LETRAMENTO LITERÁRIO NO ENSINO MÉDIO: UMA PROPOSTA A PARTIR DE OFICINA COM O GÊNERO CONTO Isaquia Franco
RESUMO: Inevitavelmente é possível perceber que no ensino médio as potencialidades do ensino de Literatura embora façam parte do plano das discussões acadêmicas, não alcançam de maneira satisfatória, a prática de sala de aula. O que teoricamente deveria ser uma disciplina estimuladora da leitura voltando-se para a formação de leitores tornase responsável pelo distanciamento do aluno em relação ao texto literário. Nesse sentido, tornar o ensino e a aprendizagem da literatura uma prática significativa se faz urgente e necessário. Nessa direção estudos recentes apontam para o letramento literário. Nesse panorama, o foco não é somente a aquisição de habilidades de leitura, mas principalmente o aprendizado da compreensão e da ressignificação dessas leituras, através da motivação de quem ensina e consequentemente de quem aprende. É nesse contexto que o presente trabalho se particulariza, na medida em que aborda o letramento literário e seus postulados. Para tanto, apresenta uma proposta de ensino-aprendizagem da leitura desenvolvida através de uma oficina, a partir de textos do gênero conto. Objetiva-se com essa proposta uma reflexão sobre os desafios e as possibilidades da formação de leitores na perspectiva do letramento literário. PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Ensino Médio; Letramento Literário; Oficinas. Of icinas. Considerações iniciais Estudos sobre o modo como o ensino de literatura vem se configurando nas escolas de ensino médio têm demonstrado que o mesmo não vem sendo conduzido de maneira a levar o aluno a adquirir o letramento literário. Embora esses estudos apontem as causas dessa situação e ainda levantam questionamentos e sugestões acerca do que pode ser feito para reverter esse quadro os resultados evidenciam que, apesar da produção vigente os avanços investigativos até os dias de hoje permanecem no âmbito da teoria. Coloca-se cada vez mais que na sala de aula a literatura tem sido usada ou como pretexto para o ensino da gramática ou como interpretações prontas e acabadas, e até mesmo como mero passatempo. Como bem nos aponta Cosson (2011): No ensino Médio, o ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura brasileira, usualmente na forma mais ___________________ ___________________
Mestranda em Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal do Tocantins – UFT. Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Graduado em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). E-mail para contato:
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indigente, quase como apenas uma cronologia literária, em uma sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores, acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma coisa de retórica em uma perspectiva pra lá de tradicional. Os textos literários quando aparecem, são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características dos períodos antes. (COSSON, 2006, p. 21).
Observa-se, contudo, que o perigo maior que ronda o ensino da literatura não se encontra no fato dos professores não trabalharem com o texto em sala de aula, mas em como esse texto está sendo trabalhado. Não é sem razão que Todorov (2009), declara: O perigo que hoje ronda a literatura não está, portanto, na escassez de bons poetas ou ficcionalistas, no esgotamento da produção ou criação poética, mas na forma como a literatura tem sido oferecida aos jovens desde a escola primária até a faculdade: o perigo está no fato de que por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária (TODOROV, 2009. p. 10).
Nesse sentido, tornar o ensino e a aprendizagem da literatura uma prática significativa se faz urgente e necessário. Nessa direção estudos recentes apontam para o letramento literário. Nesse panorama, o foco não é somente a aquisição de habilidades de leitura, mas principalmente o aprendizado da compreensão e da ressignificação dessas leituras, através da motivação de quem ensina e consequentemente de quem aprende. Como forma de refletir sobre essas questões, e propondo caminhos para se chegar ao letramento literário no ensino médio, pretende-se apresentar, nesse artigo, uma proposta didática construída em torno do gênero conto, tomando como referência o modelo de sequência expandida de Cosson (2011).
1 - Literatura: conceito e função Embora muitos e variados conceitos já tenham sido atribuídos à literatura, nenhum ainda chegou a ser decisivo e completo. No entanto, dentre todos os conceitos elaborados a de se concordar que a literatura é um tipo de manifestação artística que tem como matéria prima a palavra. O ensino de literatura deve, portanto, consistir em explorar as potencialidades da palavra escrita. Pois como afirma Cosson (2011, p. 17). “[...] a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renuncia da minha própria identidade.”
