Folha Explica
A REPÚBLICA Renato Janine Ribeiro Texto da contra capa
A despeito do que se pensa, república não é o contrário de monarquia. É, isto sim, o regime da coisa pública, do bem comum. Por isso, são poucos os Estados que merecem ser chamados de repúblicas. Ser republicano exige muito do cidadão, porque ele precisa ser intensamente ético. A república é o regime da ética na política. Ora, como podemos ser éticos, fazendo passar o bem comum à frente do egoísmo privado, quando vivemos numa sociedade que prega, o tempo todo, o interesse particular na economia e a afirmação de si nas relações com os outros? Queremos a ética na política, mas como, se a sociedade em que vivemos é tão egoísta? Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP e autor de A Democracia, nesta mesma série.
SUMÁRIO DOIS QUADROS RESSUSCITAM O IDEAL REPUBLICANO A VIRTUDE VARONIL UM ANTIGO INIMIGO: A MONARQUIA O INIMIGO DA REPÚBLICA (1): O PATRIMONIALISMO O INIMIGO DA REPÚBLICA (2): A CORRUPÇÃO A REPÚBLICA FACILITADA: MANDEVILLE A REPÚBLICA POSSÍVEL REPÚBLICA E DEMOCRACIA EPÍLOGO: IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA BIBLIOGRAFIA E SITES Este livro tem um companheiro, na mesma série, sobre “A Democracia". Consultar os dois é o melhor, embora cada um possa ser lido em separado. As teses que os unem são: não há política digna de seu nome, hoje, que não seja democrática e republicana. Mas há uma tensão entre esses dois ideais. A república é o regime no qual prevalece o bem comum, o que exige o sacrifício ou a contenção dos desejos e interesses privados. Já a força da democracia, hoje, e seu caráter popular estão justamente no fato de que ela mobiliza o desejo de ter mais - e sobretudo o desejo de ser mais. Dedico este livro a meus amigos do grupo de estudos sobre a república: Olgáría, Heloísa, Maria Alice, Werneck, Murilo, Newton, Marcelo, Sérgio e Wander. E a meu filho Rafael, para que quando cresça seu país valorize, mais do que hoje, o bem comum. Finalmente, agradeço a Jean Galard e à Réuníon des Musées Natíonaux a cessão das imagens dos quadros de Davíd que vocês verão a seguir.
1. DOIS QUADROS RESSUSCITAM REPUBLICANOPAI E FILHOS
O
IDEAL
No Salão de 17S9, em Paris, o pintor Jacques Louis David (1748-1825) expõe seu quadro Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos, que hoje está no Museu do Louvre.Todo espectador culto entende de imediato o sentido da obra. Refere-se a um episódio da Roma antiga, depois de expulso o último rei e proclamada a república. Brutus era um dos dois cônsules eleitos anualmente que exerciam, em conjunto, o poder executivo. Seus filhos, porém, conspiraram para restaurar a dinastia dos Tarquínios — uma dinastia etrusca, portanto de origem externa à cidade — e foram presos. O próprio pai os condena à morte. Na sua função pública, não poderia agir de outro modo. No quadro, vemos ao fundo os cadáveres, com as mulheres soltando todo o desespero, toda a dor pela morte dos rapazes. No primeiro plano, o cônsul, em silêncio, meditando - e, na sua forma discreta, máscula, condensada, sentindo imensa dor.
Jacques Louis David, Os Litores Levam ao Cônsul Brutus os Corpos de Seus Filhos
(Museu do Louvre, Paris)
O quadro diz muito sobre a república, e isso meses antes da Revolução Francesa e alguns anos antes que a França adotasse essa forma de governo. Muitos comentam a influência que terá tido a jovem república dos Estados Unidos da América sobre a francesa: afinal, a independência norte-americana contou com apoio financeiro e militar da França. E Thomas Jefferson, que redigiu a Declaração de Independência das 13 Colônias, foi embaixador de seu país em Paris, de 1785 ao início da Revolução. Mas pensemos um pouco. Os homens da Revolução Francesa eram cultos,
estudados, assim como, aliás, os da Americana. Conheciam a tradição clássica. O que levariam mais em conta, a experiência recente e ainda pouco testada de um punhado de colonos numa terra distante, ou séculos de sucesso num dos maiores centros da civilização europeia? Roma e o neoclássico estavam em voga, naquele fim do século 18. O que nos diz o quadro de David? Antes de mais nada, que o bem público se sobrepõe ao privado. Essa frase, que geralmente tomamos por mero lugarcomum, tem nos valores da República um claro significado: devemos sacrificar as vantagens e até os afetos pessoais ao bem comum. O pai executa o filho, como o filho eventualmente mataria o pai, em nome da Cidade. O custo dessa ação não é negado e nem mesmo ocultado. Ninguém ignora a dor de Brutus seria tão fácil apresentá-lo como um político desumano, que ao poder sacrifica o amor! -, mas ele não podia agir decentemente de outro modo. A República tem custo alto, mas é justo pagá-lo. Para sairmos, porém, da facilidade com que essas palavras são ditas, vamos a um episódio mais recente, também gerador de vasta iconografia, que enche de horror quem o conhece. É o caso do pequeno Pavel Morozov, um adolescente russo que denunciou o próprio pai ao poder soviético, no começo dos anos 30, por esconder cereais. O pai foi condenado a uma longa pena num campo de concentração, onde provavelmente morreu; já o garoto acabou assassinado na vila em que vivia. Pois Pavel foi instituído como o grande herói do Konsomol, a organização da juventude comunista, e estátuas em sua honra se espalharam por toda a União Soviética.1 Há várias razões para que a história nos choque. Pavel traiu o pai. Denunciou-o não porque conspirasse contra o país, mas só porque escondia comida. Pior que isso, foi convertido em exemplo, em herói. Dizia-se aos meninos e meninas: sejam como ele. Uma cultura exortou a denunciar os pais. Mas essa história execrável não é diferente da romana que vimos acima. Brutus foi herói, sobretudo por ter mandado executar os filhos. E verdade que eles haviam cometido crime pior que o pai de Pavel, mas Pavel não foi o juiz que mandou matar o pai — embora tenha pedido, ao tribunal, que o punisse. O cerne da questão é o mesmo: o bem comum passa à frente dos afetos. Tanto Roma quanto Moscou fizeram deles figuras exemplares. Provavelmente, o que nos faz detestar a história soviética é que a república hoje passa melhor que o comunismo: atualmente, ela é o regime aceito pela maior parte da humanidade.
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A estátua do pequeno Pavel, que reinava sobre o parque Morozov, em Moscou, foi derrubada pelo povo da capital em meio às manifestações contra o golpe de 21 de agosto de 1991, que tentara depor Gorbatchev.
Jacques Louis David, O Juramento dos Horácios (Museu do Louvre, Paris)
PÚBLICO VERSUS PRIVADO Sim, a república é hoje o regime aceito pela maior parte do mundo. Mas da boca para fora. No Brasil, onde desde 1889 o regime se chama república, só houve eleições minimamente decentes para a presidência em 1945, 1955 e 1960 - e eleições livres de 1989 para cá, mas ainda com certa manipulação dos meios de comunicação. De nossos cento e poucos anos nominalmente republicanos, quantos corresponderam a um regime com as liberdades públicas asseguradas? O que este livro pretende não é reiterar a velha diferença entre monarquia e república, ficando na forma e no nome da república. Quem tem dúvida de que as monarquias do norte da Europa têm governos mais respeitosos de seus cidadãos e do bem comum do que a maior parte das repúblicas americanas, africanas e asiáticas? Pouco após o golpe de 15 de novembro, Eduardo Prado denunciou a ditadura militar que se instalara no Brasil e defendeu a monarquia deposta: muitos achavam o imperador Pedro II mais cioso do bem comum do que os marechais e os oligarcas paulistas e mineiros que se sucederam a ele. Mas continuemos no Louvre. David já pintara, em 1784-5, O Juramento dos Horácios. Mais uma vez, a referência romana, que naquele tempo qualquer espectador — por ser culto — decifraria com facilidade. Muitos quadros evocavam uma história conhecida do público. Reza a lenda que Roma e Alba combinaram decidir uma guerra num combate de três jovens romanos, os irmãos Horácios, com três albanos, os irmãos Curiácios. Tão logo começa a luta, dois Curiácios matam dois Horácios. A questão parece resolvida; os Curiácios atacam o romano sobrevivente. Ele sai correndo. Mas não é covardia e sim esperteza que o move: seus perseguidores correm em velocidade desigual, e o
último Horácio pode a cada etapa parar, enfrentar um inimigo só, matá-lo e retomar a corrida. Assim, ele vence os inimigos de Roma. A astúcia é essencial para o defensor da república — será essa a moral da história? Não. Ou até é, mas a história prossegue. De volta a Roma, o vencedor encontra a irmã, Camila. Esta, sabendo o que se passou, chora. Era noiva de um dos Curiácios. O irmão, vendo-a chorar um inimigo de Roma, mata-a. Se fosse esta uma ópera do século 19, certamente o irmão não saberia do noivado e a mataria ao tomar conhecimento dele. Mas nossa história romana não é melodrama: é tragédia. O Horácio restante sabia do noivado, e isso torna a história mais assustadora. Não só ele matou a irmã, por ter traído o amor à pátria, mas antes disso não hesitaram ele, os irmãos e os inimigos em lutar até a morte entre amigos, a um passo de se tornar parentes. A república prevalece sobre qualquer sentimento, qualquer elo privado.
A MULHER DESDENHADA (1) O lugar da mulher, na república, não é admirável. As mulheres da gen Brutus choram à vontade, mas porque valem menos que os homens. Têm maior Uberdade de exprimir os sentimentos, mas isso porque contam com menos obrigações — de defender a pátria, o bem comum, a coisa pública. No episódio dos Horácios, à moça morta não se reconhece nem o direito de chorar o amado. A República Romana, que os revolucionários franceses evocam, porque a seu tempo é a grande história de sucesso, é viril. É máscula. É de homens.
2. A VIRTUDE VARONIL Quarenta anos antes de David ter pintado seus quadros, Montesquieu (16891755) publicava sua grande obra, Do Espírito das Leis (1747). Sua meta era mostrar que as leis que vigoram nos diversos países do mundo, tanto as decretadas por um rei ou uma assembleia quanto as encarnadas em costumes, não são puro efeito da vontade ou arbítrio humano, mas têm uma lógica. Uma lógica, porém, que varia conforme várias causas: o clima (talvez a principal delas), a educação e os costumes em geral. Montesquieu vê três grandes lógicas organizando as leis. São os três regimes, ou “governos”, que ele analisa: monarquia, república e despotismo. Mesmo o despotismo, que à primeira vista parece o reinado do capricho, do arbítrio e da desmedida, tem uma lógica interna. O sultão manda a seu bel-prazer porque esse é o único meio de controlar homens e mulheres que, vivendo em clima muito quente, têm literalmente os nervos à flor da pele e por isso não
conhecem nenhuma autodisciplina, nenhuma contenção de suas paixões - a não ser a imposta pelo medo aos piores suplícios. Já a monarquia é, diz Montesquieu, o regime de nossos dias. Não é o regime perfeito. Baseia-se em preconceitos, errados teoricamente, mas de bom resultado prático. O principal preconceito chama-se honra: é o desejo que sentem os nobres de ter prioridade e precedência uns sobre os outros. Ora, a honra inviabiliza o despotismo. O nobre preza a honra mais que a vida. Por isso, não admitirá o tipo de arbitrariedade que um sultão pratica. Assim, um erro filosófico, a excessiva crença no próprio valor, termina produzindo um beneficio na prática - que é a defesa das liberdades ou da Constituição tradicional contra os excessos do rei. Aliás, quando se aproxima a Revolução Francesa, vai-se tornando comum denunciar o rei da França como uma espécie de sultão, e entra nessa imagem até o harém que Luís XV, falecido em 1774, tinha no Parque dos Cervos. E a república? Seria o melhor dos regimes, idealmente falando. Mas é impossível em nosso tempo, diz Montesquieu. Por uma razão simples: se para haver despotismo é preciso o medo, e para haver monarquia a honra, para a república é requisito a disposição afetiva chamada virtude. Por ela Montesquieu entende o que chamaríamos abnegação, a capacidade de ceder a um bem superior as vantagens e desejos pessoais, ou de negar a si próprio em favor de algo mais alto. Por que a abnegação se tornou impossível na modernidade? Essa é a grande pergunta a formular. Lendo Montesquieu com alguma pressa, chama a atenção o grande erro dele — logo dele, que com esse livro abriu as portas para o que hoje chamamos de sociologia e de ciência política — ao dizer que a república era inviável, poucas décadas antes de surgirem os dois grandes modelos republicanos da era moderna, um na América do Norte e outro na Europa. Mas prestemos atenção. A república que ele louva, mas ao modo de um elogio fúnebre, é a antiga. Podemos hoje até recitar as frases de Cícero e de outros grandes romanos (em nossa República Velha se estudava latim, como na Europa, lendo-os), mas nenhum de nós se disporia a repetir Brutus sem enorme horror. Brutus, atualizado para nosso tempo, é o infeliz menino soviético, cuja fama se tornou infâmia, ao acabar o regime que o utilizou como arma de propaganda. Nossa abnegação, nossa virtude, é limitada.
