e desânimo, como se o mundo todo se tornasse extremamente desinteressante. Segundo pesquisa desenvolvida por cientistas da Universidade de York e publicada no periódico científico Perspectives on Psychological Science, o tédio está associado à dificuldade de perceber os próprios estados mentais e se conectar com o que está ao nosso redor. A incapacidade de concentração provoca a sensação de desconforto e estresse. Um estudo publicado no periódico científico International Journal of Epidemiology relacionou o aumento do tédio ao risco de morte precoce. Para a psicologia, essa conclusão encontra respaldo na ideia de que uma vida entediante tem poucos apelos para que se mantenha um 36
“investimento libidinal” e, caso esse sentimento persista, aos poucos a pessoa vai se desligando psiquicamente da própria vida, tornando-se mais vulnerável a doenças. E quem já sentiu sabe: uma das manifestações do tédio de fato aparece no corpo. Os entediados dobram o pescoço para o lado, mostrando que não querem ouvir ou lidar com o que a outra pessoa está dizendo; colocam a mão no queixo, apoiando o cotovelo na mesa e durante uma conversa não olham diretamente para o interlocutor, mas parecem focalizar algo bem longe, fora do contexto. Gestos “não instrumentais”, como contrair os músculos, se coçar e mudar de posição, também costumam revelar esse estado mental. A novidade agora é que máquinas podem detectar sinais de inquietação. Um novo estudo mostra que, quando usuários de computadores se concentram em material na tela, sua agitação diminui. Algoritmos podem usar essa informação para discernir atenção em tempo real.
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Para medir o envolvimento, o psicobiólogo Harry Witchel, da Faculdade de Medicina Brighton e Sussex, no Reino Unido, pediu a 27 voluntários que usassem marcadores equipados com rastreadores de movimentos para que a câmera de um computador pudesse acompanhá-los. Os participantes do experimento leram trechos digitais de um romance e também dos regulamentos da Autoridade Bancária Europeia. Com base em movimentos da cabeça, do tronco e das pernas, o computador detectou quando uma pessoa tinha se desligado mentalmente. A análise dos movimentos cumulativos revelou que, quando pessoas leram trechos do romance, elas se mexiam quase 50% menos do que quando liam as diretrizes bancárias. O sistema, descrito em Frontiers in Psychology, se soma às pesquisas sobre “tecnologia afetivo-consciente”, diz Nadia Berthouze, cientista da computação da Universidade College de Londres. Witchel crê que uma futura versão do programa possa criar aulas digitais que percebam quando a atenção do aluno diminui e respondam com estratégias para “redespertar” seu interesse. O sistema ajudaria também a construir robôs emocionalmente mais sensíveis para humanos.
“Em nossa sociedade, o oposto do tédio é o espetáculo, e cada vez mais, se não houver alguém ou alguma coisa para nos distrair, nos entediamos”, afirma o antropólogo Peter Stromberg, autor de Caught in play: how entertainment works on you (Stanford, 2009, não publicado no Brasil). “Todos os que pretendem vender algo ‘estimulante’ têm grande interesse em que fiquemos aborrecidos e empregam recursos enormes para se assegurar de que isso ocorra no instante em que nos afastamos do mundo do entretenimento.” O pensador francês de origem russa Vladimir Jankélévitch acredita que podemos definir o tédio como uma patologia do bem-estar, uma espécie de “desventura de ser feliz demais”. Tecnicamente falando, porém, o tédio nunca foi identificado como uma patologia, ainda que – associado a outros sinais – esteja entre sintoma de distúrbios mentais como depressão e esquizofrenia. “Nesses casos, o tédio assume características específicas, aparece junto com sensação prolongada de vazio e inutilidade, é contínuo e parece invencível até transformar-se em medo de imaginar o futuro e, em muitos casos, se acentua nas primeiras horas do dia”, afirma o psiquiatra francês Patrick Lemoine. maio 2017 • mentecérebro 37
ciência para viver melhor
Embora pouco usados, existem testes como o Boredom Propensity Scale, desenvolvido pelos psicólogos Norman D. Sundberg, professor da Universidade de Oregon, e Richard F. Farmer, do Instituto Oregon Research, composto de 28 perguntas para avaliar a propensão para se entediar (veja no quadro na pág. 39). Os psicólogos James Danckert e Ava-Ann Allman, da Universidade de Waterloo, em Ontário, utilizaram a ferramenta para demonstrar como a percepção do tempo tem papel decisivo na experiência subjetiva. Um grupo de 176 estudantes foi submetido ao teste e em seguida subdividido de acordo com os resultados. Depois foi solicitado que observassem um movimento ilusório – um ponto que aparecia e se movia em círculos – e avaliassem em quantos segundos o movimento se concluía. Os participantes com altos níveis de inclinação ao tédio tendiam a superestimar a duração, enquanto aqueles com pontuação baixa a subestimavam. Ou seja: os entediados crônicos perceberiam a passagem do tempo de forma mais lenta e por isso teriam dificuldade de manter a atenção em algum objeto
específico, já que essa atividade seria mais “longa” para eles. Outro estudo desenvolvido na Universidade de Michigan mostrou que o tédio causa alterações no funcionamento do cérebro. Cientistas pediram a voluntários entediados que identificassem letras numa tela durante uma hora inteira, enquanto permaneciam conectados a um equipamento de ressonância magnética que media suas reações neurológicas. Os exames mostraram que, nos momentos em que a sensação de tédio se acentuava, as áreas neurais associadas à visão, à linguagem e ao autocontrole se desconectavam umas das outras, e desempenhar qualquer atividade se tornava bastante penoso. Esse funcionamento explica, por exemplo, por que quando estamos entediados temos dificuldade de assimilar informações (pense em como é difícil aprender qualquer coisa numa aula chata) e comemos mesmo sem fome, como se nos “desligássemos” da sensação prazerosa de comer ou mesmo da necessidade de nos nutrir. Não por acaso, quando estamos entediados em casa, abrimos várias vezes a geladeira e nos contentamos em comer coisas nem sempre muito saborosas ou que nos fazem bem.
Um aborrecimento antigo Para a filosofia, o conceito de tédio surgiu no início da Idade Moderna. O primeiro a mencioná-lo foi o francês Blaise Pascal, que atribuiu à ideia uma acepção religiosa, relacionada ao sentimento de desespero do homem ligado ao pecado original. “A referência era uma angústia que somente a busca de Deus poderia combater”, explica o professor de filosofia Roberto Garaventa, da Universidade de Chieti, estudioso do tema. A palavra “tédio” deriva do latim taedium (desgosto, aborrecimento, enfado), desdobramento da expressão in odio habere – ter ódio, detestar. Outros pensadores também dedicaram atenção ao tédio, como o italiano Giacomo Leopardi (1798-1837), que o via “como o desejo de felicidade deixado em estado puro, sem ter em vista um projeto”; o dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) e Schopenhauer, para os quais a vida oscilava entre a dor e o tédio, sendo este a 38
demonstração da inutilidade da existência humana: se nossa existência tivesse valor efetivo, seria suficiente para nos satisfazer – e o aborrecimento profundo sem causa clara não existiria. Mas o filósofo que mais se dedicou ao tédio foi Martin Heidegger (1889-1976). Ele escreveu mais de 100 páginas sobre o tema, embora fale, mais especificamente, sobre angústia (Angst), um estado caracterizado pelo medo que prenuncia a visão trágica do existencialismo. “Em suas aulas, ele descrevia o tédio que coloca o homem diante da perda do sentido da existência. Há, no entanto, outros tipos de tédio: o da espera de algo que deve ocorrer e se resolve com o evento esperado e o que nasce da repetição da existência, definido como bovarismo, em alusão à protagonista do romance de Gustave Flaubert Madame Bovary”, lembra Garaventa.
Quando a vida parece sem graça* Escala de Propensão do Tédio (BPS), desenvolvida pelos psicólogos Norman D. Sundberg e Richard F. Farmer, mede a tendência de uma pessoa a se tornar entediada, o que – dependendo de outras características de personalidade – pode revelar inclinação à depressão ou busca de comportamentos que provoquem emoção. As afirmações são pontuadas de 1 a 7, com 1 para “discordo totalmente” e 7 para “concordo completamente”. Quanto mais alta a contagem final, maior a suscetibilidade ao tédio. 1. Tenho facilidade para me concentrar no que estou fazendo.
16. Tenho, em geral, tempo disponível e nada para fazer.
2. Quando trabalho, me pego sempre pensando em outros problemas.
17. Fico impaciente quando sou obrigado a esperar, por exemplo, numa fila.
3. Parece-me que o tempo passa sempre muito devagar.
18. Muitas vezes acordo com uma nova ideia na cabeça.
4. Muitas vezes me sinto perdido, sem saber o que fazer.
19. Para mim seria muito difícil encontrar um trabalho suficientemente estimulante.
5. Muitas vezes me vejo enredado em situações nas quais devo fazer coisas sem sentido. 6. Assistir a filmes na casa de amigos é um tédio mortal. 7. Nunca me faltam projetos, coisas para fazer.
20. Gostaria de enfrentar mais desafios em minha vida. 21. Na maior parte do tempo, tenho a sensação de trabalhar abaixo de minhas capacidades.
8. Não tenho problemas em me divertir sozinho.
22. Muitas pessoas me definiriam como uma pessoa criativa e dotada de imaginação.
9. Muitas das coisas que devo fazer são monótonas e repetitivas.
23. Tenho tantos interesses e falta tempo de ir atrás de todos.
10. Em comparação com a maioria das pessoas, preciso de mais estímulos para “funcionar” adequadamente.
24. Entre os meus amigos, sou o mais persistente.
11. Acho a maioria das coisas que faço excitante.
25. Se não estou empenhado em uma atividade excitante ou perigosa, parece que vou morrer de tédio.
12. Meu trabalho raramente é fonte de entusiasmo. 13. Em qualquer situação, consigo encontrar algo interessante para ver ou para fazer. 14. Penso muitas vezes em ficar sentado sem fazer nada. 15. Sou capaz de esperar pacientemente.
26. Novidades e mudanças são indispensáveis para me deixar realmente feliz. 27. Tenho a impressão de que na televisão e no cinema vejo sempre as mesmas coisas, assuntos velhos. 28. Quando era mais jovem, me via muitas vezes em situações monótonas.
* O resultado não tem caráter diagnóstico. A versão original do teste está no site www.branes.com/tools/BPS.xls
PARA SABER MAIS Tédio e finitude: da filosofia à psicologia. Ana Maria Feijoo. Fundação Guimarães Rosa, 2010. Os domínios do tédio. Lars Svendsen. Mente e Cérebro, nº 173, págs. 78-83; junho de 2007. Filosofia do tédio. Lars Svendsen. Zahar, 2006.
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tratamento
Medicamento para diabetes combate
Alzheimer?
A metformina, um remédio seguro e barato, pode esacelerar ou reverter a dem ncia e o com rometimento cognitivo, esmo em não diabéticos; pesquisador credita que, se houves e interesse e fi nciamento, um estudo definiti o poderia r concluído em dois anos
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maior parte das pessoas diagnosticadas com diabetes tipo 2 em vários países, incluindo Estados Unidos e Brasil, toma o medicamento metformina (vendido com vários nomes) para ajudar a controlar a glucose no sangue. A droga, usada por milhões de pacientes, é considerada bastante segura e apresenta poucos efeitos colaterais além do desconforto gastrointestinal que provoca em parte dos usuários. Outra vantagem é que seu custo é acessível. A novidade agora é que, segundo novos estudos, há indícios de que a metformina possa ajudar a proteger o cérebro de desenvolver doenças do envelhecimento, mesmo em não diabéticos.
Pesquisadores já sabem que o diabetes é considerado um fator para o surgimento de doenças neurodegenerativas. Porém, o uso de metformina está associado a uma redução radical na incidência dessas patologias. No estudo mais abrangente até agora sobre os efeitos da metformina, a cientista Qian Shi e suas colegas da Universidade Tulane acompanharam 6 mil veteranos diabéticos e demostraram que, quanto mais tempo um paciente utilizava metformina, menores eram as chances de desenvolver as doenças de Alzheimer e Parkinson e outros tipos de demência e comprometimento cognitivo. As descobertas apresentadas na reunião das Sessões Científicas da Associação Americana de Diabetes, nos Estados Unidos, mostram que, assim como já tinham revelado alguns trabalhos anteriores menores sobre uso de metformina a longo prazo, no novo estudo pacientes que utilizavam a droga por mais de quatro anos apresentavam um quarto da incidência da doença em comparação com pacientes que só faziam uso de insulina ou a insulina associada a alguma outra medicação, trazendo o nível de risco de diabetes para um nível correspondente àquele da população geral. “Mesmo na ausência de diabetes, os pacientes com Alzheimer costumam apresentar sensibilidade à insulina reduzida no cérebro”, diz a neurocientista Suzanne Craft, que estuda resistência à insulina em doenças degenerativas na Faculdade de Medicina Wake Forest. A substância desempenha muitos papéis neurológicos, está envolvida na formação da memória e ajuda a manter as sinapses livres de acúmulo de proteína, incluindo os emaranhados de tau e placas amiloides que se acumulam na doença de Alzheimer, diz Craft. Essa associação levou algumas pessoas a chamar Alzheimer de “diabetes tipo 3”. A esperança de pesquisadores é que a metformina possa ajudar a corrigir os problemas ligados à insulina no cérebro em processo de envelhecimento. Pesquisas em animais mostram que o efeito da droga nas células-tronco neurais pode ser a chave para novas descobertas nessa área. Os neurocientistas Jing Wang e Freda Miller, ambos então no Hospital de Toronto para Crianças, mostraram que, quando se administra metformina a ratos não diabéticos, sua memória melhora
devido a um aumento na população de células-tronco neurais e maior número delas que se desenvolvem de forma saudável no hipocampo, o centro da memória no cérebro. Estudos clínicos humanos também acenam com promessas no tratamento de Alzheimer na fase inicial da patologia. O neurologista Steven E. Arnold, do Hospital Geral Massachusetts, demonstrou recentemente que pacientes diagnosticados com a doença apresentavam melhoras pequenas, mas significativas – na capacidade mnêmica e no funcionamento cognitivo – após ingerir metformina por oito semanas, em comparação àqueles que tomavam placebo. O imageamento do cérebro revelou também algumas melhoras no metabolismo neural. Os efeitos modestos são a norma quando se trata de Alzheimer: mesmo as drogas já aprovadas e utilizadas apresentam somente uma pequena eficácia e por um período limitado. “Essa é uma das grandes motivações para encontrar novas terapias”, diz Craft. Arnold pretende conduzir um estudo maior que possa avaliar melhor a eficácia da metformina, mas financiamentos têm sido um problema. É que, como a medicação é genérica, as indústrias farmacêuticas têm pouca motivação em termos de lucro para testá-la. “Trata-se de um medicamento simples, comum e barato que pode afetar um aspecto importante do comprometimento cognitivo em adultos idosos, e há uma razão científica convincente para examiná-la. Agora só precisamos realmente estudá-la de modo que nos forneça uma resposta clara quanto à sua verdadeira utilidade”, diz Arnold. Ele acredita que, se houvesse interesse financiamento, um estudo definitivo poderia ser concluído em dois anos. Os grupos de pesquisa de Craft e Arnold trabalham atualmente para encontrar também biomarcadores de Alzheimer, sinais biológicos mensuráveis da patologia, para que pacientes com alto risco de desenvolver doenças degenerativas possam ser identificados precocemente – e tratados. Essas pessoas poderiam ser potenciais candidatos ao uso da metformina e outros sensibilizadores de insulina para impedir seu aparecimento. (Por Meredith Knight, jornalista) maio 2017 • mentecérebro 41
neurociência
Faxina cerebral Um complexo sistema de “tubulações orgânicas” faz uma espécie de limpeza para retirar lixo tóxico do cérebro. O acúmulo de resíduos, causado por desajustes no ritual que ocorre durante o sono, está associado a distúrbios, incluindo problemas de memória e aprendizagem por Maiken Nedergaard e Steven A. Goldman
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cérebro humano pesa algo em torno de 1,36 kg, o que representa, em média, 2% da massa corporal de um adulto. No entanto, suas células consomem de 20% a 25% da energia total do corpo. No processo, são gerados resíduos potencialmente tóxicos de proteínas e restos biológicos. A cada dia, o cérebro adulto elimina sete gramas de proteínas desgastadas, que precisam ser substituídas por outras recém-fabricadas, um número que se traduz na reposição de 0,2268 kg de detritos por mês e 1,36 kg – o próprio peso do cérebro – durante um ano. Para sobreviver, o mais complexo dos órgãos precisa descarregar o lixo que produz. É inconcebível que um sistema tão sofisticadamente afinado para produzir pensamentos e possibilitar ações não tenha um “sistema de 42
esgoto” eficaz. Até recentemente o mecanismo de descarte de lixo do cérebro continuava misterioso sob vários aspectos. Persistiam questões sobre até que ponto as células cerebrais processavam seu próprio lixo ou se os restos poderiam ser transportados para fora do sistema nervoso e jogados fora. E por que a evolução parece não ter feito com que o cérebro “entregasse” os detritos para outros órgãos no corpo mais adequados para remover resíduos? Afinal, o fígado e os rins, por exemplo, são “usinas” especializadas em descarte e reciclagem. OS AUTORES MAIKEN NEDERGAARD é neurocientista, pesqisador do Centro Médico da Universidade de Rochester e na Universidade de Copenhagen. STEVEN A. GOLDMAN é professor de neurociência da Faculdade de Medicina e Odontologia da Universidade de Rochester e da Universidade de Copenhagen.