Tal experiência, no entanto, só será de fato concretizada a partir do domínio de estratégias específicas, de modo que o aprendizado não se volte apenas para a exposição da leitura. De acordo com Cândido (1995), a literatura exerce três funções na expressão e formação do homem. A primeira é a função psicológica e está ligada à necessidade de ficção e fantasia do ser humano e à capacidade de se reelaborar o real através da ficção. A segunda função é a formativa e se dá através de inculcamentos não maniqueístas, como faz a própria vida. E, por fim, a terceira função que é a de conhecimento do mundo e do ser, pois a literatura é uma forma de representação de uma dada realidade social e humana. Para Cosson (2011), por ter a função maior de tornar o mundo compreensível, transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas é que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas escolas (COSSON, 2007, p. 17). Nesse sentido, a discussão e a promoção do letramento literário são oportunidades e, ao mesmo tempo, desafios no efetivo ensino e aprendizagem da literatura na perspectiva da humanização.
2 – Letramento: quando e como surgiu Letramento é um termo relativamente novo, mas bastante recorrente nos dias de hoje, seu aparecimento é atribuído a Mary Kato, no livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística de 1986. Ela coloca que letramento é o “processo ou efeito da aprendizagem da leitura e da escritura” (KATO, 2005: 140). Originária da versão inglesa “literacy” a palavra tem como representação etimológica a condição ou qualidade de ser literate, ou como bem nos aponta Soares (2003): [...] literacy é o estado ou a condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita a esse conceito está a idéia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, econômicas, cognitivas, lingüísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. (SOARES, 2003, p. 17).
Pode-se assim inferir que letramento é o estado próprio de quem se apropria da leitura e da escrita. Acredita-se que o termo tenha surgido em decorrência da não utilização do termo alfabetismo, contrário de analfabetismo. Entende-se que analfabeto é aquele que não foi alfabetizado, ou seja, não conhece o alfabeto, por isso, não sabe ler
nem escrever. Por outro lado, alfabetizado será aquele que dominar as capacidades de ler e escrever. Contudo, ser alfabetizado não é garantia para ser letrado, uma vez que para ser letrado é necessário fazer uso da leitura e da escrita nas práticas sociais. No sentido de marcar mais explicitamente essas diferenças Tfouni, em “Letramento e alfabetização” (2002) apresenta a relação entre esses dois processos: A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso é levado. Esse é um ponto de suma importância para aqueles que pretendem despojar-se dos restritos, e incisivos, conceitos em que a alfabetização é estabelecida em termos mecânicos e funcionais. a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada; procura ainda saber quais práticas sociais psicossociais substituem as práticas “letradas” em sociedades ágrafas. Desse modo, o letramento tem por objetivo investigar não somente quem é alfabetizado, mas também quem não é alfabetizado, e, nesse sentido, desliga-se de verificar o individual e centraliza-se no social. [...](TFOUNI, 2002, p. 9).
Assim entende-se que a palavra letramento surgiu devido às transformações sociais em curso e isso acarreta em novas perspectivas, em novas concepções.
3 - Letramento literário: conceito e abordagens de seleção O letramento literário faz parte da expansão do uso do termo letramento, sendo um dos usos sociais da escrita. O letramento literário é uma estratégia metodológica no direcionamento, fortalecimento e ampliação da educação literária oferecida aos alunos a fim de torná-los leitores hábeis. No campo das produções teóricas brasileiras sobre o tema, destacam-se as contribuições do professor e pesquisador Rildo Cosson (2011) que, além do aparato teórico, apresenta também estratégia metodológica a partir de práticas observadas em suas pesquisas. O autor propõe um trabalho que leve o aluno a se tornar letrado, apropriando-se da leitura de literatura na sala de aula. Segundo Cosson (2007, p. 12) o letramento literário possui uma configuração especial: “É o processo de letramento que se faz via textos literários compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e, sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio. ”.