RES PUBLICA E PÁTRIA República é um conceito romano, como democracia é um termo grego. Vem de res publica, coisa pública. Surgiu em Roma substituindo a monarquia, mas mo-
narquia e república não se definem pelo mesmo critério. Monarquia se define por quem manda: significa o poder (arquia) de um (mono) só. Já a palavra república não indica quem manda, e sim para que manda. O poder aqui está a serviço do bem comum, da coisa coletiva ou pública. Ao contrário de outros regimes, e em especial da monarquia, na república não se busca a vantagem de um ou de poucos, mas a do coletivo. Jean-Jacques Rousseau (1712-78), contemporâneo de Montesquieu, dará a chave para entendermos isso ao distinguir, no Contrato Social, a vontade geral da vontade de todos. Uma decisão pode satisfazer a grande maioria e, ainda assim, ser ilegítima — quando a união de todos se dá por vantagens pessoais, e não pelo bem comum. O bem comum não coincide com o bem de muitos, nem mesmo com o bem de todos. E isso porque o essencial, na república, não é quantos são beneficiados, e sim o tipo de bem que se procura. Bem comum é um bem público, que não se confunde com o bem privado. Por exemplo, um candidato pode prometer vantagens a todos, à custa dos cofres públicos — enquanto outro, que reprime o acesso das pessoas ao erário, seria o verdadeiro defensor da res publica. Aqui entra a ideia de pátria. Não há república sem pátria. Esta, em primeiro lugar, é o espaço comum, coletivo, público — diferente do que é privado ou particular. Em segundo, é um intenso alvo afetivo. A pátria envolve amor, identidade, pertencimento. E, em terceiro, remete ao pai, isto é, ao progenitor do sexo masculino.
A MULHER DESDENHADA (2) Por que o lugar da mulher, na república, é secundário, é ruim? Devemos remontar ao dramaturgo grego Esquilo para entender. É verdade que ele escreve na Atenas antiga, que em nossa tipologia é democracia e não república, mas o papel que confere à mulher valerá até pelo menos o século 19. Uma das sete tragédias suas que chegaram a nós é As Eumênides, que encerra a trilogia conhecida como Oréstia (458 a.C.). A trilogia começa quando Agamêmnon, rei de Argos, voltando vitorioso de Troia, é assassinado pela mulher, Clitemnestra, ajudada pelo amante. A filha do rei morto, Electra, educa o irmão mais novo, Orestes, para vingar o pai. Ele mata a mãe. Mas esse crime desperta a ira das erínias ou fúrias, divindades que punem as ações cometidas contra o sangue — por exemplo, o crime do filho contra o pai ou a mãe. Finalmente, as erínias e Orestes concordam em se submeter a um julgamento, em Atenas, presidido pela deusa da cidade, Palas Atena (a Minerva dos romanos). É essa a origem do júri: centenas de atenienses se reúnem para ouvir as
alegações e decidir. As erínias seguem um modelo de sociedade que é arcaico. O deus Apolo lhes pergunta por que querem castigar Orestes, se não puniram Clitemnestra. Elas respondem que só perseguem o pior dos crimes, que é contra o sangue. Sua visão do crime parte — como toda visão do crime — de uma concepção da sociedade. Para elas, o fundamento é a família ou o clã. Quem fere um consanguíneo comete ato pior do que quem ataca um associado, que não descende dos mesmos avós. Apolo, advogado de Orestes, contesta essa tese. Por que castigar a quebra do elo de sangue, e não a quebra da fé, da palavra dada, do compromisso firmado, do contrato? Uma sociedade é a união de vários sangues. Quando me caso, o que faço fora da família e geralmente fora do sangue comum, vou além do clã, para estabelecer o que se chama sociedade. Mas, se a palavra dada não valer, ou se valer menos que a reiteração do sangue, que paz existirá entre os humanos? Nenhuma. A linguagem de Apolo é a nossa. Não espanta que Orestes seja absolvido. (Na verdade, os jurados atenienses chegam a um empate, e sua absolvição se deve ao desempate decidido pela deusa que preside a corte - por isso tal tipo de decisão é conhecido como “voto de Minerva”.) Mas um dos argumentos do deus é significativo. Vamos a ele. O pior crime contra o sangue é o matricídio, o assassínio da mãe, dizem as erínias.2 Mas, pergunta Apoio, qual é o papel da mãe e qual o do pai, na geração da prole? A mulher é só um vaso, no qual o varão deposita sua semente, ou sêmen. Dá para igualar o papel da terra, que é o elemento feminino, ao da semente? Prevalece a contribuição do homem. Hoje essa explicação não convence. Mas, se ela não justifica mais a desigualdade sexual, não foi porque a genética mostrou que toda geração inclui em partes iguais os cromossomos do pai e os da mãe. Foi porque a sociedade mudou, com as mulheres clamando por direitos, que se tornou possível não a descoberta genética, mas a eventual citação dela para se contestar a concepção esquiliana da mulher. Na peça, a sociedade se constrói, contra a família e para além dela, como um espaço de contratos e leis que são respeitados, como uma abertura para o outro, para a paz; mas isso teve como custo reduzir o papel da mulher, liquidar a memória ou a fantasia do matriarcado. E a república, sem ser necessariamente um patriarcado, é pátria e é varonil.
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Depois da decisão, as erínias ameaçam vingar-se de Acenas. Mas a deusa Atena as acalma, convidando-as a ficarem na cidade. Elas aceitam e se tornam divindades benfazejas (isto é, eumênides). É a domesticação do feminino.
UM COMPROMISSO MODERNO Fechando esta parte: a república, quando reaparece na Idade Moderna, será um meio-termo entre Roma e Montesquieu. Ela retomará, de Roma, a ideia matriz de que há um bem comum superior ao particular. Condenará a tendência de quem está no poder a se apropriar do bem público como se fosse seu patrimônio privado. Mas exigirá menos dos cidadãos. Aceitará que eles sejam movidos, sobretudo, por seus interesses particulares.
UM ANTIGO INIMIGO A MONARQUIA
DOIS SENTIDOS DE REPÚBLICA Aprendemos na escola que república se opõe a monarquia e que as qualidades estão com a primeira. No Brasil até houve um plebiscito, em 1993, para decidir entre elas. O problema é que a monarquia já foi a antagonista da república, mas não entenderemos nada dessa última se continuarmos a opô-las. Hoje há monarquias que respeitam mais a lei do que regimes que se dizem republicanos, mas que são ditaduras. Não discutiremos aqui o nome república, mas seu conceito, seu núcleo duro, seu conteúdo forte e poderoso. Quando se começa a falar mais em república, por volta do século 16, usa-se o termo em dois sentidos básicos. Um é mais genérico e hoje Causa estra- nheza, Por esse sentido, até o regime monárquico é república, ou há um elemento republicano na própria monarquia. Alguns juristas franceses dizem que o rei defende a república. Explica-se: quando se fala em república, dentro da monarquia, acentua-se o modo pelo qual ela promove a coisa pública. O rei seria o defensor da coisa pública, o promotor da justiça, o paladino do bem comum. Assim se chega ao paradoxo de 1804, quando Napoleão se torna imperador dos franceses. Um plebiscito decide que “o governo da República é confiado a um imperador”. Não diz: acabou a República. Continua a República, só que com um monarca. Por dois anos, as moedas exibem, de um lado, as armas e o nome da República, e do outro, a efígie e o título do imperador. Isso só se explica por esse sentido mais amplo de república, em que ela não é um regime específico, mas um modo de exercer o poder, favorável à coisa pública. Contudo, já em 1649 os ingleses haviam deposto e executado seu rei, Carlos I, proclamando um regime a que chamam Commonwealth of England. Common é comum, público, wealth ou weal é riqueza ou bem. A tradução do título seria “bem comum” ou “coisa pública”— isto é, República da Inglaterra.
Seus partidários, os Commonwealthmen ou republicanos, serão perseguidos, uma vez restaurada a realeza, em 1660. Esse é o segundo sentido de república, no qual ela é um regime oposto à monarquia, porque o poder é atribuído pelo povo em eleições. É certo que Cromwell, chefiando a república inglesa, acaba assumindo todos os poderes e mesmo emblemas da antiga realeza. Mas vemos crescer uma acepção mais precisa de república, até porque nos Países Baixos e em alguns cantões da Suíça, país então bem atrasado, há formas republicanas. A república, porém, aparece ainda como regime do atraso (a Suíça), do pequeno território (Países Baixos e Suíça), temporário e fracassado (Inglaterra). É exceção, mais que regra. Por isso Montesquieu pode dizer que funcionou no passado, entre os romanos, mas não mais hoje. Na década de 1780, porém, quando as 13 províncias da América do Norte agora independentes da Inglaterra formam os Estados Unidos, volta a haver repúblicas importantes — sim, num território afastado do europeu, atrasado, mas que inspira algum entusiasmo por toda a parte. E, em 1792 na prática, em 1793 na lei, a França se torna república. Uma grande guerra europeia começa, com as monarquias atacando, quase em bloco, o novo regime. A república está na ordem do dia, e sua antagonista é a monarquia. O que é essa monarquia? A MONARQUIA MEDIEVAL E A MODERNA A monarquia moderna — não a contemporânea, isto é, a de hoje - origina-se nos poderes instituídos em começos da Idade Média, quando os bárbaros ocuparam o que restava do Império Romano. Esfacelou-se o poder central latino, e em seu lugar se formaram, em processo que demorou séculos, Estados de menor dimensão. Ora, cada chefe guerreiro se cercava de um grupo de companheiros, a quem atribuía funções que hoje diríamos pertencer à vida privada. Por exemplo, uns garantiam a segurança do chefe, um cuidava da despensa, outro do dinheiro etc. Quando o chefe se tornava um potentado ou mesmo rei, essas funções “privadas” (na linguagem de hoje) assumiam uma dimensão “pública”: o tesoureiro da bolsa privada do rei cuidava do dinheiro do reino. Os dois adjetivos vão entre aspas porque na verdade as coisas mal se distinguiam. Diferenciá-las foi demorado. Assim, só na segunda metade do século 18 o rei da Inglaterra transfere as propriedades da Coroa - seus bens privados - para a nação, recebendo em troca uma dotação no orçamento para ele e sua família. E na década de 1780 a jovem rainha da França, Maria Antonieta, ainda evoca, nostálgica, os tempos em que seu avô, duque de Lorena, precisando de dinheiro, ia à igreja de sua capital e pedia dinheiro aos cidadãos. São dois casos que
mostram que mal se separavam o plano público e o privado. Na Idade Média há uma fusão dos vários poderes. Não há, porém, centralização deles. Isso quer dizer (sempre usando a linguagem de hoje) que o rei reúne o poder executivo, o legislativo e o judiciário — mas o duque faz a mesma coisa, e o simples cavaleiro também. Dois processos paralelos se produzem, ao longo de séculos. Pelo primeiro, diferentes funções lentamente se emancipam das mãos do rei (ou duque, ou cavaleiro). Um legislativo, um judiciário e finalmente um executivo se separam do monarca. Mas também os papéis de legislar, de julgar e de agir deixam de se repartir entre rei, duque e senhor local, sendo geralmente centralizados no plano mais alto, o do Estado que - bem mais tarde - às vezes se chamará nacional. A Inglaterra talvez seja o melhor caso a estudar. E também um dos mais precoces. Em 1265, reune-se um Parlamento, o primeiro da história. Tem nobres (lordes) e plebeus (comuns). Fixa-se a praxe de que o rei não cobrará impostos sem aval do Parlamento. Sempre que precisa de dinheiro, mas só nessa ocasião, ele convoca um Parlamento, o qual, embora não seja constitucionalmente o poder legislativo, aproveita para conseguir do rei as medidas legais que deseja. O rei também delega ajuízes, que ele nomeia, a tarefa de julgar. Imagens como a de S. Luís, rei da França, que em meados do século 13 pessoalmente ministrava justiça sob um carvalho, em Vincennes, ficam para o passado. E verdade que até a revolução de 1688 os juízes ingleses eram nomeados durante bene placito, ou seja, enquanto agradasse ao rei, que os demitia quando quisesse e sem explicações. Desde então, só podem ser demitidos se comprovadamente agirem mal. Não é preciso detalhar todo o processo, que Norbert Elias estudou em seu O Processo Civilizador.3 O fato é que as monarquias, de boa ou má vontade, abriram mão dos três poderes (sempre lembrando que esses são termos de nossa época, e não do tempo em que isso ocorreu). Quando os norte-americanos e franceses erguem a bandeira republicana, o rei da Inglaterra já começou a transferir o poder executivo para um primeiro-ministro, que é o líder do partido vitorioso nas eleições à Câmara dos Comuns. Mas, no resto do mundo, a monarquia continua enfeixando em suas mãos todos – ou quase todos – os poderes. E mesmo na Inglaterra o monarca manipula as eleições. O século 19 será atravessado pelo conflito entre república e monarquia. Mas essa última é forçada a ceder, e muito. Amplia-se para vários países a prática, inicialmente inglesa, da monarquia constitucional. O rei continua sendo a principal figura do Estado e individualmente a mais poderosa. Mas admite que haja uma câmara de deputados eleitos, ainda que geralmente equilibrada por 3
Norbert Elias, O Processo Civilizador: uma História dos Costumes (Rio de Janeiro: Zahar, 1990 [v. 1] e 1992 [v. 2], trad. R. Jungmann, apresentação Renato Janine Ribeiro).
