Alberto Caeiro Poemas analisados
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Alberto Caeiro – Heterónimo “Poema
I do Guardador de Rebanhos ”
Caeiro surge-nos neste poema como o poeta da objectividade, do imediatismo das sensações: «Toda a paz
da natureza sem gente / Vem sentar-se ao meu lado ». O poeta deseja que os seus versos levem os leitores a imaginá-lo como uma coisa natural, amo uma árvore, por exemplo, à sombra da qual se sentavam, quando crianças, cansados de brincar... O poeta apresenta-se como pastor, o poeta da natureza, de olhos ingénuos sempre abertos para as coisas: «Minha alma é como um pastor, / ...E anda pela mão das estações / A seguir e a olhar. .. / E desejo às vezes ser um cordeirinho, ou ser o rebanho lodo... ». Finalmente Caeiro apresenta-se como anti-metafísíco, negando o valor ao pensamento: Os meus versos são contentes. Só tenho pena de saber que são contentes, Porque, se o não soubesse Em vez de serem contentes e tristes Seriam alegres e contentes
O pensamento tem mesmo um valor negativo: se não pensasse os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas «alegres e contentes». «Pensar incomoda como andar à chuva .» Foi este incómodo de pensar que Fernando Pessoa nunca conseguiu evitar. Já vimos como a «dor de pensar» sempre o torturou, inventando muitas saídas para o drama do seu «eu» dividido entre o real e o imaginário, entre o ser e o não ser. Todas as tentativas foram frustradas. A tentativa mais radical de fugir à «dor de pensar» foi esta de transferir a sua alma para um poeta bucólico que olha e sente o mundo com a simplicidade com que uma criança olha uma flor. Mas nem assim o poeta consegue libertar-se da inteligência que vem sempre toldar a simples alegria de ver: « Os meus pensamentos são contentes. / Só tenho pena de saber que são contentes», porque, assim, ficam «contentes e tristes ». A plena felicidade exige não só o olhar simples de uma criança, mas também a sua inconsciência.
Não é apenas nisto que o sistema de Caeiro claudica. Como se pode ver, por exemplo, no poemaV de " O Guardador de Rebanhos », o poeta não é capaz de dispensar nem o pensamento, nem o raciocínio, nem a inteligência, para nos convencer de que para ele há apenas sensações (« Eu não tenho filosofia: tenho sentidos »). O que poderemos concluir é que o poeta, ao negar a meta física, está a construir uma anti-metafísica. De harmonia com um poema escrito por um poeta que se diz «guardador de rebanhos », teoricamente com a cultura correspondente à de quem tenha feito apenas a 4.ª classe do ensino primário, a linguagem é simples, nunca ultrapassando os limite da norma. Reflectem a ingenuidade de um camponês certas expressões como: «Minha alma é como um pastor ... / E anda pela mão das estações / A seguir e a olhar »; «Com um ruído de chocalhos / Os meus pensamentos são contentes »; «E se desejo às vezes /... ser cordeirinho / Ou ser o rebanho todo ... »: «quando uma nuvem passa a mão por cima da luz»; « ... corre um silêncio pela erva fora » (note o pleonasmo); «Escrevo os versos num papelque é o meu pensamento »; «... sou ... a árvore antiga ...». O interessante (ou o contraditório) é que algumas das expressões citadas, não obstante reflectirem a ingenuidade campestre, contêm comparações, personificações e metáforas. Começamos então a ver sinais de contradição no discurso deste poeta que se pretende de linguagem nítida como o seu «olhar nítido como um girassol ». Mas o cerne da contradição está em que, o poeta se visualiza a si mesmo em termos metafóricos: um pastor, de cajado na mão, guardando o seu rebanho. Caeiro é então, como os outros heterónimos, um poeta metáfora. Na realidade, a metáfora não está ausente deste poema. Assim: o poeta escreve versos num « papel » que é o seu «pensam ento»; olhando para o seu «rebanho » vê os seus «pensamentos» e olhando para os seus «pensamentos » vê o seu «rebanho », donde se conclui que o rebanho é os seus pensamentos (as suas ideias) e vice-versa. O quiasma (cruzamento simétrico de rebanho-pensamento, pensamento-rebanho) acentua a expressividade da metáfora.