Não é sem razão uma das propostas mais interessantes de ensino de literatura. O autor, de forma sutil e prazerosa, desata os nós da relação entre literatura e educação, propõe a construção de uma comunidade de leitores nas salas de aula e sugere oficinas para o professor adaptar seu trabalho na sala de aula, considerando que o letramento literário é fundamental para a constituição do leitor. Assim ele justifica: É justamente para ir além da simples leitura que o letramento literário é fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência o mundo feito linguagem. (COSSON, 2007, p. 30).
De acordo com o trecho acima podemos inferir que a proposta de letramento literário tem como objetivo maior a formação de uma comunidade de leitores. Cosson (2011, p. 120) conclui: “o ensino de literatura passa a ser o processo de formação de um leitor capaz de dialogar no tempo e ou no espaço com sua cultura, identificando, adaptando ou construindo um lugar para si mesmo.”. Inscrevendo-se nos estudos do Letramento Literário Begma Tavares Barbosa a partir de uma pesquisa intitulada Letramento Literário: escolha de jovens leitores, afirma que “a escola é a principal agenciadora do letramento literário, ou seja, é a escola que promove o contato do aluno com o cânone literário.” . Também nesse sentido, Cosson (2006, p. 23) diz que “o letramento literário é prática social e, como tal, responsabilidade da escola”. Para o autor, a literatura deve ser ensinada com o compromisso de conhecimento que todo saber exige, proporcionando uma leitura efetiva dos textos de forma sistemática, organizada segundo os objetivos da formação do aluno-leitor, prazerosa e compreendendo que a literatura tem um papel relevante a cumprir no âmbito do trabalho pedagógico da escola. Em relação ao letramento literário voltado para o ensino médio, Cosson (2011). propõe uma sequência expandida de atividades que poderá orientar o professor no processo de abordagem do texto escolhido. Segundo o autor, a utilização da mesma permite que se vá além da leitura, tornando a atividade uma fonte de conhecimento e de prazer. A sequência de Cosson, constitui o objetivo central de nossa proposta elaborada para o gênero conto.
4 - Proposta metodológica
O gênero escolhido para a elaboração da atividade, que pode ser desenvolvida em qualquer turma de ensino médio, foi o conto “ A cartomante, de Machado de Assis”. A escolha desse gênero textual se deu por apresentar uma facilidade técnica para o seu entendimento, possibilitando aos alunos que não possuem maiores informações literárias adentrarem de forma prazerosa no mundo encantado da leitura. Já os contos de Machado de Assis apresentam uma riqueza de significados que podem prender a atenção do leitor uma vez que podem ser estabelecidas relações com o contexto dos leitores da atualidade. No conto podemos observar fortemente os traços marcantes das obras machadianas, que se destacam pela profundidade psicológica que se submetem seus personagens. Dentro do enredo, que não segue nenhuma ordem dos fatos, o leitor é convidado a investigar, as razões, os porquês e as atitudes que fez com que certos personagens agissem dessa forma e não daquela. O conto de Machado pode ser trabalho, de acordo com a sequência proposta por Cosson em Letramento Literário: Teoria e Prática. Trata-se da proposta denominada seqüência expandida baseada em: motivação, introdução, leitura, primeira interpretação, contextualização, segunda interpretação e expansão .