uma câmara de nobres nomeados (um senado), reconhece autonomia ao judiciário e em alguns casos — porém nem sempre — aceita passar o poder executivo para o partido vencedor das eleições populares. Monarcas Brasileiros No Brasil, Pedro I exerceu diretamente o poder executivo e ainda criou um quarto poder, o moderador, pelo qual o monarca intervinha no legislativo e no judiciário. Depois do experimento republicano que foi a regência (183140),Pedro II, quando adulto,passou a nomear como primeiro-ministro o vitorioso nas eleições. O problema é que estas eram fraudadas... Mas nossa situação ainda era melhor que a da Prússia, na qual o controle do rei era bem mais forte.
MORAL E IDENTIDADE NACIONAL A grande mudança começa, como é praxe na política moderna, pela Inglaterra. Em 1837 sobe ao trono a rainha Vitória. Seu longo reinado, que terminou em 1901, parece hoje um período sem nenhuma contestação ao primado ideológico do espírito vitoriano. Mas em 1837 a realeza é impopular no país. Os últimos monarcas foram loucos ou dissolutos. A causa republicana está na ordem do dia. Apesar de formalmente o primeiro-ministro ser o líder da maioria parlamentar, o rei interfere na política, negocia, frauda. A genialidade de Vitória e seu marido, o príncipe Alberto, esteve em mudar radicalmente o papel da monarquia. Esta saiu da política e ocupou a moral. Não foi fácil. A rainha teve seus preferidos entre os primeiros-ministros, adorando lorde Melbourne, liberal, que a orientou nos primeiros anos de reinado, e mais tarde aceitando a adoração de Disraeli, conservador, que a lisonjeou coroando-a imperatriz da índia. Mas soube refrear a vontade de interferir no mundo político. Em compensação, a realeza passou a oferecer ao povo inglês um modelo moral. Essa moral significava uma vida de família irreprochável, somada à conhecida discrição em matéria sexual que ficou associada ao adjetivo vitoriano. “Não achamos graça nenhuma” (We are not amused), dizia a rainha, quando se contava uma piada mais atrevida perto dela. A família real passou a ser a família por excelência, o modelo das relações estáveis, o palco em que se produzia o caráter firme e honesto do cavalheiro inglês. Evidentemente essas virtudes eram as de uma classe, a da alta ou baixa nobreza (respectivamente, aristocracy e gentry). As classes pobres ficaram associadas a uma vida dissoluta, em sexo e bebida, que foi reprimida e, pior que isso, desprezada. Isso se lê nas entrelinhas da série de livros de Arthur Conan Doyle com o detetive Sherlock Holmes. Foi um toque de gênio tornar as qualidades dos pobres e miseráveis não temíveis, mas desprezíveis. Quem é
temido conserva dignidade. Mas, se a vida dos miseráveis é considerada imoral, eles ameaçam menos: podem ser controlados, por uma série de ações asperamente caridosas. O projeto vitoriano foi um sucesso. A realeza ficou acima dos partidos. É claro que isso teve seus limites. Jorge V, em 1924, não gostou de ter que conviver com um primeiro-ministro trabalhista, o primeiro da história, Ramsay MacDonald. Mas, entre liberais e conservadores, e hoje entre conservadores e trabalhistas, a realeza é neutra. Renunciando à política, ela assegurou o papel de representante do Estado, da unidade nacional, de ponto comum de identidade. E esse o sentido da monarquia constitucional, hoje, lá onde ela funciona no Reino Unido, na Escandinávia, na Holanda, Bélgica, Espanha. O monarca, sendo neutro politicamente, não tendo parte no governo, não votando nem sequer nas eleições, representa ou mesmo encarna a figura do Estado. Isso não é pouca coisa. Talvez seja nas monarquias constitucionais, depois da abdicação de quase todos os papéis históricos da realeza, que melhor funcione a separação entre Estado, por um lado, e governo ou partidos, por outro. E isso justamente porque o rei não está filiado a partido algum, ao contrário das repúblicas, mesmo no parlamentarismo. Nelas, a presidência quase sempre cabe a um partido — o que torna difícil distinguir o Estado, que é de todos, e o governo, que cabe a uma parte, ainda que hegemônica, da sociedade. Uma curiosidade: os filatelistas ou simples interessados talvez tenham notado que um único país no mundo não coloca seu nome em seus selos - a GrãBretanha.Talvez porque foi o primeiro a emitir selos postais, em 1840. Mas em todos os selos britânicos aparece a efígie do monarca reinante. O que identifica a sua origem é a imagem do rei. Ou seja, a identidade, o nome nacional, está na figura estilizada do monarca. E é porque todos se unem em torno da realeza que podem divergir à vontade na política: um ponto essencial, a unidade e a identidade, está preservado. Outro Modelo Para a Realeza Britânica Será uma monarquia assim concebida o contrário da república? É claro que não. Ela pode até ser mais republicana, já que preserva dos conflitos partidários um núcleo comum a todos, que é exatamente a ideia de res publica. Isso não é fácil, e as monarquias são criticadas por estabelecerem uma distinção de nascença entre a família real e os súditos, como se ela fosse melhor do que estes. No Reino Unido, a casa real é riquíssima e ainda recebe muito dinheiro do Estado. E, como sabemos, os filhos de Elizabeth II não foram exemplo de controle sexual — aliás, seria isso desejável em nossos dias, quando a antiga condenação ao sexo foi substituída pela convicção difusa de que ele é bom? Hoje a realeza britânica está em busca de seu papel. O modelo vitoriano, da autocontenção sexual, não faz mais sentido nem para os atores, os príncipes,
nem para o público, o povo. Mas a ideia mais genérica do monarca como fiador de um espaço que não se esgota nos conflitos entre partes pode continuar produtiva.
"MONARQUIA" E "REPÚBLICA" O importante neste capítulo era libertar a discussão daquilo que é enganoso nos nomes. Nem república nem monarquia podem ser confundidas com alguma forma histórica que assumiu seu nome. Por república, entendemos o respeito à coisa pública. Paradoxalmente, esse respeito pode estar assegurado, desde a segunda metade do século 20, por algumas monarquias constitucionais. Mas isso também significa que as monarquias que restaram somente sobreviveram deixando de enfrentar a república, rendendo-se a seus valores. Não é que elas tenham vencido a parada: abriram-se aos tempos novos. O grande antagonista da república está hoje em outro lugar — é a usurpação da coisa pública por interesses particulares. Disso vamos tratar agora.
4. O INIMIGO DA REPÚBLICA (1): O PATRIMONIALISMO O conflito entre monarquia e república opunha a transmissão do poder pela via hereditária e a sua atribuição por eleições. Mas, quando o rei se torna, ao menos na Europa, uma figura cerimonial, essa diferença perde sentido — até porque, nas monarquias constitucionais, o poder efetivo é conferido ao primeiro-ministro pelo voto do povo. Qual o cerne, então, da república? A definição de monarquia destaca quem exerce o poder, e a de república para que serve o poder. Na monarquia manda um, e na república o poder é usado para o bem comum. Assim, embora quando um único mande ele tenda a usar o poder em benefício próprio, a verdadeira ameaça à república está nesse uso do poder, e não na forma institucional: está nos fins, e não nos meios. Resumindo: o inimigo da república é o uso privado da coisa pública. É sua apropriação, como se fosse propriedade pessoal.
O PATRIMONIALISMO Emprega-se hoje muito o termo patrimonialismo, no Brasil, mas há um equívoco em seu uso corrente.Tornou-se sinônimo — crítico e mesmo pejorativo — para a apropriação privada da coisa pública, por políticos ou por quem tenha poder.
Contudo, na sua elaboração por Max Weber (em Economia e Sociedade*) e na sua notável retomada por Raymundo Faoro (em Os Donos do Poder, 1a ed., 1958) como a grande chave explicativa para o Brasil, patrimonialismo é um conceito científico, definindo um tipo de sociedade. Tratemos rapidamente desse ponto, remetendo o interessado a Os Donos do Poder.4 Portugal conhece um desenvolvimento precoce, comparado ao resto da Europa. A revolução de 1383 leva ao poder o rei João I, com forte apoio do povo e da burguesia. Mas esta é uma burguesia mercantil, e a precocidade portuguesa no capitalismo, paradoxalmente, fará que o país não consiga dar o salto, mais tarde, para a indústria. Fica-se no comércio, com tudo o que esse terá de predatório, especialmente na expansão marítima, que leva a estabelecer feitorias e colônias na América, África e Ásia. Mais até: esse é um capitalismo “politicamente orientado” (Faoro), não só dominado pelo Estado, mas com el-rei considerando o próprio Estado como sua empresa. Este é o sentido preciso de patrimonialismo: o Estado é bem pessoal, patrimônio (termo que designa a propriedade que vem do pai e que passa por herança). Vimos que a monarquia medieval nascia da indistinção entre a bolsa do rei e o que depois seria o tesouro público. A diferença é que, no patrimonialismo e em Portugal, essa fusão entre o privado do rei e o público é pensada em termos capitalistas, como uma empresa de comércio. Há na governança portuguesa uma racionalidade superior à de muitos reis medievais. Em 1400, Portugal é um dos países mais avançados da Europa. Contudo, esse avanço português, que no final da Idade Média serviu ao rei contra a nobreza, acabou esterilizando a economia e a sociedade — na incapacidade de definir o indivíduo como detentor de liberdade, o capital como produtor de riquezas na manufatura e o Estado como uma esfera pública a distinguir-se do rei e de seus próximos. Isso resultou numa hipertrofia do Estado e do estamento burocrático ligado a ele, em prejuízo de uma organização mais autônoma da sociedade, como a que houve na Inglaterra e em suas colônias norte-americanas. O patrimonialismo é, pois, o Estado que o príncipe dirige como sua empresa pessoal, no quadro do capitalismo mercantil. Por extensão, ele suscita corrupção à sua volta e neutraliza a iniciativa dos produtores. Hoje, porém, no Brasil é comum chamar de patrimonialismo o modo pelo qual o “coronel” — patente que foi da Guarda Nacional, no Império, e sob a República Velha adquiriu o sentido honorífico de prestigiar os fazendeiros — assumiu em sua 4
Raymundo Faoro, Os Donos do Poder (São Paulo; Globo/Publifolha, 2000,2 v.). * Max Weber, Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva (Brasília: Editora da UnB, 1991).
região o poder público, além do privado. Numa extensão mais atual, diz-se patrimonialista o modo pelo qual governantes de qualquer nível, do presidente ao simples funcionário, se valem do bem comum para sua vantagem privada. Esses usos da palavra, porém, só cabem por analogia — ou como consequência de um processo que, no seu centro, não era a genérica e vaga utilização por qualquer um da coisa pública, mas sua apropriação pelo príncipe, pelo governante, pelo soberano.
