Setembro 2015 www.sciam.com.br
Outras espécies humanas habitaram o planeta, mas só a nossa o dominou. Uma nova hipótese explica por quê
Como
CONQUISTAMOS o PLANETA EXOPLANETAS
Astrônomos buscam imagens de novos gigantes fora do Sistema Solar
9 771676 979006
ISSN 1676-9791
00160
ANO 14 | no 160 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90
EDUCAÇÃO
Estudos propõem avaliações que evitam ansiedade e prejuízos ao aprendizado
NEUROCIÊNCIA
Os ruídos do dia a dia podem gerar danos auditivos irreparáveis
N A C A PA 20
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-9791
ANO 14 | no 160 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90
BRASIL
Setembro 2015 | N o 160
Outras espécies humanas habitaram o planeta, mas só a nossa o dominou. Uma nova hipótese explica por quê
Como
CONQUISTAMOS o PLANETA EXOPLANETAS
Astrônomos buscam imagens de novos gigantes fora do Sistema Solar
EDUCAÇÃO
Estudos propõem aval ações que ev tam ansiedade e p ejuízos ao aprend zado
NEUROCIÊNCIA
Os u dos do dia a dia podem gerar danos audit vos irreparáve s
Há cerca de 70 mil anos, nossos ancestrais Homo sapiens deixaram seu continente natal, a África, e deram início à sua expansão pelo planeta. Outras espécies de hominídeos, como os neandertais, já haviam se estabelecido na Ásia e na Europa, mas a nossa sobreviveu e colonizou toda a Terra. Paleoantropólogos têm novas explicações para esse processo. Imagem: Pavel Suprun
sumário
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EVOLUÇ Ã O
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A espécie mais invasiva de todas Outras espécies de hominídeos habitaram a Terra. Mas a nossa é a única que colonizou todo o planeta. Uma nova hipótese explica por quê. Curtis W. Marean
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C IÊNC IA ES PAC IA L
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Procurando jupiteres Duas equipes rivais de astrônomos competem para obter imagens inéditas de planetas gigantes ao redor de outras estrelas. Suas descobertas poderão mudar o futuro da busca por planetas. Lee Billings
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NEUROC IÊNC IA
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A perda auditiva oculta Britadeiras, shows e outras fontes de ruídos podem provocar danos irreparáveis aos ouvidos de maneiras inesperadas. M. Charles Liberman C L IMA
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Mudança de estado Seca pode fazer a Califórnia ficar como o Arizona. Dan Baum
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PA R A FORMA R O ESTUDA NTE D O S ÉCULO 2 1
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Uma nova visão para exames Muitas vezes avaliações escolares aumentam a ansiedade e atrapalham o aprendizado. Uma nova pesquisa mostra como reverter essa tendência. Annie Murphy Paul
SE Ç ÕE S
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7
Carta do editor Cartas C IÊNC IA EM PAUTA
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Médicos, armas e balas perdidas Leis que impedem médicos de discutir a posse e a segurança de armas de fogo com pacientes são prejudiciais à saúde pública. Pelo Conselho de Editores da Scientific American FÓRUM
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Caubóis do espaço Chauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre voos espaciais tripulados. Linda Billings
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Avanços
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Memória
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Balé e vertigem
C IÊNC IA DA S A ÚD E
Pesquisas com bailarinos podem ajudar a desenvolver novas tentativas para amenizar problema que atormenta milhões de pessoas durante anos. David Noonan
9
TEC NOLOGIA
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A geração da tela sensível ao toque Os dispositivos móveis estão prejudicando as crianças? A ciência avalia. David Pogue OBS ERVATÓRIO
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A teoria da relatividade métrica Cada corpo tem sua geometria particular na qual ele é um corpo livre de ações externas. Mario Novello D ES A FIOS D O COS MOS & C ÈU D O MÊS
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A caçada às ondas gravitacionais Eclipse lunar total será visível em todo o Brasil Salvador Nogueira C IÊNC IA EM GRÁ FICO
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Bactéria resistente no estômago Uma cepa difícil de combater a Shigella fincou âncora nos Estados Unidos. Rebecca Harrington EDIÇÃO
DIN ESPECIAL
OSSAUR
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IÇÃO ESPE CIAL DIN
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ESPECIAIS Continuam à venda pela internet os dois volumes de “Dinossauros”, edição especial da Scientific American Brasil. Entre os artigos, há o que demonstra a relação entre as alterações causadas pelo nascimento do Oceano Atlântico e a preservação dos fósseis na região equatorial brasileira. Na Bacia do Araripe, em Pernambuco, as condições de mineralização especialmente favoráveis de espécimes animais têm permitido observar detalhes da paleofauna. Mas a região convive com o comércio clandestino de fósseis que ameaça os esforços de conhecimento. Há também
R OSS SAURO AU S ER O SES VA D O S DBIN EM P R artigos sobre os desafios climáticos enfrentados por dinossauros da Austrália, as descobertas recentes de sangu desses animais e ainda o possível conv vio entre eles e aves. Estudos sobre a evolução das penas e um relato da história da paleontologia no Brasil também fazem parte da edição, que pode ser adquirida na Loja Segmento. Basta entrar no site site http://www.lojasegmento.com.br mister oso Assassino cova coletiva, produziu es de anos há 70 milhõ rto da em dese Armadilha rva o estilo ocupantes China prese antigos de seus m s questiona os Paradoxo primeiro — veio penas? que o ou suas pássaros ge de rocha emer Sangue teoria sobre e questiona o orgânica a fossilizaçã
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CARTA DO EDITOR $Dùà `¹ 5ùD´ é editor da SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL.
Quem não somos nós?
A
JON FOSTER
propensão geneticamente determinada para a cooperação é uma hipótese considerada já há algum tempo por estudiosos da evolução humana para explicar como nossa espécie conseguiu se expandir para todo o planeta. O artigo do paleoantropólogo Curtis Marean, da Universidade Estadual do Arizona, destacado na capa da presente edição de Scientific American Brasil, apresenta um dos mais recentes desdobramentos dessa hipótese, que é sua vinculação à consistente conjectura referente à habilidade desenvolvida pelo Homo sapiens para produzir lanças, dardos, flechas e outras armas de arremesso. O autor, que também é diretor associado do Instituto de Origens Humanas em sua universidade, atuou durante muitos anos em sítios paleontológicos no litoral da África do Sul, região que cada vez mais tem sido apontada como palco de uma etapa decisiva do desenvolvimento das habilidades cognitivas de nossa espécie. Entre as hipóteses apresentadas anteriormente sobre a cooperação, vale destacar o trabalho desenvolvido no final do século 20 pelo etólogo britânico Robert Hinde, professor de neurociência comportamental da Universidade de Cambridge, cuja abordagem é certamente não só compatível, mas também complementar à tese de Marean, apesar de ter sido formulada em outro contexto. Em 1999 esse pesquisador consolidou e divulgou seus estudos sobre o tema em seu livro Why gods persist: a scientific approach to religion (“Por que os deuses persistem: uma abordagem científica da religião”, em inglês). Nessa obra, o autor ressalta que as chamadas “características psicológicas panculturais” são biologicamente adaptativas. Diferentemente do que o título do livro de Hinde possa suge-
rir, sua abordagem não consiste em legitimar deuses e crenças. A obra, na verdade, percorre os avanços de áreas do conhecimento essenciais para a evolução humana – entre elas a paleontologia, a genética, as neurociências e a psicologia evolutiva — para compreender as condições de origem da religião e sua função no contexto do desenvolvimento e da manutenção de comportamentos de altruísmo e de reciprocidade essenciais para a preservação do Homo sapiens. Esse modelo explicativo não tem como consequência o que poderia ser chamado de propensão humana para a religião, que tornaria o ateísmo praticamente impossível. Na verdade, trata-se de compreender a configuração evolutiva, assimilada geneticamente em nossa estrutura psíquica, relacionada a esses comportamentos que são essenciais para a fé. Uma excelente e sintética apresentação em português dessa obra de Hinde foi feita pelo físico Eduardo Rodrigues Cruz, professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em seu livro A persistência dos deuses (Editora Unesp, 2004). Enfim, da mesma forma que para Marean, para Hinde a cooperação foi decisiva para nossa espécie ter sobrevivido. Ambos os trabalhos são importantes para sabermos quem somos nós. Ao levar em consideração esses e outros fatores evolutivos que foram essenciais para chegarmos aonde chegamos, torna-se cada vez mais importante compreender melhor outros hominídeos que desapareceram e hoje sabemos não terem sido nossos ancestrais , como os neandertais. Como bem disse o paleoantropólogo espanhol Juan Luis Arsuaga em seu livro O colar do neandertal (Editora Globo, 2005), “quem não somos nós?”.
ALGUNS COLABORADORES ´´y $ùàÈĂ 0Dù¨ é colaboradora frequente do The New York Times, e das revistas Time e Slate. É autora de The cult of personality testing e de Origins, que foi incluído na lista dos 100 Livros Notáveis de 2010 do The New York Times. ùàïå =Î $DàyD´ é professor da Escola de Evolução Humana e Mudança Social da Universidade Estadual do Arizona, onde também é diretor associado do Instituto de Origens Humanas.
D´ Dù® é escritor; sua obra mais recente é Gun guys: A road trip. Ex-redator da equipe da revista The New Yorker, já fez reportagens em cinco continentes.
"yy ¨¨´å é editor associado da IY_[dj_ÒY American. Ele é autor de Five billion years of solitude: The search for life among the stars (Current/Penguin Group, 2013).
Dÿm %¹¹´D´j autor de “Epidemia não tão silenciosa”, 3`y´ï` ®yà`D´ àDå¨, ed. 158, julho de 2015, é escritor freelance especializado em ciência e medicina.
"´mD ¨¨´å tem doutorado e faz pesquisas sobre ciência das comunicações em Washington, D. C. Escreve sobre história de astrobiologia, voos espaciais tripulados e operações de relações públicas da Nasa.
Dÿm 0¹ùy é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na PBS.
$D๠%¹ÿy¨¨¹ é pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. $Î Dà¨yå "Uyà®D´ é professor de otologia e laringologia na Escola de Medicina de Harvard e diretor dos Laboratórios Eaton-Peabody no Hospital de Olhos e Ouvidos de Massachusetts. 3D¨ÿDm¹à %¹ùyàD é jornalista de ciência especializado em astronomia e astronáutica.
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CARTAS
[email protected] Agosto 2015 www sc am c m br
Brasil
DO LOBO AO CÃO
Mariana Salles, São Bernardo do Campo (SP), por e-mail
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Adorei o artigo “Do lobo ao cão” , da edição de agosto [159]. São impressionantes os aspectos evolutivos apresentados nessa matéria.
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ANO 13 | no 159 59 | R$ 13,90 3 90 | Portugal Po tugal € 4,90 4 0
DO LOBO AO CÃO Novas pistas sobre como o melhor amigo do homem evoluiu a partir de uma espécie feroz e selvagem
MATEMÁTICA
A luta para um teorema gigantesco não se tornar ncompreensível
ENERGIA
Subst tuto do s lício promete cé ulas solares Dä UDßDîDä x x`x³îxä
ASTROFÍSICA
Matéria escura pode ser ma s estranha do que ísicos imaginam
EDIÇÃO 159
TAMANHO DAS LETRAS
Muito oportunas, tanto a sugestão do prof. William Daher [carta publicada na ed. 159], quanto a decisão da Editora em aumentar o corpo da letra da Scientific American. Também sou leitor assíduo da publicação, e já estava notando cansaço visual. Espero que a mudança permaneça. Eduardo Higino da Silva Filho, Recife (PE), por e-mail
LUZ DO UNIVERSO
Sou graduando em física pela Universidade Federal de Itajubá e me sinto absolutamente encantado pela revista. E sou sincero quando digo que o artigo “Toda a Luz que Sempre Existiu”, da edição de julho [ed. 158], é maravilhoso, me senti fascinado com a abordagem da medição da luz extragaláctica de fundo utilizando a radiação gama emitida por blazares. Parabéns aos pesquisadores e à equipe de edição! Daniel Ferreira, Itajubá (MG), por e-mail
Sou licenciado em física pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), professor da rede estadual do Ceará, representante da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica pela EEM Maria Menezes Cristino, assinante de Sciam Brasil desde 2009 e leitor desde 2005. O artigo “Toda a Luz que Sempre Existiu” mostra o quanto é grande a curiosidade do homem que o faz mergulhar através de imensidões espaciais e temporais até os confins do Cosmos para descobrir seus mistérios Parabéns a todos que fazem a revista. Paulo Souza, Coreaú (CE), por e-mail
CORREÇÕES
Excelente o artigo “O Incrível Cérebro Adolescente” publicado na edição de julho [158]. Apenas um pequeno detalhe: na teoria dos grafos, o termo “edge” , em inglês, é traduzido como “aresta” e não “borda”, como aparece no texto. Arestas representam as ligações entre dois vértices. Renato Tinós, Ribeirão Preto (SP), por e-mail
Caros amigos, na edição de julho acredito haver um erro na Carta ao Editor na grafia do hormônio do amor. O correto seria “ocitocina” ou “oxitocina”, e não “citoxina”. O novo design ficou muito melhor e mais agradável de ler. Parabéns pelo excelente trabalho. Vocês são reformadores sociais. Diego Adão Fanti Silva, São Paulo (SP), por e-mail
Nota da Redação: Agradecemos pela atenciosa colaboração do professor Renato Tinós, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, e do médico Diego Adão Fanti Silva, da Universidade Federal de São Paulo. O nome do hormônio foi corretamente grafado como “oxitocina” na pág. 33, mas não notamos a alteração do mesmo termo pelo corretor ortográfico na Carta do Editor. POR RESTRIÇÃO DE ESPAÇO, A REDAÇÃO TOMA A LIBERDADE DE ABREVIAR CARTAS MAIS EXTENSAS.
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PRESIDENTE Edimilson Cardial DIRETORIA Carolina Martinez, Marcio Cardial, Rita Martinez e Rubem Barros ANO 14 – Nº 160 SETEMBRO DE 2015 ISSN 1676979-1 DIRETOR EDITORIAL Rubem Barros EDITOR Maurício Tuffani EDITOR DE ARTE João Marcelo Simões ESTAGIÁRIA Jullyanna Salles (redação) COLABORADORES Luiz Roberto Malta e Maria Stella Valli (revisão); Aracy Mendes da Costa, Marcio G. B. Avellar, Regina Cardeal, Suzana Schindler (tradução) PROCESSAMENTO DE IMAGEM Paulo Cesar Salgado PRODUÇÃO GRÁFICA Sidney Luiz dos Santos PUBLICIDADE E PROJETOS ESPECIAIS GERENTE Almir Lopes
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Michael Moyer, George Musser, Gary Stix, Kate Wong DESIGN DIRECTOR: Michael Mrak PHOTOGRAPHY EDITOR: Monica Bradley PRESIDENT: Steven Inchcoombe EXECUTIVE VICE-PRESIDENT: Michael Florek SCIENTIFIC AMERICAN ON-LINE Visite nosso site e participe de nossas redes sociais digitais. www.sciam.com.br www.facebook.com/sciambrasil www.twitter.com/sciambrasil REDAÇÃO Comentários sobre o conteúdo editorial, sugestões, críticas às matérias e releases.