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Alberto Caeiro – Heterónimo “Poema
I do Guardador de Rebanhos ”
Examinemos algumas comparações, que, embora de grande simplicidade e reflectindo uma certa cor local, campestre, obedecendo a uma preocupação de objectividade, não deixam de conferir uma expressiva visualidade e impressionismo literário ao texto: «... é como se os guardasse», «minha alma é como um pastor », «triste como um pôr-do- sol », «a noite entrada / Como uma borboleta pela janela », «Pensar incomoda como andar à chuva », «sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz ... ». Apesar de Caeiro não querer fazer literatura (ser poeta não é uma ambição minha), a verdade é que há literatura, há expressividade literária neste texto. E isto está em contradição com o que o poeta afirma noutro poema: «Penso e escrevo como as flores têm cor / E a minha poesia é natural como o levantar-se o vento... ». O tempo verbal dominante é o presente, a assinalar as sensações ocasionais do poeta, é o presente durativo que situa o poeta no momento que vive, sem pensar nem no passado, nem no futuro. O gerúndio é também frequente, exprimindo a simultaneidade e o fluir das sensações: «passeando », «olhando », «vendo », «sorrindo » (de notar que predominam os verbos sensitivos). As frases são ligadas quase sempre por coordenação, processo de harmonia com o deslizar, ou o desfiar de factos sensitivos que o poeta vai enumerando, sem pretender equacioná-los com relações de causalidade, tempo, consequência ou condição. A irregularidade dos versos, o seu desmedido tamanho, está também de acordo com o ritmo tranquilo da natureza, que está dentro do poeta. Os poemas de Pessoa abundam em orações subordinadas, ao passo que, como v imos, nos de Caeiro predomina a coordenação. É que, enquanto Caeiro exprime a sua relação directa com a natureza, com o mundo real, revendo-se claramente na clareza das coisas («O meu olhar é nítido como um girassol »), Pessoa ele mesmo «um novelo embrulhado para o lado de dentro», que nunca conseguiu harmonizar o seu «eu» com o mundo, o sujeito com o objecto. Daí o seu recurso frequente à subordinação, que corresponde à necessidade psicológica de se explicar, recorrendo a orações subordinadas (causais, finais, ete.). A subordinação poucas vezes aparece nos poemas de Caeiro e quando aparece, é para justificar, ou confirmar a sua sintonia com a natureza: «Mas a minha tristeza é sossego / Porque é natural e justa ». O poeta aceita a dor porque é natural e tudo o que é natural é justo.
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Alberto Caeiro – Heterónimo “Poema
IX do Guardador de Rebanhos ”
O poeta inicia o poema assumindo-se como «guardador de rebanhos ». Sendo assim, é natural que a metafísica, sendo ela do domínio puramente intelectual, lhe esteja vedada. Aliás, o poeta confirma o que nós deduzimos logo do primeiro verso, afirmando que os seus pensamentos não passam de sensações, «pois os seus pensamentos são o seu rebanho»: pensamentos = rebanho = sensações. A inteligência está pois posta de parte, o que o poeta concretiza ainda mais claramente: Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. O limite da sensação é a própria sensação e não o pensamento (a inteligência), pois « Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la / E comer um fruto é saber-lhe o sentido ». Isto é, uma flor não se pensa: cheira-se; um fruto não tem sentido: tem sabor (o «sentido» do fruto é, para o poeta, o seu sabor). A conclusão de 'tudo isto está em dois versos seus do poema V de «O Guardador de Rebanhos »: O único sentido íntimo das coisas É elas não terem sentido íntimo nenhum. Os três versos acima transcritos («Penso com os olhos ... ouvidos ... mãos ... pés ... nariz ... boca »), são a expressão mais radical do materialismo concretista de Caeiro A última parte do poema acentua a solidariedade, a irmanação do poeta com a natureza. Ele aceita alegremente a própria dor quando ela provém de um excesso natural (« quando um dia de calor / Me sinto triste de gozá-lo tanto ») e encontra na própria natureza, nas sensações, o remédio suficiente: E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. Notar que o poeta fecha os olhos e sente a frescura da relva que o torna feliz. Mas ele diz assim: « deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz ». O poeta quis acentuar que a realidade está nas sensações e a felicidade também: «Sinto o meu corpo deitado na realidade, ...e sou feliz ». O vocabulário do texto é todo ele simples, nunca ultrapassando, em si, a norma. A metáfora não está, porém, ausente do poema, o que se verifica nos exemplos seguintes: « o rebanho é os meus pensamentos », «penso com os olhos ... com as mãos ... com o nariz ... com a boca ». Embora estas metáforas se apresentem com uma cor local, bucólica, a linguagem e o estilo do poeta, como aliás sucede em todos os seus poemas, não podem deixar de considerar-se artificialmente simples. Em harmonia com a lógica do seu materialismo sensorial, há a tendência de tornar concretos os substantivos abstractos: os pensamentos (as sensações) são o seu rebanho. É a tendência de tudo reduzir ao mundo sensorial. Os substantivos predominam sobre os adjectivos (só há três no texto) pela razão de que aqueles referem realidades e estes (os adjectivos) apontam para qualidades (coisas abstractas). O que interessa ao poeta são as coisas, ou os factos da vida real (sensorial). Até os infinitivos, usados como substantivos, servem para exprimir tais realidades: Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Os verbos estão sempre no presente, porque a vivência da natureza é sempre presente. Para o poeta o passado é apenas uma abstracção e o futuro não passa de uma ilusão. Mesmo o presente só o aceita na medida em que ele enquadra as coisas: «quero as coisas que existem, não o tempo que as mede ».
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Alberto Caeiro – Heterónimo “Poema
IX do Guardador de Rebanhos ”
A sequência das frases processa-se sempre por coordenação, a maior parte das vezes sindética (a coordenativa e é usada onze vezes) e há apenas um caso de subordinação (« quando num dia de calor / Me sinto... »), uma oração temporal, que, no entanto, não sai do tempo presente. O poema é constituído por duas estrofes irregulares (uma oitava e uma sextilha), com versos igualmente irregulares, alguns deles multo longos, de largo ritmo geralmente binário, versos brancos aparentemente prosaicos. Semelhante forma é bem própria de um poeta que «pensava e escrevia como as flores têm cor» e que ironizava o artificialismo dos outros poetas: E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas! ... Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. (Poema XXXVI)
O ritmo lento e longo dos versos está também em harmonia com o fluir lento e calmo da vida na natureza, que nunca tem pressa.