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O que é Teologia Reformada R. C. Sproul O que è teologia reformada © 2009, Editora Cultura Cristã. © 1997 by RC Sproul. Originalmente publicado em inglês com o título HTtat is reforme d theolo gy pela Baker Books, uma divisão da Baker Book House Company. Grand Rapids. Michigan, 49516, USA. Todos os direitos são reservados.
1* edição - 2009 - 3.000 exemplares Conselho Editorial Ageu Cirilo de Magalhães. Jr. Alderi Souza de Matos André Luís Ramos Cláudio Marra(Presidente) Fernando Hamilton Costa Francisco Solano Portela Neto Mauro Femando Meister Tarcízio José Freitas de Carvalho Valdeci da Silva Santos Produção Editorial Tradução
Helen Hope Gordon Revisã o
Carlos Augusto Wilton de Lima Edna Guimarães Edito raçã o
Carlos R. Oliveira Capa
Leia Design Sproul, R.C Sp87q
O que é teologia reformada / R.C.Sproul; traduzido por Helen Hope Gordon. _ São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 224 p.; 16x23 cm. Tradução de What is reformed teology ISBN 978-85-7622-219-4 1. Teologia 2. Doutrina I. Titulo 230.42 CDD
s €DITORfl CULTURA CRISTfi R. Migu el Teles Jr., 394 - Cam bud - SP 15040-0 40 -C ai x a Posta l 15.13 6 Fone (011) 3207-709 9 - Fax (011) 3279-125 5 www.editoraculturacfista.com.br
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio Antônio Batista Marra
Sumário
índice de ilustrações Introdução: teologia reformada é uma teologia
04 05
1
Fundamentos da teologia reformada
21 3 4 5
C entrada esomente m Deus na Palavra de Deus Baseada Comprometida somente com a fé Dedicada ao profeta, sacerdote e rei Apelidada de teologia da aliança
18 34 49 66 84
Os cinco pontos da soteriologia reformada A corrupção radical da humanidade A opção soberana de Deus A expiação intencional de Cristo O chamado eficaz do Espírito Deus e sua preservação dos Santos Epílogo Notas
100 119 139 152 168 187 188
2 6 7 8 9 10
índice de ilustrações
Figuras 0.1 0.2
Visão da teolog ia centrada em Deus Visão da teologia centrada no homem
7.1
A corrente dourada da salvação
125
1.1 2.1 2.2 3.1 3.2 4.1 4.2 5.1 5.2 5.3
A prim eira pedr a do alicerc e A segun da ped ra do alicerc e O Cânone A terc eira ped ra do alicerc e Justificação A quarta pedra do alicerce Concílios cristológicos A quinta pedra do alicerce A estrutura dos pactos antigos Três alianç as
19 35 46 50 65 67 70 85 91 95
12 12
Tabelas
6.1 A prim eira péta TULIPA 6.2 Agostinho, sobrela adacapac idade humana 7.1 A segund a péta la da TULIPA 7.2 Predestinação do eleito e do réprobo 8.1 A terc eira péta la da TULIPA 8.2 A vontad e de Deus 9.1 A quarta péta la da TULIPA 10.1 A quinta péta la da TULIPA
101 106
120
137 140 144 153 169
Introdução Teologi a refor m ad a éum a t eolog ia
O
que é uma teologia reformada? O objetivo deste livro é fornecer uma resposta simples a essa pergunta. O que é teologia refor ma-
da? não é um livro-texto teologia nãoartigos é umada exposição compreensiva, detalhada sobre de cada artigo,sistemática, de todos os doutrina reformada. Em vez disso, é um compêndio, uma introdução em taquigrafia à essência cristalizada da teologia reformada. No século 19 teólogos e historiadores, ocupados em uma análise comparativa das religiões do mundo, procuravam refinar a essência da própria religião e reduzir o Cristianismo a seu denominador mínimo. O termo Wesen (ser ou essência) apareceu numa superabundância de estudos teológicos alemães, incluindo o livro de Adolf Hamack, What Is Christianity? Hamack reduziu o Cristianismo a duas afirmativas essenciais, a paternidade universal de Deus e a fraternidade universal do homem, nenhum dos quais é defendido pela Bíblia no sentido articulado por Hamack.1
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O que é Teologia Reformada
6
U
ma
TEOLOGIA, NÃO
u m a r e l i gi ã o
Esse movimento para reduzir a religião à sua essência teve um efeito sutil, porém dramático. O estudo de religião tomou o lugar do estudo de teologia no mundo acadêmico. Essa mudança foi sutil, em que, para a população em geral, religião e teologia eram a mesma coisa, portanto as pessoas não sentiram nenhum impacto dramático. Mesmo no mundo acadêmico a mudança foi aceita em larga escala, quase sem lamúria ou protesto. Há alguns anos fui convidado a falar ao corpo docente de conhecida faculdade do Centro-Oeste americano com uma rica tradição cristã e reformada. O educandário estava sem um presidente e o corpo docente estava envolvido num auto-estudo para definir a identidade da faculdade. Pediram me para falar sobre a pergunta: “Quais são os pontos característicos, inconfundíveis e exclusivos de uma ímpar ‘educação cristã’?” Antes da conferência, o deão me levou para visitar o campus. Quando entramos no prédio de administração dos professores, observei um escritório com estas palavras reproduzidas na porta: Departamento de Religião. Naquela noite, quando falava ao corpo docente, eu disse: “Durante minha excursão pelo seu prédio notei a porta de um escritório que anunciava ‘Departamento de Religião,. Minha pergunta é dupla. Primeiro, aquele departamento sempre foi chamado de Departamento de Religião?” Minha pergunta foi recebida com silêncio e olhares vagos. Em princípio pensei que ninguém pudesse responder à minha pergunta. Finalmente um dos professores mais antigos da faculdade levantou a mão e disse: “Não, antigamente era chamado de ‘Departamento de Teologia’. Nós mudamos o nome há uns trinta anos”. “Por que o mudaram?” Perguntei. Ninguém na sala tinha idéia alguma, nem parecia se importar. O que se deixava supor era: “realmente não tem importância”. ao ecorpo docente que há Historicamente, uma diferença profunda entre estudoLembrei de teologia o estudo de religião. o estudo de re- o ligião tem sido incluído sob os cabeçalhos de antropologia, sociologia, ou até mesmo psicol ogia. A investigação acadêm ica de religião tem procurado ser fundamentada num método empírico-científico. A razão disso é bastante simples. A atividade humana é parte do mundo fenomenal. É uma atividade que é visível, sujeita à análise empírica. Psicologia pode não ser tão concreta como biologia, mas o comportamento humano em resposta a
Introdução
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crenças, ímpetos, opiniões, etc. pode ser estudado de acordo com o método científico. Para afirmar isso de modo mais simples, o estudo da religião é principalmente 0 estudo de certo tipo de comportamento humano, seja sob a rubrica da antropologia, sociologia ou psicologia. O estudo de teologia, por outro lado, é o estudo de Deus. Religião é antropocêntrica; teologia é teocêntrica. A diferença entre religião e teologia é, em última análise, a diferença entre Deus e o homem - dificilmente uma diferença pequena. Outra vez, é uma diferença de assunto. O assunto de teologia em si é Deus; o assunto de religião é 0 homem. Uma objeção importante a essa simplificação pode surgir imediatamente: mas o estudo da teologia não envolve o estudo daquilo que os seres humanos dizem sobre Deus?
O
estudo
da
E scritura
Nó s respondemos a essa pergunta com uma frase: “Em parte”. Nó s estudamos teologia de várias maneiras. A primeira é estudando a Bíblia. Historicamente a Bíblia foi recebida pela igreja como um depósito ou armazém normativo de revelação divina. Pensou-se, em última instância, ser seu autor o próprio Deus. E por isso que a Bíblia foi chamada overbum Dei (Palavra de Deus) divina. ou a voxADei (voz de Deus). Foidentro considerada umnão produto de auto-revelação informação contida dela vem como resultado de uma investigação empírica ou especulação humana, mas sim por revelação sobrenatural. É chamada derevelação porque vem da mente de Deus para nós. Historicamente o Cristianismo reivindicou ser e foi recebido como verdade revelada, não verdade descoberta por meio de discernimento ou inventividade humana. Paulo começa sua Epístola aos Romanos com estas palavras: “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamadopara ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus...” (Rm 1.1). O que quer dizer a frase “evangelho de Deus”? Será que a palavrade indica posse ou significa simplesmen te “sobre”? Paulo está dizendo que o evangelh o é algo sobre Deus, ou algo vindo de Deus. O Cristianismo histórico diria que0 evangelho é uma mensagem que tanto é sobre Deus como procede de Deus. Ao mesmo tempo, a igreja sempre reconheceu que a Bíblia não foi
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O que é Teologia Reformada
escrita pelo dedo de Deus. Deus não escreveu um livro, não 0 fez publicar pela Companhia Celestial de Publicações e depois o deixou cair na terra de pára-quedas. A igreja sempre reconheceu que as Escrituras foram compostas e escritas por autores humanos. A questão abrasadora hoje é a seguinte: estavam esses autores humanos escrevendo suas opiniões e discernimentos sem ajuda, sem auxílio, ou estavam eles, de modo inigualado, capacitados como agentes de revelação, escrevendo sob a inspiração e superintendência de Deus? Se dissermos que a Bíblia é um produto somente de opinião e discernimento humano, ainda podemos falar sobre teologia bíblica no sentido que a Bíblia contém ensino humano Deus, mas podemos mais falar sobre tanto de revelação Se Deus ésobre o autor final da não Bíblia, podemos falar revelação bíblica. bíblic a como de teologia bíblica. Se o homem é o autor supremo, então somos restringidos a falar sobre teologia bíblica ou teologias. Se esse é o caso, poderíamos, justificadamente, ver a teologia bíblica como uma subdivisão da religião, como um aspecto de estudos humanos sobre Deus.
O estudo
da
H i stó r i a
Um segundo emum queestudo estudamos teologia é historicamente. A teologia histórica modo envolve daquiloa que pessoas que não são agentes inspirados de revelação ensinam sobre Deus. Nós examinamos concílios históricos, credos e escritos de teólogos como Agostinho, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, Karl Barth e outros. Estudamos várias tradições teológicas para saber como cada uma entendia o conteúdo de teologia bíblica. Por um lado isso pode ser chamado de um estudo de religião no sentido que é o estudo do pensamento religioso. Podemos ser motivados a estudar teologia histórica meramente para entender a história do pensar religioso. Nesse cenário o assunto é opinião humana. Ou podemos ser motivados a estudar teologia histórica para conhecer 0 que outros aprenderam sobre Deus. Nesse cenário 0 assunto é Deus e as coisas de Deus. Naturalmente poderíamos ser motivados a estudar a teologia histórica por uma combinação dessas duas razões ou por outros motivos. O ponto é que podemos ter primariamente um interesse teológico ou um interesse religioso, contanto que reconheçamos que eles não são idênticos.
Introdução
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O ESTUDO D A N ATU REZ A
Um terceiro modo de estudar teologia é estudando a natureza para encontrar indícios que ela dá sobre a natureza de Deus. A isso chamamos de teologia natural. Teologia natural se refere a informações sobre Deus colhidas da natureza. As pessoas abordam a teologia natural por duas perspectivas distintas. Primeiro há aqueles que vêem a teologia natural como uma teologia derivada de pura especulação humana - por um raciocínio sem ajuda nenhuma passam a refletir filosoficamente sobre a natureza. Em segundo lugar há aqueles que, de acordo com a abordagem histórica à teologia natural, vêem isso como sendo produto de e baseado em revelação natural. Revelação é algo que Deus faz. É a sua ação de auto-revelação. A teologia natural é algo que nós adquirimos. É o resultado ou de especulação humana, vendo a natureza como um objeto neutro em si, ou de recepção humana de informação dada pelo Criador em e através de sua criação. A segunda abordagem vê a natureza não como um objeto neutro em si que é mudo, mas como um teatro da revelação divina no qual a informação é transmitida através da ordem criada. Do século 16 até o começo do século 20 nenhum teólogo reformado que eu conheç o negava a validade da teologia natural derivada da revelação natural. A forte antipatia à teologia em nossos dias, baseada em especulação humana sem suporte, trouxe em conseqüência uma rejeição ampla e por atacado de toda a teologia natural. Esse afastamento, essa desistência, em parte uma reação contra0 racionalismo do Iluminismo, é uma saída da teologia reformada histórica e da teologia bíblica. Tanto o catolicismo romano quanto a teologia reformada histórica abraçavam a teologia natural colhida da revelação natural. A razão desse acordo substancial existe porque a Bíblia, que os dois lados viam como uma revelação especial, claramente ensina que, além da revelação de si na Escritura, há também a esfera de revelação divina que se encontra na natureza. A teologia clássica fez uma distinção forte entrerevelação especial e revelação geral. As duas espécies de revelação são distinguidas pelos termos especial e geral por causa da diferença em alcance de conteúdo e na recepção de cada uma. A revelação especial é especial porque fornece informações específicas sobre Deus que não podemos encontrar na natureza. A natureza não
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O que é Teologia Reformada
nos ensina 0 plano de Deus para a salvação; a Bíblia ensina. Aprendemos muito mais pontos específicos sobre o caráter e atividades de Deus com as Escrituras do que jamais poderíamos colher da criação. A Bíblia também é chamada de revelação especial porque a informação nela contida é desconhecida por pessoas que nunca a leram ou a tiveram proclamada para elas. A revelação geral é geral porque revela verdades gerais sobre Deus e porque seu auditório é universal. Toda pessoa é exposta em algum grau à revelação de Deus na criação. A base bíblica mais apropriada para uma rev elaç ão geral ou natural é a afirmação de Paulo em Romanos 1.18-21: A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão doshomens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porqueatributos os invisíveis de Deus,assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não 0 glorificaram como Deus...
Deusnatural. dirige sua à humanidade em razão menosprezo delao pela revelação Deusirapode ser conhecido porquedotem “mostrado” que pode ser conhecido sobre si mesmo. Esse mostrar ou revelar é “manifesto”, isto é , claro. Desd e a própria criação os a tributos invisí vei s de Deu s, embora invisíveis, são “vistos claramente” - isto é, são vistos por ou através das coisas que Deus fez. Isto é quase que universalmente entendido como significando que Deus se revela claramente em e através da natureza, que existe uma revelação geral ou natural. Será que essa revelação manifesta “chega” até nós e produz algum conhecimento de Deus? Paulo não nos deixa em dúvida. Ele diz que essa revelação é “vista” e “entendida”. Ver e entender algo é ter alguma espécie de conhecimento a esse respeito. Paulo diz quanto às pessoas: “tendo conhecimento de Deus”, tomando claro que a revelação natural produz uma teologia ou um conhecimento natural de Deus. A ira de Deus está presente, não porque homens deixam de receber sua revelação natural, mas porque, depois de terem recebido
Introdução
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esse conhecimento, os seres humanos deixam de agir apropriadamente. Recusam honrar a Deus ou serem agradecidos a ele. Suprimem a verdade de Deus e, como Paulo diz mais tarde: “E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus” (Rm 1.28). As pessoas rejeitam o conhecimento natural que têm de Deus. Essa rejeição, no entanto, não aniquila nem a revelação nem o conhecimento em si. O pecad o da humanidade está em recusar reconhecer o conhecimento que tem. Agem contra a verdade que Deus revela e que recebem claramente. O crente que concorda com a revelação especial está agora numa posição de responder apropriadamente à revelação geral. Nesse ponto o cristão deve ser o deveria estudante diligente Biblia comopela da natureza. Nossa teologia sermais formada tantotanto pela da Bíblia quanto natureza. As duas vêm da mesma fonte revelatória, o próprio Deus. As duas revelações não entram em conflito; elas refletem a harmonia das auto-revelações de Deus. Um último modo em que estudamos a teologia é através da teologia filosófica especulativa. Essa abordagem pode ser conduzida ou por um comprometimento prévio com a revelação natural ou por uma tentativa consciente de ir contra a revelação natural. O primeiro motivo é uma razão legítima para o cristão; o segundo é um ato de traição contra Deus, baseado na pretensão da autonomia humana. Em todas essas várias abordagens pode haver um estudo de teologia em vez de uma mera análise de religião. Quando nos envolvemos na preocupação para entender Deus, isto é teologia. Quando nossa busca está limitada a entender com o as pessoas reagem à teologia, é religião.
A
RAINHA DAS CIÊNCIAS
O estudo da teologia inclui um estudo da humanidade, mas isto por uma perspectiva teológica. Poderíamos ordenar nossa ciência como na Figura 0.1. Há muitas subdivisões da disciplina da teologia, uma das quais é a antropologia. A abordagem moderna se parece mais com a Figura 0.2, na qual a teologia é um subconjunto da antropologia. Estes dois paradigmas ilustram a diferença entre uma visão teocêntrica do homem e uma visão antropocêntrica de religião e Deus. ♦
O que é Teologia Reformada
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Figura — 0.1
Visão da Teologia Centrada em Deus
No currículo clássico a teologia é a rainha das ciências e todas as outras discipl inas são suas su bordi nadas. N o currículo mo de mo o hom em é rei e a antiga rainha é levada a um status periférico de insignificância. Em sua obra monumental No Place fo r Truth , David F. Wells escreve: O desaparecimento da teologia da vida da igreja e a orquestração desse desaparecimento por alguns de seus líderes são difíceis de não se ver nos dias de hoje mas, por estranho que pareça, não são fáceis provar. É difícil não reparar no mundo evangélico - no culto vazio que é tão prevalecente, por exempio, na mudança de Deus para 0 eu como enfoque central da fé, na pregação psicológica que segue a essa mudança, na erosão da sua convicção, no seu pragmatismo estridente, em sua incapacidade de pensar incisivamente sobre a cultura, em sua festança no irracional.2
Figura — 0.2
Visão da Teologia Centrada no Homem
Introdução
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Citando Ian T. Ramsey, Wells fala de nossa condição atual como sendo uma igreja sem teologia e uma teologia sem Deus.3 Uma igreja sem teologia ou uma teologia sem Deus simplesmente não são opções para a fé cristã. Pode-se ter religião sem Deus ou teologia, mas não se pode ter Cristianismo sem eles.
TEOLOGIA E RELIGIÃO NO S1NAI
Paradeilustrar mais uma a diferença entre minemos, modo breve, um vez incidente famoso na teologia história edereligião, Israel. exaEm Êxodo 24 lemos: “Tendo Moisés subido, uma nuvem cobriu o monte. E a glória do S enhor pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; ao sétimo dia, do meio da nuvem chamou o S enhor a Moisés. O aspecto da glória do S enhor era como um fogo consumidor no cimo do monte, aos olhos dos filhos de Israel. E Moisés, entrando pelo meio da nuvem, subiu ao monte; e lá permaneceu quarenta dias e quarenta noites” (Êx 24.15-18). Nesse episódio Moisés sobe à mesma montanha que ele antes visitou em meio à fumaça, trovão e relâmpagos. Ele foi convocado a uma reunião com Deus. A glória de Deus foi manifestada ao povo como um fogo consumidor. Mas Deus mesmo estava oculto a eles, encoberto por nuvens. Moisés entrou na cobertura de nuvens. Sua missão era de pura teologia. Ele estava perseguindo o próprio Deus. A luz dessa demonstração, devemos presumir que 0 povo deixado para trás não era ateísta. Ciente da realidade de Deus e de sua obra salvadora, ele nem era secularista nem liberal. O israelitas foram os evangélicos do dia, recebedores de revelação especial e participantes no êxodo redentor. Mais tarde, nessa narrativa, no entanto, lemos sobre uma surpreendente mudança no comportamento do povo: “Mas, vendo 0 povo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de Arão e lhe disse: “Levantate, faze-nos deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos 0 que lhe terá sucedido” (Ex 32.1). O que segue é um ato sem precedentes de apostasia: a confecção e adoração de um bezerro de ouro. Isto foi um exercício em religião que
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O que é Teologia Reformada
enfocou seu culto de adoração em uma criatura. Quando fabricaram seu sofisticado e valioso bezerro de última moda, disseram: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito” (Êx 32.4). Observe que essa é uma afirmação teológica. Reivindicavam que o bezerro de ouro era Deus e que os havia livrado da escravidão. Essa teologia era ostensivamente falsa. Também foi prova de que religião falsa flui de teologia falsa. O bezerro era uma imagem esculpida idolatrada, que trocava a verdade de Deus por uma mentira e trocava a glória de Deus pela glória de uma criação artística. Há muito erro nisso. Em primeiro lugar, o boi era a imagem sagrada dos deuses pagãos do Egito. Fazendo sua própria imagem-boi, Israel conformou a religião deles ao mundo à sua volta. Sua nova religião era agora relevante. Tinham um deus que podiam controlar. Eles o fizeram e eles poderiam descartá-lo ou destruí-lo. A vaca não dava nenhuma lei e não exigia nenhuma obediência. Não tinha nenhuma ira, nem justiça, nem santidade para ser temida. Era surda, muda e impotente. Mas pelo menos não podia se intrometer no divertimento deles e chamá-los a serem julgados. Essa era uma religião projetada por homens, praticada por homens e, em última análise, inútil para os homens. Era deles uma teologia e uma religião sem Deus. Tinham os elementos dahavia prática religiosa, o que era adorado não era Deus. O verdadeiro Deus sido despidomas de seu caráter verdadeiro pela teologia vazia do povo. Uma ironia a mais é vista na razão pela demora de Moisés em voltar das montanhas - desde o capítulo 24 até esse momento, no capítulo 32 , Moisés estava recebendo instruções detalhadas de Deus. Essas instruções enfocavam uma única coisa: a verdadeira adoração. Deus estava dando mandamentos detalhados com respeito ao tabemáculo, ao sacerdócio aarônico, à liturgia do culto e à santidade do sábado. Enquanto Moisés estava aprendendo teologia sã, o primeiro homem consagrado como sumo sacerdote, Arão, estava construindo um altar para um bezerro de ouro. Deus estava instruindo Moisés em religião apropriada que está baseada numa teologia de verdade. David F. Wells observa que: “No passado, o atuar da teologia abarcava três aspectos essenciais tanto na igreja quanto na academia: (1) um elemento confissional, (2) reflexão sobre essa confissão, e (3) o cultivo de um conjunto de virtudes que estão fundamentadas nos primeiros dois elementos”.4
Introdução
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Quando falamosComeçamos em teologianosso reformada porque iremos pela perspectiva histórica. estudoé afirmando que vê-la a teologia reformada é, primeiro e antes de tudo, umateologia. Como uma teologia ela tem aspectos confissionais, refletivos e comportamentais. O restante deste livro examinará por que essa teologia é chamada de reformada, mas não antes de repetirmos, mais uma vez, que ela é uma teologia, não meramente uma religião sem teologia. Ela é impulsionada, primeiro de tudo e antes de tudo, pela sua compreensão do caráter de Deus.
p^rte I
Fundamentos da Teologia Reformada
Centrada em Deus
A
teologia refor mada é sistemática. A ciên cia da teolog ia sistemática é assim chamada porque procur a com preen der a doutrina de maneira coerente e unificada. Não é alvo da teologia sistemática impor à Bíblia um sistema derivado de certa filosofia. An tes, seu a lvo é d iscernir o interrelacionamento dos ensinos da própria Escritura. Historicamente 0 teólogo sistemático toma por certo que a Bíblia é a Palavra de Deus e que, sendo assim, ela não está cheia de conflito e confusão interna. Embora muitos temas tenham sido tratados por muitos diferentes autores humanos durante um vasto perí odo, a mensagem que surgi a era considerada vinda de D eus e portanto coerente e consistente. Nesse caso consistência não é considerada ser “0 fantasma de mentes pequenas”. A mente de Deus não é de modo algum pequena.
♦
Centrada em Deus
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Tabela — 1.1 A Primeira Ped ra do Alicerc e
1. 2. 3. 4. 5.
Centrada em Deus Baseada somente na Palavra de Deus Comprometida somente com a fé Dedicada a Jesus Cristo Estruturada por três a lianças
Na igreja moderna os pressupostos aceitos do passado nem sempre são conservados. Muitos têm rejeitado a divina inspiração da Escritura e com ela qualquer comprometimento com uma revelação unificada. Quando a pess oa se chega à Bíblia com o sendo um documento pu ramente humano, ela não precisa harmonizar os ensinos de seus vários autores. Desse ponto de vista, a teologia sistemática geralmente é uma tentativa de explicar a Bíb lia à luz e sob o controle de um sist ema que s e traz de fora para a Bíblia. Outras pessoas fogem de sistemas completamente e abraçam uma teologia que é autoconscientemente relativista e pluralista. Elas colocam autores bíblicos em oposição um ao outro, e vêem a própria Bíblia como uma coletânea de teologias conflitantes. A teologia reformada clássica, por outro lado, vê a Bíblia sendo a Palavra de Deus. Embora reconheça que as Escrituras foram como obra de diferentes escritores em diferentes tempos, a inspiração divina do todo carrega a unidade e a coerência da verdade de Deus. Portanto, a busca reformada por uma teologia sistemática é um esforço para descobrir e definir o sistema de doutrina ensinado internamente pelas próprias Escrituras. E porque a teologia é sistemática, toda doutrina da fé toca de alguma maneira cada outra doutrina. Por exemplo, como entendemos a pessoa de Cristo afeta como entendemos sua obra de redenção. Quando vemos Jesus meramente como um grande mestre humano, então somos inclinados a ver aQuando missão odele como sendo primariamente de instrução ou então influência moral. vemos como sendo o Filho de Deus encarnado, isso emoldura nossa compreensão de sua missão. Inversamente, nosso entendimento da obra de Cristo também influencia nosso entendimento de sua pessoa. Talvez nenhuma doutrina tenha maior relação com todas as outras doutrinas do que a doutrina de Deus. Como entendemos a natureza e o caráter de Deus influencia como entendemos a natureza do homem, que leva
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O que é Teologia Reformada
imagem de a natureza de Cristo,por queDeus; trabalha para satisfazer Pai; a natureza daDeus; salvação, que é efetuada a natureza da ética,0 cujas normas se baseiam no caráter de Deus; e uma miríade de outras considerações teológicas, todas tendo a ver com nosso entendimento de Deus. A teologia reformada éprimeiramente e antes de tudo teocêntrica em vez de antropocêntrica. Isto é, é centrada em Deus em vez de centrada no homem. Esse caráter centrado em Deus não desmerece em nada o valor dos seres humanos. Ao contrário, estabelece o valor d e l e s / \ teolo gia reform ada muitas vezes tem sido qualificada como tendo uma visão baixa da humanidade em razão de sua insistência no caráter “caído” e na corrupção radical da humanidade. Tenho argumentado que a teologia reformada tem a visão mais alta possível da humanidade. É por termos uma visão tão alta de Deus que nos importamos tanto com aquele criado à sua imagem. A teologia reformada leva 0 pecado a sério porque leva Deus a sério e porque leva as pessoas a sério. O pecado ofende a Deus e viola os seres humanos. Essas duas coisas são assuntos sérios. A teologia reformada mantém uma visão alta do valor e da dignidade dos seres humanos. Difere radicalmente nesse ponto de todas as formas de humanismo em que o humanismo atribui uma dignidade intrínseca ao homem, enquanto que a teologia reformada vê a dignidade do homem como sendo extrínseca. Quer dizer, a dignidade do homem não é inerente. Não existe em e de si mesmo. O que temos é uma dignidade derivada, dependente e recebida. Em e por nós mesmos somos do pó. Mas Deus nos designou um valor notável como criaturas feitas à sua imagem. Ele é a srcem de nossa vida e nosso próprio ser. Ele nos pôs um manto de valor extremo. As vezes surge uma disputa com respeito ao alvo ou propósito do plano de redenção de Deus. As perguntas são apresentadas: será o alvo da redenção a manifestação da glória de Deus? Ou será a manifestação do valor da humanidade caída? E0 alvo centrado no homem ou centrado em Deus? Se fôssemos forçado s a escolher en tre essas opç ões , teríamos de optar pela primazia da glória de Deus. A boa-nova é que não precisamos fazer uma “escolha de Sofia” aqui. No plano de redenção de Deus vemos tanto sua preocupação com o bem-estar de sua criação quanto com a manifestação da própria glória. A glória de Deus é manifesta em e por meio de sua obra de redenção. É até manifestada no castigo dos maus. Deus expõe com majestade surpreendente tanto sua graça inefável quanto seu reto
Centrada em Deus
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juízo . Mesmo no juízo de Deus el e vindica o valor do homem ao castigar o mal que tanto estraga a vida humana. Embora eu não seja apaixonado pelo uso de paradoxo no discurso teol óg ic o, não me esquivo de afirmar um agora. Ainda que não haja muito na doutrina de Deus reformada que se diferencie significativamente da doutrina confessada pelas outras comunhões cristãs, o aspecto mais distintivo da teologia reformada é a sua doutrina de Deus. Como pode essa afirmação ser verdadeira? Conquanto a doutrina reformada de Deus não seja tão diferente assim daquela de outros corpos confessionais, a maneira em que essa doutrina funciona na teologia reformada é singular. A te olo gia reformada aplica ao principal doutrina de Deus as outras doutrinas, tomando-a fator de inflexivelmente controle em todaa atodas teologia. Por exemplo, eu nunca encontrei um cristão confesso que não estivesse pronto a afirmar que Deus é soberano. Soberania é um atributo divino confessado quase que universalmente no Cristianismo histórico. No entanto, quando pressionamos a doutrina de soberania divina em outras áreas de teologia, ela é freqüentemente enfraquecida ou destruída totalmente. Muitas vezes já ouvi dizer: “A soberania de Deus é limitada pela liberdade humana”. Nessa declaração a soberania de Deus não é absoluta. É cerceada por um limite e esse limite é a liberdade humana. A teologia reformada fato insistepelo que Criador. uma verdadeira medida de liberdade tem sido designadadeao homem Mas essa liberdade não é absoluta e o homem não é autônomo. Nossa liberdade é sempre e em toda parte limitada pela soberania de Deus. Deus é livre e nós somos livres. Mas Deus é mais livre do que nós somos. Quando nossa liberdade esbarra na soberania de Deus, nossa liberdade precisa ceder. Dizer que a soberania de Deus é limitada pela liberdade do homem é fazer o homem soberano. É claro, a afirmação que a soberania de Deus é limitada pela liberdade humana pode simplesmente expressar a idéia que Deus de fato não viola a liberdade humana. Todavia, naturalmente, isso é outro assunto. Se Deus nunca viola a liberdade humana, não é por causa de qualquer limite sobre sua soberania. É porque ele soberanamente decreta não fazer isso. Ele tem a autoridade e o poder de fazê-lo, se desejar. Qualquer limite aqui não é um limite imposto sobre Deus por nós, e sim um limite que Deus soberanamente impõe sobre si próprio. Na teologia reformada, se Deus não é soberano sobre toda a ordem criada, então ele não é soberano de modo nenhum. O termo soberania com
O que é Teologia Reformada
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muita facilidade se torna umacomo quimera. não éAsoberano, não é Deus. Pertence a Deus Deus Se serDeus soberano. maneira então em queele entendemos a soberania dele tem implicações radicais para nossa compreensão da doutrina de providência, eleição, justificação e uma multidão de outras doutrinas. O mesmo poderia ser dito com respeito a outros atributos de Deus, como sua santidade, onisciência e imutabilidade, para dar nome apenas a alguns.
A
TEOLOGIA REFORMADA É CATÓLICA (UNIVERSAL)
No século 17 uma disputa surgiu na comunidade reformada na Holanda. Um grupo de teólogos se tomou conhecido como sendo os protestadores, porque se queixavam (protestavam) contra cinco artigos da teologia reformada. Esses cinco pontos mais tarde se tomaram conhecidos como os “Cinco pontos do Calvinismo”, que têm sido resumidos pelo acróstico popular em inglês TULIP (tulipa). Esse acróstico (que examinaremos mais de perto na 2a. parte) em ing lês significa: total depravity (d epravação total), unconditional election (eleição incondicional), limit ed atonement (expiação limitada), irresistible grace (graça irresistível), e the perseverance of
the saints (a perseverança dos santos). O Sínodo de Dort condenou esses “demonstradores” e reafirmou os cinco pontos como integrais para a teologia reformada ortodoxa. Desde esse sínodo tem sido cada vez mais popular ver a teologia reformada exclusivamente à luz desses cinco pontos. Embora os cinco pontos possam ser centrais para a teologia reformada, eles de modo nenhum esgotam esse sistema de doutrina. Há muito mais na teologia reformada do que os cinco pontos. A teologia reformada não é só sistemática como também católica (;universal), por ter muito em comum com outras comunhões que fazem parte do Cristianismo histórico. Os reformadores do século 16 não estavam interessados em criar uma nova religião. Seu interesse não estava na inovação, mas na renovação. Eles eram reformadores, não revolucionários. Assim como os profetas do Antigo Testamento não repudiaram a aliança que Deus fez com Israel, procurando antes corrigir o afastamento da fé revelada, os reformadores chamaram a igreja a voltar para suas raízes apostólicas e bíblicas.
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Embora os reformadores tenham rejeitado aatradição dada igreja como uma fonte de revelação divina, eles não rejeitaram totalidade tradição cristã. João Calvino e Martinho Lutero freqüentemente citavam os pais da igreja, especialmente Agostinho. Eles acreditavam que a igreja tinha aprendido muito em sua história, e desejavam conservar o que era verdadeiro naquela tradição. Por exemplo, os reformadores abraçavam as doutrinas articuladas e formuladas pelos grandes concílios da história da igreja, incluindo as doutrinas da Trindade e da pessoa e obra de Cristo, formuladas nos concílios de Nicéia em 325 e de Calcedônia em 451. No próprio Novo Testamento vemos um conflito com respeito à tradição. Jesus estava freqüentemente em controvérsia com os fariseus e escribas sobre a tradição dos rabinos. Jesus não considerava a tradição rabínica como inviolável. Ao contrário, ele repreendeu os fariseus por elevarem essa tradição humana ao nível d e autoridade divina, o que comprometia esta última. Por causa dessa repreensão forte à tradição humana, temos a tendência de deixar de ver o s a spectos pos itiv os da tradição articulados no Nov o Testamento. O termotradição aqui faz referência àquilo que é “dado de novo”. Paulo fala calorosamente da tradição do evangelho na qual ele trabalhava. É dever de cada geração de cristãos passar adiante uma tradição. Assim como Israel era convocado para passar adiante a seus filhos as tradições instituídas por Deus, assim a igreja deve passar a tradição apostólica a cada geração sucessiva. Nesse processo, todavia, há sempre o perigo de somar acréscimos à tradição apostólica que são contrários ao srcinal. É por isso que os reformadores insistiam que seu trabalho de reforma não estava completo. A igreja é chamada para estar semper reformando, “sempre reformando”. Cada comunidade cristã cria sua própria subcultura de costumes e tradições. Tais tradições são muitas vezes extremamente difíceis de vencer ou abandonar. Contudo permanece nossa a tarefa, em cada geração, de examinar criticamente nossas próprias tradições para assegurar que estejam coerentes com a tradição apostólica. Os reformadores levavam a história da igreja muito a sério e nós devemos fazerassistido o mesmopor hoje. Eu ensinodeteologia sistemática seminário reformado estudantes uma variedade de num ambientes denominacionais. Isso inclui muitos batistas. Quando ensino os sacramentos, sei que muitos de meus alunos são batistas e não adotam a doutrina de batismo de crianças pequenas. Eu lhes aponto que a prática de batismo de bebês é
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a posição majoritária na história da igreja, entre a maioria de comunhões cristãs. Eu lhes faço lembrar que, embora historicamente haja uma posição minoritária, de modo algum isso a faz falsa. De fato, a minoria muitas vezes pode estar e estará certa. Eu peço a meus estudantes batistas que examinem a posição da maioria para ver por que aquela tradição mantém o ponto de vista que tem. Do mesmo modo insisto que estudantes que discordam da posição batista escutem cuidadosamente o argumento que os batistas usam para 0 batismo do crente. Faço isso por mais de um motivo. Essa questão divide cristãos sinceros, cujos cr entes de ambos o s lados desejam claramente agra dar a Deus. Pelo menos um desses grupos está errado. Ou 0 batismo de infantes está de acordo com a vontade divina ou não está. Alguém está errado, contudo os dois crêem que estão certos. Examinando os debates históricos no assunto, podemos ser persuadidos a mudar nosso modo de pensar. No mínimo adquiriremos uma compreensão mais profunda dos pontos envolvidos. Isso cria um ambiente de entendimento mútuo mesmo no meio de desacordo sério.
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eologia
reformada
é e va n gé li ca
O termo evangélico ch egou à preeminência dura nte a Reforma, quando foi virtualmen te um sinô nim o para pro testante. Historiadores freqüentemente sugerem que as duas causas principais da Reforma foram as questões de autoridade e de justificação. Muitas vezes o assunto de autoridade é chamado de cau sa form al da Reforma, enquanto que a questão da justifi caçã o é chamada de sua causa m aterial . Com isso se quer dizer que 0 problema central era a justificação, enquanto que o pano de fundo à controvérsia era a autoridade. Os motos gêmeos de sola Scriptura e sol a fid e se tomaram os gritos de batalha da Reforma. Examinaremos esses dois assuntos mais completamente à frente. Notamos os dois agora ao passar para dizer que 0 termo evangélico foi 0 termo lato aplicado a muitos grupos que, a despeito de sua separação em diferentes denominações, concordavam nesses dois assun tos básicos em o posiç ão à Igreja Católica Romana. Quando declaramos qu e a teologi a refor mada é evan géli ca, queremos dizer que a teologia reformada compartilha com outros grupos protestantes um compromisso com as doutrinas históricas de sola Scriptura e sola fide .
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Desd e o sécu lo 16 o termque o evangélico tem passado m desenvo lvimento significativo, de, modo hoje é difícil defini-lo.por Nouséculo 20 tanto o conceito de autoridade bíblica como a natureza e significância de justificação somente pela fé têm s ido desafiados dent ro da comunidade de evangélicos confessos. Não é mais seguro presumir que se uma pessoa se considera evangélica está comprometida com sola S criptur a nem com solafide. Num livro recente um escritor católico romano se descreveu como sendo um “católico romano evangélico” e afirmou seu compromisso com o romanismo ortodoxo. Ele reivindicava o rótulo evangélico porque também acredita no “evangelho”. Esse autor entende o sentido da raiz do termo evangélico. Os reformadores se tratavam de evangélicos porque acreditavam que a doutrina da justificação pela fé somente é central e essencial ao evangelho. Visto que a palavra bíblica para evangelho é evangel, usaram o termo evangélico para declarar sua convicção de que sol afid e é o evangelho. Naturalmente a Igreja Romana do século 16 discordava dos reformadores e argumentava que sola fide é uma distorção séria do evangelho. A luz do debate histórico, não é surpreendente encontrar partidários dos dois lados da questão se tratando deevangélicos hoje. (Naturalmente também se deve reconhecer que há pessoas dentro da Igreja Católica Romana que são evangélicas no sentido protestante, crendo na visão reformada do evangelho e não na visãoé evangélica, católico-romana.) todo digo quee ahistórico. teologia reformada uso o Em termo emcaso, seu quando sentido clássico Teolo gia reformada comparti lha um corpo comu m, evan gélico , de doutrina com outras comunhões cristãs.
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e u s é i n co mpr e e n sí vel
Nó s já vimo s que a teolo gia reformada é sistemática, católica e evangélica. Em todos esses casos ela procura ser centrada em Deus na sua doutrina. Quando os teólogos reformados confessam sua fé ou ensinam cursos em teologia sistemática, eles geralmente começam o estudo de teologia ou com a doutrina de revelação ou com a doutrina da “teologia propriamente dita”, isto é, a doutrina da natureza e caráter de Deus. O estudo da própria teologia normalmente começa com a doutrina da incompreensibilidade de Deus. Este termo pode sugerir ao leitor que cremos
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que Deus é fundamentalmente inconhecível ou ininteligível. Na realidade o caso não é este. de modo nenhum. Nós cremos que o Cristianismo é, antes de tudo, uma religião revelada. Somos compromissados com a idéia de que Deus se fez conhecer a nós suficientemente para que sejamos redimidos e experienciemos comunhão com ele. A doutrina da incompreensibilidade de Deus chama atenção para al distância entre o Criador transcendente e suas criaturas mortais. Um dos principais axiomas ensinados por João Calvino era expressado pelo reformador na frase latinaFinitum non capax infinitum - “O finito não pode captar (ou conter)0 infinito.” Porque Deus é infinito em seu ser e eterno e nós somos finitos e limitados, tanto pelo espaço quanto pelo tempo, nosso conhecimento dele nunca é compreensivo ou completo. Nós apreendemos Ajmconhecimento de Deus, mas não o conhecimento total. Para conhecer Deus compreensivelmente teríamos necessidade de participar em seu atributo de infinidade. Infinidade é um atributo divino acertadamente chamado de “incomunicável”, o que significa que Deus não pode fazer deuses de nós mesmos. Mesmo Deus não pode “criar” um segundo deus. O segundo deus não poderia ser realmente um deus porque seria, por definição, uma criatura. Seria dependente de e derivado do Deus srcinal. em muito nosso estado glorificado no céu, no qual entenderemos as coisasMesmo de Deus mais completamente do que entendemos agora, nosso conhecimento de Deus não será compreensivo, completo. Nossa glorificação não significa deificação. Ainda seremos criaturas; ainda seremos finitos. Mesmo no céu 0 axioma se aplica: Finitum non capax infinitum. Embora nos falte um conhecimento compreensivo de Deus, não somos reduzidos a ceticismo ou agnosticismo. Nós apreendemos Deus, sim. A igreja primitiva enfrentou uma heresia virulenta na forma do assim chamado gnosticismo. Os gnósticos, que derivaram seu nome da palavra grega para conhecimento (gnosis ), criam que não podemos ter nenhum conhecimento apropriado de Deus pelos meios normais de apreensão racional ou dos sentidos. O único canal desse conhecimento é uma intuição mística possuída só por uma elite bem-dotada de “gnostikoi”, ou “aqueles que estão por dentro”. Os gnósticos reivindicavam um nível ou tipo superior de conhecimento àquele dos apóstolos e buscavam exceder ou suplantar a autoridade deles. O problema gnóstico foi exacerbado mais tarde com o surgimento do neoplatonismo. Neoplatonismo foi uma tentativa consciente de fornecer uma filoso-
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fia alternativa ao Cristianismo. A fé cristã, tendo vencido a filosofia grega tradicional, o neoplatonismo, foi a tentativa de restaurar a filosofia grega à preeminência. O filósofo mais importante do movimento neoplatônico, Plotino, descreveu Deus como “o Um”. Plotino insistia que nada positivo sobre Deus pode jamais ser afirmado. Ele é inconhecível. Podemos rodear sobre certas idéias a respeito de Deus, mas nunca podemos pousar sobre nenhuma delas. Plotino popularizou o método de falar sobre Deus que é chamado a “via da negação” (via negationis), que define algo dizendo o que a coisa não é. A teologia cristã rejeita o cetiscismo do gnosticismo e neoplatonismo. A viafalamos da negação, entretanto, por vezes é empregada na termos teologia.negaPor exemplo, da infinitude e imutabilidade de Deus. São tivos. Dizer que Deus é infinito é dizer que ele não é finito. Dizer que ele é imutável é dizer que ele é não-mutável, não-variável. Nes te sentido estamos apontando para dessemelhanças entre Deus e criaturas. Se houvesse só dessemelhanças entre Deus e o homem, realmente não poderíamos ter nenhum conhecimento de Deus. Tornou-se moda em nossos dias falar em Deus como sendo “totalmente outro”. Esta frase foi cunhada para salvaguardar a transcendência de Deus contra todas as formas de panteísmo que buscam identificar Deus com ou contê-lo dentro do universo. Se tomado literalmente, contudo, o termo “totalmente outro” seria fatal ao Cristianismo. Se não há nenhum sentido em que Deus e o homem são similares, se não há nenhuma analogia de ser entre Deus e homem, então não há nenhuma base para comunicação entre nós. Seres totalmente dissimilares não têm nenhum caminho de discurso entre si. A Escritura ensina que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Isto não quer dizer que somos pequenos deuses. A imagem não obscurece a diferença entre Deus e0 homem. Garante, no entanto, algum ponto de semelhança que toma possível a comunicação, por mais limitada que seja. Embora a igreja empregue o caminho da negação em suas declarações sobre Deus, sua confissão é, como no neoplatonismo, limitadae ao esse método. Também usamos 0não “meio da afirmação” (via affirmatas) “meio da eminência” (via eminentia). A via da afirmação faz afirmações pos itivas sobre Deus, com o “ele é santo, soberano ejusto . A via da eminência descreve Deus elevando categorias pertencentes à criatura ao grau infinito ou máximo.