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CIÊNCIA EM PAUTA PELOS EDITORES Opinião e análise do Conselho Editorial da 2_w²í_ Ĉ¬wÞ_C²
Médicos, armas e balas perdidas Leis que impedem médicos de discutir a posse e a segurança de armas de fogo com pacientes são prejudiciais à saúde pública Nós, nos EUA, nos queixamos de que nossos médicos não conhecem seus pacientes: consultas médicas no consultório duram poucos minutos, as conversas são rápidas e exames de alta tecnologia substituem a interlocução. Agora, perversamente, um estado aprovou uma lei que proíbe expressamente os médicos de fazer certas perguntas sobre saúde ou estilo de vida dos pacientes. As questões se referem a uso de armas e segurança. Este ano o Tribunal de Apelações da 11ª Jurisdição dos EUA ouviu o argumento do estado da Flórida de que médicos não podem perguntar ao paciente se ele é dono de algum tipo de arma — inclusive questões de segurança e acesso a crianças — a menos que acreditem que essa informação será relevante para o atendimento do paciente. Se a lei for aprovada, médicos não poderão conversar com pacientes sobre uma das maiores ameaças à saúde pública nos EUA — armas de fogo estavam envolvidas em mais de 11 mil homicídios, 21 mil suicídios e 500 mortes acidentais em 2013, segundo os Centros de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA. Excluir esse tópico das conversas entre médico e paciente é um passo perigoso. A posse de arma de fogo nos EUA é um direito protegido por lei, na Segunda Emenda da Constituição. Em 2011 o governador da Flórida, Rick Scott, e a Assembleia Legislativa do estado entenderam que esse direito estava sendo infringido por médicos. Scott Ilustração de Thomas Fuchs
assinou a lei da Privacidade dos Portadores de Armas, que autorizava os pacientes a entrar com queixa contra o Estado se entendessem que os médicos estavam sendo muito enxeridos. Robert Young, do grupo Médicos pela Propriedade Responsável de Armas, que apoiou a lei, afirmou: “Muitos cidadãos da Flórida já tiveram más experiências com médicos que os aconselharam a se livrar de suas armas de fogo, quando muitos pacientes que possuem e usam armas sabem que isso não está correto”. E acrescentou que “muitos donos de armas também temem pela criação de bases de dados de proprietários porque isso poderia ser mais um passo para facilitar o confisco, no futuro”. Os médicos da Flórida contra-atacam afirmando que a lei os priva de seu direito constitucional, que a Primeira Emenda garante, de liberdade de expressão e que essa privação os impede de ajudar os pacientes. Essa objeção conta com o apoio da Associação Médica Americana e outros grupos de médicos. A Primeira Emenda tem papel importante nisso: um juiz que ouviu o caso observou que tribunais têm afirmado reiteradamente que a comunicação livre e aberta entre médico e paciente é essencial para a medicina e o bem comum. (O juiz também comentou que, ao criar a lei, legisladores da Flórida se basearam em relatos informais e não em dados ou estudos concretos.) É dever de médicos oferecer aconselhamento não apenas sobre regimes e exercícios, mas também sobre prevenção de acidentes relacionados ao uso de embarcações, bicicletas e motocicletas, observou Stuart Himmelstein, num processo judicial, quando foi diretor do Conselho Regional de Medicina da Flórida. Aconselhar um motociclista a usar capacete não é diferente de aconselhar um dono de arma de fogo a guardá-la em segurança. Comportamento seguro com armas se refletirá na saúde, não só de seus proprietários: segundo um estudo publicado no JAMA Pediatrics em 1996, 89% dos ferimentos acidentais associados a armas de fogo com crianças acontecem em casa, geralmente quando um jovem apanha uma arma carregada sem a devida atenção de pessoas autorizadas. Preocupações de que médicos poderiam criar bases de dados de donos de armas também são descabidas; eles já são explicitamente proibidos de manter registros desse tipo por uma lei federal sobre assistência médica economicamente acessível. O processo sobre as leis da Flórida, que se chamou “Médicos vs. Glock”, tem circulado por vários tribunais nos últimos anos, com alguns juízes cumprindo a lei e outros a contrariando. Enquanto isso, Indiana e Texas examinaram suas próprias versões no último trimestre. A 11ª Jurisdição deveria seguir as evidências e derrubar a lei da Flórida este ano, uma atitude que poderia evitar que outros legisladores se intrometessem entre pacientes e seus médicos. Ninguém quer tirar direitos constitucionais dos donos de armas. Mas a Segunda Emenda não protege nem eles, nem pessoas inocentes de balas. www.sciam.com.br 7
FÓRUM
LINDA BILLINGS
Ilustração de Ross MacDonald
Fronteiras da ciência comentadas por especialistas
Caubóis do espaço Chauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre voos espaciais tripulados Na história dos voos espaciais tripulados dos EUA, uma retórica tipicamente norte-americana, baseada no ideário do destino expansionista, tem dominado o discurso público e oficial. Tome-se como exemplo a Space Frontier Foundation, grupo sem fins lucrativos “dedicado à abertura das fronteiras do espaço à colonização o mais rapidamente possível... criando uma vida mais livre e próspera para cada geração com o uso dos recursos materiais e energéticos ilimitados do espaço”. Essa retórica revela uma ideologia sobre os voos espaciais – a crença no direito da nação de expandir seus limites, colonizar outras terras e explorar seus recursos. Essa ideologia se baseia em alguns pressupostos sobre o papel dos EUA na comunidade global e o caráter nacional norte-americano. Segundo ela, o país precisa continuar sendo o “número um” na comunidade mundial, desempenhando o papel de líder político, econômico, científico, tecnológico e moral, disseminando o capitalismo democrático. A metáfora da fronteira, com sua imagem associada ao pioneirismo na demarcação de terreno, cultivo e domesticação, se agiganta dentro desse sistema de crenças. A retórica da viagem espacial humana fortalece a concepção do espaço sideral como um lugar livre e recursos ilimitados – uma fronteira espacial. De John F. Kennedy a Barack Obama, os presidentes dos EUA abraçaram essa retórica de conquista e expansão. Da mesma forma o fizeram administradores da Nasa, membros do Congresso e comissões de especialistas ao longo das décadas. 8 Scientific American Brasil | Setembro 2015
"´mD ¨¨´åtem doutorado e faz pesquisas sobre ciência das comunicações em Washington D. C. Ela escreve sobre história de astrobiologia, voos espaciais tripulados e operações de relações públicas da Nasa. Possui um blog em http://doctorlinda.wordpress.com
Eu ouvi uma autoridade da Casa Branca defender a ideia de uma industrialização em larga escala da Lua como “uma visão de longo prazo fenomenalmente inspiradora” para o programa espacial. Aberta só para convidados em fevereiro, em Washington, a Cúpula Nacional sobre Pioneirismo Espacial rendeu uma declaração de que “o objetivo de longo prazo do programa de voo e exploração espacial tripulado dos EUA é expandir a presença humana permanente além da órbita baixa da Terra e fazer isso para permitir a colonização humana e uma próspera economia espacial”. Um dos grupos participantes da reunião, o Tea Party in Space, defende a “aplicação dos princípios fundamentais de responsabilidade fiscal, governo limitado e mercados livres para a rápida e permanente expansão da civilização americana na fronteira espacial”. A retórica importa. Mais de 30 anos de observações próprias, juntamente com resultados de pesquisas de opinião pública em tantos anos, indicam que a comunidade de defensores da exploração humana dos EUA é predominantemente branca e masculina. A retórica da conquista e exploração de fronteiras pode atrair essa faixa demográfica, mas duvido que exerça um fascínio mais amplo. As mulheres constituem metade da população mundial. A maioria da população da Terra não é norte-americana, europeia ou “branca”. Em meus muitos anos de críticas à ideologia conhecida desde o século 19 nos EUA como Destino Manifesto, pessoas de outros países me disseram reiteradas vezes como a retórica dessa crença os deixa desconcertados, quando não ofendidos. Outras nações exploradoras do espaço adotam uma postura mais pragmática em seus projetos. No prefácio do Catálogo Espacial Europeu 2015, Jean-Jacques Dordain, diretor-geral da Agência Espacial Europeia, escreveu que o objetivo do órgão é “manter seu papel como uma das principais instituições espaciais do mundo, com foco nas relações-chave com seus parceiros e na eficiência”. O slogan da Agência de Exploração Aeroespacial do Japão é “explorar para alcançar”, expressando sua “filosofia de se tornar uma agência para alcançar uma sociedade segura e afluente”. Em um momento em que os Estados Unidos precisam construir parcerias sustentáveis com outros países para continuar explorando o espaço, “EUA, Número Um!” não é uma boa maneira de iniciar conversações produtivas. Em um estudo de 2012, Jacques Blamont, diretor fundador da agência espacial francesa CNES, argumentou que as pessoas estão perdendo o interesse na exploração tripulada do espaço “porque países exploradores e, sobretudo, os EUA se apegaram a modelos de pensamento ultrapassados da Guerra Fria. A atitude de o país ‘comandar’ seus parceiros internacionais não vai mais funcionar”. Está na hora de os defensores dos voos espaciais tripulados reexaminarem sua retórica – para refletir sobre o que essas palavras significam para a vasta maioria das pessoas que não são americanas, brancas, do sexo masculino nem estão interessadas em se mudar para Marte.
AVANÇOS Conquistas em ciência, tecnologia e medicina
Terremotos no Himalaia (fotos acima) poderiam romper barragens e levar a cenários catastróficos como os vistos em 2013 no povoado indiano de Kedarnath, quando as chuvas de monções levaram uma represa a transpor suas margens (fotos abaixo).
Desastre à vista no Himalaia China e Índia, os países mais populosos do mundo, constroem centenas de barragens em uma zona geológica violentamente ativa No início deste ano, terremotos no Nepal destruíram milhares de edifícios, mataram mais de 8.500 pessoas e feriram outras centenas de milhares. Os sismos, de magnitude de 7,8 e 7,3 na Escala Richter, também danificaram ou provocaram rachaduras em diversas hidrelétricas, destacando outro perigo iminente: o rompimento de barragens. Mais de 600 dessas massivas estruturas foram construídas ou estão em algum estágio de construção ou planejamento na cordilheira geologica-
mente ativa do Himalaia, porém muitas provavelmente não são nem foram projetadas para resistir aos piores terremotos que poderiam atingir a região, de acordo com vários sismólogos e engenheiros civis. Se uma dessas barragens ceder, reservatórios enormes, do tamanho de lagos, poderiam se esvaziar sobre povoados e cidades rios abaixo. Um colapso da barragem de Tehri, na região central do Himalaia, por exemplo, construída sobre uma falha geológica, liberaria um paredão de água de
cerca de 200 metros de altura que se abateria violentamente sobre duas pequenas cidades. Ao todo, a inundação afetaria seis centros urbanos com uma população combinada de dois milhões de pessoas. De fato, modelos sismológicos mostram que terremotos mais poderosos possivelmente abalarão o Himalaia nas próximas décadas. O subcontinente indiano está se empurrando à razão de 1,8 metro por século sob o planalto do Tibete, mas encontra resistência e fica “preso” regularmente; quando a obstrução cede, uma parte da placa tectônica tibetana avança alguns metros para o sul e libera a energia acumulada em um terremoto. Os abalos sísmicos no Nepal também desestabilizaram a região a oeste, observa Laurent Bollinger, www.sciam.com.br 9
LORENZO MOSCIA Redux Pictures (acima, à esquerda); BULENT DORUK Getty Images (acima, à direita); GETTY IMAGES (abaixo, à esquerda); CORBIS (abaixo, à direita)
G EOLOGI A
AVANÇOS
A barragem de Tehri, na Índia, bloqueia o Rio Bhagirathi, um dos principais afluentes do Ganges.
ções para padrões estruturais. A Probe International, uma organização de pesquisa ambiental canadense, relata que os projetistas da hidrelétrica chinesa das Três Gargantas se basearam “na interpretação mais otimista possível” de abalos sísmicos. Da mesma forma, a barragem de Tehri, na Índia, nunca passou por simulações realistas, de acordo com Gaur, que atuou em seu comitê de supervisão, juntamente com o engenheiro civil R. N. Iyengar, anteriormente do Instituto Indiano de Ciência, em Bangalore. Cientistas e engenheiros associados ao governo alegam que a estrutura de Tehri pode sobreviver a um terremoto de magnitude 8,5, mas especialistas independentes não são tão otimistas. Qualquer uma de centenas de barragens poderia correr o risco de se romper quando ocorrer o próximo grande abalo. A corrupção local pode complicar ainda mais as coisas ao permitir que empreiteiros utilizem, impunemente, materiais
B¹´Då my àùÈïùàD my ïà{å ïyàày®¹ï¹å å´`Dïÿ¹å (1905, 1934 e 1950) "D`ù´D å å®`D ®È¹àïD´ïy D¨D y¹¨º`D
DààDy´å åy¨y`¹´DmDå Ê`¹´`¨ù mDåj Èà¹È¹åïDåË
1905: Magnitude 7,9
CHINA
1950: Magnitude 8,6
25 de abril de 2015: Magnitude 7,8
Barragem de Tehri
Kathmandu
N E PA L BUTÃO
ÍNDIA
12 de maio de 2015: Magnitude 7,3 1934: Magnitude 8,0 BANGLADESH
Sismólogos esperam futuros terremotos de magnitude 8,0 ou mais no Himalaia. O risco de grandes abalos é muito elevado em falhas geológicas não afetadas recentemente por terremotos. Um subconjunto de barragens é mostrado acima. 10 Scientific American Brasil | Setembro 2015
abaixo do padrão ou se desviem dos parâmetros obrigatórios. Um estudo de 2011, publicado na Nature, concluiu que a esmagadora maioria das mortes decorrentes do colapso de construções em terremotos ocorre em países corruptos. (A Scientific American integra a Springer Nature.) Escândalos envolvendo projetos de hidrelétricas agitaram tanto a Índia quanto a China, ao ponto de que o ex-premiê chinês, Zhu Rongji, cunhou o sugestivo termo “construção tofu” para descrever um dique defeituoso. Um pequeno grupo de cientistas assumiu a liderança dos argumentos em prol de avaliações realistas e explícitas para proteger a população da região, embora somente com sucesso limitado. Em uma ação judicial movida por ambientalistas contra a barragem de Tehri, a Suprema Corte da Índia apoiou cientistas do governo por descartarem preocupações de segurança. E, em 2012, o sismólogo Roger Bilham da Universidade do Colorado, em Boulder, foi deportado do aeroporto de Nova Délhi, em parte, segundo ele, por sua previsão indesejada de que o Himalaia pode sofrer um terremoto de magnitude 9,0. Bilham sustenta que, desde então, o governo indiano tem desencorajado colaborações estrangeiras em sismologia. Por enquanto, tudo o que as partes interessadas podem fazer é chamar a atenção para o problema. “Luz solar é o melhor desinfetante”, diz Peter Bosshard da International Rivers em Berkeley, na Califórnia. “Sem escrutínio público, é muito mais fácil escapar das consequências de optar pelo caminho mais fácil.” Em vista dos riscos, será necessário mais que transparência ou “luz solar”: o próximo terremoto na área pode resultar em um tsunami “feito pelo homem”. —Madhusree Mukerjee Mapa de Terra Carta
HANS GEORG ROTH Corbis (acima)
sismólogo na Comissão de Energia Atômica e Energias Alternativas (CEA) da França. Essa instabilidade geológica provavelmente acabará produzindo mais cedo que tarde um grande terremoto, definido como um sismo de magnitude de 8,0 ou mais. Outros estudos indicam que os terremotos recentes só liberaram uma pequena fração do estresse, ou da pressão desta falha geológica, que deverá se acomodar com abalos de magnitude igual ou maior. “Não se pode prever se eles irromperão agora [com magnitude] 8 ou se esperarão mais 200 anos para então explodir com 8,7”, salienta Vinod K. Gaur, sismólogo do Instituto CISR Fourth Paradigm (CSIR-4PI, em inglês), em Bangalore, na Índia. Essas regiões sismicamente ativas se localizam exatamente onde centenas de barragens de 15 metros ou mais estão em construção ou planejamento; a maioria para fornecer energia hidrelétrica à Índia ou à China. Qualquer estrutura que esteja sendo erguida nesse boom financiado pelo governo, assim com as já concluídas, precisa ser capaz de resistir ao forte tremor do solo no caso de um terremoto extremo, adverte Martin Wieland da Comissão Internacional de Grandes Barragens, um grupo de engenheiros que faz recomenda-
PALAVRAS DE SOBREVIVENTES
E N E RG I A N UCL E A R
Relembrando a explosão Sobreviventes dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki na 2ª Guerra Mundial dão depoimentos por ocasião do 70º aniversário das detonações Em agosto, há 70 anos, bombas atômicas dos EUA destruíram as cidades de Hiroshima e Nagasaki, matando cerca de 200 mil japoneses no até agora único uso bélico de armas nucleares do mundo. Muitos dos que sobreviveram às explosões iniciais morreram pouco após ferimentos, queimaduras e doenças provocadas pela radiação. A escala da destruição gerou um debate persistente sobre se o uso dessas armas jamais seria justificável e até que ponto cientistas são moralmente responsáveis por consequências de suas descobertas. Hoje há cerca de 22 mil bombas atômicas em pelo menos oito países, segundo a ONU. Mais de 65 nações apoiam uma proibição mundial de armas nucleares. Muitos dos países que têm esses armamentos, inclusive os EUA, reduziram seus arsenais, embora continuem aprimorando sua tecnologia nuclear. Vários hibakusha (sobreviventes da explosão), e seus familiares visitaram o escritório da Scientific American em Nova York durante uma viagem para participar da conferência 2015 de revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, de 1970. Ao lado, trechos editados da conversa traduzida por intérprete. —Clara Moskowitz
Em 8 de agosto a bomba foi jogada em Nagasaki. Eu trabalhava para o Estaleiro Nagasaki. Às 11h02 parecia que havia um grande sol ardente sobre o edifício. Cinco ou seis segundos depois uma enorme explosão sacudiu o prédio e lançou estilhaços de vidro por toda parte. As pessoas que estavam perto das janelas foram atingidas por vidro. Elas tinham tantos buracos nelas que pareciam romãs... Muitas pessoas se moviam laboriosa e lentamente para a frente. Seus rostos estavam tão queimados que pareciam bolas de rúgbi. Suas mãos estavam inchadas, e parecia que elas usavam luvas de beiseU¸§ÍxäøDä
D`xäxT¸äÇx³lDÇx§xE`lDÍ1øD³l¸³D§x³îx`xøxD¸xø dormitório em Urakami, ele estava completamente queimado, e todas as pessoas lá dentro tinham sido mortas. – Takamitsu Nakayama tinha 16 anos na ocasião do bombardeio www.sciam.com.br 11
GETTY IMAGES (vista aérea e nuvem em forma de cogumelo); AP PHOTO (vista do chão); ELIENE AUGENBRAUN (retratos de sobreviventes)
O mundo testemunhou um nível de destruição nunca visto antes com o bombardeio nuclear de Hiroshima em 6 de agosto de 1945.
[Após o bombardeio de Hiroshima], decidimos deixar a cidade. Nós nos refugiamos em vinhedos. Como não havia alimentos, `¸³äø¸äøþDäþxßlxäjx`D¸ä`¸ febre, diarreia e vômitos. Minha mãe pensou que era disenteria. Agora acho que foi por envenenamento radioativo... Muitas Çxää¸DäþßDäxø䧸ä¸ßßxßlx§xø`xmia ou câncer muito jovens, na casa dos 40 anos. Eu me preocupo comigo, e tamUy`¸xø䧸äxDäDùlxlx§xä. – Tamiko Nishimoto tinha quatro anos quando a bomba caiu a apenas 2,3 km de sua casa
AVANÇOS
E N G E N H AR I A
A câmara com o campo magnético mais fraco da Terra Cinco perguntas que ela poderia responder
CORTESIA DE ASTRID ECKERT Universidade Técnica de Munique
Recentemente pesquisadores iniciaram experimentos em um recinto (abaixo) que tem o campo magnético mais fraco em nosso Sistema Solar — e estão empolgados. Construída por físicos da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, a câmara reduz a um milionésimo a intensidade de campos magnéticos ambientes, um aprimoramento 10 vezes superior a qualquer estrutura feita pelo homem, registrando até menos atividade desse tipo que no vasto espaço vazio entre planetas. O isolamento, ou blindagem, da instalação consiste em camadas de um metal altamente magnetizável que “prende”, ou captura campos magnéticos para que não consigam passar para o interior da estrutura. Lá dentro podem ocorrer experimentos ultraprecisos, com interferência mínima dos efeitos da Terra. Portanto, a câmara oferece uma oportunidade única para investigar questões importantes em física, biologia e medicina. —Sarah Lewin
G E NÉ TI C A
Atenção, cervejeiros lager! Cientistas conseguem produzir novas leveduras Cervejas tipo lager são sem graça. Quando você abre uma lata, saboreia o produto de cepas estreitamente aparentadas de Saccharomyces pastorianus. Sua variedade genética empalidece em comparação com o grupo pequeno, mas diverso, de leveduras usadas para produzir cerveja tipo ale e vinho, que resultam em vários sabores. Lagers têm mantido sua aparência e sabor basicamente inalterados há séculos porque o cultivo de cepas com novas características de fermentação e sabores provou ser difícil; os híbridos eram estéreis. Mas isso está prestes a mudar. 12 Scientific American Brasil | Setembro 2015
1 Por que há mais matéria que antimatéria no Universo? Os físicos observarão se as propriedades magnéticas de um nêutron se comportam de maneira uniforme na presença de campos elétricos intensos e aqueles precisamente controlados. Discrepâncias acentuadas no equilíbrio de partículas, como diferença de carga, poderiam indicar como ocorreu a assimetria entre matéria e antimatéria. 2 Monopolos magnéticos existem? Se houver partículas com um único polo lá fora, elas poderão atravessar o escudo protetor da câmara. Sem interferência, sensores registrariam a atividade magnética ³îx³ä`DlDÍ 3 Do que é feita a matéria escura? Os pesquisadores pretendem monitorar a
câmara em busca de partículas de matéria escura “parecidas com axônios”, que poderiam afetar os spins de alguns átomos. 4 Como animais usam campos magnéticos para se orientar? Ao criar organismos em um ambiente com pouquíssima atividade magnética, os pesquisadores talvez consigam discernir se o uso desses campos é uma característica aprendida ou inata. 5 O que o magnetismo pode revelar sobre a saúde humana? Qualquer espaço com muito pouco ruído magnético abre a possibilidade de diagnósticos mais detalhados: por exemplo, distinguir o campo magnético do coração de uma gestante do de äxø
øîø߸ §¸ ÇDßD detectar irregularidades.