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neurociência
CÉLULAS CEREBRAIS: em verde, neurônios em formato piramidal; em vermelho, os astrócitos; em azul, as microglias
Há cerca de cinco anos, começamos a tentar esclarecer como o cérebro elimina proteínas e outros materiais dos quais pretende se livrar. Também passamos a explorar como a interferência nesse processo poderia causar os problemas de cognição encontrados em doenças neurodegenerativas. Achávamos que perturbações no processo de limpeza poderiam contribuir para tais doenças, já que era de se esperar que o distúrbio pudesse levar ao acúmulo de resíduos de proteínas dentro e em volta das células. Essa ideia nos intrigava porque já se sabia que tais torrões, ou agregados, de proteínas realmente se formam nos neurônios, na maioria das vezes estando associados a desordens neurodegenerativas. Além disso, sabia-se que os agregados poderiam impedir a transmissão de sinais elétricos e químicos no cérebro e causar danos irreparáveis. De fato, a patologia do Alzheimer, Parkinson e de outras doenças neurodegenerativas causadas pela idade pode ser reproduzida em modelos animais pela superprodução forçada desses agregados de proteínas. Durante nossa pesquisa, descobrimos um sistema até então desconhecido para 44
limpar as proteínas e outros resíduos do cérebro – e aprendemos que esse sistema fica mais ativo durante o sono. A necessidade de remover lixos tóxicos do cérebro pode, na realidade, ajudar a explicar o mistério de por que dormimos e consequentemente nos retiramos da vigília durante um terço de nossas vidas. Esperamos plenamente que a compreensão sobre o que acontece quando esse sistema não funciona bem nos leve tanto a novas técnicas de diagnóstico, quanto a tratamentos para várias doenças neurológicas. SISTEMA GLINFÁTICO Na maioria das regiões do corpo, o sistema linfático elimina lixo com proteínas dos tecidos. O fluido se armazena em pequenos dutos que levam a outros maiores e no final para os vasos sanguíneos. Essa estrutura também fornece um caminho para a defesa imunológica, pois os nódulos linfáticos – repositórios de células brancas que combatem infecções – povoam os dutos em pontos-chave em toda a rede. No entanto, durante um século neurocientistas acreditaram que o sistema linfático não existia no cérebro ou na medula espinhal. Na visão prevalecente,
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o cérebro eliminava o lixo. Nossa pesquisa sugere que esta não é a história completa. Os vasos sanguíneos do cérebro são circundados por áreas perivasculares – túneis em forma de roscas que circundam cada vaso. A parede interna de cada espaço é feita da superfície de células vasculares. Mas a parede externa é singular ao cérebro e à medula, e consiste em extensões que se ramificam a partir de um tipo de célula especializada, chamada astrócito. Os astrócitos são células de apoio com uma grande variedade de funções para a rede interconectada de neurônios. As extensões de astrócitos – pés vasculares – circundam as artérias, capilares e veias no cérebro e na medula. A cavidade oca formada entre pés e vasos permanece em grande parte sem obstruções, criando um vertedouro que permite o rápido transporte de fluidos no cérebro. Os cientistas sabiam da existência da área perivascular mas, até recentemente, não haviam identificado qualquer função específica para ela. Há trinta anos, Patricia Grady, então na Universidade de Maryland, descreveu as correntes de fluido perivascular, mas o significado dessa descoberta não foi reconhecido até muito mais tarde. Ela relatou que proteínas grandes, injetadas no líquido cefalorraquidiano (LCR), mais tarde podiam ser encontradas nas áreas perivasculares tanto de gatos quanto de cachorros. Na época, outros grupos não conseguiram replicar as descobertas dela, e, sem se saber qual poderia ser o significado de tal observação, a pesquisa não avançou mais. Quando começamos nossos estudos sobre o sistema de esgoto do cérebro, há apenas alguns anos, nos concentramos em descobertas prévias, de que os canais de água construídos por uma proteína chamada aquaporina-4 estavam embebidas nos pés vasculares astrócitos. Na verdade, a densidade dos canais de água era comparável àqueles nos rins, um órgão cuja principal tarefa é transportar água. Ficamos interessados na multiplicidade dos canais de água de astrócitos e em sua posição frente às paredes dos vasos sanguíneos. Descobrimos que as células vasculares endoteliais na vizinhança da área perivascu-
Todos os dias o cérebro elimina sete gramas de proteínas usadas, que precisam ser substituídas por novas; nesse processo, são descartados cerca de 226 gramas de detritos por mês e 1,36 kg por ano, o que equivale ao peso do próprio cérebro lar não tinham esses canais. Portanto, os fluidos não podiam se movimentar diretamente da corrente sanguínea para o tecido cerebral. Pelo contrário, o líquido tinha de fluir entre o espaço perivascular e para dentro dos astrócitos, ganhando dessa forma acesso ao tecido cerebral. O espaço perivascular poderia ser um sistema linfático neural? Ele poderia fornecer um conduíte para o fluido cefalorraquidiano? Pulsações arteriais poderiam levar o LCR pelo espaço perivascular. De lá, parte dele entraria nos astrócitos por seus pés vasculares. Ele poderia então se mover entre as células e finalmente para o espaço perivascular ao redor das veias e limpar resíduos do cérebro. Ao lado dos pesquisadores Jeff Iliff e Rashid Deane, membros de nosso laboratório, partimos para confirmar essa hipótese. Usando corantes químicos que tingem o líquido, e combinando isso a técnicas mi-
ACÚMULO DE PLACAS de proteínas em uma representação 3D
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neurociência
Pesquisa recentemente descobriu passagens para o transporte de detritos neurológicos, que ficam mais ativas durante o sono; vasos de fluidos que cuidam da limpeza podem ser cruciais para o tratamento de doenças neurológicas como Alzheimer ou Parkinson, que são consequência do acúmulo de proteínas tóxicas croscópicas que nos permitiam ver imagens com profundidade dentro de tecido cerebral vivo, pudemos observar de forma direta que o bombeamento de sangue impulsionava grandes quantidades de LCR para o espaço perivascular ao redor das artérias. Usando astrócitos como veículo, o LCR então se movia através do tecido cerebral, onde deixava os astrócitos e recolhia proteínas descartadas. Os fluidos saem do cérebro através da área perivascular que circunda veias pequenas drenando o cérebro, e essas veias, por sua vez, se unem a outras maiores, que continuam pelo pescoço. Os líquidos de resíduos continuam para entrar no sistema linfático, a partir do qual flutuam de volta para a circulação sanguínea geral. Ali eles se unem com resíduos das proteínas de outros órgãos, no final destinadas para filtragem pelos rins ou para processamento pelo fígado. Quando começamos nossa pesquisa, não fazíamos ideia de que os astrócitos tinham um papel tão crucial na contrapartida de um sistema linfático no cérebro. Uma prova adicional veio quando usamos um rato geneticamente modificado, sem a proteína aquaporina-4, que constrói os canais de água astrócitos. A taxa de vazão do LCR que entrava nos astrócitos caiu 60%, diminuindo muito a velocidade do transporte de fluidos pelo cérebro. Com isso, tínhamos traçado um caminho completo dentro do cérebro para que esses fluidos de limpeza retirassem com eficiência os resíduos. Chamamos nossa descoberta de sistema glinfático. A palavra recém-cunhada combina as palavras “glia” – um tipo de célula cerebral do qual o astrócito é um 46
exemplo – com “linfático”, dessa forma dando referência dessa função recém-descoberta às células gliais do cérebro. Quando reconhecemos o papel importante do sistema glinfático, imediatamente nos perguntamos se as proteínas construídas no cérebro em doenças neurodegenerativas poderiam, em um cérebro saudável, ser retiradas junto com outro lixo celular mais comum. Em especial, focamos uma proteína ligada ao Alzheimer, chamada de beta-amiloide, que antes se acreditava que fosse limpa em circunstâncias normais por processos de degradação ou de reciclagem, que são feitos em todas as células cerebrais. No Alzheimer, agregados de beta-amiloide formam placas amiloides entre as células, que podem contribuir para o processo da doença. Descobrimos que, em um cérebro saudável, a beta-amiloide é limpa pelo sistema glinfático. Outras proteínas envolvidas em doenças neurodegenerativas, tais como as proteínas sinucleínas que aparecem no Parkinson, demência com corpos de Lewy e atrofia multissistêmica, também poderiam perder o controle e crescer de forma anormal se o sistema glinfático não funcionasse de forma correta. Um sintoma que acompanha doenças degenerativas forneceu uma dica de como proceder. Muitos pacientes com Alzheimer sofrem de distúrbios do sono muito antes de sua demência se tornar aparente. Em indivíduos mais velhos, o sono se torna mais fragmentado, superficial e dura menos tempo. Estudos epidemiológicos mostraram que pacientes que relataram ter um sono pobre durante a meia-idade tinham maior risco de passar por um declínio cognitivo do que pessoas do grupo de controle, quando testadas 25 anos depois. Mesmo pessoas saudáveis, que são obrigadas a ficar acordadas, demonstram sintomas mais típicos de doenças neurológicas e males mentais – pouca concentração, lapsos de memória, fadiga e irritabilidade, além de altos e baixos emocionais. A privação profunda de sono pode resultar em confusão e alucinações, tendo o potencial de levar a ataques epilépticos e mesmo à morte. De fato, animais de laboratório podem morrer
Limpando a cabeça Um sistema intrincado de vasos – o sistema glinfático – serpenteia pelo cérebro, carregando fluidos que limpam o órgão de proteínas descartadas e de outros tipos de lixo, que podem se aglomerar e se tornar tóxicos, quando deixados ali. Os fragmentos de proteínas, conhecidos como peptídeos beta-amiloides, que estão presentes na doença de Alzheimer, são exemplos dos detritos celulares tirados do cérebro através do sistema de drenagem, em sua maioria durante o sono.
peter hoey
Fluido que entra O líquido cefalorraquidiano (LCR), do espaço subaracnídeo, entre o crânio e o cérebro, viaja por uma cavidade (o espaço periarterial) que circunda uma artéria, impulsionado pela pulsação do fluxo sanguíneo. Esse fluido entra em canais pequenos que se estendem da cavidade para células chamadas astrócitos, cujos pés vasculares formam o espaço periarterial ao circundar vasos sanguíneos. O LCR sai então dos astrócitos e viaja pelo fluxo convectivo através do tecido cerebral.
Detritos que saem Depois de recolher detritos do tecido cerebral, o fluido é transportado para o espaço perivenoso, que circunda uma rede de veias que drenam sangue do cérebro. Nessa cavidade, o fluido passa por veias cada vez maiores, que no final chegam ao pescoço (detalhe do cérebro acima). Os detritos então vão para o sistema linfático e finalmente até a corrente sanguínea.