CONSEQUÊNCIAS Dois comentários. O primeiro é que a explicação pelo patrimonialismo é uma das que pensam o atraso brasileiro a partir da história portuguesa, da qual provimos. Tal atraso se mede pela dificuldade de nutrir um projeto capitalista industrial, que, este sim, emanciparia a sociedade da tutela estatal. Isso se nota já pelo uso, por Weber e Faoro, da palavra estamento, em vez de classe, para o Estado patrimonial. Classe remete a uma diferenciação promovida pelo capital entre as categorias da sociedade. Já estamentos são ordens ou categorias sociais mais fechadas, definidas pelo prestígio social e pela honra mais que pelo lucro ou pelo capital. O segundo é que a exacerbação dos poderes estatais gera uma corrupção que não decorre da imoralidade pessoal, mas é intrínseca ao sistema. “Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, comeo a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e 0 que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.” Quem diz isso é o padre AntonioVieira, expondo como se dão as coisas no Brasil em meados do século 17.5
5. O INIMIGO DA REPÚBLICA (2) A CORRUPÇÃO Qual a sua ideia de corrupção? É quase certo que você fale em desvio, por um administrador desonesto, do dinheiro público. É a ideia que se firmou hoje em dia. Mas, antes disso, a corrupção era termo mais abrangente, designando a degradação dos costumes em geral. 5
Cit. por Raymundo Faoro, op. cit. , v. i, p. 212 (cap. vi, 2). Faoro faz frequente uso das denúncias de Vieira contra a corrupção.
Como a corrupção veio a se confinar no furto do bem comum? Talvez seja porque, numa sociedade capitalista, o bem e o mal, a legalidade e o crime acabam referidos à propriedade. Por analogia com a propriedade privada, o bem comum é entendido como propriedade coletiva — e até como bem condominial, aquele do qual cada um tem uma parcela, uma cota, uma ação. Mas o bem comum é diferente, por natureza, do bem privado. No estatuto de uma sociedade comercial, é obrigatório incluir o destino a dar aos bens, caso ela se dissolva. Se constituo uma firma com um sócio, caso a fechemos repartiremos os bens que pertencem a ela. Mas isso é impossível quando se trata da coisa pública. Há certos “bens” que só ela produz e que não podem ser divididos: virtudes, direitos e uma socialização que não só respeita o outro como enriquece, humanamente, a nós mesmos. Pensar o mau político como corrupto e, portanto, como ladrão simplifica demais as coisas. E sinal de que não se entende o que é a vida em sociedade. O corrupto não furta apenas: ao desviar dinheiro, ele mata gente. Mais que isso, ele elimina a confiança de um no outro, que talvez seja o maior bem público. A indignação hoje tão difundida com a corrupção, no Brasil, tem esse vício enorme: reduzindo tudo a roubo (do “nosso dinheiro”), a mídia ignora — e faz ignorar — o que é a confiança, o que é o elo social, o que é a vida republicana.
UM TEMA REPUBLICANO Pode haver corrupção em outros regimes, mas sem esse nome ou sem os perigos que traz para a república. Lembremos a tipologia de Montesquieu: há três regimes, monarquia, república e despotismo. O despotismo é um fantasma; reside no Oriente; é a grande ameaça à política, porque nele tudo é comandado pelo desejo. Os súditos do déspota desejam muito, porque, com os nervos excitados, são sensíveis a toda impressão externa. Daí que sejam lúbricos, luxuriosos, imediatistas. O império da lei é impossível sob o calor. Não havendo autodisciplina, só pela irrestrita repressão externa se dá o controle social. Para conter o desejo sexual das mulheres, é preciso trancá-las num harém e castrar os homens que as vigiam. No calor, governar é reprimir. O curioso é que nesse regime — mais uma caricatura que um retrato fiel dos sultanatos orientais — não há o tema da corrupção. Como se corromperia um regime cuja essência já é a degradação (a corrupção) do ser humano? Mesmo que os ministros saqueiem os cofres, não existe, no despotismo, uma regra da honestidade, uma medida do equilíbrio, um padrão da decência. Sem regra, medida ou grau, não há como falar em desregramento, em desmedida, em
degradação. A corrupção só cabe quando o regime social e político valoriza o homem. Não é o caso do despotismo. Será o da monarquia? Nela, o princípio é a honra, e portanto uma valorização está presente. O nobre preza mais a honra que a própria vida. E isso o que limita o arbítrio do soberano. Mas há dois pontos a assinalar. Primeiro, poucos têm honra — só os grandes. Segundo, a monarquia é uma hábil construção para que de um princípio filosoficamente falso — a desigualdade natural entre os homens - decorram resultados socialmente positivos. A engenharia política aqui faz que o mal produza o bem. O preconceito é valorizado na monarquia. Dele resulta uma sociedade que, se respeita a lei, não é pela repressão externa, nem pela autodisciplina ou pela convicção de que é justo acatá-la. Em suma, na monarquia há um uso sábio daquilo que, em linguagem republicana, seria corrupção: ela dá bons frutos. Há privilégios, há desigualdade, há apropriação privada do que seria o bem público. Mas isso é da essência do regime, e é usado por ele para evitar males piores, que estariam no arbítrio do rei, tornado déspota. E por isso não é correto falar, aqui, em corrupção. Corrupção só pode haver, como nome, num regime que a vê como negativa, como má - num regime cuja existência é diretamente ameaçada por ela. E a república. Seus padrões são altos. Nela, o bem pessoal é requisito para produzir o bem social. Individualmente, tenho de agir bem. Só quem atinge esse nível de conduta é cidadão, na república. Ou, inversamente, apenas dos cidadãos se pede esse patamar de comportamento. Não se exige isso das mulheres, escravos, estrangeiros e de todos os que terão uma cidadania reduzida ou negada. Em outras palavras, a república é o regime da ética na política.
A CORRUPÇÃO ANTIGA Há dois tipos de corrupção, na república, conforme ela seja antiga ou moderna. Na república romana, falava-se em corrupção dos costumes. O cidadão romano é o pater famílias. O nome pai de família não quer dizer que ele tenha filhos: seu significado é político e não biológico. Ele é o chefe da família, o varão que nela manda. Se um menino perder o pai e o avô, pode ser pater ainda bebê. Será “pai” de sua mãe, avó, tios e irmãos. O pater manda na casa. Costuma-se dizer que a lei romana lhe conferia direito a punir e até matar as mulheres a ele subordinadas, mesmo a mãe, a esposa, as irmãs. Não é bem isso. E pior. Nenhuma lei lhe dá esse direito, simplesmente porque o membro da cidade é ele, e não as pessoas suas subordinadas. Elas não são cidadãs, mal têm identidade pública. Punir quem pertence a sua família é direito privado do pater, e não público.
O eixo do controle que o pater exerce sobre os seus passa pela moral. Um homem que não controle as mulheres que dele dependem é infame e será punido pelos magistrados que cuidam da moral. Essa moral não é apenas sexual (a vitoriana será exagerada e centralmente sexual), mas em parte o é. Discrição, autocontrole, contenção são alguns de seus termos principais. É talvez em Roma que se elabora, ou se aprimora, um traço fundamental das sociedades mediterrânicas, que ainda perdura em alguma medida: a ideia de que a mulher não tem honra própria, mas porta a honra — ou desonra - do homem seu senhor. Violar ou desrespeitar uma mulher se torna assim a melhor via para infamar seu marido, irmão ou pai. Quem perde a honra não é ela, são eles.6 Daí que, ao se vingarem, eles às vezes matam também a mulher que — mesmo se foi violentada — serviu de veículo para eles serem desonrados. Portanto, na república antiga, o centro da corrupção são os costumes. É preciso as pessoas serem decentes, para que haja república. Nisso se inclui a contenção sexual, mas sobretudo a capacidade de fazer passar o bem comum à frente do pessoal. Evoquemos Múcio Cévola, que - estando Roma cercada - vai ao acampamento dos inimigos matar o general deles. Erra e é preso. Vão executá-lo. Mas ele queima o próprio braço numa chama, sem um gemido sequer de dor, dizendo que assim o castiga pelo fracasso de seu intento. Horrorizados, apavorados diante de gente tão resoluta, os inimigos debandam. Não há prova dessa história, que talvez não passe de lenda, mas o importante é que ela educou gerações de romanos na convicção de que o fim público passa à frente de qualquer elemento particular. Como escravos, mulheres e estrangeiros não sentem assim, é óbvio que não terão a dignidade de cidadão. Contrastemos a coragem de Múcio Cévola com a dos exércitos orientais, descritos por Montesquieu nas Cartas Persas (lembrando sempre que ele exagera em suas referências ao mundo islâmico).7 Os soldados do sultão se batem até a morte, mas — diz ele, na carta 89 — sua valentia não é a de quem preza a si próprio, e sim a de quem se despreza. E medo (ao sultão) tornado coragem (diante do inimigo). Não é o caso do romano. A cidade é o que o realiza. E o que dá sentido à sua vida. Daí, finalmente, que na república antiga a educação seja fundamental. Ninguém age — naturalmente — como Múcio. Pela natureza estamos mais perto da conduta feminina. As mulheres são os seres mais naturais. Querem satisfazer seus desejos. Desejam enfeitar-se, ter prazer. Precisam ser contidas — a fim de contermos nossa tendência natural a ser como elas. A educação do cidadão será permanente, pois em última análise pode fracassar. Não é uma educação como a moderna, que desde o Emílio de Rousseau (Emile, ou De 6 7
Sobre esse tema, ver R. Janine Ribeiro, A Etiqueta no Antigo Regime (São Paulo: Moderna, 1999). Montesquieu, Cartas Persas (São Paulo: Paulicéia, 1991, trad. Renato Janine Ribeiro).
l’éducation, 1762) acredita em transformar o ser humano em algo melhor e estável. A educação do cidadão antigo é interminável, porque não há como estabilizar seu produto. O homem pode — sempre — decair e corromper-se. A LIBERDADE PESSOAL A corrupção moderna é outra. É verdade que, quando a França institui sua Primeira República, durante a Revolução, muitos sonham com Roma, mais talvez que com Atenas. Mas isso não dura. E já os Estados Unidos, ou antes deles a Inglaterra monárquica, mas constitucional, haviam-se aberto para uma república de exigências aliviadas — como veremos com Mandeville (no capítulo 6). Benjamin Constant (1767-1830), político liberal franco-suíço de tanto impacto no século 19 que um re-publicano brasileiro foi batizado com seu nome, criticou aqueles, como Rousseau, que davam tal importância à Antiguidade que não conseguiam ver as reais características dos novos tempos. Esse foi, disse, o erro dos revolucionários que quiseram restaurar a sociedade antiga, na qual a coletividade era tudo e o indivíduo, nada. Para os antigos — explica Constant — a liberdade importante era a da pólis grega, da civitas romana. O cidadão aceitava sacrificar-lhe tudo. Mas nos tempos modernos a liberdade que conta é a do indivíduo, que não admite ser oprimido pelo coletivo.8 A coletividade para nós é um peso, um fardo. O convívio político e mesmo social se tornou custoso. Ampliou-se enormemente a vida privada, como área de produção econômica, como tempo de lazer e como espaço em que escolho os valores e fins mais preciosos de minha vida. Disso resultam duas coisas. Primeiro, aumenta incrivelmente nossa liberdade — insistindo: como indivíduos, como pessoas. Escolho minha profissão, minha religião, meu amor. Cada vez preciso dar menos satisfação disso. Mas, se isso passa a constituir minha liberdade, é porque se esvazia o alcance social das escolhas. Se antes do século 17 tantas sociedades puniam severamente quem adotava uma religião distinta da dominante, era porque passava pela religião o elo social. Quando um budista se abstém de carne, um muçulmano de vinho, um judeu de porco, ele dá à sua religião um alcance bem maior do que no mundo leigo que a modernidade cristã construiu. O que significa o casamento se tornar escolha pessoal? A justificação romântica é que assim escolho um cônjuge com o coração. Mas quer isso dizer que eu seja mais feliz? Não é óbvio. O casamento como contrato entre famílias tinha menor sentido sexual e sentimental, mas seu alcance social fazia dele um espaço de maior satisfação pública. Modernamente, estamos condenados a 8
Benjamin Constant, A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos (1819). Em: Filosofia Política, n. 2, 1985.
buscar a realização, a felicidade, no plano privado, quase íntimo. Perdemos a dimensão pública e sofisticamos a particular, a pessoal. Não é uma crítica; é uma constatação. Houve ganhos, mas também custos, uns e outros enormes. A segunda consequência da modernidade é, assim, a redução do espaço público. Tornou-se exíguo. Os costumes passaram, de sociais ou grupais, a individuais. Surgiu a vida psíquica como campo cada vez maior de indagação, de perplexidade, de escolha. Ora, isso torna praticamente absurdo pensar em costumes como fiadores da república. Quando o valor básico é o da realização pessoal, como queimar a mão ou sacrificar a sexualidade a um ideal social? Ao contrário: se alguém nos propuser um ideal que passe por tais custos pessoais, provaremos que só pode ser um falso ideal, gerador de males sem fim e até de doenças. E provaremos isso tão bem quanto um antigo provaria o contrário.