A boa notícia remonta às origens de cervejas tipo lager no século 15. O fungo S. pastorianus teria sido cultivado após um cruzamento acidental de duas outras espécies em uma caverna fria e escura na Baviera, Alemanha, quando monges começaram a praticar o “lagering”, ou armazenamento de cervejas. Na década de 80, cientistas identificaram um dos pais originais: S. cerevisiae, a mãe de todas as leveduras usadas na panificação e produção de cerveja. O outro permaneceu desconhecido até 2011, quando Diego Libkind, microbiólogo da Argentina, identificou o fungo S. eubayanus nas florestas da Patagônia como o elo perdido, que em estado selvagem não era bem adaptado para a fermentação industrial de cerveja, mas sua descoberta abriu a possibilidade de desenvolver novos cruzamentos de levedura. “Uma vez que o eubayanus foi descoberto, as coisas de repente ficaram muito
mas talvez seja algo que nem sempre queremos. A ideia é ter toda uma gama de cepas, e você só seleciona e escolhe.” Agora, a busca voltou-se para encontrar novas uniões de leveduras que consomem açúcar com mais eficiência, criando potencialmente cervejas menos calóricas. Gibson observa que desenvolver uma grande variedade de cepas saborosas de lagers deve ser relativamente fácil, o que é favorável para as cervejarias ainda não divulgadas que estão adotando os novos fermentos. De acordo com uma estimativa de 2012, cervejas tipo lager respondem por mais de 75% do mercado de cerveja dos EUA. —Peter Andrey Smith
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Ilustração de Thomas Fuchs
www.sciam.com.br 13
LEE ROGERS Getty Images
interessantes”, observa Brian Gibson, que estuda leveduras de cerveja no Centro VTT de Pesquisa Técnica da Finlândia, em Espoo. Amantes de cervejas lager agora podem brindar oficialmente porque Gibson e seus colegas recentemente registraram o sucesso de recriar o antigo “caso” entre S. cerevisiae e S. eubayanus. “Agora é possível produzir leveduras lager que são muito diferentes umas das outras”, comemora Gibson. Todos os híbridos resultantes superaram seus pais, produzindo álcool mais depressa e em concentrações mais elevadas, além de resultarem em produtos mais saborosos, como foi documentado em um artigo no Journal of Industrial Microbiology & Biotechnology. Em particular, eles produziram 4-vinil-guaiacol, o que resultou em sabores mais característicos de cervejas de trigo belgas. “As cervejas têm um aroma que lembra cravo”, explica Gibson. “Isso é bem agradável,
Podem me ouvir agora?
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§`¦§`¦`§`¦îā`§`¦`§`¦Í7³Í§`¦7¸§³¸ nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) tenta se comunicar com amigos próximos, mas eles não conseguem escutar seus chamados. Há navios demais na água fazendo barulho. CLICK! Para serem escutal¸äDÇxäDßl¸äßøl¸äÇ߸løąl¸äÇx§¸¸xjUD§xDäx¸§³¸ä precisam, efetivamente, levantar suas vozes, o que fazem ao alterar a frequência, amplitude ou duração de suas vocalizações, ou simplesmente ao repetirem sem parar seus chamados. Infelizmente, essa alteração acústica também afeta a saúde dos animais. Para descobrir como, a bióloga Marla M. Holt e seus colegas da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, em inglês) xäîølDßDøÇDßlx¸§³¸ä³DßąlxDßßD
Dl¸"DU¸ßDî¹ß¸ Marinho Joseph M. Long da Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Os animais foram treinados para produzir uma vocalização discreta, de baixa amplitude, sob comando, assim como um chamado de alta amplitude, 10 decibéis mais alta. Os pesquisadores moniî¸ßDßD¸`¸³äø¸lx¸Āz³¸l¸ä¸§³¸äløßD³îx¸äl¸äîǸä de chamados e descobriram que quanto mais alta a vocalização, mais oxigênio necessitavam. Em seguida, a equipe combinou suas observações de consumo lx¸Āz³¸`¸lDl¸älx¸§³¸ääx§þDx³äÇDßD`D§`ø§DßÔøD³îDä calorias a mais os animais precisariam consumir para compensar a energia que queimam ao fazerem chamados mais altos. As estimatiþDä¸äîßDÔøx¸§³¸ääx§þDx³äîxßDlx`¸³äøßløDä`D§¸rias nutricionais extra de peixes para cada dois minutos que passam assobiando, clicando e guinchando para superar o ruído de barcos. Embora essa sobrecarga metabólica seja pequena, ela se soma (avoluma) com o tempo.“Para sobreviver e se reproduzir, você precisa DßD³îß Ôøx îx `D§¸ßDä äø`x³îxä î¸l¸ä ¸ä lDä ÇDßD äøäîx³îDß
essas atividades”, argumenta Holt, e animais que vivem em ambientes ruidosos, com alimentos limitados, que dependem de sons para se comunicar, caçar ou procriar podem não ser capazes de encontrar sustento äø`x³îxÇDßD`¸Çx³äDßDl
xrença. O risco para a saúde é maior ainda para animais jovens e fêmeas lactantes, que já precisam, naturalmente, de recursos alimentares adicionais para obter toda a nutrição de que necessitam. Os resultados foram divulgados nesta primavera boreal na publicacT¸`x³î`DJournal of Experimental Biology. Ruídos subaquáticos criados pelo homem, tanto faz se são provocados pela rotação das pás de um navio, pelo zumbido de um motor, o tilintar de uma construção ou pelos estrondos de explorações sísmicas, fazem mais que forçar os odontocetos (subordem dos cetáceos que têm dentes) a erguer a voz. Outra pesquisa mostra ÔøxUD§xDäx¸§³¸ääD§îDZ
¸ßDlDEøD[jäxxßøxþxßî`D§mente para dar uma olhada nas redondezas (spy-hop, em inglês) e batem a cauda na superfície com mais frequência quando há embarcações por perto, e todas essas atividades sugam mais energia. Sonares militares também perturbam a audição de cetáceos e alteram seus comportamentos de mergulho, levando muito provavelmente a doenças e encalhamentos. Agora, Holt e seus colegas querem investigar ações que podem ser tomadas para mitigar efeitos de ruídos gerados por humanos em ¸§³¸ä x ¸øîßDä `ßDîøßDä Dß³Däj `¸¸ xĀß Ôøx ³Dþ¸ä lxäDcelerem motores quando entram em um porto ou manter barcos de observação de baleias a uma distância mínima dos mamíferos marinhos que procuram. Além disso, humanos não deveriam ser mais educados? Interromper uma conversa é rude. – Jason G. Goldman
COMPORTAM E N TO A N I M AL
AVANÇOS
FAZENDO NOTÍCIAS
Notas rápidas
REINO UNIDO
NORUEGA
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Olhar descontaminado Lentes de contato determinam o que vive na superfície dos olhos Pessoas que usam lentes de contato muitas vezes adquirem hóspedes microbianos indesejáveis juntamente com a conveniência oferecida por esse auxílio visual. De fato, a superfície dos olhos de usuários de lentes hospeda uma diversidade maior de bactérias que a do pessoal dos “olhos nus”, de D`¸ßl¸`¸øxĀîx³äþ¸xä
¸ßc¸`§Dää`D tório de microbiólogos do Centro Médico Langone da Universidade de Nova York (N.Y.U.). Essa diferença talvez ajude a explicar por que os primeiros desenvolvem infecções oculares com uma frequência até sete vezes maior do que teriam sem lentes. Em uma tentativa para mapear o microbioma ocular, os pesquisadores sequenciaram centenas de esfregaços (amostras) colhidos dos olhos e pálpebras de 11 pessoas que não usam lentes e de nove que as usam. 14 Scientific American Brasil | Setembro 2015
Os usuários tinham cerca de três vezes a proporção típica de bactérias Methylobacterium, Lactobacillus, Acinetobacter e Pseudomonas. Embora os três primeiros microrganismos geralmente sejam inofensivos, Pseudomonas que penetram numa córnea arranhada podem resultar em uma infecção, provocando vermelhidão, dor e visão turva. Quando não tratada, essa condição pode levar à cegueira. Esses mesmos grupos bacterianos tendem a existir inofensivamente sobre a nossa pele, explica Lisa Park, da %Í?Í7Íää¸ä³`DÔøxx§xäøî¸Ç߸þDþx§ mente pegam uma carona nos dedos de usuários durante o ato de inserir as lentes, sugerindo uma mudança instantânea no microbioma regional. Resultados adicionais do estudo sustentam essa conclusão: os pesquisadores constataram que a composição de bactérias que vivem sobre os olhos de pessoas que usam lentes descartáveis era mais semelhante à de suas peles que entre pessoas que não preciäDlx§x³îxäÍÙä丳T¸yøD`¸³xĀT¸lx nitiva”, salienta Park, “mas é muito intrigante.” As características físicas das próprias lentes,
como a pressão que exercem sobre o olho, também poderiam estimular um crescimento bacteriano. î¸îøl¸ää¸j¸äÇxäÔøäDl¸ßxälx³î caram cerca de 10 mil cepas distintas de bactérias em suas amostras. Conhecer a comunidade microbiana precisa no olho de um paciente poderia ajudar médicos a tratar infecções com antibióticos direcionados, sugere Jack Gilbert, microbiólogo da Universidade de Chicago, que não esteve envolvido no estudo. Para evitar infecções por completo, no entanto, usuários de lentes de contato deveriam seguir assiduamente as melhores práticas recomendadas com seus auxílios visuais: lavar bem as mãos antes de manusear as §x³îxäjøäDßä¸ß¸ä¸§¹`¸
ßxä`¸ÇDßDx nizar e armazená-las e substituir os estojos, ou porta-lentes a cada três meses. Desse jeito, pelo menos, o “tapete de boas-vindas” para minúsculos e ameaçadores hóspedes orbitais deveria encolher. — Kat Long
BURADAKI SHUTTERSTOCK
M I C RO B I O LO GI A
50, 100 & 150 ANOS DE MEMÓRIA COMPILADO POR DANIEL C. SCHLENOFF Inovações e descobertas narradas pela SCIENTIFIC AMERICAN
Ascensão urbana “Sociedades urbanizadas, nas quais a maioria da população vive concentrada em cidades e metrópoles, representam um novo e fundamental passo na evolução social do homem. Embora as primeiras cidades só tenham surgido há cerca de 5.500 anos, eram pequenas e rodeadas por uma maioria esmagadora de habitantes rurais e facilmente permaneciam no status de vilarejos ou pequenas cidades. As sociedades urbanas atuais, por outro lado, não só formaram aglomerações de dimensões nunca antes atingidas, mas também mantinham uma alta concentração populacional. No entanto, esse desenvolvimento evolutivo quer por sua velocidade, quer por ser um fenômeno recente, nem sempre é muito apreciado. Antes de 1850, nenhuma sociedade poderia ser descrita como predominantemente urbanizada, e por volta de 1900 somente uma — a Grã-Bretanha — poderia ser assim considerada. Atualmente, após somente 65 anos, todas as nações industriais são altamente urbanizadas.”
Setembro 1865
enquanto a cavalaria passava por ali’. Isso nunca teria acontecido em outras épocas, pois as aves logo teriam apanhado todos os grãos que tivessem sobrado no solo.”
Contra o mar “Em seus treze anos de existência, o grande muro de concreto da zona portuária de Galveston sofreu dois furiosos ataques do mar varrido por furacões, mas o quebra-mar resistiu perfeitamente. Na última tempestade o dano causado à cidade foi principalmente na área comercial, ao norte da Broadway, onde o plano de elevação do nível nunca foi concretizado. O autor, a pedido do Tribunal de Comissários de Galveston, inspecionou a estrutura logo após as duas grandes tempestades de 1909 e 1915, e em nenhum dos casos encontrou qualquer avaria do quebra-mar, por menor que fosse, embora pesadas toras e pedaços de madeira tivessem passado por cima dele e danificado seriamente a avenida”. — General-brigadeiro Henry M. Robert. O autor também escreveu Regras de Ordem de Robert, originalmente publicadas em 1876.
Nitroglicerina para explosão “A glicerina, como todos nós sabemos, é um princípio delicado derivado do petróleo, e intensamente usado como produto de higiene, mas agora passou a ter uma aplicação de natureza bastante inusitada. Em 1847 Ascânio Sobrero descobriu que a glicerina, quando tratada com ácido nítrico, se convertia numa substância altamente explosiva, que ele chamou nitroglicerina. Ela é oleosa, mais pesada que a água, solúvel em álcool e éter e age tão poderosamente no sistema nervoso que uma única gota depositada na ponta da língua provoca dores de cabeça violentas que persistem por várias horas. Esse líquido parece ter sido praticamente esquecido pelos químicos, e somente agora Mr. Nable (sic — Alfred Nobel), engenheiro sueco, teve sucesso ao aplicá-la a um importante ramo de sua arte, isto é, explosivos.”
Invenção sensacional(ista)
Setembro 1915 Guerra e aves “A guerra tem causado grande impacto às aves da Europa, principalmente às migratórias. Esses pássaros foram observados onde nunca tinham sido vistos antes e desapareceram completamente de locais onde estavam sendo travadas batalhas. Em Luxemburgo, onde era comum milhões de aves se reunirem nas florestas de árvores copadas, agora é raro vê-las ou ouvi-las. Um apreciador da natureza da região escreveu que ‘campos inteiros de aveia surgiram nas estradas e praças de mercados de pequenas cidades e vilarejos onde cavalos foram alimentados
SONHO DO VOO: Projeto “criativo” para escapar dos vínculos da Terra, 1865.
“Senhores editores — Tenho a ousadia de submeter para publicação um projeto, para mim aparentemente simples e factível, mas nunca submeti o experimento a teste. Ele está relacionado ao que o homem já fez na Terra — usar a força de animais inferiores que lhes foram oferecidos para serem seus servos e atender seus propósitos. Há muitas aves que se destacam pela força das asas e resistência de voo. A águia-marrom e o cisne americano, particularmente, por si sós são sugestivos. Eu proponho conseguir algumas dessas aves e prendê-las por meio de coletes ajustados ao corpo e amarrá-las a uma estrutura que poderá sustentar uma cesta suficientemente grande para acomodar um homem.” www.sciam.com.br 15
SCIENTIFIC AMERICAN, VOL. XIII, NO 13 (NOVA SÉRIE); 23 DE SETEMBRO DE 1865
Setembro 1965
BOA EDUCAÇÃO COMEÇA COM BONS PROFESSORES. O desenvolvimento da educação passa, em primeiro lugar, pela valorização dos professores. Por isso, o Governo do Estado de São Paulo vem investindo na qualificação e ampliação do corpo docente da rede estadual de ensino. • Desde 2011, mais de 72 mil novos professores foram contratados. • Nos últimos quatro anos, o piso salarial teve aumento nominal de 45%, sendo 21% de aumento real. • Nesse mesmo período, mais de 400 mil profissionais receberam treinamento na Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, a EFAP. • 110 mil docentes foram promovidos, desde 2010, pelo Programa de Valorização pelo Mérito. E isso não é tudo. Muito mais ainda está por vir.
CIÊNCIA DA SAÚDE
por DAVID NOONAN
Dÿm%¹¹´D´jautor de “Epidemia não tão silenciosa”, 3`y´ï` ®yà`D´ àD å¨, ed. 158, julho de 2015, é escritor freelance especializado em ciência e medicina.