A primeira etapa diz respeito à motivação. Trata-se de introduzir o aluno na temática do texto, fazendo com que esta desperte seu interesse. No que concerne ao conto A cartomante, sugerimos que o professor selecione de jornais e revistas anúncios de cartomantes ou até mesmo panfletos do mesmo tipo distribuídos nas ruas da cidade e com os alunos divididos em grupos, solicite que façam análise dos mesmos bem como proponha uma discussão acerca da forma com que esses anúncios são elaborados para influenciar as pessoas. A segunda etapa é a de introdução. Aqui o professor apresenta o autor da obra aos alunos. Deve-se destacar para os alunos o porquê de Machado de Assis ser um dos principais autores de contos brasileiros, ressaltando a vastidão de sua obra e a multiplicidade temática que esta apresenta, além de outros aspectos relevantes . A terceira etapa é a leitura do texto. A atividade de leitura, no caso do conto, por ser breve, pode ser lido na sala de aula, sob a orientação do professor que pode fazer pausas para tecer comentários, esclarecimentos ou levantamento de hipóteses. A leitura também pode ser realizada de forma silenciosa pelos alunos, mas a leitura oral é indispensável para que sejam evidenciadas características básicas do conto. A leitura do texto é de importância fundamental, por isso, precisa ser orientada de modo a facilitar o processo de interpretação e consolidação da sequência. Em relação à
leitura Cosson (2011, p 62) diz que “a leitura escolar precisa de acompanhamento porque tem uma direção, um objetivo a cumprir, e esse objetivo não deve ser perdido de vista.”. Embora o autor trate da leitura literária como um todo, no caso do conto, que é um texto curto, este acompanhamento do professor será no sentido de instigar os alunos para que estes descubram sentidos embutidos no gênero. Após a leitura deve se fazer comentários finais e levantamento do tema do conto. A quarta etapa compreende a atividade de primeira interpretação do texto. Como forma de levar o aluno a apresentar a impressão geral do título o professor pode solicitar sugerir uma produção textual que contenha o mesmo tema do conto A cartomante, mas a história tem que se passar nos dias atuais. Feita essa primeira interpretação, é o momento de contextualização. Nessa etapa é importante realizar pesquisas participativas que levem os alunos a f azer registros. Cosson propõe
sete
contextualizações:
teórica,
histórica,
estilística,
poética,
crítica,
presentificadora, temática.
A segunda interpretação requer leitura aprofundada de um dos aspectos da obra. Tem por objetivo a leitura aprofundada dos aspectos, do texto, podendo centrar-se sobre uma personagem, um tema, um traço estilístico, questões contemporâneas, etc. Trata-se de uma ligação com a contextualização. Por fim, na expansão busca destacar a possibilidade de diálogo que toda obra articula com os textos que a precederam ou que lhes são contemporâneos ou posteriores. No conto de Machado, podemos constatar, a intertextualidade é aspecto fundamental. Essa intertextualidade se manifesta de forma que, no texto, se configura um diálogo irreverente e muito interessante entre o sistema literário brasileiro e o europeu.
Considerações finais Nesse artigo, apontamos possibilidades metodológicas para o professor em seu afetivo exercício docente. São apenas sugestões que o professor pode utilizar em sala na íntegra ou associá-las a outras propostas, de acordo com a sua criatividade e interesse da turma. Sem dúvida alguma, sabemos que as aulas de literatura podem ficar mais interessantes se o professor motivar seus alunos, seja na maneira como os convida para a leitura do texto, seja nas estratégias que utiliza para abordar a leitura empreendida. O professor deve promover oportunidades para que haja intenso diálogo entre leitor e texto, especialmente aproximando as questões relativas aos saberes e experiências que se dão
no plano ficcional da vivência real de seus alunos. Para conseguir tal intento, seria interessante que o professor buscasse conhecer e aplicar novas metodologias que dinamizassem as suas aulas de literatura, como a sugestão que acabamos de apresentar. Acreditamos poder, a partir desses dados e da reflexão sobre a sala de aula, indicar rumos que auxiliem os professores interessados na formação do leitor de literatura a pensar suas práticas: o que delas deve ser mantido, o que precisa ser reformulado, o que se precisa, ainda, construir.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2011. CÂNDIDO, Antônio. Vários Escritos. O Direito à Literatura. 3ª Edição. São Paulo: Duas Cidades, 1995. KATO, Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 1986. (Série Fundamentos) PAULINO, Graça. Letramento literário: por vielas e alamedas . Revista da FACED, n.5, 2001. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. TFOUNI, Leda Verdiani. Alfabetização e letramento. São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção Questões de nossa época) TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. BARBOSA, Begma Tavares. Letramento literário: escolha de jovens leitores. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/32ra/arquivos/trabalhos/GT10-5527-Int.pdf , acessado em 19/08/2012.