A CORRUPÇÃO DESPOLITIZADA Mas a ideia de corrupção dos costumes não desapareceu de um momento para o outro: provavelmente passou por duas fases. Para os antigos, ela ameaçava a república. Quando a França retoma uma república mais próxima da romana, em 1792-3, a corrupção e seu antônimo, a virtude, voltam à cena. Mas isso dura pouco. Daí a dois anos, Robespierre, o Incorruptível, é deposto e guilhotinado. Na vitória dos moderados — ou corruptos, como outros os veem —, é interessante que as roupas femininas se tornem vaporosas e que em fins da década de 1790 mulheres da sociedade até exibam em público os seios nus. Poucas sociedades se dispõem a pagar, pela república, o preço da contenção dos costumes; talvez o último movimento a fazê-lo tenha sido o Khmer Rouge, que tomou o poder no Camboja em 1975 e chacinou um terço da população, querendo purificá-la. Alguns temas republicanos, reativados em nossos dias, correm o risco de resultar em crime contra a humanidade. Essa foi a primeira fase, tentando-se reciclar Roma em Paris. Mas não sumiu o tema da corrupção dos costumes. Não deu certo articulá-lo com a república, mas ele ressurgiu, fortíssimo, com os vitorianos. E curioso: Constant mostrou que não pagaríamos, pela república moderna, o sacrifício de nossa vida íntima. Mas se pagou esse preço, pela monarquia moral da rainha Vitória. A contenção dos costumes veio não com a república, com o regime da autonomia ou do autogoverno, mas com o da heteronomia, do moralismo, das reverências à realeza. Nessa segunda fase, a corrupção tornou-se tema exclusivamente moral. Sustentou, e claro, uma política — mas sustentou-a de maneira não clara e explícita, como na república romana, e sim implícita e indireta. Até porque a
contenção dos costumes era apresentada não como a condição para uma política (se quiserem ser livres politicamente, abram mão da liberdade íntima), e sim como a única conduta decente. No século 19, quando alguns religiosos cristãos, chocados com o deboche sexual dos polinésios, procuraram ensinar-lhes um modo tido como decente de ter relações sexuais (o papai-mamãe, como chamamos, ou a missionary position, como ficou conhecido em inglês), o que faziam era transmitir essa moral única para toda a humanidade. A política — no caso, a destruição de uma cultura em proveito da ocidental — vinha a reboque, discreta, escondida. Enfim: a contenção e a corrupção dos costumes deixaram de ser tema explicitamente político e essencialmente republicano. Ocultaram a dimensão política e favoreceram a opressão. Nossos políticos da República Velha podiam ler Cícero e reprimir as mulheres de sua família: com isso nada efetuavam de republicano. Temas romanos podiam ser repetidos, mas tinham-se tornado vitorianos.
NOSSO PROBLEMA A corrupção continua, porém, sendo um tema republicano - só que com outro sentido, outro conteúdo. Ela ainda é o grande perigo para a república. Como esta valoriza o bem comum, todo desvio dele para o particular a ameaça. Mas nossa ideia de corrupção é mais fraca que a antiga. Chamamos de corrupção o furto do patrimônio público. Ora, isso faz esquecer que o bem público tem natureza distinta do bem particular ou da propriedade privada. Muitos se referem ao Estado como se fosse equivalente a um indivíduo ou empresa. Com isso, ficam na perspectiva patrimonialista, cujos problemas vimos no capítulo anterior. Uma saída para a pouca importância, hoje, do tema da corrupção seria apostar na educação. Diríamos: a corrupção ameaça a república, mas não se resume no furto do dinheiro público. O corrupto impede que esse dinheiro vá para a saúde, a educação, o transporte, e assim produz morte, ignorância, crimes em cascata. Mais que tudo: perturba o elo social básico que é a confiança no outro. Quem anda por nossas ruas, com medo até de crianças pequenas, e depois se espanta com a descontração das pessoas em outros países pode sentir o preço que pagamos por não vivermos numa república — por termos um regime que é republicano só de nome. A saída educativa é indispensável. Mas ela exige dar à educação dos costumes um sentido distinto do que teve no antigo pensamento republicano. Não se trata mais de conter a sexualidade, de promover a castidade e a discrição.
Os costumes viáveis, a educação desejável em nosso tempo têm a ver com a realização pessoal. Será preciso combinar essa promoção de si com o respeito devido ao outro. E será necessário, mais que tudo, recuperar — ou reinventar — a ideia de que haja algo, no espaço comum a todos, que seja mais do que um simples arremedo social da propriedade privada.
6. A REPÚBLICA FACILITADA MANDEVILLE Quanto mais o regime se aproximar da república antiga, mais difícil será para o homem moderno. O século 18 acertou ao entender a república como regime do passado ou da exceção — mas era que com isso ele entendia uma república diferente da nossa e modelada na romana. Esta, sim, é impossível em nossos tempos. Mas Bernard Mandeville (1670P-1733), médico holandês radicado na Inglaterra, mata a charada da política e, mais que isso, da sociedade modernas. Um século mais tarde, Benjamin Constant falará da diferença entre a liberdade antiga e a moderna. Mas Mandeville já tinha apontado o rumo que a sociedade capitalista tomaria. Antes de Constant ter formulado seu diagnóstico, Mandeville já tinha receitado o remédio. Entre 1705 e 1724, Mandeville escreve e reescreve um poema, a Fábula das Abelhas,9 ao qual agrega uma série de notas. Na fábula, uma sociedade de patifes se regenera, mas isso causa inúmeros problemas. Ele explica por quê: a desonestidade é motor do avanço econômico. Um ladrão que roube um obeso monge, por exemplo, põe em circulação dinheiro entesourado, paralisado, estéril. A ganância é pecado. Mas, se cada um de nós for ganancioso, tentará ganhar mais — e o melhor meio para isso é vender mais barato que o outro. O que no plano moral é vício, e no religioso é pecado — a avidez —, pode se converter em vantagem para a sociedade. Por isso, o subtítulo da Fábula é “Vícios privados, benefícios públicos”. A livre concorrência, o mercado capitalista, a expansão econômica que o capital vai promover, sem precedentes na história, tudo isso tem uma base — diz Mandeville — contrária à moral vigente. Mas essa não é uma falha, nem uma razão para condenar a sociedade em que vivemos. Ao contrário, sendo a moral tão difícil, o autor da Fábula mostra que podemos ter uma vida social positiva, vantajosa, sem pagar preço tão alto. São dois os grandes exemplos de Mandeville. O primeiro, na nota G à Fábula, é o da livre concorrência. O segundo, na nota H, é o da prostituição em Amsterdã. Esse porto é governado pelos calvinistas, que são severos em matéria 9
Bernard Mandeville, The Fable of the Bees (Harmondsworth: Penguin, 1970). Não conheço tradução em português desse título.
moral — mas toleram a prostituição, para evitar que marinheiros, privados de sexo há meses, ataquem as virgens e damas de boa família. O exemplo é engraçado, irônico. Mandeville poderia ser um moralista, desmascarando a falsa moralidade dos magistrados calvinistas, em nome de uma moral mais coerente e exigente. Mas a novidade de Mandeville é que ele não faz isso. Concorda com a ação dos calvinistas, que a um bem pequeno e aparente preferem um bem maior. Só que com isso ele reduz o alcance da própria moral, em nome de algo mais abrangente. A moral funciona para o indivíduo, mas não na escala social. Com isso ele abre lugar para a “mão invisível” do mercado, de que mais tarde falará Adam Smith: a ideia de que — para além de nossas intenções, consciência e deliberação — o jogo das forças econômicas se autorregula. Smith, porém, fará concessões à religião que não aparecem no iconoclasta Mandeville. O principal alvo de Mandeville é a moralidade cristã, desenvolvida ao longo da Idade Média. No seu século 18, ideais republicanos circulam, mas não são o que mais importa para ele. Contudo, o importante aqui é que Mandeville torne inútil, ou impossível, reativar os valores gregos ou romanos — que naquela época pareciam ser a condição para ter um Estado republicano ou democrático. Pode então haver uma sociedade — cuja forma política Mandeville não se preocupa em delinear — sem o custo moral dos romanos. Em vez de Múcio Cévola ou de Brutus, o mero interesse econômico deve sustentar as relações sociais. Não é preciso tanta força de vontade, tanta abnegação, tanta renúncia aos próprios interesses para existir uma boa sociedade. Ao contrário: a boa sociedade depende de intensificarmos nosso egoísmo e mesmo nossos vícios.
O LUGAR DA ÉTICA Assim, um problema se desenha. Terminamos o capítulo anterior falando na corrupção, como o grande inimigo da república. Do que dissemos, decorre que a república é o regime mais ético que há. Quando ela renasce, em fins do século 18, seja na forma norte-americana, estável desde então, seja na francesa, bem mais turbulenta, vem referida à tradição antiga. Esta diz que na república somos livres, mas que isso exige muito de nós. Ora, antes mesmo das duas grandes revoluções, americana e francesa, Mandeville já propunha o que se pode chamar de uma cidadania facilitada. E depois delas Benjamin Constant explicará, em 1819, que não há como voltar à cidadania antiga, com todos na praça como em Atenas, ou com as figuras exemplares de abnegação, como em Roma. Qual é, então, o lugar da ética nesse contexto?
Resumindo a questão: a república é o regime por excelência da ética na política. O respeito à res publica significa que cada um de nós deve tratar o bem comum como sagrado. Deve até dar a vida pela pátria. Ora, pôr o coletivo à frente do indivíduo, os valores acima dos interesses e desejos, implica uma intensa moralização da vida humana. Mas isso é inviável numa sociedade como a moderna. Podemos explicar essa inviabilidade pelo capitalismo. Este emancipa o empreendedor das tutelas religiosas, morais e mesmo políticas. O lucro, e não mais o bem moral, se torna o motor de sua ação. É claro que para isso funcionar é preciso que o Estado controle a economia — o que acontece até nas sociedades mais liberais, mais adeptas do laissez-faire - de modo a canalizar a energia do empresário ou empreendedor para longe do crime e para dentro da economia legal. Mas, construído esse quadro de instituições, o sistema funciona. E sua maior qualidade é que, para ele dar certo, não se precisa apostar na bondade, e sim no interesse: o Estado e a sociedade controlam as ações e os sujeitos bem menos do que se a condição fosse a renúncia à vantagem pessoal. Ou podemos explicar o mesmo fenômeno pelo processo de individuação que ocorre na modernidade. A pessoa se liberta das tutelas grupais, tradicionais, externas, e desenvolve cada vez mais matizes próprios, numa combinação de traços que será apenas sua. A realização pessoal se torna um valor, um fim fundamental. Já vimos que isso muda o estatuto do sexo. Renunciar a ele era decisivo, na moralidade vitoriana. Hoje, porém, essa renúncia não faz sentido. Dificilmente conseguiríamos acreditar que ela pudesse ter efeitos positivos, adestrando o caráter: nossa atenção está toda voltada para seus maus efeitos, como as histerias relatadas por Freud — também ele, por sinal, começando suas pesquisas em plena era vitoriana. As duas explicações se complementam. Gostemos ou não do capitalismo, ele propiciou uma emancipação sem precedentes do indivíduo, o surgimento de uma nova autonomia da pessoa (de auto, si próprio, e nomos, lei: autônomo é quem legisla por e para si próprio). Mas o que importa é que a renúncia deixa de ser o grande valor. Tanto faz que seja a renúncia cristã e medieval, que serviu sobretudo às monarquias, ou a renúncia republicana, que fundaria novos regimes. E, reduzindo-se a renúncia, diminui o alcance da ética. Ela se torna secundária. Prioritário é o desejo, a realização pessoal. Aí está o fim de nossas ações, a meta de nossas vidas. A ética entra para tratar dos meios para nossa realização: ela condena uns, aprova outros. Mas, mesmo que respeitemos escrupulosamente os meios, os fins serão mais importantes do que eles. Até podemos sugerir que a ética assume em nosso tempo um teor cada vez mais negativo (como aliás já se expressava nos Mandamentos, que começavam por “Não...”). Ela diz quais ações não devemos praticar. Pouco indica o que devemos fazer, ou ser.