Crânio
Espaço subaracnóideo
Líquido cefalorraquidiano
Astrócito
Pé vascular
Espaço periarterial
Espaço perivenoso
Fluxo convectivo Veia Artéria
Canal
Detritos (pontos negros) maio 2017 • mentecérebro 47
neurociência croscópio de excitação por dois fótons. No final verificou-se que o LCR no sistema glinfático caiu de forma dramática enquanto os ratos estudados estavam acordados. Alguns minutos depois do início do sono ou dos efeitos da anestesia, no entanto, a afluência de fluidos aumentou significativamente. Em colaboração com o neurocientista Charles Nicholson, pesquisador da Universidade de Nova York, descobrimos que o espaço intersticial – a área entre as células através da qual o fluido glinfático circula em seu caminho até os espaços perivasculares ao redor das veias – aumentou mais de 60% quando os ratos caíram no sono. Atualmente acreditamos que a circulação glinfática aumenta durante o sono porque o espaço entre as células se expande, o que ajuda a empurrar o fluido através do tecido cerebral. Nossa pesquisa também revelou como o ritmo de circulação glinfática é controlado. Um neurotransmissor, ou molécula de sinalização, chamada norepinefrina, apareceu para regular o volume da área intersticial e consequentemente a velocidade do fluxo glinfático. Os níveis de norepinefrina subiram quando os ratos estavam acordados e eram escassos durante seu sono, o que sugere que mergulhos transitórios, relacionados ao sono, na disponibilidade de epinefrina, levam a um fluxo glinfático melhorado. O PODER DO SONO Depois de ter demonstrado que a expansão e a contração do espaço intersticial durante o sono é importante tanto para a função cerebral quanto para a limpeza de resíduos de proteína, passamos a querer testar um corolário para essa observação: a privação de sono poderia precipitar uma doença neurodegenerativa? Experiências que fizemos com ratos mostraram que, durante o sono, o sistema glinfático realmente remove a beta-amiloide do cérebro com notável eficiência: o ritmo de limpeza mais do que dobra durante o sono. Por outro lado, ratos modificados geneticamente, para que não tivessem canais de aquaporina-4 nos astrócitos, demonstraram função glinfática significativamente prejudicada, limpando 40% menos beta-amiloide do que os animais de controle. 48
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QUANDO ADORMECEMOS, a circulação perivascular aumenta ao redor das veias e o espaço entre as células se expande; o ritmo de descarte de substâncias desnecessárias aumenta em mais de 100%
quando privados de sono em apenas alguns dias, e os humanos não são mais resistentes. Em humanos, a insônia familiar fatal é uma doença hereditária que faz com que os pacientes durmam cada vez menos até que morram, normalmente em 18 meses depois de diagnosticados. Conscientes disso tudo, especulamos se as dificuldades de sono relacionadas à demência poderiam ser não apenas os efeitos colaterais da doença, mas contribuir para o próprio processo da doença. Além disso, se o sistema glinfático limpa a beta-amiloide durante o sono a um ritmo maior do que quando estamos acordados, talvez os padrões de sono ruim dos pacientes com desordens neurodegenerativas poderiam contribuir para a piora da doença. Como nossas experiências iniciais haviam sido feitas em ratos anestesiados, também nos perguntamos se a circulação rápida de fluidos que observamos não era necessariamente o que poderíamos prever em um cérebro ativo e acordado, que estaria sujeito a outras exigências durante seu funcionamento normal. A fim de testar a ideia, os neurocientistas Lulu Xie e Hongyi Kang, do Laboratório Nedergaard, treinaram ratos para que ficassem sentados quietos sob um microscópio, para que fosse possível capturar imagens de um agente químico marcador no LCR, utilizando uma técnica de imagem nova, chamada mi-
A alta porcentagem de beta-amiloide removida colocou em xeque a ideia, amplamente aceita, de que os neurônios destroem internamente seus próprios resíduos. Agora sabemos que o cérebro remove boa parte de proteínas inteiras, indesejadas, varrendo-as para fora para degradação posterior. Essas novas descobertas, além disso, pareciam confirmar que o cérebro adormecido exporta resíduos de proteínas, inclusive beta-amiloide, através do sistema de transporte glinfático. Outro apoio a essa tese veio do grupo de David M. Holtzman, da Universidade de Washington em St. Louis, que demonstrou que a concentração de beta-amiloide no espaço intersticial é mais alta no período de vigília do que no sono, e que a privação de sono agrava a formação de placa-amiloide em ratos geneticamente modificados para acumulá-la em excesso. Até agora essas investigações não foram além de laboratórios de pesquisa básica. A indústria farmacêutica ainda precisa considerar terapias antidemência que removeriam fisicamente a amiloide e outras proteínas tóxicas ao limpar o cérebro com fluidos glinfáticos. Estimular o fluxo glinfático oferece uma nova abordagem que vale a pena ser investigada. Um medicamento que regule o sistema glinfático ao aumentar a taxa de fluxo do LCR no sono poderia remover a amiloide para fora do cérebro. Um tratamento para uma síndrome neurológica bem conhecida sugere que essa abordagem pode funcionar. A hidrocefalia de pressão normal, típica em idosos, é uma forma de demência na qual o LCR excessivo se acumula nas cavidades ocas centrais do cérebro, os ventrículos cerebrais. Quando a punção lombar remove o fluido ao drená-lo, com frequência os pacientes exibem melhoras notáveis em suas capacidades cognitivas. A base para essa observação há muito é um mistério. Nossa pesquisa sugere que restaurar a circulação de fluidos através do sistema glinfático pode mediar a restauração da função intelectual. Mesmo que uma droga não seja iminente, o conhecimento sobre os sistemas glinfáticos sugere ideias novas para diagnosticar o Alzheimer e outras doenças neurológicas.
A punção lombar costuma provocar melhoras notáveis na capacidade cognitiva dos pacientes; nossa pesquisa sugere que restaurar a circulação de fluidos através do sistema glinfático pode mediar a função intelectual Um estudo recente de Helene Benveniste, da Faculdade de Medicina de Stony Brook, mostrou que, com imagem por ressonância magnética padrão, é possível visualizar e quantificar a atividade do sistema glinfático. A tecnologia pode permitir que se façam testes do fluxo glinfático, projetados para prognosticar a progressão da doença em pacientes de Alzheimer, de demências relacionadas ou ainda de hidrocefalia de pressão normal. Pode até mesmo prever a capacidade de recuperação em pacientes com danos cerebrais traumáticos. A maioria de nossos estudos sobre o sistema glinfático até agora se concentrou na remoção de resíduos de proteínas. No entanto, é possível que esse sistema se mostre uma área fértil para se chegar a uma compreensão básica sobre o funcionamento do cérebro. De forma intrigante, os fluidos que se movem através do sistema glinfático podem fazer mais do que apenas remover resíduos; podem fornecer diversos nutrientes e outras cargas para o tecido cerebral. Um novo estudo demonstrou que os canais glinfáticos fornecem glicose aos neurônios para que tenham energia. Estudos adicionais atualmente investigam se a matéria branca, o revestimento parecido com isolamento ao redor das extensões similares a fiação dos neurônios, os axônios, podem se apoiar no sistema glinfático para o fornecimento de nutrientes e de materiais necessários para a manutenção da integridade estrutural das células. Esses estudos prometem elucidar os diversos papéis inesperados do sistema glinfático na vida diária – e noturna – do cérebro. Leia mais sobre o processos de adormecimento na edição especial de Mente e Cérebro 58, Sono, em versão digital. Veja como baixar seu exemplar em www.mentecerebro.com.br.
PARA SABER MAIS The glymphatic system: A beginner’s guide. Nadia Aalling Jessen et al., em Neurochemical Research, vol. 40, nº 12, págs. 2583– 2599; dezembro de 2015. Regulation of cerebrospinal fluid (CSF) flow in neurodegenerative, neurovascular and neuroinflammatory disease. Matthew J. Simon e Jeffrey J. Iliff, em Biochimica et Biophysica Acta (BBA)—Molecular Basis of Disease. Publicado on-line em 22 de outubro de 2015. Distinct functional states of astrocytes during sleep and wakefulness: Is norepinephrine the master regulator? John O’Donnell et al., em Current Sleep Medicine Reports, vol. 1, nº 1, págs. 1–8; março de 2015.
maio 2017 • mentecérebro 49
comunicação
Culturas diversas,
emoções mais explícitas Habitantes de países que ao longo de sua história receberam maior quantidade de imigrantes costumam exibir o que sentem com maior clareza; nas sociedades essencialmente fechadas, as variações de expressões faciais e tonalidades de voz tendem a ser discretas
A
psicóloga americana Paula Niedenthal, professora da Universidade Wisconsin-Madison, estava relendo a série The little house on the prairie quando lhe veio uma indagação: de que modo a mistura de culturas, em diversos países, afetou a maneira como as pessoas expressam o que sentem? Dos italianos efusivos aos suecos reticentes, uma variedade de grupos imigrantes teve de aprender a se comunicar durante atividades como o cultivo e o comércio. Ela se perguntava como a longa história de migração de vários países havia influenciado a maneira como as pessoas aprendem a mostrar o que sentem. Em 2011, Niedenthal encontrou as informações das quais precisava para responder a essa pergunta em um ar50
tigo escrito por dois economistas na Universidade Brown, que tratava de culturas migrando para vários países durante os últimos 500 anos. Utilizando esses dados como base, recentemente a psicóloga e seus alunos de pós-graduação publicaram dois artigos demonstrando que as pessoas de culturas heterogêneas (com maior histórico de imigração) exibem emoções mais facilmente identificáveis do que aquelas de culturas homogêneas. “Se você compartilha língua e cultura, não precisa ser emocionalmente tão expressivo, os códigos podem ser mais sutis e ainda assim serão captados”, diz a psicóloga. Se não temos essa base comum, é importante que aquilo que sentimos e queremos seja demonstrado de manei-
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O sorriso assume conotações diversas, assim como a linguagem; em meios heterogêneos, costuma ser interpretado como sinal de simpatia; em grupos homogêneos pode ser entendido como indício de arrogância
ras mais evidentes para que a comunicação se estabeleça e possamos nos compreender melhor. Em um dos artigos provenientes do grupo de Niedenthal, publicado em 2015 no periódico científico Proceedings of the National Academy of Sciences USA, a primeira autora, Magdalena Rychlowska, e os coautores contam que solicitaram a 726 voluntários de nove países que completassem um questionário sobre como reagiam a diferentes expressões faciais. Os pesquisadores constataram que os oriundos de culturas historicamente mais
heterogêneas tendiam a ver o sorriso como uma boa razão para ser simpático e se aproximar de outras pessoas. Entretanto, aqueles que vinham de culturas homogêneas costumavam ver o sorriso como uma maneira de demonstrar arrogância e superioridade. “Sorrisos são basicamente como as línguas: você os utiliza de diferentes formas”, diz Rychlowska, atualmente na Universidade de Cardiff, no País de Gales. Ampliando esse estudo, Adrienne Wood, pesquisadora do laboratório de Niedenthal, reuniu dados existentes sobre o reconhecimento de emoções com base em 92 artigos representando 82 culturas. A cientista avaliou a frequência com que os participantes da pesquisa atribuíam a emoção correta a uma fotografia, um vídeo ou a algum registro de áudio, considerando a heterogeneidade histórica do país daquele que expressava a emoção. Ela, então, constatou que pessoas de culturas com índices maiores de imigração exibem expressões faciais e indicadores vocais mais facilmente reconhecíveis. “As culturas evoluem com o objetivo de lidar com os desafios particulares de seus ambientes sociais e ecológicos”, diz Wood. Seu estudo foi publicado em 2016 no periódico Emotion. Os pesquisadores planejam agora investigar mais dados com base no censo populacional, na tentativa de entender quanto tempo leva para uma população heterogênea mudar a maneira como expressa emoção. “Sabemos que uma longa história de migração muda toda uma cultura, temos muitos exemplos históricos, mas precisamos nos aprofundar, especialmente nestes tempos em que tantos grupos humanos se deslocam pelo planeta e enfrentam barreiras de comunicação de variadas ordens”, afirma Niedenthal. (Por Susan Cosier, jornalista) maio 2017 • mentecérebro 51
trabalho
UM POUCO DE
ciência PARA ARRUMAR
e prego Se em tempos de economia mais equilibrada já vale a pena recorrer a algumas constatações embasadas em pesquisas para aumentar as chances de obter uma colocação profissional desejada, em época de escassez de vagas esses conhecimentos podem ser ainda mais valiosos
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O
s índices de desemprego nunca estiveram tão altos no país. Os números impressionam: no trimestre encerrado em janeiro, ficou em 12,6%, o que representa a maior taxa da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que começou a ser acompanhada em janeiro de 2012. De novembro do ano passado a janeiro, a população desocupada chegou a 12,9 milhões de pessoas, número 7,3% maior do que o registrado no trimestre de agosto a outubro de 2016. Diante do período de novembro a janeiro do ano passado, o aumento foi ainda maior: 34,3%. Na prática, equivale a dizer que as vagas disponíveis estão mais escassas – e concorridas. Mais do que nunca, algumas atitudes podem ser bastante úteis na hora de pleitear um posto de trabalho. E as descobertas científicas melhoram as chances dos candidatos de processos seletivos.
Faça uma pequena ARRUMAÇÃO Antes mesmo que comece a enviar suas solicitações de emprego, é prudente se livrar de conteúdos digitais potencialmente prejudiciais (conversas políticas, selfies tomando cerveja, comentários preconceituosos, reclamações sobre seu atual empregador). “Atualmente, é quase certeza que o futuro patrão faça uma busca nas contas de mídia social do profissional”, diz a psicóloga Therese Macan, professora da Universidade de Missouri St. Louis, que estuda o processo de seleção e recrutamento de funcionários. “Se o seu Facebook, Twitter, Instagram e
Prepare algumas RESPOSTAS-CHAVE Muitas empresas utilizam as chamadas entrevistas estruturadas, que se concentram em solicitar aos candidatos que descrevam comportamentos passados. Alguns exemplos: “Conte-me sobre um tempo em que trabalhou com um colega com quem era difícil se relacionar e o que você fez para lidar com a situação” ou “Conte-me sobre um projeto difícil em que trabalhou e como conseguiu realizá-lo”. Pro-
cure dar exemplos concretos daquilo que fez naquelas situações, diz Macan. “Para imaginar quais são as possíveis perguntas, pense sobre aquilo que o trabalho implica. Ele exige que as pessoas atuem em equipe? Requer que o profissional se apresente diante das pessoas? Então pode ser que lhe peçam que descreva esses momentos de seu passado.” Outra opção é buscar um profissional da área de psicologia que o ajude a lidar com situações que a pessoa sabe que será difícil enfrentar. Há alguns anos, os pesquisadores de gestão Todd Maurer e Jerry Solamon constataram que 91% das pessoas que se submeteram a um programa de treinamento de entrevista sentiram que isso as havia ajudado a ter um melhor desempenho em suas entrevistas reais.
IMAGINE-SE CONSEGUINDO seu objetivo A visualização se tornou um recurso essencial de treinamento para atletas de elite – e há fortes evidências de que possa funcionar para candidatos a empregos também. As pessoas que usaram a técnica ficaram menos estressadas e conseguiram melhores avaliações do que aquelas que não o fizeram, segundo um estudo de 2003 publicado no Journal of Managerial Psychology. O protocolo de 10 a 20 minutos é bastante simples: imagine sentindo-
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outras redes não forem privados, o entrevistador pode construir uma impressão sua antes mesmo que você entre na sala; por isso, é indicado pelo menos fazer uma busca sua no Google para ver o que aparece quando seu nome é digitado.” Também é interessante fazer busca no LinkedIn para ver se há mais alguém no seu ramo com o mesmo nome (e um perfil cheio de erros de digitação, eventualmente, algo que pode ser péssimo para sua carreira). “Uma das minhas alunas de pós-graduação descobriu que havia mais alguém na região onde morava, em um departamento de psicologia, que tinha um nome incomum exatamente igual ao seu e tinha uma foto provocativa em seu site. Ela teve de assegurar aos seus empregadores de que não se tratava dela”, lembra a professora.
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trabalho -se confiante e no controle durante o curso de uma entrevista, então mentalize a coisa toda culminando em uma oferta de emprego que lhe agrade muito. Quanto mais detalhada e realista for a visualização, mais benefícios a técnica trará – não porque “magicamente” a pessoa terá acesso ao posto que almeja, mas porque estará mais confiante e com mais clareza para atingir seu objetivo.
TIRE PROVEITO de suas habilidades Costuma ser bastante desagradável quando alguém abertamente se gaba de si mesmo. Mesmo assim, um estudo de 2013 no Journal of Applied Social Psychology confirmou que fazer autopromoção com algum entusiasmo durante uma entrevista pode ser uma coisa
boa. Cerca de 70 gravações de entrevistas simuladas de emprego foram ouvidas e classificadas por mais de 200 avaliadores. Candidatos que falavam mais, faziam autopromoção, sorriam e elogiavam os entrevistadores – sem exageros – recebiam avaliações muito mais positivas do que as pessoas que agiam de modo mais modesto, como se dessem pouca importância às próprias conquistas. O “segredo” parece ser mostrar valorização das próprias conquistas e capacidades, sem superestimá-las nem tecer elogios mentirosos ou fantasiosos a si mesmo, à empresa ou ao avaliador.
Do outro lado do balcão
PARA SABER MAIS Private traits and attributes are predictable from digital records of human behavior. Michal Kosinski, David Stillwell e Thore Graepel em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 110, nº 15, págs. 5802- 5805, 9 de abril de 2013. Reasons for being selective when choosing personnel selection procedures. Cornelius J. Kšnig e outros em International Journal of Selection and Assessment, vol. 18, nº 1, págs. 17-27, março de 2010.