Balé e vertigem Pesquisas com bailarinos podem ajudar a desenvolver novas tentativas para amenizar problema que atormenta milhões de pessoas durante anos Bailarinos saltam com facilidade e giram sem sair do lugar como um pião. Seus cérebros parecem ser especiais, capazes de contornar a tontura que piruetas rápidas normalmente produzem. No entanto, um estudo publicado no início deste ano indicou que partes do cérebro de bailarinos, envolvidas na percepção do giro, seriam menos sensíveis que as de não praticantes. Para os milhões de pessoas que não são bailarinos, é o mundo todo ao redor, e não apenas eles, que de repente começa a girar. Até a tarefa mais simples, como caminhar por uma sala, pode ser impossível quando a vertigem ataca, e a doença pode durar meses ou anos. Entre adultos dos EUA com mais de 39 anos, 35% — 69 milhões de pessoas — sofreram ou sofrem de vertigem geralmente por mau funcionamento de partes do ouvido interno ligadas à percepção da posição corporal ou à transmissão dessa informação para o cérebro. Embora medicamentos e fisioterapia ajudem muitos pacientes, dezenas de milhares não melhoraram com tratamentos. “A resposta que nossos pacientes com graves perdas de equilíbrio ouvem repetidamente é que não há nada que se possa fazer”, diz Charles Della Santina, otorrinolaringologista que estuda distúrbios do ouvido interno e diretor do Laboratório de Neuroengenharia Vestibular da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. A vertigem também pode provocar ansiedade e depressão grave, comprometer a memória de curto prazo, perturbar a vida familiar e prejudicar carreiras. O pesadelo de Steve Bach começou em novembro de 2013. O chefe de obras estava em casa em Parsippany, Nova Jersey, quando, de repente, sentiu a sala “girar como um disco de 78 rotações”, diz ele, hoje com 57 anos. Bach estava enrolado no chão da sala em posição fetal quando sua filha o encontrou e ligou para 192. Ele passou cinco dias no hospital. “Sentar-se na cama”, ele lembra, “era como estar no topo de uma escada de dois metros.” O médico de Bach explicou que seu ouvido interno estava inflamado devido a uma infecção viral. Ele se submeteu a seis meses de fisioterapia para treinar o cérebro e o ouvido saudável a compensar a perda de função do ouvido direito. Com isso ele melhorou e em maio de 2014 voltou ao trabalho, mas ainda passa por momentos de insta18 Scientific American Brasil | Setembro 2015
bilidade. “Qualquer que seja o mecanismo do cérebro que determina quando seu pé toca o chão para mantê-lo na posição ereta, tenho certeza de que esse mecanismo não está funcionando 100% no meu caso”, comenta Bach. Problemas de vertigem como esses estão estimulando médicos a testar novos tratamentos para os casos mais graves, comenta Della Santina. Ele está começando um teste clínico para implante de próteses do ouvido interno. Outros médicos estão experimentando terapia genética. E o trabalho com bailarinos está começando a revelar novos aspectos da anatomia do cérebro envolvida no equilíbrio, que poderão ser alvo de futuros tratamentos. Os ouvidos são essenciais para manter a estabilidade de nosso corpo na posição ereta porque neles está o sistema vestibular periférico, formado por minúsculos tubos circulares cheios de líquido, bulbos e células ciliadas microscópicas. Na ponta dos cílios dessas células existe uma membrana onde estão incrustados cristais de carbonato de cálcio ainda menores. Quando nossa cabeça se move, os cristais distendem os cílios e se combinam com outras pequeIlustração de Bernard Lee
nas partes do sistema para transmitir ao nervo vestibular informa- interno. Durante o desenvolvimento embrionário, o gene ATOH1 ções sobre movimento, direção e velocidade. O nervo retransmite age na criação dessas células, que são fundamentais para a audiessas informações para o cerebelo e outras áreas neurais, ativando ção e o equilíbrio. O gene para de funcionar após o nascimento, deixando as pessoas com um número fixo de cílios — e com problevários músculos e o sistema visual para manter o equilíbrio. A lista de anomalias que podem ocorrer nesse sistema delicado mas, se os cílios forem danificados. Num teste clínico anterior é longa. Entre as causas de vertigem atribuídas ao ouvido interno aprovado pela FDA que visava equilíbrio e audição, Hinrich Staeestão tumores, infecções bacterianas e virais, danos causados por cker, otorrinolaringologista da Universidade de Kansas, e colegas certos antibióticos e doença de Meniere, uma afecção crônica que injetaram o gene no ouvido de 45 pacientes com perda severa de afeta mais de cinco milhões de pessoas, caracterizada por recor- audição, usando anestesia geral. Em camundongos com dano grarentes crises de vertigem, perda da audição e zumbido. O distúrbio ve no ouvido interno, o composto recuperou as células ciliares em vestibular mais comum é a vertigem posicional paroxística benig- 50%, com alguma melhoria na audição. Se o composto experimenna (BPPV, na sigla em inglês). Ela ocorre quando cristais rebeldes tal chamado CGF166 tiver efeitos similares em humanos, poderá se soltam, ficam flutuando nos arcos do vestíbulo e geram falsa surgir uma nova era no tratamento de distúrbios vestibulares. A terapia genética precisa ser manipulada com extremo cuidasensação de movimento. Felizmente, esse tipo de problema geralmente é tratado com eficácia com fisioterapia envolvendo uma do. Ela pode provocar graves reações do sistema imunológico. Em série repetitiva de movimentos lentos de cabeça que fazem os cris- outros experimentos houve óbito de pacientes. Nesse teste, fatores ligados à segurança do método incluem um gene tais saírem dos tubos arqueados. que pode ser ativado somente nas células-alvo, Mas fisioterapia não é a solução para todos, Sessenta e diz Staecker, e são aplicados em doses mínimas ou, como no caso de Bach, não oferece cura defique não chegam a circular pelo corpo. Além disnitiva. Alguns pacientes perderam a função vesnove milhões so, diz ele, o revestimento viral em torno do gene, tibular dos dois ouvidos. Para eles, Della Santina de pessoas que o ajuda a penetrar nas células, já havia sido e seus colegas da Johns Hopkins desenvolveram com mais de inoculado antes com genes diferentes em cerca um implante que substitui componentes mecâde 1.500 pessoas “sem problemas adversos”. 39 anos nos nicos danificados da anatomia do ouvido interMesmo que essa pesquisa seja bem-sucedida, no. Assim que os pesquisadores obtiverem o EUA sofrem ainda restam grandes lacunas no conhecimento sinal verde da Administração de Alimentos e de vertigem e básico sobre deficiências relacionadas à tontura. Medicamentos dos EUA (FDA, na sigla em dezenas de Em primeiro lugar, os médicos ainda não sabem inglês), eles começarão a testar essa invenção, por que cristais do ouvido se soltam. Para preenchamada implante vestibular multicanal, em milhares não cher essas lacunas alguns cientistas estudam os humanos. O dispositivo é modelado sobre melhoraram bailarinos. A ideia é estudar sistemas vestibulaimplantes cocleares que recuperaram a audição fazendo res particularmente robustos para entender de milhares de pessoas desde que o primeiro tratamentos melhor os mistérios dos sistemas anormais. aparelho foi usado em 1982. Esses implantes Uma equipe do Imperial London College utiliusam um microfone para captar vibrações sonozou uma série de testes e análise de imagens de ras e transmiti-las para o cérebro via nervo auditivo. Em vez de um microfone, o implante vestibular contém dois cérebros para investigar a capacidade de bailarinos profissionais minissensores de movimento que acompanham o movimento da de resistir à tontura quando realizam sucessivas piruetas. Os ciencabeça. Um deles é um giroscópio que mede o movimento da cabe- tistas estudaram 29 bailarinas que praticavam balé em média há ça quando a pessoa olha para cima ou para baixo e em torno de 16 anos — elas começaram aos seis anos, ou antes — e as comparauma sala. O outro, um acelerômetro linear, mede o movimento ram com remadoras. As mais experientes e extremamente treinadirecional, como andar para a frente em linha reta ou descer um das apresentavam menor densidade de neurônios em partes do lance de escada. Em vez de separar o som em diferentes compo- cerebelo onde a tontura é percebida, o grupo relatou este ano na nentes de frequência e enviá-los ao nervo auditivo, os sensores de revista Cerebral Cortex. Segundo o estudo, a redução é devida à movimento enviam sinais para o nervo vestibular informando a luta contínua contra a sensação de tontura nas piruetas, nas quais os bailarinos focam os olhos num ponto fixo pelo maior tempo posição da cabeça e o movimento. Resultados de testes com outro tipo de implante vestibular em possível, o que limita os sinais sensoriais enviados ao cérebro. Esse quatro pacientes com doença de Meniere realizados pela Universi- “esforço efetivo para resistir à tontura” também deixou essas bailadade de Washington não foram conclusivos. Embora tenha funcio- rinas com uma rede de conexões neurais menor e mais lenta numa nado bem no início, o efeito desapareceu após alguns meses. Mas o parte do lado direito do cérebro que processa esses sinais. Essa resistência à sensação de tontura poderá, algum dia, mitidispositivo da Johns Hopkins tem design diferente e será usado em pacientes com outros distúrbios, que não a doença de Meniere, gar o problema em pacientes com vertigem crônica, se forem encontrados caminhos para desenvolvê-la em não bailarinos, por isso os médicos esperam resultados mais promissores. Outra estratégia que está sendo testada em humanos envolve usando fisioterapia, sugerem os cientistas. Para milhares de um gene que controla o crescimento de células ciliares no ouvido pacientes seria uma guinada para melhor. www.sciam.com.br 19
TECNOLOGIA DAVID POGUE Dÿm 0¹ùy é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na rede pública de tevê PBS.
A geração da tela sensível ao toque Os dispositivos móveis estão prejudicando as crianças? A ciência avalia Você conhece os rabugentos que reclamam automaticamente de qualquer tecnologia nova. “Todas essas engenhocas ultramodernas estão destruindo nosso cérebro”, eles dizem, “e arruinando nossas crianças.” Toda geração desaprova a seguinte; isso é previsível e humano. Os aparelhos digitais estão aparentemente minando nossa juventude, da mesma forma como o rock arruinou nossos pais, a televisão, nossos avós e os carros, nossos bisavós. Estamos sendo arruinados há gerações. Mas devo perguntar: o que a ciência diz sobre os efeitos nocivos da mais recente tecnologia? Parte da resposta depende da definição de “arruinar”. As coisas são diferentes agora. A maioria das crianças dos EUA não “sai para brincar” desacompanhada por horas (a indústria do beisebol pode nunca mais se recuperar). Elas não precisam mais decorar nomes de presidentes e a tabela periódica pois estão a apenas uma tecla de distância do Google. Estamos perdendo velhas destrezas. Poucos sabem agora como usar um papel-carbono ou cuidar de cavalos; escrever à mão e dirigir podem ser as próximas habilidades a desaparecer. Mas diferente não é o mesmo que pior. E é surpreendentemente difícil encontrar estudos ligando aparelhos modernos à ruína da juventude. A pesquisa leva tempo e a era das telas sensíveis é muito recente. O iPad, por exemplo, surgiu em 2010. Mas as pesquisas já começaram – e lançam alguma luz sobre como esses repentinamente onipresentes dispositivos podem afetar as crianças. Um estudo publicado na edição de fevereiro de Pediatrics descobriu que crianças que têm aparelhos de tela pequena em seus quartos dormem em média 21 minutos a menos que as que não têm. (Quanto à razão: os pesquisadores supõem que as crianças ficam acordadas até tarde para usar seus dispositivos ou, talvez, que a luz das telas produza “atrasos no ritmo circadiano”.) E quanto às habilidades sociais? No outono (do Hemisfério Norte) passado, um estudo na Universidade da Califórnia em Los Angeles examinou 51 alunos de sexto ano que passaram cinco dias em um acampamento na natureza sem eletrônicos e 54 que não 20 Scientific American Brasil | Setembro 2015
acamparam. Depois disso, o primeiro grupo se saiu melhor na leitura de emoções humanas em fotografias. Em 2009, um estudo na Universidade Stanford ligou hábitos de adolescentes modernos de executarem multitarefas no computador (que parecem ter se estendido a telefones e tablets) à perda da capacidade de concentração. Seu resultado assusta um pouco. E sobre câncer cerebral e celulares? Bem, em primeiro lugar, não é preciso um estudo para dizer que raramente os jovens estão com o telefone na orelha; eles mais digitam mensagens que fazem ligações. De qualquer forma, os estudos não comprovaram nenhuma relação entre o uso de celular e câncer. É hora de começar a reclamar? Não necessariamente; nem todos os estudos chegaram a conclusões alarmantes. Em 2012 o grupo sem fins lucrativos de estudos sobre mídias e tecnologia Common Sense Media descobriu que mais da metade dos adolescentes dos EUA acham que as mídias sociais – agora acessíveis em qualquer lugar graças às telas sensíveis ao toque – ajudaram em suas amizades (apenas 4% acham que prejudicaram). Em 2014 o National Literacy Trust, do Reino Unido, descobriu que crianças pobres com aparelhos de tela sensível ao toque têm o dobro de probabilidade de lerem todos os dias. Um estudo na Computers in Human Behavior também descobriu que enviar mensagens é benéfico para o bem-estar emocional dos adolescentes – especialmente os introvertidos. Precisamos claramente de estudos mais amplos e de mais longo prazo antes de começarmos uma nova rodada de reclamações. E eles estão a caminho; por exemplo, os resultados do Estudo de Cognição, Adolescentes e Telefones Móveis (Scamp, na sigla em inglês), do reino Unido, com 2.500 crianças, sairão em 2017. Enquanto isso, os sinais de alerta das pesquisas iniciais não são altos o suficiente para tirarmos aparelhos de nossas crianças e mudarmos para território Amish. Mas eles já são suficientes para sugerir a prática de uma muito sábia e antiga precaução: a moderação. O excesso de qualquer coisa é ruim para as crianças, sejam eletrônicos modernos, televisão ou beisebol. Ilustração de Harry Campbell
OBSERVATÓRIO POR MARIO NOVELLO Céu do Mês JANEIRO $Dà¹%¹ÿy¨¨¹é pesquisador emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
A teoria da relatividade métrica Cada corpo tem sua geometria particular na qual ele é um corpo livre de ações externas Uma das consequências mais notáveis da teoria da relatividade especial foi a substituição de um único tempo comum a todos os corpos por uma infinidade de tempos próprios, um para cada corpo ou observador. Como consequência, a tradicional geometria euclidiana da física foi substituída pela geometria de Minkowski. Cada observador possui assim seu tempo próprio, e a noção de simultaneidade passou a depender de seu estado de movimento. Essa passagem para uma miríade de tempos relativos a cada observador retirou de cena o tempo absoluto newtoniano. Anos depois, o aparecimento de uma nova teoria da gravitação, a relatividade geral, retirou o caráter imutável, rígido, estático da estrutura minkowskiana, passando a considerar que o espaço-tempo possui uma geometria variável. A universalidade da gravitação – isto é, o fato observado de que todos os corpos interagem gravitacionalmente -- mudou a geometria do mundo ao afirmar que toda matéria, tudo que existe, cada observador, está imerso em uma única e global estrutura geométrica, variável, com uma dinâmica controlada pela distribuição de energia e matéria. A característica importante a reter é precisamente a univocidade, ou seja, existe somente uma geometria no mundo. O caráter universal da interação gravitacional fixa a geometria onde “tudo que existe” está mergulhado, ou seja, a totalidade espaço-tempo. A partir do reconhecimento de que a universalidade dos processos gravitacionais modifica a geometria do mundo, concluiu-se que a física havia consagrado uma nova descrição absoluta, pois qualquer outra força de caráter não gravitacional exerce uma ação sobre o corpo que o desvia da geodésica, a curva que um corpo livre de qualquer força seguiria. Nesse contexto se poderia afirmar que um corpo é livre se sobre ele atuam somente forças gravitacionais (pois elas atuam como se os corpos sob sua ação seguissem caminhos livres, as geodésicas, em um espaço-tempo de geometria variável). Por outro lado, um corpo sob ação de qualquer outra força não é livre. Tal descrição permitiria caracterizar de um modo absoluto o que chamaríamos “liberdade na física”. Recentemente descobriu-se que esse não é o caso e que a noção de “corpo livre” depende da estrutura métrica do espaço onde esse corpo é descrito. Dito de outro modo: um corpo submetido a uma força em um dado espaço-tempo pode ser descrito como se estivesse livre de qualquer força desde que ele seja descrito, de modo equivalente, como mergulhado em uma outra geometria. Isso significa que cada corpo possui uma “sua” geometria na qual o efeito da força externa que sobre ele atua é substituído pelas propriedades da geometria onde o corpo é descrito. W. Gordon na primeira
metade do século 20, produziu uma descrição eficiente e elegante desse processo de aceleração da luz no interior de dielétricos em movimento e descreveu as propriedades dessa métrica efetiva que substitui o efeito de aceleração do fóton no meio dielétrico por uma equivalente alteração da geometria. Dessa forma o fóton, nessa geometria, segue uma geodésica; sua aceleração se esconde na expressão variável da geometria que o fóton reconhece como a do espaço-tempo onde ele se propaga. Embora à primeira vista se trate do mesmo procedimento realizado na relatividade geral, há uma diferença notável: no caso gravitacional essa mudança da geometria é universal, independe de qualquer característica do corpo em questão, enquanto no caso do fóton no interior de um meio dielétrico em movimento, as alterações espaçotemporais só seriam experimentadas pela luz. Recentemente, esse mecanismo de transformar a descrição de processos dinâmicos exercidos por forças de qualquer natureza por alterações na geometria por onde o corpo se movimenta mostrou ser geral. Isso leva a afirmar um modo novo de descrever processos dinâmicos naquilo que eu chamaria de relatividade métrica. A evolução da estrutura da geometria do espaço-tempo pode ser sintetizada da forma seguinte. A relatividade especial se fundamentou no início do século 20 sobre o princípio de que cada observador possui um tempo próprio e se movimenta em um espaço-tempo único, tendo uma geometria comum. Na década seguinte , a relatividade geral alterou essa geometria, tornando-a variável e universal. A relatividade métrica se baseia no princípio de que cada observador, sobre o qual atuam diferentes forças, institui sua própria geometria onde as forças que atuam sobre ele são formalmente eliminadas. Como a geometria resultante (aquela onde o corpo está livre de qualquer ação e se movimenta ao longo de uma geodésica nessa geometria associada) depende do movimento, concluímos que cada corpo instaura sua geometria particular na qual ele é um corpo livre, isento de qualquer ação externa. Essa eliminação da força pela caracterização de uma geometria específica para cada corpo é uma simples questão de escolha de representação. Adquire-se assim uma novidade inesperada: a liberdade dos corpos na física depende da representação escolhida.
PA R A C O N H E C E R M A I S
àDym ®yïà`åÎ Mario Novello e Eduardo Bittencourt, em General Relativity and Gravitation, vol. 45, pág. 1005, 2013.
www.sciam.com.br 21
DESAFIOS DO COSMOS
de SALVADOR NOGUEIRA
3D¨ÿDm¹à%¹ùyàD é jornalista de ciência especializado em astronomia e astronáutica. É autor de oito livros, dentre eles Rumo ao _dÒd_je0FWiiWZe[\kjkheZWWl[djkhW^kcWdWdWYedgk_ijWZe[ifWe e Extraterrestres: Onde eles estão e como a ciência tenta encontrá-los.
A caçada às ondas gravitacionais Busca vale a pena para compreender corpos supermassivos e até mesmo o espaço-tempo É uma das previsões mais incríveis da teoria da relatividade geral: objetos com massa que se movem pela ação da gravidade, ao se deslocar, produzem marolinhas no próprio tecido do espaço-tempo. É como se o vazio cósmico se encurtasse e se esticasse, num padrão ondulatório que se propaga em todas as direções, a partir do objeto que o gerou, na velocidade da luz. São as chamadas ondas gravitacionais. Einstein já sabia que elas deviam existir, e há evidências indiretas de que seja mesmo esse o caso em astros binários de alta massa. Em 1974, os astrofísicos Russell Alan Hulse e Joseph Hooton Taylor, Jr., dos Estados Unidos, descobriram o primeiro exemplar desse tipo. Conhecido pela sigla PSR B1913+16, ele consiste basicamente em duas estrelas de nêutrons orbitando velozmente em torno de um centro de gravidade comum. Estrelas de nêutrons são o que resta de astros muito maiores, depois que eles esgotaram sua capacidade de produzir energia por fusão nuclear e explodiram violentamente como supernovas. Quando o material que sobra da explosão é superior a três ou quatro vezes a massa do Sol, não há lei física conhecida que impeça seu colapso completo – o objeto se torna um buraco negro. Contudo, se a massa é menor que essa e pelo menos 40% maior que a do Sol, o resultado final é uma estrela de nêutrons. Em alguns casos, esses objetos em rotação produzem pulsos de rádio e, por isso, recebem a denominação de pulsares. Em 1974, foram as emissões de rádio que chamaram a atenção de Hulse e Taylor, e então eles descobriram que o objeto era binário – um deles era um pulsar e o outro uma estrela de nêutrons sem os característicos pulsos de rádio. Mas o mais interessante é que medições do período orbital desses dois objetos sugeriam que eles estavam espiralando para dentro, gradualmente se aproximando um do outro. É exatamente o “sintoma” de que o sistema está perdendo energia na forma de ondas gravitacionais. A descoberta valeu aos cientistas dos Estados Unidos o Nobel de Física em 1993. Graças a isso, sabemos que ondas gravitacionais muito provavelmente existem. Agora, detectá-las diretamente – medir a sutil vibração no próprio espaço-tempo causada
pelas ondas – é um problema e tanto. Nas últimas décadas, diversos projetos de detectores foram desenvolvidos, mas nada foi detectado. Há inclusive um no Brasil, batizado em homenagem ao físico Mário Schenberg (1914-1990), e instalado na USP. Nos EUA, pesquisadores tentam mudar essa sorte a partir de setembro. É quando voltará a operar o ambicioso LIGO (Laser Interferometer Gravitational-wave Observatory). Composto por duas instalações gêmeas nos estados de Washington e da Louisiana, o sistema usa lasers correndo em circuitos perpendiculares de 4 km e interagindo uns com os outros. Qualquer minúscula variação no comprimento de um dos braços, provocada por uma onda gravitacional, geraria um padrão de interferência detectável. E, quando falamos em “minúscula”, é algo como um décimo de milésimo do tamanho de um próton. O LIGO começou a colher dados em 2002 e só parou em 2010 – sem detecção. Desde então, passou por uma reforma, para expandir sua sensibilidade. Se antes o alcance máximo estava limitado a fontes – como, por exemplo, um par de estrelas de nêutrons em colisão – a cerca de 70 milhões de anos-luz de distância, ele agora poderá captar sinais vindos de mais de 210 milhões de anos-luz. Será que bastará? Só saberemos testando. De toda forma, a busca por ondas gravitacionais vale a pena. Não só para a compreensão dos objetos supermassivos, mas também para a investigação da natureza do próprio espaço-tempo. Quem sabe, no futuro, até mesmo os sinais gravitacionais produzidos pelo Big Bang possam ser investigados, oferecendo incríveis lampejos sobre a origem do Universo?
22 Scientific American Brasil | Setembro 2015
LIGO/CALTECH
ASTROFOTOGRAFIA
1ærÍ èrÍ ÒæD DÒÜÍ«{«Ü«ÍDD §D 3ZD¡Ã ÒZÍrèD µDÍD DÒÜÍ«{«Ü«ÍDDNrfÜ«ÍDÒr¡r§Ü«»Z«¡»OÍ As fotos precisam ser em alta resolução, com no mínimo 300 dpi, para serem publicadas.
VISÃO AÉREA DO LIGO, detector de ondas gravitacionais, em Livingston, Louisiana (EUA).