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Por exemplo, estamos familiarizados as écategorias conhecimento. Exercemos poder, mas nossocom poder limitado. de O poder poder ede Deus sobre sua criação não é limitado; é absoluto. Então dizemos que Deus é todo-poderoso ou onipotente. Do mesmo modo, embora nosso conhecimento seja limitado, 0 de Deus não é. Dizemos que ele é onisciente, ou totalmente sabedor. Nossa linguagem sobre Deus leva em conta tanto as semelhanças entre ele e nós como as dessemelhanças. A incompreensibilidade de Deus busca respeitar este sentido no qual Deus nos é conhecido e 0 sentido no qual ele continua descon hecid o para nós. Lutero distinguiu entre 0 “Deus oculto” (Deus absconditus) e oMartinho (Deus revelatus): “Deus revelado” ...uma distinção deve ser observada quando o conhecimento ou, mais precisamente, o assunto do ser divino está sendo discutido. A disputa deve ser entre ou o Deus oculto (abscondito) ou o Deus reveladorevelato ( ). Nenhuma fé em, nenhum conhecimento e nenhum entendimento de Deus, até onde ele não é revelado, são possíveis... O que está acima de nós não nos cabe. Pois pensamentos dessa naturez a, que queremperscrutaralgo mais sublime, acima e externo àquilo que foi revelado sobre Deus, são completamente diabólicos. Nada efetuamos com eles senão lançar a nós mesmos em destruição, porque nos propõem um objeto que desafia investigação, a saber, o Deus não-revelado. Que Deus em vez disso fique com seus decretos e mistérios em oculto.1 João Calvino fez uma distinção semelhante entre o que podemos conhecer sobre Deus e o que permanece desconhecido para nós. “Sua essência, realmente, é incompreensível, totalmente transcendendo todo pensamento humano; mas em cada uma de suas obras sua glória está estampada em caracteres tão brilhantes, tão distintos e tão nobres que ninguém, por mais obtuso e analfabeto que seja, pode argumentar ignorância como desculpa.”2 Antes Calvino ha via elogiado o conh ecimento de De us que já temos: “Visto que a perfeição da bem-aventurança consiste do conhecimento de Deus, agradou-lhe de modo que ninguém poderá ser excluído dos meios de obter a felicidade, não só depositar em nossas mentes a semente da religião da qual já falamos e, como também manifestar de tal maneira suas
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perfeições na estrutura inteira do universo, e diariamente se colocar em nosso campo de visão, de modo que não possamos abrir os olhos sem ser obrigados a enxergá-lo”.3 Calvino e Lutero, com a doutrina da incompreensibilidade de Deus, procuraram ser fiéis ao ensino bíblico se prendendo a ambos os aspectos do conhecimento de Deus, sua ocultação e sua revelação de si: “As coisas encobertas pertencem ao S enhor , nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Nós já vimos que a teologia reformada é centrada em Deus, e não centrada no homem; teocêntrica, não antropocêntrica. Ao mesmo tempo reconhecemos que nosso entendimento de Deus tem implicações radicais para nosso entendimento da humanidade, que ele criou em sua imagem. O conhecimento do homem e o conhecimento de Deus são inter-relacionados, estão vinculados um ao outro. Em um sentido, tomando-nos apercebidos de nós mesmos nos tomamos cientes de nossa própria finitude e qualidade de criatura. Reconhecemos que somos criaturas dependentes. Essas coisas nos apontam para o Criador, embora em noss a natureza decaída busquemo s evitar ou ignorar essa placa indicadora de caminhos. Em outro sentido, só quando entendemos quem é Deus é que entendemos adequadamente quem nós somos. Bem no início de seu trabalho clássico, Institutas da Religião Cristã , João Calvino diz: Nossa sabedoria, até onde deveria ser considerada sabedoria verdadeira e sólida, consiste quase que inteiramente de duas partes: o conhecimento de Deus e de nós mesmos. Mas como eles são ligados por muitos vínculos, não é fácil determinar qual dos dois antecede e dá surgimento ao outro. Pois, em primeiro lugar, nenhum homem pode se examinar sem logo voltar seus pensamentos para Deus em quem ele vive e se move; porque é perfeitamente óbvio que os dons que possuímos não têm possibilidade de ser de nós mesmos, não é assim; é que nosso ser em si nada mais é do que uma subsistência somente em Deus.4
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Mais tarde Calvino volta sua atenção ao outro lado da moeda: Por outro lado é evidente que o homem nunca alcança um verdadeiro autoconhecimento até que antes ele tenha contemplado a face de Deus e descido depois de tal contemplação para olhar a si próprio... Enquanto nâo olhamos para além da terra, estamos bem satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria e virtude; nós nos dirigimos a nós mesmos com os termos mais lisonjeiros e parecemos apenas menores do que semideuses. Mas se começarmos apenas uma vez a levantar nossos pensamentos a Deus e refletir no tipo de ser que ele é, e em quanto é absoluta aperfeição dessa retidão, e sabedoria, e virtude, à qual, como padrão, somos constrangidos a ser conformados, o que antes nos deleitava por sua mostra falsa de retidão se tomará poluído com a maior iniqüidade;0 que antes se impunha estranhamente sobre nós sob o nome de sabedoria nos aborrecerá pela sua extrema doidice; e o que apresentava a aparência de energia virtuosa será condenado como a mais miserável impotência. Tão distantes estão aquelas qualidades em nós que parecem as mais perfeitas de corresponder à divina pureza.5
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e u s é auto
- su
fi ci e n t e
A teologia reformada dá grande ênfase à auto-suficiência de Deus. Essa característica é relacionada à asseidade de Deus, a idéia que Deus e somente Deus é o fundamento e causa de seu próprio ser. Ele não deriva seu ser de nada fora de si mesmo. Ele é auto-existente./Em linguagem popular muitas vezes nos referimos a Deus como sendo o ser supremo e a nós mesmos como seres humanos. A palavra ser aparece em ambas as designações. Poderíamos concluir que a diferença fundamental entre Deus e nós se encontra nos adjetivos supremo e humano. Em um sentido isto é correto. Mas esses adjetivos apontam a diferença entre 0 ser de Deus e 0 ser do homem. Deus e somente Deus é puro ser. Ele é quem ele é, o Yahweh do Antigo Testamento. Nosso ser, em contraste, é derivado, dependente e conti ngente . N ós d ependemos do poder do ser de D eus para existir ou sim plesmente para “ser”. Em uma frase, somos criaturas. Por definição uma criatura deve sua existência à outra. Uma de minhas anedotas favoritas a respeito da auto-existência de
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Deus é a conversa entre duas crianças. A primeira pergunta: “De onde vêm as árvores?” A segunda responde: “Deus fez as árvores”. “De onde nós viemos?” “Deus nos fez.” “E então”, pergunta a primeira criança, “de onde Deus veio?” Imediatamen te a out ra responde: “Deus fez a ele me smo ”. As primeiras duas respostas da segunda criança foram ótimas. Foi sua terceira resposta que a colocou em apuros. Deus não se fez. Nem Deus pode se fazer porque isso exigiria que ele estivesse lá para fazer aquilo. O próprio ponto da asseidade é que Deus não é feito. Ele não tem nenhuma causa anterior. Porque tem asseidade, auto-existência, Deus é eterno. Nunca houve um tempo quando ele não existia. Ele tem o próprio poder de ser dentro de si. Ele não só tem ser, ele é ser. Uma confissão reformada, A Confissão de Fé de Westminster, diz sobre Deus: “Deus tem toda a vida, glória, bondade, bem-aventurança, em e de si mesmo; e ele é só em e para si mesmo todo suficiente, não dependendo de quaisquer criaturas que ele tem feito, nem derivando qualquer glória dele s, mas s ó manifesta ndo sua própria glória em, por, a, e sobre eles. Ele é a fonte única de todo ser, de quem, através de quem, e a quem são todas as coisas, e tem o mais soberano domínio sobre eles, para fazer por eles, para eles, ou neles qualquer coisa que lhe agrada”.6
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e u s é santo
A teologia reformada atribui grande importância ao Antigo Testamento e sua relevância à vida cristã. Um dos grandes valores do Antigo Testamento é sua rica revelação do caráter de Deus. Como a teologia reformada coloca muita ênfase na doutrina de Deus, não surpreende que ela dê tanta atenção ao Antigo Testamento. É claro que toda a Escritura nos revela o caráter divino. Mas o Antigo Testamento fornece um retrato vivo da majes ta de e santidad e de Deu s. A santidade de Deu s se refere a duas idéias distintas, porém relacionadas. Primeiro o termo santo chama atenção à qualidade “diversa” de Deus, o sentido no qual ele é diferente de e mais alto que nós. Chama atenção à sua grandeza e sua glória transcendentes. O segundo sentido de santidade
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tem a ver com a pureza de Deus. A perfeição de sua justiça é demonstrada em sua santidade. Percorrendo as obras dos grandes teólogos - como Agostinho, Tomás de Aquino, Martinho Lutero, João Calvino, John Owen e Jonathan Edwards vemos que há nelas o grande tema da majestade de Deus. Esses homens ficaram extasiados diante de sua santidade. Essa postura de reverência e adoração é encontrada ao longo de todas as páginas da própria Bíblia. Calvino escreve: Daí esse temor e admiração que, como a Escritura conta uniformemente, homens santos foram atingidos e desarmados sempre que viam a presença de Deus. Quando vemos aqueles que antes se postavam firmes e seguros tremen0 medo da morte os prende, não que eles são de certo do de tanto terror que modo engolidos e aniquilados, a inferência a ser tirada é que homens nunca são devidamente tocados e impressionados com uma convicção de sua insignificância, até que tenham se contrastado com a majestade de Deus. Exempios freqüentes desse temor ocorrem tanto no livro de Juizes como nos escritos proféticos [Jz 13.22; Is 6.5; Ez 1.28; 3.14; Jó 9.4; Gn 18.27; IRe 19.18]; tanto assim, que era expressão comum entre o povo de Deus: “Morreremos, pois vimos o Senhor”.7 Não conheço nenhuma afirmação breve que capte tão bem a importância central para a teologia da doutrina de Deus. Diz-se que a paixão impulsionadora da teologia e obra de Calvino na igreja foi libertar a igreja de todas as formas de idolatria. Calvino entendia que a idolatria não é limitada a formas grosseiras ou primitivas como aquelas encontradas em religiões animistas ou totêmicas. Ele reconhecia que a idolatria pode se tomar sutil e sofisticada. A própria essência da idolatria envolve a distorção do caráter de Deus. Como Paulo declarou aos romanos, idolatria consiste em trocar a glória de Deu s por uma mentira, eleva nd o a criatura e d esab onand o o Criador. Paulo diz: “Inculcando se por sábios, tomaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível - bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois ele s mudaram a verdade de Deu s
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em mentira, e servindo a criatura bendito eternadorando amente. Am ém !” (Rm 1.22-25). em lugar do Criador, o qual é Chamando o coração humano de fábrica de ídolos (fabricum idolarum), Calvino frisou que a propensão pela idolatria é profundamente arraigada no coração da humanidade pecadora. A troca da verdade sobre Deus por uma mentira ocorre em toda distorção do caráter de Deus que rasteja (ou ta lvez entra de investida) na nossa teologi a. É c oisa para ser zelosamente evitada. Calvino escreve: Luzente, no entanto, é a manifestação que Deus dá tanto de si como de seu reino imortal no espelho de suas obras, tão grande é nossa estupidez, tão embotados somos nós com respeito a essas manifestações brilhosas, que não retiramos nenhum benefício delas... mas somos todos semelhantes nisso, que substituímos ficções monstruosas pelo Deus único, vivo e verdadeiro ... quase todo homem tem tido seu próprio deus. As trevas da ignorância foram acrescentadas presunção e libertinagem, e por isso dificilmente existe um indivíduo que seja encontrado sem algum ídolo ou fantasma como substituto pela deidade. Como água jorrando de uma fonte grande e copiosa, multidões imensas de deuses têm saído da mente humana, cada homem se dando plena licença e projetando alguma forma peculiar de divindade, para corresponder a seus próprios pontos de vista.8 Os cristãos são chamados para pregar, ensinar e crer em todo o conselho de Deus. Qualquer distorção do caráter de Deus envenena o restante da nossa teologia. A forma extrema da idolatria é o humanismo, que vê o hom em co mo a medida de todas as coisas. O homem é a preocupação primária, o enfoque central, o tema dominante de todas as formas de humanismo. Sua influência é tão forte e pervagante que ela busca infiltrar a teologia cristã em cada detalhe. Somente por uma atenção e devoção rigorosas à doutrina bíblica de Deus é que seremos capazes de nos deter de provar e até engolir essa calda nociva .
Baseada somente na Palavra de Deus
U
A não ser que eu seja conv encido pela E scritura Sagrada ou por x \ r a z ã o evident e, nã o me retratarei. Mi nha co nsciência é cativa
pela Palavra de Deus e agir contra a consciência não é direito nem seguro.” Essas palavras imortais foram pronunciadas por Martinho Lutero na Dieta de Worms. Ele estava sendo julgado pela vida diante de autoridades tanto da igreja como do Estado, acusado por heresia séria. Quando recebeu a ordem para se retratar, a voltar atrás em sua doutrina de justificação pela fé, ele insistiu que sua doutrina era baseada na Bíblia. Em debates anteriores com influentes teólogo s católico-rom anos, Lutero fo ra pressionado a admitir que achava possível tanto 0 papa como os concílios da igreja errarem. Historiadores freqüentemente têm explicado a Reforma protestante descrevendo sua causa material e sua causa formal. Sua causa material era a disputa sobre a doutrina da justificação somente pela fé(sola fide ), sua causa formal, a disputa sobre a autoridade da Bíblia(sola Scriptura).
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Baseada somente na Palavra de Deus
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Tabela — 2.1 A Segunda Pedra do Alicerce 1. 2. 3. 4. 5.
Centrada em Deus Baseada somente na Palavra de Deus Comprometida somente com a fé Dedicada a Jesus Cristo Estruturada por três a lianças
O princípio de sola Scriptura espreitava no pano de fundo durante todo o debate sobre justificação. A recusa de Lutero de se retratar em Worms trouxe isto ao primeiro plano. Desse ponto em diante,sola Script u ra se tomou um grito de guerra para protestantes. O termo sola Scriptura simplesmente quer dizer “somente pela Escritura”. Essa frase declarava a idéia de que só a Bíblia tem autoridade de obrigar as consciências dos crentes. Os protestantes reconheciam outras formas de autoridade, como cargos da igreja, magistrados civis, credos e confissões eclesiásticas. Mas viam essas autoridades como sendo derivadas de e subordinadas à autoridade de Deus. Nenhuma dessas autoridades menores era considerada absoluta, porque todas elas eram capazes de erro. Somente Deus é infalível. Autoridades falíveis não podem constranger a consciência de modo absoluto; este direito é reservado somente a Deus e à sua Palavra. Um mal-entendido comum é dizer que os reformadores criam na autoridade infalível da Escritura enquanto que a Igreja Católica Romana cria somente na autoridade infalível da igreja e sua tradição. E uma distorção da controvérsia. No tempo da Reforma ambas as partes reconheciam a autoridade infalível da Bíblia. A dúvida era esta: “É a Bíblia a única fonte infalível de revelação especial?” Os católicos romanos ensinavam que há duas fontes de revelação especial infalível, a Escritura e a tradição. Visto que atribuíam essa autoridade à tradição da igreja, eles não permitiam ninguém que interpretasse a Bíblia de um modo que fosse contrário a essaa tradição. Foi precisamente isto que Lutero fez, o que levou à sua excomunhão e à condenação de sua doutrina. Os reformadores concordaram que há duas espécies de revelação divina: geral e especial. Revelação geral, por vezes chamada derevelação
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natural , refere-se à revelação de Deus de si mesmo na natureza. O apóstolo Paulo declara isso em Romanos: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto 0 que de Deus se pode conhecer é manifesto ent re ele s, porque Deus lhes man ifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim 0 seu etemo poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, in desculp áveis” (Rm 1.18-20). Como vimos, essa revelação é chamada “geral” tanto por causa de seu público como de seu conteúdo. Tod as as pesso as rece bem a revelação de Deus na natureza, mas nem todas têm lido a Escritura (revelação especial) nem sido expostas ao seu ensino. A revelação geral não revela a história da redenção nem a pessoa e obra de Cristo; a revelação especial sim. Embora os ref ormadores distinguissem entre revela ção geral e esp eciai, eles insistiam em que há uma só fonte escrita de revelação especial, a Bíblia. Isto é a sola de sola Scriptura. A razão principal da palavra só é a convicção de que a Bíblia é inspirada por Deus, enquanto que os credos e pronunciamentos da igreja são obras de homens. Essas obras menores podem ser corretas e brilhantemente concebidas, captando os melhores discemimentos de estudiosos, mas não são a inspirada Palavra de Deus.
A IN SPI RAÇ ÃO DA S ESCRITUR AS
Os reformadores mantinham uma visão alta da inspiração da Bíblia. A Bíblia é a Palavra de Deus, o verbum Dei, ou a voz de Deus, a vox Dei. Por exemplo, João Calvino escreve: Quando aquilo que professa ser a Palavra de Deus é reconhecido ser isso, nenhuma pessoa, a nào ser que seja desprovida de juízo comum e sentimentos de homem, terá a audácia desesperada de recusar dar crédito a quem fala. Mas visto que respostas diárias não são dadas do céu, e as Escrituras são os únicos registros em que Deus se agradou consignar sua verdade para lembrança perpétua, a plena autoridade que deveriam possuir com os fiéis não é reconhecida, a não ser que se creia que vieram do céu, tão diretamente como se Deus tivesse sido ouvido pronunciando-as para eles.1
Baseada somente na Palavra de Deus
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“Como se” não significa que Calvino cria que a Bíblia tivesse caído do céu diretamente ou que Deus mesmo escreveu as palavras nas páginas da Escritura. Em ve z d isso “com o s e” se refere ao peso da autoridade divina que está presente nas Escrituras. Essa autoridade está enraizada e fundamentada no fato de que a Escritura foi srcinalmente dada sob inspiração divina. Essa reivindicação está de acordo com a reivindicação de autoridade da própria Bíblia: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensi no , para a repreensão, para a correção, para a educaçã o na just iça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). A declaração de Paulo da inspiração da Escritura faz referência à
theopneust traduzida sua srcem. usa a apalavra que significa “respirada por Deus5’.Ele Embora palavragrega seja usualmente “inspirada”, que significa “respirar para dentro”, tecnicamente theopneust se refere a respirar para fora, que poderia mais acertadamente ser traduzida “expirada”. Paulo está dizendo que a Escritura é “expirada” ou “respirada para fora” por Deus. Essa não é uma mera insignificância. E óbvio que para a inspiração acontecer precisa haver primeiro uma expiração. Uma expiração preci sa preceder uma inspiração. O ponto é que a obra da divina inspiração é realizada por uma divina expiração. Visto que Paulo diz que a Escritura é expirada por Deus, a srcem ou fonte da Escritura precisa ser o próprio Deus. Quando Calvino e outros falam da inspiração da Escritura, eles se referem ao modo como Deus capacitou os autores humanos da Escritura a atuar, de m odo que escreveram cada palavra sob superintendência divina. A doutrina da inspiração declara que Deus capacitou o s escritores humanos da Escritura a serem agentes de divina revelação, para que 0 que escreveram não fosse só escrita deles, mas, em um sentido mais alto, a própria Palavra de Deus. A srcem do conteúdo da Escritura é encontrada, em última análise, em Deus. Muito debate tem ocorrido a respeito do modo ou método exato dessa inspiração divina. Alguns têm defendido uma inspiração mecânica ou ditada, reduzindo os autores humanos a máquinas robóticas ou estenógrafos passivos que meramente registram as palavras ditadas a eles por Deus. Mas as Escrituras em si não fazem essa reivindicação. O modo ou maneira exata da divina inspiração não é explicado nos mínimos detalhes. O ponto crucial da reivindicação bíblica à autoridade é que Deus é a fonte
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que inspirou sua palavra. Fica claro, pelo estudo da própria Bíblia, que os estilos individuais dos autores permanecem intactos. A inspiração da Bíblia se refere então à divina superintendência da Escritura, preservando-a da intrusão de erro humano. Refere-se à preservação de Deus de sua Palavra pelas palavras de autores humanos.
A INF ALI BIL IDADE DA S ESCR ITUR AS
Os reformadores estavam convencidos de que a Bíblia, por ter sua srcem em Deus e ser dirigida pela inspiração dele, é infalível. Infalibilidade se refere à sua indefectibilidade, ou à impossibilidade de ela estar em erro. Aquilo que é infalível é incapaz de falir. Nós atribuímos infalibilidade a Deus e sua obra por causa de sua natureza e caráter. Com respeito à natureza de Deus ele é considerado onisciente. Com respeito a seu caráter, ele é considerado santo e inteiramente justo. Teoricamente podemos conceber um ser que é justo, mas limitado em seu conhecimento. Tal ser poderia cometer erros em suas falas, não por causa de um desejo de enganar ou ludibriar, mas em razão de sua falta de conhecimento. Cometeria erros honestos. Em termos humanos nós entendemos que pessoas podem fazer afirmações falsas sem contar uma ment ira. A diferença entre uma mentira e um simples erro está no nível da intenção. Por outro lado, podemos conceber um ser que seja onisciente, mas mau. Esse ser não poderia cometer um erro por causa da falta de conhecimento, mas poderia dizer uma mentira. Isso claramente envolveria intenção má ou maldosa. Visto, porém, que Deus é tanto onisciente como moralmente perfeito, ele é incapaz de dizer uma mentira ou cometer um erro. Quando dizemos que a Bíblia é infalível em sua srcem, estamos meramente atribuindo sua srcem a um Deus que é infalível. Isto não é dizer que os escritores bíblicos foram intrinsecamente ou em si infalíveis. Foram seres humanos que, como outros humanos, provaram o axioma errare humanum est, “errar é humano”. É precisamente porque os humanos são dados a erro que, para a Bíblia ser a Palavra de D eu s, seu s autores human os necessitaram de ajuda em sua tarefa. E levantada nos nossos dias a questão da inspiração da Escritura. Nesse ponto alguns teólogos têm procurado (como diz a expressão em inglês) “comer seu bolo e ainda tê-lo”. Afirmam a inspiração da Bíblia,
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enquanto, ao mesmo negam sua infalibilidade. a Bíblia, apesar de sua tempo, inspiração divina, ainda erra. A Argumentam idéia de erro que divinamente inspirado é uma das que fazem engasgar. Recuamos horrorizados da noç ão de que D eus inspira erro. Inspirar erro exigiria ou que Deus não fo sse onisciente ou que ele fosse mau. Talvez o que esteja em vista na idéia de erro inspirado é que a inspiração, embora procedendo de um Deus bom e onisciente, simplesmente é ineficaz para a tarefa em mãos. Isto é, deixa de realizar o seu propósito intencionado. Nesse caso outro atributo de Deus, sua onipotência, é negociado a ponto de sumir. Talvez Deus simplesmente seja incapaz de superintender a tendência humana de errar dos autores humanos. Certamente faria mais sentido negar a inspiração completamente do que ligar inspiração com erro. Na verdade, a maioria dos críticos da infalibilidade da Bíblia leva seus machados à raiz da árvore e rejeita a inspiração completamente. Essa parece ser uma abordagem mais honesta e lógica. Evita a impiedade de negar atributos fundamentais ao próprio Deus. Vamos examinar rapidamente uma fórmula que tem tido alguma aceitação em nossos dias: “A Bíblia é a Palavra de Deus, que erra”. Ora, vamos cancelar algumas destas palavras. Apague “A Bíblia é”, de modo que se leia a fórmula: “A Palavra de Deus, que erra”. Agora apague “A Palavra de” e “que”. O resultado é “Deus erra”. Dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus que erra é claramente se acomodar à fala dupla ímpia. Se é a Palavra de Deus, ela não erra. Se erra, não é a Palavra de Deus. Certamente podemo s ter uma palavra sobre Deus que erra, mas não podemos ter uma palavra que erra vinda de Deus. Que a Escritura tem sua srcem em Deus é reivindicado repetidamente pela Bíblia. Um exemplo já notado se encontra na Epístola aos Romanos, de Paulo. Paulo se identifica como sendo “servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus” (Rm 1.1). Na frase “o evangelho de Deus” a palavra de é um genitivo indicando posse. Paulo está falando não meramente de um evangelho que é a respeito de Deus, mas de um evangelho pertencente a Deus. É posse de Deus e vem dele. Resumindo, Paulo está declarando que o evangelho que ele prega não vem dos homens ou de invenção humana; é dado por revelação divina. A controvérsia toda sobre a inspiração e infalibilidade da Bíblia é fundamentalmente uma controvérsia sobre revelação sobrenatural. A teologia reformada é entregue ao Cristianismo como uma fé revelada, uma fé que tem
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base, nã o em discer nimento humano , mas em informação que vem a nós do próprio Deus.
A INE RRÂNC IA DA ESCRITU RA
Além de afirmar a infalibilidade da Bíblia, a teologia reformada descreve a Bíblia como inerrante. Infalibilidade quer dizer que algo não pod e errar, enquanto que inerrância significa que ela não erra. Infalibilidade descreve capacidade ou potencial. Descreve algo que não pode acontecer. Inerrância descreve realidade, fato. Por exemplo, eu poderia ter 100% de acertos num teste de ortografia. Nessa experiência limitada eu fui “inerrante”; não cometi nenhum erro no teste. Isso não garantiria a conclusão de que eu, portanto, sou infalível. Seres humanos falhos nem sempre erram. Na realidade, por vezes, erram porque não são infalíveis. Uma pessoa infalível nunca erraria, simplesmente porque infalibilidade em si impede a possibilidade de erro. Em nossos dias alguns estudiosos têm afirmado que a Bíblia é infalível mas não inerrante. Isso cria uma confusão que não é pequena. Como vimos, infalível é a mais forte das duas palavras. Por que então esses estudiosos têm preferido a palavra infalível ? A resposta provavelmente está localizada em algum lugar no campo emot ivo. O termo inerrância faz franzir a testa em certos círculos acadêmicos. Está carregado de bagagem pejorativa. O termo é muitas vezes associado a tipos de fundamentalismo nãosofisticados e de pouca erudição. Por outro lado, o termo infalibilidade tem um histórico de respeitabilidade acadêmica, particularmente na erudição católico-romana. As pessoas podem até rejeitar a visão católic o-romana de inf alibilidade, mas não a i dentificam com teo logi a atrasada, primitiva. Os jesuítas, por exemplo, não sofrem de uma reputação de erudição nãosofisticada. Para escapar da culpa pela associação com meios antiintelectuais, alguns têm recuado do termo inerrância e se refugiado no termo infalibilidade. Se o processo de infalibilidade é redefinido para significar algo menos do que inerrância, no entanto, então a mudança em nomenclatura é um subterfugio desonesto. Embora tanto inerrância quanto infalibilidade tenham sido integrais para a teologia reformada histórica, a controvérsia moderna sobre a confiabilidade da Bíblia tem levado outros a argumentar que o conceito de iner-
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rância não srcem foi defendido mas ao contrário, teve com teópelos logo sreformadores esc olástic os oumagistrais, raciona lista s doque, século 17. Embora possa ser exato dizer que o termo inerrância ficou na moda mais tarde, não é de modo nenhum correto declarar que0 conceito está ausente das obras dos reformadores do século 16. Notemos algumas observações de Martinho Lutero: O próprio Espírito Santo e Deus, o Criador de todas as coisas, é o autor deste livro.2 A Escritura, embora também escrita por homens, não é de homens nem vinda de homens, e sim de Deus.3 Aquele que não quer ler essashistórias em vãoprecisa manter firmemente que a Santa Escritura não é sabedoria humana, mas sim divina.4 A Palavra precisa ficar em pé, pois Deus não pode mentir; e o céu e a terra têm de cair em ruínas antes que a mais insignificante letra ou til de sua Palavra não seja cumprida.5 Pretendemos nos gloriar em nada senão nas Escrituras Sagradas, e estamos certos de que o Espírito Santo não pode opor nem contradizer a si próprio.6 Agostinho diz na carta a Jerônimo ...: eu aprendi a me apegar somente à Escritura Sagrada inerrante.7 Nos livros de Agostinho se encontram muitas passagens em que carne e sangue têm falado. E com respeito a mim mesmo preciso também confessar que quando falo à parte do ministério, em casa, à mesa, ou em outra parte, falo muitas palavras que não são a Palavra de Deus. E por isso que Agostinho, em carta aJerônimo, colocou um axioma fino - que só a Escritura Sagrada é para ser considerada nerr i ante.8 E claro que o conceito de inerrância não foi uma invenção tardia. E atestado na Antigüidade, não só em homens como Agostinho, mas em Irineu também. Lutero cita o parecer de Agostinho com manifesta apro-
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vação. A mesma aprovação é encontrada em profusão nos escritos de João Calvino. Claramente a inerrância e infalibilidade não se estendem a cópias ou traduções da Escritura. A teologia reformada restringe inerrância aos manuscritos srcinais da Bíblia, ou às autographa. A s autographa, as obras srcinais dos escritores da Escritura, não estão diretamente disponíveis a nós hoje. Por essa razão muitos ridicularizam a doutrina da inerrância, dizendo que é um ponto discutível, visto que não pode ser verificado nem falsificado sem acesso aos manuscritos srcinais. Essa crítica deixa escapar 0 ponto completamente. Nós não defendemos nenhuma causa a favor da inspiração de copistas ou tradutores. A revelação srcinal é a preocupação principal da doutrina da inerrância. Embora não tenhamos os autógrafos em si, podemos reconstruí-los com admirável correção. A ciência da crítica textual demonstra que0 texto existente é notavelmente puro e sobremaneira confiável. Suponha-se que a régua normativa guardada no Birô Nacional de Padrões fosse sumir num incêndio. Não poderíamos mais ser capazes de determinar a distância de um metro com precisão? Com a multidão de cópias existentes, poderíamos reconstruir com quase perfeita pre cisão o metro srcinal. Restringir a inerrância aos documentos srcinais é chamar atenção à fonte da revelação bíblica, aos agentes que foram inspirados por Deus para receber a sua revelação e registrá-la. A teologia reformada não defende nenhuma causa pela infalibilidade de traduções. Nós, que lemos, interpretamos ou traduzimos a Bíblia, somos falíveis. A Igreja Católica Romana acrescenta outro elemento de infalibilidade reivindicando-o para a interpretação da igreja da Escritura, especialmente quando 0 papa fala ex cathedra (a partir “da cadeira” de São Pedro). Ainda que isso acrescente uma segunda camada de infalibilidade, oçãocatólico individual é deixado a interpretar a interpretainfalívelromano da Bíblia infalívelainda falivelmente. Enquanto que protestantes são enfrentados com uma falível interpretação da interpretação falível da igreja da Bíblia infalível, os católicos assumem um nível duplo de infalibilidade. O que a infalibilidade da Bíblia significa para o cristão mediano que está buscando ser guiado pela Escritura? Se o estágio final de receber a Escritura repousa na nossa compreensão falível, por que é a infalibilidade do
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documento srcinal importante? Essa é uma pergunta prática que atinge pesadamente a vidatão cristã. Suponha-se que dois indivíduos leiam uma porção da Bíblia e não possam concordar no sentido dela. Obviamente um ou ambos entenderam mal o texto. O debate entre eles é um debate entre pessoas falíveis. Suponha-se, contudo, que o texto esteja claro e que nem um indivíduo nem outro dispute o sentido. Se um deles está convencido que o texto é a revelação infalível de Deus, então a dúvida de saber se ele deve se submeter a Deus está respondida. Se a outra pessoa está persuadida de que o texto em si (em sua transmissão srcinal) é falível, então não deve, sob nenhuma obrigação moral, ser constrangida por ele. A AUTO RID ADE D A ES CRITURA
A questão da inspiração e infalibilidade da Escritura acaba se reduzindo à questão de sua autoridade. Um famoso dito de pára-choque diz 0 seguinte: “Deus o diz. Eu o creio. Isso resolve a questão”. O que está errado com essa afirmação? Ela acrescenta um elemento que não é seguro. Sugere que o assunto de autoridade bíblica não está resolvido enquanto a pessoa não crê na Bíblia. Oslogan deveria dizer: “Deus o diz. Isso resolve a questão”. Se Deus revela algo, essa revelação tem o peso da autoridade dele. Não há nenhuma autoridade superior. Uma vez que De us abre sua boca santa, a matéria está resolvida. Isto é axiomático para a teolo gia reformada. A questão de sola Scriptura é f undamentalmente de autoridade . Aqui a autoridade suprema fica com a Bíblia, não com a igreja; com Deus, não com o homem. Isto me acertou em cheio numa discussão com um ex-colega de quarto de faculdade. Nós tínhamos perdido o contato um com o outro por vinte anos quando nos encontramos de novo numa conferência teológica, na qual eu estava falando sobre o tópico de autoridade bíblica. Depois da reunião almoçamos juntos e meu amigo me disse: “R. C., eu não creio mais naPerguntei-lhe infalibilidadenodaque Bíblia”. ele ainda acreditava de nossos dias antigos. Ele disse: “Eu ainda creio em Jesus como meu Salvador e Senhor”. Indiquei que estava contente de ouvir isso, mas passei a perguntar: “De que modo Jesus exerce seu senhorio sobre a sua vida?”
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Meu amigo, vo cê que r dizer ?” um tanto perplexo pela indagação, perguntou: “O que “Se Jesus é seu Senhor, então isso significa que ele exerce autoridade sobre você. Como você sabe como ele quer que você viva se não é pela Bíblia?” “Pelo ensino da igreja”, ele respondeu. Aqui estava um “protestante” que esqueceu 0 que estava protestando. Ele tinha dado 0 círculo completo, atirando fora 0 sola Scriptura e substituindo isso pela autoridade da igreja. Colocou a igreja acima da Escritura. Não é diferente do que ocorreu em Roma. Embora Roma não ne ga sse a autoridade infalívelreal da Escritura como o meua amigo fazia, mesmo assim ela, em um sentido e crítico, subordinava Escritura à igreja. A subordinação da Escritura foi um problema abrasador entre os reformadores. João Calvino disse: “Um erro sobremodo pernicioso tem de um modo muito generalizado preval ecido - a saber, que a Esc ritura é de importância somente até onde lhe é concedido o sufrágio (consentimento por voto) da igreja, como se a verdade eterna e inviolável de Deus pudesse depender da vontade de homens. Com grande insulto para o Espírito Santo, pergunta-se: Quem pode nos assegurar que as Escrituras procedem de Deus[?]... ”9 Calvino então lembra ao leitor que as Escrituras mesmas (Ef 2.20) declaram que a própria igreja está estabelecida sobre o fundamento dos apóstolos e profetas. Ele continu a: “Nada, portan to, pod e ser ma is absurdo do que a ficção, que 0 poder de julgar a Escritura está na igreja, e que do aceno de cabeça da igreja depende a certeza da Bíblia. Quando a igreja a recebe e lhe dá o selo de sua autoridade, ela não faz autêntico 0 que era de outro modo duvidoso e controvertido, mas sim, reconhecendo-a como a verdade de Deus, ela, como que compelida pelo dever, mostra sua reverência por meio de um pronto assen tim ent o” .10 Calvino tem em vista aqui o debate sobre o cânone da Escritura. Os 66 livros da Bíblia juntos formam o cânone da Escritura. O termo cânon, cânone, significa “vara de medir” ou “reger”. Os reformadores não reconheceram os livros do Apócrifa (escritos durante o período intertestamental) como parte do cânon. Roma incluiu o Apócrifa no cânon. Questões sobre quais livros seriam incluídos no cânon foram debatidas na igreja primitiva. Na análise final a igreja reconheceu os livros que agora compreendem o Novo Testamento.
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Visto que a igreja estava envolvid a ne sse pr ocesso, alguns têm argumentado que a Bíblia deve sua autoridade à autoridade da igreja, portanto, é subordinada à autoridade da igreja. Esse é o ponto que Calvino disputa tão vigorosamente. Ele declara que a igreja “não faz autêntico aquilo que era em caso contrário duvidoso ou controvertido”, mas reconhece-o como verdade de Deus. Calvino argumenta que há uma grande diferença entre o reconhecer a autoridade da Bíblia pela igreja e a igreja criar a autoridade da Bíblia. A igreja usou 0 termo do latim recepimus, que significa “nós recebemos”, para reconhecer que os livros da Bíblia são o que já eram em si, a Palavra de Deus. em da teorBíblia semelhante ao de Calvino, com“Não respeito à relaçãoLutero entre aescreveu autoridade e a autoridade da igreja: é a Palavra de Deus porque a igreja diz assim; mas para que a Palavra de Deus possa ser falada, portanto, é que a igreja vem a ser. A igreja não faz a Palavra, mas é feita pela Palavra”.11 Lutero prosse gue, dizendo: “A igreja não pode dar a um livro mais autoridade ou mais segurança do que ela tem em si, assim como também aprova e aceita as obras dos pais, mas com isso não os e stabe lece com o bons nem os faz melhores”.1 2 Os católicos romanos vêem o cânon como uma coleção infalível de livros infalíveis. Os protestantes 0 vêem como uma coleção falível de livros infalíveis. Roma crê que a igreja foi infalível quando determinou quais livros pertencem ao Novo Testamento. Os protestantes crêem que a igreja agiu direito e acertadamente neste processo, mas não infalivelmente. Isso não significa que a teologia reformada duvida do status canônico de livros incluídos no cânon do Novo Testamento. Alguns teólogos protestantes crêem que uma obra especial de providência divina guardou de erro a igreja neste assunto sem conceder a ela qualquer infalibilidade permanente ou inerente. A doutrina reformada desola Scriptura, então, afirma que a Bíblia é a única autoridade escrita para a fé e vida do povo de Deus. Nós respeitamos e nos submetemos à autoridade eclesiástica menor, mas não somos constrangidos porpara ela de modo absoluto comodesomos pela autoridadeque bíblica. Essa é a base o princípio da reforma indica semper reformanda, que a reforma da igreja é um processo contínuo. Somos sempre chamados a conformar cada vez mais nossa fé e prática à Palavra de Deus.
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Tabela — 2.2 O Cânone
Visão romano-católica Visão protestante
Cânon bíblico
Livros bíblicos
infa lível falí vel
infa líve is infa líve is
A INTERP RETA ÇÃO DA ESC RITU RA
Um grande legado da Reforma é o princípio de interpret ação p articular. A Reforma efetivamente pôs a Bíblia nas mãos dos leigos, da laicidade. Isso foi feito com grande preço, sendo que alguns que traduziram a Bíblia para0 vernáculo pagaram por isso com suas vidas. O direito de interpretação particular significa que todo cristão tem o direito de ler e interpretar a Bíblia para si mesmo. Isso não dá a um indivíduo o direito de interpretar mal ou distorcer a Bíblia. A Bíblia não é um nariz de cera para ser torcido e moldado para se conformar ao gosto imaginado. Com0 direito de interpretação particular vem a responsabilidade de manejar a Bíblia com cuidado e corretamente. Nem esse direito sugere que professores, comentaristas, etc. sejam desnecessários ou inúteis. Deus não dotou mestres para sua igreja em vão. A Bíblia não é para ser interpretada arbitrariamente. Regras fundamentais de interpretação devem ser seguidas a fim de evitar interpretação subjetivista ou fantástica, regras essas desenvolvidas pela ciência da hermenêutica. O termohermenêutica é etimologicamente relacionado a Hermes, um deus grego. Hermes era o mensageiro dos deuses, correspondendo ao deus romano Mercúrio. N a m itologia Mercúrio muitas ve ze s é retratado com asas nos sapatos para, com velocidade, facilitar a entrega de mensagens. A hermenêutica receita 0 processo pelo qual buscamos entender uma mensagem. A Reforma estabeleceu regras cruciais de hermenêutica para interpretar a Bíblia. Talvez a regra mais crucial ou central sejaanalogia a de fé. Essa é a regra que a Bíblia deve interpretar de si mesmaSacra ( Scriptura sui interpres). Devemos interpretar a Escritura pela Escritura. Se a Bíblia é a Palavra de Deus, então é coerente e consistente consigo mesma. Deus
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não é autor confusão. Elecontra não seoutra. contradiz. é, portanto, carmos uma de parte da Bíblia O que Não não está claro, oupara entãocoloestá obscuro em um lugar, pode ser esclarecido em outro. Devemos interpretar o obscuro à luz do claro, 0 implícito à luz do explícito, e a narrativa à luz do didático. Num contexto técnico a ciência da hermenêutica se toma bastante complexa. O estudioso da Bíblia deve aprender a reconhecer diferentes formas de literatura dentro da Escritura (análise de gênero ou estilo). Por exemplo, algumas partes da Bíblia estão na forma de narrativa histórica, enquanto outras estão na forma de poesia. A interpretação de poesia difere da interpretação de narrativa. A Bíblia usa metáfora, símile, provérbio, parábola, hipérbole, paralelismo, e muitos outros dispositivos literários que devem ser reconhecidos em qualquer obra séria de interpretação. Uma das principais realizações da Reforma é o princípio da interpretação literal da Escritura. Esse conceito tem sofrido de mal-entendido sério, tendo muitas vezes sido igualado com um literalismo ingênuo ou tedioso. O princípio real, chamadosensus literalis, é que a Bíblia deve ser interpretada de acordo com a maneira em que está escrita. Literal se refere à forma literária da Bíblia. Lutero comenta sobre isto: Nem uma conclusão nem uma figura de linguagem devem ser admitidas em qualquer ponto da Escritura a não ser que circunstâncias contextuais evidentes ou o absurdo de qualquer coisa que opera contra um artigo de fé o exija. Ao contrário, devemos, em toda parte, nos prender ao sentido simples, puro e natural das palavras. Isso combina com as regras de gramática e com o uso da linguagem(usus loquendi)que Deus deu aos homens. Pois se a toda pessoa é permitido inventar conclusões e figuras de linguagem segundo seu bel-prazer ... nada poderia com certeza ser determinado nem provado com respeito a qualquer artigo de fé específico com o qual os homens não pudessem achar defeito por meio de alguma figura de linguagem. Ao contrário, precisamos evitar como veneno mortífero toda linguagem figurativa que a própria Escritura não nos force a encontrar numa passagem.13 O princípio de interpretação literal teve intenção de colocar um fim a um método que tinha se tomado popular na Idade Média, quadriga. a Esse era um método de interpretação pelo qual quatro sentidos distintos foram
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procurados para cada texto bíblico: o literal, o moral, o alegórico e o analógico. Isso levou a excessiva alegorização e ofuscação do texto. Em contraste, sensus literalis era designado a buscar o sentido claro da Escritura e a enfocá-la em um só sentido. Embora um texto possa ter uma variedade de aplicações, ele tem somente um sentido correto. O princípio do sensus literal is é relacionado de perto ao método gramático-histórico de interpretação. Esse método enfoca o cenário histórico no qual a Escritura foi escrita e presta atenção precisa à estrutura gramatical do texto bíblico. Num sentido lato esse método significa simplesmente que a Bíblia é para ser interpretada como qualquer livro. Sua natureza revelatória não a faz dissimilar de outro livro nesse respeito. Ainda precisa ser lida como qualquer livro. Na Bíblia verbos são verbos e substantivos são substantivos. A estrutura normal de literatura se aplica. Novamente Lutero comenta: O Espírito Santo é o escritor e locutor mais claro no céu e na terra. Portanto as palavras dele não podem ter mais do que um sentido, e este o mais óbvio. A isso chamaremos de sentido literal ou natural. Mas para que as coisas pretendidas pelo sentido claro de sua Palavra clara possam também significar algo a mais e diferente, e assim uma coisa significar outra, é necessário mais do que uma questão de palavras e linguagens. Pois isto é a verdade de todas as coisas fora da Escritura, visto que todas as obras e criaturas de Deus são sinais vi vo s e palavras de Deus, co mo Agostinho e todos os mestres declararam. Mas não devemos, por isso, dizer que a Escritura ou a Palavra de Deus tem mais de um sentido.14
capitu
3
Com prometida soment e com a fé
A
doutrina da justifica ção somente pela fé (sola fide ) é a afirmação central do evangelicalismo histórico. É uma doutrina compartilhada pela teologia reformada com muitas outras denominações cristãs. Embora essa doutrina não seja exclusiva à teologia Reformada, a teologia reformada ela. eDurante a Reforma, Lutero disse que este fica é “odestituída artigo comsem o qual pelo qual a igreja seMartinho firma, sem o qual ela cai” (articulus stantis et cadentis ecclesiae ).' Se Lutero estava correto, então sua declaração se aplica não só à igreja luterana, mas a toda igreja. Lutero tinha algo a dizer a respeito da justifica ção pela fé: “Esta doutrina é a cabeça e a pedra fundamental. Somente ela gera, nutre, edifica, preserva e defende a igreja de Deus; e sem ela a igreja de Deus não pode existir nem por uma hora...”2 Em outra parte Lutero declarou: “O artigo da justificação é o mestre e príncipe, 0 senhor, 0 governador e 0 juiz sobre todos os tipos de doutrina; ele preserva e governa toda a doutrina da igreja e levanta nossa consciência diante de Deus. Sem esse artigo o mundo é todo morte e escuridão. Nenhum erro é tão baixo, tão canhestro e tão desgastado a ponto de não ser supremamente agradável à razão humana e a nos seduzir se estamos sem o conhecimento e a contemplação deste artigo”.3
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Tabela — 3.1 A Terceira Pedra do Alicerce
1. 2.
Centrada em Deus Baseada som ente na Palavra de De us
3.
Compromet ida somen te com a fé
4. 5.
Dedicada a Jesus Cristo Estruturada por três alianças
A doutrina da justificação trata daquilo que p ode ser 0 problema exis tencial profundo que um serta,humano podediaenfrentar: como pode ummais pecador , uma pessoa injus suportarjamais em algum o julga men to de um Deus santo e justo? É como o salmista colocou: “Se observares. Senhor, iniqüidades, quem. Senhor, subsistirá?” (SI 130.3). A pergunta é obviamente retórica. Nenhum de nós teria qualquer possibilidade de continuar em pé porque nenhum de nós é justo. Para uma pessoa injusta ficar em pé na presença de um Deu s justo, ela precisa primeiro ser justifi cada. A Reforma focava a pergunta:como é uma pessoa justificada? Claramente a justificação envolve um julgamento legal efetuado por Deus, uma declaração por ele que somos justos. Então as perguntas abrasadoras se tomam estas: em que base primeiro ou argumentos Deusjustos alguminerentemente dia declara qualquer pessoa justa? Precisamos nos tomar antes que Deus nos faça tal declaração? Ou ele nos declara justos antes que em nós mesmos sejamos realmente justos? João Calvino respondeu essas questões assim: Um homemé dito serjustificado à vista de Deus quando nojulgar de Deus ele é considerado justo, e é aceito por causa de sua justiça, pois como iniqüidade é abominável para Deus, assim o pecador nem pode encontrar graça aos seus olhos, até onde e enquanto ele é visto como um pecador. Portanto, onde está o pecado também estão irae a um vingança de Deus. Por oujusto, tro lado, é justif aquele, que é visto nãoa como pecador, mas como e como talicado se põe em pé absolvido diante do trono de juízo de Deus, onde todos os pecadores são condenados ... Assim nós interpretamos de modo simples a justificação, como a aceitação que Deus nos recebe para entrar no seu favor como se fôssemos justos e dizemos que essa justificação consiste no perdão de pecados e na imputaçào da justiça de Cristo.4
Comprometida ome s nte com a fé
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Nó s obsvisto ervamos palavras cruciais nessa citaçào de Calvino: considerado, comoalgumas e como se. Dizer que somos como, ou vistos como, justos aos olhos de Deus é dizer que diante dele somos considerados, julgados ou contados justos à sua vista. Isso significa, como Calvino observa, que somos tratados por Deus “como se” fôssemos justos. J ustificação
forense
A doutrina reformada da justificação é freqüentemente chamada de justificação forense. O termoforense é ouvido quase sempre em julgamentos criminais. Ouvimos falar de evidência forense e medicina forense. A palavraforense se refere a declarações jurídicas, legais. Justificação forense sign ifica que somos declarados j ustos por Deus em um sentido legal. A base dessa declaração legal é a imputaçào da justiça de Cristo a no sso favor. Lutero captou a idéia de justificação forense com sua famosa frase latina, sim ul iustus et peccator, “simultaneamente justo e pecador”. Lutero não pretendeu afirmar uma contradição. As duas afirmações, justo e pecador, fazem referência à mesma pessoa ao mesmo tempo, mas não no mesmo relacionamento. A pessoa considerada em si permanece um pecador, contudo, ao mesmo tempo, em virtude da imputaçào da justiça de Cristo, a pessoa é considerada justa à vista de Deus. Esse conceito tem sido criticado severamente pelos católicos romanos co mo envolvend o uma “ficção legal”. Alegam que põe uma sombra sobre a integridade de Deus porque ele declara uma pessoa como sendo justa quando aquela pessoa na verdade não é justa. Deus pode fazer a fieção virar fato se ela estiver envolvida numa espécie de fraude. Para Roma, Deus pode pronunciar ou declarar uma pessoa justa só se essa pessoa primeiro se tomar e for realmente justa. Qualquer coisa menos do que isso é ficção. Se Roma estivesse correta sobre esse assunto, então Lutero e os reformadores diriam que o próprio evangelho é uma ficção. Claro, se Deus fosse declarar uma pessoa justa quando aquela pessoa não possuísse nenhuma justiça, então Deus estaria implicado em fraude. Roma está certa em insistir que a pessoa justificada precisapossuir justiça. A pergunta é: como o pecador adquire a necessária justiça? Esse é o cerne da controvérsia da Reforma.