Concluindo: aparece, na Revolução Francesa e depois na Russa, o projeto de uma cidadania intensamente participativa, ativa. Todos iriam às assembleias, todos atuariam na vida política. Essa ênfase teve intenso desdobramento ético. Por isso a moralização jacobina e a bolchevista estiveram entre as mais exigentes, nos últimos 200 anos. Julgava-se não só a ação política de cada um, mas sua vida pessoal, para ver se a pessoa correspondia ou não aos elevados padrões éticos que inaugurariam a era da justiça. Mas isso não se realizou. Dos jacobinos ficou a lembrança do Terror, e dos Estados comunistas uma série de fracassos e até horrores. Os regimes que nestes anos deram espaço à liberdade devem algo aos jacobinos e aos bolchevistas, mas talvez devam mais a terem tomado um outro rumo. Por isso discutir a república, hoje, é entender como pôde renascer uma forma de governo morta havia quase dois milênios — uma forma de governo que promove eleições e separa o bem público da pessoa do governante mas com uma participação do povo bem menor do que haveria em Atenas e uma entrega de si bem inferior à que ocorreria em Roma.
UMA CHAVE Voltemos a Montesquieu. Para cada um dos três governos, ele distingue a natureza e o princípio. A natureza é a descrição de suas instituições. O princípio é a paixão que o movimenta. Assim, a monarquia é o governo de um só, mas temperado por leis e contido por instituições, enquanto o despotismo é o governo de um só, porém sem leis nem contenção. E essa a natureza desses dois governos. Mas só entenderemos como eles funcionam ou o que lhes dá vida se lembrarmos que o princípio da monarquia é a honra, e o do despotismo o medo. E porque os súditos temem o sultão que há despotismo. Já a monarquia existe porque alguns súditos do rei, pelo menos, valorizam a honra mais que a vida. Finalmente, o princípio da república é a virtude - que exige colocar o bem comum acima do particular. Ora, se a república era impossível no tempo de Montesquieu, isso se devia a seu princípio e não a sua natureza. Um moderno não aceitará viver na virtude. A saída, então, é achar um novo princípio para a república. E o que acontecerá: uma república de natureza um pouco modificada (o exercício de seu poder será representativo e não mais direto), tendo por princípio algo que lembra o princípio da monarquia. Algo que lembra, porque não é mais a honra. No mundo que agora surge, o princípio é o interesse bem compreendido. E a honra desdenhava o interesse.
Mas, descrevendo a honra, Montesquieu disse tratar-se de um princípio errado que, porém, dava ótimos resultados. Esta é a chave. Como fazer o errado dar certo? O imoral gerar moralidade? Essa é exatamente, sem Montesquieu o perceber, a solução de Mandeville: vícios privados, benefícios públicos. Substitua-se a palavra honra por interesse ou mesmo ganância: eis a saída. Teremos a república, modificada. Mas, se ela foi modernizada, foi porque mudou o fator de nossa adesão a ela. Respeitaremos o bem público, separando-o da propriedade ou do patrimônio privados, mas o faremos por motivação diferente do amor antigo à pátria. Um lugar terá que haver para interesses e desejos particulares. E isso complica nossa análise do regime do autogoverno e do bem comum.
7. A REPÚBLICA POSSÍVEL Até aqui foi enfatizada a oposição entre um ideal antigo, do bem comum, e uma prática moderna — que não é só política, mas tem base em nosso próprio modo de ser, em nossa formação social e psíquica - voltada para o egoísmo, ou melhor, bem melhor, para a realização pessoal. O conflito entre esses dois aspectos é forte, mas não nos impede de lutar por sua síntese, ainda que — sempre — precária. É o que vamos procurar, agora, nas páginas que faltam. Há dois tipos de regime em que se intensifica a ética. O primeiro, mais frequente na história, oscila entre a teocracia e a monarquia ligada à religião. Esse regime hoje se tornou exceção. O outro tipo é a república, que acredita em tornar decente o mundo em que vivemos, mas não por medo a Deus ou subserviência ao rei, e sim pela autodisciplina e por uma ética que não aposta mais só em castigos ou recompensas. A realização integral desse regime — que é o republicano — soa difícil. Mas não quer dizer que não valha a pena tentar. E, se a república — e a democracia — modernas soam diminuídas em face de Roma ou Atenas, pelo menos hoje afetam uma proporção sem precedentes da humanidade. Entre um terço e metade do gênero humano vive em Estados que pregam o respeito à coisa pública, lema republicano, e a igualdade dos cidadãos, tema democrático. Mesmo quando isso não passa de palavras, estas acabam servindo para criticar a prepotência e a mentira. A prazo médio ou longo, as coisas mudam.
O ESTADO DE DIREITO A república está associada ao direito. A modernidade em política constrói duas
grandes obras. Uma é a democracia. A outra, mais antiga, avançando desde a Renascença, é o Estado de direito - ou seja, a ideia de obedecer à lei e não ao arbítrio do poderoso. Em tese, o Estado de direito não precisa ser democrático. Uma aristocracia de magistrados honestos poderia aplicar imparcialmente a lei. E o que se chama o império da lei, rule of law. Mas essa consagração da lei acima dos interesses particulares já significa que ela é coisa pública e não privada. Há aí o princípio republicano da prioridade conferida à res publica. Contudo, para promover a coisa pública, é imprescindível que o próprio público a controle. Ele não pode ser só o beneficiário, tem que ser o responsável, o autor do bem comum. Confiar na bondade dos magistrados não basta. Uma república aristocrática tende a se esgotar. Veja-se a Revolução Francesa. Nos anos que a precedem, quem mais enfrenta o arbítrio do rei são os juízes do Parlamento de Paris, que, apesar do nome, é um tribunal e não uma assembleia eleita. Eles assinam documentos corajosos, são banidos, batem-se com denodo para o país ter uma Constituição. Em apenas dois anos, porém, sem terem mudado de ideais, eles passam da oposição radical para a retranca mais conservadora: em 1790 já está evidente que eles defendem seus privilégios, os cargos que possuem (por herança ou compra), a posição de interlocutores destacados do rei, de representantes nãoeleitos da sociedade. A medida que aumenta a liberdade de expressão e organização, a sociedade passa a falar por si, a organizar-se, e não quer mais a casta de juízes como seu porta-voz e tutor. Para que sacudir a tutela do rei e cair na do judiciário? A república, como coisa pública, só pode adequadamente resultar de eleições. Ela necessita da democracia.
CANALIZAR A ENERGIA PRIVADA Nossa república precisará dispensar os cidadãos de serem intensamente virtuosos. Mas o interesse não basta como solução, porque ele privatiza. Uma saída é construir instituições que canalizem o interesse - agora “bem compreendido”, de longo prazo — em direções socialmente positivas. Por isso, a modernidade vai privilegiar o que na política é instituição, mais do que a ação política. Quando destacamos a ação política, o modelo é O Príncipe, de Maquiavel (1469-1527). O pensador florentino concebeu um príncipe capaz de enfrentar situações difíceis e modelá-las segundo a sua vontade. O exercício dessa vontade é o que ele chama de virtu, virtude, não no sentido clássico das virtudes em geral, nem no republicano da abnegação — mas no da capacidade de alguém tomar as rédeas do destino de seu Estado. Está assim, no eixo da política de Maquiavel, o heroísmo do governante,
do estadista, do guerreiro. A outra vertente da política moderna é a da instituição. David Hume (171176) é um de seus expoentes. Considerando o homem pouco apto ao heroísmo que aposta tudo na ação, ele pergunta que canais e instituições podem servir para que o egoísmo resulte em bem comum, a preguiça em disciplina — em suma, tudo o que vimos em Mandeville. Assim, se a ação vai ser excepcional, a instituição vai ser a norma da política moderna. Nosso problema é como construir instituições que protejam e promovam a coisa pública. Não é preciso repetir o que já foi dito sobre Mandeville. Ninguém teve tanto sucesso quanto o capitalismo, na tradução de impulsos privados, mesmo viciosos, em benefícios públicos. Mas essa marca de origem não impede que sociedades democráticas de outro perfil se inspirem no mundo que o capital abriu. Assim como o cirurgião, sabe-se desde Freud, sacia de modo socialmente aceitável e mesmo elogiável impulsos que, em seu cerne, são até sádicos e homicidas, um dos principais segredos do Estado moderno está em aproveitar não só as qualidades humanas, mas também os seus defeitos. Construir instituições é isto: em vez de apostar num homem bom e ideal, lidar com ele como é — e daí, por um sábio trabalho de engenharia política, gerar uma sociedade mais justa, melhor. Isso significa tornar o crime mau negócio e, ao mesmo tempo, proporcionar saídas para as tensões que se expressariam nele. Um exemplo bastante simples é, ao mesmo tempo que se reprime a grafitagem, oferecer muros e portas para os grafiteiros decorarem, como se está fazendo espontaneamente, desde o ano 2000, no bairro paulistano do Brás. É identificar novos desejos e, em vez de deixar que eles perturbem o social, abrir canais para que o enriqueçam.
O VERDADEIRO INTERESSE Isso significa reconhecer o que é o interesse bem compreendido. Esse termo, que será utilizado por Tocqueville, já está pressuposto nos filósofos políticos dos séculos 17 e 18.Todos eles contrastam uma situação de degradação política, que seria a atual, e uma condição de equilíbrio, paz ou justiça. A passagem da degradação ao Estado, digamos, ideal exige — entre outras coisas — que os homens compreendam qual é seu verdadeiro interesse. Às vezes, a passagem está mais nessa compreensão e aceitação do que na criação de novas instituições: não se trata tanto de modificar o Estado, mas nosso modo de vivê-lo. O verdadeiro interesse não está na predação, nos lucros de curto prazo, porém num cálculo de longo termo, que nos faz perder certas vantagens imediatas, mas conquistar estabilidade. Bem compreendido, o interesse não é
ganância; é o modo racional de construir o futuro. Interesse é um termo que remete à economia, mais que aos afetos ou aos valores; a economia, uma vez racionalizada, sairia da destruição predatória, para entrar na construção. É também isso o que faz passarmos dos desejos aos direitos. Se o que nos leva a investir na democracia são desejos — de ter e ser —, eles não bastam para formar uma sociedade. E preciso que sejam equilibrados — que se convertam em direitos. Isso limita meus desejos, ao mesmo tempo que lhes garante uma realização, menos integral do que talvez eu gostasse, mas mais segura do que então se daria. A república é o regime em que a democracia entra no Estado de direito. Convicções democráticas podem levar a uma revolução, mas o que a converterá em Estado e em direito, em duração, são princípios republicanos. A democracia precisa da república.