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Avaliação de currículos, pesquisas em redes sociais, testes e outros tantos recursos são importantes na hora de escolher um funcionário ou colaborador. Mas a empatia e a intuição também são fundamentais na decisão para uma boa contratação. O objetivo do recrutador, seja o diretor de recursos humanos, o gerente ou diretor de determinada empresa, é encontrar a pessoa que melhor se adapte às necessidades, à missão e à cultura da instituição. Tradicionalmente, o responsável por essa tarefa cria algum tipo de anúncio para a vaga, em alguns casos envia para empresas especializadas em divulgação e seleciona ofertas e, em geral, referências são bem-vindas. Por fim, são convocados alguns candidatos para entrevista. Na maioria os casos, entretanto, esse processo não considera importantes descobertas da psicologia organizacional. Testes de inteligência, por exemplo, podem indicar possibilidades de desempenho em diversas áreas de trabalho e ajudam a inferir a capacidade de aprender, o que pode ser eficaz durante o treino que será oferecido pela empresa. No entanto, a ferramenta
não é a primeira opção para a maioria das empresas devido aos custos. Pesquisas recentes apontam que entrevistas semiestruturadas, ou seja, em que vários interessados numa vaga respondem às mesmas perguntas, são preferíveis a conversas não técnicas. O método ajuda diferentes avaliadores a chegar a conclusões semelhantes a respeito da mesma pessoa. Apesar disso, ainda predominam os tradicionais “bate-papos” na hora da seleção, em parte porque provavelmente os contratantes não se dão conta das falhas desse tipo de abordagem ou por acreditarem que seguir um método pode interferir em sua autonomia. Outra estratégia interessante que vem ganhando espaço nesse cenário enfatiza o aspecto lúdico, usando jogos online para avaliar candidatos. A vantagem em relação às técnicas tradicionais, como testes de personalidade, é propor uma experiência mais atraente ao participante. O recurso é baseado em teorias comportamentais e ajuda a identificar padrões de acordo com as ações do jogador, por meio de um software que gera um complexo perfil de personalidade.
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Abuso emocional, físico e sexual
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As variadas formas de violência, muitas vezes praticadas por pessoas afetivamente próximas das vítimas, deixam marcas não só no corpo, mas também no psiquismo e podem culminar em desfechos fatais. Mulheres e crianças são as principais afetadas
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Uma história como tantas outras A tragédia familiar protagonizada por Débora, Pedro e os quatro filhos culminou com o assassinato da mulher cometido pelo marido na frente das crianças. Infelizmente, o caso se confunde com tantos outros semelhantes, com desfechos que também deixam marcas de profundo sofrimento por Allison Bressler
A AUTORA ALLISON BRESSLER é advogada especialista em violência doméstica, com pós-graduação em psicologia social.
*Nomes e datas foram alterados para proteção das crianças. 56
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urante as primeiras horas de uma manhã de setembro de 2007, Pedro, de 42 anos, invade a sua casa em um condomínio de classe média alta, armado com uma grande faca de cozinha. Ele tentou entrar pela garagem, mas o sensor não respondeu ao seu comando. Em seguida, forçou a porta da frente, mas a fechadura havia sido mudada. Então, pegou uma cadeira do deck e a atirou através de uma janela da cozinha. Assim que ouviu o barulho do vidro se estilhaçando, sua mulher, Débora, chamou a polícia e disse que o marido tinha entrado à força em sua casa. Ela mandou dois filhos, de 4 e 9 anos, que estavam dormindo em sua cama, permanecerem deitados. Pegou um taco de golfe e correu pelo corredor passando pelos quartos dos outros dois, um menino de 10 e uma garota de 7. E deu de cara com Pedro na escada. Virou-se e correu de volta para seu quarto, batendo a porta, mas ele a alcançou. Com a faca em punho, Pedro se aproximou de Débora e a esfaqueou no estômago. A mulher caiu sobre a cama. Enquanto gritavam e o chutavam, as crianças imploravam: “Pare! Pare!”. Até o cachorro tentou mordê-lo. Débora rolou para o chão, ainda respirando e ele de novo a esfaqueou repetidamente – sete vezes, segundo os jornais. Pedro, então, tapou o nariz e a boca da mulher até que não se movesse mais. Na sequência, se deitou ao lado do corpo de sua vítima e esperou a polícia chegar. “Por quê, papai?”, as crianças indagavam aos prantos. O doutor em sociologia Michael S. Kimmel, pesquisador da Universidade Stony Brook, escreveu: “O tipo de violência mais sistemático, persistente e danoso (...) é esmagadoramente perpetuado por homens (...) em mais de 90% dos casos”. Como tantas mulheres, Débora foi vítima de uma
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brutalidade implacável. Nem privilégios econômicos poderiam protegê-la das forças psicológicas e sociais que colaboraram com o comportamento do marido. “VOCÊ É TÃO ESTÚPIDA!” Débora conheceu Pedro, três anos mais velho que ela, ainda na adolescência. Ambos frequentavam os mesmos círculos sociais. Extremamente inteligente, ele foi um excelente aluno na faculdade. Era do tipo que dizia conhecer tudo e não aceitava a opinião de ninguém, o que não o ajudou a construir laços de amizade. A mãe de Débora recorda-se de Pedro como um garoto religioso e estudante promissor. Débora era extrovertida, amava os animais e tinha muitos amigos, mas não era a melhor aluna. A autoconfiança e o intelecto de Pedro a atraíam. Ele foi seu primeiro namorado, quando ela tinha 16 anos. Ele controlava o relacionamento. Tinha opinião formada sobre praticamente tudo e ditava como deveriam ser a maquiagem e os cabelos da namorada. Extremamente ciumento, não permitia sequer que ela tivesse encontros sociais sem que ele estivesse por perto, mesmo com a própria família. Com o tempo, os amigos se cansaram desse comportamento possessivo e aos poucos foram se afastando dela. Por diversas vezes, o modo de agir de Pedro fazia sua parceira se questionar se queria levar a relação adiante. Nesses momentos, porém, ele sabia ser bondoso e compassivo – e ela reconsiderava. Débora se convencia de que ele era apenas superprotetor e queria o melhor para ela. “Como poderia ser diferente? Ele me ama tanto”, costumava dizer. De fato, as ações de Pedro podem ter atraído Débora de uma maneira perversa. Desde os anos 80, especialistas reconhecem a síndrome de Estocolmo, em que ligações
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A CADA CINCO MINUTOS UMA MULHER É AGREDIDA O Brasil tem a quinta taxa de violência contra a mulher no mundo, segundo estudo feito pela Organização das Nações Unidas: são 5 mil assassinatos por ano, 13 por dia. A cada cinco minutos uma mulher é agredida – isso contando apenas os casos denunciados, já que muitas vítimas se escondem por vergonha, dor e medo do agressor, que em 70% dos casos é o próprio parceiro. Segundo dados do Balanço 180, realizado pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, ligada à Secretaria dos Direitos Humanos, entre 2015 e 2016 houve um aumento de 93,87% nos relatos de violência física no serviço de disque denúncia. O risco de que a violência relatada acarreta a morte da vítima foi constatado em 29% dos casos. Em 66% dos registros, a agressão é cometida por homens com quem a vítima tem ou teve algum vínculo afetivo: cônjuges, namorados ou amantes. O tempo de relacionamento dessas mulheres com seus agressores ultrapassa dez anos em quase 40% das situações. Diferentemente de uma concepção enraizada no imaginário coletivo, a maioria das mulheres que sofreu algum tipo de violência doméstica e a relatou pelo 180 não depende financeiramente de seu agressor. Somente 36,63% declararam ter essa relação de dependência econômica.
Ainda que causem a morte, em muitos casos as agressões chegam a provocar danos cerebrais, ossos quebrados, perda de audição e, em situações extremas, morte. E a violência psicológica pode causar prejuízos tão graves quanto a física. Aproximadamente metade das vítimas sofre de depressão; mais de 60%, de transtorno de estresse pós-traumático; e quase 20% apresentam ideação suicida, segundo uma análise estatística feita pela psicóloga Jacqueline Golding, da Universidade da Califórnia em São Francisco. Grande parte dos atritos entre casais acontece de maneira intermitente, geralmente desencadeada por divergências a respeito de temas tensos, como sexo e dinheiro. Homens e mulheres costumam gritar. Eles, porém, costumam ser mais violentos do que elas e iniciar as agressões físicas. E, por serem mais fortes, tendem a causar mais danos. Mais de 90% das vítimas de violência entre casais são do sexo feminino. A agressão nem sempre é mútua, mas pode, em alguns casos, ser um padrão persistente, crescente e intencionalmente cruel – não raro, instigada pelo sexo masculino.(Da redação) maio 2017 • mentecérebro 59
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Se você conhece uma pessoa em um relacionamento abusivo, fique atento:
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Não se acanhe ao dizer com delicadeza e discrição os sinais e os comportamentos que tem observado e chamado sua atenção
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Ofereça apoio e diga que existem instituições para ajudar mulheres nessa situação
Demonstre que se preocupa com a segurança, mas não julgue. Ouça Evite apresentar soluções prontas. Pergunte de que maneira você pode ajudar
Evite dizer coisas que sugerem que a mulher tem alguma culpa. Não pergunte, por exemplo, “por que você não o deixa?” ou “o que você faz para irritá-lo?”
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Procure saber que comportamentos do agressor deixaram a parceira assustada. Esse tipo de questionamento ajuda a vítima a ter clareza da situação
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Ofereça apoio sem fazer pressão. Deixe a mulher tomar as decisões em seu próprio ritmo. Ela deve orientar o processo e decidir quando agir, até porque conhece melhor o agressor
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Ofereça-se para se sentar ao lado dela na hora de ligar para o disque denúncia ou para acompanhá-la em um atendimento inicial
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emocionais profundas se desenvolvem a partir de duas características do relacionamento abusivo: desequilíbrio de poder e mudanças imprevisíveis entre cuidado e intenção criminosa (explícita ou não). Nessa dinâmica, a vítima se esforça cada vez mais para fazer feliz seu agressor, na esperança de ganhar um pouco de afeto, mas é acusada de causar problemas. E se sente responsável por corrigi-los. Gradualmente, esse tipo de relacionamento se torna um padrão e começa a parecer aceitável. Os laços se fortificam entre agressor e vítima. Para fortalecer os vínculos, Pedro defendia suas ações com declarações de amor, insistindo que tinha as melhores intenções. Ele não se cansava de dizer à mulher que estava em sua vida para ajudá-la a se tornar uma pessoa melhor. E frisava que, sem ele, ela não chegaria a lugar algum. A verdade é que esse tratamento tóxico não é motivado pelo amor, mas pela insegurança e necessidade de poder e controle. “Esse tipo de homem se sente seguro apenas com pessoas com baixa autoestima”, diz o psiquiatra Rahn Kennedy Bailey, da Escola Médica Meharry, especialista no tratamento de vítimas de violência intrafamiliar. As tentativas de Pedro de isolar Débora de seus amigos e de sua família foram decisivas para deixá-la mais insegura. Comentários humilhantes são outro meio comum de controlar
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QUANDO ALGUÉM PRECISA DE AUXÍLIO
a parceira e consolidar o poder. E Pedro dizia constantemente que Débora não passava de uma mulher “estúpida e sem cérebro”. (Mais tarde, quando o segundo filho nasceu, ele começou a chamá-la de “bunda gorda”.) Depois do ensino médio, o casal viveu em um pequeno apartamento, propriedade da família de Pedro. Enquanto ele estudava engenharia civil, Débora decidiu arrumar um trabalho. Depois de se formar, Pedro resolveu fazer pós-graduação. Foi aceito na Escola de Negócios Harvard, uma conquista que o ajudou a convencer a jovem de que teriam um futuro maravilhoso. Eles se casaram em junho de 1983 e se mudaram para Boston. Na época, Pedro decidiu se concentrar nos estudos. Deb, então, resolveu arrumar um emprego como secretária, que ficava a 16 quilômetros de casa. Ele comprou um carro para dirigir por menos de 5 quilômetros até a escola e deu a ela uma bicicleta para chegar ao trabalho. Com sol ou chuva, ela pedalava. E tinha de entregar seu pagamento a ele. Quando a família fazia algum questionamento, Débora respondia: “Ele está focado em fazer o melhor para a nossa família; tenho de apoiá-lo”. “Ele dava ordens a ela constantemente; suspeito de que ela obedecia para evitar sua ira”, relembra Darlene, irmã de Débora. Quando soube que a cunhada desaprovava essa situação, Pedro dizia que ela tinha ciúme da felicidade do casal e tentava prejudicar o relacionamento. Depois que ele terminou os estudos, ambos se mudaram para Nova York. Débora queria ser chef de cozinha e começou a ter aulas em uma escola de culinária local. E Pedro conseguiu seu primeiro emprego no setor bancário. Embora ele não gostasse de que a esposa estudasse, em algumas ocasiões oferecia alguma ajuda. Sua irmã estava feliz ao vê-la circular com mais liberdade, mas permanecia cautelosa em relação ao cunhado. Uma noite, quando Darlene e seu marido foram visitar o casal, viram Pedro dar um tapa no rosto da esposa por ela não compreender uma ordem. “Você é tão estúpida!”, ele gritou aborrecido. Profundamente abalada, Darlene chamou-a para outra sala, e, durante a conversa, Débora admitiu que não era a primeira vez que apanhava.