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A Igreja Católica Romana tem enfática e repetidamente condenado a antiga heresia pelagiana (embora muitos teólogos reformados tenham afirmado que Roma nunca escapou dela realmente). Pelágio negava a doutrina do pecado srcinal, afirmando que o pecado de Adão afetou só Adão e mais ninguém. Pelágio argumentava que o homem não pode se tomar justo sem a ajuda da graça divina. Ele co nced ia que graça “facil ita” o alcançar a justiç a mas não é necessária para ela ser alcançada. Nós podemos nos tomar justos sem a graça, embora ela ajude se fizermos uso dela. Condenando Pelágio, Roma insistia que não podemos nos tomar justos sem a graça. Para Roma a graça necessária para a justificação é dupla. Na primeira instância uma expiação é exigida para satisfazer as exigências da justiça punitiva de Deus. Essa expiação é feita por nós, de graça, por Cristo. Na cruz Cristo pagou a dívida exigida pe los noss os pecados. Para a medida c omp leta da obra de Cristo ser aplicada a nós, no entanto, algo mais precisa ocorrer. Para ser justific ados pr ecisam os primeiro ser tom ado s jus tos . A idéia de ser “feito” justo se ata à palavra em latim para just ific açã o, iustificare. Como então som os feito s justos? A doutrina católi ca romana de just ificação é complexa. Vamos resumir esse ponto de vista. Justificação começa com batismo, a “causa instrumental” da justificação. Por esse sacramento a graça da justiça de Cristo é infundida na alma. A pess oa batizada é limpa do pecado original e agora num estado de graça. A pesso pre cisaA cooperar com e concordar com a está graça infundida a fim de se tomara justa. graça da justificação não é permanente. Pode ser perdida através do e se come ter o pecado mortal. Roma distingue entre pecado mortal e venial. Pecado venial é pecado verdadeiro, mas menos sério. Pecado mortal é chamado mortal porque mata a graça justificadora na alma. Pecado mortal destrói graça, mas não fé. Uma pessoa pode reter a fé verdadeira e ainda não ser justificada. Quando uma pessoa comete pecado mortal e perde a graça da justificação recebida no batismo, ele ou ela pode ser restaurado(a) a um estado de justificação sacramento da penitência. Es se sacramento por Roma comopel “aosegunda prancha da justificação para aquelesé desc que rito fizeram naufrágio de suas almas”. O pecador confessa seu pecado a um sacerdote, faz um ato de contrição, recebe absolvição do sacerdote e então executa “obras de satisfação” para ser restaurado a um estado de graça. Essas obras de satisfação estão atrás da controvérsia no século 16. As obras de satisfação obtêm para o penitente mérito congruente. Mérito
Comprometida somente com a fé
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congruente é mérito condigno, tãotem valioso um Deus é obrigado anão recompensá-lo. Méritomérito côngruo raiz que na graça e nãojusto é tão virtuoso a ponto de impor uma obrigação a Deus. É, em vez disso, “congruente” ou “adequado” para Deus recompensar esse tipo de mérito. Martinho Lutero rejeitava fortemente0 conceito de mérito congruente: 0 mérito de congruência e de valor Esses argumentos dos escolásticos sobre (de merito congrui et condigni) nada são senão ficções vãs e especulações sonhadoras de pessoas desocupadas sobre coisas sem valor. Mas formam 0 fundamento do papado, que sobre eles repousa até o dia de hoje. Pois isto é o que todo monge imagina. Observando as regras sagradas de minha ordem posso merecer a graça da congruência, mas pelas obras que faço depois que recebi essa graça posso acumular um mérito tão grande que ele não só será suficiente para me levar à vida eterna como também bastante para vender e dar a outros.5
A veemência de Lutero sobre esse ponto deve ser entendida contra o pano de fundo da luta da reforma. É justo dizer que toda a tempestade de fogo foi acendida por um aspecto do sacramento de penitência. A controvérsia de indulgência que provocou as famosas 95 teses de Lutero enfocava o conceito de obras de satisfação, um conceito integral à penitência. Uma obra de satisfação que um penitente pode executar é o dar esmolas. Claro, as esmolas precisam ser dadas num espírito apropriado para ser eficazes. No século 16 Roma embarcou num projeto enorme que incluía a Basilica de S. Pedro. O papa tomou disponíveis indulgências especiais àqueles que deram esmolas para sustentar a obra. O papa tem o “poder das chaves”, que inclui 0 poder de conceder indulgências para pessoas que estão no purgatório porque lhes faltava suficiente mérito para entrar no céu. O papa pode do tesouro de mérito e aplicar às necessidades que estão tirar no purgatório. Esse tesouro incluiisso mérito reunido alidaqueles pelos santos. Os santos adquiriram não só mérito suficiente para ganhar entrada no céu, como também um excedente para outros que não ganharam. Esse excedente de mérito é alcançado fazendo obras de super-rogação, obras que estão acima e além do chamado de dever, como martírio.
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hann Tetzede l escanda Lutero pelo seunegociou m étodo crindulgência asso (não autorizadoJo por Roma) venderlizou indulgências. Tetzel com o versinho: “Cada vez que soa uma moeda no cofre, uma alma a menos no purgatório sofre” (“Every time a coin in the coffer rings, a soul from purgatory springs”). Ele dava aos campone ses a impressão de que se podia c om prar a salvação para amigos e parentes que partiram simplesmente dando esmolas, com ou sem o espírito de penitência. A essa altura em sua vida o próprio Lutero estava muito interessado ness as indulgê ncias. Ele e xpr esso u remorso porque seus pais ainda estavam vivos, impedindo-o de assegurar sua entrada no céu pela aquisição de indulgências para eles. Em vez disso deu esmolas a favor de seus avós. Quando Lutero levantou questionamentos sobre os métodos de Tetzel, começou a reavaliar o sistema inteiro de indulgências, incluindo o próprio sacramento de penitência. Ele atacou o sistema inteiro, dando atenção especial ao conceito de executar obras de mérito de qualquer espécie, quer côngruos ou condignos. Ele insistiu que o único mérito que pode valer para a justificação do pecador é 0 mérito de Cristo. Roma concordou que o mérito de Cristo é necessário para a salvação e insistiu igualmente na necessidade de graça e fé para a justificação. Muitas vezes a diferença entre a visão de justificação romana e a visão protestante é mal citada. Alguns dizem que Roma crê em justificação por mérito e protestantes crêem em justificação por fé. Roma crê em justificação pela igreja, enquanto protestantes crêem em justificação por Cristo. Afirmar as diferenças dessa maneira é distorcer radicalmente a questão e ser culpado de calúnia grossa contra Roma. A Igreja Católica Romana crê que graça, fé e Cristo são to dos ne ces sários para a justificação do pecador. São condiçõesnecessárias, mas não condições suficientes. Enquanto que a graça é necessária para justificação, ela não é 0 bastante. Mérito (pelo menos mérito congruente) precisa ser acrescentado à graça. Roma declara que a fé é necessária para a justificação. Fé é chamada o fundamento(fundamentum) e a raiz {radix) da justificação. No entanto, obras precisam ser acrescentadas à fé para a justificação ocorrer. Do mesmo modo a justiça de Cristo é necessária para a justificação. Essa justiça precisa ser infundida na alma sacramentalmente. O pecador deve cooperar com e consentir com essa justiça infundida, para que a justiça verdadeira se tome inerente no indivíduo antes que ele possa ser justificado.
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O que falta na fórmula católica romana para ajustificação é a palavra crucial sozinha. Não é exagero dizer que 0 pivô da tempestade da Reforma era esta palavrinha: só. Os reformadores insistiam que justificação é por graça somente (sola gratia ), por fé somente(sola fide) , e através de Cristo somente (soli Christo).
J ustificação
somente
po r f é
Para captar a significância plena da questão de justificação, precisamos voltar nossa atenção ao sentido da doutrina de justificação somente por fé da Reforma. Enquanto Roma mantém que a causa instrumental da just ifica ção é o batismo, os reformadores insistiram que a causa instrumental da justificação é a fé. Uma causa instrumental é o “meio pelo qual” algo acontece. Por exemplo, quando um escultor cria uma estátua, a causa instrumental da escultura é o cinzel do escultor. O cinzel é o meio pelo qual o escultor dá feitio à sua arte a partir da pedra. Em nossa justificação, a fé é 0 meio pelo qual somos ligados a Cristo e recebemos os benefícios de sua obra salvadora. Pela fé recebemos a transferência ou imputação da justiça de Cristo. Fé não é só uma condição necessária, é a condição suficiente para ajustiça de Cristo ser imputada a nós. Fé, fé verdadeira, é tudo que posse é exigid para justiça se serjustificado justiça de Cristo. Fé confia em e toma deo uma que não épela nossa. “Justificação somente por fé” é uma mera taquigrafia para encurtar “justificação somente pela justiça de Cristo”. O mérito dele, e só o mérito dele, é suficiente para satisfazer as demandas da justiça de Deus. E precisamente esse mérito que nos é dado pela fé. Cristo é a nossa justiça. Deus veste suas criaturas sujas com a capa da justiça de Cristo. Esse 0éjusto coração ou cerne do evangelho, expresso não só no Novo Testamento como também no Antigo. Precisamos possuir justiça a fim de ser justificados. A pergunta é: de quem é a justiça que nos justifica? Somos justificados por uma justiça que é inerente em nós, ou pela justiça de outra pessoa que é imputada a nós? Lutero e os reformadores insistiram que somos justificados por uma justiça que não está em nós, e sim fora de nós(extra nos). Lutero disse isto: [Um cristão] é just o e santo por uma santidade
alheia ou estrangeira a nós -
eu
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agraça chamo sim por r à instruçãoe -graça isto não é, elesão é jus to humano; pela misericórdia e de as Deus. Essaamo misericórdia algo não é alguma sorte de disposição ou qualidade no coração. É uma bênção divina dada a nós por meio do conhecimento verdadeiro do Evangelho, quando sabemos ou cremos que nosso pecado já foi perdoado pela graça e mérito de Cristo... Não é esta justiça uma justiça alheia? Ela consiste completamente da indulgência de outro e é pura dádiva de Deus, que mostra misericórdia e favor por amor a Cristo ... Um cristão não é formalmente justo; não é justo de acordo com a substância ou qualidade...6
A “justiça alheia”, da qual Lutero fala, é a justiça de Cristo. Essa justiça não adere, não se prende em nós; é ganhapara nós. Os reformadores concordaram, naturalmente, que Cristo habita no cristão e assim também o Espírito Santo. A base de nossa justificação não é esse morar em nós, mas sim 0 mérito de Cristo lavrado nele próprio, não em n ós. E a aplic açã o legal de sua justiça a nós pela qual so mos declarados jus tos . Es sa não é nenhuma ficção legal porque justiça real é imputada verdadeiramente. Não há nada fictício com respeito à justiça de Cristo. Imputação está no cerne da fé cristã. Se imputação é ficção, então a expiação é ficção. A cruz de Cristo foi real e0 castigo que ele recebeu a nosso favor foi também igualmente real. Ele foi0 Cordeiro de Deus, que carregou os nossos pecados. Como ele fez isso? Como foi simbolizado no Antigo Testamento, nossos pecados são transferidos para Cristo por imputação, não por infusão. Deus computou0 sofrimento de Cristo como satisfação digna pela nossa culpa. Nossa salvação repousa não só na morte expiatória de Cristo, como também em sua vida de obediência perfeita, ativa. Se para assegurar nossa redenção Cristo só precisasse fazer uma expia ção por nós, ele poderia ter descido do céu e ido diretamente à cruz. Mas ele também teve de cumprir toda a justiça se submetendo em cada ponto à lei de Deus. Pela sua vida sem pecado ele alcançou mérito positivo, o mérito que é imputado a todos aqueles que põem nele a sua fé. Cristo não só morreu por nós, el e viv eu por nós também. A disputa entre justificação pela infusão da justiça de Cristo e a imputação de sua justiça não é nenhuma tempestade em um copo d’água. Faz toda a diferença no mundo se a base de minha justificação fica dentro
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de mimnecessário ou é realizada mim. Cristo cumpriu por mim e ganhou mérito para para minha justificação. Esta é aa lei base não só da minha o justif icaç ão, mas também de minha certeza de salvação. Quando preciso esperar até que possa cooperar com a justiça de Cristo infundida em mim, até o grau em que me tome inerentemente justo, eu me desespero de jamais alcançar a salvação. Isso não é evangelho ou “boa-nova”; isso é má nova. Eu amo a igreja. E o corpo de Cristo. Nutre minha alma e ajuda na minha santificação. Mas a igreja não pode me redimir. Só Cristo e somente Cristo pode me salvar. Os sacramentos são preciosos para mim. Edificam e me fortalecem, mas não podem me justificar. Fé
salvadora
Quando Martinho Lutero declarou que a justificação é somente pela fé, perguntas sérias surgiram sobre a natureza da fé salvadora. Roma apelou a Tiago 2.24 para repudiar a doutrina da reforma: “Verificais que uma pessoa é justificada por obras e não por fé somente”. A primeira vista parece que a Bíblia não poderia repudiar a doutrina da justificação somente pela fé mais claramente do que isso. Depois lemos as palavras de Paulo em Romanos: “Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que Das obras? Não; pelo pela lei da fé. das Concluímos, pois, que lei? 0 homem é justificado pelacontrário, fé, independentemente obras da lei” (Rm 3.27,28). Por um lado, Tiago diz que um homem é justificado por obras e não somente pela fé. Por outro lado, Paulo diz que nós somos justificados pela fé à parte das obras da lei. O problema é exacerbado quando vemos que tanto Tiago quanto Paulo apelam a Abraão para provar seus pontos. Embora Paulo e Tiago usem a mesma palavra grega para “justificar”, não a empregam no mesmo sentido. Estão tratando de assuntos diferentes. Paulo está claramente expondo a doutrina da justificação, tomando claro que é pel a fé, não obras. Ele apela a Gênesis 15, em que Abraão é contado como justo por Deus no momento em que ele crê. Paulo argumenta que Abraão foi justificado antes que realizasse quaisquer obras de obediência. Tiago invoca Gênesis 22, em que Abraão oferece Isaque no altar. Aqu i Abraão é “justificado”, mas em outro sentido. A pergunta a que Tiago está se referindo é encontrada antes, no capítulo 2: “Meus irmãos, qual é
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0 proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso,
semelhante fé salvá-lo?” (Tg 2.14). Tiago está perguntando que espécie de fé é a fé salvadora. Ele toma claro que ninguém é justificado por uma mera profissão de fé. Toda pessoa pode dizer que tem fé. Mas dizer isso e ter isso não são a mesma coisa. Verdadeira fé sempre se manifesta em obras. Se nenhuma obra se seguir à fé, então a fé alegada é “morta” e inútil. Abraão demonstrou sua fé pelas suas obras. Ele “mostrou” que tinha verdadeira fé, assim “justificando” sua reivindicação de ter fé. A profissão de fé de Abraão é vindicada em sua demonstração de fé em Gênesis 22. Paulo argumenta que Abraão já estava justificado diante de Deus em Gênesis 15 porque tinha verdadeira fé. Abraão não precisava provar a Deus a autenticidade de sua fé. Deus é capaz de ler o coração. Nós não somos. O único modo em que eu posso ver a fé de outra pessoa é observando suas obras. João Calvin o observa: Se você quer fazer Tiago coerente com as outras Escrituras e consigo próprio, precisa dar à palavra justificar, como usada por ele, um sentido diferente daquele que tem com Paulo. No sentido de Paulo somos ditos ser justificados quando a lembrança de nossa própria injustiça é apagada e assim somos contados como sendo justos. Tivesse Tiago tido o mesmo sentido teria sido absurdo ele citar as palavras de Moisés: “Abraão creu em Deus”, etc. O contexto diz assim: “Não foi por obras que Abraão, 0 nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou. E se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”. É absurdo dizer que o efeito foi anterior à sua causa, ou Moisés declara falsamente naquela passagem que a fé que Abraão tinha foi imputada para justiça, ou Abraão, pela sua obediência em oferecer Isaque, não mereceu justiça... O que, então? Parece certo que ele está falando da manifestação, não da imputação de justiça, como se ele tivesse dito; aqueles que são justificados por fé verdadeira provam sua justificação por obediência e boas obras, não por uma nua e imaginária semelhança de fé. Em poucas palavras, ele não está discutindo o modo de justificação, e sim exigindo que a justificação de crentes seja operante. E como Paulo afirma que os homens são justificados sem o auxílio de obras, assim Tiago não permite que pessoas sejam destituídas de boas obras.7
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Em discussão aqui está a questão da fé genuína. Os reformadores ensinavam que “justificação é somente pela fé, mas não por uma fé que seja sozinha”. A verdadeira fé nunca está sozinha. Sempre se manifesta em obras. Obras que fluem de fé, no entanto, não são de modo algum a base de nossa justificação. Elas nada contribuem diante de Deus. O único fundamento ou base de nossa justificação é 0 mérito de Cristo. Nem é a própria fé uma obra meritória ou base de n ossa justificação. A fé é um dom da graça de Deus, por isso não possui nenhum mérito próprio. Co mo Tiago, Lutero se opunha ao antinomianismo. Fé salvadora não é morta. Ela é uma fé vital ou viva (fides viva). Fé viva produz obras reais. Se nenhuma obra segue à nossa profissão de fé, isto prova que nossa fé não está viva, mas é o que Calvino chamou de uma “semelhança imaginária”. O sim ul iustus et peccato r de Lutero está aberto a ser mal-entendido se a esta altura não for esclarecido. Embora sejamos justificados e contados como corretos antes de ser justos em nós mesmos e enquanto somos ainda pecadores, somos contudo pecadores que estão em processo de ser justos. Nossa santificação começa no momento em que temos fé e somos justificados. Pr ecis amo s lembrar que uma pessoa justificada é uma pessoa mudada. A pessoa que tem fé real é regenerada e habitada no interior pelo Espírito Santo. O efeito dessa mudança não é só necessário e inevitável, como imediato. Se nenhum fruto segu e, então nenhuma fé está presente. Se nenhuma fé está Para presente, então não há justificação. Roma a justificação é 0 resultado de fé mais obras. Na teologia reformada justificação é o resultado de fé somente, uma fé que sempre produz obras. O antinomia nismo ensina justificação por fé menos obras. A teologia reformada rejeita tanto a visão romana quanto a visão antinomiana. Teólogos reformados no início costumeiramente distinguiam entre vários elementos ou aspectos de fé salvadora. Na maior parte discerniam três aspectos principais conhecidos como notitia, assensus e fiducia. Notitia se refere ao conteúdo da fé salvadora. Fé tem um objetivo. Não é vazia nem é uma fé sem base. O Cristianismo rejeita o dizer: “Não importa no que vo cê crê contanto que você seja sincero”. Ainda que sinceridade seja uma virtude, é po ssív el estar sinceramente errado e co locar sua fé em algo ou alguém que não pode salvar. As pessoas podem adorar sinceramente ou ter fé em ídolos. Tal fé é repugnante para Deus e não pode salvar. Certa informação precisa ser conhecida, entendida e acreditada para se ter fé salvadora. Por exemplo, precisamos crer em Deus e na pessoa e obra de
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Jesus para sermos salvos. Estes são os dados noiae) ( da fé. Sem crença nos essenciais do Cristianismo a fé salvadora está ausente. Além desses dados ou conteúdo, a pessoa precisa também consentir mentalmente (assensus ) na verdade dessa informação. Fé salvadora dá consentimento intelectual à verdade da deidade de Cristo, expiação, ressurreição, etc. Nós não cremos naquilo que acreditamos ser um mito. Se rejeitamos as reivindicações da verdade do evangelho não podemos ser justificados. A presença tanto de notitia como de assensus ainda é insuficiente para a justificação. M esmo o diabo tem es se s el emen tos. Satanás está apercebido dos dados do evangelho e está mais certo de sua verdade do que nós estamos. Contudo ele odeia e despreza a verdade de Cristo. Ele não confiará em Cristo nem na sua justiça porque é o inimigo de Cristo. Os elementos de notitia e assensus são condições necessárias para a justificação (não podemos ser justificados sem eles) , mas não são co nd ições suficientes. Um terceiro elemento precisa estar presente antes de possuirmos a fé que justifica. Esse elemento éfiducia, uma confiança e dependência pessoais em Cristo, e só nele, para a justificação da pessoa.Fiducia também envolve as afeições. Pelo poder do Espírito Santo0 crente vê, abraça e consente na doçura e beleza de Cristo. Fé salvadora ama o objeto de nossa fé, o próprio Jesus. Esse elemento é crucial ao debate sobre justificação. Se um pecador confia em suas obras ou em uma combinação da justiça dele e daquela de Cristo, então ele não está confiando no evangelho.
J ustificação
si n t é t i ca
A doutrina reformada da justificação tem sido chamada a “justificação sintética”; a doutrina católica romana, “justificação analítica”. Uma declaração analítica é verdadeira por definição. É uma tautologia. “Um solteirão é um homem não casado” é verdade por definição ou por análise, porque a idéia de “solteirão não-casado” já está contida na palavrasolteirão. O predicado nada acrescenta além do q ue já está presente no sujeito . O mesmo é verdade da proposição “Um triângulo é uma figura de três lados” e da equação 2 + 2 = 4. Uma declaração sintética, por outro lado, acrescenta alguma infor-
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maçãoé calvo”, no predicado não está inerente no sujeito. Naosafirmação “o solteiro calvícieque é informação nova. Embora todos solteiros sejam homens não casados, nem todos os solteiros são calvos. Aqui uma idéia é acrescentada no predicado que não está presente no sujeito. Como isso se aplica à teologia? Quando dizemos que a doutrina católica romana da justificação é “analítica”, queremos dizer que Deus declara o crente justo porque, sob análise, a pessoa é justa. Deus só justifica aqueles que já foram tomados justos. Deus só declara justos aqueles que já foram tomados justos. Ele nada acrescenta à sua justiça inerente para fazê-los justo s. Claro, algo foi acrescentado, a graça infundida da justiça de Cristo. Essa adição não efetuou justiça, só a tomou possível através da cooperação do crente. Na visão reformada de justificação algo é acrescentado ao predicado que não se encontra no sujeito. Há uma “síntese” por causa da adição da justiç a de Cristo por meio de imputação. Deus não declara 0 pecador justo só porque 0 pecador, considerado em si, é justo. Deus0 considera justo por causa do que é acrescido à sua conta,0 mérito da justiça de Cristo. Ainda que a justificação seja pelafé , se considerada de outro ângulo pode ser apropriado dizer que a justificação é por obras. Em última análise ã justificação é por obras no sentido que somos justificados pelas obras de Cristo. Aqui a palavrapor tem uma referência diferente. Normalmente a palavra por se refere à causa instrumental de justificação, que é a fé. E por fé que o mérito de Cristo é apropriado para nós. Quando dizemos que somos justificados “por” obras, entãopo r se refere às obras de Cristo, a base meritória ou causa de nossa justificação. Nós podemos combinar esses dois conceitos dizendo que somos justificados por fé nas obras executadas a nosso favor por Cristo.
A
REMISSÃO DE PECADOS
A justific ação envo lve o perdão e a remissão de nossos pecados. Nós, remissãodizemos ordinariamente, de duasque maneiras. Quando um 0 câncer está tumor canceroso usamos encolhe aoupalavra desaparece, em remissão. Quando pagamos uma conta, dizemos que remetemos pagamento. A raiz da palavra remissão significa “enviar”. Derivamos as palavrasmissão ou missionário dessa raiz. (As palavrasmissiva e míssil são derivadas
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da mesma raiz.) Num sentido básico a remissão de pec ados en vol ve o mandar embora dos pecados. É uma espécie de remoção do pecado de nossa conta. Na remissão de pecados, Deus apaga nossas transgressões do “livro divino razão” e remove nossos pecados. Essa remissão é integral ao perdão divino. João Calvino diz: “... justificação por fé é reconciliação com Deus, e ... isto consiste somente na remissão de pecados ... Pois se aqueles que 0 Senhor tem reconciliado a si são avaliados por obras, eles ainda provarão ser na realidade pecadores, enquanto de veriam ser puros e livre s de pecad o. É evidente, portanto, que 0 único modo em que aqueles que Deus abraça são tomados justos é tendo suas transgressões limpadas pela remissão de pecados, para que esta justificação possa ser chamada, com poucas palavras: a remissão de pecados”.8 O apóst olo Paulo dest aca es se aspecto da justificação: ... Porque, se Abraão foi justificado por obras, tem de que se gloriar, porém não diante de Deus. Pois que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica 0 ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça. E é assim também que Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras.
Romanos 4.2-6
Nesse texto o apóstolo explica claramente como a remissão de pecados se relaciona com a imputação. Ele fala da bem-aventurança que atende esse imputar da justiça de Cristo que Deus opera para o crente. Este é o aspecto positivo de imputação. Ele também fala da bem-aventurança que leva a Deus não imputar algo, a saber o nosso pecad o. Es se é o as pecto n egativo. Em nos justificar Deus imputa algo (a justiça de Cristo) e não imputa algo (nosso pecado). Martinho Lutero faz um sumário da idéia de remissão de pecados: Um cristão é ao mesmo tempo um pecador e um santo; ele é mau e bom ao mesmo tempo. Pois até onde concerne às nossas pessoas, nós estamos em pecados e somos pecadores em nosso próprio nome. Mas Cristo nos traz
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outro nome, no qual há0 perdão de pecados, que por causa dele são remidos e perdoados. Então ambas as afirmações são verdadeiras. Há pecados, pois o velho Adão não está inteiramente morto ainda, contudo os pecados não estão ali. A razão é esta: por amor a Cristo Deus não quer vê-los. Eu até que tenho meus olhos postos neles. Eu os sinto e enxergo suficientemente bem. Mas há Cristo, mandando que me seja dito que devo me arrepender, isto é, confessar que sou um pecador e que creia que devo me arrepender, ou seja, confessar-me um pecador e crer no perdão de pecados em nome dele. Pois arrependimento, remorso e conhecimento de pecado, ainda que necessários, não são suficientes; fé no perdão de pecados no nome de Cristo precisa ser acrescentada. Mas onde há tal fé, Deus não vê mais quaisquer pecados; pois então você se põe em pé diante de Deus, não em seu próprio nome, mas sim no nome de Cristo. Ele0 adorna com graça e justiça, embora em seus próprios olhos e pessoalmente você seja um pobre pecador, cheio de fraqueza e incredulidade.9
A remissão de pecados está vinculada à obra expiatória de Cristo. Na expiação tanto a propiciação como a expiação estão envolvidas. Propiciação se refere a Cristo satisfazer a justiça de Deus, tomando “propício” Deus no s perdoa Propic iação pode Cristo ser vista comoexpiação um ato vpor ertical de Cri sto dirigido ao Pai.r.Ao mesmo tempo, é uma nossos pecados, removendo ou levando embora nossos pecados e os carregando por nós. Na cruz Cristo cumpre 0 que é simbolizado tanto pelo cordeiro que é morto nos sacrifícios do Antigo Testamento como pelo bode expiatório sobre o qual os pecados do povo são transferidos. O bode expiatório não era sacrificado, e sim mandado para dentro do deserto para levar bem longe os pecados do povo. Essa ação simbolizava a remissão de pecados.
U m só ev
ang el ho o e C risto
A contrové rsia sobre a doutrina da justificaçã o no sécu lo 16 se focava na natureza do próprio evangelho. Ambos os lados entenderam que algo essen cial ao Cris tianismo estava em jog o. A igreja precisa sempre lutar contra erros, mas essa controvérsia envolvia um artigo que é tanto central como essencial ao evangelho.
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O apóstolo Paulo freqüentemente admoestava e instruía os cristãos a não serem briguentos, inclinados a discutir, divisivos ou combativos. Ele louva as virtudes de paciência, caridade e tolerância. Contudo, quando se tratava do próprio evangelho esse mesmo apóstolo era intransigente. Ele considerava algumas coisas completamente intoleráveis, e uma é a distorção do evangelho. Ele escreveu para a igreja na Galácia: Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo para outro evangelho, 0 qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam e querem perverter 0 evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema. Porventura, procuro eu, agora, o favor dos homens ou o de Deus? Ou procuro agradar a homens? Se agradasse ainda a homens, não seria servo de Cristo. Gálatas 1.6-10
Aqui o apóstolo emprega linguagem dura paraOcondenar a perversão do evangelho. Ele insiste que há só um evangelho. evangelho que ele trabalha em sua carta aos gálatas é o evangelho da justificação pela fé. Os judaizantes estavam corrompendo es se evan gelh o por estarem acrescen tando obras a ele. Duas vezes Paulo pronuncia uma maldição apostólica sobre essa distorção, usando a palavra grega da qual obtemos a palavra que conhecemos como anátema. No Concilio Católico Romano de Trento, no século 16, Roma condenou a doutrina reformada da justificação somente pela fé e a declarou anátema. Fizeram isso porque estavam convencidos de que a doutrina reformada era “ouOs troreformadores evangelho” , uma distorçã o do evan gelh o bíb lico. somente pela criam que ao condenar a justificação fé a comunhão romana estava de fato condenando o próprio evangelho bíblico. Se a justificação somente pela fé é mesmo o evangelho bíblico, então Roma, condenando-a, condenava a si mesma. Embora Roma tenha mantido um forte compromisso com muitas verdades essenciais da fé cristã, em Trento ela rejeitou o artigo sobre o qual a igreja se mantém ou cai, e Roma portanto caiu como igreja.
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Na Tabela 3.2 diferenças entre as doutrinas católica romana e reformada de justificação estão expostas em lista. A lista não é exaustiva, mas revela que as abordagens não são só diferentes, como também sistêmicas. O conceito inteiro de salvação, incluindo o papel desempenhado por Cristo e o papel desempenhado por nós, é diferente. As duas visões são fundamentalmente dessemelhantes e incompatíveis. Tentativas de harmonizá-las são fadadas a falhar desde o começo. Tabela — 3.2
Justificação Visão Católico-romana
Visão Reformada
Causa instrumental: batismo Justiça infundida Justiça inerente Justificação analítica Graça mais mérito Fé mais obras A jus tiça de Cristo mais a nossa Nenhuma segurança de salvação
Causa instrumental: fé Justiça imputada Justiça vinda de fora Justificação sintética Graça sozinha Fé sozinha A justiça de Cristo sozinha Segurança de salvação
A doutrina de justificação somente pela fé é relativamente fácil de captar com nossas mentes, mas para conseguir firmá-la no tutano dos nossos ossos e na nossa própria corrente sangüínea precisamos estar sempre vigilantes. É fácil esquecê-la ou permitir que sua claridade seja obscurecida. Martinho Lutero fez esta observação: Há poucos de nós que conhecemos e entendemos este artigo, e eu trato dele outra e mais outra vez porque temo grandemente que depois que tivermos colocado em nossasnão cabeças, logo esquecido e novamente desaparecerá ... repouso E na verdade podemosserá captar nem esgotar Cristo, a eterna justiça, com um sermão ou pensamento; porque para aprender a apreciá-lo é uma lição eterna que não poderemos terminar nem nesta vida nem na vida além.10
Dedicada ao profeta, sacerdote e rei
ssim como a teologia reformada compartilha um mesmo alicerce com 0 Cristianismo católico com respeito à doutrina de Deus, assim também compartilha uma fé em comum quanto à pessoa e obra de Cristo. Os grandes concílios cristológicos do quarto e quinto séculos, o Concilio de Nicéia (325) e 0 Concilio de Calcedônia (451), formam a base histórica da cristologia reformada. Nos primeiros séculos o relacionamento entre o Filho de Deus e o Deus Pai era uma questão disputada calorosamente. O monoteísmo é tão importante no Antigo Testamento que foi importante para a igreja não comprometer o monoteísmo histórico, enquanto confessando sua fé na deidade de Cristo. Sérias heresias surgiram que ameaçavam a confissão da igreja na
A
deidade de Cristo. Duas heresias principais se baseavam no conceito de monarquianismo.
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Tabela — 4.1 A Quarta Pedra do Alicerce 1. 2. 3. 4. 5.
Centrada em Deus Baseada somente na Palavra de Deus Comprometida somente com a fé Dedicada a Jesus C risto Estruturada por três alianças
O termo monarca em nossa língua descreve realeza. Originalmente, no entanto, a palavra era mais de perto ligada à sua srcem grega. A palavra monarca é um composto híbrido de um prefixo e uma raiz. O prefixo mono sign ifica “um” (uno). A raiz arch- significa “princípio” ou “chefe, governador”. Quando combinados, mono-arch ou monarca quer dizer “um só chefe ou governador”. A idéia de monarquismo, portanto, se refere a Deus como o único, um só soberano. O primeiro tipo de monarquianismo a ameaçar a igreja foi chamado de mona rquianismo modalí stico. Essa visão era ligada a uma velha forma de panteísmo que via todo o mundo ou a realidade como um modo ou nível de ser de Deus. Essa visão era popular tanto no gnosticismo como no neo-platonismo. O herético Sabellius argumentava que Cristo era de uma essência com Deus mas era um modo de ser inferior ao próprio Deus. Como os raios do sol compartilham uma essência ou substância em comum com o sol mas podem ser distinguidos do próprio sol, assim Cristo compartilha a mesma essência com Deus, mas não é Deus. Nesse esquema modalístico, tudo se pode dizer ser uma parte da essência de Deus. Seu ser “emana” do centro de seu ser puro. Quanto mais longe daquele centro a emanação está, menos puramente ela manifesta Deus. Matérias inertes como rochas estão distantes do cerne do ser divino, enquanto que anjos, demiurgos, e outros seres espirituais estão mais próximos do cerne do ser divino. Jesus é um ser espírito ou demiurgo, próximo ao cernedodoser serdivino, divino,mas da ele mesma ou mesmo ser, radiando ou emanando não éessência o ser divino. Jesus compartilha “divindade” mas não é realmente Deus. No Concilio de Antioquia em 267 a igreja rejeitou Sabellius e sua fórmula de que Jesus é homo-ousios com o Pai. Homo-ousios significa “da mesma essência, substância ou ser”, portanto Sabellius estava declarando
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que Jesus é da mesma essência de Deus, mas ele ainda era inferior a Deus em sua ordem de ser modalística. Em lugar de homo-ousios , a igreja declarou que Jesus era homoi-ousios, “de substância similar ou igual”. A igreja rejeitou 0 termo homo-ousios porque estava carregado da idéia gnóstica de modalismo.
O C
o n ci li o d e
N
ic éi a
No quarto século a igreja enfrentou uma nova heresia disfarçada em forma diferente de monarquianismo, chamada monarquianismo dinâmi co. Era “dinâmico” porque envolvia uma espécie de movimento ou mudança. Nessa visâo Jesus não era Deus eterno, e sim ele “se tomou” Deus via adoção. Essa óptica foi patrocinada pelo herético Ário, que havia sido influenciado pelos ensinos de Paulo de Samosata e Luciano de Antioquia. Ário estava zeloso por preservar o puro monoteísmo. Ele via Cristo como a criatura mais exaltada, na verdade a primeira criatura feita por Deus. Cristo foi criado primeiro e depois ele, como criatura, criou o restante do mundo. Ário apelou a textos bíblicos que se referem a Cristo como “gerado” e o “primogênito de toda a criação”. Em grego 0 termo gerado significa “ser, tomar-se ou acontecer”. Em termos biológicos, ter sido gerado é ter tido um começo no tempo. Se Cristo foi gerado, então ele deve ter tido um começo no tempo e não ser etemo. Se ele não é etemo, então não pode ser Deus. Para Ário, Jesus é preeminente e exaltad o, mas src inalme nte nã o era Deus. Ele foi adotado na divindade em virtude de sua perfeita obediência, pela qual demonstrou sua “qualidade de ser uno” com o Pai. Ele é “um” com o Pai no objetivo e missão, mas não no ser. Ário abraçou a fórmula aceita anteriormente em Antioquia, que Jesus é homoi-ousios com Deus, que ele é “como” Deus. Ário e seus seguidores foram condenados como heréticos no Concílio de Nicéia em 325. O credo Niceno declara que Jesus foi “gerado, não feito”. Aqui Jesus foi acreditado ser eternamente gerado do Pai. A palavra grega gerado (begotten em inglês) foi usada não em um sentido biológico ou qualquer sentido que implique que Cristo tivesse um começo no tempo. Em vez disso o termo gerado teve um sentido filial, chamando atenção ao relacionamento singular do Filho com 0 Pai. O Novo Testamento se refere a
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monogenês, Cristo ou unigênito do Pai, um termo que dácomo ênfaseo “único-gerado” ao relacionamento singular, uma vezo por todas, entre o Filho e 0 Pai. Uma das evoluções mais irônicas em Nicéia é a afirmação do concílio do termo homo-ousios como 0 novo teste de desempenho da ortodoxia Cristã. Nicéia declarou que Cristo era coetemo e co-substancial com o Pai, usando o termo homo-ousios. Aqui a igreja declarava que Jesus não é meramente de essência igual à do Pai, mas que ele é da mesma essência ou substância com o Pai. A primeira vista pode parecer que a igreja recuou à posição de Sabellius e caiu na antiga heresia gnóstica. Nada mais longe da verdade. Afirhomo-ousios, mando a igreja nãovez estava heresia modalística que tinha condenado em 267. Em dissoabraçando estava tão adeterminada a proclamar a deidade plena de Cristo que estava disposta a arriscar os perigos implícitos na fórmula homo-ousios. Até então a ameaça de sabellianismo havia murchado e a ameaça de arianismo estava tão premente que a igreja optou por usar um termo que um dia rejeitou, com a finalidade de deter o arianismo de vez. A doutrina da Trindade estava em jogo. Com a fórmula dohomoousios a igreja afirmava claramente tanto a Trindade como a unidade da Divindade. O concilio afirmava que 0 Pai, 0 Filho e 0 Espírito Santo eram coetemos e co-essenciais.
O C
on ci li o d e
C
alcedônia
Já no quinto século a igreja teve de enfrentar uma nova ameaça. O Co nc ilio de C alced ônia t eve de lutar contra heresia em duas frentes. A plena deidade e humanidade de Cristo estavam sendo contestadas tanto por Eutico quanto por Nestório. Êutico desenvolveu 0 que é chamado de a heresia monofisita. O termo grego monophysite vem de monophysis, que quer dizer “uma natureza ou substância”. Êutico argumentava que Cristo é uma pessoa com uma natureza. Ele atacou a idéia de que Jesus é uma pessoa com duas naturezas, uma divina e outra humana. Para Êutico Jesus não tinha nem uma natureza puramente divina nem uma natureza puramente humana, mas uma só natureza teantrópica, uma que pode ser vista como sendo ou uma natureza divina humanizada ou uma
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natureza humana deificada. Era uma mistura de ambas, de deidade e humanidade. que na realidade não era nenhuma das duas.
Tabela — 4.2 Concílios Cristológicos C o n c ilio d e A n tio q u ia
C o n c i l io d e N i c é ia
Concilio de Calcedônia
Ano
267
3 25
451
Teólogo herege Teologia herege Decisão do concilio
Sabellius Monarquianismo modalístico Jesus é homoiousios com o Pai
Ario Monarquianism o dinâm ico Jesus é homoiousios com 0 Pai
Êutico, Nestório Cristologia monofisita Jesus é verdadeiramente Deus. Suas duas naturezas não podem ser misturadas, confundidas, separadas, nem divididas
Nestório, por outro lado, argumentava que só duas pessoas podem ter duas naturezas. Portanto, mantinha que Jesus é realmente duas pessoas. O que Êutico havia unido Nestório rompeu. Ele separou as duas naturezas em duas pessoas distintas. No Concilio de Calcedônia (451) a igreja declarou que Jesus era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus (vere homo, vere Deus). Suas duas naturezas não erammisturadas, confundidas, separadas, nem
divididas. quatroTnegativas estabeleceram davam contEstas ra heresias. anto a heresia mon ofisit a os de limites Êutico que co m osalvaguara heresia de separação de Nestório foram rejeitadas. O concilio acrescentou às quatro negativas uma declaração crucial que já serviu como base para muita disputa teológica desde então. Essa declaração afirma que cada natureza retém seus próprios atributos, significando que na encarnação a natureza divina de Cristo reteve todos os seus
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atributos divinos enquanto que sua natureza humana reteve os atributos da humanidade. Desde 0 quinto século todos os ramos ortodoxos do Cristianismo têm afirmado a fórmula do Concilio de Calcedônia. A teologia reformada histórica tem se apegado rigorosamente à cristologia calcedoniana. O que foi dito sobre a aplicação consistente da teologia reformada da doutrina de Deus também pode ser dito da cristologia. Reformada
versus
Luterana
Uma das grandes tragédias da Reforma foi a incapacidade dos teólogos luteranos e reformados de sustentar uma união duradoura em áreas importantes de teologia. A divisão entre Martinho Lutero e João Calvino e entre seus seguidores se focou numa discórdia com respeito à doutrina da Ceia do Senhor. Se fôssemos examinar esse debate de perto, depressa perceberíamos que na raiz isso não foi tanto um problema sacramental como um problema cristológico. Tanto Lutero como Calvino rejeitaram a visão católica romana da Ceia do Senhor, a doutrina romana detransubstanciação. Esta doutrina ensina que no milagre da missa 0 pão e o vinho são transformados sobrenaturalmente no corpo e sangue de Cristo. Essa transformação, no entanto, é singular. Não é completa porque o pão e0 vinho mudados ainda aparentam ser pão e vinho, têm o gosto de pão e vinho e cheiram como pão e vinho. Para os sentidos nenhuma mudança é aparente. Contudo, a igreja assevera que o pão e o vinho têm se tomado 0 corpo e 0 sangue de Cristo. A hóstia consagrada é guardada no tabemáculo no altar e é reconhecida pelos genuflexos dos participantes. As vezes os participantes levantam a hóstia e prestam homenagem a ela. Para explicar a dessemelhança entre aparência e realidade, Roma faz uso do conceito de transubstanciação. Com empréstimo das categorias metafísicas por Aristóteles, Roma distingue a substância uma entidade usadas e seus acidentes , as qualidades externasentre percebíveis de umdeobjeto. Essas qualidades indicam o que algo parece ser na superfície. Por baixo da superfície ou além do nível físico está a substância real da coisa, sua própria essência. Para Aristóteles os accidens de um objeto sempre fluem de sua es-
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sência, ou qualidade. Uma árvore tem fluem os rudimentos ou essenciais: os accidens de uma árvore porquesempre osaccidens da essência de árvore. Não se pode ter a substância de uma árvore e oaccidens de um elefante. A missa realmente envolve um milagre duplo. A substância do pão e do vinho é mudada na substância do corpo e sangue de Cristo enquanto que os accidens do pão e do vinho permanecem. A substância do corpo e sangue de Cristo está agora presente sem0 accidens de seu corpo e sangue, enquanto que osaccidens do pão e do vinho estão presentes sem a substância do pão e do vinho. Lutero fazia objeção por esse milagre duplo e frívolo dizendo ser ele 0 desnecessário. Ele insistia e sangue de Cristo estãoe verdadeiramente presentes, mas queque estãocorpo sobrenaturalmente em, sob, através do pão e do vinho. O pão e vinho permanecem tanto em substância como em accidens. Lutero ainda ficava com o problema que osaccidens do corpo e sangue de Cristo continuam escon did os para os sentid os. A vis ão luterana é que Cristo está presente “com” os elementos do pão e do vinho. Essa visão é muitas vezes chamada de consubstanciação, embora muitos teólogos luteranos rejeitem esse rótulo. Calvino era outro que insistia na presença real de Cristo no sacramento da Ceia do Senhor. Ao tratar com aqueles que reduziam o sacramento a
um mero símbolo (um sinal nu), Calvino insistia na presença “substancial” de Cristo. Quando debatendo com luteranos, todavia, e le evit ava, caprichava em deixar de usar o termo substancial que eles poderiam ter entendido como significando “físico”. Calvino afirmava o termo substancial quando significava “real, verdadeiro”, mas0 rejeitava quando significava “físico”. Para Calvino a questão era cristológica. Ele negava a presença física de Cristo na Ceia do Senhor, porque corpo e sangue pertencem propriamente à sua natureza humana, não à natureza divina. Para o corpo e sangue físicos de Cristo estarem presentes em mais de um lugar ao mesmo tempo, seu corpo físico precisaria estar onipresente. A Ceia do Senhor é celebrada ao mesmo tempo em muitas partes do mundo. Com o pode m o corpo f ísi co e o sangue de Jesus estarem em Genebra, Paris e Londres simultaneamente? Calvino cria que apessoa de Cristo pode estar e está onipresente. Mas sua onipresença é em sua natureza divina em que a onipresença é um atributo divino. Os reformadores acreditavam que Cristo está agora ausente de nós em seu corpo (que está no céu), mas que ele nunca está ausente de nós em sua deidade. O Novo Testamento fala da partida de Jesus, de seu “ir
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embora5’ deconosco, nós, quando ao céu, mas também declara que ele está sempre até oele fimascendeu dos tempos. Quando vimos a doutrina da incompreensibilidade de Deus, notamos 0 axioma de Calvino, Finitum non capax infinitum, “O finito não pode captar [ou conter] o infinito”. Com respeito à incompreensibilidade de Deus, capax é dado como “captar ou segurar”. Quando aplicado à encarnação de Cristo, é dado como “conter”. Calvino creu que na encarnação a segunda pessoa da Trindade assumia uma natureza humana. Sua natureza divina, embora ligada a uma natureza humana, não podia ser contida dentro dos limites finitos da última. O corpo humano de Jesus ocupava lugar e tinha limites mensuráveis. Não nos cabe pensar que na encarnação Deus desistiu de seu atributo divino de onipresença. O ser completo de Deus não estava contido dentro dos limites finitos do corpo de Jesus. Isto envolveria uma mutação radical na própria natureza de Deus. A Igreja Católica Romana tinha debatido essa questão de “ubiqüidade”. O termo ubiqüidade, um sinônimo de onipresença , é derivado do latim ubi (“onde”) e equos (“igual”). Literalmente o termo significa “o onde igual”. Parte do debate se enfocava em como a natureza humana de Jesus podia estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. A resposta era a “comunicação de atributos” (communicatio idiomata), uma doutrina afirmando que na encarnação alguns atributos divinos foram comunicados à natureza humana de Cristo. Embora a natureza humana considerada em si não seja onipresente, ela pode ser feita onipresente via a comunicação desse atributo divino. Uma idéia similar foi exposta por Tomás de Aquino com respeito ao conhecimento de Jesus. Tomás lutou contra a declaração que Jesus fez aos discípulos com respeito ao dia e à hora de sua volta. “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai” (Mc 13.32). Jesus indica que0 Pai sabe algo que ele não sabe, o dia e a hora de seu retomo. Tomás que0Jesus sabia0ia.diaAse duas a hora porque, como Filho deargumentou Deus, ele tinha atriburealmente to da onisciênc natureza s de Cristo são tão perfeitamente unidas que qualquer coisa que a natureza divina sabe a natureza humana deve saber também. Tomás explicou as palavras de Jesus a seus discípulos com sua teoria de “acomodação”. Jesus se acomodou dizendo que não sabia algo que de fato sabia, porque o conheci-
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mento era 0alto demais, ou maravilhoso demais, ou secreto demais para seus discípulos saberem. O problema evidente com a visão de Tomás de Aquino é que tem Jesus dizendo algo que não é verdade. Talvez isso poderia ser desculpado forçando 0 princípio que a verdade deve ser falada somente para aqueles a quem é devido (um princípio usado para justificar mentir para proteger pessoas inocentes numa guerra, como Raabe fez). Mas era desnecessário Jesus mentir para esconder ou guardar em sigilo0 assunto e não contá-lo para seus discípulos. Ele poderia ter simplesm ente dito que nã o era da conta deles. A explanação talvezuma tenha preservado sua visão da encamação, mas deixoudea Tomás igreja com séria dúvida sobre a integridade de Cristo. Na verdade, Tomás não concluiu que Jesus contou uma mentira pecaminosa, mas é difícil evitar esta conclusão se Jesus deliberadamente distorceu a verdade. Diferentes de Tomás, os reformadores não t inham problem a nenhum com os limites do conhecimento de Jesus com respeito à sua natureza humana. As vezes Jesus (como os profetas) demonstrava conhecimento sobrenatural. Ele certamente sempre contou a verdade. Ele era infalível, mas não onisciente. A natureza divina pode comunicar informação à natureza humana, comunicação que certamente aconteceu, mas não pode comunicar atributos. Em discussão em ambos os debates (os limites do conhecimento de Jesus com respeito à sua natureza humana, e sua presença física limitada) está a questão da encarnação como foi articulada em Calcedônia. Calcedônia buscou evitar qualquer confusão ou mistura das duas naturezas que resultasse na deificação da natureza humana ou na humanização da natureza divina. Ter o corpo físico presente em mais de um lugar ao mesmo tempo tem sabor de heresia monofisita. Indica um tipo de deificação da natureza divina. Comunicar atributos divinos à natureza humana é deificar a natureza humana. De acordo com Calcedônia, “Cada natureza retém seus próprios atributos”. Calvino entendeu isso como significando que a natureza divina fica divina em todo respeito e a natureza humana continua humana em todo respeito. Ser humano é ser limitado no tempo e no espaço. Aqueles que aceitam com satisfação a idéia da comunicação de atributos da natureza divina à natureza humana argumentam que nessa transação nada fica per-
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dido (ou não é retido) pela natureza humana, mas que algo é acrescentado a ela. A pergunta continua: como essa adição à natureza humana evita a mistura e o confundir das duas naturezas como já foi condenado por Calcedônia? João Calvino viu na visão de Martinho Lutero da Ceia do Senhor uma maneira sutil de monofisismo. Teólogos luteranos respondiam ao contrário que a rejeição de Calvino da comunicação de atributos o envolvia em nestorianismo, a separação ou divisão das duas naturezas. Calvino não tinha nenhuma intenção de separar as duas naturezas de Cristo. Ele desejava não separá-las, masdistingui-las. Quando o Novo Testamento fala de Cristo chorar, suar,divina, ou estar com ele ainda em perfeita unidade com sua natureza mas as fome, lágrimas, suor eestava fome não eram divinas; mas ele procedia assim em sua humanidade, não em sua deidade. Do mesmo modo o Deus-homem morreu na cruz, mas sua natureza divina não morreu. Se Deus tivesse expirado na cruz,0 próprio universo teria cessado de existir. Mesmo enquanto rejeitando qualquer separação das duas naturezas de Cristo, Calcedônia certamente distinguiu entre elas. Talvez a mais importante distinção que devemos fazer seja aquela entre uma distinção e uma separação. Com respeito à Ceia do Senhor, Calvino insistiu que Cristo, o Deushomem, está realmente ubíquo, verdadeira e substancialmente presente, mas el e está presente em sua natureza divina. Nem a natureza divina rompe sua unidade com a natureza humana quando está tão presente. A natureza humana de Cristo está agora no céu. Ainda está perfeitamente unida à natureza divina. Embora a natureza humana esteja restrita à sua presença local no céu, a natureza divina não está tão restringida porque ela não pode ser contida pelo finito. Imagine um copo com capacidade de oito onças (medida de peso). Pode ele conter um volume infinito de água? Não. O copo pode conter só oito onças. Naturalmente, Cristo não é um copo. Sua natureza humana tem anão plenitude de Deus habitando nele corporalmente, aquela plenitude é de modo algum contida dentro daquele vaso mas de humanidade nem limitado a ele. Calvino também não quis sugerir que na Ceia do Senhor nós podemos ter comunhão só com parte de Cristo, sua natureza divina. Quando essa natureza está presente, a pessoa de Cristo está presente. Quando nos encon-
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tramosua s com sua nadivina, tureza divina, nos encontramos comtodo ele.porque Ao comungar com natureza comungamos com o Cristo sua natureza divina ainda está unida com sua natureza humana. A lacuna espacial é atravessada como se fosse ponte, não pela natureza humana que se estica até nós, mas pelo elo da natureza divina até a natureza humana trazendo-o para entrar em comunhão conosco.