A VIRTUDE DO AUTOGOVERNO A virtude republicana da abnegação é sobretudo uma virtude de quem está no poder. Quem mais precisa tê-la não é quem apenas obedece, mas quem manda. Talvez por isso o self-government, o autogoverno dos colonos norte-americanos, tenha sido uma escola tão notável de governo, forjando uma disciplina que súditos de uma monarquia absoluta não podiam — nem precisavam — ter. Governo, porém, não é o mesmo que poder. Na democracia, o poder é do povo, ainda que a administração ou governo se delegue a representantes. O importante não é todos governarem, o que é impossível, mas o povo controlar seus representantes. Quanto maior o controle popular, mais democrático o poder. Isso porque, quanto mais as pessoas forem virtuosas - isto é, ciosas de distinguir o bem comum dos interesses privados —, maior será sua participação no poder, nem que seja de fora, verificando, discutindo, cobrando; ou seja, quanto mais republicanas forem as pessoas, participando, mais democrático será o poder. Um regime democrático não pode apenas satisfazer desejos; precisa respeitar esse espaço público, o do bem comum. A república foi a admirável invenção romana para resolver um paradoxo, uma enorme dificuldade teórica e prática, que é as mesmas pessoas mandarem e obedecerem. É fácil entender que um mande e outros obedeçam; muitos aceitam que quem manda esteja fora e acima da lei. Confira isso pela sua experiência: em nosso país, sobretudo nas regiões com piores índices de desenvolvimento humano, o poder de alguém se mede pela capacidade de isentar-se da lei comum. É o caso de quem, graças a sua posição social, fura a fila ou tem um atendimento preferencial. Ou o caso da pessoa que o atenderá melhor se você lhe pedir um favor do que se você reivindicar um direito. Quantos não se irritam, até no trânsito (essa metáfora brasileira para a classe média), porque alguém reclama que estejam em fila
dupla ou em lugar proibido — mas cederiam a vez, de melhor grado, se o outro renunciasse a seu direito para pleitear um obséquio, uma gentileza... Aí está um dos sinais mais constantes de nosso déficit republicano. Mas esse saldo negativo de nossa república também temos em nossa democracia. Se a república cobre o caso em que os mesmos mandam e obedecem, o único regime em que todos mandam e obedecem é a democracia. O problema é que milênios de formação adestraram nossa espécie a opor o que é mandar ao que é obedecer. O autoritarismo nasce disso. Romper com ele exige uma ênfase nos deveres de quem manda. Se sou investido de um poder, nem por isso ele é minha propriedade — é o oficio, o serviço, que presto à sociedade.10 Daí que seja tão importante a contenção, a autodisciplina, o controle da vontade. O republicano sabe que, para viver em sociedade, precisa haver - mais que isso, é bom haver - uma esfera comum, um espaço público, um patrimônio coletivo que sirva de elo entre nós. Devemos cultivar e respeitar esse lugar que é de todos. Isso exige refrear desejos e caprichos. Assim, seja jogando lixo pela janela do carro, seja desviando dinheiro público, eu destrato o que nos une a todos. E, se conseguirmos que essa coisa pública nos dê prazer ou realização pessoal, teremos resolvido ou pelo menos atenuado o problema de Constant: o antagonismo da república com nossa natureza, com o desejo ou com o princípio democrático de ter e ser mais, se tornará menor e mais administrável.
A EDUCAÇÃO A chave para reduzir o conflito entre ideal e psique é a educação. Ela é uma das principais instituições, se não a principal, na socialização humana. E nela podemos detectar um erro de Constant, que tanto criticava — embora respeitosamente — Rousseau. Pois terá sido por acaso que Rousseau publicou no mesmo ano, 1762, a grande plataforma da república moderna, o Contrato Social, e o grande manifesto da educação também moderna, o Emílio? Até então, a república exigia um combate incessante à natureza humana. Mas com Rousseau surge a ideia de que o ser humano tem uma natureza plástica, flexível, mutável. A boa educação orienta essas mudanças no melhor rumo possível — o de valores que incluam ou possam incluir os republicanos.Talvez os rousseauístas da Revolução Francesa tenham exagerado 10
Eduardo Portela ficou célebre pela frase que lhe custou o cargo de ministro da Educação, no último governo militar: “Estou ministro, sou professor”. No cargo político apenas se está. Sua demissão pode ser interpretada como mostra de que, na ditadura, prevalece a visão patrimonial do poder. Os verbos do poder, no autoritarismo, são pertencer e ser. Na república, seriam servir (daí a ideia de serviço público) e estar.
na esperança de harmonizar a república com a natureza humana; mas, desde os grandes educadores do século 18, já não se pode dizer que a república seja incompatível com a psique humana ou mesmo moderna.11 É aí que o próprio Constant exagera. Nossa natureza, justamente porque é — como ele mesmo reconhece — mutável na história, pode ser plasmada por uma boa educação. E quem não percebe que os mais bem-sucedidos projetos educacionais são os que investem no espaço público e na participação do maior número de pessoas — ou seja, em dois grandes temas republicanos? Finalmente, há uma prática que articula bastante bem democracia e república. E a participação. O ideal republicano está na dedicação à coisa comum ou coletiva. O que hoje se chama voluntariado — o empenho gratuito que muitos dedicam a ajudar causas nobres, sociais, sobretudo quando nos países pobres o Estado arrecada impostos para pagar juros à banca - é uma forma de participação. Essa participação nem sempre é explicitamente politizada, mas é grande o seu potencial político, porque forma as pessoas para agirem sem esperar ordens de cima. Ora, estando voltada para o bem comum, é uma prática republicana. E, acostumando as pessoas a agirem de baixo para cima, adotando a perspectiva do povo (ex populí) e não a do príncipe (ex principis), ela constitui uma pedagogia democrática. A educação para a democracia acaba se fazendo na escola da vida, que é a da relação com o outro — ou seja, a participação na vida social.
REPÚBLICA E DEMOCRACIA A ideia deste livro e de seu irmão gêmeo, A Democracia,12 nasceu de uma observação: é cada vez mais difícil manter a ideia de que exista um povo, um demos, para usar a palavra grega, inteiro e íntegro. Aliás, a democracia moderna nasce com uma visão romântica do povo, que se expressaria por uma identidade nacional marcada em sentimentos fortes, e depois se orienta para a esquerda adotando uma visão marxista - que identifica o povo com os trabalhadores, os explorados e seus aliados. Nos dois casos, nem todo o mundo é povo. Há também o antipovo, que pode ser o estrangeirado, no primeiro caso, ou o explorador de classe, no segundo. Mas o problema é que essas duas concepções de povo deixaram de ser funcionais. A economia está complexa demais para 11
A relação entre as ideias de soberania política, revolução e história - que eclodem no século 18 - está desenvolvida em “História e Soberania”, em meu livro A Ultima Razão dos Reis (São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 97-119).
12
A Democracia, série “Folha Explica” (Publifolha, 2001), trata da democracia direta, dos direitos humanos, da representação política e dos problemas e desafios atuais da democracia.
distinguirmos nela os trabalhadores, e a cultura, rica demais para identificarmos uma cultura nacional pura. As características do povo migraram, do povo como um todo, brasileiro, francês ou o que for, para o que podemos chamar de subpovos — grupos menores, porém mais intensos em suas relações. Podem ser os sem-terra, que guardam a caracterização marxista, pois se definem pelo lugar na economia, mas igualmente os militantes negros, feministas ou gays. Esses grupos assumem traços que eram tradicionalmente os do povo. Mal restaram os laços fortes que, no modelo romântico ou marxista, uniam os membros do povo como um todo. Numa sociedade complexa, é difícil eu sempre amar o compatriota ou o companheiro de classe. Mas essa intensidade afetiva migrou para os elos entre membros de grupos menores e mobilizados. Aqui é preciso falar — sem sectarismo — da política brasileira. O partido que mais aposta em vínculos fortes ou sociabilidades aquecidas é o PT. Sua prática é das mais democráticas. Mas, com sua ênfase em agrupamentos que não são o povo como um todo - e isso porque não há mais povo como um todo —, ele se presta à crítica de favorecer interesses particulares, que seus adversários chamam de corporativistas. Veja-se o paradoxo. A prática democrática subsiste, mas ela não diz mais respeito ao demos como um todo. Ela sobrevive, intensificada, em grupos menores, e por isso mesmo pode voltar-se contra outras partes do povo. O que a direita fez, sobretudo na presidência Collor, foi jogar essas parcelas desmobilizadas contra os grupos organizados, aqueles em que o PT melhor navega. Mas há outra crítica, mais séria e pertinente que a da direita. É a que se encarna entre nós no PSDB. O discurso dele é republicano. Basta ver que ele critica o PT porque esse último favoreceria interesses de grupos. É o que o PSDB chama de corporativismo — a defesa de uma corporação, em detrimento do interesse comum, a ênfase no meio (no caso, o funcionalismo público) mais que no fim (o povo, o público como um todo). O discurso do PSDB é o mais consistente que temos na defesa da res publica. Aqui, porém, também há um custo. Defendendo a coisa pública, o PSDB formula uma questão fundamental — mas ao mesmo tempo se vê condenado a atacar as práticas mais democráticas que há em nossa sociedade, que mobilizam os grupos à esquerda. Ou seja, nossos republicanos se veem obrigados a criticar a democracia. E enquanto isso nossos democráticos não conseguem ter uma visão abrangente da coisa pública, estando limitados a práticas que, embora importantes, ficam na organização de grupos parciais. E o que desespera a minoria de marxistas dentro do PT, que obviamente deseja uma visão totalizante da sociedade, mas se vê condenada a uma dura alternativa: ou totaliza, mas não enxerga a sociedade de hoje; ou leva em conta a sociedade atual, e aí se vai embora a totalização que Marx elaborou no século 19.
DESEJO E VONTADE Vê-se que nossa discussão não é só teórica. Ela está no cerne da política atual, inclusive brasileira. Há uma tragédia light na nossa política, que é esse divórcio dos dois melhores grandes partidos, os de maior convicção em suas ideias, os de propostas mais coerentes para resolver o mal brasileiro. A tragédia é leve, porque não causa tortura nem chacina — mas dificulta a realização da melhor política de nosso tempo, que está no encontro dos princípios democráticos e republicanos. Essa síntese talvez não seja possível. Mas é inspiradora. A tese principal destes dois livros é que a república funciona pela vontade e a democracia, pelo desejo. A democracia expressa o desejo por mais. Bem orientado, esse desejo se converte em direito à igualdade, de bens, de oportunidades ou perante a lei. Já a república consiste na necessidade ou obrigação de refrear o próprio desejo, a fim de respeitar um bem comum que não é o patrimônio de uma sociedade por ações, mas o cerne do convívio social. Não há política digna desse nome, hoje, que não seja republicana e democrática. O problema é que as duas vertentes não se conciliam facilmente. Se tendermos à democracia, o desejo de igualdade, e o desejo em geral, poderá inviabilizar o investimento de longo prazo, o respeito ao outro, a contenção. A própria conversão do desejo em direito é um elemento republicano. Contudo, se enfatizarmos a república, poderá ser que o respeito à coisa pública se torne fim em si, e deixe de lado a igualdade: teremos uma república de juízes (ou promotores), sem o aquecimento que está na democracia.