CÉU DO MÊS
SETEMBRO
Eclipse lunar total será visível em todo o Brasil Fenômeno completa a segunda série tétrade, de um total de oito que teremos no século 21. A próxima só acontece entre 2032 e 2033. sível logo após o poente, na direção oeste, atingindo sua máxima elongação (maior afestamento relativo do Sol) no dia 4. Mas não perca tempo para vê-lo, pois até o fim do mês ele voltará a se esconder no brilho cegante do astro-rei. Por sua vez, Vênus, que nos últimos meses tem dado show após o poente, atinge seu brilho máximo no dia 20 (-4,5 magnitudes). Bons céus a todos! (S.N.)
GUSTAVO ANDERSON GUERRA BATISTA
A Lua é o único objeto celeste que revela alguns detalhes de sua superfície mesmo a olho nu. Poluição atmosférica e luminosa não são capazes de ofuscar sua beleza e, para quem tem céus limpos e telescópios, os detalhes de seu solo acidentado são um show à parte. Para fechar a conta, em setembro teremos um eclipse lunar total, observável em todo o Brasil. O fenômeno, que ocorre quando a Terra se interpõe entre o Sol e a Lua, acontecerá na virada do dia 27 para 28. Às 22h07 (a referência é São Paulo), o astro começa a entrar na sombra terrestre e estará totalmente encoberto às 23h10. A saída da sombra começa à 0h23 e à 1h27 já não se vê mais sinal aparente do eclipse, embora a Lua ainda se encontre na penumbra, recebendo apenas iluminação parcial do Sol. Durante a fase de totalidade, a Lua ganha um tom avermelhado, explicado pelo fato de que a única luz que chega até sua superfície é a que passou de raspão pela atmosfera terrestre. Originalmente branca, a luz é “filtrada” e só consegue sair do outro lado a porção avermelhada do espectro (por essa mesma razão, o poente e o nascente têm aquele tom avermelhado). O eclipse é o quarto e último de uma série que se iniciou em 2014. Essas tétrades, em que o fenômeno se repete quatro vezes num espaço de dois anos, são relativamente raras. Durante o século 21, estamos vivenciando a maior sequência de tétrades dos últimos mil anos. São oito ao todo. A primeira ocorreu em 2003-2004, a segunda se fecha neste mês, e a próxima será apenas em 2032-2033. Mesmo se considerarmos apenas a ocorrência de eclipses lunares totais, sem levar em conta a raridade adicional de séries sequenciais tétrades, é bom aproveitar esta chance. O próximo acontecerá somente em 2018. Além disso, o fugidio Mercúrio volta a se destacar no céu, vi-
GUSTAVO ANDERSON GUERRA BATISTA registra a Lua quase cheia em Campina Grande (PB). www.sciam.com.br 23
N
Visibilidade dos planetas MERCÚRIO Visível ao anoitecer na direção do pôr do sol, em Virgem. Máxima elongação em 4, a 26° ESE do Sol, e em conjunção inferior com o Sol em 30. Próximo da Lua em 15.
VÊNUS Primeiramente em Câncer e depois em Leão. Visível ao amanhecer, na direção do nascer do Sol. Próximo da Lua em 10.
MARTE Visível ao amanhecer na direção do pôr do sol. Inicialmente em Câncer, depois em Leão. Próximo da Lua em 10 e em conjunção com Regulus (alfa de Leão) em 24.
JÚPITER Visível em Leão, ao amanhecer, na direção do nascer do Sol. Próximo da Lua em 12.
SATURNO Em Libra, visível ao anoitecer, na direção do pôr do sol. Próximo da Lua em 17.
URANO
O
Visível em Peixes. Começa a ser visto a partir das 19-20h no começo do mês e depois durante quase toda a noite. Próximo da Lua em 1o e 28.
NETUNO Em Aquário, visível durante toda a noite. Em oposição ao Sol em 1o, próximo da Lua em 26.
DESTAQUES DO MÊS Q
Máximo da chuva de meteoros Alfa Aurigíades
Q
Oposição de Netuno com o Sol
Q
Mercúrio em máxima elongação a leste do Sol. Visível ao anoitecer
Q
Máximo da chuva de meteoros épsilon Perseidas
Q
Início da primavera no Hemisfério Sul
Q
Eclipse lunar. Visível no Brasil
Q
Mercúrio em conjunção inferior com o So
24 Scientific American Brasil | Setembro 2015
PASSAGEM DO SOL PELAS CONSTELAÇÕES * Leão de 11/08/2015 a 17/09/2015 Virgem de 17/09/2015 a 31/10/2015 * O limite das constelações foi estabelecido pela União Astronômica Internacional em 1930, o que permite estabelecer, com grande precisão, o instante de entrada e saída do Sol de cada uma das 13 constelações que são atravessadas pela trajetória anual aparente do Sol, a eclíptica.
S
CARTA CELESTE PARA O MÊS Mapa mostra céu visível às 22h00 de 1º de setembro, às 21h00 de 15 de setembro e às 20h00 de 30 de setembro a partir da latitude de 23°27’ Sul (Trópico de Capricórnio).
L
DIA
HORA
EVENTO
o
-
1o
08h40
Netuno em oposição ao Sol.
1o
13h25
Urano a 0,7°N da Lua.
4
05h40
Lua passa pelo aglomerado de Plêiades (M 45).
4
07h06
Mercúrio em máxima elongação ortiva (a leste do Sol). Visível ao anoitecer a 27°ESE do Sol.
1
Máximo da chuva de meteoros Alfa Aurigíades.
5
00h36
Lua passa a 0,9°N de Aldebarã (alfa de Touro).
5
06h55
Lua em quarto minguante.
9
17h52
Lua a 5,5°S do aglomerado estelar de Praesepe (M 44).
10
-
10
01h25
Máximo da chuva de meteoros épsilon Perseidas. Lua em conjunção com Vênus.
10
03h58
$r«Í«ZDÒõ«µDÍDèÒæDîDÍ«OÍ«fD5rÍÍDÍrrÜf«§D{DZr escura da Lua minguante falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao nascer da Lua em São Paulo.
10
20h47
Lua em conjunção com Marte.
12
01h57
Lua em conjunção com Júpiter.
13
03h42
Lua nova.
13
03h56
Eclipse parcial do Sol. Não visível no Brasil.
14
08h23
Lua no apogeu, maior distância com a Terra, 406.569 km. Diâmetro aparente = 29,6’.
15
02h35
Mercúrio em conjunção com a Lua.
15
22h42
Lua em conjunção com Spica (alfa de Virgem).
16
20h30
$r«Í«ZDÒõ«µDÍDèÒæDîDÍ«OÍ«fD5rÍÍDÍrrÜf«§D{DZr escura da Lua crescente falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao ocaso da Lua em São Paulo.
17
00h47
Lua em conjunção com Saturno.
19
16h52
Lua ultrapassa Antares (alfa de Escorpião).
20
17h41
Vênus atinge seu brilho máximo de -4,5 magnitudes.
21
06h00
Lua em quarto crescente.
23
05h21
Equinócio de setembro. Início da primavera no Hemisfério Sul.
24
08h33
Asteroide 4 Vesta a menor distância da Terra, 213,4 milhões de km.
24
13h39
Júpiter em conjunção com Regulus (alfa de Leão).
26
07h52
Netuno em conjunção com a Lua.
27
02h44
Asteroide (4) Vesta atinge seu brilho máximo de 6 magnitudes.
27
23h11
Lua no perigeu, menor distância com a Terra, 356.879 km. Diâmetro aparente = 34,0’.
27
23h47
Eclipse total da Lua. Visível no Brasil.
27
23h51
Lua cheia. (*)
28
20h40
Urano a 0,8°N da Lua.
30
11h31
Mercúrio em conjunção inferior com o Sol. Planeta entre o Sol e a Terra.
(*) A lua cheia próxima da data do seu perigeu tem sido chamada, pela mídia, de super lua.
'3 ' "03 "7% 2 ÷é÷~ 35$ 2' ÷ĈÀ Ê3 ' 0 7"'j 30Ëi DURAÇÃO DO ECLIPSE: 5h 13min | DURAÇÃO DA FASE DE SOMBRA: 3h 21min | DURAÇÃO DA FASE DE TOTALIDADE: 1h 11min
27
21h10
Lua entra na penumbra
22h07
Lua entra na sombra
23h10
Início da totalidade
23h47
Máximo do eclipse
28
00h23
Fim da totalidade
01h27
Lua deixa a sombra
02h24
Lua deixa a penumbra
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EVO LU Ç Ã O
A ESPÉC E MAIS INVASI A DE TOD AS 'ùïàDå yåÈz`yå my ¹®´ my¹å DUïDàD® D 5yààDÎ $Då D ´¹ååD z D ú´`D Õùy `¹¨¹´Ć¹ù ï¹m¹ ¹ ȨD´yïDÎ 7®D ´¹ÿD ȺïyåyyāȨ`DȹàÕù{ Curtis W. Marean
Ilustração de Jon Foster
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ùàïå=Î$DàyD´ é professor da Escola de Evolução Humana e Mudança Social da Universidade Estadual do Arizona, onde também é diretor associado do Instituto de Origens Humanas. É professor honorário da Universidade Metropolitana Nelson Mandela, na África do Sul. Sua µrÒÂæÒD÷§D§ZDfDµrDæ§fD]õ«%DZ«§Dfrù§ZDÒf« Estados Unidos e pelas Fundações da Família Hyde.
E
M ALGUM MOMENTO POSTERIOR A 70 MIL ANOS ATRÁS, NOSSA ESPÉCIE, HOMO SAPIENS, SAIU da África para começar sua inexorável propagação por todo o globo. Outras espécies de hominídeos tinham se estabelecido na Europa e na Ásia, mas apenas nossos ancestrais H. sapiens acabaram conseguindo se dispersar para todos os grandes continentes e muitas cadeias insulares. Sua dispersão, porém, não foi nada comum. Todos os lugares para onde o H. sapiens migrou passaram por massivas mudanças ecológicas. Os humanos arcaicos que encontraram foram extintos, assim como uma infinidade de espécies animais. Esse foi, sem dúvida, o evento migratório mais significativo na história do nosso planeta.
Paleoantropólogos debateram por muito tempo como e por que só humanos modernos conseguiram essa surpreendente façanha de propagação e dominância. Alguns especialistas argumentam que a evolução de um cérebro maior, mais sofisticado, permitiu que nossos ancestrais avançassem para novas terras e enfrentassem os desafios desconhecidos que encontraram ali. Outros sustentam que uma tecnologia inédita impulsionou a expansão de nossa espécie fora da África ao permitir que humanos modernos caçassem presas, e liquidassem inimigos, com uma eficiência sem precedentes. Um terceiro cenário postula que mudanças climáticas enfraqueceram as populações de neandertais e outras espécies arcaicas de hominídeos que ocupavam os territórios fora da África, permitindo que os humanos modernos conquistassem uma posição dominante e assumissem o controle de seus domínios. Mas nenhuma dessas hipóteses oferece uma teoria abrangente capaz de explicar plenamente a extensão do alcance do H. sapiens. De fato, essas teorias têm sido apresentadas quase sempre como explicações
para registros de atividade de H. sapiens em determinadas regiões, como a Europa Ocidental. Essa abordagem fragmentária para estudar como ele colonizou a Terra tem induzido cientistas a erros. A grande diáspora humana foi um evento multifásico que, portanto, precisa ser investigado como somente uma questão de pesquisa. Escavações que conduzi ao longo dos últimos 16 anos em Pinnacle Point, no litoral austral da África do Sul, somadas a avanços teóricos em ciências biológicas e sociais, recentemente me levaram a um cenário alternativo para explicar como o H. sapiens conquistou o mundo. Acredito que a diáspora ocorreu quando um novo comportamento social evoluiu em nossa espécie: uma propensão geneticamente codificada para cooperar com indivíduos não aparentados. O acréscimo dessa tendência única às avançadas habilidades cognitivas de nossos ancestrais permitiu que eles se adaptassem agilmente a novos ambientes. Isso também fomentou a inovação, dando origem a uma tecnologia revolucionária que mudou tudo: armas avançadas de lon-
EM SÍNTESE
y ï¹mDå Då yåÈz`yå de hominídeos que viveram na Terra, apenas o Homo sapiens conseguiu colonizar todo o globo.
y´ïåïDå åy Èyàù´ïDÿD® E ïy®È¹å como só a nossa espécie conseguiu se dispersar tão amplamenteeparalugarestãolongínquos.
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7®D ´¹ÿD Ⱥïyåy sustenta que duas inovações exclusivas do H. sapiens o aparelharam para dominar o mundo.
7®D my¨Då z D Èà¹Èy´åT¹ y´zï`D para cooperar com pessoas não aparentadas. A outra são armas avançadas de arremesso.
FONTE: CURTIS W. MAREAN, COM BASE EM “HUMAN TERRITORIALITY: AN ECOLOGICAL REASSESSMENT”, DE RADA DYSON-HUDSON E ERIC ALDEN SMITH, EM AMERICAN ANTHROPOLOGIST, VOL. 80, NO 1; MARÇO DE 1978
Gráfico de Jen Christiansen
7D îx¸ßD `§Eää`D lD U¸§¸D DßD Ôøx D äx§xcT¸ ³DîøßD§
Dþ¸ßx cerá uma defesa agressiva de fontes alimentares (territorialidade) quando os benefícios de acesso exclusivo a elas superam os custos de patrulhá-las. Entre humanos que vivem em pequenas sociedades, a territorialidade compensa quando os recursos são densos e previsíveis. Na África, certas áreas costeiras têm fontes alimentares densas e previsíveis em forma de viveiros subaquáticos de moluscos e crustáceos. Esses ambientes provavelmente despertaram a noção de territorialidade em grupos primitivos de H. sapiens.
Alta
Para apreciar o quanto a colonização do planeta por H. sapiens foi extraordinária, precisamos retroceder cerca de 200 mil anos, para o alvorecer de nossa espécie na África. Durante dezenas de milhares de anos, esses humanos anatomicamente modernos, pessoas que se pareciam conosco, permaneceram dentro dos limites do continente-mãe. Há uns 100 mil anos, um grupo deles fez uma breve incursão no Oriente Médio, mas aparentemente foi incapaz de prosseguir. Esses humanos precisavam de uma vantagem que ainda não tinham. Então, em algum momento depois de 70 mil anos atrás, uma pequena população fundadora transpôs os limites da África e iniciou uma campanha mais bem-sucedida rumo a novas terras. Quando se expandiu para a Eurásia, esse grupo encontrou outra espécie humana intimamente aparentada: os neandertais, na Europa Ocidental, e membros da linhagem denisovana descoberta recentemente na Ásia. Pouco depois da invasão dos modernos, os arcaicos foram extintos, embora um pouco de seu DNA persista até hoje em humanos como resultado de miscigenações ocasionais entre os diferentes grupos. Uma vez que chegaram às costas do Sudeste Asiático, eles se viram diante de um mar aparentemente ilimitado e desprovido de terras. Ainda assim, continuaram avançando destemidos. Como nós, essas pessoas eram capazes de vislumbrar e desejar novas terras para explorar e conquistar; por isso, construíram embarcações aptas a navegar e se lançaram ao mar, chegando às costas da Austrália há pelo menos 45 mil anos. Primeira espécie humana a entrar nessa parte do mundo, o H. sapiens rapidamente se dispersou pelo continente, correndo através dele com lançadores de dardos e fogo. Muitos dos maiores entre os estranhos marsupiais, que há muito haviam dominado a Austrália, conhecida como “a terra lá embaixo” [devido à sua posição geográfica], foram extintos. Então, há aproximadamente 40 mil anos, os desbravadores encontraram e cruzaram uma ponte terrestre para a Tasmânia, embora as inclementes águas dos oceanos mais austrais lhes negassem passagem para a Antártida. Bem mais ao norte, uma população de H. sapiens que viajava na direção nordeste chegou à Sibéria e se irradiou pelas terras que circundam o Polo Norte. Durante algum tempo, gelos terrestres e marinhos frustraram sua entrada nas Américas. Quando, exatamente, conseguiram enfim fazer a travessia para o Novo Mundo é uma questão de acirrado debate científico, mas pesquisadores concordam que eles romperam essas barreiras há uns 14 mil anos, invadindo um continente cuja vida selvagem nunca tinha visto caçadores humanos. Em apenas alguns milhares de anos, eles chegaram aos confins austrais da América do Sul, deixando em sua esteira um rastro de extinção em massa das grandes feras da Era do Gelo, como mastodontes e preguiças-gigantes. Madagascar e muitas ilhas do Pacífico permaneceram livres de humanos por outros 10 mil anos, mas, em um avanço final, “marinheiros” descobriram e colonizaram quase todos esses
Territorialidade compensa
Densidade de recursos
DESEJO DE EXPANSÃO
TEORIA
Baixa
go alcance. Equipados assim, eles partiram da África, prontos para subjugar o mundo inteiro de acordo com sua vontade.