C risto
como
p r ofe ta
No século 17 A Confissão de Fé de Westminster declarou que “agradou a Deus, em seu etemo propósito, escolher e ordenar o Senhor Jesus, Seu Filho Unigênito, para ser o Mediador entre Deus e0 homem, o Profeta, Sacerdote, e Rei, 0 Cabeça e Salvador de sua igreja, o Herdeiro de todas as coisas, e Juiz do mundo: para quem ele desde toda a eternidade deu um povo, para ser sua semente, e ser por ele n o correr do tempo redimi do, cha- / mado, justificado, santificado e glorifica do” .1 Nessa curta declaração os divinos de Westminster resumiram o ofício mediatório de Cristo. Assim como Moisés foi o mediador do Antigo Pacto, ou Antigo Testamento, assim Jesus é o mediador do Novo Testamento. Um mediador é um intermediário para duas ou mais partes. Em nossa cultura costumamos pensar em mediadores comoEles sendo aqueles que são ao chamados para entrar em disputas trabalhistas. procuram um fim conflito, paz no meio de algum tipo de briga. Em poucas palavras, a tarefa principal do mediador é trazerreconciliação onde há desavença, alienação ou malquerença. O drama bíblico de redenção enfoca a reconciliação, um fim à alienação entre Deus e pessoas. O estado natural da humanidade caída é um sentimento inimigo para com Deus. Nossa rebeldia contra seu govemo divino nos coloca e m oposição a ele. N ós provocam os sua ira, e seu juí zo fica armado contra nós. Nós estamos em necessidade desesperada de reconciliação. Agradou a Deus, 0 Pai, tomar a iniciativa para acabar com essa alienação perigosa nomeando Cristo como nosso mediador. ;Embora digamos que Moisés foi o mediador da Antiga Aliança, seu trabalho de mediação não foi de reconciliação final. Seu principal trabalho mediatório foi, como porta-voz de Deus, entregar a lei ao povo de Deus quando ele os formou em nação no Sinai.
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Na verdade Moisés não foi o único mediador dessa aliança. Outros desempenharam o papel em grau menor. Havia três principais posições de mediação: a posição de profeta, a posição de sacerdote e a posição de rei. Pessoas que ocuparam essas posições eram ungidas por Deus para essas funções. A idéia de “ungir” cresce em significância na história bíblica à medida que o Antigo Testamento visava ao futuro para um que seria supremamente “O Ungido”. O título Cristo significa “um que é ungido”. Pessoas ocupando os três ofícios de profeta, sacerdote e rei eram intermediários. Eles eram escolhidos por Deus para serem representantes. O profeta representava Deus, falando ao povo por parte de Deus, mediando sua palavra ao povo. O sacerdote representava0 povo, falando a Deus por parte do povo. (A maioria das liturgias atribui ao ministro uma combinação de papéis proféticos e sacerdotais. Quando ele lê a Escritura ou prega um sermão, preenche um papel profético. Quando ora pelo povo, presta serviço num papel sacerdotal.) O ofício de rei era também mediatório. O rei não era autônomo ou supremamente soberano. Ele devia representar0 Deus ético sobre 0 povo. O rei de Israel era ele próprio sujeito à lei do rei. Ele era responsável por dar conta a Deus de como ele conduzia sua posição. O conflito freqüente no Antigo Testamento entre reis e profetas era provocado pela corrupção de reis que buscavam liberdade dos limites impostos pela lei do rei. Os profetas falavam a esses reis da parte de Deus, chamando-os a se arrependerem e se submeterem ao Rei Supremo. João Calvino desenvolveu a doutrina da Reforma da posição tríplice de Cristo, à qual a Confissão de Westminster mais tarde se referiria. Esse ofício tríplice (munus triplex) tem referência à consolidação na pessoa de Cristo dos papéis do Antigo Testamento de profeta, sacerdote e rei. Em Cristo a posição de profeta alcança seu zênite. Cristo excede 0 objeto o poder de todo profeta anterior ou posterior a ele. Ele é tanto como o sujeito da profecia bíblica. Para os profetas do Antigo Testamento, seu assunto principal era a vinda de Cristo. Eles predisseram seu nascimento, ministério e morte expiatória. Eles aguardavam a futura vinda do Messias, que seria 0 rei ungido de Deus, bem como0 Salvador de seu povo. Jesus também preenchia o papel de profeta. No seu batismo Jesus foi ungido pelo Espírito Santo. Mais tarde Deus anunciava do céu que Jesus era
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seu Filho Amado e que as pessoas deveriam ouvi-lo. Jesus falava a palavra profética de Deus, declarando que ele nada dizia de si, mas somente o que o Pai 0 havia comissionado para dizer. Jesus freqüentemente usava a mesma forma dos anúncios utilizados pelos profetas do Antigo Testamento. Oráculos proféticos, por exemplo, eram pronunciamentos divinos de bem ou mal. A acusação que Jesus denunciava escribas e fariseus era geralmente introduzida pelas palavras “ai de vós”. Seus pronunciamentos de favor e misericórdia de Deus foram introduzidos pelas palavras “Bem-aventurados” ou “Benditos” como no Sermão do de Monte. fórmulas “maldito” e “bendito” empregadas por Jesus vêm longe,Asdos oráculosdepronunciados pelos profetas do Antigo Testamento. Seu primeiro sermão registrado (Lc 4.18-21), dado em uma sinagoga, foi baseado num texto profético. Jesus leu Isaías 61.1,2, depois começou seu sermão: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir”. Jesus também se ocupou em predições proféticas, como quando predisse a destruição de Jerusalém (Mt 24.1-28). Se fôssemos analisar o conteúdo das falas proféticas de Jesus, veriamos que o grosso do material contido nelas diz respeito ao próprio Jesus. O tema principal e central de seu ensino enfoca profético, o vindouro de Deus. A maioria de suas parábolas essecontudo, assunto.éNo início de reino seu ministério terreno, Jesus ecoava a pregação de João Batista com respeito ao reino vindouro, que exigia um novo nível de arrependimento. O reino longamente esperado e predito estava agora para chegar e as pessoas estavam despreparadas para isso; estavam imundas. O escândalo do ministério de João era que ele chamava, não apenas gentios, mas também israelitas para serem batizados, indicando que Israel era imundo também. João chamava a nação para se preparar para a vinda de seu rei. Ele prestou serviço como o arauto daquele rei e anunciou sua chegada o agnus Dei, “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!”com (Jo 1.29).
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sacerdote
Além de desempenhar 0 ofício profético, Cristo também cumpriu a posição sacerdotal do Antigo Testamento. Jesus foi tanto0 sujeito como o objeto de ministério sacerdotal. O trabalho do sacerdote do Antigo Testamento se centrava principalmente em duas funções: oferecer sacrifícios e oferecer orações a favor do povo. Jesus se encarrega de ambas as tarefas em benefício das pessoas. Jesus se incumbe de ambas as tarefas e as leva ao seu zênite. Como grande sumo sacerdote, Jesus oferece um sacrifício que, por ser tão eficaz, é dado de uma vez por todas. Não é para ser repetido. Não precisa ser repetido porque é perfeito em sua eficácia. Repeti-lo seria rebaixá-lo e lançar uma que sombra sobre valor. Quando dizemos Jesusagourenta é o “ponto de seu convergência” do sacerdócio, é no sentido que ele fez ativamente uma oblação pelos pecados de seu povo. Ele ofereceu o supremo sacrifício por nossa causa. O Novo Testamento frisa a importância de se entender que Jesus fez esse sacrifício voluntariamente. Embora fosse executado pelas autoridades, eles não tinham nenhum poder sobre ele a não ser aquele que ele voluntariamente lhes concedia. Ele insistiu que ninguém tirava dele a sua vida, mas que ele a entregava por suas ovelhas. Jesus também foi o objeto da ação de sua obra sacerdotal. A oferta que ele deu não era um touro ou um cabrito, mas ele mesmo. Os sacrifícios de animais do Antigo Testamento não tinham nenhum valor intrínseco para efetuar expiação. Eram nada mais que sombras ou símbolos representando o sacrifício supremo que seria efetuado por Cristo. O sangue dele, e somente o sangue dele, não o sangue de touros e cabritos, pôde satisfazer as exigências da justiça de Deus. Foi dele o sacrifício perfeito, o sacrifício do cordeiro sem mácula. Em sua impecabilidade Jesus satisfez as qualificações exigidas por Deus para propiciação. Jesus não ofereceu seu sacrifício no templo. Seu sangue não foi aspergido sobre o propiciatório terreno. Ele não entrou no Santo dos Santos dentro de Jerusalém. Ao contrário, ele foi executado fora da cidade, coram além “diante dos confins do templo herodiano. Contudo,nodeu a sua oferta Deo, da face de Deus’’, e foi recebido santuário celestial. Ele aspergiu seu sangue na cruz, porém esse sacrifício de sangue foi recebido no Santo dos Santos celestial e foi aceito lá como a perfeita expiação por pecados.
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O que éTeologia Reformada
Que Jesus cumpriu a função de sumo sacerdote intrigou os judeus do primeiro século. Pensavam no sumo sacerdote estritamente em termos do sacerdócio levítico do Antigo Testamento. Como Jesus não era da tribo de Levi, como seria ele qualificado para o papel de sumo sacerdote? Para responder a essa pergunta o autor de Hebreus apelou para um salmo: “O Senhor jurou e não se arrependerá: ‘Tu és sacerdote para sempre, seg und o a ordem de Melquisedeque’” (SI 110.4). O autor de Hebreus conta de novo o epi sódio de Abraão se encontrando com Melquisedeque. Essa pessoa enigmática é identificada como sendo 0 sacerdote de Salém. Seu nome, Melchizedek, significa “rei de justiça”, e Salem vem da palavra hebraica para paz. Melquisedeque recebe dízimos de Abraão e pronuncia a sua bênção sobre0 patriarca. O autor de Hebreus argumenta que, segundo0 costume judeu, o menor é abençoado pelo maior e0 maior recebe dízimos do menor. Isto significa que Melquisedeque é maior do que Abraão. Então o autor lembra ao leitor que Abraão era0 pai de Isaque, que era0 pai de Jacó, que era o pai de Levi. Novamente, em termos judeus, o pai é “maior’’ do que o filho, o que faz maior Abraão do que seu bisneto Levi. Se Melquisedeque é maior do que Abraão, então se segue que Melquisedeque é maior do que Levi. Tudo isso demonstra que0 Antigo Testamento teve dois sacerdócios, e
o maior dos dois era o de Melquisedeque. Quando Deus nomeou Jesus, o grande sumo sacerdote, ele 0 fazia sacerdote, não segundo a ordem de Levi, mas sim segundo a ordem de Melquisedeque, como 0 salmista havia profetizado. No cumprir sua posição sacerdotal Jesus não só ofereceu o sacrifício expiatório supremo pelo pecado, como também intercedeu por seu povo. Um contraste estranho pode ser visto no Novo Testamento entre o destino de Judas e0 destino de Pedro. Os dois homens foram discípulos de Cristo. Ambos 0 traíram na noite antes de sua morte, e Jesus predisse ambos os atos traiçoeiros. Quando predizia a traição de Judas, Jesus simplesmente disse a ele: “O que pretendes fazer, faze-0 depressa” (Jo 13.27). Quando estava predizendo que Pedro 0 trairia, Jesus disse a Pedro: “Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres[a mim], fortalece os teus irmãos” (Lc 22.32). Não havia dúvida sobre o arrependimento e restauração futura de Pedro. Isso havia sido assegurado pela oração intercessória de Jesus a favor
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de Pedro. Judas não recebeu o mesmo benefício. Em sua oração sacerdotal Jesus disse: “Quando eu estava com eles, guardava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto 0 filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura” (Jo 17.12) “O filho da perdição” claramente faz referência a Judas. O mi nist éri o sacerdotal de intercessão de Jesus é citado pelo autor de Hebreus: “Tendo, pois, a Jesus, 0 Filho de Deus, como grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasiãoOoportuna1’ (Hb 4.14-16). ministério sacerdotal de Cristo incluiu não só a oferta de si mesmo como a oblação perfeita por nossos pecados e a expiação perfeita para fazer a satisfação da justiça divina, como também as suas orações: Assim, também Cristo a si mesmo não se glorificou para se tomar sumo sacerdote, mas o glorificou aquele que lhe disse: “Tu és meu Filho, eu hoje te gerei”; como em outro lugar tambémdiz: “Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”. Ele, Jesus, nos dias da sua carne, tendo oferecido, com forte clamor e lágrimas, orações e súplicas a quem 0 podia livrar da morte e tendo sido ouvido por causa da sua piedade, embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tomou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem, tendo sido nomeado por Deus sumo sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque. Hebreus 5.5-10
A obra intercessória de Cristo não terminou com seu ministério terreno. Continua perpetuamente no céu. Em sua ascensão Jesus foi elevado à posição de rei situado à mão direita do Pai, e ali, à destra do Pai, Jesus continua a fazer intercessão por nós diariamente. ♦
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C risto
como
r ei
Como rei, Cristo cumpre as profecias do Antigo Testamento de um reino eterno para Davi e sua semente. Em Cristo0 trono familial caído de Davi é restaurado. Na teologia reformada0 reino de Deus não foi completamente posposto para0 futuro. Embora esse reino ainda não esteja consumado, já foi inaugurado e é uma realidade presente. E a gor a in vi sível para o mundo. Mas Cristo já subiu para lá. Já teve sua coroação e investidura. Neste exato momento ele reina como Rei d os reis e Sen hor d os senhores. Jesus está entronizado à mão direita de Deus, e toda a autoridade no céu e na terra lhe foi dada. É uma realidade política profunda: que Cristo agora ocupa0 assento supremo de autoridade cósmica. Os reis deste mundo e todos os governos seculares podem ignorar esta realidade, mas não podem desfazê-la. O universo não é nenhuma democracia. E uma monarquia. Deus mesmo nomeou seu Filho amado como o rei preeminente. Jesus não governa por referendo, por plebiscito popular, e sim por direito divino. No futuro todo joelho se dobrará, ou com gosto ou a contragosto. Aqueles que se recusam a fazer isso terão os joelhos quebrados com vara de ferro. Atualmente a posição de realeza de Cristo é invisível. Nós, como cristãos, vivemos um tanto como Robin Hood e seus homens joviais da floresta de Sherwood. Robin e seus fiéis tiveram os direitos cassados pelo mau príncipe John. Mas John era um usurpador. O trono pertencia a Ricardo Coração de Leão, que estava ausente do reino enquanto esteve numa cruzada espiritual. Não queremos ir longe demais em forçar a analogia, nem queremos identificar a condição da igreja neste mundo com um mito ou lenda. Nosso rei não está visivelmente presente em seu reino, mas seu reino é real. Nenhum usurpador pode agarrá-lo de suas mãos. Nós vivemos neste mundo como proscritos, mas precisamos permanecer leais a nosso rei, que se arriscou em terra distante. Nós aguardamos sua volta em glória, buscando lhe dar realidade na sua ausência. Nossa missão é dar testemunho de seu reino, 0 que ele nos instruiu a fazer só alguns minutos antes de partir para 0 céu. João Calvino argumentou que a tarefa da igreja é fazer o reino invisível de Cristo visível. A essência do ministério de testemunho é tornar ma-
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nifest o o que está ocu lto aos olhos dos homens. No sso rei é tam bém profeta e sacerdote, cumprindo com perfeição o papel de mediador de uma Nova Aliança que foi selada por e em seu sangue.
capííu
5
Apelidada de teologia da aliança
teologia reformada foi apelidada de “teologia da aliança”, o que a distingue do dispensacionalismo. A teologia dispensacionalista srcinalmente acreditava que a chave da interpretação bíblica é “dividir corretamente” a Bíblia em sete dispensações, definidas Bíblia na de Referências Scofield srcinal como sendo sete períodos de testes na história da redenção.1 O dispensacionalismo buscava uma chave que dest rancasse a estrutura apropriada de interpretação bíblica. Todo documento escrito tem uma estrutura ou formato de acordo com 0 qual é organizado. Parágrafos têm assuntos e capítulos têm pontos focais. A teologia reformada vê a estrutura primária de revelação bíblica como sendo a do pacto. Essa é a estrutura pela qual toda a história da redenção é elaborada.
A
♦
Apelidada de teologia da aliança
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Tabela — Pedra 5.1 do Alice rce A Quinta 1
.
2. 3. 4. 5.
Centrada em Deus Baseada somente na Palavra de Deus Comprometida somente com a fé Dedicada a Jesus Cristo Estruturada por três alianças
Em meados do século 20 uma pequena monografia foi publicada por George E. Mendenhall, da Universidade de Michigan. Nessa monografia, intitulada Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East, Mendenhall escreveu sobre a surpreendente descoberta arqueológica de documentos da antiga nação hitita, contendo tratados que governavam o relacionamento entre certos reis (suseranos) e seus vassalos. Esses “tratados de suserania” revelaram uma estrutura que Mendenhall encontrou em documentos de outras nações do Oriente Médio, incluindo as Escrituras de Israel.2 Mais tarde Meredith G. Kline analisou essa estrutura do tratado abrangentemente em dois livros, Treaty o f the Great King e By Oath Consigned3 (Tratado do Grande Rei e Consignado por Juramento). Um desses antigos tratados de pacto começou com um preâmbulo, seguido de um prólogo histórico. Depois termos ou estipulações do tratado foram enumerados, com sanções anexadas. O tratado estava selado com votos e ratificado por um rito “de cortar”. Cópias do tratado foram depositadas num lugar público seguro e o tratado foi periodicamente renovado e atualizado. Vamos examinar abreviadamente como são evidentes essa estrutura e forma no Antigo Testamento. P reâmbulo
Como a Constituição dos Estados Unidos da América, tratados de pactos antigos começavam com um preâmbulo. O preâmbulo identifica o soberano do tratado. Quando dava o Decálogo a Israel, Deus disse: “Eu sou o Senhor, teu Deus...” (Êx 20.2). Deus se identificava pelo nome sagrado que ele revelara do arbusto em fogo no deserto para Moisés: “Disse Deus a
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Moisés: Έ υ So u o q u e Sou’. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: 'Eu Sou me enviou a vós outros’. Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: Ό S enhor , 0 Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, 0 Deus de Isaque e0 Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é 0 meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração”’ (Êx 3.14,15). O nome sagrado,Yahweh, em hebraico, é introduzido aqui e serve como nome pactuai de Deus. Ele é0 mesmo Deus que havia aparecido a Abraão, Isaque e Jacó e que tinha feito um pacto com eles: Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: “Eu sou S e nh o o r . Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-poderoso; mas pelo meu nome, OS e nh o r , não lhes fui conhecido. Também estabeleci a minha aliança com eles, para dar-lhes a terra de Canaã, a terra em que habitaram como peregrinos. Ainda ouvi os gemidos dos filhos de Israel, os quais os egípcios escravizam, e me lembrei da minha aliança. Êxodo 6.2-5
P rólogo
hi stó r i co
Depois do suserano ser introduzido no preâmbulo para um tratado hitita, um breve histórico do relacionamento entre ele e seus vassalos era dado, no qual os benefícios conferidos pelo suserano eram rep ass ado s. Do mesmo modo, no Antigo Testamento, quando Deus estabeleceu um pacto com seu povo ou quando os pactos eram renovados, ele mencionava suas obras anteriores no meio deles. No Sinai Deus disse: “Eu sou o S enhor , teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2). Duas coisas devem ser notadas nos preâmbulos e prólogos de pactos que Deus força faz com seu povo. tem um nome. Ele Ele não é pessoal, não uma abstrata nem Primeira, um “poderDeus superior” amorfo. é só um ser supremo, mas é também um ser pessoal que entra em relacionamento pessoal com seu povo. Segunda, ele age em beneficio de seu povo. Ele é “um Deus que ...” No Sinai ele se identifica como0 Deus que havia libertado Israel da esc rav idão no poderoso ato do êxodo do Egito. O Deus do pacto age na História e
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tem ume histórico de relacionamento com povo. eEle não é nenhum ídolo surdo mudo, mas o próprio Senhor daseu criação interage com a história humana com sua atividade redentora.
E
stipulações
e sanções
As estipulações dos antigos tratados de suserania eram os acordos entre o rei e seus vassalos. Em acordos industriais hoje, as responsabilidades do empregado são detalhadas, com as compensações e benefícios a serem providenciados pelo empregador. Tanto 0 empregado como 0 empregador têm responsabilidades a executar. O suserano hitita prometia usar seu exército para proteger seus vassalos, e os vassalos concordavam em lhe pagar dinheiro de tributo. No Antigo Testamento, as estipulações são as leis dadas por Deus para seu povo. O Decálogo, por exemplo, contém as estipulações do pacto feito no Sinai. E importante os cristãos entenderem que o contexto da lei de Deus é o do pacto. A lei de Deus não é uma lista abstrata de regras morais. Sua lei vem a nós no contexto de um pacto gracioso oferecido por um Deus gracioso. Seu povo obedecerá à lei dele porque ela define um relacionamento pessoal entre eles e Deus. Isso antecipa as palavras de Jesus a seus discípulos: “Se conosco me amais, os meus (Jo 14.15). O pacto de Deus temguardareis raiz no amor dele.mandamentos” Mostramos amor em retribuição obedecendo às estipulações ou leis de seu pacto. Quando olhamos para a lei, devemos vê-lo como seu autor e obedecê-la por causa de nosso compromisso pessoal com ele. Os tratados do Oriente Médio continham sanções duplas: benefícios eram prometidos àqueles que mantinham os termos ou estipulações do tratado, e penalidades eram prescritas para aqueles que violavam seus termos. As sanções dos pactos do Antigo Testamento eram expressas como bênçãos e maldições, como no livro de Deuteronômio: Se atentamente ouvires a voz doS enhor , teu Deus, tendo cuidado de guardar todos os seus mandamentos que hoje te ordeno, 0 S enhor , teu Deus, te exaltará sobre todas as nações da terra. Se ouvires a vozS do enhor , teu Deus, virão sobre ti e te alcançarão todas estas bênçãos: Bendito serás tu na cidade e bendito serás no campo. Bendito0 fruto do teu ventre, e o fruto da tua terra, e
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oo teu fruto dos eteus animais, e as crias das tuas e das tuas ovelhas.aoBendito cesto a tua amassadeira. Bendito serásvacas ao entrares e bendito, saíres. O Senhor fará que sejam derrotados na tua presença os inimigos que se levantarem contra ti; por um caminho, sairão contra ti, mas, por sete caminhos, fugirão da tua presença. Senhor O determinará que a bênção esteja nos teus celeiros e em tudo o que colocares a mão; e te abençoará na terra que te dá o Senhor, teu Deus. Deuteronômio 28.1 -8
Em contraste às bênçãos prometidas por obediência, maldições eram prometidas por desobediência: Será, porém, que, se não deres ouvidos teu Deus, não cuià voz do Senhor, dando em cumprir todos os seus mandamentos e os seus estatutos que, hoje, te ordeno, então, virão todas estas maldiçõessobre ti e te alcançarão:Maldito serás tu na cidade e maldito serás no campo. Maldito 0 teu cesto e a tua amassadeira. Maldito 0 fruto do teu ventre,0efruto da tua terra, e as crias das tuas vacas e das tuas ovelhas. Maldito serás ao entrares e maldito, ao saíres. O S enhor
mandará sobre ti a maldição, a confusão e a ameaça em tudo quan-
to empreenderes, até que sejas destruído e repentinamente pereças, por causa da maldade das tuas obras, com que me abandonaste.
Deuteronômio 28.15-20
J uramentos
e votos
Tratados no mundo antigo ganhavam força de lei por declaração de juramentos e votos. Vemos algo similar em cer imôn ias de cas am en to quando pro messas e compromissos são selados po r votos sagrados. Es se s v oto s são testemunhados por várias estruturas de autoridade, como família, amigos, e o Estado. Preeminentemente, no entanto, esses votos são testemunhados por Deus mesmo. Testemunhas são necessárias para fazer públicos os votos, não só particulares, e para observar 0 ritual solene do pacto do casamento. Em pactos bíblicos os votos são especialmente importantes. Devem
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ser feitos apelando a Deus como a testemunha. Jurar por qualquer coisa menor do que o próprio Deus é proibido como um ato de idolatria. A Confis sã o de Fé de Westminster vê votos sagrados corno tão importantes para a verdadeira religião que ela dedica um capítulo todo ao assunto. Esta confissão diz: O juramento, quando lícito, é uma parte do culto religioso pelo qual o crente, em ocasiões necessárias e com toda a solenidade, chama a Deus por testemunha do que assevera ou promete. Pelo juramento ele invoca a Deus para ju lgá -lo segundo a verdade ou falsidade do que jura. O único nome pelo qual se deve jurar é o nome de Deus, nome que se pronunciará com todo santo temor e reverência: jurar, pois, falsa ou temerariamente por esse glorioso e tremendo nome ou jurar por qualquer outra coisa, é pecaminoso e abominável.4
O mandamento contra tomar 0 nome do Senhor em vão é dirigido principalm ente contra faz er votos frívolos ou insincer os em nome dele. A ssim, também, jurar por qualquer coisa é detestável porque é uma maneira pouco disfarçada de idolatria. Jurar pela sepultura da mãe da pessoa, por exemplo, é imputar atributos divinos àquele local. O túmulo não tem olhos ou ou vi do s para observar o vot o e é impotente para trazer ju ízo contra aqueles que o quebram. Ju rar por Deus é conv idá-lo a testemunhar a promessa e exerce r seu juí zo sobre todos os que que bram 0 voto. A B íbl ia lev a o jurar voto s muito a sério por que leva o pacto também muito a sério. A própria base de nosso relacionamento com Deus é um pacto. A principal diferença ética entre nós e Deus é que nós somos quebradores de pacto enquanto que ele é guardador de pacto. Nós vivemos com esperança e confiança porque Deus fez promessas a nós que ele selou com sua promessa solene. Vemos isso mais claramente no pacto que ele fez com Abraão: “E sucedeu que, posto 0 sol, houve densas trevas; e eis um fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços. Naquele mesmo dia, fez o Senhor aliança com Abrão, dizendo: A tua descendência dei esta terra, desde o rio do Egito até ao grande rio Eufrates...” (Gn 15.17,18). Essa passagem estranha relata um momento crucial na história da redenção. Depois que Deus tinha prometido bênçãos a ele, Abraão pergun-
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tou: “Senhor Deus, como saberei que hei de possuí-la?” (Gn 15.8). Abraão já cria em Deus, mas pediu ao Senhor alguma garantia. Deus o instruiu a cortar vários animais e colocar os pedaços na terra. Depois que Deus pôs Abraão num profundo sono, os fenômenos do forno soltando fumaça e da tocha que queimava apareceram, passando entre os pedaços. Qual é o significado disso? Nesse ritual Deus mesmo estava fazendo um juramento. Ele é representado pela teofania de objetos queimando que passam entre as partes de animais. O simbolismo está claro: Se Deus deixar de guardar a sua promessa, ele será desfeito como os animais. “Se eu deixar de guardar a minha promessa para você”, Deus está dizendo, “possa meu ser imutável sofrer mutação, possa minha glória eterna ser destruída, e possa minha própria deidade ser arruinada”. Deus jura pela coisa mais alta que pode: por si mesmo. Há em Hebreus alusão a esse evento de Gênesis: Pois, quando Deus fez a promessa a Abraão, visto que não tinha ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo, dizendo: “Certamente, te abençoarei e te multiplicarei”. E assim, depois de esperar com paciência, obteve Abraão a promessa. Pois os homens juram pelo que lhes é superior, e o juramento, servindo de garantia, para eles, é o fim de toda contenda. Por isso, Deus, quando quis mostrar mais firmemente aos herdeiros da promessa a imutabilidade do seu propósito, se interpôs com juramento, para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refugio, a fim de lançar mão da esperança proposta; a qual temos por âncora da alma, segura e firme e que penetra além do véu, onde Jesus, como precursor, entrou por nós, tendo-se tomado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque. Hebreus 6.13-2 0
R atificação
e depósito
Depois que votos eram feitos e juramentos eram prestados no mundo antigo, pactos eram ratificados por um ritual de cortar. O drama de Gênesis 15 inclui tal rito. Outro exemplo é0 rito de circuncisão usado para
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ratificar o pacto entre Deus e Abraão (e seus descendentes). Circuncisão compreendia cortar fora o prepúcio pele do indivíduo masculino. bolizava sanções tanto positivas comode negativas. Simbolizava a bênçãoSimde Abraão e seus descendentes serem consagrados, separados da massa geral da humanidade caída para serem 0 povo escolhido de Deus. Circuncisão tam bém dram atiz ava a penalidade por quebra de pacto. “Se eu deixar de manter meu juramento de pacto”, 0 judeu estava dizendo, “possa eu estar separado das bênçãos de Deus assim como meu prepúcio foi separado de meu corpo”. O ritual máximo da ratificação do pacto foi a ratificação do Novo Pacto pelo sangue de Cristo. Jesus instituiu esse pacto no cenáculo durante a Ultima Ceia, depois ratificou-o no dia seguinte derramando seu sangue sobre a cruz. Tabela — 5. 2 A E strutura dos Pactos A nti gos 1
.
2. 3. 4. 5.
Exórdio Prólogo h istórico Estipulações Sanções Votos
6. Ratificação Assim como cópias hititas dos tratados de suserania eram depositadas em um lugar público para segurança, assim Deus instruiu Israel a guardar as tábuas de pedra no propiciatório, que tinha seu lugar primeiro no tabe mác ulo e mais tarde no templo. A arca da aliança onde os tabletes eram guardados também era chamada a arca do testemunho: 0 Teste“Porás 0 propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás munho, que eu te darei. Ali, virei a ti e, de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre a arca do Testemunho, falarei contigo acerca de tudo o que eu te ordenar para os filhos de Israel” (Êx 25.21,22). De tempos em tempos 0 pacto de Deus com Israel era renovado, assim como em Moabe com a morte de Moisés e em Siquém com 0 passamento de Josué. Nesta s ocasiõe s 0 prólogo histórico foi atualizado, repassando os mais recentes atos redentores de Deus a favor de seu povo.
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O que é Teologi a Re forma da
P acto
d e r e de nçã
o
0 primeiro pacto que consideramos no âmbito da teolog ia reformada nào inclui seres humanos diretamente, mas assim mesmo é importante criticamente, Opacto de redenção envolve as partes que trabalham juntas para efetuar a redenção humana: 0 Pai, 0 Filho e 0 Espírito Santo. Este pacto está enraizado na eternidade. O plano de redenção de Deus não foi nenhuma reflexão posterior, designado para consertar uma criação que desandou. Com 0 Deus etemo e onisciente, não existe nada como um “plano B”. Deus elaborou seu plano de redenção antes da criação e até antes da queda, embora ele tenha concebido esse plano à luz da queda do homem e o projetado para efetuar redenção da queda. O pacto da redenção demonstra a harmonia dentro da Trindade. Contra as teorias que colocam um membro de Deus Trino contra os outros dois, 0 pacto da redenção frisa 0 acordo total entre0 Pai, o Filho e 0 Espírito Santo no plano da salvação, Esse pacto define os papéis das pessoas da Trindade na redenção, O Pai envia 0 Filho e 0 Espírito Santo. O Filho entra na arena deste mundo por encarnação voluntariamente. Ele não é nenhum redentor relutante,/O Espírito Santo aplica a obra de Cristo a nós para nossa salvação. O Espírito não se irrita em fazer o mandado do Pai. O Pai está contente de mandar0 Filho e 0 Espírito para o mundo, e eles se agradam em desempenhar suas respectivas missões. João 3.16 declara que Deus amou o mundo de tal maneira que mandou seu Filho unigênito ao mundo. A iniciativa pela redenção pertence ao Pai. O Filho, de boa vontade, se subordina a essa ordem. Ele tem prazer em fazer a vontade do Pai. Durante seu ministério terreno Jesus falou com freqüência de sua disposição de realizar 0 propósito do Pai. Ele disse que fazer a vontade do Pai era seu “alimento” (Jo 4.34), e é dito que Cristo é consumido de zelo pela casa de seu Pai (Jo 2.17). Ele prometeu a seus discípulos que eles herdariam um reino que o Pai tinha preparado para eles desde 0 princípio (Mt 25.34). Tudo isso aponta para trás, à eternidade, à unidade de propósito de todos os três membros da Trindade. Assim como 0 ato de criação foi uma obra trinitariana, assim também a obra da redenção é trinitariana: o Pai envia o Filho e o Espírito, o Filho realiza a obra mediatória da redenção a nosso favor, e o Espírito Santo aplica a obra de Cristo a nós. Todas essas ações são necessárias para cumprir os termos de redenção, termos sobre os quais houve acordo na eternidade.
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P acto
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d e obras
O pacto inicial que Deus fez com a humanidade foi umpacto de obras. Nesse pacto, segundo a Confissão de Westminster, “Foi a vida prometida a Adão e nele à sua posteridade, sob a condição de óbediência perfeita e pessoal”.5E importante notar que uma “condição” é vinculada a esse primeiro pacto. A condição é obediência pessoal e perfeita. Essa é uma condição de obras, e esta é a principal estipulação do pacto. Vida é prometida como recompensa por obediência, por satisfazer a condição do pacto. A estipulação de obediência indica claramente que esse pacto não é incondicional. Deus não deu nenhuma promessa incondicional extensiva de que todas as pessoas felicidade etema não respondam à sua lei. Lei édesfrutarão dada no início, e obediência a elaimporta funcionacomo como uma con diçã o exig ida para bênção pactuai. A Confissão de Westminster declara que a obediência exigida nesse pacto precisa ser tanto perfeita como pessoal. A idéia de obediência parcial ou imperfeita está fora. O homem é criado na imagem de Deus e é-lhe dada a capacidade e dever de espelhar e refletir o caráter santo de Deus. Não há espaço para a menor transgressão. No Éden a penalidade por violar os termos do pacto foi a morte. Essa penalidade não era limitada à morte espiritual, nem seria protelada a execução da penalidadeyÁ morte impostafisicamente no dia em no quediaa transgressão ocorresse. Que Adão e Eva nãoseria morreram de seu primeiro pecado já demonstra a misericórdia e graça de Deus. Mai s adiante n a história do Antigo Testamento um catálogo de pecados é definido por Deus como ofensas que exigiriam a pena capital. Olhando pelo aspecto vantajoso do Novo Testamento, esse código de justiça pode parecer duro, exigindo castigo cruel e incomum./À luz do pacto de obras, no entanto, 0 código penal do Antigo Testamento é bastante misericordioso. Originalmente todo pecado era uma ofensa capital. Todo pecado é um ato de traição cósmica, viola 0 governo legítimo de Deus e insulta sua glória e perfeição infinitas. O mandato srcinal é claro: “A alma que pecar morrerá”. Por vivermos num mundo decaído, onde 0 pecado é universal, esquecemos facilmente os termos srcinais da própria vida que recebemos de nosso Criador. Pronunciamos ditados como: “Ninguém é perfeito” e “Todo mundo tem direito a um erro”. O último é0 maior programa de tapeação
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em direitos. Deus nunca deu a nenhum ser humano uma carta branca para pecar, e mesmo se ele tivesse dado a cada um de nós um prato de lentilhas espiritual ou moral já0 teríamos usado até acabar há muito tempo. Nem devemos tratar0 pecado tão levianamente a ponto de0 chamar de mero “engano”. É, sim, uma repugnância moral para o santo Deus, um ato de arrogância indizível, que qualquer mortal ouse colocar a vontade dele ou dela em oposição à vontade do soberano Deus. Quando aConfissão de Westminster diz que nossa obediência precisa ser pessoal, ela não está distinguindo entre pessoal e impessoal. Coisas impessoais não têm capacidade para obediência moral. Um ser moral é, por definição, um ser pessoal com a capacidade de agir por meio da vontade. RochasObediência e toras nãopessoal violamseo pacto porqueindividual. não são serep pessoais. referedeà Deus obediência O pacto de obras não teve nenhuma provisão para obediência vicária, obediência à lei de Deus por uma pessoa em benefício de outra. Esse aspecto é introduzido no pacto da graça, que tem obediência vicária no próprio cerne. Os nomes dos dois pactos, um de obras e um de graça, podem levar a erro. Os nomes podem dar a idéia que ao pacto srcinal falta qualquer elemento de graça. Que Deus nos cria e nos 0dádom da vida já é um ato de graça. Deus não estava sob nenhuma obrigação de criar quem quer que fosse. Uma vez criados, não tínhamos nenhuma reivindicação para exigir que Deus entrasse em pacto conosco. A promessa de vida da parte de Deus na condição de obediência tem sua srcem em sua graça. Mesmo no pacto de obras a recompensa prometida pela obediênciadeépactio. A recompensa é dada, não porque as obras em si, em razão de seu valor intrínseco, impõem uma obrigação sobre Deus para recompensá-las, mas porque Deus, em sua graça, ofereceu tal recompensa como parte de um acordo. Teoricamente Deus poderia, com justiça, ter imposto sobre suas criaturas uma obrigação de obedecer à sua lei sem qualquer promessa de recompensa que fosse. É dever intrínseco da criatura obedecer a seu Criador, com ou sem a perspectiva de recompensa.
P acto
d a graça
A Confissão de Westminster declara isto sobre o pacto da graça: “Tendo-se tomado 0 homem, pela sua queda, incapaz de vida por esse
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pacto,da aprouve Senhor um segundo pacto,aos geralmente pacto graça ;ao nesse pactofazer ele oferece livremente pecadoreschamado a vida0e salvação por Jesus Cristo, exigindo deles fé nele para que sejam salvos, e prometendo dar o Seu Santo Espírito a todos os que estão ordenados para a vida, para dispô-los e capacitá-los a crer”.6 Talvez a diferença principal entre os pactos da graça 0e primeiro pacto, e o motivo pelo qual seja chamado um pacto da graça, seja que esse pacto é feito entre Deus e pecadores. O pacto de obras foi feito entre Deus e suas criaturas não caídas.
Tabela — 5ças .3 Trê s Alian Pacto da Redenção
Pacto de Obras
Partes
0 Pai, 0 Filho e Deus e seres 0 Espírito Santo humanos Iniciador De u s P0 ai Deus Tempo N a eternidade Na criação Condição
passada
Recompensa Penalidade
Pacto da Graça Deus e seres humanos pecadores Deus Depois da
queda Fé em Cristo (que satisfaz a condição do pacto de obras) Vida espiritual Vida Morte imediata Morte espiritual (física e espiritual) Perfeita obediência
Uma ve z vi ol ad o aquele pacto, e ocorrida a queda, a única esperança da humanidade estava enraizada na graça. Embora o pacto da graça seja diferente do pacto de obras, ele não pode ser totalmente separado dele. Em um sentido importante 0 pacto de obras permanece intacto. Deus ainda exercita seu juízo justo sobre aqueles que quebram a lei. O' segundo pacto é uma adição ao primeiro. Não anula 0 primeiro pacto. Por vezes 0 pacto das obras é chamado 0 pacto da criação, o que deixa claro que 0 primeiro pacto não foi restrito a Adão e Eva. O primeiro pacto foi feito com eles e sua prole. Todos os seres hu-
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manos estão incluídos no pacto da criação. Podemos ignorar ou rejeitar aquele pacto, mas não podemos escapar dele. Estamos todos sob as sanções do pacto de obras, e estamos em necessidade desesperada de um pacto de graça. Também é importante lembrar que, não obstante o segundo pacto, 0 caminho da salvação ainda está amarrado ao primeiro pacto. O pacto da graça, longe de destruir0 pacto srcinal, realmente toma possível 0 pacto de obras ser cumprido. Embora a graciosa doutrina da justificação pela fé seja a essência do evangelho, não devemos esquecer que nossa salvação é realizada, em última instância, pelo cumprimento do pacto de obras. Isto é realizado pelo segundo Adão, o próprio Cristo, que pela sua perfeita e pessoal exigências obras. O que é tãode graciosoobediência a respeito cumpre do pactoas da graça é do quepacto Deusdeaceita a obediência Cristo ao pacto de obras em nosso lugar. Ele faz por nós o que somos incapazes de fazer por nós mesmos. Quando nós não somos pessoalmente obedientes, Deus aceita obediência vicária. A obediência pessoal de Cristo é aceita como um substituto pela nossa obediência pessoa l, e é isto o que faz tão gracioso o pacto da graça. O pacto da graça é manifesto em pactos específicos que Deus fez, como aqueles com Abraão, Moisés e Davi. Aqueles pactos são apenas ampliações do pacto da graça.A Confissão de Westminster observa: Esse pacto no tempo da Lei não foi administrado como no tempo do Evangelho. Sob a Lei foi administrado por promessas, profecias, sacrifícios, pela circuncisão, pelo cordeiro pascal e por outros tipos de ordenanças dadas ao povo judeu, prefigurando tudo a Cristo, que havia de vir; naquele tempo essas coisas, pela operação do Espírito Santo, foram suficientes e eficazes para instruir e edificar os eleitos na fé no Messias prometido, por quem tinham plena remissão dos pecados e salvação eterna. Esse pacto se chama Velho Testamento. ... Não há, pois, dois pactos de graça diferentes em substância, mas um e o mesmo sob várias dispensaçôes.7
E interessante que aConfissão de Westminster, escrita no século 17, refere-se a “dispensaçôes”. Isto foi anterior ao advento do sistema de doutrina conhecido como Dispensacionalismo. Na confissão a palavradispen-
Ape lidada d e teologia da alia nça
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sação significa uma espécie de obra de mordomo ou administração, que fica longe do uso da palavra no dispensacionalismo clássico. A teologia reformada nada sabe de períodos de testes diferentes ou agendas de redenção diferentes para Israel e a igreja. A Confissão de Westminster toma claro que na teologia reformada 0 caminho de salvação no Antigo Testamento é substancialmente o mesmo como no Novo Testamento. Redenção é sempre mediante a graça pela fé. No Antigo Testamento a fé era dirigida para a frente, ao prometido Redentor futuro, enquanto que no Novo Testamento a fé é dirigida para trás, à obra redentora de Cristo que foi realizada na História.
Os cinco pontos da Soteriologia reformada
c^prtu o Ó A corrupção radical da humanidade
T
otal depravação é o primeiro dos famosos cinco pontos da soteriologia calvinista. Até certo ponto é pena que a doutrina seja 0 nome pode levar a equívoco. Prechamada de “total depravação” porque valeceu por caber bem no conhecido acróstico TULIP. Total depravação dá0 T de Tulipa. O termo engana porque sugere uma condição moral decompleta depravação. Complet a depra vação significa uma pessoa tão má quanto é possível ser. Sugere tanto a total como a completa corrupção, com falta até de virtude civil. 0 homem A doutrina de total depravação, contudo, não ensina que é tão mau quanto seria possível. Por exemplo, Adolfo Hitler, que muitas vezes serve como paradigma de maldade humana, certamente teve alguns comportamentos que não foram totalmente ruins. Talvez Hitler tenha amado sua mãe e às vezes até sido bondoso para com ela (uma hipótese que pode não caber nas pessoas semelhantes ao romano Nero).