Darlene se recorda de que as agressões físicas e emocionais tinham começado a deteriorar a relação do casal. Os novos amigos na escola de culinária ajudaram Débora a perceber que aquilo não era saudável. Ela sabia também que, apesar de Pedro bancar financeiramente as aulas, ele estava no controle e não permitiria que ela de fato se tornasse chef. Além disso, tinham uma divergência fundamental: o marido não queria filhos, mas ela decidiu engravidar. Ele, então, disse à esposa que deveria conhecer outra pessoa para ter uma família. Ela deixou sua casa e foi morar com uma amiga. A separação, porém, não durou um mês. Pedro dizia a Débora que não conseguiria viver sem ela e concordou em ser pai. NINGUÉM ESTÁ A SALVO Pedro conseguiu uma promoção importante e o casal comprou uma casa espaçosa e um bom carro. Em 1998, já tinham quatro filhos. Débora estava bastante envolvida com os pequenos e sua formação escolar. Nos fins de semana, Pedro levava os mais velhos para jogar futebol. Por trás da aparência de uma vida comum, porém, o marido continuava com os abusos. Apesar de Débora ser a responsável por administrar a rotina da família, Pedro inventou maneiras inteligentes de controlar sutilmente a mulher, geralmente por meio das finanças. Ele deixava pouco dinheiro, que, muitas vezes, não era suficiente para cobrir as despesas. Não era incomum Deb bater na porta da sua vizinha, Elen, para pedir emprestado dinheiro para comprar leite ou outros produtos essenciais para os filhos. Pedro monitorava os gastos minuciosamente. Para evitar conflitos, quando comprava roupas ou brinquedos para as crianças, Débora costumava pedir à irmã que dissesse que eram seus presentes. O marido ficaria furioso se soubesse que ela havia gastado com esses itens. Débora contou a Elen que certa vez ele tirou, sem nenhum remorso, os alimentos preferidos da lancheira das crianças e insistiu que ela devolvesse porque acreditava que eram muito caros, mesmo vendo os pequenos chorando. No entanto, o patrimônio, como carros e casa, foi colocado no nome de Pedro, claro. maio 2017 • mentecérebro 61
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Uma mulher está em maior perigo de sofrer agressão grave ou ser morta nos primeiros meses depois que se separa de um companheiro violento
Como não queria gastar dinheiro para manter os gramados da casa, o engenheiro comprou um pequeno trator para a esposa. Os vizinhos assistiam Deb capinar e cortar a vasta extensão de grama toda semana. Às vezes, ela pedia ao marido de Elen para ajudá-la a mover os pesados móveis do quintal, como mesas, cadeiras e a cama elástica das crianças, que pesava 70 kg. Quando lhe perguntavam o porquê de não contratar alguém, ela respondia com um sorriso: “Eu não me importo”. Pedro controlava também o que a família deveria assistir na televisão. Segundo ele, “famílias reprováveis”, com nível socioeconômico baixo, poderiam levar a mulher e as crianças a se acostumar com hábitos inconvenientes. Alegando razões semelhantes, ele tentou se certificar de que seus filhos mantivessem contato apenas com outras crianças da mesma classe social e de nível educacional semelhante. A estabilidade financeira entre casais pode estar associada com menor violência doméstica. A pobreza, por sua vez, pode ser um fator de risco. Maior nível socioeconômico e educacional pode ajudar a proteger as mulheres de agressões intrafamiliares, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que pesquisou recentemente 19.517 mil voluntárias, de dez países, envolvidas numa relação amorosa. Em outro estudo com casais americanos, uma equipe liderada pela epidemiologista Carol B. Cunradi, do Instituto Pacífico para Pesquisa e Avaliação, constatou que, entre todos os fatores investigados, a baixa renda familiar anual foi um importante preditor de agressão praticada pelo companheiro. 62
No entanto, é preciso reconhecer que o fenômeno atinge todas as classes sociais. Já atendi aproximadamente mil vítimas desse tipo de violência, tanto por meio de organizações sem fins lucrativos, como em meu consultório particular. A maioria das minhas clientes é mulher, branca e com bom nível de escolaridade. Em minha experiência, entendo que as vítimas com mais recursos financeiros tendem a recorrer a terapeutas privados – e ficam fora das estatísticas. A verdade, porém, é que qualquer uma pode sofrer esse tipo de violência. Ninguém está a salvo. “POR QUE VOCÊ FICA?” Ninguém ouvia gritos na casa de Débora e Pedro. Ele usava belos ternos, mostrava-se ser calmo e educado. Os vizinhos o consideravam reservado, mas agradável, embora não fizesse amizades. Moradores do condomínio costumavam se reunir às sextas, nas noites de pizza da casa de Elen, e o casal nunca ia. Às vezes, Deb passava rapidamente, mas logo dizia que precisava voltar. Assim como Elen, outra vizinha, Fran, fez amizade com Débora e também começou a notar comportamentos estranhos. Se as crianças entupissem o vaso sanitário com um brinquedo ou quebrassem uma janela com a bola de beisebol, por exemplo, ela pedia desesperadamente que o marido de Fran consertasse o problema antes que Pedro chegasse do trabalho. Não foram raras as vezes em que, no final da tarde, Débora suplicava a Elen que cuidasse de seus filhos enquanto ela corria para trocar de roupa e se maquiar porque Pedro esperava encontrá-la com boa aparência quando voltasse. Ela pedia também frequentemente à vizinha que deixasse colocar o lixo em sua cesta porque o marido o revirava tentando encontrar evidências de compras para repreendê-la. Esses pedidos incomuns chamavam atenção dos vizinhos. Muitos acreditavam que ela era simplesmente estranha ou que tinha uma vida conturbada. Deb imaginava que as pessoas faziam esses comentários e temia que o assunto chegasse aos ouvidos do marido, o que poderia fazê-lo isolar ainda mais a família. Ela tinha medo também de que a verdade viesse à tona e sofressem ainda mais com o ostracismo. No entanto, aos poucos,
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Débora começou a fazer algumas revelações. Em três ou quatro ocasiões, confessou usar mangas compridas para cobrir hematomas nos braços provocados, já que Pedro costumava agarrá-la com força. No início, Elen e Fran achavam que era exagero. Elas não conseguiam imaginar o engenheiro como um homem violento. Mas os relatos de Deb se tornavam cada vez mais assustadores. Durante uma conversa, ela disse às vizinhas que ele a havia jogado no chão e batido sua cabeça repetidas vezes. Ele só parou quando viu geleia esparramada no azulejo e achou que fosse sangue. “Pedro vai acabar me matando”, disse. Elen e Fran perguntavam: “Por que você fica?”. Muitas de minhas clientes chegam a essa pergunta. Sair da relação pode parecer uma
AS IMAGENS QUE ILUSTRAM este artigo foram usadas em campanhas de conscientização sobre a violência contra a mulher
SINAIS DE ABUSO • Presença constante de hematomas. Quando é questionada, geralmente diz que se machucou acidentalmente • Parece sempre pedir permissão do parceiro para fazer qualquer coisa • Consulta frequentemente o companheiro e justifica onde está o tempo todo • Tímida, demora mais para responder a perguntas quando está na presença do parceiro
• Não raro, justifica as atitudes rudes ou desagradáveis do companheiro • Costuma questionar comportamentos saudáveis do relacionamento de outros. Por exemplo, “O seu marido não se importa de você ter um amigo homem?” ou “Você pode fazer planos sem a permissão dele?” • Conta situações de ciúme extremo do parceiro • O companheiro liga
• É proibida de manter contato social com pessoas do sexo oposto ou de ficar sozinha com as amigas
excessivamente para o seu celular • Sempre dá desculpas aos parentes e amigos para não vê-los maio 2017 • mentecérebro 63
especial escolha óbvia – se a história não é com você. Considere ter de deixar seu parceiro hoje. Para onde você iria? Agora, imagine que não tem acesso ao dinheiro da família nem renda própria. Muitas vítimas de violência intrafamiliar são tão controladas financeiramente que somente a ideia de terminar a relação – o que pode implicar mudar os filhos da escola e de casa – é suficiente para causar enorme angústia. Grande parte das mulheres se sente responsável por manter a família unida. Se isso falha, independentemente do motivo, não raro, a culpa recai sobre elas. Como resultado, muitas decidem permanecer enquanto tentam descobrir um jeito de melhorar a situação. Principalmente quando sofrem abuso emocional, mas não passam por agressões físicas. Nesses casos, muitas vítimas não encaram a situação como uma violência, mas acreditam que precisam se esforçar mais no casamento. Os filhos também podem ser usados como armas. Quando discutiam, Pedro costumava dizer que, se ela o deixasse, ele levaria as crianças, e Deb jamais os veria novamente. Ela não tinha nenhuma razão para duvidar. Pedro tinha poder e sempre cumpria suas ameaças. Além de todos esses obstáculos e pressões, ainda há uma terrível dificuldade para uma mulher na posição de Débora: se ela deixa o lar, o marido se torna mais perigoso do que nunca. Nesses casos, a resposta é a agressão. “O uso da violência indica não uma experiência em que há domínio da situação, mas de perda de controle”, escreve Kimmel. Ele destaca três antecedentes: ciúme sexual; a percepção de que a mulher não executou uma tarefa doméstica como ele gostaria em relação à limpeza ou à preparação de refeições; ou sensação de que ela desafia sua autoridade em questões financeiras. “Trata-se de indicadores da quebra de expectativa de dominação e controle masculino”, afirma Kimmel. Quando uma mulher deixa esse tipo de parceiro, ele rapidamente perde o controle sobre ela. E o risco de violência sobe. A probabilidade de uma mulher ser assassinada aumenta significativamente quando ela tenta 64
se afastar, segundo dados recentes da OMS. Por essa razão, muitas de minhas clientes têm mais medo de viver sem o marido do que com ele. EXATAMENTE 14 DIAS Elen, Fran e Darlene estavam preocupadas com o que observavam. “Depois de anos de convivência, percebemos que Débora sofria abuso e violência física e que estava com muito medo, mas não sabíamos o que fazer”, relata Fran. “Ela estava tão triste e aflita, mas insistia em dizer que temia que ele levasse seus filhos e que nunca mais os visse.” Apesar das preocupações, ninguém se atrevia a dizer as palavras “violência doméstica”. Não havia registros de agressões intrafamiliares no condomínio e os moradores tinham a impressão de viver numa espécie de redoma. Mas será que Débora sabia que era uma vítima? Mesmo depois de terem sido fisicamente agredidas, muitas mulheres não acreditam que sofrem violência doméstica. Não raro, enxergam o parceiro apenas como insensível, egoísta ou talvez um canalha. A maioria não considera ter passado por uma ofensa grave, principalmente de alguém que conhece há tanto tempo. Débora, Pedro e as crianças tinham momentos agradáveis, claro. Ela se mostrava feliz nos fins de semana de passeio e em alguns dias “mais tranquilos”. Mas escondia uma profunda tristeza e se tornava cada vez mais debilitada por enxaquecas graves e frequentes, certamente uma resposta somática para a dor emocional. Enquanto isso, as tarefas de Deb se acumulavam. Ela não cuidava somente do interior da casa e do gramado. Se um degrau do lado de fora quebrasse, por exemplo, ela deveria consertar. Nas manhãs de inverno, costumava se levantar cedo para limpar e aquecer o carro de Pedro antes que ele usasse. Ela lavava e passava a roupa dele com equipamento profissional que o marido comprou, porque ele se recusava a pagar por um serviço de limpeza a seco. Ainda mais perturbador: a mulher dizia a Darlene que tinha de agradá-lo sexualmente, mesmo que estivesse doente ou simplesmente exausta. Era mais fácil não resistir ou
SEGURANÇA PASSO A PASSO O momento de deixar um relacionamento violento costuma ser o mais perigoso para as vítimas. Mas, vivend ou não com o abusador, é conveniente ter um plano para proteger a si mesma e a sua família. Confira as orientaçõe oferecidas em reuniões de aconselhamento:
Rotas de fuga • Se não puder evitar algum atrito, procure discutir em uma sala ou área com acesso à saída, e não no banheiro, na cozinha ou lugares com objetos perigosos ou que possam ser usados como armas • Pratique como sair de casa em segurança. Tenha em mente as janelas, os elevadores e as escadas que permitem uma fuga
• Anote o número de telefone de alguns abrigos no celular • Desenvolva um plano de segurança com um advogado especialista em violência doméstica para que decidam a forma mais segura de deixar o agressor
• Mantenha uma mala pronta num lugar secreto e acessível que permita uma partida rápida • Escolha um vizinho a quem possa contar sobre a violência e peça que chame a polícia caso perceba alguma agitação em sua casa • Invente uma palavra que sirva de código entre os filhos, familiares, amigos e vizinhos para que liguem para o 190 • Planeje para onde ir caso tenha de sair de casa (mesmo que acredite que isso não será necessário)
Para terminar a relação
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• Saiba quem pode recebê-la em casa ou emprestar algum dinheiro caso precise
Depois da separação • Escolha uma pessoa do ambiente profissional para quem possa contar a situação. Não se esqueça de avisar no local de trabalho que o agressor não deve entrar. Se possível, disponibilize uma foto dele • Providencie para que uma recepcionista ou colega, por exemplo, selecione seus telefonemas no trabalho • Procure ter companhia até o carro, o ônibus ou o trem. Use rotas diferentes para ir para casa. Tente imaginar como poderá reagir se algo acontecer nesse trajeto
• Procure sempre levar os filhos ou deixá-los com pessoas de confiança
• Se você tem uma ordem de afastamento, certifique-se de que todos os encarregados das instituições que você e seus filhos frequentam tenham uma cópia
• Separe dinheiro, roupas, chaves extras e cópias de documentos importantes e deixe-os aos cuidados de amigos ou parentes
• Informe os vizinhos de que seu parceiro já não vive com você e de que devem chamar a polícia caso o vejam perto de casa
• Abra uma conta poupança em seu próprio nome para aumentar sua independência financeira
• Mude a fechadura ou a senha de bloqueio de portas e janelas o mais rapidamente possível maio 2017 • mentecérebro 65
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TIPOS DE ABUSO
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é a principal legislação brasileira para enfrentar a violência contra a mulher. A norma é reconhecida pela ONU como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento da violência de gênero. Além da Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 2015, colocou a morte de mulheres no rol de crimes hediondos e diminuiu a tolerância nesses casos. Mas o que poucos sabem é que a violência doméstica vai muito além da agressão física ou do estupro. A Lei Maria da Penha classifica os tipos de abuso contra a mulher nas seguintes categorias: violência patrimonial, violência sexual, violência física, violência moral e violência psicológica. Conheça algumas formas de agressões consideradas violência doméstica no Brasil: 1 Humilhar, xingar e diminuir a autoestima Agressões como humilhação, desvalorização moral ou deboche público em relação à mulher constam como tipos de violência emocional. 2 Tirar a liberdade de crença Um homem não pode restringir a ação, a decisão ou a crença de uma mulher. Isso também é considerado como uma forma de violência psicológica. 3 Fazer a mulher achar que está ficando louca Há um nome para isso: o gaslighting. Uma forma de abuso mental que consiste em distorcer os fatos e omitir situações para deixar a vítima em dúvida sobre a sua memória e sanidade. 4 Controlar e oprimir a mulher Aqui o que conta é o comportamento obsessivo do homem em relação à mulher, como querer controlar o que ela faz, não deixá-la sair, isolar sua família e amigos ou procurar mensagens no celular ou e-mail. 5 Expor a vida íntima Falar sobre a vida do casal para outros é considerado uma forma de violência moral, como, por exemplo, vazar fotos íntimas nas redes sociais como forma de vingança. 6 Atirar objetos, sacudir e apertar os braços Nem toda violência física é o espancamento. É
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considerado também abuso físico a tentativa de arremessar objetos, com a intenção de machucar, sacudir e segurar com força uma mulher. 7 Forçar atos sexuais desconfortáveis Não é só forçar o sexo que consta como violência sexual. Obrigar a mulher a fazer atos sexuais que causam desconforto ou repulsa, como a realização de fetiches, também é violência. 8 Impedir a mulher de prevenir a gravidez ou obrigá-la a abortar O ato de impedir uma mulher de usar métodos contraceptivos, como a pílula do dia seguinte ou o anticoncepcional, é considerado uma prática da violência sexual. Da mesma forma, obrigar a abortar também é outra forma de abuso. 9 Controlar o dinheiro ou reter documentos Se o homem tenta controlar, guardar ou tirar o dinheiro de uma mulher contra a sua vontade, assim como guardar documentos pessoais da mulher, isso é considerado uma forma de violência patrimonial. 10 Quebrar objetos da mulher Outra forma de violência ao patrimônio da mulher é causar danos de propósito a objetos dela, ou objetos de que ela goste. Fonte: Portal Brasil