àD`D®y´ïyïyààï¹àD¨ Ambientes terrestres africanos
¹àïy®y´ïy ïyààï¹àD¨ Recursos costeiros
%T¹ ïyààï¹àD¨
%T¹ ïyààï¹àD¨
Baixa
Alta Previsibilidade de recursos
lugares. Como em outras partes do mundo onde o H. sapiens se estabeleceu, essas ilhas também sofreram a devastação de sua ocupação, com ecossistemas queimados, espécies exterminadas e ambientes remodelados para os propósitos de nossos antecessores. A colonização humana da Antártida, por sua vez, só aconteceu na era industrial. JOGADORES DE EQUIPE
Mas como o H. Sapiens fez isso? Como, após dezenas de milhares de anos de confinamento ao seu continente de origem, nossos ancestrais finalmente saíram de lá e conquistaram não só as regiões colonizadas por espécies humanas anteriores, mas o mundo inteiro? Uma teoria útil para essa diáspora precisa fazer duas coisas: Primeiro, explicar por que o processo começou quando começou, e não antes. Segundo, ela tem de fornecer um mecanismo para uma rápida dispersão por terra e mar, que teria exigido a capacidade de se adaptar prontamente a novos ambientes e desalojar quaisquer humanos arcaicos encontrados neles. Proponho que o surgimento de características que nos tornaram colaboradores inigualáveis, por um lado, e concorrentes implacáveis, por outro, é o que melhor explica a súbita ascensão de H. sapiens à dominância do mundo. www.sciam.com.br 29
Humanos modernos tinham esse atributo determinado e infatigável; os neandertais e nossos outros primos extintos não. Creio que foi essa última grande adição ao conjunto de características que constituiu o que o antropólogo Kim Hill, da Universidade Estadual do Arizona, chamou “singularidade humana”. Nós, humanos modernos, cooperamos em um grau extraordinário. Nos envolvemos em atividades grupais coordenadas de forma altamente complexa com pessoas que não são nossos parentes e que podem até ser completos estranhos. Imagine, em um cenário sugerido pela antropóloga Sarah Blaffer Hrdy, da Universidade da Califórnia em Davis, em seu livro Mothers and Others, de 2009, uns 200 chimpanzés fazendo fila, embarcando em um avião, ficando sentados de modo extremamente passivo durante horas, para depois desembarcarem sob comando, como robôs. Isso seria impensável — eles lutariam entre si sem parar. Mas nossa natureza cooperativa é uma “faca de dois gumes”. A mesma espécie que corre em defesa de um estranho perseguido também se juntará a indivíduos desconhecidos, não aparentados, para travar uma guerra contra outro grupo, sem nenhuma consideração ou piedade quanto à competição. Muitos de meus colegas e eu acreditamos que essa tendência para a
Caçadores-coletores tendem a viver em bandos de aproximadamente 25 indivíduos, casar-se com “gente de fora” e se agrupar em “tribos” vinculadas por intercâmbio de parceiros, troca de presentes, e uma língua e tradições em comum. Às vezes, eles também lutam contra outras tribos, o que os expõe a grandes riscos. Isso suscita a pergunta: o que provoca essa disposição para se envolver em combates arriscados? Insights sobre quando vale a pena lutar vieram da clássica teoria da “defensabilidade econômica”, proposta em 1964 por Jerram Brown, agora na Universidade Estadual de Nova York em Albany, para explicar a variação de agressividade entre aves. Brown argumentou que indivíduos agem agressivamente para atingir certos objetivos que maximizarão sua sobrevivência e reprodução. A seleção natural favorecerá lutas quando elas facilitarem essas metas. Um dos principais objetivos de todos os organismos vivos é garantir um estoque de alimentos; portanto, se o alimento pode ser defendido, segue-se que um comportamento agressivo em sua defesa deveria ser selecionado. Se ele não pode ser defendido, ou for muito oneroso para ser patrulhado, então o comportamento agressivo é contraproducente. Em um artigo clássico publicado em 1978, Rada Dyson-Hudson e Eric Alden Smith, ambos então na Universidade Cornell, aplicaram a defensabilidade econômica a humanos que vivem em sociedades pequenas. Seu trabalho mostrou que faz sentido a defesa de recursos quando estes são densos e previsíveis. Gostaria de acrescentar que os recursos em questão têm de ser cruciais para o organismo; nenhum ser vivo defenderá um bem de que não necessita. Esse princípio se mantém até hoje: grupos étnicos e Estados-nações lutam acirradamente por recursos densos, previsíveis e valiosos como petróleo, água e terras agrícolas produtivas. Uma implicação desse “princípio da territorialidade” é que os ambientes que teriam fomentado conflitos intergrupais, e, portanto, os comportamentos cooperativos que teriam possibilitado essa luta, não eram universais no mundo de H. sapiens primitivos. Eles estavam restritos aos locais onde recursos de alta qualidade eram densos e previsíveis. Na África, as riquezas terrestres são, em geral, escassas e imprevisíveis, o que explica por que a maioria dos caçadores-coletores que vivem ali e têm sido estudados investem pouco tempo e energia na defesa de limites ou fronteiras territoriais. Mas há exceções a essa regra. Certas áreas costeiras têm reservas alimentares muito ricas, densas e previsíveis em forma de “leitos” subaquáticos de moluscos e crustáceos. E os registros etnográficos e arqueológicos de guerras entre caçadores-coletores ao redor do mundo mostram que os níveis mais intensos, ou elevados, de conflito ocorreram entre grupos que usavam esses recursos litorâneos, como os que existem na região costeira norte-americana do Pacífico. Quando os humanos adotaram inicialmente recursos densos e previsíveis como pilar de sua dieta? Durante milhões de anos, nossos ancestrais forragearam, alimentando-se de plantas e animais terrestres, e, ocasionalmente, também de alguns alimentos aquáticos interiores. Todos esses comestíveis ocor-
¹®¹D`àzå`®¹myDà®Dåmy Dàày®yåå¹Dù®`¹®È¹àïD®y´ï¹ ÈyàÈàºå¹`D¨j´Då`yùù®D yåÈyïD`ù¨Dà`àDïùàD´¹ÿDÎ colaboração, que chamo de hiperpró-sociabilidade, não é uma tendência adquirida, mas um traço geneticamente codificado, encontrado apenas em H. sapiens. Alguns outros animais podem exibir sinais sutis disso, mas o que humanos modernos têm é algo diferente. A pergunta de como adquirimos essa predisposição genética para nosso tipo extremo de cooperação é complicada. Mas modelos matemáticos de evolução social produziram algumas pistas valiosas. Sam Bowles, economista do Instituto Santa Fe, no Novo México, mostrou que uma condição ideal para a hiperpró-sociabilidade geneticamente codificada se propagar é, paradoxalmente, quando grupos estão em conflito. Grupos que têm um número maior de pessoas pró-sociais trabalharão com mais eficiência em conjunto e, portanto, superarão outros, além de repassarem seus genes para esse comportamento para a próxima geração, o que resulta na disseminação dessa tendência. Um estudo realizado pelo biólogo Pete Richerson, da Universidade da Califórnia em Davis, e pelo antropólogo Rob Boyd, da Universidade Estadual do Arizona (ASU), indica adicionalmente que esse comportamento se propaga melhor quando começa em uma subpopulação e a competição entre grupos é intensa, e quando os tamanhos populacionais gerais são pequenos, como a população original de H. sapiens na África, da qual descendem todas as pessoas da atualidade. 30 Scientific American Brasil | Setembro 2015
CORTESIA DE SIMEN OESTMO (acima); CORTESIA DE BENJAMIN SCHOVILLE (abaixo)
rem em baixas densidades, e a maioria é imprevisível. Por essa razão, nossos antecessores viviam em grupos altamente dispersos, que se locomoviam constantemente em busca de sua próxima refeição. Mas, à medida que a cognição humana se tornou cada vez mais complexa, uma população descobriu como sobreviver ao longo da costa alimentando-se de mariscos. As escavações de minha equipe nos sítios em Pinnacle Point indicam que essa mudança teve início há 160 mil anos, nos litorais austrais da África. Foi ali que, pela primeira vez na história da humanidade, as pessoas começaram a visar um recurso denso, previsível e altamente valorizado, desenvolvimento que levaria a uma grande mudança social. Evidências genéticas e arqueológicas sugerem que o H. sapiens passou por um declínio populacional pouco depois de ter se originado, devido a uma fase de resfriamento global, que se estendeu de aproximadamente 195 mil a 125 mil anos atrás. Ambientes litorâneos lhe proporcionaram um refúgio dietético durante os inclementes e rigorosos ciclos glaciais que tornavam plantas e animais comestíveis difíceis de encontrar em ecossistemas terrestres interiores; portanto eles foram vitais para a sobrevivência de nossa espécie. Esses recursos marinhos costeiros também constituíam uma razão para conflitos. Experimentos recentes na costa austral da África, conduzidos por Jan De Vynck, da Universidade Metropolitana Nelson Mandela, na África do Sul, mostram que concentrações de mariscos podem ser extremamente produtivas, com um rendimento de até 4.500 calorias por hora de forrageio. Minha hipótese, em essência, é que alimentos litorâneos eram um recurso alimentar denso, previsível e valioso. E, como tal, provocavam elevados níveis de territorialidade entre humanos, que acabavam levando a conflitos intergrupais. Esses confrontos regulares proporcionaram condições seletivas de comportamentos pró-sociais em grupos — trabalhar em conjunto para defender os leitos de mariscos e, com isso, manter acesso exclusivo a esse precioso recurso — que posteriormente se propagaram por toda a população. ARMAS DE GUERRA
DIMINUTAS LÂMINAS LÍTICAS, ou micrólitos, de Pinnacle Point, na África do Sul (acima), mostram que humanos inventaram armas arremessáveis há 71 mil anos. Eles fixavam os micrólitos em cabos de madeira para formar flechas ou dardos como os reconstituídos aqui (abaixo).
Com a capacidade de operar em grupos de indivíduos não aparentados, o H. sapiens estava no caminho certo para se tornar uma força imbatível. Mas suponho que ele precisasse de uma nova tecnologia, em forma de armas arremessáveis, para alcançar seu pleno potencial de conquistador. O desenvolvimento dessa invenção foi um processo longo. Tecnologias são aditivas: elas se baseiam em experimentos e conhecimentos prévios e assim se tornam cada vez mais complexas. A criação de armas de arremesso teria seguido a mesma trajetória, evoluindo, provavelmente, de hastes de madeira pontudas, usadas para perfurar, para dardos manuais, lanças de
arremesso alavancado (chamadas atlatl), a arcos e flechas, e finalmente, para toda a gama altamente criativa que os humanos contemporâneos inventaram para lançar objetos mortais. A cada nova repetição, a tecnologia tornou-se mais letal. Lanças, ou dardos simples de madeira com pontas afiadas tendem a produzir uma perfuração, mas essa lesão tem impacto limitado porque não dessangra o animal rapidamente. Equipar a lança com uma lasca de pedra afiada aumenta o trauma da www.sciam.com.br 31
ferida. Mas essa elaboração envolve várias tecnologias interligadas: a pessoa tem de ser capaz de “esculpir” uma ferramenta em forma pontiaguda, que penetre um animal, e moldar uma base que possa ser fixada em uma lança. Isso também requer algum tipo de tecnologia conectiva para prender essa ponta de pedra lascada à haste de madeira, seja com cola ou um material para amarrar (atar), às vezes os dois. Jayne Wilkins, atualmente na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e seus colegas mostraram que algumas ferramentas de pedra encon-
tradas em um sítio paleoantropológico sul-africano, chamado Kathu Pan 1, foram usadas como pontas de lanças há cerca de 500 mil anos. A antiguidade do achado de Kathu Pan 1 implica que ele é trabalho artesanal do último ancestral comum de neandertais e humanos modernos, e vestígios mais tardios, datados de uns 200 mil anos atrás, mostram que, como seria de esperar, as duas espécies descendentes também confeccionavam tais tipos de ferramentas. Essa tecnologia compartilhada significa que,
N OVO C E NÁ R I O
Invasor definitivo O Homo sapiens não se limitou meramente a seguir as pegadas de seus antecessores. Ele desbravou caminhos para terras inteiramente novas, e transformou ecossistemas onde quer que fosse. Após a estreia do nosso gênero Homo, na África (violeta), alguns ancestrais humanos primitivos começaram a se dispersar de suas terras natais por volta de dois milhões de anos atrás. Eles avançaram para várias regiões da Eurásia e acabaram evoluindo em Homo erectus, neandertais e denisovanos (verde). Há 200 mil anos, H. sapiens anatomicamente modernos já haviam evoluído. Quando as condições climáticas deterioraram, por volta de 160 mil anos atrás, deixando grande parte do interior da África inabitável, alguns membros dessa espécie procuraram refúgio na costa sul e aprenderam a explorar os ricos viveiros (“leitos”) subaquáticos de moluscos e crustáceos da região como fontes de alimentos. O autor propõe que essa mudança de estilo de vida levou à evolução de uma Ç߸Çx³äT¸x³xî`Dx³îx`¸l`DlDÇDßD`¸¸ÇxßDß `¸³lþlø¸äxäîßD³¸äj³T¸DÇDßx³îDl¸äjDlx melhor defender os depósitos de mariscos contra intrusos. Singularmente colaborativos e socialmente conectados, nossos ancestrais se tornaram cada vez mais engenhosos. Seu desenvolvimento de armas arremessáveis foi uma inovação revolucionária. Com o surgimento dessas duas características, cooperação extrema e projéteis avançados, o H. sapiens estava pronto para partir da África e conquistar o mundo (setas vermelhas). Ele se espalhou além da Europa e da Ásia, e chegou a continentes e cadeias insulares que nunca antes tinham abrigado humanos de qualquer espécie (marrom claro). Elevada territorialidade y`¹´ï¹ yÀêĈÎĈĈĈ DÀ÷ĈÎĈĈĈ D´¹åDïàEå H. sapiens aprende como explorar ricos y÷ĈĈÎĈĈĈ recursos costeiros DÀêĈÎĈĈĈ D´¹åDïàEå Origem do Homo sapiens e da cognição complexa na África
32 Scientific American Brasil | Setembro 2015
E`yà`Dmy ñÎĈĈĈD´¹å
Dispersão para o Ártico
E`yà`Dmy ÎĈĈĈD´¹å
Chegada à Europa ocidental Seguida da extinção de neandertais
E`yà`Dmy ÎĈĈĈD´¹å
Chegada ao Sudeste Asiático yéĈÎĈĈĈD ÎĈĈĈD´¹åDïàEå
Seguida da extinção dos denisovanos
Humanos modernos saem da África
E`yà`Dmy éÀÎĈĈĈD´¹å Armas arremessáveis
Seleção para comportamentos hiperpró-sociais
Cooperação intra e intergrupal (tribal)
E `yà`D my ÎĈĈĈ D´¹å
Chegada à Austrália Seguida da extinção da megafauna
Consequências Importantes mudanças ecológicas acompanharam a dispersão de nossa espécie. Na Europa e na Ásia, a chegada de humanos modernos condenou os arcaicos residentes humanos ao desaparecimento; quando essas pessoas modernas entraram em regiões que nunca antes haviam abrigado humanos de qualquer espécie, elas rapidamente caçaram à extinção muitos dos animais de grandes proporções, ou megafauna, que viviam nesses lugares. (A megafauna na Eurásia foi mais capaz de sobreviver à chegada do Homo sapiens, provavelmente porque a presença de longa data de humanos arcaicos ali havia produzido um equilíbrio entre predador e presa.) FONTE: “GLOBAL LATE QUATERNARY MEGAFAUNA EXTINCTIONS LINKED TO HUMANS, NOT CLIMATE CHANGE”, CHRISTOPHER SANDOM ET AL., EM PROCEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B, VOL. 281, Nº. 1787; 22 DE JULHO DE 2014 (ÁREA DE EXPANSÃO DE HOMINÍNEOS E MAPA DE EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA)
durante algum tempo, houve um equilíbrio de poder entre neandertais e H. sapiens primitivos. Mas essa situação estava prestes a mudar. Especialistas concordam que o surgimento de ferramentas miniaturizadas de pedra no registro arqueológico sinaliza o advento da verdadeira tecnologia de arremesso, para a qual leveza e balística são cruciais. Essas ferramentas são demasiadamente pequenas para serem empunhadas à mão. Em vez disso, elas devem ter sido montadas em fendas, ou aberturas enta-
E`yà`Dmy ÀÎĈĈĈD´¹å
Chegada à América do Norte Seguida da extinção da megafauna
E`yà`Dmy ÀñÎĈĈD´¹å
Chegada à América do Sul Seguida da extinção da megafauna Origem do gênero Homo Espécies primitivas de Homo arcaicos, inclusive o H. erectus Espécies tardias de Homo arcaicos, inclusive neandertais e denisovanos Espécies periféricas de Homo arcaicos H. sapiens Expansão de H. sapiens Humanos modernos não são os primeiros a chegar; extinção hominínea Humanos modernos são os primeiros a chegar; extinção da megafauna
Taxa de extinção de espécies de mamíferos de grandes proporções
Mapas de Terra Carta
0%
78%
Dados não disponíveis
lhadas em osso ou madeira para criar armas que podiam ser arremessadas a alta velocidade e a longa distância. Os exemplos mais antigos conhecidos dessa chamada tecnologia microlítica vêm justamente do sítio de Pinnacle Point. Ali, em um abrigo rochoso conhecido simplesmente como PP5-6, minha equipe descobriu um longo histórico de ocupação humana. Empregando uma técnica chamada datação por luminescência opticamente estimulada, a geocronóloga Zenobia Jacobs, da Universidade de Wollongong, na Austrália, determinou que a sequência arqueológica em PP5-6 abrange o período de 90 mil a 50 mil anos atrás. As mais antigas ferramentas microlíticas do sítio datam de cerca de 71 mil anos. Esse timing sugere que uma mudança climática pode ter precipitado a invenção dessa nova tecnologia. Antes de 71 mil anos atrás, os habitantes de PP5-6 confeccionavam grandes pontas e lâminas de pedra lascada de um tipo de rocha chamada quartzito. Naquela época, a linha costeira ficava perto de Pinnacle Point, como mostrou Erich Fisher da Universidade Estadual do Arizona (ASU) e membro da equipe. E reconstruções climáticas e ambientais feitas por Mira Bar-Matthews, do Serviço Geológico de Israel, e Kerstin Braun, agora uma pesquisadora de pós-doutorado na ASU, indicam que as condições eram semelhantes às que prevalecem atualmente na área, com fortes chuvas de inverno e vegetação arbustiva. Mas há uns 74 mil anos, o clima do mundo começou a mudar para condições glaciais. O nível do mar baixou e expôs uma planície costeira; e as chuvas de verão aumentaram, resultando na propagação de gramíneas altamente nutritivas e florestas dominadas por acácias. Acreditamos que isso levou ao desenvolvimento de um grande ecossistema de migração, em que animais de pastagem se deslocavam para o leste no verão e para o oeste no inverno, acompanhando as chuvas e, portanto, a relva fresca, no litoral antes submerso. Por que, exatamente, os habitantes de PP5-6 começaram a confeccionar armamentos pequenos e leves depois que o clima mudou não está claro. Talvez para visar animais à medida que eles migravam pela nova planície. Qualquer que tenha sido a razão, os habitantes locais desenvolveram um meio engenhoso para produzir suas minúsculas ferramentas: explorando uma nova matéria-prima, uma rocha chamada silcreto, cujos fragmentos aqueciam com fogo para facilitar o trabalho de “esculpi-los” em pequenas pontas afiadas. Somente com a mudança climática que ocorreu esses primitivos humanos modernos poderiam ter tido acesso a um estoque suficientemente estável de lenha das acácias para tornar a manufatura dessas ferramentas microlíticas, termotratadas, em uma tradição duradoura. Ainda não sabemos para que tipo de tecnologia de lançamento esses micrólitos eram utilizados. Minha colega Marlize Lombard, da Universidade de Johanesburgo, na África do Sul, estudou peças ligeiramente mais tardias de outros sítios e argumenta que elas representam a origem do arco e flecha, dado que os padrões de danos nelas são similares aos observados em pontas de flechas conhecidas. Não estou totalmente convencido, porque seu estudo não testou os danos criados por atlatls. Seja em Pinnacle Point ou em outro lugar, acredito que www.sciam.com.br 33
o atlatl mais simples precedeu o arco e flecha mais complexo. Também suspeito que, como caçadores-coletores recentes na África, cujas vidas foram documentadas em relatos etnográficos, H. sapiens primitivos teriam descoberto a eficácia de venenos e os teriam utilizado para aumentar o poder letal de projéteis. Os momentos finais de matança em uma caça com lança são caóticos, com corações disparados, pulmões arfando, poeira e sangue, e o fedor de suor e urina. Os perigos são muitos. Um animal perseguido até cair, derrubado de joelhos por exaustão e perda de sangue, tem um último truque: imperioso, o instinto leva a fera a se levantar mais uma última vez, “zerar” a distância, e investir, enterrando seus chifres nas entranhas humanas. As vidas curtas e os corpos quebrados de neandertais indicam que eles sofreram as consequências de caçar animais de grande porte a pouca distância com lanças de mão. Agora, considere as vantagens de um projétil lançado a distância e embebido em veneno, que paralisa esse animal, permitindo que o caçador se aproxime e ponha fim à perseguição com pouca ameaça. Essa arma foi uma inovação revolucionária.