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A corrupção radical da humanidade
ΙΟΙ
Tabela — 6.1
A Primeira Petála da Tulipa 1. Total depravação 2. Uma el ei çã o in condicional 3. Limitada expiação 4. Irresistível g raça 5. Perseverança dos santos
Corrupção radical da humanidade A opção soberana de Deus A expiação propositada de Cristo 0 chamado eficaz doEspírito Deus preserva os santos
, O termo tota l depravação, como distinto de completa depravação, diz respeito ao efeito do pecado e corrupção sobre a pessoa toda. Estar totalmente da corrupção permeia todaaavontade, pessoa. O pecado afetadepravado todo aspecétosofrer de nosso ser: 0 corpo,que a alm a,, a mente, etc. A.pessoa total ou inteira é corrompida por pecado! Nenhuma “ilha de . retidão” escapa da influência da queda. O pecado alcança todo aspecto de nossas vidas, não encontrando nenhum abrigo ou virtude isolada. Talvez um termo melhor para a doutrina de total depravação fosse corrupção radi cal (0 único problema que tenho com esta designação é que ela pode ser abreviada em in glês com as iniciais R.C. (R.C.S. sendo minhas iniciais). A palavra radic al vem do latim radix, que significa “raiz”. Dizer 0 pecado penetra até que a humanidade é radicalmente corrupta é dizer que a raiz ou 0 cerne de nosso ser. Pecado não é tangencial nem periférico, mas 0 “corasurge do centro de nosso ser. Flui daquilo que a Bíblia chama de ção”, que não se refere ao músculo que bombeia0 sangue por todo0 corpo, e sim ao “cerne” de nosso ser. Jesus freqüentemente descreveu essa condição com imagens tiradas da natureza. Assim como uma árvore corrupta dá fruto corrompido, assim o pecado flui de uma natureza humana corrupta. Nós não somos pecadores porque pecamos; pecamos porque somos pecadores. Desde a queda a natureza humana tem sido corrupta. Nascemos com uma natureza de pecado. Nossos atos de pecado fluem dessa natureza corrompida. O apóstolo Paulo, citando 0 Antigo Testamento, resume a condição universal de pecado: Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Nâo, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito:
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O que é Teologia Re formada
“Nào justo,entenda. nem um sequer. não háháquem não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem. não há nem um sequer [SI 14.1-3; 53.1-3; Ec 7.20]; a garganta deles é sepulcro aberto; corn a língua, urdem engano, [SI 5.9] veneno de víbora está nos seus lábios, [SI 140.3] asão boca, eles pés a têm cheia para de maldiç ão e desangue, amargura; [SI 10.7] os seus velozes den-amar nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram0 caminho da paz. [Is 59.7,8] Não há temor de Deus diante de seus olhos [SI 36.1]. Romanos 3.9-18
Nesse texto o apóstolo fala de estarmos “sob pecado”. Usamos linguagem figurada com respeito a cond ições human as. N ós dize mo s que uma pessoa diligente está Inversamente “por dentro” do seu“por trabalho, quesem ela 0 tem sob controle. estar fora” que das quer coisasdizer é estar eficiência; o serviço o contro la. Quando Paulo fala de estarmo s “deba ixo do pecado” ele está usand o a mesma espécie de linguagem. Estar sob pecado é ser controlado pela nossa natureza de pecado. Pecado é um peso, uma carga que pression a para baixo sobre a alma. Ao trazer toda a raça humana diante do tribunal de Deus. a Escritura acusa a todos nós, sem exceçào, exceto Jesus. O tribunal pronuncia: “Nào há ninguém justo, não, nem um” . A frase qualificadora, “não, nem um” toma claro que 0 julgamento universal não é hipérbole. É uma proposição negativa universal, da qual ninguém está excluído. A ausê ncia de exc lu sòe s o u ex ce çõ es não é tecnicamen te absoluta quando consideramos a impecab ilidade de Jesus. Esse texto, porém, não tem em vista Jesus em sua posição singular. Está avaliando a raça humana inteira à parte de Jesus. O texto então se move de modo notável do geral ao específico. Não só diz que não há ninguém justo, mas diz que nenhum pratica o bem, não, nem um. Nào somos considerados injustos porque o refugo do pecado está
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misturado com nossa bondade. A fazemos acusaçãouma contra nós éboa. mais radical, em nossa humanidade corrupta nufica só coisa Como devemos entender isso? Não é experiência diária nossa, que muitas ações boas são realizadas por pessoas pagãs? Os reformadores lutaram contra esse problema e reconheceram que pecadores em sua condição decaída ainda são capazes de executar aquilo que os reformadores chamaram de “virtude civil”. Virtude civil se refere a atos que se conformam de modo exterior à lei de Deus. Pecadores decaídos podem se abster de roubar e praticar atos de caridade, mas es ses atos não são chamados bons num sentido fundamental. Quando Deus avalia as ações de pessoas, ele considera não apenas os atos externos em si, mas também os motivos por trás desses atos. O motivo supremo exigido de tudo que fazemos é o amor de Deus. Um feito que exteriormente se conforma à lei de Deus mas procede de um coração alienado de Deus não é considerado por Deus uma boa ação. Toda a ação, incluindo as inclinações do coração de quem a faz, é trazida sob o escrutínio de Deus e achada em falta. Jonathan Edwards dis se que virtude cívic a é motivada por “interesse próprio esclarecido”. Tais atos, externamente virtuosos, são motivados não por um desejo de agradar ou honrar a Deus, mas por um desejo de proteger nos sos próprios intere sses. Podem os aprender, por exemplo, que em nenhuma circunstância o crime compensa. Podemos obedecer a limites legais de velocidade para evitar pegar uma multa. Somos refreados de pecar ao nosso pleno potencial pela lei, cultura e perspectiva de conflito com outras pessoas pecadoras. Do lado positivo, poderíamos mesmo fazer ações “virtuosas” mas somos motivados por desejo do aplauso de outros. Aqui 0 pressuposto contrário, de que certas “virtudes” realmente compensam neste mundo, desempenha o seu papel. Ausente em ambos os casos está a motivação de um grande amor de coração para com Deus.
P ecado
srcinal
A condição de corrupção radical, ou depravação total, é0 estado de queda conhecido como peca do srcinal. A doutrina do pecado srcinal não se refere ao primeiro pecado cometido por Adão e Eva, e sim ao resultado daquele primeiro pecado. Pecado srcinal é a corrupção visitada sobre a prole de nossos primeiros pais como castigo pela transgressão srcinal.
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O que é Teologia Reform ada
Praticamente toda igreja tem alguma doutrina de pecado srcinal. Embora a teologia liberal, profundamente influenciada por hipóteses humanistas, muitas vezes exclame contra0 pecado srcinal, todas as confissões históricas incluem a doutrina. E certo, sim, quegrau o de corrupção envolvido com pecado srcinal tem sido um perene ponto de debate entre teólogos. O consenso do Cristianismo histórico, contudo, é que a visão bíblica da queda requer que afirmemos algum conceito de pecado srcinal. Uma das controvérsias mais voláteis do quarto século envolveu a doutrina de pecado srcinal/0s combatentes foram 0 famoso Bispo de Hipona, Aurélio Agostinho, e0 monge Pelágio. Pelágio tomou ofensa com a famosa oração de Agostinho, “Concede o que tu mandas, e manda o que tu desejas”.1Pelágio discordou que fosse necessário em qualquer instância Deus “conceder”0 que ele ordena de nós. Pelágio presumiu que responsabilidade moral sempre leva com ela habilidade moral/Seria injusto da parte de Deus exigir de suas criaturas que fizessem 0 que eram incapazes de fazer em sua própria força. Se Deus requer perfeição moral, então a humanidade precisa sercapaz de conseguir perfeição. Embora a graçafa cilite nossa busca por perfeição moral, ela não necessária é para a alcançarmos. Agostinho argumentava que a graça não só facilita nossos esforços de obedecer a Deus, como, por causa de nossa natureza caída, também é necessária. Antes da queda, a exigência de perfeição moral já estava presente. A queda não moral mudoutomou-se, a exigência, mudou a nós, sim. O que foi um dia possibilidade semmas a graça, uma impossibilidade moral. A visão de Agostinho está fundamentada em sua doutrina de pecado srcinal. A medida que0 debate prosseguia, Pelágio apontou suas armas de ataque para essa doutrina. Negando o pecado srcinal, Pelágio argumentou que a natureza humana fora criada não somente boa, mas incontrovertidamente boa. A natureza humana pode ser modificada, mas as modificações apenas podem ser “acidentais”, não “essenciais”. Esta terminologia novamente reflete acidental não significa “nãocategorias aristotelianas, nas quais a palavra intencional” mas se refere a mudanças que afetam só a superfície de algo, não sua essência mais profunda. Pecado não muda nossa natureza moral essencial. Podemos pecar, mas permanecemos “basicamente bons”. Deixe-me mencionar parenteticamente que a idéia básica da bondade do ser humano é uma doutrina primordial da filosofia humanista. Isto também permeia o evangelicalismo moderno se as pesquisas mais recentes
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forem confiáveis. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto Gallup a maioria dos evangélicos professos indica concordar com a proposição de que as pessoas são “basicamente boas”. No cerne da preocupação de Pelágio em seu debate com Agostinho estava um desejo de proteger a idéia do livre-arbítrio do homem. O homem tanto obedece a Deus como peca contra ele segundo a atividade de um livre-arbítrio. A Adão foi concedido livre-arbítrio, e sua vontade não foi afetada pela queda. Nem foi culpa ou corrupção decaída transmitida à prole de Adão. Segundo Pelágio, 0 pecado de Adão afetou a Adão e somente a Adão. Não há nenhuma condição herdada de corrupção conhecida como pecado srcinal. A vontade do homem permaneceu inteiramente livre e retém a capacidade para a indiferença, no sentido que não é predisposto nem inclinado ao mal. Todos os homens são nascidos livres de qualquer predisposição a pecar. Somos todos nascidos na mesma condição moral que Adão desfrutou antes da queda. Agostinho, por outro lado, argumentou que o pecado é universal e que a humanidade é uma “massa de pecado” m ( assa peccatí). O homem é incapaz de se erguer para o bem sem a obra da graça interior de Deus. Nós não temos mais capacidade de retomar a Deus do que um vasilhame vazio tem de ficar cheio de água novamente. Agostinho é famoso por distinguir vários estados morais ou condições do homem tanto antes da queda como depois dela. Antes da queda Adão tinha a capacidade de pecar(posse peccare) e a capacidade de não pecar {posse non peccare ). Ele não possui a incapacidade de pecarn(on po sse pec ca re ) ou a incapacidade de não pecarn(on posse non peccare). Nós lutamos um pouco contra essa linguaguem porque a condição final, que descr ev e o ponto de vista de pecado srcinal de Agostinho, é escrita com uma negativa dupla, non pos se non peccare. Dizer que0 homem caído é incapaz de não pecar significa que somos capazes só de pecar. Simplesmente somos incapazes de viver sem pecar. Pecamos por uma espécie de necessid ade moral porque agimos segundo a nossa natureza caída. Fazemos coisas corruptas porque somos um povo corrupto. Esta é a essência do que significa ser caído. João Calvino seguiu Agostinho nesta visão de corrupção humana: “Esta é a corrupção hereditária à qual os primeiros escritores cristãos deram 0 nome de pecado srcinal, significando com 0 termo a depravação de uma natureza antes boa e pura ... quando foi claramente provado pela Escritura
O que é Teologia Reformada
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que o pecado do primeiro homem passou a toda a sua posteridade, o recurso foi achado na objeção capciosa, que passou por imitação e não por propagaçâo. Os ortodoxos, portanto, e mais especialmente Agostinho, esforçaramse para mostrar que não somos corrompidos por maldade adquirida, mas trazemos uma corrupção inata desde 0 próprio útero”.2
Tabela — 6.2
Agostinho sobre a capacidade humana Antes da queda
Depois da queda
Capacidade de não pecar e capacidade de pecar
Incapacidade de não pecar
A questão da corrupção inata gerou a controvérsia entre Pelágio e Agostinho. Pelágio foi condenado no Sínodo de Cartago em 418. Concílios eclesiásticos subseqüentes reafirmaram a doutrina do pecado srcinal e repetiram a denúncia do ensino de Pelágio. Até 0 Concilio de Trento, no século 16, esclareceu que0 pelagianismo distorce seriamente a visã o bíblica da queda. Martinho Lutero escreveu o seguinte sobre0 pecado srcinal: “De acordo com0 apóstolo e 0 simples senso daquele que está em Cristo Jesus, não é meramente a falta de uma qualidade na vontade ou mesmo só a falta de luz no intelecto, de força na memória. Antes é uma completa destituição de toda a retidão e da capacidade de todos os poderes do corpo bem como da alma e de todo 0 homem interior e exterior. Além dis so, é uma inclin açã o ao mal, uma aversão ao bem, uma desinclinação em direção à luz e sabedoria, é amor de erro e escuridão, um fugir de boas obras e um detestar a elas, um correr ao que é mau.. ”3 O apóstolo de quem Lutero fala é Paulo. Talvez Lutero tivesse Romanos em mente quando fez essa afirmação. Em Romanos 3.11 Paulo declara: “Não há quem busque a Deus”. Na superfície este é um juízo surpreendente. A Bíblia freqüentemente admoesta as pessoas a buscarem por Deus, mas também ensina que em nosso estado decaído nenhum de nós de fato busca a Deus. A postura básica do homem não-regenerado é a de um fugitivo. Nossa inclinação natural é fugir de Deus. O primeiro pecado no Éden provocou a primeira fuga da presença dele, uma fuga para se esconder
A co rrup ção radical da h umanid ade
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de Deus e de seu exame minucioso. A sensação de nudez estava ligada à primeira consciência de culpa. Adão e Eva buscaram uma cobertura para sua vergonha, um esconderijo de sua culpa. Esse foi o primeiro episódio de um humano encobrir 0 que fez, um verdadeiro “escândalo político”. Freqüentemente ouvimos cristãos evangélicos dizer que seus amigos não-cristãos estão “buscando Deus” ou “procurando Deus”. Por que dizemos isso quando a Escritura ensina tão claramente que nenhuma pessoa não-regenerada busca por Deus? Tomás de Aquino observou que as pessoas estão em busca de felicidade, paz, alívio de sentimento de culpa, realização pessoal, e outros tais benefícios. Nós entendemos que esses benefícios afinal serão encontrados somente em Deus. Inferimos que, por pessoas estarem buscando o que só Deus pode fornecer, eles devem estar buscando ao próprio Deus. Nosso erro é este. Em nossa condição decaída desejamos os ben efíc ios que só De us pode nos dar, mas a ele não queremos. Queremos as dádivas sem 0 doador, os benefícios sem o benfeitor. Romanos 3.12 declara que “todos se extraviaram” ou “saíram do caminho”. Pecadores são mesmo pessoas “errantes”. Antes de os crentes serem chamados “cristãos” (um termo de motejo) eles mesmos se chamaram de “pessoas do caminho”. Jesus também falou em diferentes “caminhos”, um que conduz à vida e um que conduz à destruição (Mt 7.13,14). Visto que ninguém busca por Deus enquanto irregenerado, não surpreende que todos nós nos desviamos ou saímos do caminho. Nós não “achamos” Deus como resultado de nossa procura por ele. Nós somos encontrados por ele. A busca por Deus não termina em conversão, começa na conversão. E a pessoa convertida que, genuina e sinceramente, busca por Deus. Jonathan Edwards observou que buscar por Deus, ir atrás dele, é a ocupação principal da vida cristã.
I dola
tr i a
Romanos 3.18 termina com a acusação formal contra a humanidade decaída de que “não há temor de Deus diante de seus olhos”. Talvez esse seja 0 efeito mais devastador do pecado srcinal. Nós, que temos sido criados na imagem de Deus e que fomos feitos para adorar e reverenciar nosso Criador, já perdemos a capacidade de reverência santa diante dele. Nada é mais alheio a nosso estado decaído do que adoração autêntica. Isso não
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quer dizer que paramos de cultuar completamente. Antes significa que nos tomamos idólatras, transferindo 0 culto de Deus a algo na ordem criada. Paulo diz: A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu etemo poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram riad c as. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tomaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendose lhes o coração insensato. lnculcandose por sábios, tomaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em 0 qual é bendito eternamente. Amém! lugar do Criador, Romanos 1.18-25
Essa seção de Romanos descreve a prática universal de idolatria. O pano de fundo para a acusação é que Deus se revela claramente na natureza, com 0 resultado que todo ser humano sabe que há um Deus. Mas a resposta universal a essa revelação é suprimi-la e trocar essa verdade manifesta por uma mentira. Nós trocamos a glória de Deus pela glória de coisas pertencentes à criatura. A própria essência da idolatria é erigir um altar a um substituto para Deus. O temor de Deus ao qual Paulo se refere não é 0 medo ou pavor servil que se tem de um inimigo, mas o respeito que enche 0 coração com reverência e inclina a alma à adoração. Pecadores não adoram Deus por natureza própria. Nós somos, por natureza, filhos da ira, pois levamos em nossos corações uma inimizade fundamental para com Deus. Estar no estado de pecado srcinal é estar no estado que a Escritura chama de “na carne”. Isto não se refere primariamente a coisas físicas, mas a uma condição de corrupção moral. Na carne não somos capazes de agra-
A co rrup ção radical da humanida de
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dar a Deus. De fato, falta-nos 0 desejo de agradá-lo. Somos desafeiçoados e alienados de Deus. Caso perguntássemos a descrentes se eles odeiam a Deus, provávelmente negariam isso categoricamente. Contudo a Bíblia toma claro que habita nos corações e nas almas de homens não-regenerados um profundo ódio de Deus. Amor por Deus não é natural para nós. Mesmo no estado redimido nossas almas se esfriam e temos sentimentos de indiferença para com el e. Quando oramos, nossas mentes vag ueiam e cedemos a devaneios. Em meio ao culto em conjunto, ficamos entediados e nos encontramos dando olhadas disfarçadas em nossos relógios. Como é diferente isso de nosso comportamento quando estamos na companhia daqueles a quem muito amamos. Nossa falta de amor natural por Deus é confirmada por nossa falta natural de de se jo dele . Quando jove m me foi exigido dec orar O Breve Catecismo de Westminster. Para mim foi uma tarefa pesada. A primeira pergunta do catecismo é “Qual é o fim principal do homem?” A resposta diz: “O fim princip al d o ho me m é glorificar a Deus e gozá- lo para sempre”. Para mim isso não fazia muito sentido. Eu entendia que há alguma ligação entre glorificar a Deus e obedecer a Deus. O que deixei de captar foi 0 elo entre tudo isso e “apreciar” a Deus. Se 0 fim principal ou propósito de minha vida era apreciar Deus, então estava deixando escapar 0 objetivo todo de minha existência. Eu coloquei de lado isso como sendo linguagem religiosa antiquada que inclinado não tinhaanenhuma à minha vida diária. Certamente não estava procurar relevância minha alegria em Deus. M ais tarde e nten di meus sentiment os quando lia a resposta de Lutero à pergunta: “Você ama a Deus?” Lutero respondeu (antes de sua conversão), “Amar a Deus? Às vezes eu 0 odeio!” É raro entre os homens que alguém admita isso. Até mesmo a resposta franca de Lutero não chegou a ser totalmente sincera. Tivesse ele falado toda a verdade, teria dito que ele odiava a Deus o tempo todo.
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apacidade
moral
Como vimos, grande parte da controvérsia entre Pelágio e Agostinho focava a questão da liberdade da vontade humana. Pelágio cria que a doutrina do pecado srcinal faz violência à liberdade e responsabilidade
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0 pecado srcinal corretamente e nos falta humanas. Se Agostinho avaliou a capacidade de não pecar (non posse non peccare ), o que isso faz ao livrearbítrio?A Confissão de Fé de Westminster declara: “O homem, por sua queda a um estado de pecado, tem perdido completamente toda a capacidade da vontade para qualquer bem espiritual que acompanhe a salvação: de modo que, como homem natural, completamente avesso a esse bem, e morto em pecado, é incapaz, por força própria, de se converter, ou de se preparar para isso”.4 Caso, alguma vez, a doutrina reformada de depravação total já tenha sido cristalizada em uma só breve declaração, isso foi aqui. A incapacidade moral do homem decaído 0é conceito-chave da doutrina de depravação total ou corrupção radical. Se a pessoa abraça esse aspecto do T em TULIP, 0 restante do acróstico segue por uma lógica sem resistência. Não se pode aceitar de braços abertos 0 T e rejeitar as quatro outras letras com qualquer grau de coerência. Olhemos com cuidado este sumário sucinto do conceito da reforma de incapacidade moral. Primeiro, a confissão diz que, como resultado da queda, 0 homem “tem por completo perdido toda a capacidade da vontade para qualquer bem espiritual que acompanha salvação”. Algo não só foi perdido comocompletamente perdido. Foi perdido totalmente e por inteiro. Não é uma perda parcial ou diminuição de poder ou habilidade. E uma perda radical e completa. Mas isso não significa que a habilidade da vontade em escolher tenha sido perdida completamente. O que foi perdido é “a capacidade de querer e resolver qualquer bem que acompanhe a salvação”. Já discutimos a capacidade do pecador de realizar obras de virtude civil. Esses atos se conformam externamente à lei de Deus, mas não são motivados poramor a Deus. A capacidade moral perdida no pecado srcinal não é, portanto, a capacidade de ser externamente “moral”, mas sim a habilidade de se inclinar às coisas de Deus. Nessa dimensão espiritual estamos moralmente mortos. A confissão declara que0 homem natural é “completamente avesso
àquele bem,decaído. e [ele está] em pecado”. Isto descrição bíblica do homem Paulomorto descreve a condição doresume seguintea modo: Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais andastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; entre os
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quais também todos nós andamos outrora, segundo as inclinações da nossa carne, fazendo a vontade da carne e dos pensam entos; eéramos, pornatureza, filhos da ira, como também os demais. Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por causa do grande amor com que nos amou, e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos. Efésios 2.1-5
Nessa passagem Paulo fala da obra do Espírito em nos “vivificar” ou nos regenerar de nossa condição decaída. Ele usa a imagem de nos ser “dado vida”. Isto é, de sermos colocados em completo contraste com nossa condição prévia de estarmos “mortos” em delitos e pecados. O pecador não está biologicamente morto. De fato o homem natural está muito vivo. Defuntos não pecam. A morte em vista aqui é claramente a morte espiritual. Paulo fala dos mortos andarem. Eles andam de acordo com certo percurso, que 0 apóstolo chama do curso deste mundo. Esse caminho é diametralmente oposto ao caminho do céu. Tomar esse caminho é caminhar em comum acordo com 0 príncipe deste mundo. Paulo está se referindo, obviamente, a Satanás, portanto, em nossa condição natural, somos discípulos dispostos de Satanás. Estar espiritualmente mortos é estar diabolicamente vivos. Em nossa condição anterior satisfizemos de boa vontade os apetites da carne e da mente, comportando-nos como criaturas que são (por causa do pecado srcinal), por natureza, filhos da ira. Quando Paulo diz que somos filhos da ira “por natureza” ele afunda uma estaca no cerne do Pelagianismo. Nesse trecho ele fornece um retrato feio e pictorial do homem natural. Estar morto em pecado é estar num estado de escravidão moral e espiritual. Por natureza, somos escravos do pecado. Isto não significa que a queda destruiu ou erradicou a vontade humana. O homem caído ainda tem todas as faculdades para fazer escolhas. Ainda temos uma mente e uma vontade. O problema não é que não podemos fazer escolhas. Homens naturais fazem escolhas o tempo todo. O problema é que, em nossa condição decaída, fazemos escolhas pecaminosas. Nós fazemos essas escolhas livremente. Nós pecamos precisamente porque queremos pecar e somos capazes de escolher exatamente 0 que queremos escolher. Onde está, então, o local da nossa incapacidade? A confissão diz que 0 homem natural é incapaz “de se converter, ou se preparar para isso”. Se
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nós temos um arbítrio, que somos Aincapazes nos converter ou nemainda mesmo nos preparar parapor a conversão? resposta de simples é esta: porque não queremos. Não temos nenhum desejo pela retidão de Deus, e a livre escolha, por definição, envolve escolher o que desejamos. L i vr e escolha
( livre -arbítrio
)
Em um sentido é porque nossas vontades estão livres que estamos num estado de incapacidade moral. A matéria espinhosa da livre opção está ligada à maneira como nossa vontade funciona. Em seu debate com Pelágio, Agostinho insistiu que0 homem decaído retém uma vontade livre(liberium arbitrium). Ele insistiu, no entanto, que pelo pecado srcinal o homem perde a liberdade libertas ( ) que desfrutava antes da queda. Na superfície parece que Agostinho está fazendo brincadeiras de palavras. Como uma pessoa pode ter uma vontade livre e não ter liberdade? Isso deve ser uma distinção sem uma diferença. A distinção, no entanto, é tanto real como importante. O homem ainda tem a capacidade de fazer escolhas e, neste sentido, ele está livre. Mas lhe falta a capacidade de exercer o que a Escritura chama de “liberdade régia”, a liberdade para obediência espiritual. Calvino assumiu uma posição parecida com a de Agostinho: “Esta liberdade é compatível com sermos depravados, servos do pecado, incapazes de fazer nada senão pecar. Neste aspecto, então, o homem é dito ter livrearbítrio, não porque tenha uma escolha livre de bem e mal, mas porque age voluntariamente, e não por compulsão. Isto é perfeitamente verdade: mas por que um assunto tão pequeno foi dignificado com tão orgulhoso título? Uma liberdade admirável! Que o homem não é forçado a ser servo do pecado, enquanto que é, no entanto, ethelodoulos (um escravo voluntário), sua vontade sendo atada com as amarras do pecado”.5 Embora Calvino afirmasse que somos capazes de escolher o que queremos, ele via 0 termo livre escolha um tanto grandioso para o assunto. “Por que deveria tão pequeno assunto”, ele perguntou, “ter sido dignificado com tão ufano título?” O título é mesmo enraizado em orgulho humano. Gostamos de pensar que temos mais poder moral do que temos. Pensamos que nossa vontade não é nem um pouco afetada por pecado srcinal. Este é 0 ponto cardeal do humanismo. A óptica humanista e pagã de livre-arbítrio é que a vontade age a partir de uma postura de indiferença. Por indiferença
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queremos dizer que a vontade não está inclinada nem ao bem nem ao mal, mas existe em um estado de neutralidade moral. A mente do homem decaído não tem nenhum preconcebido, nenhuma predisposição ao mal. Essa visão de livre-arbítrio está num percurso de colisão com a visão bíblica de pecado. Jonathan Edwards definiu a vontade como “a mente escolhendo”. Edwards não negou que há uma distinção significativa entre a mente e a vontade. São faculdades distintas. Embora a mente e a vontade possam ser distinguidas entre si, elas não podem ser separadas uma da outra. Ações morais envolvem escolhas racionais. Uma escolha sem a mente não é uma escolha moral. Plantas podem inclinar suas raízes em direção à água por uma série de causas físicas. Mas nós não julgamos esse movimento em termos de virtude ou vício. Essas ações são involuntárias. Nós também participamos em ações involuntárias. Nós não decidimos quanto a ter nossos corações bombeando 0 sangue pelo sistema circulatório. Esta é uma ação involuntária. O cérebro pode estar envolvido nesse processo de um ponto superior fisiológico, mas não de um ponto de vantagem de decisão consciente. Quando Edwards falou da vontade como sendo “a mente escolhendo”, ele quis dizer que fazemos escolhas de acordo com 0 que calculamos ser preferível em termos das opções diante de nós. Edwards concluiu que sempre esc ol h em os de acordo com a inclinação que é mais forte no momento. Este é um discernimento crucial em se desvendar a mente. Significa que toda escolha que fazemos tem uma causa antecedente. Nossas opções não são “espontâneas”, surgindo do nada. Há uma razão para cada escolha que fazemos. Num senso estreito cada escolha que fazemos é determinada. Dizer que nossas escolhas são “determinadas” soa muito como determinismo. Determinismo, entretanto, quer dizer que nossas escolhas são controladas por forças externas. Isso resulta em alguma forma de coerção, que cancela a livre escolha. O que Edwards tinha em mente é algo diferente. Nossas escolhas são determinadas no sentido que elas têm uma causa. Essa causa é essência a inclinação de nossa vontade. Isso é autodeterminação, que é a própria da livre escolha. Se eu determino 0 que escolho, isso não é determinismo, mas sim uma espécie de determinismo. Quando temos forte sentimento sobre fazer algo, podemos exclamar: “Estou determinado a fazer isso”. E isso se refere a um desejo forte ou inclinação forte da vontade para mover em certa direção.
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O que é Teo logia Reformad a
Quando Edwards diz que sempre escolhemos de acordo com nossa inclinação mais forte no momento, ele quer dizer não só que podem os escolher 0 que mais queremos no momento, mas queprecisamos escolhê-lo. De fato, é exatamente assim que fazemos esco lhas. Tente se lembrar de uma escolha que você já fez que não estava de acordo com sua inclinação mais forte na hora. Às vezes ficamos confusos sobre isso porque somos assaltados por uma ampla variedade de inclinações, e elas mudam de intensidade de um tempo a outro. Por exemplo, depois que terminamos uma refeição pesada, é fácil decidir entrar num regime. Com estômagos cheios decidimos reduzir o consumo calórico. Depois de algumas horas, porém, ficamos com fome de novo e 0 desejo po r alimento se intensifica. Quando ch ega mo s a ponto de querer comer torta mais do que queremos perder peso, talvez queiramos escolher a torta mais que o regime. Todas as co is as se nd o igu ais, talvez queiramos perder0 excesso de peso. Temos um desejo real de ser esbeltos. Mas esse desejo ou incli nação surge contra nos so de sejo por prazeres culinários. O problema é que todas as coisas não continuam iguais. Outro exemplo pode ser visto num esquete de Jack Benny, na TV. Benny foi confrontado por um ladrão, que lhe disse: “Seu dinheiro ou sua vida”. Benny ficou parado, mudo, com uma expressão contemplativa no rosto. Ficando impaciente, 0 ladrão disse: “Bem, qual é, seu dinheiro ou sua vida?” “Eu estou pensando”, Benny respondeu. “Estou p ens and o.” Esse caso enfatiza que nem sempre as coisas são iguais quando fazemos escolhas. O ladrão reduz as opções da vítima a duas: dinheiro ou vida. Todas as coisas sendo iguais, a vítima não tem nenhum desejo de doar seu dinheiro ao ladrão. Uma vez feita a ameaça de morte, no entanto, os níveis de desejo mudam. A vítima tem um desejo maior de continuar a viver do que de guardar sua carteira, então entrega seu dinheiro. É claro que há um elemento de coerção nesse cenário, mas a coerção não é absoluta. É extrema , mas final. A escolha aindcontra a está olá,roubo de paga r ou morrer . U ma Ela pe sso a pode ter não sentimentos tão fortes que prefira morrer. pode gritar: “Dê-me liberdade ou dê-me a morte”, mas sabe que mesmo que morra como mártir à sua causa,0 ladrão ainda vai levar seu dinheiro. O ponto dessa ilustração é que escolhemos de acordo com nossa inclinação mais forte naquele momento. D eve mos entender isso à medida q ue
A corru pçã o radical da humani dade
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procuramos crescer em nossa Toda Posso vez que faço isso porque no mom ento prefirobediência o 0 pecado aà Deus. obediência. terpeco, um desejo real em meu coração de ser obediente, mas esse desejo entra em conflito com meus des ejos pecam inoso s. Esse é o dilema exp resso pelo apóstolo Paulo: Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto.Ora, se faço 0 que não quero, consinto com a lei, que é boa. Ne ste caso, quem faz isto já não sou eu, mas0 pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois 0 querer0 bem está em mim; não, porém, 0 efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas0 mal que não quero, esse faço.7.15-19 - Romanos
Paulo está descrevendo o conflito que enfrentamos entre inclinações rivais, umas para 0 bem e outras para o mal. “O bem que quero fazer”, ele diz, “Eu não faço”. Isto não é contrário ao ponto de vista de Edwards que escolhemos de acordo com a inclinação mais forte. Cristãos têm mesmo um desejo ou vontade de fazer 0 bem. Mas nem sempre fazemos esse bem. Às vezes cedemos ao nosso desejo de mal. Não fazemos 0 que desejamos fazer porque não queremos fazer o bem com suficiente intensidade ou força. 0 processo de santificação envolve essa luta. Paulo a compara com Todo guerra, uma batalha titânica entre o espírito e a carne. A luta entre o espírito e a carne é a luta da pessoa regenerada. O homem não-regenerado, natural, não tem tal luta. Ele está escravizado ao pecado, atuando conforme a carne, vivendo conforme a carne e escolhendo conforme a carne. Ele escolhe de acordo com a inclinação que é dominante no momento, e essa inclinação nunca é um desejo de honrar a Deus a partir de um amor natural por ele. Os de sejos dos não-regenerados são maus continuamente. Essa é a escravidão ou morte espiritual com a qual a doutrina do pecado srcinal está preocupada. C apacidade
natural
Edwards faz outra distinção importante entre capacidade natural e capacidade moral. Capacidade natural é fornecida a uma criatura pelo
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O que é Teologia Reform ada
0 auxíCriador. Por exemplo, aves têm não a capacidade natural voar sem lio de máquinas; seres humanos têm. Peixes têm ade habilidade natural de nadar no mar. Diferente dos peixes, não podemos viver no mar sem o auxílio de equipamento artificial. Deus fornece guelras e barbatanas para peixes, penas e asas para aves, mas não nos dotou com tais equipamentos. Nós, seres humanos, temos a capacidade natural, no entanto, de fazer escolhas. Foi-nos dado o equipamento natural necessário. Temos uma mente que pode processar informação e entender as obrigações impostas pela lei de Deus. Temos uma vontade que nos capacita a escolher fazer o que queremos fazer. Antes da queda também tínhamos uma boa inclinação, 0 bem. É precisamente essa inclinação ao bem capacitando-nos a escolher que foi perdida na queda. Pecado srcinal não destrói nossa humanidade nem nossa capacidade de fazer opções. A capacidade ou faculdade natural permanece intacta. O que foi perdido é a boa inclinação ou desejo justo para obediência. A pessoa não regenerada não se inclina a obedecer a Deus. Esse indivíduo não tem nenhum amor para com Deus que mova sua vontade para escolher Deus. Ele poderia escolher as coisas de Deus se ele as quisesse , mas não as quer. Nossas vontades são tais que não podemos escolher livremente aquilo que não temos nenhum desejo de escolher. A perda fundamental de um desejo de Deus 0é cerne do pecado srcinal.
de desejo coisas Deus nos incapazes A de falta escolher o bem.pelas E isso que de Edwards quisdeixa dizermoralmente quando distinguiu entre capacidade natural e capacidade moral. O homem decaído tem a capacidade natural de escolher Deus (as faculdades de escolha necessárias), mas lhe falta a capacidade moral para fazer isso. A capacidade de fazer escolhas morais certas requer desejos e inclinações certos. Sem uma inclinação certa para0 bem, ninguém pode escolher o bem. Nossas escolhas seguem as nossas inclinações. Para o homem poder escolher as coisas de Deus, primeiro ele precisa estar inclinado a escolhê-las. Visto que a carne não faz nenhuma provisão para as coisas de Deus, a graça é exigida para podermos ser capazes de escolhê-l as. Adesejo pessoadenãoregenOs eradespiritualmente a precisa ser regenerada antes que tenha qualquer Deus. mortos primeiro precisam ser tomados vivos (“avivados”) pelo Espírito Santo antes que tenham qualquer desejo de Deus. [Jesus disse] “O espírito é o que vivifica; a carne para nada aproveita. As palavras que eu vos tenho dito são espírito e são vida. Contudo, há descrentes
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entre vós.” Pois Jesus sabia, desde o principio, quais eram os que não criam e quem o havia de trair. E prosseguiu: “Por causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, não lhe for concedido”. À vista disso, muitos dos seus discípulos0 abandonaram e já não andavam com ele. Então, perguntou Jesus aos doze: “Porventura, quereis também vós outros retirarvos?” Respondeu-lhe Simão Pedro: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna”. João 6.63-68
Nessa ocasião Jesus falou sobre a impotência moral da carne. Ele ensinou a seus discípulos que a carne “nada aproveita”. Talvez seu comentário mais surpreendente tenha sido este: “Ninguém poderá vir a mim, se, pelo [meu] Pai, não lhe for concedido”. Esta declaração é uma proposição negativa universal. Declara uma incapacidade universal. A palavra poderá não descreve permissão, mas poder ou capacidade. Dizer que ninguém pode fazer alguma coisa é dizer que são incapazes de fazê-lo. A verdade nua expressa por Jesus é que nenhuma pessoa tem a capacidade de chegar a Cristo por conta própria. Para uma pessoa poder chegar a Cristo, primeiro precisa ser concedido ou “dado” àquela pessoa chegar a Cristo. Deus precisa fazer algo para vencermos nossa incapacidade moral de chegar a Cristo. Não podemos abraçar Cristo na came. Sem0 auxílio do EspíritoSanto, não podemos chegar a Cristo. A afirmação de Jesus sobre nossa incapacidade natural de chegar a ele é uma expressão forte e radical. É tão forte quanto a posição tomada por Agostinho, Calvino, Lutero e Edwards. Na verdade esses teólogos foram muitíssimo influenciados por essas palavras de Cristo. O auditório de Cristo reagiu fortemente ao ensino dele, e muitos de seus seguidores0 deixaram. Suponho que saíram para se unir às fileiras dos pelagianos daquela época. O teólogo batista Roger Nicole uma vez observou: “Somos todos, por natureza, pelagianos”. Temos a tendência de pensar em categorias pelagianas e achamos difícil escapar delas. Nem mesmo a conversão a Cristo nos cura instantaneamente dessa tendência. O pelagianismo permanece vivo e passa bem na casa evangélica. Por causa de nossa depravação e dos efeitos do pecado srcinal, só achamos libertação pela graça de Deus.A Confissão de Westminster diz 0 seguinte:
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O que é Teologia Reformad a
Quando Deus converte um pecadortransfere e para o estado de graça, liber0 ta-0 da sua natural escravidão ao pecado; e, somente pela sua graça, o habilita a querer e fazer livremente 0 que é espiritualmente bom; mas isso de tal modo que, por razão da corrupção que ainda ele tem, esse pecador não faz o bem perfeitamente, nem deseja só o que é bom, mas também o que é mau. A vontade do homem se toma perfeita e imutavelmente livre somente para o bem só no estado de glória.6
A confissão entende que uma pessoa que é inclinada em somente uma direção, quer para bem ou para mal, ainda é livre em certo sentido. Essa liberdade é real. 0Por exemplo, 0Deus é totalmente livre, contudo ele é moralmente incapaz de pecar. Esta incapacidade tem sua raiz em seu caráter, sua justiça intema pela qual ele nunca deseja ou está inclinado a pecar. 0 bem. Essa falta de desejo de mal não Ele é livre, mas livre somente para diminui a liberdade de Deus; ela a acentua. Do mesmo modo, em nosso estado glorificado no céu seremos incapazes de pecar porque todo desejo de pecado e todos os ve stí gi os de p ecado 0 que srcinal serão removidos de nós. Ainda estaremos livres para escolher queremos, mas escolheremos somente0 bem porque é a única coisa que desejaremos. Essa é a liberdade à qual Agostinho se referiu como liberdade no grau máximo.
/
c^pítu
7
A opção soberana de Deus
S
iando alguém menciona o termo Calvinismo, a resposta cosumeira é: “Ah! você quer dizer a doutrina de predestinação?” cação de Calvinismo com predestinação é tão estranha quanto
é verdadeira e muito difundida. Calvinismo na verdade se prende com firmeza à doutrina bíblica da predestinação. A visão reformada da doutrina é central para 0 Calvinismo histórico. Praticamente nada na visão de predestinação de João Calvino, contudo, esteve primeiro em Martinho Lutero, e antes de Lutero em Agostinho (e dis cu tiv elm en te em Tomás de Aquino). Lutero escreveu mais sobre 0 assunto do que Calvino. O tratamento de predestinação em suas famosas lnstitutas da Religião Cristã é esparso em comparação com outras doutrinas. Quase toda igreja já desenvolveu alguma forma da doutrina de predestinação, mesmo porque a Bíblia ensina predestinação. Predestinação é uma palavra bíblica e um conceito bíblico. Se a pessoa busca desenvolver uma teologia que seja bíblica, ela não pode evitar a doutrina de predestinação. O termo predestinação ou predestinado é usado liberalmente pelo apóstolo Paulo: ♦
O que é Teologia Reformada
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Tabela —
A Segunda Pétala da Tulipa Corrupção radical da humanidade Uma eleição incondicionalA opção soberana de Deus A expiação propositada de Cristo Limitada expiação 0 chamado eficaz do Espírito Irresistível graça Perseverança dos santos Deus preserva os santos
1. Total depravação
2. 3. 4. 5.
Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no 0 mistério da sua vontade, segundo 0 seu beneAmado ... desvendando-nos plácito que propusera em Cristo, de fazer convergir nele, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra; nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propó0 conselho da sua vontade, a sito daquele que faz todas as coisas conforme fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo. Efésios 1.3-12
Paulo fala de crentes serem predestinados conforme o conselho da vontade de Deus. A pergunta então não é: a Bíblia ensina predestinação? Mas é:0 que, exatamente, significa 0 conceito bíblico de predestinação? Em seu sentido mais básico predestinação tem a ver com a questão de destino. Um destino é um ponto em direção ao qual estamos nos movendo, mas que ainda não alcançamos. Quando reservamos passagens de avião, não as reservamos para lugar nenhum. Nós temos um destino em mente, um lugar ao qual desejamos chegar. Quando acrescentamos0 prefixopre ao destino, falamos em algo que ocorre antes do destino. pre O de predestinação tem relação à questão de tempo. Em categorias bíblicas a predestinação claramente ocorre, não
A opção sob erana de Deus
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só antes de crermos em Cristo, e não só até antes de nascermos, mas desde toda a eternidade, antes do universo ser criado no tempo. O agente de predestinaçãojé Deus. Em sua soberania ele predestina. Seres humanos são o objeto de sua predestinação. Em suma, predestinação, se refere ao plano soberano de Deus para seres humanos, decretado por ele "na eternidade. Precisamos acrescentar, contudo, que 0 conceito de predestinação inclui mais do que 0 destino futuro dos humanos. Também inclui tudo 0 que vem a acontecer no tempo e espaço. Muitas vezes 0 termoeleição é usado como sinônimo de predestinação. Tecnicamente isso é incorreto. O.termoeleição se refere especificamente a umaspecto da predestinação divina: Deus estar escolhendo certos indivíduos para serem salvos. O termo
eleição tem uma conotação positiva, referindo-se a uma predestinação benevolente que resulta na salvação daqueles que são eleitos. Eleição também tem um lado negativo, chamado “reprovação”, que envolve a predestinação daqueles que não são eleitos. Resumindo, podemos definir predestinação de maneira ampla do seguinte modo: desde toda a eternidade Deus decidiu salvar alguns membros da raça humanae deixar o restante da raça humana perecer. Deus fez uma escolha - el e es co lh eu alguns indivíduos para serem salvos para bem-aventurança eterna no céu, e ele escolheu outros para passar por cima, permitindo que sofram as conseqüências de seus pecados,0 castigo eterno no inferno. C
ondicional
o u incondicional
?
Será que nossas vidas individuais têm qualquer peso sobre a decisão de Deus? Esta é uma questão difícil e que precisa ser tratada com muito cuidado. Embora Deus faça sua escolha antes de nascermos, ele ainda sabe tudo sobre nós e nossas vidas antes que as vivamos. Será que ele leva esse conhecimento prévio de nós em conta quando toma sua decisão com respeito à eleição? Como respondemos a essa pergunta revela se nossa visão de predestinação é reformada ou não reformada. A questão é a seguinte: em quê Deus baseia a decisão dele de eleger uns e não outros? No acróstico TULIP 0 U se refere a “eleição incondicional” (“unconditional”). A palavra incondicional distingue a doutrina reformada de predestinação daquela de outras teologias. Durante a Guerra Civil america-
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O que é Teologia Reformada
na . Ulysda sesrendição S. Grant total), foi apelidado de “unconditi onalU.surrender” Grant ( em Grant mantendo suas iniciais S. Rendição total guerra é aquela que exclui negociações. Não há espaço para “eu faço isso se você fizer aquilo”. A rendição é total e completa. O inimigo derrotado entrega tudo, enquanto que 0 vitorioso não entrega nada. Esse tipo de rendição, observado a bordo do navio de guerra USS Missouri, trouxe o fim da Segunda Guerra Mundial. O termo incondicional simplesmente significa “sem 0 afixamento de condições7quer previstas ou não”. Muitas igrejas reformadas ensinam que a eleição é condicional. Deus elege certas pessoas à salvação, mas só quando satisfazem certas condições. Não é que Deus espera essas pessoas satisfazerem essas condições antes de escolhê-las. Eleição condicional é geralmente baseada na presciência de ações e reações (ou respostas) humanas. Muitas vezes isto é chamado de visão presciente da eleição ou predestinação. O termo presente ou pré-ciente simplesmente se refere a conhecimento antecipado.*A idéia é que desde toda a eternidade Deus olha pelo túnel do tempo e sabe de antemão quem vai responder positivamente ao evangelho e quem não vai. Ele sabe de antemão quem irá exercer fé e quem não irá. Com base nesse conhecimento prévio, Deusescolhe alguns. Ele os elege porque sabe que terão fé. Ele s abe quem satisfará as «mdições para eleição e nessa base os elege. O texto-prova favorito para o ponto de vista presciente da eleição está em Romanos: “Porquanto aos que de antemão conheceu,\ também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja 0 primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que ' justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.29,30). Vemos nesse texto que0 pré-conhecimento de Deus vem antes da predestinação. Aqueles que defendem a visão presciente presumem que, visto que pré-conhecimento precede predestinação, pré-conhecimento deve ser a base da predestinação. Paulo não diz isto. Ele simplesmente diz que Deus predestinou aqueles a quem conheceu de antemão. Quem mais ele poderia concebivelmente predestinar? Antes que Deus possa escolher alguém para alguma coisa, ele deve tê-lo em mente como objeto de sua escolha. Quando Paulo liga predestinação a pré-conhecimento não diz nada sobre se esse préconhecimento inclui a pessoa satisfazer alguma condição para eleição. Na realidade, Romanos 8.29,30 pesa contra a óptica presciente da eleição. Paulo começa com presciência e então vai passando pela “corrente •/
A opção sober ana de Deus
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dourada” da salvação via a predestinação,a chamada, a justificação e a glorificação. pergunta crucial é aconheceu relação entre chamada justificação. A correnteAdiz que aqueles queaqui Deus de antemão eleetambém predestinou. O texto é elíptico: não inclui0 termotodos, mas deixa implícita a palavra (há traduções da Bíblia que0 deixam claro). O sentido do texto é que todos a quem Deus conhece de antemão (a quem em qualquer sentido ele ‘pré-conhece’) ele predestina. E todos a quem predestina ele chama. E todos que ele chama ele justifica. E todos a quem ele justifica ele glorifica. A corrente é: pré-conhecimento-predestinação-chamado-justificação-glorificação. É significativo que todos os que são chamados são também justificados. O que Paulo quer dizer aqui com “chamado”? Em teologia distinguimos entre dois tipos de chamado divino:0 chamadoexterno e 0 interno. ^ N ós vem os o chamado externo de Deus na pregação do evangelho. Toda pessoa que ouve a pregação do evangelho é chamada ou convocada para Cristo.Mas não é toda pessoa que responde afirmativamente a esse 0 chamado extenuo. Alguns ò ignoram e outros0 rejeitam de vez. Por vezes evangelho cai em ouvidos surdos. A Escritura é clara quanto ao fato de que nem toda pessoa que ouve o evangelho externamente é automaticamente justificada. Justificação não é pelo ouvir 0 chamado, mas sim pelo crer no chamado. Portanto, pelo menos em algum sentido, há alguns (na verdade muitos) que são chamados mas não são escolhidos. Muitos ouvem aquele chamado externo do evangelho mas nunca são justificados. Contudo, na corrente de ouro Paulo diz que aqueles que são chamados por Deus são também justificados por ele. A não ser que se seja um universalista, não se pode concluir que isto se refere simplesmente ao chamado externo do evangelho. A teologia também fala do chamado interior de Deus, que não é dado a todas as pessoas. A teologia reformada chama isso do chamado eficaz (que será discutido mais plenamente no Capítulo 9). Todos os que recebem esse chamado estão inclusos naqueles que sãojustificados. Novamente isso presume que0 texto implica que todos que são chamados são justificados. O texto não diz isso explicitamente. É possível interpretá-lo para entender que alguns que são chamados são justificados. Mas se0 termoalguns está implícito aqui a esta altura0 texto diria que alguns a quem Deus pré-conheceu ele predestinou, alguns a quem predestinou ele chamou, alguns que ele chamou ele justificou e alguns que ele justificou ele glorificou. Isso tira todo
O que é Teologia Reform ada
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todos implícito aqui não é va go e incerto. 0 sentido das palavras de Paulo. O
É claramente implícito pelo fraseado do texto. A
ORDEM D
A SALVAÇÃO
Estamos tratando aqui da ordem da salvação (ordo salutis). Notamos que predestinação antecede ao chamado. Se 0 chamado antecedesse à predestinação, poderia ser defendida uma causa a favor de visão presciente. Assim poderia ser presumido que predestinação é baseada em chamado em vez de chamado em predestinação (embora a diferença entre 0 chamado externo e0 chamado interno ainda ficaria problemática). A teologia reformada entende a corrente dourada como significando que Deus predestina algumas pessoas para receberem um chamado divino que outros não recebem. Só os predestinados, ou os eleitos, recebem esse chamado, e só aqueles que recebem esse chamado são justificados. Um processo de seleção está claramente envolvido aqui. Nem toda pessoa é predestinada para receber esse chamado, a conseqüência da qual é a justificação. Semelhantemente fica claro que só aqueles que são predestinados são justificados. Visto que justificação é por fé, nós entendemos que só os predestinados terão fé em algum tempo. A visão presciente mantém que somos eleitos porque teremos fé. A visão reformada mantém que somos eleitos para a f é e a justificação. Fé é uma condição necessária para salvação, mas não para eleição. A visão presciente faz a fé ser uma condição para eleição. A teologia reformada.vê fé como o resultado de eleição. Essa é a diferença fundamental entre eleição condicionai e ele içã o in condicion al, entre todas as formas de semipelagianismo e agostinianismo, entre arminianismo e calvinismo. *Teólogos reformados entendem a corrente dourada do seguinte modo: desde toda a eternidade Deus pré-conheceu os seus eleitos. Ele teve uma idéia de sua identidade em sua mente antes de criá-los. Ele os pré-conheceu não só no sentido de ter uma idéia antecipada de suas identidades pessoais, mas também no sentido de amá-los de antemão. Quando a Bíblia fala de “conhecer”, muitas vezes ela distingue entre uma simples percepção mental de uma pessoa e um amor profundo íntimo de uma pessoa. A visão reformada ensina que todos a quem Deus pré-conheceu ele também predestinou para serem interiormente chamados, justificados e glorificados.