seria fortemente repreendida. Ela ainda tentou a psicoterapia de casal, na esperança de obter a confirmação de que o comportamento de Pedro não era saudável. O que ela não sabia é que, em caso de violência doméstica perpetrada pelo companheiro, essa abordagem não costuma ser adequada. O agressor provavelmente irá punir a vítima se ela revelar muitos fatos sobre o casamento, porque isso causa um desequilíbrio de poder. Nessas situações, costuma ser mais adequado o atendimento individual para ambos. Em momento algum Deb procurou um serviço de proteção contra violência doméstica. Muitas mulheres de classe média alta não consideram esse tipo de ajuda porque acreditam que seja para pessoas de baixa renda que não podem pagar terapeutas particulares. Mas, na verdade, essas organizações oferecem apoio numa perspectiva multidisciplinar (aconselhamento, tratamento psicossocial, orientação jurídica, visita domiciliar, encaminhamento para serviços de saúde mental e para solicitar benefícios sociais etc.) a qualquer pessoa que tenha sofrido agressão no relacionamento, enquanto muitos profissionais privados não são especialistas na área. Débora ficou presa pelo medo. As enxaquecas pioraram. O marido continuava a atormentá-la sobre os gastos e insistia que apresentasse recibos e anotações contábeis. Darlene acredita que Pedro cumpriu a promessa que fez à esposa: “Se não me apresentar o que pedi até a hora que chegar em casa, você está morta”. Depois de 25 anos sob o controle de Pedro, Débora comentou com sua mãe que queria o divórcio. Ela não ignorava os abusos sofridos pela filha, mas não sabia de sua extensão. Deb planejava pedir uma ordem de afastamento judicial, como foi orientada quando ligou para um advogado local. Ela entrou com o pedido pelo tribunal, onde descreveu os abusos emocional, verbal, sexual, financeiro e físico que sofria. O juiz decidiu que Pedro deveria ficar temporariamente longe de casa, exceto para buscar as crianças (que teria de encontrar na calçada) durante visitas autorizadas. Ele não podia ter nenhum contato com Deb. Ela ficou na casa com os filhos, e Pedro foi obrigado a sair. Po-
Homens que cometem assassinatos aparentemente inesperados têm um perfil psicológico muito semelhante aos de condenados por crimes similares liciais o acompanharam quando o engenheiro recolheu seus pertences. Finalmente, Deb se sentia livre. Elen, Fran e Darlene dizem que nunca tinham visto a amiga tão feliz. Ela poderia ir e vir quando quisesse, sem se preocupar se uma das crianças havia quebrado algo enquanto brincava. Pedro se hospedou na casa de um parente, mas se mostrou arrependido e pediu que Débora o deixasse voltar. Também entrou em contato com Darlene, suplicando para que “colocasse algum juízo” na cabeça da esposa. Deb, porém, não reconsiderou. Ela voltou a sorrir, ter contato com os vizinhos e a controlar a própria vida por exatamente 14 dias. FATOS DESVENDADOS Como muitos abusadores, Pedro acreditava ser a vítima. E tentou obstinadamente desenterrar informações sobre Deb: “Ao que tudo indica, ele se tornava cada vez mais obcecado em investigar as atividades da mulher, mas parecia se concentrar principalmente na coleta de dados para conseguir a guarda dos filhos”, segundo uma avaliação psiquiátrica pedida pelo advogado do agressor. Com base nos comentários de um amigo e de uma irmã, entre outros, Pedro desconfiava cada vez mais que Deb mantinha casos extraconjugais. Ele dizia também que ela era dependente de drogas e que machucaria as crianças, expondo-as a comportamentos pouco saudáveis. Darlene diz que Débora se tornou dependente de analgésicos depois de sofrer por anos com enxaquecas lancinantes. Mais tarde, assim que praticou o crime, Pedro usou esse argumento para justificar para os filhos a punhalada fatal. Enquanto isso, ele tentava diminuir a gravidade das agressões contra a esposa. Admaio 2017 • mentecérebro 67
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Onde procurar ajuda Disque 180 Principal de acesso aos serviços que integram a rede nacional de enfrentamento à violência contra a mulher, sob amparo da Lei Maria da Penha, e base de dados para de políticas nessa área. http://www.spm.gov.br/ligue-180 Curitiba Mais Marias Contato somente pelo portal www.maismarias.com Florianópolis Casa da Mulher Catarina (48) 3223-8010 www.casadamulhercatarina.com.br Fortaleza Instituto Maria da Penha (85) 4102-5429 http://www.institutomariadapenha.org.br Porto Alegre Mulheres Mirabal (51) 90010-280 www.facebook.com/MulheresMirabal Recife A Casa da Mulher do Nordeste (CMN) (87) 3838-2482 www.casadamulherdonordeste.org.br Rio de Janeiro Ceam Chiquinha Gonzaga (21) 2517-2726
[email protected] São Paulo Casa Eliane de Grammont (11) 5549-9339/5549-0335
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mitiu para um profissional de um serviço de proteção à criança, por exemplo, ter agredido Deb apenas uma vez, três anos antes, de acordo com uma avaliação psiquiátrica. Em outra ocasião, disse se recordar de ter chutado Débora, dando a entender que não provocou lesões. “Ela disse que quebrei sua pélvis quando a acertei, mas jamais procurou um médico”, ele citou no documento. Débora estava em grande perigo após a separação. Não sabemos até que ponto ela calculou a melhor maneira de proteger a si mesma e a família (ou se estava ciente dos riscos que corria). Quando conseguiu a ordem de afastamento, um defensor do tribunal deveria tê-la alertado sobre a ameaça crescente e discutido algum plano de segurança. Débora deveria ter dito aos vizinhos para chamarem a polícia caso vissem Pedro pelas redondezas fora da hora de buscar e trazer as crianças. Poderia ter combinado também uma senha com os filhos que significasse “se escondam ou corram para a casa de vizinhos”. Ela deveria ter sido orientada sobre segurança e abrigos secretos. Tudo o que sabemos é que Débora mudou as fechaduras da casa. Em 8 de setembro de 2007, o assassino pegou as crianças e as deixou em casa como de costume. Um conhecido se lembra de ter visto o carro de Pedro retornar mais tarde naquele dia, uma violação da ordem de afastamento que poderia mandá-lo para a prisão. Mas o rapaz, que não foi orientado sobre as disposições da lei, não considerou a possibilidade de chamar a polícia. Os vizinhos ficaram em estado de choque ao saber do assassinato. Muitas vezes, quando alguém percebido como “normal” comete um crime violento, a comunidade conclui que a pessoa “enlouqueceu”. No entanto, assim como a história de Pedro revela, a verdade é bem mais complexa. Em 2009, os criminologistas Russell P. Dobash e Rebecca E., da Universidade de Manchester, e a falecida colega Kate Cavanagh, da Universidade de Stirling, na Inglaterra, publicaram um artigo em que afirmam que homens que cometem assassinatos aparentemente inesperados têm um perfil psicológico muito semelhante ao dos autores com condenações anteriores.
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Pessoas de ambos os grupos podem ser possessivas, ciumentas e apresentar falta de empatia ou remorso. Segundo Bailey, homens abusivos também podem ser intempestivos e ter o julgamento e o controle de impulsos extremamente prejudicados. Mesmo os atos que parecem súbitos estão relacionados a uma história pessoal. No caso de Pedro, os sinais estavam lá já havia algum tempo. PERIGOS DA DISCRIÇÃO Débora sofreu abuso por vários anos, mas a polícia nunca havia visitado sua casa, até o dia em que Pedro recebeu uma ordem de afastamento. Segundo as estatísticas, apenas cerca de metade de todos os casos de violência praticados pelo companheiro é denunciada. Dados de países europeus indicam um número ainda menor, aproximadamente 14%. Minha experiência de 15 anos como conselheira, advogada e diretora de programas nessa área sugere que vítimas da classe média e alta são especialmente relutantes para compartilhar o que acontece no lar. Em bairros nobres, não se “lava roupa suja” em público. Diferentemente das comunidades com alta criminalidade, a chegada do carro policial em lugares com moradores mais abastados chama muita atenção, trazendo os vizinhos para as calçadas para examinar a situação. No entanto, independentemente do local onde moramos, todos temos razões para evitar chamar a polícia para a pessoa com quem convivemos. Geralmente, as vítimas querem interromper o ciclo de violência, e não mandar o parceiro para a cadeia. Embora os policiais possam simplesmente apartar uma briga para acalmar a situação, a prisão pode ser uma consequência. As vítimas temem também que os serviços sociais retirem as crianças da casa caso sejam detectados sinais de maus-tratos. Infelizmente, essa preocupação não é infundada. No entanto, é preciso estar atento para não atuar de forma negligente. Policiais que entram numa casa de alto padrão podem ser manipulados e acabar acreditando que um grito de socorro foi um alarme falso ou uma reação exagerada. E assim deixar a verdadeira vítima em perigo.
Por isso, é fundamental que esses profissionais da saúde, policiais e assistentes sociais sejam treinados para detectar o abuso em suas diversas formas (emocional, verbal, sexual, financeiro e físico) e diferenciar brigas ocasionais ou comentários dolorosos de um padrão crescente de violência. É indispensável que as vítimas sejam encaminhadas para locais que oferecem aconselhamento até que estejam prontas para tomar medidas legais. Em termos ideais, alguém que passa por esse tipo de situação, mas não está em perigo imediato, pode consultar um psicólogo ou assistente social em uma organização especializada em casos de violência doméstica. O profissional pode ajudar a avaliar as circunstâncias e a decidir como agir. Caso a pessoa opte por deixar o relacionamento, um defensor legal irá acompanhá-la ao tribunal para obter uma ordem de afastamento. A organização pode ajudar a traçar um “plano de segurança” e oferecer serviços como psicoterapia, apoio à carreira, assistência infantil, ajuda jurídica e abrigamento institucional. Após mais de uma década, a família de Débora ainda luta com o horror do crime. Talvez o que tenha me comovido tanto é que Débora parecia a garota da “porta ao lado”. Ela era a mãe que acompanhava os filhos ao jogo de futebol, a mãe que esperava os filhos na saída da escola. Se pudesse voltar no tempo e conversar com ela, teria dito que o comportamento de Pedro não era sua culpa e que ela tinha o direito de ser tratada com respeito. Acima de tudo, gostaria de ter tentado ajudá-la a sair da relação com segurança.
PARA SABER MAIS Para educar crianças feministas. Chimamanda Ngozi Adichie. Companhia das Letras, 2017. Nonfatal domestic violence, 2003–2012. Jennifer L. Truman e Rachel E. Morgan. Departamento de Justiça dos Estados Unidos, Escritório de Programas de Justiça, Bureau de estatísticas da Justiça, abril de 2014. The thin line between love and wrath. Eli J. Finkel e Caitlin W. Duffy em Scientific American Mind; novembro/dezembro de 2013. A raised hand: can a new approach curb domestic homicide? Rachel Louise Snyder em New Yorker, págs. 34–41; 22 de julho de 2013. Jovens mulheres vitimadas - abuso sexual, sofrimento e resiliência. Rosimeire de Carvalho Martins. Jeruá, 2010.
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A estranha atração por crianças Casos de abuso contra meninos e meninas costumam causar comoção social. Parece difícil acreditar que gente considerada “normal” seja capaz de cometer esse tipo de ato. No entanto, pessoas comuns costumam praticar crimes mais graves do que aquelas apontadas como doentes mentais; associar diagnósticos com a violência só tende a aumentar o estigma em relação aos distúrbios psíquicos por Luca Loccoman
O AUTOR LUCA LOCCOMAN é psicólogo e psicanalista, especialista em atendimento clínico infantil do Serviço de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV), de São Paulo.
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clube esportivo anuncia que está à procura de um voluntário para supervisionar a área das piscinas infantis. Yago se inscreve e, poucos dias depois, consegue a vaga. Cuidadoso e dedicado, rapidamente ganha a confiança das crianças. Para muitos pais e funcionários, o adolescente tem um verdadeiro dom para lidar com os pequenos. O que ninguém sabe é que o rapaz de 16 anos guarda um segredo: ele gosta de admirar o corpo seminu das crianças, o que lhe provoca excitação sexual – e culpa. Temendo colocar em prática o que se passa em sua cabeça, volta para casa e se masturba. A atração por crianças apareceu cedo. O adolescente se deu conta das fantasias sexuais quando tinha 11 anos. Desde então, diz lutar contra esses impulsos. A angústia o levou a desabafar com um amigo antes de chegar a um profissional. Mas, assim que assumiu o que sente em relação aos pequenos, sofreu represálias e ameaças de responsabilização criminal – o que não é de admirar, afinal, casos de violência sexual contra crianças causam repugnância à sociedade. A antropóloga Laura Lowenkron, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que cenas de abuso infantil – reais ou fictícias – representam o inimaginável, o indizível, e podem violentar simbolicamente o espectador. Mas será que fantasia e comportamento devem ser considerados equivalentes? ESTIGMA E SISTEMA PENAL O horror de escutar um relato com esse conteúdo tende a nos fazer tomar a fantasia como algo que já aconteceu. Vejamos, entretanto, o que diz a lei sobre isso (veja quadro na página 74). As previsões que encontramos no Código Penal brasileiro e no Estatuto da 72
Criança e do Adolescente (ECA) permitem o enquadramento daqueles que venham a praticar o abuso sexual em suas mais variadas formas. Do ponto de vista da Justiça, a responsabilização jurídica incide sobre atos, não sobre fantasias. Yago conta que nunca fez sexo com nenhuma criança. Aliás, diz que não mantém relações sexuais com ninguém. No entanto, quem escuta que alguém fantasia sexualmente com uma criança, ainda que o abuso jamais se concretize, pode se sentir horrorizado. Para muitos, essa pessoa pode ser passível de punição, mesmo que pela lei o desejo não seja crime. Claro, existe a preocupação de que o adolescente passe da fantasia ao ato. O que há com esse indivíduo? Será que é pedófilo? Abusador? Pode se transformar em um? Segundo definição da quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da Associação Psiquiátrica Americana (APA), a pedofilia é um transtorno psiquiátrico que envolve impulsos sexuais intensos, recorrentes e, por vezes, incontroláveis em relação a crianças. No entanto, no senso comum, muitas vezes o termo “pedofilia” é utilizado no contexto de qualquer ato de abuso sexual infantil, ainda que as características acima não estejam presentes. Mesmo entre profissionais, é bastante comum a associação de pedófilos com abusadores. A literatura aponta, porém, que 75% dos pedófilos nunca chegam a passar da fantasia para o crime, segundo o psicólogo Antônio Serafim, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). O psiquiatra Miguel Chalub, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), esclarece que somente de 2% a 10% dos indivíduos que abusam de crianças po-
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dem ser considerados pedófilos. Uma pessoa que venha a praticar qualquer ato de natureza sexual contra os pequenos, sem dúvida, comete abuso e crime, mas não necessariamente se enquadra no diagnóstico pedofílico. A pedofilia é uma entre outras possibilidades de denominar e compreender o fenômeno da violência sexual infantojuvenil. Casos de abuso contra crianças costumam causar comoção social. Para muitos, é difícil acreditar que uma pessoa considerada “normal” seja capaz de cometer esse tipo de ato, atribuindo, assim, a culpa ao “louco”, ao “perverso”, ao “pedófilo”. Mas Serafim relembra que pessoas comuns costumam praticar crimes mais graves do que aquelas apontadas como doentes mentais. Segundo ele, associar diagnósticos com a violência tende a aumentar o estigma em relação aos distúrbios psíquicos. O fato é que a maior parte dos abusos sexuais é praticada por quem não tem nenhum diagnóstico. Isso mesmo: por pessoas comuns e que não têm compulsão por se rela-
cionar sexualmente com crianças nem fixação por elas. Um estudo recente conduzido pelo psiquiatra Alexandre Martins Valença, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra que agressores sexuais em geral são pessoas conhecidas da criança e consideradas “normais”, sendo capazes de entender a gravidade de seus crimes. O criador da psicanálise, Sigmund Freud, já sabia disso em 1905, quando publicou Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. “A experiência ensina que não se observam entre os loucos quaisquer perturbações da pulsão sexual diferentes das encontradas entre os sadios, bem como em raças e classes inteiras. Assim, com a mais insólita frequência encontra-se o abuso sexual infantil entre aqueles que cuidam de crianças, simplesmente porque a eles se oferece a melhor oportunidade para isso”, escreveu. É comum que o abusador sexual tenha algum tipo de vantagem sobre a criança ou o adolescente, com acesso facilitado, e que esteja num nível hierárquico maior, como um maio 2017 • mentecérebro 73
especial parente ou amigo íntimo da família. Uma de suas características é que nem sempre sente forte e contínuo interesse por crianças, diferentemente do pedófilo. Até hoje, me recordo de pouquíssimos casos que atendi em que a pessoa acusada de cometer abuso sexual infantil demonstrasse compulsão sexual ou fixação por crianças. O mais comum é escutar histórias em que, por exemplo, um avô – casado e com vida sexual ativa com a esposa – tenha tocado as partes íntimas da neta depois de a menina, um pouco mais crescida, se sentar em seu colo com vestido. Ou situações na escola, em que um garoto maior tenha chamado um mais novo para ir ao banheiro para comparar o tamanho do órgão genital e pedido que a criança menor o tocasse. Certa vez, uma tia que costumava cuidar do sobrinho foi flagrada pela família acariciando sexualmente a criança
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO As previsões que encontramos no Código Penal brasileiro que tipificam os crimes sexuais contra vulnerável, descritos nas categorias “estupro de vulnerável” e “corrupção de menores”, permitem o enquadramento daqueles que venham a incorrer em: • Art. 217-A – Estupro de vulnerável • Art. 218 – Mediação de menor de 14 anos para satisfazer a lascívia de outrem • Art. 218-A – Satisfação da lascívia mediante a presença de menor de 14 anos • Art 218-B – Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de criança, adolescente ou vulnerável O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também trata de crimes envolvendo o abuso sexual infantil e prevê responsabilização criminal nos casos em que há: • Art. 240 – Utilização de criança ou adolescente em cena pornográfica ou de sexo explícito • Art. 241 – Comércio de material pedófilo • Art. 241-A – Difusão de pedofilia • Art. 241-B – Posse de material pornográfico • Art. 241-C – Simulacro de pedofilia • Art. 241-D – Aliciamento de menores (O art. 241-E se trata de norma explicativa dos crimes previstos no art. 240, art. 241, art. 241-A a art. 241-D, do ECA). 74