EPÍLOGO: IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA A monarquia constitucional, como vimos, pode ser mais republicana do que regimes que tenham um presidente da República. Justamente porque o rei ou rainha se esvaziou de poder e se tornou imagem, símbolo, figura — na Inglaterra, uma sombra num selo —, ele pôde servir de elo mínimo, afetivo, para as pessoas e partidos fazerem prosperar suas diferenças. Podemos soltar nossos conflitos à vontade, porque um elo continua existindo. Essa argumentação supõe que, em última análise, precisamos de um elemento nem racional, nem democrático, nem republicano para ancorar as relações humanas.Tudo pode ir à deriva, as tensões podem expressar-se, mas sob a condição de que uma única amarra ainda esteja ligada ao cais. Podem os ingleses viver conflitos sociais e políticos intensos, mas, como se emocionam com a rainha-mãe, alguma coisa eles têm em comum, e isso mantém, entre
todos, a comunicação. Tal solução significa que liberamos os conflitos no plano real, social, sob uma condição: construirmos, em nosso imaginário, em nossa mente, um núcleo duro simbólico de não-conflito. A solução é boa. Até haver surgido a sociedade moderna e capitalista, e mais ainda a pós-moderna, a maior parte das culturas teve como ideal algum tipo de paz ou harmonia. O problema é que esse ideal de ordem equilibrada reprimiu, e muito, o que as pessoas e grupos realmente sentiam. Muito da dor psíquica, nos séculos 19 e 20, deveu-se ao descompasso sentido por tanta gente entre um ideal — religioso, moral, político — e a sua realidade, afetiva ou efetiva, interna ou externa. Ora, nossa sociedade explícita cada vez mais conflitos. E difícil saber se ela tem maior teor de conflitos do que outras (provavelmente, sim), ou se tem maior consciência deles e lhes deu maior vazão do que elas (isso com toda a certeza). De todo modo, o que a solução monárquica moderna, tipo rainha da Inglaterra, permite é viver um acentuado nível de conflitos porque algo está ancorado na psique. Isso explica certas fotos que pareciam absurdas quando foram tiradas — O punk ao lado do guarda da rainha, a minissaia e os Beatles nascendo numa sociedade formal como a inglesa. Pois é o formalismo, ao sair da realidade e investir-se no simbólico, que dá paz para que eu possa ser homossexual, punk, místico, enfim, o que quiser — para que eu possa voar à vontade, porque ainda tenho chão. Mas há um problema nessa equação, e vale a pena dedicar uma espécie de epílogo a ele. A república é o regime do autogoverno ou self-government. Sua grande convicção é que os seres humanos são capazes de governar a si próprios. Isso não significa só elegermos nossos dirigentes, mas definirmos, nós mesmos, o poder que aceitamos e queremos sobre nós. Em linguagem filosófica, quer dizer que saímos da transcendência e apostamos na imanência. Há transcendência quando um ambiente precisa, para ser regulado, de um poder superior e externo a ele. Há imanência quando um sistema regula a si próprio. O Deus das religiões do Livro — judaico, cristão, muçulmano — é transcendente. Dizemos, aliás, religiões do Livro porque os fiéis recebem as ordens de Deus por uma revelação, o que já mostra que a divindade está acima deles e é diferente do mundo que ela criou. Já o panteísmo — a crença de que tudo é divino - e o ateísmo são imanentes. Aliás, é mais difícil, em termos religiosos, detectar a imanência do que a transcendência. Essa última é mais fácil de perceber, embora — e talvez porque — justamente exponha o princípio de ordenação do mundo como estando fora deste mundo. O que tem isso a ver com a retomada que aqui fazemos do prélio república versus monarquia constitucional? É que a monarquia norte-europeia, montando
um espaço comum de identidade, constitui o melhor exemplo de uma transcendência simbólica. Já não é a transcendência do Deus cristão, judaico ou muçulmano nas eras e locais de pleno poder, ou de seus representantes neste mundo, papas, rabinos e califas. O monarca não manda. Mas desempenha, simbolicamente, esse papel de transcendência. Aqui as coisas se dividem.Vamos terminar com uma dúvida. Podemos achar que alguma transcendência é necessária, justamente para que pratiquemos, na realidade (o que quer que isso signifique), a imanência. Para eu resolver os conflitos que tenho com os outros, ou os que vivo em mim, precisaria transpor para meu imaginário um porto de paz, um lugar de não-conflito - uma transcendência que acalme e nutra minha psique. Choro pela princesa Diana, ou me comovo com as roupas azuis da rainha, porque isso me capacita a aguentar um mundo para cujos conflitos não há saída, um mundo que a cada problema me desafia a enfrentá-lo e resolvê-lo ali mesmo. A aceitação de que uma família em particular seja sustentada por nós todos e o dinheiro que isso custa, enfim, esse vestígio de desigualdade e de injustiça no meio de uma vida social que procura ser justa, tudo isso é um preço pequeno pelo que ele produz. Mas talvez a imanência seja possível. Essa é a outra via. Poderíamos radicalizar a república e entender dispensável essa âncora - mesmo simbólica no transcendente. Se enfrentamos os desafios, vencendo uns poucos, negociando uma solução intermediária com a maior parte, assimilando a derrota em vários casos, por que precisaríamos ainda dar crédito a uma realeza que, do Almanaque de Gotha, decaiu para as revistas de fofocas sobre celebridades? Não seria mais corajoso, mais denso de nossa parte, suprimir o que ainda resta de dependência nossa? A transcendência aqui se torna um resto de vício, a dependência de uma droga. Podemos liberar-nos disso. E acabar com o intolerável absurdo que é sustentar uns inúteis e ociosos só para nos representarem uma velha peça, aquela que nos diz como somos, ainda, infantis, como precisamos, ainda, de uma escora psíquica. Não precisamos. A essa tese intensamente republicana dá para responder, dizendo que ela desconhece a realidade de nossa psique, a qual não pode ser inteiramente iluminada por valores assim racionais. Melhor aceitar um pouco de simbologia monarquista do que deixar sem limites os conflitos. Na Grã-Bretanha alguns perguntavam na década de 1980 à esquerda trabalhista, que era republicana: o que vocês preferem? A rainha Elizabeth? Ou, como presidente da República, Margaret Thatcher? A neutralidade monárquica dá maior espaço à oposição no interior do Estado do que se temos uma liderança eleita, mas partidária. Essa questão fica em aberto. Ela interroga, em última análise, nossa capacidade de sermos inteiramente racionais, ou intensamente felizes, ou de realizarmos por completo uma utopia. Talvez possamos consegui-lo. Talvez, porém, apostando nisso sem comedimento, percamos tudo, até aquilo de que
poderíamos pacificamente desfrutar. Pode ser que os tempos futuros respondam a essa pergunta. Mas pode também ser que ela seja irrespondível; que toquemos aqui num osso duro, num problema insuperável do humano.
BIBLIOGRAFIA E SITES Antes de mais nada, há que ler os clássicos republicanos modernos, que são Maquiavel (os Discursos), Rousseau (Contrato Social), os Federalistas, Robespierre e Saint-Just. Há muitas edições de suas obras, inclusive eletrônicas. Não podemos esquecer, de Montesquieu, as Cartas Persas (Pauliceia, 1991) e Do Espírito das Leis (Martins Fontes, 1993). Quase toda a política relevante, no século 20, aborda quer a república, quer a democracia. (Os outros dois grandes temas contemporâneos, que só tangenciamos, são o liberalismo e o socialismo.) Recomendar obras sobre qualquer desses temas envolve, pois, toda a teoria política recente. Destacando alguns dos principais filósofos políticos de nosso tempo: de Norberto Bobbio, o Dicionário de Política, que ele coordenou (Editora da UnB, 1995), bem como Liberalismo e Democracia (Brasiliense, 1988), Direita e Esquerda (Editora da Unesp, 1995), A Era dos Direitos (Campus, 1982), Igualdade e Liberdade (Ediouro, 1996) e O Futuro da Democracia — uma Defesa das Regras do Jogo (Paz e Terra, 1986); de Hannah Arendt, A Condição Humana (Edusp, 1981), Da Revolução (Atica/Editora da UnB, 1988), As Origens do Totalitarismo (Companhia das Letras, 1997) e O Que é Política? (Bertrand Brasil, 1998); de Isaiah Berlin, os Quatro Ensaios Sobre a Liberdade (Editora da UnB, 1981), além de seu prefácio a O Príncipe, de Maquiavel (Ediouro, 2000); de Claude Lefort, A Invenção Democrática (Brasiliense, 1983); de Jacques Rancière, O Desentendimento (Ed. 34, 1996). E ainda a História Intelectual do Liberalismo (Imago, 1990), de Pierre Manent. Ninguém perde tempo lendo esses autores. Nenhum deles perde tempo repetindo o óbvio. Na Internet, os sites mais interessantes são os que oferecem obras clássicas, já caídas no domínio público, para consulta ou download gratuitos. Em inglês, vale a pena acessar www.constitution.org/liberlib, bom pela documentação mas não pelas posições (é libertarian, na acepção de simpatizante das milícias de extrema direita!). Para pesquisas aprofundadas, o megalink www.earlham.edu/~peters/philinks.htm é útil. Em francês, a Biblioteca Nacional de Paris oferece muitos textos, não só de política, em http://gallica.bnf.fr/classique. E há um excelente site de documentos de história política brasileira, em www.cebela.org.br/txtpolit/socio/fr_sumar.html. É uma pena que sejam poucos os sites realmente interessantes com textos mais novos
— que em geral estão disponíveis em papel — ou com discussões atuais. Uma feliz exceção é, em inglês, o site www.cpn.org/sections/affiliates/whitman_center.html, que tem ótimas discussões sobre participação política. Deve ficar meridianamente claro que a perspectiva deste livro é de filosofia política, e não de ciência política. Sobre a diferença, ver Bobbio, Teoria Geral da Política (Campus, 2000), cap. I. De ciência política, recomenda-se enfaticamente Comunidade e Democracia — a Experiência da Itália Moderna, de Robert Putnam (FGV. Já 1848 ou O Aprendizado da República, de Maurice Agulhon (Paz e Terra, 1991), mostra como os valores republicanos foram incorporados pelo povo francês graças à tão denegrida - sobretudo por Marx Segunda República (1848-51). Alguns temas deste livro foram desenvolvidos por mim em outros lugares, especialmente em A Sociedade Contra o Social — o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras, 2000),“O Entusiasmo, o Teatro e a Revolução” (em:Adauto Novaes, org., Tempo e História [Companhia das Letras, 1992]) e no artigo “DemocraciaVersus República”, que saiu em Pensar a República (Editora da UFMG, 2000). Eu e os co-autores desse último livro, entre os quais Olgária Matos, Sérgio Cardoso, Wander Melo Miranda e Heloísa Starling, formamos um grupo muito informal e mesmo discordante de discussões sobre a república. De meus companheiros no grupo recomendo também, de José Murilo de Carvalho, Os Bestializados eA Formação das Almas (ambos pela Companhia das Letras, respectivamente em 1989 e 1995); de Luiz Werneck Vianna, A Revolução Passiva (Revan, 1997); de Maria Alice Rezende de Carvalho, O Quinto Século - André Rebouças e a Construção do Brasil (Revan e Iuperj, 1998); de Marcelo Jasmin, Alexís de Tocquevílle a Historiografia Como Ciência da Política (Access, ; e, de Newton Bignotto, O Tirano e a Cidade (Discurso Editorial, 1998) e Maquiavel Republicano (Loyola, 1991). Finalmente, para este livro também foram consultados, de Perry Anderson, Linhagens do Estado Absolutista (Brasiliense, 1984); de Norbert Elias, O Processo Civilizador (Jorge Zahar, v. 1 e 2, 1990 e 1993); e, de Richard Sennett, O Declínio do Homem Público (Companhia das Letras, 1988). SOBRE O AUTOR Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Defendeu seu mestrado na Sorbonne, em Paris, e seu doutorado na USP, ambos tratando do filósofo político inglêsThomas Hobbes. As teses foram publicadas, respectivamente, com os títulos A Marca do Leviatã— Linguagem e Poder em Hobbes (Ática,
1978) e Ao Leitor sem Medo — Hobbes Escrevendo Contra o Seu Tempo (Editora da UFMG, 1999,2- ed.). Também é autor de A Etiqueta no Antigo Regime (Moderna, 1999, 4ª ed.), A Última Razão dos Reis - Ensaios de Filosofia e de Política (Companhia das Letras, 1993) e A Sociedade Contra o Social — o Alto Custo da Vida Pública no Brasil (Companhia das Letras, 2000, Prêmio Jabuti de 2001), além de vários artigos em coletâneas e periódicos. Foi membro do Conselho do CNPq e do Conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Em 1998, recebeu a Ordem Nacional do Mérito Científico. Atualmente, é diretor de avaliação da Capes. FOLHAEXPLICA Folha Explica é uma série de livros breves, abrangendo todas as áreas do conhecimento e cada um resumindo, em linguagem acessível, o que de mais importante se sabe hoje sobre determinado assunto. Como o nome indica, a série ambiciona explicar os assuntos tratados. E fazê-lo num contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país. Voltada para o leitor geral, a série serve também a quem domina os assuntos, mas tem aqui uma chance de se atualizar. Cada volume é escrito por um autor reconhecido na área, que fala com seu próprio estilo. Essa enciclopédia de temas é, assim, uma enciclopédia de vozes também: as vozes que pensam, hoje, temas de todo o mundo e de todos os tempos, neste momento do Brasil.
CONSELHO EDITORIAL
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Otavio Frias Filho Paula Cesarino Costa © 2001 Publifolha - Divisão de Publicações da Empresa Folha da Manhã S.A. © 2001 Renato Janine Ribeiro
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