A opção sobera na de Deus
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Deus, faz acontecer a salvação de seus eleitos, e somente de seussoberanamente, eleitos. Figura — 7.1
A Corrente Dourada da Salvação
P r é -c o n h e c i me n t o
P r e d e st in a ç ã o
Chamado
J u st ifi cação
G l o r if i c a ç ã o
A Confissão de Westminster declara:
Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e alguns anjos são predestinados para a vida eterna; e outros são preordenados para a morte eterna. - lar Esses anjos e esses homens, assime predestinados e preordenados, são que particue imutavelmente designados; seu número é tão certo e definido não pode ser nem aumentado nem diminuído. __ Segundo o seu eterno e imutável propósito e segundo o conselho secreto e o 0 mundo criado, escolheu beneplácito da sua vontade, Deus, antes que fosse ' em Cristo para a glória eterna os homens que são pred estinados ar p a a vida;
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O que é Teologia Refor mada
para o louvor da sua gloriosa graça, ele os escolheu somente por sua livre graça e por seu amor, sem nenhuma previsão de fé ou de boas obras, ou de perseverança nelas, ou de qualquer coisa na criatura como condições ou causas que a isso0 movesse.1
A Confissão explica detalhadamente0 que se entende por eleição incondicional. As bases de nossa eleição não são algo previsto por Deus em nós, mas, antes, o bel-prazer de sua vontade soberana. Aqui a soberania de Deus se refere não só ao seu poder e autoridade como também à sua graça. Isso ecoa 0 que Paulo declara enfaticamente em Romanos: E não ela somente, mas também Rebeca, ao conceber de um só, Isaque, nosso pai. E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou 0 mal (para que 0 propósito de Deus, quanto à eleição, prevalecesse, não por obras, mas por aquele que chama), já fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú. Que diremos, pois? Há injustiça da parte de Deus? De modo nenhum! Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia. Romanos 9.10-16 0 que Deus tinha declarado a Moisés: “TePaulo lembra aos romanos rei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia, e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão”. O princípio é o da soberania da misericórdia e graça de Deus. Por definição graça não é algo que é exigido que Deus tenha. É prerrogativa soberana dele conceder ou retê-la. Deus não deve graça a ninguém. Graça que é devida não é graça. Justiça impõe obrigação, mas graça, em sua essência, é voluntária e livre.
A base na qual Deus escolhe os objetos de sua misericórdia é inteiramente 0 bel-prazer de sua vontade. Paulo toma isso claro: “Bendito o Ueuse Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de
A opção soberana de Deus
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filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo 0 beneplácito de sua vontade” (Ef 1.3-5). Que Deus escolhe de acordo com 0 bom prazer de sua vontade não significa que suas escolhas são por capricho ou arbitrárias. Uma escolha arbitrária é aquela por nenhuma razão. Embora a teologia reformada insista que a eleição de Deus não é baseada em nada previsto nas vidas dos indivíduos, isso não significa que ele faça a escolha por nenhuma razão mesmo. Simplesmente significa que a razão não é algo que Deus encontra em nós. Em sua vontade inescrutável, misteriosa, Deus escolhe por razões que só ele conhece. Ele escolhe conforme seu próprio prazer, que é direito divino dele. Seu prazer é descrito como seu bom prazer. Se algo agrada a Deus, deve ser mau de prazer Deus.smo, em última análise, as bases Embom. todaNão s as há formas semipem elagiani da eleição de Deus repousam inevitavelmente sobre as ações de homens. Aqui é onde ve m o s a influência pervagante de pelagianismo sobre a igreja moderna. Paulo declara enfaticamente que a base de Deus eleger Jacó em lugar de Esaú não se achava nas ações de nenhum dos dois irmãos. A primeira coisa que notamos sobre a declaração do apóstolo é que ela se refere a indivíduos. Alguns têm argumentado que Paulo está se referindo em vez disso a nações ou grupos e que eleição não se aplica a indivíduos. Fora0 fato que nações são compostas de mp indivíduos, o ponto é us quedois Paulo explica eleição citan do co m o exe los da eleição sobesaliente rana de De indivíd uos distintos, hist óri cos. Es ses indivíduos estavam tão próximos como duas pessoas podem estar. Não eram apenas irmãos de uma só família, eram irmãos gêmeos. Paulo diz que o decreto de eleição de Deus ocorreu antes que os meninos foss em na sc id os ou ti vessem feito qualquer coisa boa ou má. Por que 0 apóstolo diz isso? Qual é 0 objetivo didático ou literário de dizer que os gêmeos ainda não eram nascidos ou não tinham feito nada de bom ou mau? A visão presciente de eleição condicional concorda que a eleição de Deus ocorreu antes que os gêmeos fossem nascidos e antes que tivessem feito algo bom ou mau. Mas isso é trabalhar0 óbvio. A visão presciente declara então que 0 decreto foi, não obstante, baseado nas ações e decisões dos gêmeos no futuro. O apóstolo não diz em parte nenhuma isso. Se Paulo tivesse a intenção de ensinar a visão presciente, ele poderia ter dito precisamente isso. Mas estamos tratando aqui com
O que é Teologia Reform ada
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mais do que um argumento a partir de silêncio. Paulo toma claro que não foram as ações de Jacó ou Esaú que determinaram a soberana escolha de Deus de Jacó, acima de Esaú. “Não é daquele que quer, nem daquele que corre, mas de Deus que mostra misericórdia.” Em arminianismo0 fator decisivo na eleição é a vontade disposta do crente. Como poderia0 apóstolo ter tomado isso mais claro, que este não é 0 caso em que dizer “não é daquele (por aquele) que quer”? Arminianos e semipelagianos no fim baseiam sua visão de eleição naquele que faz a opção e não na graça soberana de Deus. A visão presciente na eleição não é tanto uma explanação da doutrina bíblica de eleição como uma negação completa dessa doutrina bíblica.
E leição
e j u s t iç a d e
D eu s
Em Romanos Paulo faz uma pergunta retórica: “Que diremos pois? Há injustiça com [em] Deus?” Novamente perguntamos por que Paulo fez essa pergunta. Ele era um professor, um mestre por excelência. Ele antecipava objeções que poderiam ser levantadas por seu ensino, e ele tratava delas assumidamente. Que objeção ele tem em vista quando levanta a questão de injustiça em Deus? Primeiro consideramos a visão presciente da eleição. Que objeções levantadas contra ela incluem o ataque que há injustiça em Deus? Nenhuma. A visão condicionalda eleição é proposta para proteger duas fronteiras: de um lado, uma visão particular de liberdade humana, e do outro uma visão específica de Deus. Buscam proteger Deus da acusação de que ele é parcial, arbitrário ou injusto, escolhendo algumas pessoas para salvação sem levar em conta suas próprias escolhas. Em resumo, oposição a visões arminianas ou semipelagianas de eleição não inclui a acusação de que isso coloca em dúvida a justiça de Deus. Se Paulo estivesse expondo a visão presciente, dificilmente esperaríamos ele alevantasse objeção desse tipo.ouvem A objeção que Pauloque chega anteciparuma é uma que calvinistas constantemente: a doutrina calvinista de eleição lança uma sombra sobre a justiça de Deus. A reclamação forte e freqüente é que a eleição incondicional envolve Deus numa espécie de injustiça. Minha suposição é que Paulo antecipou a própria objeção levantada que calvinistas ouvem porque ele ensinou a mesma doutrina de eleição que calvinistas ensinam. Quando
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nossa doutrina de eleição é atacada, eu me consolo que estamos em boa companhia, a do próprio Paulo, quando precisamos suportar as objeções capciosas daqueles que fazem oposição à eleição incondicional. A idéia de que pode haver injustiça em Deus é relacionada ao fato de Deus escolher alguns para salvação enquanto passa por cima de outros. Não parece justo nem “direito” Deus conferir sua graça em alguns mas não em outros. Se a decisão de abençoar Jacó e não Esaú foi feita antes de um dos dois nascer ou ter feito algo de bem ou mal, e se a escolha não foi com vistas a suas ações ou reações futuras, então a pergunta óbvia é: Por que um recebeu a bênção e não o outro?” Paulo responde isso apelando a palavras de Deus a Moisés: “Eu terei misericórdia de quem eu terei misericórdia”. É prerrogativa de Deus dispensar sua graça conforme ele acha por bem. Ele não ficou devendo nem a Jacó nem a Esaú qualquer medida de graça. Se não tivesse escolhido um dos dois, ele não teria violado nenhum preceito de justiç a ou retidão. Ainda parece que se Deus dá graça a uma pessoa, no interesse de justiça e le “dever ia” dar graça igualmente para outra. E precisamente esse “dever” que é estranho ao conceito bíblico de graça. Entre a massa de humanidade decaída, todos culpados de pecado diante de Deus e expostos à sua justiça, nenhum tem qualquer reivindicação ou autorização à misericórdia de Deus. Se Deus escolhe conceder misericórdia a alguém daquele grupo, isso não requer que ele dê isso a todos. Deus certamente tem poder e autoridade de conceder sua graça salvadora a toda a humanidade. É óbvio que ele não optou fazer isso. Os homens não são todos salvos, apesar do fato que Deus tem 0 poder e0 direito de salvá-los todos se esse é seu bel-prazer. Também está claro que nem todos 0 são perdidos. Deus poderia ter escolhido não salvar ninguém. Ele tem poder e a autoridade de executar sua reta justiça não salvando ninguém. Na realidade el e opta por salvar alguns, mas não todos. Aqueles que são salvos são beneficiários de sua soberana graça e misericórdia. Àqueles que não são salvos não são vítimas de crueldade ou injustiça; eles são recebedores de justiça. N ing ué m recebe castigo às mãos de Deus que não mereça. Alguns recebem graçamisericórdia das mãos dea Deus quenão nãosignifica merecemque . Porosele se agradar tanto em conceder alguém demais “merecem” 0 mesmo. Se a misericórdia é merecida, ela não é misericórdia realmente, e sim justiça. A história bíblica deixa claro que embora Deus nunca seja injusto a
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ninguém, ele nâo trata todas as pessoas igualmente ou de um mesmo modo. Por exemplo. Deus. em sua graça, chamou Abraão para sair de seu paganismo em Ur dos caldeus e fez um pa cto gracioso com ele que não fez com outros pagãos. Deus se revelou a Moisés de uma maneira que não concedeu a faraó. Deus deu a Saulo de Tarso uma revelação bendita da majestade de Cristo que não deu a Pilatos ou Caifás. Por Deus ser tão gracioso a Paulo quando ele foi um perseguidor violent o de cristãos, será que por iss o e le era obrigado a dar a mesma vantagem revelatória a Pilatos? Ou houve uma qualidade virtuosa especial em Saulo que inclinou Deus a escolhê-lo acima de Pilatos? Poderíamos saltar por cima dos séculos para nosso próprio tempo com uma pergunta similar. Nós, crentes, precisamos perguntar por que chegamos à fé enquanto que muitos de nossos amigos não chegaram. Será que exerc emos fé em Cris to porque so m os mais inteligentes do que aqueles outros? Se é assim, de onde ve io essa intel igên cia? É algo que fizemos por merecer? Ou foi a nossa própria inteligência uma dádiva de nosso Criador? Nós respondemos positivamente ao evangelho porque somos melhores ou mais virtuosos do que nossos amigos? Todos nós sabemos as respostas a essas perguntas. Eu não posso explicar adequadamente por que cheguei à fé em Cristo e alguns de meus amigos não. Só posso olhar para a glória da graça de Deus para comigo, uma graça que eu não mereci na ocasião e não mereço agora. Aqui uma e outra coisa se reuniram, e nós descobrimos se estamos abrigando um orgulho seereto, crendo que merecemos salvação mais do que outros. Eis aí um grande insulto à graça de Deus e um monumento à nossa própria arrogância. É uma inversão à pior forma que há de legalismo, pela qual nós , n o fim, co lo ca m os nossa confiança em nosso próprio acionamento.
E leição
e incapacidade
moral
Aqueles que preferem uma visão condicional de eleição ou algum tipo de presciência como a base de eleição enfrentam uma dificuld ade séria. Precisam presumir que pessoas caídas são moralmente capazes de responder ao evangelho. Essa presunção é semipelagiana porque pressupõe que 0 pecado srcinal enfraquece a vontade mas não a deixa moralmente incapaz de se inclinar às coisas de Deus. Não obstante, 0 pecado srcinal permanece com algum poder espontâneo na carne que pode se inclinar a coisas espi-
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rituais. Dissemos anteriormente que se a pessoa concorda com a doutrina de total depravação, 0 T em TULIP, então 0 U de eleição incondicional (Uniconditional election) segue necessariamente. Se a pessoa é incapaz de satisfazer as condições, então a eleição precisa ser incondicional. Se a visão de pecado srcinal da Reforma está correta, então Deus não veria nenhuma criatura caída escolher Cristo no futuro. Deus saberia desde toda a etemidade que, deixados para si mesmos, criaturas caídas não escolherão Cristo. Como vimos, o Evangelho de João relata que Cristo tratou desse assunto: (Jesus disse) Contudo, há descrentes entre vós. Pois Jesus sabia, desde 0 prin0 havia de trair. E prosseguiu: Por cípio, quais eram os que não criam e quem causa disto, é que vos tenho dito: ninguém poderá vir a mim, se, pelo Pai, 0 abandonanão lhe for concedido. A vista disso, muitos dos seus discípulos ram e já não andavam com ele. Então, perguntou Jesus aos doze: Porventura, quereis também vós outros retirar-vos? Respondeu-lhe Simão Pedro: Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna. João 6.64-68
Jesus diz que ninguém pode vir a ele sem uma concessão do Pai. 0 princípio João relaciona isso com o comentário de Jesus, Outra que sabia quais eram aqueles que não criam e o trairiam. vez adesde reação ao ensino de Jesus é impressionante: muitos de seus discípulos o abandonaram. Por que ficaram ofendidos pelas palavras de Jesus? Se é dado às palavras um aspecto arminiano, não vemos razão para a ofensa. Se entenderam que as palavras de Jesus estavam ensinando incapacidade moral e uma dependência co mp let a da graç a de De us, não havia por que ficarem ofendidos. A doutrina de incapacidade moral tem ofendido a muitos, e muitos têm rejeitado a teologia reformada precisamente por isso. Também interessante é a reação de Pedro às palavras de Jesus. Jesus perguntou a Pedro: “Vo cê também quer ir embora?” “Senhor, para quem iremos?” Pedro responde: “O Senhor tem as palavras de vida eterna”. Essa resp osta suger e que Pedro estava menos do que apaixonado pelo ensino de Jesus. Ele pode ter estado dizendo: “Eu não gosto desta doutrina mais do que aqueles que saíram andando, mas aonde mais podemos ir? O
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O que é Teologia Reformada
Senhor é o professor que nós seguimos e em quem confiamos. O Senhor tem as palavras de vida eterna, por isso vamos ficar com o Senhor, mesmo se ensina algumas coisas difíceis”. Antes, no Evangelho de João, Jesus diz algumas coisas semelhantes com respeito à incapacidade moral: “Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim se0 Pai, que me enviou, não0 trouxer (atrair), e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.43,44). A palavra-chave nesta afirmaçãoatrair. é O que se quer dizer com esse atrair? Muitas vezes já ouvi iss o exp lic ado que, para uma pessoa vir a Cristo, Deus,0 Espírito Santo, precisa primeiro atraí-la para depois se achegar. Temos a capacidade, porém, de resistir a esse atrair e recusar o convite. Embora essa atração seja uma condição necessária para se chegar Cristo,Nós nãonão é uma condição suficiente. É necessária, masmas nãoo força, não aobriga. podemos ir a Cristo sem sermos atraídos, atrair não garante que nos chegaremos a Cristo. Estou persuadido de que essa explicação é incorreta. Faz violência ao texto da Escritura, especialmente ao sentido bíblico da palavra atrair. A palavra grega usada elkõ. é O TheologicalDictionary o f the New Testament, de Gerhard Kittel, defineelkõ como significando “constranger, forçar por irresistível superioridade”. Lingüística e lexicograficamente a palavra significa simplesmente “compelir, atrair”.2 “Compelir” é muito mais forte do que “atrair”. Para ver a força desse verbo, examinemos duas outras passagens no Novo Testamento em que se usa elkõ. A primeira passagem está em Tiago 2.6: “Entretanto, vós outros menosprezastes0 pobre. Não são os ricos que vos oprimem e não são eles atr air aqui, que vos arrastam para tribunais?” Se substituirmos a palavra 0 texto seria: “Não são os ricos que vos oprimem e não são eles que vos atraem para tribunais?” A segunda passagem é Atos 16.19: “Vendo os seus senhores que se os arraslhes desfizera a esperança do lucro, agarrando em Paulo e Silas, taram para a praça, à presença das autoridades”. Seria enganoso dizer que Paulo e Silas foram “atraídos” às autoridades. Uma vez agarrados forçadamente, eles não poderiam ser atraídos. O texto claramente indica que eles foramforçados a comparecer diante das autoridades. Uma vez fui convidado a participar de um debate formal no assunto de uma eleição num seminário arminianismo. Meu oponente era o chef e do departamento de Novo Testamento. Num ponto crucial do debate, focamos nossa atenção no Pai “atrair” pessoas a Cristo. Meu adversário apelou a
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0 seu João nunca 6.44 para argumentar pontoque queaDeus “atrai1’ homens Cristo mas os força a vir. Ele insistia influência divina sobre 0a ho mem caído se restringe à atração, que ele interpretou como significando “cortejar”. A essa altura eu 0 referi a Kittel e às outras passagens no Novo Testamento que traduzem a palavraelkõ com a palavraarrastar. O professor estava pronto para mim. Citou um exemplo em drama grego em que a mesma palavra é usada para descrever a ação de tirar água de um poço. Ele olhou para mim e disse: “Bem, professor Sproul, a gente arrasta água de um poço?” Instantaneamente 0 auditório caiu na risada com esse uso da
palavraQuando grega. os risos passaram, eu respondi: “Não, senhor, tenho de admitir que não arrastamos água de um poço. Mas como tiramos água de um poço? Será que a atraímos: ficamos em pé no alto do poço e chamamos: “aqui, vem água, água, água?” E tão necessário Deus nos atrair, ou nos virar para Cristo, como é puxar para cim a o balde para beber água do poço. A água simplesmente não virá por conta própria, não importa quanto roguemos. 0 arA questão de atrair ou puxar precisa de mais exame. Quando miniano fala no atrair do Espírito, será que ele crê que a ação do Espírito 0 puxar para fora é externa à pessoa ou interna? É a atração simplesmente ou a força da pregação da Palavra? Ou então0 Espírito Santo de alguma maneira penetra até a alma e então faz sua obra de atrair? É uma tentativa de persuasão interior? Caso seja, a ação do Espírito ainda é externa à alma porque não faz nada que seja realmente para compelir a alma. Outras perguntas difíceis são enfrentadas por arminianos a essa altura. Duas questões importantes são as seguintes: Ia.) Deus atrai todos os homens igualmente? 2a.) Por que algumas pessoas respondem favoravelmente à força de atração do Espírito Santo? Quanto à primeira pergunta, se Deus não atrai todas as pessoas igualmente, então todas as objeções à visão reformada de eleição incondicional precisam ser levantadas aqui também. Deus não atrai todos os homens igualmente porque alguns têm maior poder de responder do que outros? O arminiano pode responder que Deus atrai só aqueles que ele sabe que responderão favoravelmente. Sendo assim, então Deus nem tenta ganhar aqueles que nunca chegam à fé. Poucos, se é que alguns, arminianos estão dispostos a dizer isso.
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A segunda ta: por que alguns respond em favoque ravelm ente ao Espírito Santoperg emunta vez édeesrecusar o seu atrair? Se dizemos a resposta está na intensidade do procurar atrair (a saber, que o Espírito seduz alguns mais fortemente do que outros), então estamos de volta ao problema da seleção soberana. Se dissermos em vez disso que alguns respondem favoravelmente à sedução por causa de algo encontrado neles, então enraizamos nossa salvação, em última análise, numa obra humana. Será que a pessoa responde positivamente à sedução em razão de maior inteligência ou maior virtude? Sendo assim, então temos algo sobre 0 qual nos gabar. Quando eu coloco essa pergunta a meus amigos arminianos, eles 0 dilemaou prontamente e buscam evitá-lo, dizendo: “Claro não é uma questão devêem inteligência de qualquer virtude superior inerentque e naqueles que respondem positivamente. Eles respondem assim porque vêem mais claramente sua necessidade de Cristo”. Com essa resposta eles cavam e se 0 problema um passo. afundam mais no buraco. A resposta só adia Por que algumas pessoas vêem sua necessidade de Cristo mais ciaramente do que outras? Será que receberam maior iluminação do Espírito Santo? São mais inteligentes? Têm menos preconceitos contra Cristo e es0 que é em si uma virtude? Não importa tão mais abertas a seu chamado, como se protela, mais cedo ou mais tarde temos de enfrentar a questão de
maior Seguin ou menor do a virtude liderançainerente. de Paulo em Efésios, a teologia reformada ensina que a própria fé é um dom ofertado aos eleitos. Deus mesmo cria a fé no coração do crente. Deus mesmo preenche a condição necessária para salvação, e ele faz isso sem impor condição. Novamente olhamos as palavras de Paulo: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10). Muito debate tem decorrido com respeito ao sentido da primeira senistopedem salvos de tença. Qual é0 antecedente qual a palavra se refere: on fé? As regras de sintaxe eaogramática grega que ograça, antecedente isto seja a palavrafé. Paulo está declarando0 que toda pessoa reformada afirma, que fé é um dom de Deus. Fé não é algo que fazemos aparecer por esforço próprio, ou o resultado do querer da carne. Fé é um resultado da obra soberana do Espírito da regeneração. Não é acidente que essa declaração concluía uma passagem que começa com a declaração de Paulo de
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que temos sido renovados “no espírito do nosso entendimento” enquanto estávamos num estado de morte espiritual. P r e de sti n aç ão
dupla
?
Em qualquer ocasião em que surge 0 assunto de predestinação ou eleição, a pergunta se segue depressa: “É predestinação una ou dupla?” Geralmente logo atrás dessa pergunta está uma interrogação velada a respeito de infra ou supralapsarianismo. Visto que essa questão já é um tanto enigmática, não vamos tratar dela aqui. A questão mais profunda é como a reprobação (“o decreto da providência referente à condenação dos maus às penas eternas”) está relacionada com a eleição. Reprobação0élado leviano de eleição, o lado escuro do assunto que levanta muitas preocupações. E é a doutrina da reprobação que tem feito aparecer 0 rótulo de “decreto horrível”. Uma coisa é falar na graciosa predestinação à eleição de Deus, mas outra é falar no decreto de Deus, desde toda a eternidade, de que certas pessoas desafortunadas estão destinadas à condenação às penas eternas. Alguns defensores de predestinação argumentam a favor de uma predestinação única. Mantêm que, embora alguns sejam predestinados à eleição, ninguém é predestinado à condenação ou reprovação. Deus escolhe alguns que definitivamente salvará, mas deixa aberta a oportunidade de salvação para o restante. Deus se certifica de que alguns indivíduos são salvos providenciando para eles ajuda especial, mas0 restante da humanidade ainda tem uma oportunidade de ser salva. Eles podem, de algum modo, tornar-se eleitos respondendo positivamente ao evangelho. Esse modo de ver é baseado mais em sentimento do que em lógica ou exegese. É manifestamente óbvio que se algumas pessoas são eleitas e algumas não são eleitas, então a predestinação tem nela dois lados. Não é suficiente falar em Jacó; também precisamos considerar Esaú. A não ser que a predestinação seja universal, ou para eleição universal ou reprovação universal, ela precisa ser dupla em algum sentido. Dado que a Bíblia ensina tanto eleição como particularismo, não podemos evitar 0 assunto de predestinação dupla. A pergunta então não é se predestinação é dupla, mas como a predestinação é dupla. Há dois pareceres diferentes de predestinação dupla. Um deles é tão assustador que muitos recusam completamente 0 uso do termodupla predestinação. Essa
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visão assustadora é chamada deultimação igual, e se baseia numa visão simétrica de predestinação. Ela vê uma simetria entre a obra de Deus em eleição e sua obra em reprovação. Ela busca um equilíbrio exato entre os dois. Assim como Deus intervém na vida dos eleitos para criar fé em seus corações, assim ele similarmente intervém nos corações dos réprobos para operar descrença. Esta é inferida de passagens bíblicas que falam em Deus endurecer os corações das pessoas. A teologia reformada clássica rejeita a doutrina de ultimação igual. Embora alguns tenham rotulado essa doutrina de “hipercalvinismo”, eu prefiro chamá-la de “subcalvinismo”, ou, até mais precisamente, “anticalvinismo”. Ainda que 0 calvinismo certamente mantenha uma espécie de predestinação dupla, ela não abraça a ultimação igual. A visão reformada faz uma distinção crucial entre os decretos positivos e negativos. Deus deereta positivamente a eleição de alguns e negativamente decreta a reprovação de outros. A diferença entre positivo e negativo não se refere ao final (conquanto o resultado de fato seja ou posi tivo ou negativo), mas à maneira pela qual Deus faz acontecer seus decretos na História. O lado positivo se refere à intervenção ativa de Deus nas vidas dos eleitos para operar fé em seus corações. O negativo se refere não a Deus estar operando descrença nos corações dos réprobos, mas simplesmente a ele não tomar conhecimento deles e reter deles sua graça regeneradora. Calvino comenta sobre isso: “Ora, se nós não estamos realmente envergonhados do Evangelho, precisamos necessariamente reconhecer o que está nele abertamente declarado: que Deus, por sua eterna bondade (para a qual não houve nenhuma causa senão seu próprio propósito), nomeou aqueles que quis para a salvação, rejeitando todos os demais; e que aqueles a quem ele abençoou com essa livre adoção para serem seus filhos ele ilumina pelo seu Santo Espírito, para que possam receber a vida que lhes é oferecida em Cristo; enquanto que outros, continuando de vontade própria em descrença, são deixados da luz da passa fé, empor escuridão total”.3 Para Calvino e outrosdestituídos reformadores Deus cima dos réprobos, deixando-os a seus próprios inventos. Ele não os força a pecar ou criar novo mal em seus corações. Ele os deixa a si mesmos, com suas opções e desejos, e eles sempre escolhem rejeitar o evangelho. Uma vez ouvi o presidente de um seminário presbiteriano responder a uma pergunta sobre predestinação dizendo: “Eu não creio em predestinação porque não creio que Deus traz algumas pessoas chutando e gritando,
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contra suas vontades, para dentro de seu reino, enquanto ao mesmo tempo ele recusa acesso àqueles que sinceramente desejam estar lá”. Essa resposta me surpreendeu, não só porque a negação pública de predestinação do presidente violava ostensivamente seus votos de ordenação na Igreja Presbiteriana, mas também porque revelava uma incompreensão radical de uma doutrina com a qual ele deveria estar bastante familiarizado. A teologia reformada não ensina que Deus traz os eleitos “chutando e gritando, contra suas vontades”, para dentro de seu reino. Ensina que Deus opera de tal modo nos corações dos eleitos de maneira a fazê-los dispostos e felizes de vir a Cristo. Eles vêm a Cristo porque querem. Querem porque Deus já criou em seus corações um desejo por Cristo. Do mesmo modo os réprobos não querem abraçar Cristo sinceramente. Não têm nenhum desejo por Cristo e estão fugindo dele. A Tabela 7.2 demonstra a diferença entre calvinismo ortodoxo0e que é chamado de hipercalvinismo. Nessa tabela vemos0 esquema negativo, no qual Deus trabalha ativamente nas vidas e corações dos eleitos, enquanto que passa por cima do réprobo ou0 deixa em sua condição natural. E importante lembrar que, em seu decreto de eleição, Deus considera a massa da humanidade em sua condição pecadora decaída. Ele escolhe redimir algumas pessoas dessa condição e deixar0 restante naquela condição. Ele intervém nas vidas dos eleitos, enquanto que não intervém nas vidas dos réprobos. Um grupo recebe misericórdia e0 outro recebe justiça. Tabela — 7.2
Predestinação do Eleito (PE) e do Réprobo (PR) Calv inism o Ortodoxo
Hipercalvinismo
PE é positivo PR é negativo PE & PR são assimétricos A ultimação de PE e a ultimação de PR são desiguais PR: Deus passa p or cima do réprobo
PE é positivo PR épositivo PE & PR sãosimétricos A ultimação de PE e a ultimação de PR sãoiguais PR: Deusopera descrença no coração do réprobo
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O conceito de justiça incorpora tudo que é justo.que O viola conceito de nãojusto inclui tudo fora do conceito de justiça: injustiça, justiça e é má, e misericórdia , que não viola justiça e não é má. Deus dá sua misericórdia (não-justiça) para alguns e deixa ao restante sua justiça. Ninguém é tratado com injustiça. Ninguém pode acusar que há injustiça em Deus. Quando Paulo fala de Deus ter amado Jacó e odiado Esaú (Rm 9.13), esse “ódio” divino não pode ser igualado com ódio humano. E um ódio santo (veja SI 139.22). O ódio divino nunca é malicioso. Ele retém favor. Deus é “a favor” de seus eleitos de um modo especial, demonstrando seu amor por eles. Ele volta a face daquelas pessoas más que não são objeto de sua graçasua especial. AquelesAqueles que ele ama comeleseu “amor de complacência” recebem misericórdia. a quem “detesta” recebem sua justiça. Ninguém é tratado de maneira injusta. Concluímos que a eleição da qual a Bíblia fala é incondicional. Nenhuma ação prevista dos eleitos faz que eles sejam eleitos ou fornece as bases de sua eleição. As condições para salvação ou justificação são realmente satisfeitas pelo crente, mas são satisfeitas porque Deus fornece essas condições a eles por sua graça soberana. Calvino resume isso do seguinte modo: Muitosacontrovertera todas as posições nós temos especialmente eleição gratuita de crentes, que, que entretanto, não colocado, pode ser derrubada. Pois comumente imaginam que Deus distingue entre homens de acordo com os méritos que ele prevê que cada indivíduo terá, dando a adoção de filhos àqueles que ele sabe de antemão que não serão indignos de sua graça, e condenando aqueles à destruição cujas disposições ele percebe que serão voltadas a danos e maldade. Assim interpondo pré-ciência como um véu, eles não só obscurecem a eleição, como pretendem dar a ela uma srcem diferente.4
capítu
8
A exp iação int encional de Cristo
O
ax iom a primário de toda a te ologia reformada é 0 seguinte: “Salvação é do Senhor”. Salvação é uma obra divina. É projetada e ordenada pelo Pai, realizada pelo Filho e aplicada pelo Espírito Santo. Todas as três pessoas da Trindade estão em eterno acordo sobre 0 plano de redenção e sua execução. Sobre a distinção entre teologia reformada e arminiana, J. I. Packer escreveu: A diferença entre elas não é primariamente de ênfase, mas de conteúdo. Uma proclama umDeus que salva, a outra fala de um Deus quecapacitao homem a se salvar. Uma visão apresenta os três grandes atos da Santa Trindade para a recuperação da humanidade perdida - eleição pelo Pai, redenção pelo Filho, chamada pelo Espírito - como dirigidos para as mesmas pessoas, e como que assegurando sua salvação infalivelmente. A outra visão dá a cada ato uma referência diferente (os objetos de redenção sendo toda a humanidade; de chamado, aqueles que ouvem o evangelho, e da eleição, aqueles ouvintes que respondem), e nega que a salvação de qualquer homem seja conseguida por qualquer um deles. As duas teologias assim concebem o plano de salvação em termos bem diferentes. Uma faz a salvação depender da obra de Deus, a outra, de uma obra de homem...1
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Tabela — 8.1Pétala da Tulipa A Terceira Corrupção radical da humanidade 1. Total depravação 2. Uma eleição incondicional A opção soberana de Deus A expiação propositada de Cristo 3. Limitada expiação O chamado eficaz do Espírito 4. Irresistível graça Deus preserva os santos 5. Perseverança dos santos
diz declara que o conceito como debatidoNo nomesmo Sínodotrabalho de Dort Packer em 1618, que “Aarminiano, morte de Cristo não assegurou a salvação de ninguém, porque ela não assegurou a dádiva de fé para ninguém (não há tal dom); 0 que fez foi antes criar a possibilidade de salvação para todos se eles crêem”,2 A pergunta respondida pela doutrina de expiação limitada é esta: será Cristo um salvador real ou meramente um salvador “poten cial”? A doutrina de expiação limitada,0 L de TULIP, é provavelmente o termo mais disputado dos cinco. A idéia de que a expiação é “limitada” apresenta o ponto crucial da controvérsia. Para declarar a pergunta de outra maneira: Cristo morreu para expiar os pecados de toda pessoa humana, ou ele morreu para expiar somente os pecados dos eleitos? A expiação de Cristo foi claramente limitada ou ilimitada. Não há alternativa, nenhumtertium quid. Se é ilimitada em um sentido absoluto, então uma expiação foi feita pelos pecados de toda pessoa. Cristo então fez propiciação pelos pecados de todas as pessoas e os expiou também. Parece decorrer da idéia de expiação ilimitada que a salvação é universai. A vasta maioria de arminianos, dispensacionalistas e outros sem ipelagianos que negam expiação limitada, entretanto, rejeita o universalismo. O arminianismo histórico abraça0 particularismo: nem todas as pessoas são salvas, número Esse grupo em do particular de pessoas salvas só sãocerto aquelas que delas. respondem à oferta evangelho com fé. que Só aqueles que crêem se apropriam dos benefícios da expiação salvadora em Cristo. A pessoa que deixa de abraçar a obra salvadora de Cristo com fé é por fim deixada sem a expiação de seus pecados, a propiciação da cruz e a satisfação da justiça de Deus. Nessa visão a fé não e só uma condição para redenção, mas também
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uma das próprias bases da redenção. Se a expiação não é eficaz sem a parte da fé, então a fé deve ser necessária para a satisfação da justiça divina. Aqui a fé se toma violentamente uma obra porque sua presença ou ausência em um pecador determina a eficácia da obra de Cristo de satisfação por essa pessoa. Posso ouvir os urros de protesto do campo arminiano. Eles abominam firmemente a idéia de que fé humana acrescente qualquer “valor” à obra terminada de Cristo ou à eficácia da obra de satisfação de Cristo. A fórmula que normalmente usam é que a expiação de Cristosuficiente é para todos, mas eficiente só para alguns. Teólogos reformados não questionam que 0 valor da expiação de Cristo é suficiente para cobrir os pecados de toda a raça decaída. O valor de seu sacrifício é ilimitado. Seu mérito é suficiente para cobrir os deméritos de todos que pecam. Também podemos concordar que a expiação é eficiente só para alguns, uma idéia que é integral à doutrina de expiação limitada. Quando falamos da suficiência da expiação, no entanto, precisamos fazer as perguntas: será isso uma satisfação suficiente da justiça divina? Se é suficiente para satisfazer as demandas da justiça de Deus, então ninguém precisa se preocupar quanto a castigo futuro. Se Deus aceita de outra pessoa o pagamento da dívida de uma pessoa, ele então requererá pagamento da mesma dívida mais tarde pela própria pessoa? A resposta é obviamente não.
Isso significa que se Cristo realmente, objetivamente, satisfez as demandas da justiça de Deus para todos, então todos serão salvos. Uma coisa é concordar que a fé é uma condição necessária para a apropriação dos benefícios da obra expiatória de Cristo, para justificação e seus frutos. Outra, bem diferente, é dizer que a fé é uma condição necessária para a satisfação da justiça divina. Se a fé é uma condição para a justiça de Deus ser satisfeita, então a expia çã o, em si, não é “suficiente” para ninguém, muito menos para todos. Satisfação plena não é dada até que ou e a não ser que uma pessoa acrescente à expiação a sua fé. Mais arminianos que eles não fazem fé ser, de fato, umauma obravezdeossatisfação. Fé protestarão é uma condição necessária, elesa dizem; não uma obra de satisfação. Mas a pergunta fica: a satisfação divina é efetuada sem fé? Se é, então nenhuma satisfação fica para ser imposta sobre (ou cobrada de?) pecadores não-arrependidos. Se não é, então fé é claramente um elemento necessário para a satisfação, um elemento que fornecemos.
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0 grande teólogo John Owen disse 0 seguinte: Primeiro, se a dívida toda de todos está paga até o último grau da obrigação, como é que acontece que tantos são fechados em prisão até a eternidade, nunca libertados de suas dívidas? Em segundo lugar, se o Senhor, como um credor justo, deve cancelar todas as obrigações e desistir de todas as causas contra aqueles que tiveram suas dívidas pagas assim, de onde é que sua ira fúmega contra alguns até o fim da eternidade? Que ninguém me diga que é porque andam indipos do benefício dado, pois aquele andar indigno é parte da dívida que já está plenamente paga, pois (como está na terceira inferência) a dívida assim paga são todos os nossos pecados. Terceiro, será provável que Deus chame qualquer um para um segundo pagamento, e requeira satisfação daqueles por quem, por seu próprio reconhecimento, Cristo já fez aquilo que é completo e suficiente?3
Deixe-me considerar 0 beneficio da expiação de Cristo por mim. Eu sou atualmente um crente em Cristo. Hoje desfruto os benefícios de uma expiação feita por mim há séculos. Aquela expiação satisfez as exigências da justiça de Deus sobre todos os meus pecados? Se satisfez, então satisfez a penalidade pelo pecado de minha incredulidade anterior. Aquele pecado foi pago antes de eu crer? Ou não ficou completa a expiação de Cristo enquanto eu não cheguei à fé? A morte dele cobriu minha descrença ou não? Se cobriu, por que então sua expiação não cobre a descrença de descrentes? Cobre minha descrençaanterior, mas não dosatuais não-crentes. Defensores de expiação ilimitada dizem que 0 pecado de descrença não é coberto a não ser que a condição de fé seja satisfeita. Minha fé então faz a expiação de Cristo eficaz para mim. Caso a fé seja necessária para a expiação, então a obra de Cristo foi de fato uma mera potencialidade. Em si não salva ninguém. Meramente faz possível a salvação. Teoricamente precisamos fazer a pergunta óbvia:
0 que teria acontecido com a obra de Cristo se ninguém cresse nela? Isso
tinha de ser uma possibilidade teórica. Neste caso Cristo teria morrido em vão. Ele teria sido um salvador potencial de todos, mas um salvador real de nenhum. “Isso é pura especulação”,0 arminiano responde. A realidade é que muitos têm abraçado e abraçam Cristo em fé. Cristo é um salvador genuíno,
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legítimo. As pessoas são verdadeiramente salvas por sua obra. Além disso, quando nosso Deus onisciente mandou Cristo para0 mundo para fazer uma expiação, ele sabia que isso não seria nenhum exercício de futilidades. O Pai sabia que não só ele ficaria satisfeito com a obra de seu Filho, mas que 0 Filho mesmo veria 0 trabalho árduo de sua própria alma e ficaria satisfeito. Essa satisfação divina, porém, seria limitada. Se Deus mandou Cristo para salvar todo o mundo, então ele precisa permanecer eternamente insatisfeito com os resultados. Embora o Filho possa receber satisfação de saber que alguns têm se valido de sua expiação, sua satisfação deve ser parcial porque muitos não o fizeram. Isso faz surgir o ponto principal na doutrina de expiação limitada. A pergunta final tem a ver não tanto com a suficiência ou eficácia da expiação, mas com seu plan o, seu projeto. Qual foi o propósito ou intento srcinal de Deus em enviar seu Filho ao mundo? Era seu plano divino tomar a redenção possível ou fazê-la certa? Caso Deus tenha planejado redimir todos os homens, seu plano falhou? Deus sabia adiantadamente quem creria e quem não creria? Foi a fé dos crentes parte de seu plano? Nossas respostas a essas perguntas todas dependem de nossa compreensão do caráter de Deus, de sua soberania e onisciência.