enquanto beijava seus lábios, sem violência física. Em todos esses casos, não se observou nenhum tipo de compulsão. Nossa tendência, no entanto, é alimentar um imaginário estereotipado a respeito da figura do abusador. Pessoas completamente diferentes – de qualquer classe social, etnia, profissão – são capazes de cometer esses atos. CIVILIZAR, REPRIMIR, SUPRIMIR Muito além da questão moral ou criminal, o abuso sexual é contra a cultura. Há rompimento da aliança social. No livro Pacto edípico e pacto social (Rocco, 1987), o psicanalista brasileiro Hélio Pellegrino, falecido em 1988, afirma que, na idade adulta, se acrescenta ao pacto com a “lei da cultura”, centrado em torno da renúncia aos impulsos sexuais, acrescentar-se o pacto social. “Civilizar é, portanto – e por um lado –, reprimir ou suprimir. A lei não existe para humilhar e degradar o desejo, mas para estruturá-lo, integrando-o no circuito do intercâmbio cultural”, destaca. Bem, se a questão tem a ver com a cultura, qual seria então o impedimento da interação sexual com crianças pequenas nos casos em que o círculo social tolera? Não são raras as vezes em que, depois de ministrar alguma palestra sobre o tema, alguém me procure em privado para fazer essa pergunta. Para nos ajudar nessa reflexão, vejamos o que acontece, por exemplo, em algumas regiões do Afeganistão. O documentário The dancing boys of Afghanistan (Os meninos dançarinos do Afeganistão, em tradução livre), de 2010, dirigido pelo jornalista afegão Najibullah Quraishi, aborda a centenária tradição bacha bazi (meninos para brincar), em que homens ricos e influentes sequestram ou compram garotos pobres, entre 10 e 18 anos, para serem usados como escravos sexuais. Nessas situações, meninos maquiados, vestidos com roupas femininas, devem se apresentar dançando e, assim, satisfazer sexualmente homens mais velhos. Símbolo de autoridade e influência, a prática foi proibida pelos talibãs quando estiveram no poder no Afeganistão, entre 1996 e 2001, mas ressurgiu nos últimos anos e, surpreendentemente, é amplamente aceita em um país que condena a homossexualidade,
sendo comum em zonas rurais do sul e do leste do país, assim como nas regiões tayikas do norte, segundo informações divulgadas pela agência de notícias francesa France-Presse (AFP). Um relatório de 2014 da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC, na sigla em inglês, que pode ser consultado em http://www.aihrc.org.af/ home/research-reports/3324) denuncia estupros constantes desses garotos. O documento diz ainda que eles “apresentam sinais de estresse e de perda da autoestima, desesperança e pessimismo”. O bacha bazi desperta temor entre as outras crianças, mas também sentimentos de vingança e hostilidade. O que sustenta a prática, segundo a AIHRC, é a falta de um estado de direito e de acesso à Justiça, assim como a corrupção, o analfabetismo, a pobreza, a insegurança e a presença de grupos armados.
E, mais uma vez, recorremos também ao criador da psicanálise. Freud revolucionou e ampliou a compreensão sobre a sexualidade, trazendo a ideia de que ela está presente desde a infância e que, nesse momento, está ligada à sobrevivência e ao prazer que a criança encontra no próprio corpo, por exemplo, quando suga a mamadeira. No entanto, jamais defendeu a vivência da sexualidade infantil como na vida adulta. Isso seria uma violência e poderia provocar traumas, pois o psiquismo da criança não é capaz de traduzir as sensações provocadas por esse tipo de experiência.
THE DANCING BOYS OF AFGHANISTAN (2010): documentário trata do sequestro de garotos para serem vendidos como escravos sexuais
DA PRODUÇÃO AO CONSUMO Resumir o complexo fenômeno da violência sexual de crianças à figura do pedófilo nos impede de olhar com mais atenção para muitos fatores envolvidos na violência sexual infantil, como as desigualdades de poder, que, segundo Lowenkron, é problemática central dessa maio 2017 • mentecérebro 75
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Uma pessoa que pratique qualquer ato de natureza sexual contra os pequenos, sem dúvida, comete abuso e crime, mas não necessariamente se enquadra no diagnóstico de pedofilia, que, aliás, traduz apenas uma entre várias possibilidades de violência sexual infantojuvenil
discussão. “O estigma em relação à pedofilia tende a nos levar a focar na ‘ameaça’ das perversões, como se a causa do abuso sexual infantil e da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes pudesse ser atribuída predominantemente a uma tara ou perversão sexual”, afirma a pesquisadora. De fato, a pornografia infantil, por exemplo, envolve uma relação de mercantilização dentro de uma estrutura capitalista muito bem organizada, que não se resume a um diagnóstico ou a uma estrutura psíquica. Nesses casos, o ciclo começa na produção, passa pela comercialização e a divulgação e se encerra no consumo das imagens. A antropóloga detalha o circuito da exploração sexual. No primeiro estágio, crianças e adolescentes participam de alguma cena de sexo explícito ou pornográfica. A segunda etapa da cadeia é a comercialização do material produzido, o que torna a pornografia infantil um negócio lucrativo e retroalimenta a produção de fotos e vídeos infantis. O terceiro passo é a divulgação. A aquisição, a posse e o armazenamento dessas imagens fecham assim o ciclo que inclui todas as etapas do fenômeno da pornografia infantil. É importante saber que qualquer envolvimento, por menor que seja, em qualquer parte desse circuito é crime. Nesse contexto, o voyeurismo é absorvido como demanda de consumo e os pequenos, tratados como mercadoria erótica. Esse processo mais amplo de abuso e exploração sexual comercial alimenta os anseios de lucro da máfia de aliciadores e vendedores de 76
crianças, bem como produtores e negociantes de pornografia infantil. A maioria dos pedófilos não se relaciona sexualmente com menores de idade de forma direta. No livro Child pornography: an internet crime (Psychology Press, 2003, não publicado no Brasil), os pesquisadores de comunidades e redes de pedofilia Max Taylor e Ethel Quayle observam que quem consome pornografia infantil costuma colecionar, catalogar e classificar imagens, interagindo sexualmente com elas por meio da masturbação e da fantasia. Muitos passam horas na rede em busca de pornografia infantil ou em salas de bate-papo na internet, onde se sentem à vontade para dar vazão a suas fantasias, ambiente que, segundo Lowenkron, é um lugar privilegiado de falseamento das identidades e outras fabulações. Aqui é preciso esclarecer que, ainda que não pratiquem sexo com menores de idade, esses indivíduos participam do abuso contra crianças, pois consomem pornografia infantil. Nesse ponto, não faz diferença se a pessoa é pedófila, abusadora, doente mental ou apenas curiosa – qualquer envolvimento com cenas de sexo com menores de idade é crime, pois a integridade física e psicológica da criança está em primeiro lugar e quem atentar contra isso deverá sofrer as sanções penais cabíveis. Já em relação ao tratamento ou a qualquer tipo de intervenção, a distinção é imprescindível – é o que permite diferenciar cada situação e elaborar estratégias para lidar com o problema. A FANTASIA E O ATO Pornografia, prostituição e tráfico e venda com propósitos sexuais com crianças são formas de exploração sexual infantil. Sem dúvida, os casos envolvendo a mercantilização do corpo são os mais complexos e hediondos de que me recordo. Ainda assim, algo pode ser feito. Eu me lembro de uma adolescente que, com apenas 16 anos, já estava numa rede de exploração havia uma década. Aos 6 anos, começou a fazer favores sexuais para estranhos em troca de comida para a mãe e os irmãos, a pedido da própria família, que vivia na miséria. Foi assim que aprendeu a ganhar balas, bolachas, brinquedos. Com apenas 10 anos, negociava em dinheiro. O lucro ia para o aliciador e o pouco
que sobrava acabava nas mãos do traficante, em troca de alguma droga. Dependente de cocaína e outros entorpecentes, a garota passou boa parte da vida nessa rede de exploração, em meio à degradação, numa área pobre no limite entre São Paulo e Guarulhos – uma realidade bem conhecida pela mídia e pela população local. Seus clientes? Caminhoneiros de todo o Brasil que continuam, ainda hoje, parando por lá antes de seguir viagem. Um pequeno detalhe sempre chamou atenção da garota: a aliança dourada no quarto dedo da mão esquerda dos clientes. Depois de muito esforço multiprofissional, uma boa articulação com o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), infindáveis discussões de caso e perseverança dos profissionais envolvidos e da adolescente, ela
saiu da rede de exploração sexual. Não sem intimidações e ameaças, inclusive de morte a ela e sua família. De um ponto de vista mais subjetivo, ainda há muito trabalho pela frente com a adolescente, mas ela começa a vislumbrar outras possibilidades de experiência, de trocas afetivas e de relações. Muitos que cometem atrocidades, como nos exemplos mencionados aqui, recebem o diagnóstico de perversão (ou, como prega o senso comum, de psicopatia), como se o fenômeno em si, o ato moralmente condenável, correspondesse a determinada estrutura psíquica. É muito comum, mesmo entre profissionais, a associação entre perversão e crueldade. Entretanto, para quem trabalha com esses casos, faz toda a diferença distinguir entre o sentido comum do termo “perversão” (que
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A VIOLAÇÃO DA ALIANÇA Vivemos em uma sociedade em que os relatos de violação sexual são muito frequentes. “Abusa quem pensa que pode forçar um beijo. Legitima a violência sexual a pessoa que apresenta um programa de televisão e chama uma fã de ‘arrombada’ ou que convida um ator para relatar um caso de estupro como se fosse piada. As estatísticas de abuso infantil são graves e, muitas vezes, não consideramos aqueles que estão próximos como possíveis agressores. Muitos acham aceitável pagar para ter sexo com outro ser humano ou consumir filmes sem se importar se há crianças e adolescentes envolvidos”, denuncia a escritora feminista Maria Gabriela Saldanha, apresentadora do programa online Elas por Elas, veiculado pela Web Radio Petroleira. Ela destaca dados nacionais escabrosos: “Qual é a solução para um país que hospeda quase 80% dos sites do mundo que exibem sexo com crianças, sendo que 12% do total deles expõem abusos contra bebês com menos de 6 meses? Qual é a solução para um país que cria mil novos sites desse tipo por mês? Qual é a solução para um país onde aproximadamente 70% dos abusos notificados ocorrem com menores, sendo que 50,7% envolvem crianças de menos de 13 anos? Qual é a solução para um país onde a média de idade dos relatos de primeiro assédio é de 10 anos?”, questiona. maio 2017 • mentecérebro 77
ONDE PROCURAR AJUDA? Encontrar serviços públicos que atendam pessoas que reconhecem sentir atração sexual por crianças nem sempre é fácil, mas existem algumas opções,como o Ambulatório de Transtornos da Sexualidade (ABSex), da Faculdade de Medicina da Fundação do ABC (FMABC), em Santo André. As consultas podem ser agendadas no próprio ambulatório de segunda a sexta-feira, das 8h às 16h, na Avenida Príncipe de Gales, 821, em Santo André. Há também um programa terapêutico para esses casos no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia (Nufor) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP). As consultas pelo telefone (11) 2661-7929. O Centro de Estudos Relativos ao Abuso Sexual (Cearas), do Instituto Oscar Freire, em São Paulo, atende famílias incestuosas e indica especialistas, telefone (11) 3061-8429. Em Belo Horizonte, o Centro de Estudos e Atendimento de Abuso Sexual, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), oferece tratamento. Informações pelo telefone (31) 3409-9458. 78
está associado com depravação, imoralidade, desumanidade, maldade) e o da perversão como diagnóstico. É o que permite orientar o tipo de intervenção. Mas isso não é nada fácil. O jeito de pensar a saúde mental é, em grande parte, orientado pela observação e comparação dos comportamentos. Assim, uma pessoa com determinadas condutas pode ser enquadrada em tal categoria. Desse ponto de vista, é natural atribuir o diagnóstico de perversão a alguém que tenha praticado um ato que julgamos perverso. A psicanálise, entretanto, tem uma proposta diagnóstica que considera os fenômenos apenas como ponto de partida, mas não como definidores da estrutura psíquica. Diagnosticar um sujeito perverso, assim, requer escutar sutilezas. Em Kant com Sade (1963), o psicanalista francês Jacques Lacan nos ensina que não basta detectar um cenário de gozo perverso, mas é preciso identificar a posição que o sujeito ocupa diante do outro na fantasia e como isso aparece em relação ao seu desejo inconsciente. Afinal, como reconhece Freud (1905), a perversão sexual é encontrada em todos. “A disposição às perversões é a disposição originária e universal da pulsão sexual dos seres humanos”, escreve. No clássico artigo O estranho, de 1919, o criador da psicanálise faz também uma importante distinção entre construções imaginárias e ato, esclarecendo que a fantasia é capaz de realizar, sem realizar, o desejo. E completa que, na fantasia, o sujeito se encontra diante de algo que diz respeito a si, mas que vê como estrangeiro, que gera prazer, mas também é repugnante. Os mais diferentes e insólitos tipos de satisfação estão presentes em todos nós, de forma atenuada, disfarçada ou restrita, segundo o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia, da Universidade de São Paulo (IP-USP). “Não é pela ausência ou presença dessas tendências que podemos definir a perversão. Os perversos não são extra-humanos, mas demasiadamente humanos. O problema para definir a perversão, nesse sentido, é que temos de resolver o chamado paradoxo ético do ato. Não basta saber se ele é conforme ou contrário à lei, mas saber qual tipo de experiência ele produz em quem o
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realiza e o tipo de posição que ele confere ao outro”, esclarece. Aliás, há vários tipos de fantasias perversas comuns, como exibicionismo, voyeurismo, sadismo e masoquismo – mas, novamente, não é a categoria da pulsão que determina a perversão como estrutura psíquica. Dunker não nos deixa esquecer as montagens perversas da vida cotidiana. “Nessa medida, há tanta perversão nos excessos alimentares – no bulímico e no anoréxico – quanto no discurso de vigilância sanitária sobre nossa alimentação, para não falar do exibicionismo de uma infância sexualizada pela moda, o voyeurismo de nossos reality shows, a estética pornográfica de nossas produções culturais, o sadismo de nossos programas de violência ao vivo, o masoquismo do trabalho e da ‘vida corporativa’, o descompromisso ‘líquido’ de nossa vida amorosa, a cultura da drogadição (legal e ilegal) e tantos fenômenos”, destaca. Segundo o psicanalista, ao contrário da perversão clássica, em nossos tempos a perversão é flexível, silenciosa e pragmática. E as articulações que a constituem, como a transgressão, a exageração e a dissociação, se tornaram aspectos decisivos do nosso laço social cotidiano. TERRENO NEBULOSO Muitos que souberam do caso de Yago rapidamente propuseram que a melhor resposta ao relato de um adolescente que confessa desejar crianças sexualmente seria tratar a situação no âmbito judicial e o mais indicado seria a internação do rapaz na Fundação Casa (antiga Febem), com privação total de liberdade. Embora precipitada, a ideia de encarceramento parece justificável, pois abusadores existem e o adolescente diz sentir atração sexual por crianças. Em geral, nosso primeiro impulso é procurar resguardar os pequenos de um crime tão abominável. Desde 2014, o Ministério da Saúde (MS) prevê aos serviços públicos de saúde em todo o território nacional, por meio da portaria GM/MS nº 1.271, a obrigatoriedade de notificação imediata (24 horas) de casos de violência sexual à Secretaria Municipal de Saúde. A psicóloga judiciária Elizabeth
Constantino, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, entretanto, chama atenção para o excesso de judicialização dos casos. Ela argumenta que a expectativa de que as instituições legais possam trazer a solução para o problema da violência sexual contra crianças tende a nos fazer levar essas situações principalmente à Justiça, embora, não raro, seria indicado tratar o problema também em outros âmbitos, no campo social, político e psíquico. Precisamos tomar muito cuidado para não colaborar com injustiças tão graves quanto as que pretendemos combater. No entanto, é um grande desafio atender esses casos por causa da repulsa que pode causar no profissional. Assim, muitas vezes, agimos sem procurar fazer um exercício de escuta que nos permita avaliar as particularidades de cada situação e tomar melhores decisões. Mas, sem maior neutralidade, que impacto nossas ações podem causar? O filme A caça (2012), de Thomas Vinterberg, retrata de forma admirável a complexidade que se esconde atrás da intensa perseguição que costuma ocorrer nessas situações. O longa conta a história de uma criança que, depois de entregar uma cartinha de amor ao professor e se sentir desprezada, insinua à diretora da escola que sofreu abuso sexual. Com uma averiguação questionável, o relato se torna evidência do crime e, a partir daí, os mecanismos sociais para punir o “pedófilo” são acionados. A acusação transforma o professor num monstro aos olhos de quem está ao redor, e isso traz consequências desastrosas. A reação da diretora e da comunidade, porém, é natural. O terreno é nebuloso. Assim como Yago, o personagem do filme acusado de pedofilia apresenta certa ambiguidade e tem uma atividade que favorece o contato com crianças. O que realmente teria ocorrido? É muito difícil fazer uma avaliação objetiva. Até mesmo quem se propõe a escutar esses casos também pode ser visto com maus olhos. Ainda assim, com todas as dificuldades que se apresentam, não podemos perder de vista que a complexidade humana exige avaliações profundas, cuidadosas e com muita seriedade, pois a linha de demarcação entre normalidade e patologia é frágil e incerta.