àùȹåù®D´¹åDà`D`¹åj ´`DÈDĆyåmyåyù´ày¨D´cDà Dà®Dåj´T¹ï´D®D®y´¹à `D´`y`¹´ïàDyååDyåÈz`yÎ FORÇA DA NATUREZA
Com o acréscimo de armas arremessáveis a um comportamento hiperpró-social, nasceu um espetacular novo tipo de criatura, cujos membros formavam equipes que operavam, cada uma, como um único e insuperável predador. Nenhuma presa, ou inimigo humano, estava seguro. Munidos dessa potente combinação de características, seis homens, que falam seis idiomas diferentes, podem remar unidos, com toda força, enfrentando ondas de 10 metros de altura, para que o arpoador possa avançar até a proa quando o chefe mandar e arremessar um ferro letal no arquejante corpo de um leviatã, um animal que deve ver humanos como nada mais além de diminutos peixinhos. Da mesma forma, uma tribo de 500 pessoas, dispersadas em 20 bandos conectados em rede, pode formar um pequeno exército para desfechar uma ação retaliatória contra uma tribo vizinha por causa de uma incursão territorial. O surgimento dessa estranha combinação de matador e cooperador pode muito bem explicar por que, quando as condições glaciais voltaram a reinar entre 74 mil e 60 mil anos atrás, deixando grandes faixas da África inóspitas mais uma vez, as populações humanas modernas não se contraíram como antes. De fato, elas se expandiram na África do Sul e prosperaram com uma ampla variedade de ferramentas avançadas. A diferença foi que, dessa vez, os humanos modernos estavam equipados para responder a qualquer crise ambiental com conexões sociais flexíveis e tecnologia. Eles se tornaram 34 Scientific American Brasil | Setembro 2015
os predadores alfa em terra e, por fim, também no mar. Essa capacidade de dominar qualquer ambiente foi a chave que finalmente lhes abriu a porta para migrarem da África para o resto do mundo. Grupos humanos arcaicos, incapazes de se unir e arremessar armas, não tinham a menor chance contra essa nova espécie. Cientistas vêm debatendo há tempos por que nossos primos neandertais foram extintos. Acho que a explicação mais perturbadora também é a mais provável: eles eram percebidos como concorrentes e como uma ameaça, e os humanos modernos invasores os exterminaram. Foi para isso que evoluíram. Às vezes penso sobre como esse fatídico encontro entre humanos modernos e neandertais transcorreu. Imagino as bravatas que os neandertais devem ter contado ao redor de suas fogueiras sobre batalhas titânicas contra ursos-das-cavernas e mamutes inacreditavelmente enormes, travadas sob os céus cinzentos da Europa glacial, descalços sobre o gelo escorregadio com o sangue de presa e irmão. Então, um belo dia, a tradição deu uma guinada sombria e os gabolas viraram medrosos. Contadores de anedotas neandertais começaram a falar da chegada de uma nova gente em suas terras; pessoas inteligentes e rápidas, que arremessavam suas lanças a distâncias impossíveis, com espantosa e terrível precisão. Esses estranhos vinham até de noite, em grandes grupos, massacravam homens e crianças, e levavam as mulheres. A triste história dessas primeiras vítimas da engenhosidade e cooperação de humanos modernos, os neandertais, ajuda a explicar por que atos hediondos de genocídio e xenocídio ocorrem de vez em quando no mundo atual. Quando recursos e terras se tornam escassos, designamos os que não se parecem conosco, ou falam como nós, como “os outros”, e então usamos essas diferenças para justificar o extermínio ou a expulsão deles para eliminar qualquer concorrência. A ciência revelou os gatilhos que acionam nossas inclinações “embutidas” para classificar pessoas como “outros” e tratá-las de modo temerário. Mas só porque o H. sapiens evoluiu para reagir à escassez desse jeito cruel não significa que estamos irremediavelmente “presos” a essa resposta. A cultura é capaz de substituir até os mais arraigados instintos biológicos. Espero que o reconhecimento de por que nos voltamos uns contra os outros em tempos de vacas magras nos permita superar nossos impulsos malévolos e seguir uma de nossas mais importantes diretivas culturais: “Nunca mais”.
PA R A C O N H E C E R M A I S
5y ¹à´å D´m å´`D´`y ¹ `¹DåïD¨ àyå¹ùà`y ùåy ´ à`D D´m Āyåïyà´ ùàDåDÎ Curtis W. Marean em Journal of Human Evolution, Vol. 77, págs. 17–40; dezembro de 2014. ´ yDà¨Ă D´m y´mùà´ DmÿD´`ym ïy`´¹¨¹Ă ¹à´Dï´ éÀjĈĈĈ ĂyDàå D¹ ´ 3¹ùï à`DÎ Kyle S. Brown et al., em Nature, Vol. 491, págs. 590–593; 22 de novembro de 2012. D E N OSSOS A RQU I VOS
1ùD´m¹ ¹ ®Dà åD¨ÿ¹ù D ù®D´mDmyÎ Curtis Marean; edição nº 100, setembro de 2010.
LENTE GIGANTE: Montado no telescópio Gemini Sul, no alto dos Andes chilenos, o sensor GPI busca enormes exoplanetas gasosos.
C I Ê N C I A E S PA C I A L
PROCURANDO JUPITERES Duas equipes rivais de astrônomos competem para obter imagens inéditas de planetas gigantes ao redor de outras estrelas. Suas descobertas poderão mudar o futuro da busca por planetas Lee Billings
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"yy ¨¨´å÷rfÜ«ÍDÒÒ«ZDf«fD3Zr§ÜZ ¡rÍZD Ele é autor de Five billion years of solitude: The search f life among the stars (Current/Penguin Group, 2013).
Macintosh está aqui para procurar por outras Terras – ou, mais precisamente, por outros jupiteres, que alguns cientistas pensam serem necessários para que planetas rochosos e habitáveis como a Terra possam existir. Ele não está interessado em encontrar planetas do mesmo modo que a maioria dos astrônomos faz, ou seja, observando durante meses, ou mesmo anos, para que mudanças sutis no movimento ou brilho de uma estrela gradualmente revelem a presença de um mundo invisível. Ele procura gratificação instantânea: pretende tirar fotos reais de planetas distantes, para vê-los como pontos de luz circulando em torno de suas estrelas distantes, olhar em seus rostos gasosos através dos vários anos-luz de distância. Macintosh, um astrônomo da Universidade Stanford, chama isso de “imageamento direto”.
Além do vento, há outra razão para Macintosh se preocupar: a 600 quilômetros ao norte, em outro árido pico chileno, o astrônomo Jean-Luc Beuzit tenta fazer exatamente a mesma coisa. Beuzit, astrônomo do Instituto de Planetologia e Astrofísica de Grenoble, na França, é seu amigo e também seu rival. Destino e financiamento trouxeram esses dois homens para as montanhas ao mesmo tempo para vasculhar os céus por planetas, para saber se corpos celestes como a Terra são tão comuns como sujeira ou cosmicamente raros. A ferramenta escolhida por Macintosh para esta corrida astronômica é um complexo aparato óptico e de sensores do tamanho de um carro, de muitos milhões de dólares, chamado Imageador de Planetas Gemini (GPI, na sigla em inglês). Esse aparato está montado no imenso espelho de oito metros do te-
EM SÍNTESE
åïà»´¹®¹å `¹´y`y® milhares de planetas orbitando outras estrelas, mas fotografaram apenas poucos. Eles descobriram e estudaram todo o resto basicamente por meio de medições indiretas.
®DyDà ù® ȨD´yïD permite aprender sobre a sua composição, clima e condições para vida. Mas é difícil fazê-lo, pois eles são menores que suas estrelas-mães e ofuscados pela luz muito mais brilhante delas.
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®DyDà ȨD´yïDå `¹®¹ D 5yààD está além do alcance dos telescópios atuais. Uma nova geração de instrumentos está agora capturando imagens de mundos maiores, mais brilhantes, que se assemelham a Júpiter.
ååyå ´¹ÿ¹å ´åïàù®y´ï¹å nos ajudarão a aprender como os planetas gigantes se formam e moldam seus arredores, preparando o caminho para que futuras instalações tirem fotos de Terras alienígenas.
PÁGINAS PRECEDENTES: CORTESIA DO GEMINI OBSERVATORY/AURA; ESTA PÁGINA: CORTESIA DE G. HÜDEPOHL/EUROPEAN SOUTHERN OBSERVATORY
Nos pontos mais altos dos Andes, no Chile central, o céu noturno é tão escuro que é difícil de ver as constelações, engolidas por enxames de estrelas mais fracas. Essa visão familiar, mas ainda alienígena, pode ser desconcertante, mas é algo diferente que perturba Bruce Macintosh quando ele olha para o alto em uma noite de maio de 2014. Mesmo aqui, a 2.700 metros acima do nível do mar, ele ainda está olhando através de um oceano de ar, e o vento está aumentando. As estrelas no céu estão cintilando muito para seus propósitos.
ALTO E SECO: SPHERE, outro imageador planetário, busca jupiteres em outros sistemas estelares com o Very Large Telescope no árido deserto do Atacama, no Chile.
lescópio Gemini Sul, um disco de vidro recoberto com prata altamente polido cuja área, aproximadamente 52 metros quadrados, é comparável a um oitavo da área de uma quadra de basquete oficial. Macintosh e outros astrônomos pronunciam o acrônimo do instrumento “gee pie!” como se estivessem clamando por tortas (em inglês, pie é um tipo de torta, e gee é uma exclamação comum, como o nosso “uau!”). A resposta de Beuzit ao GPI é ainda maior: uma coleção de aparelhos que, juntos, são quase do tamanho de uma minivan chamada SPHERE, para o instrumento Spectro-Polarimetric High-contrast Exoplanet Research. O SPHERE está montado em outro telescópio de oito metros, no ESO-VLT (European Southern Observatory Very Large Telescope array). Ambos os projetos estiveram em desenvolvimento por mais de uma década, mas estrearam com diferença de meses um do outro. De seus remotos poleiros nas montanhas, eles examinam basicamente as mesmas estrelas, cada um procurando ser o primeiro a revelar fotos bombásticas de jupiteres além do Sistema Solar. Dos mais de 5.000 mundos descobertos orbitando outras estrelas ao longo das últimas duas décadas, quase nenhum foi realmente imageado diretamente. Tirar fotografias é difícil, porque até mesmo os maiores (e menos habitáveis) planetas
ainda têm brilho muito fraco e aparecem muito perto de seus sóis muito mais brilhantes, como os vemos de tão longe. Tire uma foto de um planeta – mesmo que seja uma pequena mancha de pixels – e você aprenderá muito sobre a composição desse mundo, sobre o clima e as possibilidades para a vida. A busca do GPI e do SPHERE por mundos semelhantes a Júpiter é o estado da arte da tecnologia; nós ainda não conseguimos construir telescópios grandes e sofisticados o suficiente para destilar a luz tênue de um planeta como a Terra do brilho irresistível de sua estrela parental. Mas quando, e se as construirmos, as instalações para esses estupendos telescópios quase certamente utilizarão instrumentos desenvolvidos a partir destes dois projetos. Em astronomia, como na vida cotidiana, é ver para crer. Embora imageamento direto seja extremamente difícil, pode também ser muito mais rápido do que as técnicas de detecção de planetas dominantes de hoje, potencialmente entregando descobertas por fotos que levam horas ou dias para serem obtidas, em vez de meses ou anos de meticulosas análises sobre conjuntos de dados estelares arcanos. É por isso que, nesta corrida para tirar as primeiras fotos dos Jupiteres de além do Sistema Solar, não é exagero dizer que cada minuto conta. www.sciam.com.br 37
CONSTRUINDO JUPITERE S
O nascimento de um gigante gasoso: dois cenários Os planetas se formam a partir dos mesmos discos de gás e poeira que dão à luz sóis. Um processo chamado de acreção nuclear pode fazer planetas gigantes “de baixo para cima”, conforme objetos minúsculos se aglutinam para construir gradualmente objetos maiores, montando grandes núcleos que varrem uma espessa atmosfera. Mas existe um caminho “de cima para baixo” mais rápido chamado instabilidade de disco em que aglomerados de gás colapsam diretamente em planetoides. Em média, gigantes jovens formados por acreção nuclear devem ser mais frios do que aqueles feitos pela instabilidade de disco. Ao medir as temperaturas de jovens planetas gigantes por meio de imagens no infravermelho, o GPI e o SPHERE poderiam revelar se a maioria dos gigantes são formados “de baixo para cima” ou “de cima para baixo”. å`¹ my Eå y ȹyàD åïày¨D ¦¹ÿy® INSTABILIDADE DE DISCO 7®D ÿyĆ Õùy ù®D yåïày¨D ´Då`yj ¹ ày¨º¹ yåïE `¹àày´m¹ ÈDàD D ¹à®DcT¹myù® ȨD´yïD D´ïy D ¨ùĆ mD yåïày¨D ÿDààyàE ÈDàD ¨¹´y ¹ Eå my´ï๠my ®¨Çyå my D´¹åj ¹yày`y´m¹ ù®ïy®È¹¨®ïDm¹ ÈDàD ¹ ´ú`¨y¹ m¹ ùïù๠ȨD´yïD D´ïy `àyå`yà y `¹¨yïDà Eå ÿD D`àycT¹Î ® `¹´ïàDåïyj ù® D¨¹®yàDm¹myEåmy´å¹ y ๠ȹmy y´ïàDà y® `¹¨DÈå¹ ÈDàD ¹à®Dà ù® ȨD´yïD D´ïy y® DÈy´Då ®¨Dàyå my D´¹åÎ ååy`¹¨DÈå¹àEÈm¹ y y`y´ïy yàDàD y DÈàå¹´DàD ´ïy´å¹ `D¨¹à my´ï๠m¹ ȨD´yïD ày`z®´Då`m¹j mD´m¹¨y ù® ȹmyà¹å¹Uਹ´àDÿyà®y¨¹ È¹à ®¨Çyå my D´¹åÎ å`¹myEåyȹyàD
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Ilustração de Ron Miller
A TARTARUGA E A LEBRE
O tempo pesa sobre Macintosh enquanto ele trabalha até muito tarde na sala de controle do Gemini Sul naquela noite em maio de 2014. Ele tem um rosto jovial, com um crescente de cabelo e olhos castanhos vivos que espiam por trás dos óculos de lentes grossas. Ele estava funcionando a Diet Coke e adrenalina, e ainda sob o efeito do jet-lag causado por uma série de voos em conexão da Califórnia ao Chile. Um de seus sapatos está desamarrado, e um leve cheiro de fumaça paira no ar, advindo de um jantar esquecido de pizza congelada, agora carbonizada em uma torradeira nas proximidades. Conforme ele olha para as várias telas de computador que monitoram os sinais vitais do GPI, parece que só o seu corpo está na sala – sua mente está em outro lugar, na cúpula adjacente do telescópio de oito metros, seguindo feixes de luz que saltam através das entranhas de seus instrumentos. Antes que o GPI comece a encontrar novos planetas, ele deve passar pelo “comissionamento”, uma sequência estendida de testes e calibrações que começaram no final de 2013 e está nos estágios finais nestes dias (maio de 2014). O trabalho é tedioso e sem glamour – ninguém nunca ganhou um prêmio por certificar que um instrumento funciona corretamente. Em uma corrida medida em minutos, o GPI tem uns seis meses de vantagem sobre o SPHERE que, neste momento, apenas começou o processo de comissionamento. Isso é um pequeno conforto para Macintosh, porque o SPHERE tem instrumentos mais potentes e mais tempo garantido de telescópio que o GPI, o que deve permitir ao SPHERE observar um maior número de estrelas em um maior campo de visão com maior resolução espectral e em um maior intervalo de comprimento de onda. Em outras palavras, mesmo que o GPI saia na frente, como a lebre na famosa fábula de Esopo, o SPHERE ainda poderia vir por trás, como a tartaruga, e ser o primeiro a encontrar os planetas procurados. O cintilar das estrelas vem de turbulência atmosférica, o que atrasou um pouco a equipe do GPI. Esperando que o vento esmorecesse, Macintosh me contava histórias de anos atrás, quando ele, Beuzit e outros membros do alto escalão do GPI e do SPHERE festejavam em conferências de astronomia ao redor do mundo, quando o conflito entre as equipes ainda estava longe de suas mentes. Esse tempo agora é um passado distante. “Nós ficávamos juntos, bebíamos muito e trocávamos muitas histórias”, Macintosh diz. “Mesmo agora, eles não são realmente o inimigo – as nuvens são o inimigo. E o vento também.” Depois de meia hora, os ventos diminuíram. “O.k., vamos olhar para HD 95086”, diz Macintosh, girando em sua cadeira para abordar aquela dúzia de membros da equipe que estavam na sala. Eles logo entraram em ação, digitando comandos nos computadores que controlam o telescópio na cúpula ao lado. Dentro de instantes o telescópio apontou para o alvo, uma estrela-anã branco-azulada a 300 anos-luz da Terra, na constelação de Carina. HD 95086 é uma estrela jovem em termos astronômicos, com somente cerca de 17 mi-
lhões de anos, e carrega um planeta gigante cinco vezes mais massivo do que Júpiter, orbitando a aproximadamente duas vezes a distância que Plutão orbita o Sol. Aparatos de imageamento direto menos capazes já viram esse planeta antes – a equipe calibrará o GPI comparando suas novas imagens com os resultados anteriores. Como todos os mundos que o GPI procura, esse planeta em particular mal se resfriou desde sua formação. Ele brilha intensamente no infravermelho. Em termos de brilho, a maioria dos planetas são milhões ou bilhões de vezes mais fracos do que suas estrelas, flocos de poeira perto de bolas de fogo termonucleares. Jupiteres jovens são diferentes. Eles são mais como brasas incandescentes se resfriando longe de uma fogueira, e é precisamente por isso que tanto o GPI quanto o SPHERE têm esperanças de vê-los e aprender exatamente como eles se formaram e evoluíram.