A VONTADE E A REDENÇÃO DE DEUS
A Bíblia diz que Deus tinha seu propósito “não querendo que nenhum pereça” (2Pe 3.9). O que quer dizer essa passagem? Há pelo menos quatro diferentes modos de interpretá-la, e eles não podem todos estar corretos. O primeiro problema é o sentido da palavraquerendo (desejoso, disposto). A Bíblia fala da vonta de de De us de diferentes modos. Os usos mais freqüentes se referem à (1) sua vontade em decreto, (2) sua vontade em preceitos, e (3) sua disposição.à sua vontade decretiva como a vontade soPorvontade vezes hádereferência berana, eficaz de Deus, pela qual aquilo que ele decreta precisa necessariamente acontecer. Se Deus decreta soberanamente que algo vai acontecer, certamente virá a acontecer. Sua vontade decretiva é irresistível. A vontade preceptiva faz referência aos preceitos ou comandos, à lei
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que ele impõe sobre suas criaturas. Isto é, somos capazes d e vio lar sua vontade preceptiva. Isto é, somos capazes de pecar, de desobedecer a sua lei. Tabela — 8.2 A Vontade de Deus
Vontade decretiva
A vontade soberana, eficaz de Deus
Nà o po de ser resistida
Vontade
Os preceitos,
Podem ser
preceptiva
comandados de Deus
resistidos
Vontade de disposição
Aquilo que agrada, alegra a Deus
Pode ser resistido
A vontade de disposição, à qual há referência na Escritura, significa aquilo que é agradável ou aprazível para Deus. Quando aplicamos esses diferentes conceitos da vontade de Deus a 2 Pedro 3.9, temos diferentes resultados: 1. Deus não quer (no sentido soberano, decretivo) que alguém pereça. Isto quer dizer que toda pessoa será redimida. Nenhuma pessoa jamais perecerá. Essa interpretação prova mais do que o arminiano ou semipelagiano quer. Estabelece0 universalismo, que põe esse texto num percurso de colisão com tudo0 que a Bíblia ensina sobre particularismo. 2. Deus não quer (no sentido preceptivo) que alguém pereça. Isso significa que Deus proíbe, num sentido moral, que qualquer pessoa pereça. Perecer é um ato de desobediência ou um pecado. Ora, certamente qualquer um que de fato perece faz isso como infrator da lei e é culpado de múltiplos atos de desobediência. É possível interpretar0 texto desta maneira, mas é uma escolha altamente improvável. Abala a mente dizer que o texto significa meramente que Deu s não “permite” que pessoas pereçam. 3. Deus não quer (no sentido disposicional) que qualquer um pereça. Isso significa virtualmente a mesma coisa como outros textos, por exemp lo, aqueles que dizem que Deus não tem prazer na morte dos maus. Isto fala da
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graça comum de Deus e amor geral ou benevolência para com a humanidade. Um juiz humano que condena uma pessoa culpada à prisão não gosta de sua tarefa. Ele não tem deleite risonho em distribuir castigo, contudo ele executa a tarefa a fim de manter a justiça. Nós sabemos que Deus não está cheio de alegria quando uma pessoa má morre, porém ele ainda determina aquela morte em algum sentido. Nem isso significa que Deus faz algo que realmente não quer fazer. Deus queria que seu Filho morresse na cruz. Ele ordenou, determinou e mandou isso. Em um sentido agradou a Deus machucar seu Filho. Seu prazer divino veio, não de infligir sua ira sobre seu Filho amado, mas de fazer acontecer redenção. Dessas três opções, essa é a que corresponde melhor a todo 0 contexto da Escritura. qualquer. Precisamos prestar mais atenção, no entanto, ao termo Qualquer pode ter referência a (1) qualquer pessoa numa classe universal ou (2) qualquer pessoa numa classe particular. Por essa razão muitos concluem que qualquer se refere à classe universal irrestrita de seres humanos (embora isto em si seja uma restrição porque exclui anjos e animais). O texto inteiro, entretanto, inclui um termo restritivo: “O Senhor é longânimo para conosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento”. A palavra restritiva énós. Qualquer se refere a “qualquer de nós”. Isso não resolve0 problema instantaneamente, pois nós pode ter referência a nós seres humanos (universalmente) ou a certo grupo de nós. Como 2Pedro é escrita por um crente cristão para crentes cristãos, é provável que nós se refira a crentes cristãos. John Owen escreve: ... quem são esses de quem o apóstolo fala, a quem ele escreve: Aqueles tais que tinham recebido “mui grandes promessas” (2Pe 1.4), que ele chama “amados” (2Pe 3.1); que ele contrasta com os “escamecedores” dos "últimos dias” (2Pe 3.3); a quem o Senhor tem respeito no dispor destes dias, crentes que são ditos serem “escolhidos” (Mt 24.22). Ora, realmente, argumentar que porque Deus não queria que nenhum daqueles perecesse, mas que todos eles chegassem ao arrependimento, e que por isso ele tem a mesma vontade e mente para com todos e cada um no mundo (mesmo aqueles a quem nunca tomou conhecida a sua vontade, nem chama ao arrependimento, se eles nunca um dia ouviram sobre seu caminho de salvação), chega não longe de extrema loucura e tolice.4 ♦
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0 ponto de Owe n^ que nós se refere aos eleitos de Deus, portanto Deus nâo está disposto a que nenhum de seus eleitos pereça. Neste caso o texto deve se referir à vontade de Deus no sentido decretivo. Deus soberanamente decreta que nenhum de seus eleitos pereça. Como resultado o alvo da eleição está assegurado. Todos os eleitos chegam ao arrependimento. . Todos os eleitos vêm à fé. Todos os eleitos são salvos. Nenhum dos eleitos perece. Esse é realmente0 exato propósito de eleição, e esse propósito nao é frustradoO decreto de eleição de Deus é um decreto soberano. E inteiramente eficaz. Tudo que é necessário para os eleitos serem salvos é realizado soberanamente por Deus. A ONISCIÊNCIA DE DEUS
A onisciência se refere ao conhecimento total que Deus tem de todas as coisas atuais e potenciais. Deus conhece não só tudo que existe, como também tudo que possivelmente poderia existir. O jogador de xadrez perito exemplifica uma espécie de onisciência, embora seja limitada a opções do jogo de xadrez. Ele sabe que seu adversário pode fazer mexida B, C. ou D, eopostas. assim por diante.mais Cada movimento possível abre certas A, movimentações Quanto mexidas à frente 0 perito conseguir, mais ele pode controlar o destino de seu jogo de xadrez. Quanto mais opções e contra-opções são consideradas, mais complexo e difícil 0 raciocínio. Na realidade, nenhum jogador de xadrez é onisciente. Deus conhece não só todas as opções disponíveis, como também qual opção será praticada. Ele sabe o fim antes do começo. A onisciência de Deus exclui tanto a ignorância como o aprendizado. Se há ignorância na mente de Deus, então a onisciência divina é uma frase oca, na verdade fraudulenta. Aprendizado sempre pressupõe nívelNão de há ignorância. pessoa simplesmente não pode aprender 0 quecerto já sabe. uma curvaA de aprendizado para Deus. Visto que nenhumas lacunas existem em seu conhecimento, não há nada para ele aprender. Para conhecermos o que vai acontecer amanhã, precisamos adivinhar com respeito a coisas que são possíveis. Se eu digo a um amigo: “O que você vai fazer amanhã?” ele pode responder: “Isso depende”. Essas duas
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palavras reconhecem que há contingências à frente e que 0 que acontece conosco depende dessas contingências. Diz-se que Deus conhece todas as contingências, mas nenhuma delas contingentemente. Deus nunca diz a si mesmo: “isso depende”. Nada é contingente para ele. Ele conhece todas as coisas que acontecerão porque ordena tudo que acontece. Isto é crucial a nosso entendimento da onisciência de Deus. Ele não sabe 0 que vai acontecer por conta de um trabalho de adivinhação extraordinariamente excelente sobre eventos futuros. Ele 0 sabe com certeza porque ele o decretou. A Confissão de Westminster assevera: “Desde toda a eternidade, Deus, pelo mui sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou, livre e inalteravelmente, tudo que vem a acontecer...”5 Essa afirmação se refere à vontade decretai eterna e imutável de Deus. Será que isto significa que tudo que acontece é a vontade de Deus? Sim. Agostinho qualificou esta resposta acrescentando as palavras “em certo sentido”. Isto é, Deus ordena “em algum sentido” tudo que acontece. Nada que ocorre está alé m do âmbito de sua vontadesoberana. O movimento de cada molécula, as ações de cada planta, 0 cair de cada estrela, as escolhas de cada criatura volitiva, todos estes estão sujeitos à sua vontade soberana. Não há moléculas indisciplinadas correndo soltas no universo fora do controle do Criador. Se tal molécula existisse, ela poderia ser a mosca critica no 0 azeite eterno. Como um grão de areia no rim de Oliver Cromwell mudou curso da história da Inglaterra, assim a molécula desordenada poderia destruir toda promessa que Deus já fez sobre0 resultado da História. O “em certo sentido” do qual Agostinho falava tem muitas vezes sido articulado por uma distinção entre avontade decretiva de Deus e sua vontadeperm issiva. Essa distinção é válida se usada apropriadamente, mas é cheia de perigo. Sugere uma falsa dicotomia. A distinção não é absoluta: 0 que Deus permite, ele decreta permitir. Por exemplo, em dado momento de minha vida Deus tem o poder e autoridade de se intrometer providencialmente e de restringir os meus atos. Em uma palavra, ele pode me impedir de pecar, se ele assim opta. Se ele escolhe não me impedir, ele claramente escolheu “permitir” que eu peque. Essa permissão não é uma sanção divina ao meu comportamento. Que ele me permite pecar meramente significa que ele escolhe permitir que aconteça em vez de entrar e evitar isso. Por optar deixar isso acontecer, em algum sentido ele ordena ou pretende que deva acontecer.
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Isso reflete o decreto passivo , que é ativo com respeito à sua inteução, mas passivo com respeito à sua ação. Vemos isto na doutrina de concomitância providencial: as intenções de duas partes, Deus e homem, fluem juntas num só evento. O exempl o bíblico mais claro di ss o se encontr a na narrativa sobre José e seus irmãos. A traição de seus irmãos não caiu fora da ordenação soberana de Deus. José disse a seus irmãos: “V ós , na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tomou em bem, para fazer, como vedes agora , que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20). Depois que a Confissão de Westminster fala de Deus ordenar qualquer coisa que venha a acontecer, ela acrescenta: “porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem é violentada a vontade da criatura, nem é tirada, mas, pelo contrário, estabelecida a liberdade ou contingência das causas secundárias”.6 “Causas secundárias” sãosecundárias, e como tais são dependentes de uma causaprimária para ter sua força. Deus, e somente Deus, é a única causa primária no universo. Ele não é meramente a primeira causa no sentido aristoteliano do primeiro numa longa cadeia de causas. Ele é a base de todo 0 poder causal. A Bíblia declara que em Deus “vivemos, e nos movemos, e existimos...” (At 17.28). Deus é a base de toda a existência, toda a vida e todo 0 movimento. À parte de seu poder de criar e sustentar vida, nenhuma vida é possí vel. A parte de seu pod er de ser, nada ma is seria ou poderia ser. A parte de seu poder de mover (causalidade primária), nada pode mover, mudar, agir, ou causar efeitos. Deus não é como o movedor imóvel de Aristóteles. Will Durant certa vez comparou0 deus de Aristóteles com 0 rei da Inglaterra: ele reina, mas não governa. Deus não só reina, como também governa, e ele governa soberanamente. Causas secundárias não são, contudo, imaginárias ou impotentes. Elas exercem real poder causai. Nós fazemos escolhas verdadeiras. Todavia, uma causa secundária é sempre dependente da causa primária, o próprio Deus, para sua eficácia. Deus faz acontecer sua soberana vontade por meio de causas secunfins, dárias. “Por meio de” é outro modo de dizer que Deus ordena não só os mas também os meios para esses fins. A doutrina de expiação limitada depende do plano ou fim pelo qual Cristo foi à cruz. John Owen comenta: “Pela finalidade da morte de Cristo, em geral nós entendemos tanto ... aquilo que seu Pai e ele pretenderamcom esta morte; e ... aquilo que foi efetivamente cumprido e realizadopor ela”.7
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O alvo da expiação foi salvar os perdidos. Cristo amou sua igreja e se entregou por ela. Ele morreu a fim de salvar suas ovelhas. Seu propósito foi efetuar reconciliação e redenção para seu povo. O prQpásito fina} do Pai foi salvar os eleitos. Ele projetou a expiação do Filho para realizar o alvo ou fim da redenção. Todo arminiarto concordaria com isso. A questão é a seguinte: será que 0 propósito de Deus era tomar a salvação para todos possível, ou dar certeza à salvação para os eleitos? O objetivo final do plano de Deus para a redenção era redimir seus eleitos. Para realizar esse fim ele ordenou os meios. Um foi a expiação feita pelo seu Filho. Outro foi 0 Esp írito Santo aplicar essa expiação aos eleitos. Deus provê para seus eleitos tudo que é necessário para sua salvação, incluindo a dádiva da fé. Uma vez que captamos a doutrina da total depravação, sabemos que nenhuma pessoa se inclinará em fé na obra expiatória de Cristo se Deus não suprir os m e io s de apropriar os be ne fíc ios da expiação, a saber: a fé, então a redenção potencial de todos resultaria na redenção real de nenhum.
A INTERCE SSÃO D E CRISTO
A expiação é a principal obra de Cristo como nosso grande sumo sacerdote, mas não é sua única tarefa sacerdotal. Ele também vive como nosso intercessor com o Pai. Sua intercessão é outro meio ao fim ou propósito da redenção dos eleitos. Cristo não só morre por suas ovelhas, mas também ora por elas. Sua obra especial de intercessão é clara em seu propósito. Em sua oração sacerdotal Jesus diz: Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra. Agora, eles reconhecem que todas as coisas que me tens dado provêm de ti; porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram que tu me enviaste. E por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus; ora. todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e, neles, eu sou glorificado. Já não estou no mundo, mas eles continuam no mundo, ao passo que eu vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me deste, para que eles sejam um, assim como nós. Quando eu estava com eles, guar-
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dava-os no teu nome, que me deste, e protegi-os, e nenhum deles se perdeu, exceto 0 filho da perdição, para que se cumprisse a Escritura. João 17.6-12
0 Pai lhe tem dado. É abunJesus intercede aqui a favor daqueles que dantemente claro que isto não inclui toda a humanidade. O Pai deu a Cris- ; to um númerolimitado de pessoas. São aquelas por quem Cristo ora. São também aquelas por quem Cristo morreu. Jesus não ora pelo mundo inteiro. Ele diz isto direta e claramente. Ele ora especificamente por aqueles dados
a ele, os eleitos. Antes, também no Evangelho de João, Jesus diz: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; 0e que vem a mim, de modo nenhum0 lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou. E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.37-39). Não há incerteza aqui. A obra de redenção realizada por Cristo como nossa segurança não é mera possibilidade ou potencialidade. É uma certeza. Que Cristo não ora pelo mundo inteiro e não morre pelo mundo inteiro é disputado por semipelagianos de todos os tipos. O texto mais importante ao qual apelam é encontrado na Primeira Epístola de João: “... Se, todavia, alguém pecar, temos Advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo; e ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro” (1J0 2.1,2). Na superfície esse texto parece demolir a expiação limitada, dizendo explicitamente que Cristo é a propiciação dos pecados para o “mundo inteiro”. O mundo inteiro é colocado em contraste com “nossos”. Devemos perguntar: o que significam aqui nossos e o mundo inteiro? Nossos poderia se referir a cristãos como distinguidos de não-cristâos, crentes como opostos a não-crentes. Se essa interpretação é correta, então Cristo é uma propiciação não só para crentes cristãos, mas para todas as pessoas no mundo inteiro. Por outro ladonossos poderia se referir especificamente a crentes judeus. Uma das perguntas centrais do primeiro período formativo da igreja era esta: quem é para ser incluído na comunidade do Novo Pacto? O Novo Testamento trabalha o ponto que o corpo de Cristo inclui não só judeus
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étnicos, mas também samaritanos e gentios. A igreja é composta de pessoas 0 de toda tribo e não de pessoas atraídas de todo0 mundo, não meramente mundo de Israel. Ampla evidência indica que o termo mundo no Novo Testamento muitas vezes não se refere nem ao globo inteiro nem a todas as pessoas que vivem sobre a terra. Por exemplo, nós lemos em Lucas: Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocandotodo 0 mundo para recensear-se (Lc 2.1). Sabemos que esse censo não incluía os habitantes da China ou América do Sul, portanto “todo0 mundo” não se refere a todas as pessoas no mundo inteiro. O uso de mundo dessa maneira é de uso amplo na Escritura. Semipelagianos também apelam a 2Coríntios, em que Paulo diz que Deus estava em Cristo reconciliando consigo 0 mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação (2C0 5.19). Paulo fala do “reconciliar 0 mundo” de Cristo para com Deus no modo indicativo do verbo. Momentos depois ele muda do indicativo ao imperativo. “Rogamos que vos reconcilieis com Deus” (2C0 5.20). Será esta simplesmente uma ordem para sermos 0 que já somos? Para dizer a verdade, a propiciação de Cristo na cruz é ilimitada em sua suficiência ou valor. Neste sentido Cristo faz uma expiação pelo mundo todo. Mas a eficácia dessa expiação não se aplica ao mundo inteiro, nem 0 seu projeto final fa z iss o. '" — O prop ósit o supremo da expiação se encontra 110 supremo propósito^ ou vontade de Deus. Esse propósito ou intento não inclui a raça humana inteira. Se incluísse, a raça humana inteira certamente seria redimida.
c^ipítu o Q O chamado eficaz do Espírito
conceito de graça irresistível, I em TULIP, é ligad o intimamente às doutrinas de regeneração e chamada efetiva. Quando John H. Gerstner era universitário, ele fez um curso em teologia com John Orr, um dos mais doutos e distintos estudiosos da nação do começo do século 20. Durante uma aula Orr escreveu no quadro à frente da classe em letras grandes:regeneração precede a fé. Essas palavras atordoaram Gerstner. Ele tinha certeza de que 0 professor havia cometido um erro e sem querer tinha invertido a ordem das palavras. Será que todo cristão não sabia que a fé é um pré-requisito para a regeneração, que é preciso crer em Cristo para ser nascido de novo? Aquela foi para John Gerstner a sua exposição virgem à teologia reformada, e ela0 espantou. Que a regeneração vem antes da fé, não depois dela ou como resultado dela, era uma idéia que ele nunca havia considerado. Uma vez que ouviu0 argumento forçoso de seu professor, Gerstner se convenceu e sua vida foi colocada numa trajetória inteiramente diferente.
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O chamado eficaz do Espírito
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Tabela — 9.1
A Quarta Pétala da Tulipa 1. 2. 3. 4. 5.
Total depravação Uma eleição incondicional Limitada expiação
Irresistível graça Pe rsev eran ça d os s antos
Corrupção radical da humanidade A opção soberana de Deus A expiação propositada de Cristo 0 chamadoeficaz doEspírito Deus preserva os santos
Isso tend e a ser alg o co mo um padrão para os calvinistas. Como Roger Nicole declarou: “Todos somos nascidos pelagianos”. Conversão a Cristo não nos cura de nossas pelagianas. Desde os primeiros diasinstantaneamente de nossa conversão, nosso tendências pelagianismo é reforçado por todo lado. Trouxemos isso conosco do paganismo, e0 mundo secular à nossa volta reforça isso com a visão humanista da liberdade humana e bondade inerente. Na igreja somos expostos em larga escala ao arminianismo, que tem mantido o ev an gelica lism o americano em uma gravata desde os dias de Charles Finney. Durante a controvérsia sobre a justificação, no século 16, Martinho Lutero escreveu uma obra controversa intituladaThe Babylonian Captivity o f the Church (O Cativeiro Babilônico da Igreja). Esse livro mostrava a semelhança da Igreja C ató lica R omana com a Babilônia pagã da Antiguidade. Se Lutero estivesse vivo, imagino que ele escreveria um livro intitulado O Cativeiro Pe lagi ano da Igreja. Embora o arminianismo seja mais propriamente uma variedade de semipelagianismo, 0 “semi” é uma pátina fina. A essência do pelagianismo é retida em semipelagianismo, e é levada até entrar no arm inianism o e, até certo grau, no dispensacionalismo. O ensaio introdutório em uma edição atual deBondage o f the Will (Servidão da Vontade) pergunta o que o leitor moderno deve entender do clássico de Lutero.
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controversista, ele sem dúvida estarápronto a admitir; mas agora vem a pergunta, será que o caso de Luteroé qualquer parte da verdade de Deus? E, se é, tem ele uma mensagem para cristãos de hoje: sem dúvida 0 leitor achará 0 caminho pelo qual Lutero o conduz uma nova e estranha estrada, uma abordagem que ele normalmente rotularia de “calvinista” ao passar depressa sem
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entrar nela. É isto que a própria ortodoxia luterana tem feito; e o cristão evangélico atual (que tem semipelagianismo em seu sangue) estará inclinado a fazer o mesmo. Mas tanto a História como a Escritura, se permitidas falarem, aconselham diferentemente.1
Do ponto de observação do século 20, parece que a questão central da Reforma foi a doutrina da justificação. Até certo grau esta é uma avaliaçâo correta. Mas atrás e por baixo da doutrina de justificação estava a preocupação mais profunda da benevolência de nossa salvação, operada inteiramente por Deus m esmo e por nenhuma realiza ção humana. Historicamente, é uma simples matéria de fato que Martinho Lutero e João Calvino. e. no que diz respeito ao assunto. Ulrich Zwingli. Martin Bucer, e todos os principais teólogos protestantes da primeira época da Reforma, colocaram-se precisamente no mesmo pé aqui. Em outros pontos, tinham suas diferenças; mas em afirmar a inépcia do homem em pecado, e a soberania de Deus em graça, estavam inteiramente unidos. Para todos eles. essas doutrinas eram o próprio sangue da vida da fé cristã. Um editor modemo da grande obra de Lutero salienta este fato: “Quem pòe de lado este livro sem ter reconhecido que a teologia da vontade, leu em vâo”.:se firma em pé ou cai com a doutrina da servidão -0evangélica
Simplesmente porque um teólogo, mesmo um que seja altamente respeitado, declara que a teologia evangélica “permanece ou cai” com sua visão da vontade humana não faz isso ser assim. Esse estudioso pode estar usando hipérbole, como a tábua proverbial sobre a cabeça da mula, para ganhar nossa atenção. Hipérbole envolve o uso de exagero intencional para realçar um ponto. é hipérbole. o julgar dos epróprios reformadores trais, a visãoIsso da não pessoa a respeitoN da vontade seu estado de servidãomagis é absolutamente vital à compreensão que se tem de toda a fé cristã. Lutero mesmo disse: ... este é o gonzo no qual nossa discussão se vira, a questão crucial entre nós; nossa meta é. simplesmente, investigar que capacidade o “livre-arbítrio” tem,
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em que respeito ele é o sujeito de ação divina e como ele se coloca relacionado à graça de Deus. Se nada sabemos dessas coisas, não saberemos mesmo nada de Cristianismo, e estaremos em pior posição do que quaisquer pessoas na terra! Aquele que discorda dessa afirmação deve reconhecer que não é cristão; e aquele que ridiculariza ou zomba dela deve perceber 0que priné cipal inim igo do cristão. Pois se eu desconheço a na tureza, extensão e limites daquilo que posso e preciso fazer com referência a Deus, serei igualmente ignorante e indefinido sobre a natureza, extensão e limites do que Deus pode fazer e fará em mim - embora Deus, de fato, operetudo em todos (cf. 1C0 12.6). Ora, se sou ignorante quanto às obras e poder de Deus. sou ignorante sobre Deus mesmo; e se não conheço Deus, nâo posso adorar, louvar, dar graças ou servi-lo. ter em clarasedistinção entre o poder de DeusPrecisamos, e o nosso, eportanto, entre a obra de mente Deus euma a nossa, pretendemos viver uma vida piedosa.3
Muitas vezes se presume que a questão principal da Reforma era a questão da ju st ifi ca çã o . Lutero lançava seus trovões em toda forma de mérito humano. Juntos os reformadores viam claramente 0 elo entre a doutrina da justific açã o e a prim azia da graça: A doutrina da justificação pela fé foi importante para eles porque ela salvaguardava o princípio de graça soberana; mas ela realmente expressava para eles s ó um aspecto desse princípio, e esse não em seu aspecto mais profundo. A soberania da graça encontrou expressão em seu pensar em termos ainda mais profundos na doutrina da regeneração m onergística- a doutrina, isto é, que a fé que recebe Cristo para justificação é em si a dádiva gratuita de um Deus soberano, conferida por regeneração espiritual no ato de chamado eficaz. Na Reforma, a pergunta crucial não era se Deus justifica crentes sem obras da lei. Era a pergunta mais ampla, se pecadores são inteiramente desamparados em seu pecado, e se Deus deve ser pensado como os salvando por livre, incondicional, invencível graça, não só osjustificando por amor de Cristo quando chegam à fé, mas também os erguendo da morte do pecado por seu Espírito vivificador a fim de trazê-los à fé.J
Tão importante para os reformadores era a questão de nossa total
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dependência da graça para a salvação que eles viam todas as formas de semipelagianismo como ameaças sérias ao evangelho: Será que nossa salvação é inteiramente de Deus, ou será que, em última análise, ela depende de algo que fazemos para nós mes mos? Aqu eles que afirmam a segunda opção (como os arminianos fizeram mais tarde) com isso negam a impotência total do homem em pecado, e afirmam que uma maneira de semipelagianismo é verdadeira no final das contas. Nâo se admira, então, que mais tarde a teologia reformada condenou 0 arminianismo como sendo em princípio uma volta à Roma (porque com efeito ela tomou a fé uma obra meritória) e uma traição da Reforma (porque negou a soberania de Deus em salvar pecadores, que foi0 princípio religioso e teológico mais profundo do pensamento da Reforma). O arminianismo foi, realmente, aos olhos reformados, uma renúncia do Cristianismo do Novo Testamento a favor do Judaísmo do Novo Testamento; pois confiar em si para a fé não é em princípio nada diferente de confiar em si para obras, e o primeiro caso é tão não-cristão e anticristão quanto0 segundo.5
R e ge n e r aç ão
mo n e r gí sti ca
A doutrina de justificação pela fé somente foi debatida durante a Reforma no nível mais profundo da regeneração monergística. Esse termo técnico precisa ser explicado. Monergismo é derivado de uma combinação de um prefixo e um radical. O prefixo mono é usado freqüentemente em inglês para indicar aquilo que é um só ou sozinho. A raiz vem do verbo “trabalhar”:0 erg entra em nossa língua para indicar uma unidade de trabalho ou energia. Colocando 0 prefixo e radical juntos, temos monergia ou monergismo. Monergismo é algo que opera ou funciona sozinho como a única parte ativa. Monergismo é 0 oposto de sinergismo. Sinergismo tem raiz em comum com monergismo, mas tem prefixo diferente. O prefixo sy n vem de uma palavra grega significando “com”. Sinergismo é um empreendimento cooperativo, um trabalhar junto de duas ou mais partes. Quando 0 termo monergismo é ligado à palavra regeneração , a frase descreve uma ação pela qual Deus, o Espírito Santo, trabalha sobre um ser humano sem a assistência ou cooperação dessa pessoa. Essa graça de rege-
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neração pode ser chamada graça operativa. Graça cooperativa, por outro lado, é graça que Deus oferece a pecadores e que eles podem aceitar ou rejeitar, dependendo da disposição do pecador. Regeneração monergística é exclusivamente um ato divino. O homem não tem 0 poder criativo que Deus tem. Vivificar uma pessoa que está espiritualmente morta é algo que só Deus pode fazer. Um morto não pode ressuscitar a si mesmo. Não pode nem mesmo ajudar no esforço. Só pode responder depois de receber vida nova. Não pode ajudar no esforço, então como certamente irá responder. Em regeneração a alma do homem é totalmente passiva até que ela seja tomada viva. Ela não oferece ajuda nenhuma em se reavivar, embora uma vez reavivada ela seja capacitada a agir e responder. Talvez uma boa ilustração do poder monergístico, doador de vida, seja 0 levantamento de Lázaro dentre os mortos, uma história relatada no Evangelho de João: Jesus, agitando-se novamente em si mesmo, encaminhou-se para0 túmulo; era este uma gruta a cuja entrada tinham posto uma pedra. Então, ordenou Jesus: Tirai a pedra. Disse-lhe Marta, irmã do morto: Senhor, já cheira mal, porque já é de quatro dias. Respondeu-lhe Jesus: Não te disse eu que, se creres, verás a glória de Deus? Tiraram, então, a pedra. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me enviaste. E, tendo dito isto, clamou em alta voz: Lázaro, vem para fora! Saiu aquele que estivera morto, tendo os pés e as mãos ligados com ataduras e o rosto envolto num lenço. Então, lhes ordenou Jesus: Desatai -0 e deixai -0 ir. Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo visitar Maria, vendo 0 que fizera Jesus, creram nele. Outros, porém, foram ter com os fariseus e lhes contaram dos feitos que Jesus realizara. João 11.38-46
Lázaro estava morto, não criticamente doente ou a ponto de estar morrendo. Ele já era um morto e estava em decomposição. O mau cheiro de seu corpo que apodrecia era repugnante para sua irmã Marta. O milagre de sua ressurreição foi realizado sem meios, isto é, sem ungíientos, sem
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medicamentos, respiração artificial, etc. O único poder que Cristo usou aqui foi 0 poder de sua voz. Ele pronunciou uma ordem, não um pedido ou um convite. Ele não fez nenhuma tentativa de persuadir Lázaro a sair do túmu10. Essa ressurreição foi estritamente monergística. Lázaro não prestou absolutamente nenhum auxílio. Ele era incapaz de ajudar em qualquer modo, porque estava completamente morto. Alguns podem argumentar que embora Cristo fornecesse o poder iniciai da ressurreição de Lázaro, contudo Lázaro teve de responder ao mando de Cristo para sair do túmulo. Não é isso um trabalho cooperativo, uma sinergia entre Cristo e Lázaro? A maior parte da confusão com respeito à regeneração entra no quadro aqui. Obviamente Lázaro respondeu. Ele saiu da tumba em obediência à ordem de Jesus. Depois que a vida fluiu de novo no corpo de Lázaro, ele ficou bastante ativo. Regeneração monergística tem a ver não com todo o processo de redenção, mas estritamente com a condição inicial ou primeiro passo de noss a chegada à fé. E claro que Lázaro atuou. Ele respondeu. Ele saiu do túmulo. Mas 0 ponto crucial é que ele não fez nenhuma dessas coisas enquanto ainda estava morto. Ele não respondeu ao chamado de Cristo até depois que foi tomado vivo de novo. Sua ressurreição antecedeu a ele vir para fora do túmulo. Sua restauração à vida precedeu a sua resposta. Arminianos não apreciam essa analogia e protestam que nós estamos aqui comparando maçãs com laranjas. Obviamente, no caso de morte física, um morto não pode responder ou cooperar. Não tem poder de responder porque está morto. Uma pessoa que está fisicamente morta não pode fazer nada nem física nem espiritualmente. Uma pessoa que está espiritualmente morta ainda está viva biologicamente. Essa pessoa ainda pode agir, trabalhar, responder, tomar decisões, etc. Ela pode dizer sim à graça, ou pode dizer não. Aqui chegamos ao ponto final de separação entre semipelagianismo e agostinianismo, entre arminianismo e calvinismo, entre Roma e a Reforma. Aqui descobrimos se somos totalmente dependentes da graça para nossa salvação ou se, enquanto ainda na carne, ainda em servidão ao pecado, e ainda mortos em pecado, podemos cooperar com graça de tal modo que afete nosso destino etemo. Na visão da Reforma, a obra de regeneração é realizada por Deus e por ele sozinho. O pecador é completamente passivo em receber essa ação. Regeneração é um exemplo de graça operativa. Qualquer cooperação que
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demonstramos para com Deus ocorre somentedepois que a obra da regeneração tem sido completada. Naturalmente nós respondemos a essa obra. Nós respondemos de maneira semelhante àquela de Lázaro quando, depois que foi solto, pisou para fora do túmulo. De maneira semelhante pisamos para fora de nossos túmulos de morte espiritual. N ó s tam bém respondemos quando ouvimos 0 chamado de Cristo. Nossa regeneração não impede tal resposta, mas é projetada para tomar essa resposta não só possível como certa. O ponto é, entretanto, que a não ser que primeiro recebamos a graça de regeneração, nós não vamos e não podemos responder ao evangelho de um modo positivo. A regeneração precisa ocorrer primeiro, antes que po ssa haver qualquer resposta positiva de fé. O arminianismo inverte a ordem da salvação. Ela tem a fé precedendo a regeneração. O pecador, que está morto em pecado e em escravidão ao pecado, precisa de alguma maneira deixar cair suas correntes, reavivar sua vitalidade espiritual e exercer fé para que ele ou ela possa ser nascido de novo. De um modo muito real a regeneração não é tanto uma dádiva nesse esquema como é uma recompensa por responder à oferta de graça. O arminiano argumenta que nesse esquema a graça é primária, em que Deus primeiro oferece graça por regeneração. Deus toma a iniciativa. Ele faz a primeira mexida e toma o primeiro passo. Mas esse passo não é decisivo. Esse passo pode ser frustrado pelo pecador. Se0 pecador recusa cooperar com ou concordar com essa graça oferecida, então a graça não adianta, é em vão.
G
raça
r e si st í vel
Há uma diferença crucial entre pelagianismo puro e semipelagianismo. Em pelagianismo puro a graça pode facilitar a salvação, mas não é de modo nenhum necessária para ela. Uma pessoa pode ser salva sem a graça, seja operativa ou cooperativa. Em semipelagianismo a graça não só ajuda para a salvação como é necessária para ela. A graça é necessária para auxiliar 0 pecador a responder positivamente a Deus. A graça é necessária, mas não necessariamente eficaz. A graça pode ser resistida e vencida. Na análise final 0 semipelagianismo remove 0 odioso problema do pelagianismo, mas somente por um passo. O semipelagianismo saúda a necessidade de graça, mas quando examinado bem de perto a pessoa fica a
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pensar se a diferença entre pelagianismo e semipelagianismo não é só uma distinção sem uma diferença. O problema é este: se a graça é necessária mas não eficaz, o que a faz funcionar? Obviamente é a resposta positiva do pecador, que ainda está na carne. Por que um pecador responde à oferta da graça positivamente e o outro negativamente? A diferença em resposta é encontrada no pod er da vontade humana ou é em alguma medida de graça acrescentada? A graça ajuda o 0 pecador coopera somente p elo poder da pecador a cooperar com graça, ou carne? Se é este, é pelagianismo sem disfarce. Se é o primeiro, ainda é pelagianismo em que a graça meramente facilita a regeneração e a salvação. “Não, não, não”, exclama o semipelagiano. “Sproul perdeu o fio da meada. O semipelagianismo rejeita o pelagianismo puro a ponto de dizer que a graça é necessária para salvação, não meramente um auxílio.” Sabemos que é isso que os semipelagianos dizem, mas como de fato funciona isso em seu entender de regeneração? Se a carne pode, sozinha, inclinar-se à graça, onde está a necessidade de graça? Se a graça da regeneração é meramente oferecida e sua eficácia depende da resposta do pecador, o que a graça efetua que não está presente já no poder da carne? Aquilo que a pessoa não regenerada precisa desesperadamente a fim de chegar à fé é regeneração. Esta é a graça necessária. É sine o qua non da salvação. A não ser que Deus mude a disposição de meu coração pecaminoso, eu nunca escolherei cooperar com graça ou abraçar Cristo em fé. Estas são as verdadeiras coisas às quais a carne está indisposta. Se Deus meramente oferece mudar meu coração, o que isso realizará para mim enquanto meu coração permanece em oposição a ele? Se ele me oferece graça enquanto eu sou escravo do pecado e ainda na carne, que bem traz a oferta? Graça salvadora nãooferece libertação, ela libera. Graça salvadora não apenas oferece regeneração, ela regenera. E isto que faz a graça tão graciosa. Deus, unilateralmente e monergisticamente, faz para nós o que nós não podemos fazer para nós mesmos. A frase graça irresistível, como outras que compõem o acróstico TULIP, pode levar a engano. TULIP representa total depravação, uma eleição incondicional, limitada expiação, irresistível graça e perseverança dos santos (com a adaptação para o português valendo como mnemônica). Se ajustássemos essas frases no interesse de correção, teríamos algo assim: radical corrupção, soberana eleição, definitiva expiação, efetiva graça e preservação dos santos. Daria o acróstico RSDEP. Isso nos parece um des
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perdício tão grande de tulipas que vamos ficar com0 acróstico srcinal e simplesmente trabalhar os esclarecimentos necessários. Graça irresistível não é irresistível no sentido que pecadores são incapazes de resisti-la. Embora 0 pecador esteja espiritualmente morto, ele permanece biologicamente vivo e esperto. Como a Escritura sugere,0 pecador sempre resiste ao Espírito Santo. Somos tão antagônicos à graça de Deus que fazemos tudo que está em nosso poder para resisti-la.Irresistível graça significa que a resistência do pecador à graça da regeneração não pode frustrar o propósito do Espírito. A graça da regeneração é irresistível no sentido que é invencível. Visto que a graça da regeneração é monergística e não requer nossa cooperação, sua eficácia está em si e não em nós. Nada podemos fazer para tomá-la eficaz, nada podemos fazer para tomá-la ineficaz. Somos tão passivos com respeito à nossa própria regeneração como Lázaro foi para com sua ressurreição, e como 0 universo foi para a criação dele. Nós não fomos agentes cooperantes em nossa concepção ou geração biológica srcinal, nem somos agentes ativos em nossa regeneração. A doutrina da graça irresistível é assim chamada por causa de sua ação e eficácia monergística. Historicamente tem sido chamada de chamamento eficaz.
C hamamento
eficaz
A Confissão de Fé de Westminster dedica um capítulo inteiro à doutrina do chamado eficaz. Começa declarando: A todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só eles, no tem po por ele determinado e aceito, ele vai chamar eficazmente pela sua Palavra e pelo seu Espírito, tirando-os do estado de pecado e morte em que estâo por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação por Jesus Cristo. Isto ele faz iluminando o seu entendimento espiritualosecorações salvadoramente, compreenderem as coisas de Deus, tirando-lhes de pedraaefim lhesdedando corações de carne, renovando-lhes as vontades e os determinando pela sua onipotência para aquilo que é bom, e os atraindo eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles venham mui livremente, sendo para isso dispostos pela graça dele.6
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Chamado eficaz é eficaz porque nele e por ele Deus efetua exatamente o que ele pretende na operação: o avivamento de almas espiritualmente mortas à vida espiritual.Chamamento se refere à operação interna ou secreta na alma pelo Espirito Santo. A metáfora da confissão de mudar 0 coração de pedra em coração de carne é tirada diretamente da Bíblia. A imagem pode ser um pouco confusa por causa da referência positiva à palavra carne. Na Bíblia carne geralmente se refere à nossa natureza decaída, que fica em contraste com e em oposição ao Espírito. Nessa imagem, porém, carne não é contrastada com espírito mas sim com uma pedra. O mesmo ponto está em vista em ambos os pares de imagens, a saber - uma transformação morteé,para A parte da graça da como regeneração, o coração alma dadepessoa com vida. respeito às coisas de Deus, uma pedra. É iner-ou te, insensitivo, não responde. É calcificado. E chamado empedrado porque é moralmente duro. O coração de pedra também é um coração de escuridão, faltando-lhe tanto vida como luz. A graça da regeneração muda0 coração ou alma de algo frio, sem vida e como pedra, em algo vivo, pulsante, sangüíneo e responsivo. O coração é “tomado vivo” e sensível às coisas de Deus. Calvino cita Agos tinh o como tendo dito: “Esta graça, que é dada secretamente aos cor açõ es do s h omens, não é recebida por nenhum coração duro; pois a razão pela qual ela é dada é para que a dureza do coração possa antes ser tirada. Portanto, quando 0 Pai é ouvido interiormente, ele tira o coração de pedra, e dá um coração de carne. Assim ele os faz filhos da promessa e vasos de misericórdia, que ele já preparou para a glória”.7 O chamado de Deus é tomado eficaz pela Palavra e 0 Espírito. É importante ver que Palavra e Espírito são aqui ligados c om o dois fatores vitais na regeneração. O Espírito Santo não está trabalhando à parte da Palavra ou contra a Palavra, mas sim com a Palavra. Nem está a Palavra operando sozinha, sem a presença e poder do Espírito. O chamado ao qual se está referindo no chamado eficaz não é 0 chamado exterior do evangelho que pode ser ouvido por qualquer pessoa dentro do alcance da pregação. O chamado ao qual se refere aqui0échamado interno, o chamado que penetra e perfura o coração, avivando-o à vida espiritual. Ouvir0 evangelho ilumina a mente, contudo não acorda a alma enquanto o Espírito Santo não ilumina e regenera. O mudar do ouvido à alma é feito pelo Espírito Santo. Essa passagem é a que realiza o propósito
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de Deus de aplicar os benefícios da obra de Cristo aos eleitos. A Confissão de Westminster fala do Espírito renovar a vontade e determiná-la ao que é bom pelo seu soberano poder. Isto se refere à onipotência de Deus. Longe de ser mera sedução, 0 chamado eficaz de Deus à alma humana vem da fonte de poder da onipotência. O mesmo poder que chamou 0 mundo à existência a partir do nada é agora exercido em nossa redenção. Assim como Deus chama 0 mundo à existência a partir do nada, assim ele nos chama à fé salvadora a partir do “nada”, chamando a nós que não temos nenhum pingo de virtude espiritual. A confissão fala da determinação de Deus. Isto não é para ser confundido com o determinismo cego da sorte ou de forças físicas mecânicas. Esse é o determinismo de um ser onipotente e santo, que está determinado a fazer acontecer a salvação de seus eleitos. Deus está determinado a efetuar seu plano, e pelo seu conselho determinante é exatamente isso que ele faz. Na frase vocação eficaz, a ênfase está na palavraeficaz. A confissão atrair fala de Deus atrair o pecador a Cristo, tomando emprestado a palavra da Escritura, mas qualificando-a com 0 advérbio eficazmente. O atrair do Espírito Santo é eficaz; realiza seu propósito. O efeito desse chamado interior sobre o pecador é real. Regeneração e chamado [ou vocação] eficaz são verdadeiros. Efetuam uma mudança real na pessoa. Ela não é meramente induzida a certa ação que de outra maneira poderia não empreender. Regeneração produz uma mudança real e substantiva na natureza constituinte da pessoa. Sua vontade é renovada e liberada. Ela é libertada da servid ão do pecado srcinal. Recebe uma nova disposição pelas coisas de Deus. A fé salvadora é trabalhada no coração. Como um resultado de regeneração, a pessoa se toma uma nova criatura.
R egeneração
e di sp e n sa ci on al i smo
Pouco depois da publicação do livro de John H. Gerstner,Wrongly Dividing the Word o f Truth? eu recebi indagações de amigos dispensacionalistas que ficaram perturbados pelo azedume da crítica e pela acusação de que a teologia dispensacional é evangelicalismo “dúbio”. Gerstner labutou para mostrar que o alegado calvinismo do dispensacionalismo é espúrio. Ele malhou duramente 0 inerente antinomianismo embutido na visão dispensacional de graça e lei. Ele frisou as deficiências na doutrina
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de santificação do dispensacionalismo, que têm engendrado tanta controvérsia com respeito ao senhorio de Cristo. Eu havia escrito 0 prefácio do livro de Gerstner. e isso pareceu causar a meus amigos mais aflição do que o próprio livro. Um amigo que leciona no Seminário Teológico de Dallas, Texas, telefonou-me e perguntou de maneira cortês e sincera0 que penso ser a mais séria questão que divide hoje o dispensacionalismo e a teologia reformada. Eu respondi que a diferença mais significativa, pelo menos a longo prazo, por causa de seu impacto sobre a teologia como um todo, pode ser os diferentes pontos de vista de regeneração. De acordo com0 dispensacionalismo, quando 0 Espirito Santo regenera uma pessoa, nada realmente acontece para efetuar mudança na natureza constituinte da pessoa. Na visão dispensacio nal, 0 Espírito Santo habita no crente mas pode mudar ou não a natureza constituinte da pessoa. O crente precisa cooperar com o Espírito que nele habita para efetuar as mudanças que devem acompanhar a santificação. Isso toma possível0 crente estar num estado de graça e permanecer um “cristão carnal”, um daqueles que recebem Jesus como Salvador, mas não como Senhor. Embora o crentedeva abraçar Cristo tanto como Salvador como também como Senhor, é possível o crente se submeter a Cristo somente como Salvador. Há um debate intramural entre dispensacionalistas sobre esse ponto. Alguns defendem que 0 crente inevitavelme nte s e submeterá a Cristo com o Senhor, mas não necessariamente de imediato. A pessoa poderá, pelo menos por um tempo, permanecer carnal. Eles apelam ao Novo Testamento, no qual Paulo se chama carnal e crentes por vezes são chamados de “carnais”. Ser carnal é agir de acordo com a velha natureza e não segundo a nova natureza. A questão não é se cristãos pecam ou às vezes agem de maneira carnal. A questão é se a pess oa pode ser comp letamente carnal e ser regenerada ao mesmo tempo. Alguns dispensacionalistas crêem que a pessoa pode ser completamente carnal e ainda ser cristã. Isto pres supõe que regen eraçã o não envolve necessariamente uma mudança na natureza constituinte da pessoa. Algo é acrescentado à natureza humana, a saber, a presença do Espírito Santo que nela habita. Mas0 Espírito pode coabitar com o pecador e nunca mudar a natureza dele. O pecador pode continuar a ser totalmente carnal, com sua natureza pessoal não mudada. A objeção reformada à teoria camal-cristã do dispensacionalismo se
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baseia na doutrina reformada da regeneração. O que é gerado de novo é a natureza da pessoa. O coração do pecador é realmente mudado. Antes servindo ao pecado, o pecador é agora libertado para novidade de vida. O fruto da obediência é tanto inevitável como necessário; é imediato. A obediência não é de modo nenhum perfeita, nem contribui de qualquer modo para a base da justificação da pessoa. Sua ausência, no entanto, aponta à ausência de regeneração. Uma pessoa totalmente carnal é uma pessoa não-regenerada, e uma pessoa não-regenerada é uma pessoa não-salva. Com freqüência, de emboscada no pano de fundo dessa disputa está uma visão semipelagiana de salvação. Embora os dispensacionalistas sustentem que são “calvinistas dos quatro pontos”, alguns rejeitam, além do L de TULIP, tamb ém I. Olhemos rapidamente 0 ensino do dispensacionalista Zane C. Hodges, que tem estado no centro da controvérsia da salvação do senhorio. Hodges escreve em seu livro Absolutely Free: “É 0 testemunho constante das Escrituras do Novo Testamento que a Palavra de Deus no evangelho é o que produz o m ilagr e da regeneração. Ela - e só ela - é a semente poderosa, geradora de vida que se enraíza no coração humano quando essa Palavra é recebida ali em fé”.9 Hodges esclarece que regeneração é um milagre. É efetuada pelo poder de Deus, não por força humana. A pergunta é, no entanto, quando acontece milagre? De acordo com Hodges quando a Palavrapara é recebida esse em fé. A fé precede a regeneração e éocorre a condição necessária ela. Isto co lo ca Hod ges bem no meio do campo semipelagiano. Mais adiante Hodges diz: “E o que acontece com aqueles que se apropriam dessa água (‘a água da vida’)? O que acontece com aqueles que crêem neste convite [quem qu iser rece ba de graça a água da vida1’ (Ap 22 .17)] ? Um milagre acontece com eles. São nascidos de novo. Nova vida é comunicada a eles. E na posse dessa vida, eles possuem também o Filho de Deus (IJo 5.12). Realmente, ele é aquela vida (IJo 5.20c), e assim ele mesmo vive dentro deles (Cl 1.27).'° Hodges resume seu ponto de vista: O que realmente acontece quando uma pessoa crê na Palavra salvadora do evangelho? Há numerosas respostas a esta pergunta ... Mas pelo menos duas coisas são tão completamente fundamentais que nunca devem ser esquecidas.
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Uma que umrecebe novoanascimento miraculoso ocorre qual aé pessoa posse da própria vida de Deus.dentro do crente, pelo A outra é que o crente sabe que ele ou ela tem essa vida."
Não há como deixar de ver que Hodges enxerga a regeneração como uma conseqüência ou resultado de fé. A regeneração ocorre por causa da fé. Para Hodges, a fé claramente antecede a regeneração, que não só o distancia do I de TULIP como também do T. Visto que ele tem a pessoa nãoregenerada respondendo em fé ao evangelho, ele não tem possibilidade de afirmar a doutrina de ou incapacidade moral que essencial visão reformada da corrupção radical total depravação. Poréesta razão,à Hodges e outros que se definem dispensacionalistas são apontados por Gerstner estar abraçando uma forma “espúria” de calvinismo. Quando falando da ordem de salvação (ordo salutis), a teologia reformada sempre e em toda parte insiste que a regeneração precede a fé. A regeneração precede a fé porque é uma condição necessária para a fé. De fato, é 0 sine qua non da fé. E importante entender, entretanto, queora dem da salvação se refere a uma ordem lógica, não necessariamente uma ordem temporal. Por exemplo, quando dizemos que justificação é por fé, não queremos dizer que a fé ocorre primeiro, e então somos justificados certo tempo depois. Nós cremos que no exato momento em que a fé está presente a justificação ocorre. Não há nenhum lapso de tempo entre fé e justificação. Ocorrem simultaneamente. Por que então dize mos que a fé precede a justificação? A fé precede a justificação num sentido lógico, não num sentido temporal. A justificação é, logicamente, dependente da fé, não a fé da justificação. Nós não temos fé porque somos justificados; somos justificados porque temos fé. Similarmente, quando a teologia reformada diz que a regeneração precede a fé, está falando em termos de prioridade lógica, não prioridade temporal. Nós não podemos exercer fé salvadora enquanto não tivermos sido regenerados, portanto dizemos que a fé é dependente da regeneração, não a regeneração da fé. Hodges e todos os semipelagianos argumentam que a regeneração é um resultado de fé e dependente dela. Isso presume que a pessoa ainda não regenerada pode exercer fé salvadora. Novamente somos forçados a voltar à questão da extensão de pecado srcinal. Se pecado srcinal envolve incapacidade moral, como Agostinho
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e os magisteriais reformadores insistiram, então a fé só pode ocorrer como resultado de regeneração, e a regeneração só pode ocorrer como resultado de graça efetiva ou irresistível. Dizer que a graça da regeneração é irresistível é simplesmente dizer que essa graça, que é tão vital para a nossa salvação, é soberana. Essa graça é dispens ada soberana e livremente por Deus. Ela é verdadeiramente graça, não tendo nenhuma mistura de mérito humano de qualquer espécie. Por essa graça os cativos são libertados e os mortos em pecado são levantados para uma vida nova. Esta é a obra manifesta da misericórdia tema de Deus, que se abaixa para salvar seus filhos do pecado e morte e que, como fez na obra inicial da criação, toma pedaços de argila que são espiritualmente sem vida e respi ra nele s o sopro que os vivific a. Regeneração é uma obra sobrenatural, uma obra monergística, uma obra que efetua o que Deus pretende. E a obra supernatural de recriação fides viva, uma pela qual os mortos são levantados e trazidos a um estado de fé viva, pela qual são salvos e adotados na família de Deus.
ctfprtu ο ΙΟ Deus e sua preservação dos Santos
O
P de TULIP representa perseverança, a doutrina daperseverança dos santos. Como outros termos representados pe lo acróstico TULIP,perseverança é um termo um tanto enganoso. Sugere que a continuidade de fé e obediência é efetuada pelo crente sozinho. De fato o crente persevera fé eexato piedade, sim, mas isto seédeve à graciosaNós obra de Deus a perseverança preservação. seu favor. em Mais do que perseveramos porque somos preservados por Deus. Se deixados por conta de nossa própria força, nenhum de nós perseveraria. Só porque somos preservados por graça é que somos capazes de perseverar de alguma maneira. Um modo simples de lembrar a essência da doutrina da perseverança na fé é aprender esta mnemônica a esse respeito: “Se nós a temos, nunca a perdemos. Se a perdemos, nunca a tivemos”. É um “modo” atraente de afirmar que apostasia plena e final nunca foi a condição do cristão. Outra expressão abreviada dessa doutrina é o aforismo: “Uma vez salvo, sempre salvo”. As vezes isso é chamado de segurança eterna, visto que chama atenção ao poder duradouro da salvação feita para nós e em nós pela obra de Cristo. ♦
Deus e sua preservação dos Santos
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Tabela — 10.1 A Quinta Pétala da Tulipa 1. 2. 3. 4. 5.