PARA SABER MAIS As atitudes machistas cotidianas preparam o estupro. Maria Gabriela Saldanha. Festival Marginal, 2016. O contágio da brutalidade. Erane Paladino, em Mente e Cérebro nº 247, agosto de 2013. A cruzada antipedofilia e a criminalização das fantasias sexuais. L. Lowenkron, em Revista Lationamericana, nº 15, págs. 37-61, dezembro de 2013. A perversão nossa de cada dia. Christian Ingo Lenz Dunker, em Cult, n º 144, março de 2010. The dancing boys of Afghanistan (2010), documentário dirigido por Najibullah Quraishi. Child pornography: an internet crime. Max Taylor e Ethel Quayle. Psychology Press, 2003. Pacto edípico e pacto social. Hélio Pellegrino. Rocco, 1987.
maio 2017 • mentecérebro 79
livros | lançamentos PSICANÁLISE
Conceitos de Bion Breve introdução a algumas ideias de Bion. Isaias Kirschbaum. Blucher, 2017. 495 págs. R$ 95,00
DROGAS E SOCIEDADE
FÓRUM LACANIANO
LONGEVIDADE
ARTE E FREUD
Política que fracassou
Teoria e clínica
Idosos em instituições
Inconsciente e cultura
Uma criança que trabalha para o narcotráfico na favela. Uma mulher que transporta cocaína pelo rio Solimões. Um traficante que sonhava em ser dançarino. Drogas: as histórias que não te contaram traz narrativas reais e humanas sobre pessoas que vivem a realidade do tráfico. As histórias reunidas por Ilona Szabó, especialista em políticas de drogas e segurança pública, com colaboração da jornalista Isabel Clemente, evidenciam o fracasso da política de drogas no Brasil.
Rede clínica compila textos de autores da Rede Clínica do Fórum do Campo Lacaniano, que forma psicanalistas há oito anos por meio de seminários, leituras e prática clínica. Organizado por Ana Paula Gianesi, Beatriz Martins de Almeida e Rita Vogelaar, o livro faz parte de um projeto mais amplo de transmissão, para a sociedade, das discussões do fórum, que tem como proposta a abertura à constante reformulação teórica e clínica da psicanálise.
“Aqui não posso ficar. Se ficar, vou morrer”, diz dona Rosinha, que ilustra a capa de O sujeito no tempo da velhice, obra que chama atenção para a necessidade da presença de um psicólogo ou psicanalista nas instituições onde vivem idosos – realidade que se tornará cada vez mais comum nas próximas décadas, diante das mudanças nas estruturas familiares. O livro é resultado do trabalho do psicólogo e mestre em psicanálise João Bosco Carneiro em uma instituição de longa permanência para idosos (ILPIs).
O contexto em que os processos inconscientes estão inseridos é tão importante quanto suas manifestações. Em Sublimação e Unheimliche, Alessandra Martins Parente, doutora em psicologia social, analisa as artes plásticas, a literatura e a filosofia do período em que viveu Sigmund Freud (1856-1939) para tratar do conceito de sublimação. Introduzido pelo criador da psicanálise, refere-se, muito basicamente, ao direcionamento da libido para a prática de realizações culturais ou sociais.
Drogas: as histórias que não te contaram. Ilona Szabó, colaboração de Isabel Clemente. Zahar, 2017. 200 págs. R$ 39,90 80
Rede Clínica vol. 2. Organizadoras: Ana Paula Gianesi, Beatriz Almeida, Rita Vogelaar. Escuta, 2017. 356 págs. R$ 79,00
O sujeito no tempo da velhice. João Bosco Carneiro. Zagodoni, 2017. 156 págs. R$ 42,00
Sublimação e Unheimliche (Coleção Clínica Psicanalítica). Alessandra Martins Parente. Person, 2017. 752 págs. R$ 125,00
imagens: divulgação
Wilfred Bion é um dos principais nomes da psicanálise. No entanto, sua obra é considerada complexa e de difícil acesso por muitos. Breve introdução a algumas ideias de Bion apresenta os conceitos básicos do autor inglês com clareza não apenas para estudiosos da psicanálise, mas para qualquer leitor interessado em entender o tratamento psicanalítico como um recurso para adquirir maior autonomia e conhecimento de si mesmo. O psiquiatra e psicanalista Isaias Kirschbaum parte de conversas com seus alunos e pacientes para explorar perspectivas de Bion que acredita serem interessantes para o público geral.
MUNDO CONTEMPORÂNEO
Velocidade e angústia “Quando não somos nós a projetar nosso futuro, outros projetam por nós, agravando a sensação de impotência”, escreve Domenico De Masi, sociólogo italiano conhecido por propor o conceito de ócio criativo, sobre a importância do tempo livre. Seu novo livro, Alfabeto da sociedade desorientada, aborda a angústia gerada pela velocidade e instabilidade do mundo contemporâneo. O autor relaciona, por exemplo, crises econômicas e aumento de casos de depressão, para chamar atenção para a necessidade de pensar sobre quais são os valores dessa nova realidade.
Um bebê na barriga “Como o bebê foi parar lá dentro?”, “Por onde ele entrou?”,“E como vai sair?”,“Eu também tenho bebês na minha barriga?” Esse tipo de questão costuma passar pela cabeça de uma criança quando descobre que a mãe – ou alguma outra mulher – está grávida. Em geral, junto com as perguntas vêm as hipóteses para tentar respondê-las. Embora os pequenos externem suas elaborações, o “mistério” da concepção e do nascimento costuma intrigá-los e, para os pais, às vezes não é simples responder às indagações das crianças com naturalidade. Dois livros podem ajudar os adultos a lidar com a curiosidade infantil de maneira leve e saudável. Em Como ele foi parar aí dentro, do psicólogo brasileiro Ilan Brenman, com ilustrações de Vanessa Prezolo, Rafaela está intrigada com o fato de a vaca Geraldina estar prestes a ter um bezerrinho. Confusos com as perguntas da menina, os adultos passam a inventar histórias fantasiosas que não aplacam a curiosidade da garotinha. Intrigada, ela também quer saber de onde vêm filhotes de girafa, baleia... e o bebê que está na barriga de Olga, uma amiga dos pais. E é a mais simples, verdadeira e objetiva das explicações que satisfaz Rafaela. Outro livro, Um bebê vem aí, escrito pelos ingleses John Burningham e Helen Oxenbury, traduzido pela carioca Marília Garcia, apresenta as
Alfabeto da sociedade desorientada. Domenico De Masi. Objetiva, 2017. 600 págs. R$ 69,90
cogitações de um garotinho a respeito do futuro do irmão caçula desde que a mãe lhe conta que está grávida. Enquanto ela cuida do primogênito, passeia com ele, o leva às compras, ao parque e às compras, a conversa se prolonga. A barriga cresce e há espaço para ciúme, irritação, desdém e até um desabafo: “Mamãe, você não pode pedir pro bebê ir embora? A gente não precisa do bebê, não é mesmo?” Mas como a chegada do novo membro da família parece inevitável, seguem as divagações – ele será padeiro, artista, capitão super-herói, ou jardineiro? Em momento nenhum da história aparece a figura paterna. Ao final, pouco antes de conhecer o irmãozinho, é com o avô que o garoto entra na maternidade e comenta: “Vovô, o bebê vai ser o nosso bebê. E a gente vai amar muito o bebê, não vai?”. (Gláucia Leal, editora-chefe)
Como ele foi parar aí dentro?
Ilan Brenman. Aletria, 2015. págs. 32. R$ 37,90
Um bebê vem aí.
John Burningham e Helen Oxenbury. Paz e Terra, 2011. págs. 48. R$ 37,90
maio 2017 • mentecérebro 81
limiar neurociências
Memória, sono, sonhos e pesadelos
O
s genes ativados por atividade neuronal foram descobertos nos anos 1980. Estes genes respondem tão rapidamente a um estímulo que isso lhes valeu o nome de genes imediatos. Vários desses genes medeiam mudanças morfológicas nos dendritos e axônios neuronais. Tais mudanças no formato, tamanho e quantidade de sinapses são capazes de criar memórias duradouras. Por essa razão, em meados dos anos 1990 foram iniciados experimentos para verificar se os efeitos positivos do sono sobre a memória seriam causados pela ativação de genes imediatos durante o sono. Os primeiros experimentos couberam aos neurocientistas Giulio Tononi e Chiara Cirelli, com resultados opostos à hipótese: os genes imediatos pareciam ser desativados pelo sono. Isso levou os pesquisadores a propor que o fortalecimento sináptico ocorre exclusivamente durante a vigília, sendo função do sono enfraquecê-la, o que impediria a saturação e propiciaria a ocorrência de mais aprendizado na vigília seguinte. Essa teoria foi chamada de hipótese da homeostase sináptica do sono, pois o excesso de fortalecimento sináptico durante a vigília seria equilibrado pelo enfraquecimento sináptico generalizado durante o sono. Mas isso não é tudo. Em 1995 iniciei experimentos semelhantes aos de Tononi e Cirelli, mas com duas diferenças importantes. Em primeiro 82
lugar, implantei eletrodos nos cérebros dos animais para separar escrupulosamente as duas fases principais do sono, i.e., o sono de ondas lentas e o sono REM. Em segundo lugar, comparei animais expostos a estímulos novos com animais não expostos. Os resultados mostraram que o sono de ondas lentas efetivamente desativa genes imediatos, independentemente da experiência prévia do animal. O sono REM, por outro lado, tem efeitos distintos dependendo da experiência prévia do animal. Em animais não expostos o sono REM desativa genes imediatos, mas em animais expostos o sono REM ativa os mesmos genes. Esses resultados foram publicados em 1999 e desde então vários laboratórios diferentes observaram efeitos compatíveis com a noção de que o sono REM ativa genes imediatos e fortalece sinapses em alguns neurônios mas não em outros, criando memórias persistentes através de um processo que chamei de entalhamento sináptico. Por quase duas décadas as duas teorias se confrontaram, com uma longa série de publicações de cada lado, mas atitudes opostas quanto ao campo adversário. Enquanto a teoria de entalhamento sináptico se apoiou nos estudos de Tononi e Cirelli para atribuir ao sono de ondas lentas o papel de enfraquecimento sináptico, a teoria da homeostase sináptica ignorou as evidências contrárias, não
SIDARTA RIBEIRO
deixando lugar para o sono REM nem para o aprendizado durante o sono. Foi somente em 2014 que Tononi e Cirelli citaram pela primeira vez as publicações inconsistentes com sua teoria, mas mesmo assim sob o argumento de que a ativação de genes imediatos é uma evidência indireta... No início de 2017, o neurocientista Wenbiao Gan e sua equipe na Universidade de Nova York publicaram na revista Nature Neuroscience os resultados de experimentos inovadores, em que utilizaram microscopia avançada para medir sinapses específicas no cérebro de camundongos. Os resultados mostraram evidências diretas do fortalecimento de sinapses pelo sono REM após exposição a novo aprendizado. Entrei em contato com o Dr. Gan para parabenizá-lo pela pesquisa e estamos planejando uma colaboração. Numa das conversas que tivemos, Gan disse que pretende regressar à China se Trump realmente vier a cortar o orçamento da pesquisa. Aqui o governo reduziu o orçamento da ciência e tecnologia em quase 50% e não se vê luz no fim do túnel. Pesquisar no Brasil é um sonho, mas sofrer ataque tão brutal à ciência tem sido um pesadelo. SIDARTA RIBEIRO, neurobiólogo, diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor titular da UFRN.
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Neurocientista da Universidade de Nova York deve voltar à China se Estados Unidos cortarem os investimentos em pesquisas; no Brasil, redução foi de 50%