Total depravação Uma el ei çã o i nc ond icion al Limitada expiação Ir r e s i s t í v e l g r a ç a Pe rs ev er an ç a do s s ant o s
Corrupção radical da humanidade A opção soberana de Deus A expiação propositada de Cristo 0 chamado eficaz d o Espírito Deus preserva os santos
A doutrina da perseverança tem a ver com a permanência de nossa salvação. O verbo salvar aparece na Bíblia em vários tempos. Nós temos sido salvos, estamo s sendo salv os e seremos salvos. Há uma dimensão passada, presente e futura para a salvação. Nossa salvação começou na eternidade, é realizada no tempo e aguarda para 0 futuro 0 céu. O Novo Testamento fala de suportar até o fim, prometendo que “aquele, porém, que perseverar até 0 fim será salvo” (Mt 24.13). Isto pode ser entendido como uma condição ou ressalva para salvação ou como uma promessa velada de salvação eterna. Perseverar na fé é uma condição para salvação futura. Só aquelesIsso quelevanta resistem na fé serão salvos a eternidade. a pergunta óbvia: hápara alguns que têm fé genuína que não resistem até o fim e não são, portanto, salvos? O semipelagiano responde que sim. O semipelagianismo ensina que uma pessoa pode chegar à fé verdadeira, autêntica, salvadora e cair daquela fé, perdendo sua salvação. Isto é claramente o que a Igreja Católica Romana ensina. O sistema de teologia sacramental de Roma provê, por penitência, a restauração à salvação daqueles que caíram da fé. Penitência é chamada a “segunda prancha de salvação para aqueles que naufragaram na fé”. Roma prescreve penitência para aqueles que cometeram pecado mortal depois de ter recebido a graça da justificação. Esse pecado é chamado “mortal” porque mata a graça da justificação. Roma distingue entre pecados mortais e veniais. Pecado venial é pecado real, mas não tão sério a ponto de destruir a graça da justificação. Em contraste, pecado mortal é tão sério, tão chocante e público, que leva 0 indivíduo a perder a sua salvação. Ele pode recuperar sua salvação e ser restaurado a um estado de justificação pe lo sacra ment o de penitê ncia. Para Roma, co mo para todas as formas de semipelagianismo, ninguém pode ter segurança positiva de per-
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severança exceto alguns san tos que recebem uma revelação divina espe cial a esse respeito. A doutrina da certeza da salvaçã o difere da doutrina da pe rseve rança dos santos, mas é relacionada de perto com ela. As duas doutrinas podem ser distinguidas uma da outra, mas nunca podem ser separadas. A teologia reformada afirma tanto a segurança da salvação como a perseverança dos santos.
S egurança
d a salvação
A Confissão de Fé de Westminster declara: Ainda que os hipócritas e os outros não regenerados possam se iludir de maneira vã com falsas esperanças e presunções carnais de se acharem no favor de Deus e em estado de salvação - esperança essa que perecerá - contudo, os que verdadeiramente crêem no Senhor Jesus e o amam com sinceridade, procurando andar diante dele em toda a boa consciência, podem, nesta vida, ter absoluta certeza de que se acham em estado de graça e podem se regozijar na esperança da glória de Deus, a qual jamais os envergonhará.1
A confissão reconhece que há tal coisa como segurança falsa. Segurança falsa é derivada de uma visão incorreta de salvação ou uma conjectura incorreta sobre a fé pessoal do indivíduo. A possibilidade de falsa segurança não elimina a possibilidade de segurança genuína. O apóstolo Pedro exorta crentes a buscarem a verdadeira segurança prometida no evangelho: “Por isso, irmãos, procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum. Pois desta maneira é que vos será amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Por esta razão, sempre estarei pronto para trazer-vos lembrados acerca destas coisas, embora estejais certos da verdade já presente convosco e nela confirmados” (2Pe 1.10-12). O apóstolo nos chama a ir atrás de segurança com dil igê nc ia. É a certeza de nossa eleição, que se traduz numa segurança de nossa salvação. Todos os eleitos são salvos, portanto se podemos estar certos que somos os
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eleitos, também pod em os esta r certos de que es tam os salvo s. A que propó0 stolo fazer noss a eleiç ão? “Proce dendo assim , nsito ão troapó peça reisnos em exorta tem poa alg um segura .” 0 que isso que r dize r? Quer dizer que se ganharmos segurança de nossa eleição nunca tropeçaremos e pecaremos? É óbvio que não. A Bíblia está repleta de exemplos de pessoas eleitas e salvas que caíram em pecado. Segurança não garante perfeição. Então em que sentido é verdade que segurança significa que nun ca trop eçarem os? N ão é uma pergu nta fác il de responder. E no tropeçar, ao qual Pedro se refere tão seriamente, que realmente cairemos de um estado de salvação? Talvez. Ou está o apóstolo dando ênfase ao papel de segurança no crescimento firme, em pé seguro em
direção à santificação? Talvez seja isto que Pedro quer dizer, nunca termo é um caso de hipérbole apostóli ca. Nã o sab emeosseu ao uso certodo. Uma coisa, porém, é certa. Há claramente um elo entre nossa segurança e nossa santificação. A pessoa a quem falta segurança de salvação é vulnerável a uma miríade de ameaças ao seu crescimento pessoal. O cristão confiante, certo de sua salvação, fica livre do medo paralisante que pode inibir0 cres ci mento pessoal. Sem segurança som os a ssalt ados por dúvi da e incerteza com respeito às prome ssas de De us, que se rvem com o um a âncora para nossas almas. E de importância máxima que novos cristãos se tomem certos de sua salvféaçaté ão pessoal. T al segurança é um eno rme para o c rescim ento A Confissã o deb en W efíci es tm oinster da a maturidade. continua: Essa certeza não é mera persuasão conjectural e provável, fundada numa esperança falível, mas uma infalível segurança da fé, fundada na divina verdade das promessas de salvação, na evidência interna daquelas graças a que são feitas essas promessas, no testemunho do Espírito de adoção que testifica com os nossos espíritos que nós somos filhos de Deus: esse Espírito é o penhor da nossa herança e por ele som os selados para o dia da redenção.2
Essa seção da confissão está recheada de conteúdo teológico crucial. Primeiro vemos 0 contraste entre conjectura e certeza. A certeza de nossa segurança descansa sobre uma base infalível. Essa base não é a nossa infalibilidade, mas aquela de um que no-la concede. É baseada numa verdade que é divina, a verdade que vem de Deus mesmo. Repousa sobre as “pro-
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messas de salvação”. Sabemos que todos os seres humanos sãovotos. quebradores de promessas, violando juramentos e deixando de cumprir Somos todos capazes e culpados de tais transgressões contra a santidade da verdade. Porém, diferentemente da humanidade decaída, Deus nunca quebra votos, juramentos ou promessas. Ele é 0 supremo guardador de promessas. Suas promessas estão registradas claramente para nós na sagrada Escritura, e essas promessas são corroboradas e confirmadas interiormente pelo testemunho certo do próprio Espírito Santo, que não só é santo, como também é 0 verdadeiro Espírito da verdade. A confissão faz alusão a duas afirmações do Novo Testamento a respeito da obra do Espírito Santo em nossas vidas: ele é0 penhor de nossa herança e nos sela para 0 dia da redenção. O termopenhor veio da linguagem do comércio. Usamos o termo penh or para referir a aç õe s m otiv ada s po r um zelo sincero e apaixonado. Também 0 usamos ocasionalmente no campo do comércio moderno, especialmente com referência à compra de casas ou outra propriedade. Quando assinando um contrato de bens imobiliários, o comprador muitas vezes dá um depósito mostrando que está entrando no contrato “sinceramente” e pretende pagar todo0 dinheiro que deve. As vezes pessoas que dão 0 depósito renegam o negócio e deixam de pagar a quantia total. Sua falha desmente a sinceridade da entrada paga. Mas 0 Espírito Santo da verdade nunca poderia renegar uma promessa. Quando Deus nos dá a “entrada sincera” do Espírito Santo, ele promete terminar0 que começou. Sua promessa de completar o plano no futuro não pode deixar de acontecer. Quando Deus dá um penhor, nada pode estragar sua garantia divina. Além de receber “o penhor de nossa herança", somos “selados” pelo Espírito. A idéia de selar é tirada da prática antiga de selar documentos reais especiais. Documentos eram autenticados apertando o anel com sinete do rei em cera, deixando uma impressão que indica pos se e autorizaç ão da realeza. Em certo sentido, o Espírito age como o anel de sinet e do rei div ino. Ele faz um sinal indelével em nossas almas, indicando ser dono de nós. Um selo também era usado para evitar uma invasão. Assim como o túmulo de Cristo foi selado para evitar violação por ladrões, assim nós somos selados para evitar que0 maligno nos arrebate dos braços de Cristo. Juntas, as promessas de Deus, como 0 testemunho interno do Espírito Santo, 0 penhor do Espírito Santo e o selar do Espírito, completam um sólido fundamento para a completa segurança de salvação para o crente.
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S egurança
e san
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ti fi ca çã o
A Confissão de Westminster acrescenta: Essa certeza infalível não pertence à essência da fé, de modo que um verdadeiro crente não tenha de esperar muito e lutar contra muitas dificuldades antes de possuí-la. Contudo, sendo pelo Espírito habilitado a conhecer as coisas que lhe são livremente dadas por Deus ele pode, sem revelação extraordinária, alcançá-las no devido uso dos meios ordinários. É, pois, dever de cada um empregar toda a diligência para garantir a sua vocação e eleição, a fim de que desse modo seja o seu coração no Espírito Santo confirmado em paz e gozo, em amor e gratidão para com Deus, em força e alegria nos deveres da obediência, que são os frutos próprios dessa certeza. Esse privilégio está, pois, muito longe de predispor os homens ao relaxamento.3
Os teólogos de Westminster tomam claro que a certeza de salvação não é uma condição necessária de salvação. Nós não temos que saber que somos salvos para sermos salvos. E o que a confissão quer dizer quando declara que segurança não “pertence à essência de fé”. Certeza é um fruto de fé e pode, realmente, de fato, por fim, acompanhar a fé. Mas certeza não um essencial de fépessoal salvadora, no queé podemos ser salvos sem ela. Por éexemplo, confiança em Cristo um essencial de fé salvadora. Qualquer fé a que falte tal confiança deixa de ser uma fé salvadora porque lhe falta um elemento essencial. Embora certeza não seja essencial à fé, ela é mesmo assim extremamente importante. A distinção antiga entre 0 ser ou esse (ser) de um assunto ou coisa, e o bem-estar ou bene esse de um assunto ou coisa, podem ser de au xílio. Certeza de salvação não é da essência o u ser ( m e ) da vida cristã, mas é do bem-estar (bene esse) da vida cristã. A certeza de salvação é importante porque é ligada ao nosso crescimento em santificação. Plena segurança não é um fruto automático da conversão, nem é necessariamente um fruto imediato. O crente pode estar num estado de graça salvadora antes de obter segurança. Mas obtê-la não é uma possibilidade remota; é eminentemente atingível e certamente desejável. A segurança de salvação é um benefício enorme para o cristão, porém é também para ser
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perseguida como dever. A confissão menciona a prescrição apostólica de tomamos seguras a nossa eleição e chamada. O crente dev e perseguir a certeza de tal maneira a que “se u cora ção cresça em paz e alegria no Espírito Santo, em amor e gratidão a Deus, e em força e contentamento nos deveres de obediência”. Segurança é ligada com o fruto do Espírito Santo, e esse fruto é a própria essência de nossa santificaçâo. Segurança então não promove um conforto falso em Sião, ou uma forma de espiritualidade forte ou complacente, nem (Deus nos livre) uma licença para vida desobrigada ou libertina. Promove tais coisas como amor e gratidão a Deus. Estes dois elementos, amor e gratidão, são a motivação para obediência cristã. Meu professor na pós-graduação, G. C. Berkouwer, uma vez comen tou em classe, “A essência da teologia é graç a; a es sên cia de ética é gratidão”. Berkouwer estava chegando ao relacionamento inseparável entre a obediência do cristão e sua gratidão por ter sido salvo por graça. A confissão conclui, declarando: Por diversos modos podem os verdadeiros crentes ter abalada, diminuída e interrompida a sua certeza de salvação: pela negligência em preservá-la, por caírem em algum pecado especial que fira a consciência e entristeça o Espírito Santo, por uma tentação súbita e intensa, por Deus retirar deles a luz de seu rosto e permitir mesmo aos que0 temem andarem nas trevas e não terem luz. Contudo eles nunca ficam inteiramente destituídos daquela semente de Deus e da vida de fé, daquele amor a Cristo e aos irmãos, daquela sinceridade de coração e consciência do dever; dessas bênçãos, pela operação do Espírito, a certeza de salvação poderá, no tempo próprio, ser restaurada e por ela eles são. nesse meio tempo, protegidos para não cair no desespero absoluto.4
Essa seção revela claramente que os clérigos de Westminster não separavam a teologia da vida cristã. Mostram discernimento penetrante a respeito das múltiplas tentações que assaltam 0 cristão comum. Reconhecem que segurança não é congelada em concreto, incapaz de aumento ou diminuição. Nossa fé e segurança tendem a ser fracas e frágeis. Certeza pode ser facilmente rompida e rudemente sacudida. Pode ser intermitente. E especialmente vulnerável a pecado. Qual o cristão que nunca experimentou o que Martinho Lutero chamou de o Anfectung, 0 “assalto desenfreado” de Satanás: somos enfrentados
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diariamente com múltiplas tentações, algumas delas graves em sua natureza e intensidade, e vezes demais sucumbimos a elas. O pecado é o maior inimigo da segurança. Quando o cometemos, perguntamos a nós mesmos: “Como pode um verdadeiro cristão fazer tais cois as? ” Então precisam os fugir correndo para Cristo em confissão e arrependimento, buscando 0 perdão dele e encontrando nosso consolo na consolação de Israel. Só ele pode nos restaurar à alegria de nossa salvação e à certeza dela. Quando nossas consciências são feridas seriamente, podemos entrar naquilo que os santos do passado têm chamado “a noite escura da alma”. Este estado é indescritivelmente horrível para o crente, acompanhado não por um senso glorioso da presença de Deus mas por um terrível senso de sua ausência. Podemos nos sentir totalmente abandonados por Deus, e em no sso esp íri to podem os n os aproximar da b ei ra do abismo do infem o. Nó s experienciamos o que é declarado pelo apóstolo Paulo: Temos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós. Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados; abatidos, porém não destruídos; levando sempre no corpo0 morrer de Jesus, para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo. Porque nós, que vivemos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal. De modo que, em nós, opera a morte, mas, em vós, a vida. Tendo, porém, 0 mesmo espírito da fé, como está escrito: “Eu cri; por isso, é que falei”. Também nós cremos; por isso, também falamos, sabendo que aquele que ressuscitou 0 Senhor Jesus também nos ressuscitará com Jesus e nos apresentará convosco. Porque todas as coisas existem por amor de vós, para que a graça, multiplicando-se, tome abundantes as ações de graças por meio de muitos, para glória de Deus. Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que0 nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. 2Coríntios 4.7-16 Paulo fala de ser duramente atribulado, mas não esmagado; perplexo, mas não desesperado. Quando suportando a noite escura da alma, chegamos muito perto do desespero. A que segurança de salvação temos nós
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agarrado com as unhas. Desespero nos aperta, mas não nos absorve inteiramente. Embora a luz da face de Deus possa ficar severamente diminuída, ela nunca é apagada completamente. O Espírito sempre p reserv a para nos sa alma conturbada um raio de esperança, não importa quanto ela pare ça fraca no momento. O cristão pode se sentir enfraquecido no coração, mas ele não perde a coragem completamente. Ainda que 0 homem exterior esteja a perecer, 0 homem interior está sendo renovado dia a dia. A âncora do crente firme é a sua experiência da tema misericórdia de Deus a cada manhã. Embora possa tropeçar a nossa certeza e sofrer danos por um tempo, o Espírito Santo a aviva outra e mais outra vez. Mesmo quando entristecemos 0 Espírito Santo, ele expressa pesar por nosso pecar, mas não nos destrói nem nos abandona para o infemo. O Pai corrige aqueles a quem ama e os traz à plenitude da salvação. Os puritanos estavam profundamente preocupados a respeito da certeza da segurança e seu relacionamento com a vida cristã. Eles ecoaram 0 ponto de vista da Confissão de Fé de Westminster. Recusaram fazer a justificação depender de certeza, mas insistiram em um relacionamento orgânico entre fé justificadora e segurança. Joel R. Beeke, em sua maravilhosa obra Assurance o f Faith (Segurança da Fé), escreve: Essa distinção entre fé e segurança teve profundas implicações doutrinárias e pastorais para os puritanos. Fazer a justificação depender de segurança forçaria o crente a confiar em sua própria condição subjetiva em vez de na suficiência de um Deus trino na ordem de redenção. Tal dependência é não só doutrina insalubre, como também leva a efeitos pastorais adversos. Deus não requer fé plena e perfeita, mas sim fé sincera e “não fingida”. O cumprimento das promessas de Deus depende daquilo que foi recebido, a justiça de Cristo, e não do grau de certeza exercida no recebê-las. Se salvação dependesse da completa certeza ou segurança da fé, John Downame observa, muitos se desesperariam pois então “a mão paralisada da fé não receberia Cristo”. Felizmente, a certeza da salvação não repousa sobre a certeza do crente de sua salvação, pois “os crentes não têm uma mesma segurança da graça e favor de Deus, nem os mesmos os têm o tempo todo”. Pastoralmente, é crítico manter que a fé justificadora e a experiência de dúvida muitas vezes coexistem.5
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P erseverança
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n a salvação
Temos visto o elo bem próximo entre a segurança da salvação e a perseverança na vida cristã. Devemos também lembrar, no entanto, que não são para ser identificadas uma com a outra nem igualadas entre si. Devem ser distintas, mas não separadas. Segurança é nossa confiança subjetiva, tanto em no ssa sa lvaçã o atua l co m o, p or exte nsão , em no ssa sa lvaçã o futura. Alguns crêem que um crente pode ter segurança sobre seu estado presente de redenção, mas nenhuma certeza sobre seu estado futuro. Ele pode estar confiante de que no momento está em um estado de graça, mas estar sem segurança de que continuará nesse estado. Crêem que é possível ele cair da graça e perder a salvação que no momento presente desfruta. A fé reformada crê que podemos ter certeza não só de nosso estado presente de salvação, como também de nossa continuidade nesse estado. Esta segurança para o futuro repousa na doutrina da perseverança dos santos. A Confissão de W estm in ster declara: Os que Deus aceitou em seu Filho amado, os que ele chamou eficazmente e santificou pelo seu Espírito, não podem decair do estado da graça, nem total, nem finalmente; mas com toda a certeza perseverarão nesse estado até o fim e serão eternamente salvos.6
Nós somos aceitos no “am ado” de De us, uma ref erência nat ural mente a Cristo. As b ases d e n oss a justific açã o são o mérito de graça, m érito de nenhum valor meramente temporário e sim de valor e eficácia eternos. O mérito de graça persevera a nosso favor. Nossa eleição é de igual modo em Cristo, e não há absolutamente nenhum perigo ou possibilidade de que ele perderá sua própria eleição. A pergunta é: ele perderá aqueles que Deus elegeu nele e com ele? A confissão diz que os eleitos (aqueles que Deus já aceitou em Cristo) não podem total nem finalmente decair do estado de graça. O termo podem se refere a capacidade, portanto essa asseveração significa que é impossível os eleitos completa ou finalmente caírem da graça. É possível, no entanto, 0 crente experienciar uma queda séria e radical. A Bíblia está
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repleta de exemplos de crentes caíram pecado como Davi e Pedro. Embora suaque queda fosseem terrível, elaintencional não foi neme grave plena nem final. Ambos foram restaurados ao arrependimento e graça. Crentes podem sofrer uma queda radical, mas tais quedas são temporárias e não permanentes. Todos nós temos conhecido pessoas que fizeram profissões de fé e demonstraram zelo por Cristo, só para chegar a repudiar suas confissões e se afastar de Cristo. Como devemos entender isso? Consideramos duas possibilidades. A primeira possibilidade é que sua profissão não foi genuína, não foi sincera de início. Confessaram a Cristo com as bocas e então, mais tarde, cometeram uma verdadeira apostasia daquela confissão. São como a semente que caiu em terra rasa e cresceu depressa, depois murchou e morreu (Mt 13.5,6). A semente nunca se enraizou. Deram alguns sinais externos de convertidos, mas suas conversões não foram genuínas. São como aqueles que honraram a Cristo com seus lábios mas cujos corações estavam longe dele (Mt 15.7,8). A fé deles foi espúria desde 0 início. Nessa categoria podemos prontamente colocar Judas (Jesus declarou que ele foi do diabo desde o início) e aqueles sobre os quais João diz o seguinte: Filhinhos, já é a última hora; e, como ouvistes que vem 0 anticristo, também, agora, muitos anticristos têm surgido; pelo que conhecemos que é a última hora. Eles saíram de nosso meio; entretanto,não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos. E vós possuís unção que vem do Santo, e todos tendes conhecimento. Não vos escrevi porque não saibais a verdade; antes, porque a sabeis, e porque mentira alguma jamais procede da verdade. Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o Filho. Todo aquele que nega0 Filho, esse nâo tem0 Pai; aquele que confessa o Filho tem igualmente o Pai. Permaneça em vós o que ouvistes desde o princípio. Se em vós permanecer o que desde0 princípio ouvistes, também permanecereis vós no Filho e no Pai. E esta é a promessa que ele mesmo nos fez, a vida etema. 1João 2.18-25
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Joã o reconhece qu e alguns d eixaram a com panhia de crentes. Foram apóstatas. Mas declar a que ele s não eram realmente “dos no sso s” . A saída deles manifestou seu estado verdadeiro. Aqueles que saíram são contrastados com aqueles que são ungidos por Deus, aqueles que têm sua Palavra habitando neles. Se essa Palavra verdadeiramente habita neles, então eles permanecerão em Cristo e receberão a promessa da vida eterna. A segunda explicação possível daqueles que fazem uma profissão de fé, dão evidência externa de conversão e depois repudiam a fé, é que eles são crentes verdadeiros que caíram em apostasia séria e radical, mas que se arrependerão de seu pecado e serào restaurados antes de morrerem. Se persistirem na apostasia até a morte, então a queda da graça deles écomeço. plena e final, 0 que é evidência de que não foram crentes genuínos no A posição semipelagiana oferece uma ter ce ir a possibi lidade: tais pes soas foram convertidas de verdade, tiveram verdadeira fé e depois caíram da fé e fora m com pleta e finalm ent e perdidas. Esta vis ão neg a a doutrina da perseverança dos santos. Permite a perda completa e final da salvação por parte daqueles que um dia a tinham recebido genuinamente.
P erseverança
e p r e se r va çã o
A Confissã o d e W estm in ste r prossegue, dize ndo: Essa perseverança dos santos não depende do seu livre-arbítrio, mas da imutabilidade do decreto da eleiç ão - que flui do imutável e livre amor de Deus Pai; da eficácia do mérito e intercessão de Jesus Cristo, da permanência do Espírito, da semente de D eus dentro dele s e da natureza do pacto da graça; de todas estas coisas vêm a sua certeza e infalibilidade.7
A perseverança dos santos poderia mais acertadamente ser chamada a pres ervação dos santos, co m o essa afirmação dos teó log os de Westminster esclarece. O crente não persevera pelo poder de sua vontade não-auxiliada. A graça preservadora de Deus toma a nossa perseverança tanto possível como real. Mesmo a pessoa regenerada com uma vontade liberada ainda é vulnerável ao pecado e tentação, e o poder residual do pecado é tão forte
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que sem 0 auxílio da graça 0 crente iria, com toda a probabilidade, decair. Mas 0 decreto de Deus é imutável. Seu propósito soberano de salvar seus eleitos desde a fundação do mundo não é frustrado pela nossa fraqueza. Fosse a Bíblia não dizer coisa alguma sobre perseverança, o que ela diz sobre a graça eleitora de Deus seria suficiente para nos convencer da doutrina da perseverança. Mas a Bíblia não cala sobre e ss es ass un tos, dec larando claramente e com freqüência que Deus completará0 que ele começou para nós e em nós. Por exemplo, Paulo declara: “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações, pela vossa cooperação no evangelho, desde 0 primeiro dia até agora. Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus ...” (Fp 1.3-6). Note que Paulo põe a ênfase em Deus, não no homem, quando ele diz que “aquele que começou boa obra em vós há de completá-la”. O que Deus começa ele completa. Sua obra não é deixada dependurada como alguma sinfonia sublime, inacabada. Cristo é chamado tanto0 autor como 0 consumador de nossa redenção. Nós somos a obra de suas mãos. Como um artífice perito, ele nunca precisa destruir ou descartar uma obra imperfeita de mestria espiritual. A preservação dos santos que Deus opera não é baseada numa mera dedução rata um do seu decreto eleição . Re pousa ém em se u amor imutávelab e st livre, amor que é de duradouro, um amortamb de complacência que nada pode romper. Outra vez0 apóstolo Paulo declara: Que diremos, pois, à vista destas coisas? Se Deus è por nós, quem será contra nós? Aquele que não poupou 0 seu próprio Filho, antes, por todos nós 0 entregou, porventura, não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?E Cristo Jesus quem morreu ou, antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus e também intercede por nós. Quem nos separará do amor de Cristo?Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ouperigo, ou espada? Como está escrito: “Por amor de ti, somos entregues à morte o dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro”. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque eu estou bem certo de ue q nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem
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do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra nosso criatura, Senhor. poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Romanos 8.31-39
A lista de Paulo de coisas que concebivelmente poderiam ameaçar ou pôr em perigo o amor de Cristo pelas suas ovelhas é representada não exaus tivame nte. Paulo e stá ampliando a declaração geral que fe z antes, que nada poderá nos sep arar do amor de D eus que é n osso em Cristo Jesus. E sse amor é duradouro e permanente. Nós perseveramos em graça porque Deus persevera em seu amor para conosco. Também não há limite ao mérito da graça concedida sobre nós, nem à intercessão perpétua de Cristo. Nós perseveramos em graça porque Deus persevera em seu amor para conosco. Nem há qualquer limite ao mérito da graça concedida sobre nós, ou à intercessão perpétua de Cristo por nós. Talvez a força mais forte nos capacitando a perseverar seja a obra de nosso sumo sacerdote na intercessão a nosso favor. Também contribuindo à nossa preservação estão o Espírito Santo habitando dentro de nós como nossa garantia e penhor, a semente de Deus plantada em nossos corações e, finalmente, a própria natureza do pacto da graça, pelo qual as promessas de Deus a nós estão asseguradas de modo absoluto. Essas seguranças da perseverança são enraizadas na idéia expressa na frase latina D eus pro nobis, “Deus por nós”. O apóstolo faz a pergunta retórica “se Deus é por nós, quem será contra nós?” É claro que muitos estão contra nós. Já esperamos ser odiados, e odiados 0 dia inteiro, porque nos so Senhor indicou que e sse seria o caso. Som os desprezad os por S ata nás e seus subordinados. Todos eles se postam em oposição a nós. Todos os que são do anticristo ( anti significando ou “contra” ou “em lugar de”) também são anticristãos. Quando Paulo pergunta: “quem será contra nós?” ele quer dizer que ninguém (e nada) prevale cerá contra nós. A preservação de Deus resulta em nos tomarmos “mais que vencedores”. Esta frase de quatro palavras traduz uma palavra grega, hypernikon, que é dada em latim pela palavra supervincemus. Os prefixos hyper e super elevam a idéia de conquistador ao mais alto nív el.
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Assim como a Confissão de Westminster indica a possibilidade da perda temporária de segurança do crente, assim a Confissão reconhece que santificação não é sempre um progresso ascendente sereno e uniforme de santificaçãosem lapsos sérios. Cristãos verdadeiros poderão cair séria e radicalmente, mas não podem finalmente cair da graça. A confissão declara: [Não obstante], pelas tentações de Satanás e do inundo, pela força da corrupção neles restante e pela negligência dos meios de preservação, podem cair em graves pecados e por algum tempo continuar neles; incorrem assim no desagrado de Deus, entristecem o seu Santo Espírito e de algum modo vêm a ser privados das suas graças e de seus confortos; têm os seus corações endurecidos e as suas consciências feridas; ferem e escandalizam os outros e atraem sobre si juízos temporais.8
Como parte do processo de nossa santificação, perseverança é um trabalho sinergético. Isso significa que é um esforço cooperativo entre Deus e nós. Nós perseveramos enquanto ele preserva. Uma analogia disso é muitas vezes usada com crianças. Uma criança e seu pai vêm descendo por um caminho perigoso de mãos dadas. Há duas maneiras em que podem dar as mãos. Primeira, a criança pode agarrar a mão do pai e segurar bem aperta0 pai pode segurar a mão da criança. do. Se ela soltar, poderá cair. Segunda, Só se 0 pai perder a firmeza do domínio que segura é que a criança poderá cair. No primeiro caso a segurança da criança depende da firmeza que ela se agarra ao pai. No segundo caso a segurança da criança depende da firmeza que 0 pai a leva consigo. Podemos estender a analogia um pouco e dizer que quando a criança se solta da mão do pai,0 pai pode deixá-la tropeçar e arranhar os joelhos. Embora a criança se exponha ao desprazer do pai no processo, o pai não permitirá que a criança se solte completamente, evitando que ela caia num abismo. Mesmo quando Deus está nos segurando, devemos nos segurar nele ao mesmo tempo. Somos capazes de perder nosso apoio, e realmente fazemos isso. Temos uma responsabilidade, de nos segurar tão apertadamente quanto possamos, mesmo tendo certeza de que ele não nos soltará. O Novo Testamento freqüentemente nos admoesta a fazer isso e nos avisa das conseqüências de soltarmos dele. Podemos cair da graça, mas não ab-
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solutamente. Em certas ocasiões, a Bíblia parece proibir o que é, em última análise, impossível e mandar o que é também impossível. Por exemplo, chama-nos para sermos perfeitos como nosso Pai celestial é perfeito (Mt 5.48). Ninguém pode alcançar esse grau de perfeição. Por que então a Bíblia fala dessa maneira? Lutero chamou isso de o “uso evangélico da lei”. Ele quis dizer que o evangelho nos chama a nos esforçarmos tão diligentemente quanto podemos para alcançar os padrões mais altos da lei. Tais apelos nos motivam a depender cada vez mais da graça.
O PR OB LE MA DE HEBR EUS
Talvez 0 texto bíblico mais disputado referente à perseverança dos santos seja o que se encontra no livro de Hebreus: “É im po ss ível , p ois , que aqueles que uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tomaram participante s d o Espír ito Santo, e provaram a boa palavra de De us e os poderes do mundo vindouro, e caíram, sim, é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.4-6). O apóstolo adverte que certas pe sso as não po dem ser restauradas para a salvação se fazem certas coisas. As primeiras perguntas são: que espécie de pessoas está ele descrevendo? São cristãs não-cristãs? primeira vista, a resposta parece óbvia. A essas pessoasou foram ensinadasAalgumas coisas, já provaram do dom celestial e têm participado do Espírito Santo, então devem ser crentes. Pelo menos outra possibilidade, porém, precisa ser explorada. O Antigo Testamento é claro em dizer que nem todos que estavam em Israel eram de Israel. Alguns que estavam na comunidade do pacto não possuíam fé genuína. E Cristo disse que em sua igreja o joio cresceria entre o trigo (Mt 13.24,25). Por esta razão sempre houve uma distinção entre aqueles que pertencem à igreja visível e aqueles que são parte da igreja invisível. Como Agostinho sugeriu, a i greja invi síve l, o corp o de crentes eleit os, exi ste substancialmente dentro da igreja visível. É chamada de “invisível” porque só Deus pode ler a verdadeira condiç ão do coração humano. A alma é inv isív el para nós. Tudo que é dito em Hebreus 6 poderia ser dito de membros descrentes da igreja visível com uma possível exceção. Em um sentido todos
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os membros da igreja visível são esclarecidos e provam o dom celestial. Mas podem membros que não crêem ser dito terem se arrependido? A frase “renová-los para arrependimento” pressupõe que já se arrependeram pelo menos uma vez no passado. Se arrependimento é, como a teologia reformada crê, um fruto de regeneração, então 0 autor de Hebreus está descrevendo pessoas que têm sido regeneradas. Poderia seu arrependimento ter sido falso ou espúrio como0 de Esaú? Arrependimento espúrio dificilmente pode estar em vista porque nào haveria nenhum valor na renovação de tal arrependimento. Essa referência a arrependimento me convence que 0 autor está descrevendo cristãos regenerados. Essa conclusão me permanentemente deixa com apenas duas opções: abandonar Ia.) ou cristã regenerados podem cair e precisamos a os doutrina da perseverança dos santos ou 2a.) a admoestação em Hebreus 6 é um exemplo daquilo que Lutero chamou de um “uso evangélico da lei”, A questão aqui precisa ser resolvida permitindo à Escritura que interprete a Escritura, não colocando um trecho bíblico contra outro. Se o restante da Bíblia é claro com respeito à perseverança (e eu creio que é), então devemos interpretar 0 que é ambíguo aqui de acordo com o que não é ambíguo em outra parte. O implícito deve sempre ser interpretado pelo explícito, o não-claro pelo claro. O autor de Hebreus em nenhum lugar declara que um verdadeiro crente faz de fato aquilo que ele está avisando crentes a não fazerem. Se nenhum crente faz contra0 que o autor avisa, por que se preocupar com tal aviso? Devemos proceder com extrema cautela aqui. Isso é mesmo um aviso, ou é mais propriamente um argumento? Freqüentemente no Novo Testamento vemos exemplos daquilo que é chamado um argumento ad hominem, um argumento que é “para o homem”. Há dois tipos de argumentoad hominem, um que é inválido e um que é válido. O assim chamado argumentoabusivo ad hominem ataca a pessoa em vez de seu argumento. O argumentoad hominem válido, chamado reducí io ad absurdum, adota as premissas da outra pessoa e as conduz à sua conclusão lógica, que é uma coisa absurda. Paulo usa este tipo de argumento, por exemplo, em ICoríntios. Segue ummodelo ‘se - então’ de raciocínio: “ Se Cristo não ressuscitou, [então] é vã a vossa fé” (1C0 15.17). Ajudaria se soubéssemos quem escreveu Hebreus, a quem ele estava escrevendo e, mais importante ainda, a ocasião dele estar escrevendo a eles. Não sabemos ao certo a questão exata nem exatamente o que ameaçava os
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cristãos hebreus. Se o problema era a he resia juda izant e q ue con stitu ía uma ameaça muito grande à igreja primitiva, então um argumento ad homi nem desses faria sentido. A heresia judaizan te reque ria que os crentes vo lta sse m às obrigações da lei do Antigo Pacto, o que os colocaria de novo sob a maldição, cujo peso tinha sido levantado de sobre seus om bros po r Cristo. Isso seria um repúdio tácito da expiação de Cristo, exigindo uma nova expiação, uma recrucificação. Mas uma recrucificação é impossível. Se a pessoa voltasse de fato ao antigo status, não haveria nenhuma provisão restando para a salvação dessa pessoa. Eu creio que o autor está argumentando dessa maneira, e não está declarando que verdadeiros crentes re almen te c om etam es se pec ad o. A afirmação do autor mais adiante sustenta esta interpretação: Quanto a vós outros, todavia, ó amados, estamos persuadidos das coisas que são melhores e pertencentes à salvação, ainda que falamos desta maneira. Porque Deus não é injusto para ficar esquecido do vosso trabalho e do amor que evidenciastes para com o seu nome, pois servistes e ainda servis aos santos. Desejamos, porém, continue cada um de vós mostrando, até ao fim, a mesma diligência para a plena certeza da esperança; para que não vos tomeis indolentes, mas imitadores daqueles que, pela fé e pela longanimidade, herdam as promessas. Hebreus 6.9-12
Note que o autor diz: “Todavia ...” ou (Mas ...) Todavia introduz um qualificador de peso: “es tam os co nfiante s de m elho res c oi sa s a seu resp eito, sim, coisas que acompanham salvação, embora falemos desta maneira”. A referência a falar de certa maneira deve nos alertar ao perigo de tirar conclusões irrefletidas e não comp rovada s. E ssa a dm oes taçã o inteira é dada em uma “maneira de falar”. O autor expressa sua confiança de que as pessoas a quem se dirige não farão as coisas contra as quais ele avisa, mas sim que farão aquilo que acompanha a salvação. Essa confiança se acha no cerne da doutrina da perseverança dos santos. O Deus que começou uma boa obra em nós completará essa obra até o fim, de maneira completa e final, à medida que a corrente dourada da redenção vai chegando ao seu objetivo final perfeito.
Notas
I ntrodução
— T eologia
reformada
é u m a teologia
Isr.,Christianity? 1 . Sa Adolf Ham ack, What para inglês unders (1901; reimp Nova York: Trad, Harper &0 Row , 19por 57). Thomas Bailey No Placefor Truth: or, Whatever Happened to Evangelical 2 . David F. Wells, Theology?(Grand Rapids, Mi: Eerdmans,1993), p. 95. 3 . Ibid., p. 97. Veja Ian T. Ramsey, Modelsfo r Divine Activity (Londres: SCM, 1973), p. 1. 4 . Wells,No Placefor Truth, p. 98. C apítulo
I — C entrada
em
D eu s
1 . Martin Luther, What Luther Says: An Anthology,org. Ewald M. Plass, 3 vols. (St. ou L is: Concordia, 1959),2:551. Institutos da Religião Crista, 2 vols. trad, p/ o inglês por Henry 2. João Calvino, Beveridge(1845; reimpr. Grand Rapids, M I: Eerdmans, 1964), 1:51 (1.5.1). 3. Ibid. 4. Ibid., 1:37(1.1.1). 5 . Ibid., 1:38-39 (1.1.2). 6 . A Confissão de Fé de Westminster, 2.2. 7 . Calvino, Institutes of the Christian Religion, 1:39(1.1.3). 8 . Ibid., 1.59,60(1.5,11,12).
Notas
C apí t ul o 2 —
B aseada
some
189
nt
e n a
P alavra
de
D eu s
1 . João Calvino, Institutos da Religião Cristã, 2 vols. trad. Henry Beveridge (1845; reimpr., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), 1:68 (1.7.1). 2 . Martinho Lutero, What Luther Says: An Anthology, org. Ewald M. Plass, 3 vols. (St. Louis: Concordia, 1959), 1:62. 3 .Ibid., 1:63.
4 . Ibid., 5 .Ibid., 6 .Ibid., 7 .Ibid.,
1:67. 1:68. 1:72. 1:87.
S . Ibid ., 1:88.
9 . Calvino,Institutos da Religião Cristã, 1:68-69 (1.7.1). 10. Ibid., 1:69(1.7.2). 11 . Lutero,What Luther Says, 1:87. 12 .Ibid. 13 .Ibid., 1:93. 14, Ibid., 1:91,92. C apítulo
3 — C omprometida
somente
com a fé
1 . Martinho Lutero, What Luther Says: An Anthology , org. Ewald M. Plass, vols.2:704. (St. Louis: Concordia, 1959), 2:704 n. 5. 2 . 3Ibid., 3 . Ibid., 2.703. 4 . João Calvino,Institutas da Religião Cristã, 2 vols., trad. Henry Beveridge (1845; reimpr., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), 2:37-38 (3.11.2). 5 . Lutero,What Luther Says, 2:921. 6 . Ibid., 2:710. 7 . Calvino,Institutas da Religião Cristã, 2:115 (3.17.12). 8 . Ibid., 2:57 (3.11.21). 9 . Lutero,What Luth er Says, 1:522. IQ . Ibid., 2.714,15. C a p í tu lo
4 — D edicada
a o p r ofe ta
, sacerdote
e r ei
1 . A Confissão de Fé de Westminster, 8.1. C apítulo
5 — A pelidada
d e teologia
d a ali an ça
1 . C. I. Scofield, org.Scofield Reference Bible (Nova York: Oxford University. 1909).
O que é Teologia Re formad a
190
LawColloquium, and Covenant1955). in Israel a nd the Ancient Near 2 .East George E. Mendenhall, (Pittsburgh: Biblical 3 . Meredith G. Kline, Treaty of the Great King: The Covenant Structure of Deuteronomy: Studies and Commentary (Grand Rapids, Ml: Eerdmans, 1963);By Oath Consigned: A Reinterpretation o f the Covenant Signs o f Circumcision and Baptism (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1968). 4 . A Confissão de Fé de Westminster, 22.1 -2, em O Livro de Confissões, Publ. e dist. MPBC em São Paulo, 1969, (I a. edição bras.). 5 . Ibid., 7.2. 6 . Idem, 7.3. Itálicos acrescentados. 7 . Ibid., 7.5-6. C apítulo
6 — A
corrupção
radical
d a humanidade
1 . Adolf Hamack, History o f Dogma, trad. James Miller (1898, reimp. Nova York, Dover, 1961, pp. 168,69, de Agostinho, On the Gift o f Perseve rance, (A.D. 428), 53. 2 . João Calvino,Institutes of the Christian Religion, 2 vols. trad. Henry Beveridge (1845, reimp., Grand Rapids, MI, Eerdmans, 1964,1:214 (2.1.5). 3 . Martinho Lutero, What Luther Says: An Antholog, ed. Ewald M. Plass, 3 vols., St. Louis: Concordia, 1959), 3: 1300-1301. 4 . A Confissão de Fé de Westminster, 9.3. 5 . Calvino,Institutes of the Christian Religion, 1.228-29 (2.2.6,7). 6 . A Confissão de Westminster, 9.4-5. CAPÍTUL07 —
A OP ÇÃ O S OBER ANA DE DEU S
1 . A Confissão de Fé de Westminster, 3.3-5. 2 . Albrecht Oepke,"Elko" em Gerhard ICittel, ed. Theological Dictionary of the New Testament,org. e trad. Geoffrey W. Bromiley, vol. 2 (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), p. 503. 3 . João Calvino,A Treatise on the Eternal Predestination o f God, trad. Henry Cole, em Calvin's Calvinism (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1950), p. 31. 4 . João Calvino,Institutas da Religião Cristã, 2 vols., trad. Henry Beveridge (1845; reimpresso, Grand Rapids, Ml: Eerdmans, 1964), 2:21 2 (3 .22.1 ). C apítulo
8 — A
expiação
intencional
de
C
risto
1 . J. I. Packer, “Introductory Essay”, em John Owen, The Death o f Death in the Death of Christ: A Treatise in Which the Whole Controversy about Universal Redemption Is Fully Discussed (1852; reimpresso, Londres: Banner o f Truth, 1959), p. 4. 2 . Ibid.
Notas
191
Death o f Death in the Death o f Chri st, p. 161. 43 . IbOwen, 236. id ., p.The 5 . A Confissão de Fé de Westminster , 3.1. 6 . Ibid.
7 . Owen, The Death o f Death in the Dea th o f Christ, p. 45. C
a p í tu lo
9— O
chamado
e fi c a z d o
E
spí r i t o
1 . J. I. Packer e O. R. Johnston, “Historical and Theological Introduction”, em Martinho Lutero,The Bondag e o f the Will, trad. J. I. Packer e O. R. Johnston (Cambridge: James Clarke / Westwood, N.J.: Revell, 1957), pp. 57,58. 2 . Ibid., p. 58. Veja Martinho Lutero,Vom unfreien Willen, org. H. J. Iwand (1954), p. 253. 3 . Lutero,The Bondage o f the Will, p. 78. 4 . Packer and Johnston,H isto rical a nd Theolog ical Introduction, pp. 58,59. 5 . Ibid., p. 59. 6 . A Confissão de Fé de Westminster, 10.1. 7 . João Calvino, Institutas da Religião Cristã, 2 vols., trad. Henry Beveridge (1845; reimpr., Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964), 2:240 ( 3.24.1). De Agostinho, On the Predestination o f the Saint s, trad. R. E. Wallis, emBasic Writings o f Saint Augustine, org. Whitney J. Oates, 2 vols. (1948; reimpr. Grand Rapids, MI: Baker, 1992 ), 1:790 (cap. 13). Compare a trad, de Wallis desta passagem: “Esta graça, portanto, que é escondidamente concedida a corações humanos pela dádiva divina, não é rejeitada por nenhum coração duro, porque é dada para o fim de primeiro tirar a dureza de coração. Quando, pois, o Pai é ouvido no interior, e ensina, para que uma pessoa venha ao Filho, ele tira o coração de pedra e dá um coração de carne, como na declaração do profeta ele já prometeu. Porque ele assim os faz filhos e vasos de misericórdia que ele j á preparou para a glória”. 8 . John H. Gerstner,Wrongly Dividing the Word o f Truth: A Critique of D ispensationalism (Brentwood, TN: Wolgemuth & Hyatt, 1991). 9 . Zane C. Hodges, Absolutely Free! A Biblical Reply to Lordship Salvation (Dallas: R eden ció n Viva / Grand Rapids, MI: Zondervan, 1989), p. 48. 10 . Ibid., p. 49. 11 .Ibid., pp. 51,52. C
a pí tu
lo
10 — D
e u s e s u a p r e se r va ção
d o s
S
antos
1 . A Confissão de Fé de Westminster, 18.1. 2 . Ibid., 18.2. 3 . Ibid., 18.3. 4 . Ibid., 18.4. 5 . Joel R. Beeke, Assurance o f Faith: Calvin, English Puritanism, and the
0 que é Teologia Reformada? Vocêjá se per gun t ou sob re os “Cinco pont os do Calv inism o" ? O que eles r ealm ent e sign if icam ?
Você já ouviu falar sobre Teologia Reformada, mas não está certo quanto ao que isso seja. Algumas referências a ela são positivas, outras negativas. Parece ser algo importante e você gostaria de saber mais sobre isso. Mas 0 que você quer é uma explicação compreensível e completa, não uma simplista.
O qu e éTeologi a Refo rm ad a? não é um livro texto, mas uma introdução acessível às crenças que influenciaram imensamente a igreja evangélica. Neste livro inspirador, R. C. Sproul conduzirá você pelos fundamentos da doutrina reformada e explicará como a fé reformada é centrada em Deus, tem por base a Palavra de Deus e é comprometida com a fé em Cristo. Sproul exporá os cinco pontos da Teologia Reformada e tornará claro para você a realidade da maravilhosa graça de Deus
R. C. Sproul é autor de mais de sessenta livros, fundador e presidente da Ligonier Ministries e professor de Teologia Sistemática e Apologética no Knox Theological Seminary, em Fort Lauderdale, Flórida.
6DITORR CUITURR CRISTR
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