A luz dos planetas é muito mais fraca do que a de suas estrelas. §xääT¸¸`¸älxǸxßDD¸ßxl¸ß de bolas de fogo nucleares. Jovens Jupiteres são diferentes. Eles são mais como brasas incandescentes se resfriando longe da fogueira, e é por isso que o GPI e o SPHERE têm expectativa de observá-los. ORIGEM SECRETA DE JÚPITER
Entre os especialistas, é um segredo aberto embaraçoso que ninguém realmente sabe como o maior objeto orbitando nosso Sol se formou. Mas é exatamente isso que os especialistas querem desesperadamente descobrir, já que Júpiter, e outros planetas gigantes, são os arquitetos dos sistemas planetários, moldando tudo o que os rodeia. A maioria dos planetas gigantes conhecidos em torno de outras estrelas não são, realmente, como Júpiter. Muitos existem em órbitas escaldantes com meia-semana de duração diferente de qualquer coisa em nosso próprio Sistema Solar. A teoria prevalecente é que esses mundos infernais nasceram muito mais longe, espiralando em direção ao centro do sistema planetário para abraçar seus sóis, provavelmente por causa de interações gravitacionais com outros planetas ou fluxos de gás. Essa migração seria uma má notícia para a habitabilidade – ao longo do caminho, o campo gravitacional de um planeta gigante espiralando para dentro do sistema provavelmente lançaria quaisquer planetas pequenos e rochosos para fora, na escuridão interestelar, ou para dentro, no fogo de sua estrela. Esses mundos gigantes estão muito próximos de suas estrelas para www.sciam.com.br 39
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CORTESIA DE JEAN-LUC BEUZIT ET AL. / EUROPEAN SOUTHERN OBSERVATORY / SPHERE CONSORTIUM
Felizmente, existe outra maneira de testar se planetas giganserem fotografados diretamente com a tecnologia atual. Assim como seus primos exoplanetários muito mais quentes, tes se formam pelo processo bottom-up ou top-down: você pode Júpiter provavelmente também migrou no início de sua vida, tirar suas temperaturas. A formação top-down diretamente do mas por razões pouco claras, sua migração foi apenas temporária colapso de uma nuvem de gás aconteceria tão rapidamente que e não trouxe o planeta gigante para muito perto do Sol. Em vez uma enorme quantidade de calor ficaria presa dentro do planeta. disso, talvez tenha se aventurado até perto da atual órbita de A formação bottom-up produziria planetas gigantes que, embora Marte, antes de migrar de volta para o sistema solar exterior, ainda inicialmente quentes, seriam relativamente mais frios. “À onde permanece desde então. E, embora o movimento de um medida que mais e mais gás cai sobre um núcleo rochoso, esse planeta gigante possa sabotar a habitabilidade de um sistema excesso de gás é obstruído pelo gás que se acumula sobre o núcleo, ou seja, pela atmosfera em formaplanetário, no caso de Júpiter, ele pareção em torno do núcleo”, diz Mark Marce ter feito do Sistema Solar um lugar ley, colaborador do GPI, com quem eu mais hospitaleiro. Pelo menos, pensa-se conversei mais tarde, um teórico de forque as peregrinações de Júpiter tenham mação planetária no Ames Research lançado cometas e asteroides ricos em Center, da Nasa, que também ajudou a água de encontro com nosso já formado modelar o processo. “Um choque se deplaneta, formando os oceanos vivificansenvolve conforme o gás é desacelerado, tes da Terra. No máximo, o mergulho de e a maior parte da energia desse gás que Júpiter no interior do Sistema Solar povai se acumulando é irradiada para fora, deria até mesmo ter “limpado” outros que resfria rapidamente o planeta se forplanetas preexistentes, permitindo que mando. Então, quando você para de desa Terra se formasse, em primeiro lugar. pejar gás, o planeta já é muito mais frio Mesmo assim, o que Júpiter dá, ele OLHO QUE NÃO PISCA: a luz da do que teria sido se tivesse se formado pode tirar. Milhões de anos a partir de estrela HR 4796A foi filtrada dessa imade um colapso direto.” agora, Júpiter pode surrar nosso planegem do SPHERE, revelando um fraco Assim, a temperatura de um planeta ta novamente com mais asteroides gianel de poeira que talvez tenha sido gigante é, efetivamente, uma memória gante ou cometas, gerando impactos esculpido por um planeta invisível. de seu nascimento. Quanto mais velho o cataclísmicos que ferveriam nossos planeta fica, mais ele esfria, e quanto oceanos e vaporizariam nossa biosfera. frio, mais sua memória desaparece. Com Todos esses detalhes, até certo ponto, podem ser atribuídos à natureza e ao momento da formação quatro bilhões e meio de anos, Júpiter há muito tempo já se esmisteriosa de Júpiter. Uma coisa é certa: pouco mais de quatro queceu de como se formou. Mas planetas gigantes mais jovens bilhões e meio de anos atrás, uma nuvem fria de gás e poeira co- do que algumas centenas de milhões de anos – exatamente os lapsou para formar o Sol. Os remanescentes da nuvem que não planetas que o GPI e o SPHERE estão tentando imagear no infracaíram em nossa estrela nascente formaram um disco, a partir vermelho – devem ter ainda suas memórias térmicas intactas. do qual os planetas foram formados. Mundos rochosos, sendo re- Vasculhando centenas de estrelas brilhantes e jovens nas proxilativamente pequenos, são fáceis de montar em um processo “de midades, ambos os projetos podem sondar as temperaturas e baixo para cima” (bottom-up, em inglês) chamado acreção nu- histórias de dezenas de planetas gigantes, desvendando o segreclear (core accretion, em inglês), onde rochas em colisão gradual- do de sua formação e lançando luz sobre como sistemas habitámente se juntaram ao longo de 100 milhões de anos. A maioria veis como o nosso próprio se formaram. dos pesquisadores suspeita que Júpiter tenha se formado dessa maneira. Mas, para isso, ele teria de ter se formado muito mais IMAGEANDO OUTRO JÚPITER rápido, construindo caroços do tamanho da Terra em talvez 10 Conforme a equipe do GPI se prepara para observar HD milhões anos, tempo suficiente para varrer grandes atmosferas 95086, um círculo monocromático se materializa em uma das antes que a matéria-prima gasosa fosse varrida para fora pela luz telas de Macintosh. Parece conter um fluido fortemente pixeliintensa de nossa estrela jovem. zado, como um close-up digitalizado de um rio correndo ou uma Existe uma outra possibilidade. Planetas gigantes poderiam tela de televisão não sintonizada inundada com estática. também se formar como as estrelas fazem, em um processo “de “Você está olhando para o vento”, diz Macintosh. “Essa é a luz cima para baixo” (top-down, em inglês) chamado instabilidade das estrelas brilhando através da turbulência atmosférica e de disco. Nesse cenário, algo como Júpiter atingiria a “planetari- caindo em um detector que realiza nossa óptica adaptativa.” Ópdade” através do colapso direto e rápido de uma nuvem fria e tica adaptativa é o conjunto de espelhos deformáveis controladensa de gás e poeira na região externa de um disco circum-es- dos por computador que mudam suas formas centenas ou mestelar. É quase impossível distinguir entre esses dois cenários mo milhares de vezes por segundo para combater as distorções olhando para Júpiter hoje, porque essencialmente todas as evi- atmosféricas, permitindo que os astrônomos capturem imagens dências foram, literalmente, se enterrando abaixo da densa e es- de objetos celestes que rivalizam com aquelas obtidas com telespessa atmosfera do planeta gigante. cópios espaciais. Com algumas combinações de teclas e coman-
dos verbais para a sua equipe, Macintosh aciona a óptica adaptativa do GPI. Montados por baixo do telescópio de oito metros, os dois espelhos deformáveis do GPI – um “alto-falante” para frequências graves de vidro padrão e um espelho menor que é um “alto-falante” para frequências agudas customizado embalado com mais de 4.000 atuadores – estão agora se ondulando e deformando em sincronia, combinando cada pacote de manchas de luz transitória e fluxos de ar sobrepostos com um correspondente aumento ou diminuição nas suas superfícies, esculpindo os raios de luz das estrelas de volta quase à perfeição. O resultado parece mágico: o círculo turbulento na tela de Macintosh torna-se suave e plácido, como se a atmosfera de repente desaparecesse. HD 95086 é agora uma figura brilhante na tela. Não há nenhum sinal de planeta. Para revelar o planeta conhecido da estrela, Macintosh envolve outro dispositivo, um coronógrafo, que retira a maior parte da luz das estrelas: a luz encontra uma série de máscaras que filtram 99% dos fótons. Os que passam são focalizados em um espelho com um orifício central, polido em escala atômica. “A luz da estrela cai no buraco”, explica Macintosh, enquanto a luz de um planeta se reflete no espelho e vai mais fundo no instrumento, atingindo um espectrógrafo super-resfriado que divide a luz em seus comprimentos de onda constituintes (ou cores). A imagem na tela é, agora, um halo irregular de luz branca circundando uma profunda sombra central onde HD 95086 deveria estar. As protuberâncias – chamadas salpicos – são formadas pela luz indesejada da estrela que vaza através do coronógrafo. Os salpicos podem obscurecer um planeta nas imagens do GPI ou mesmo se parecer com um. Para distinguir entre salpicos e planetas, a equipe leva uma sequência de exposições em vários comprimentos de onda infravermelhos. “A separação entre uma estrela e um salpico é proporcional ao comprimento de onda da luz em uma imagem”, diz James Graham, cientista do projeto do GPI, e professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, conforme olhamos para a tela. Em comprimentos de onda mais curtos, mais azuis, um salpico aparece mais perto da estrela; em comprimentos de onda mais longos, mais vermelhos, esse mesmo salpico aparece mais longe, Graham explica. “Então, quando você vê toda a sequência [de comprimento de onda], as manchas se moverão. Um planeta não.” Macintosh rola para trás e para frente através das exposições, empilhados como quadros de um filme, e o halo parece respirar, se ampliando e contraindo conforme todas as protuberâncias se movem em uníssono. Todos os nódulos, exceto um: um ponto solitário, fixo, de luz planetária pescado de um mar de manchas estelares. Em menos de meia hora, passamos de ver apenas o vento para um mundo distante em torno de outra estrela. Uma análise mais aprofundada do espectro do planeta advindo dos dados do GPI sugere que o planeta é extremamente vermelho, talvez resultado de um excessivo espalhamento da luz pela poeira em sua atmosfera superior. É um detalhe pequeno, mas emocionante, aprender sobre um mundo que está a 300 anos-luz de distância.
Nem todos os alvos são tão difíceis de ver; estrelas mais brilhantes e próximas podem fornecer alguns dos seus segredos muito mais prontamente. Mais cedo, a equipe do GPI precisou de apenas uma única exposição de 60 segundos para capturar uma imagem de Beta Pictoris b, um planeta gigante quente e jovem a 63 anos-luz da Terra que orbita a sua estrela em quase duas vezes a distância Júpiter-Sol. A facilidade de ver esse planeta sugere que o imageamento direto, finalmente, está se tornando rotina: um gerador de imagens diretas ligeiramente mais velho no Gemini Sul tinha, anteriormente, obtido uma imagem semelhante de Beta Pictoris b, embora exigisse mais de uma hora de observação e extenso pós-processamento. As novas imagens permitiram que a equipe do GPI estimasse a órbita de Beta Pictoris b com mais precisão do que nunca, revelando que em 2017 ele transitará em frente da face de sua estrela, como vista da Terra – um raro alinhamento que seria um benefício para os cientistas que procuram aprender mais sobre o gigante distante.
“Este é o primeiro planeta que alguém já descobriu que se parece com uma versão quente de Júpiter”, diz o astrônomo Bruce Macintosh. “Este planeta pode ser ¸äø`x³îxÇDßD§xUßDßlxäxø processo de formação.” Antes do nascer do sol, a equipe do GPI imageou estrelas binárias, fracos discos de detritos, e até mesmo a lua de Saturno, Titã, penetrando sua espessa e nebulosa atmosfera cheia de hidrocarbonetos até a superfície manchada. Perto do amanhecer, com o brilho do Sol a se aproximar no horizonte, Macintosh se inclinou para trás na cadeira e suspirou, exausto mas satisfeito. Na noite final do prazo de seis dias, a equipe do GPI encontrou seu primeiro planeta, que orbita uma estrela de 20 milhões de anos, ao dobro da distância Júpiter-Sol. Macintosh não é o primeiro a notar. Robert de Rosa, pós-doutorando na Universidade da Califórnia em Berkeley, espia um ponto cintilante ao olhar sobre o ombro de outro colega em algumas imagens do GPI que passariam despercebidas. Observações seguintes mostrariam duas a três vezes a massa de Júpiter, com uma atmosfera com metano quente o suficiente para derreter chumbo. Está a 100 anos-luz da Terra, mas é a coisa mais parecida com Júpiter já vista. “Este é o primeiro planeta que alguém já descobriu que se parece com uma versão quente de Júpiter, em vez de uma estrela muito fria”, diz Macintosh. “Esse planeta pode ser jovem o suficiente para ainda lembrar de seu processo de formação. Com observações suficientes, poderíamos determinar melhor sua massa e idade e descobrir se se formou pelo processo bottom-up, como pensamos que Júpiter se formou, ou pelo processo top-down, como uma estrela.” www.sciam.com.br 41
Enquanto conversamos, Macintosh me pede sigilo até que a equipe do GPI possa escrever e submeter um artigo. “O SPHERE poderia ver isso muito facilmente também”, diz ele. “Não sabemos se eles já olharam para essa estrela. Estamos todos nervosos em sermos superados.” PRIMEIRA LUZ PARA O FUTURO
Pouco depois do amanhecer, deixo o Gemini Sul, pego um avião para o norte, alugo um carro e viajo mais de 600 quilômetros em uma estrada solitária através do alto e seco Deserto do Atacama, Chile, para chegar ao SPHERE antes que a noite caia. Chego ao observatório do SPHERE, o Very Large Telescope, logo após o pôr do sol. Em uma sala de controle apertada, Beuzit, o líder do projeto, está manejando suas tropas conforme o comissionamento começa. Os astrônomos estão debruçados sobre telas de computador, conversando calmamente em francês, alemão e inglês, tentando ignorar as câmeras e microfones da equipe de filmagem do documentário em visitação. Beuzit, com o seu cabelo escuro despenteado e barba, parece um pouco com o falecido diretor de cinema Stanley Kubrick. Ele vai de estação em estação, bebericando café expresso, parando aqui e ali para ouvir e aconselhar. Uma recentemente esvaziada garrafa de champanhe Laurent-Perrier está em uma estante próxima, “SPHERE 1st Light” está rabiscado com marcador preto em seu rótulo. O desempenho do SPHERE foi admirável durante o comissionamento, produzindo belíssimas fotos de diversos alvos celestes, incluindo um fraco anel de poeira em torno de HR 4796A, uma estrela de oito milhões de anos a 237 anos-luz da Terra, na constelação Centaurus (ver ilustração na página 40). Mais tarde, quando eu olhei para o anel com a estrela obturada em seu centro, eu me senti como se estivesse sendo observado – a imagem se parece com um enorme olho, olhando através das profundezas do espaço. Mas, apesar dessas fotos lindas na noite de minha visita, o SPHERE não está completamente pronto para descobrir novos planetas, Beuzit me diz. Não está tudo bem com a óptica adaptativa do sistema: alguns dos atuadores do espelho deformável de € 1 milhão e 1.377 elementos estão falhando, e ninguém na equipe sabe o porquê. A solução definitiva, Beuzit diz, pode ser substituir todo o espelho por um novo que use uma tecnologia diferente para os atuadores. Mesmo assim, ele está otimista que tanto o SPHERE quanto o GPI vão atender e superar suas metas. Nesse meio tempo, o comissionamento deveria continuar – o comissionamento foi concluído no início deste ano, gerando seu próprio primeiro lote de observações científicas iniciais, produzindo imagens de vários sistemas planetários previamente fotografados. Quando eu perguntei a ele sobre a rivalidade do SPHERE com o GPI, a primeira resposta de Beuzit foi apenas um sorriso e um gole de seu café. Depois de um momento, o astrônomo francês falou com cuidado. “Uma vez que ambos começarem a descobrir novos planetas, ninguém se lembrará de quem foi o primeiro”, diz Beuzit. “Eu não estou dizendo que não vamos competir e lutar, nós e os americanos. Mas Bruce Macintosh e eu nos conhecemos há 15 42 Scientific American Brasil | Setembro 2015
anos, e nós dois sabemos como isso é difícil. Nós celebramos nossos sucessos e compartilhamos nossas dificuldades para melhorar nossos sistemas, para preparar o caminho para a próxima geração de observatórios e imageadores.” “Estamos entrando em uma nova era com todas essas facilidades funcionando quase ao mesmo tempo”, diz Dimitri Mawet, professor do California Institute of Technology e, na época, um dos cientistas principais da instrumentação do SPHERE. “Nós vamos descobrir muitas coisas maravilhosas, mas também estamos empurrando significativamente a tecnologia da óptica adaptativa para a frente. Isso será fundamental para a próxima geração de telescópios, o que exigirá esse tipo de controle apenas para manter seus enormes espelhos alinhados.” Um desses novos telescópios está sendo planejado a apenas 20 km a nordeste do SPHERE, no pico de 3.000 metros de Cerro Armazones. Pouco depois de minha visita, explosões dinamitaram o topo do pico, abrindo terreno para a construção do European Extremely Large Telescope, um dos três observatórios gigantescos previstos para estrear em cerca de uma década. Emparelhado com o poder de captação de luz sem precedentes do gigantesco espelho de 30 ou 40 metros desses observatórios gigantes, um sistema semelhante ao SPHERE ou ao GPI seria capaz de imagear não só jupiteres autoluminosos, mas também planetas potencialmente habitáveis 1.000 vezes mais tênues que orbitam estrelas vizinhas mais frias próximas do Sol. Uma missão de imageamento direto dedicada no espaço poderia então sondá-los ainda mais, buscando sinais de vida. Desde que mundos estejam ainda lá para serem vistos. A perspectiva de obter essas imagens, vislumbrando Terras alienígenas, é o que motiva muitas das pessoas por trás de projetos como o GPI e o SPHERE. Macintosh disse isso muitas vezes durante as nossas conversas no Gemini Sul: “Eu vejo tudo o que estamos fazendo agora como passos ao longo da estrada em direção a uma foto de outra Terra. Algum dia vamos ter essa foto. Se nós finalmente obtivermos resultados sobre aquela fração dos pequenos planetas rochosos que possuem coisas realmente relevantes – como os que têm oceanos, oxigênio atmosférico, e assim por diante – e esse número acabar por ser muito pequeno, bem, isso é provavelmente muito importante. Isso pode não fazer nenhuma diferença prática para a progressão da nossa civilização por um tempo muito longo, mas, filosoficamente, ela será capaz de dizer que ‘o nosso [planeta] é o único lugar como esse dentro de 1.000 anos-luz’, e talvez isso nos leve a tentar com um pouco mais de afinco não estragar tudo”.
PA R A C O N H E C E R M A I S
302 å`y´`y ÿyà`Dï¹´Î Bruno Leibundgut et al. em Messenger, no 159, págs. 2 a 5, março de 2015. àåï ¨ï ¹ ïy y®´ 0¨D´yï ®DyàÎ Bruce Macintosh et al. em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 111, no 35, págs. 12.661 a 12.666, 2 de setembro de 2014. ā¹È¨D´yï myïy`ï¹´ ïy`´ÕùyåÎ Debra Fischer et al. em Protostars and Planets VI. University of Arizona Press, 2014. D OS N OSSOS A RQU I VOS
3yDà`´ ¹à ¨y ¹´ ¹ïyà ȨD´yïåÎ J. Roger P. Angel e Neville J. Woolf, abril de 1996. ' D®D´y`yà my `zùå ®ùï¹ måïD´ïyåÎ Michael D. Lemonick, agosto de 2013.
$ÎDà¨yå"Uyà®D´ é professor de otologia e laringologia na Escola de Medicina de Harvard e diretor dos Laboratórios Eaton-Peabody no Hospital de Olhos e Ouvidos de Massachusetts. Ele se especializa em estudar os caminhos entre a parte interna do ouvido e o cérebro.
NEUROCIÊNCIA
A PERDA AUDITIVA Britadeiras, shows e outras fontes de ruídos podem provocar danos irreparáveis aos seus ouvidos de maneiras inesperadas
BRIAN STAUFFER
M. Charles Liberman
ÃS DE FUTEBOL AMERICANO DO SEATTLE SEAHAWKS e do Kansas City Chiefs rotineiramente competem em jogos disputados “em casa” para estabelecer o recorde de estádio mais ruidoso do mundo no Livro Guinness dos Recordes. No dia 1o de outubro de 2014, os torcedores do Chiefs atingiram o mais recente pico: 142,2 decibéis (dB). Esse nível equivale ao insuportável rugido de um motor a jato acelerado a 30,5 metros de distância, um típico exemplo citado por especialistas para um barulho mais que suficientemente alto para causar danos auditivos. Após o jogo, os fãs estavam extáticos. Eles “curtiram” a experiência, salientando o zumbido em seus ouvidos ou a sensação de que seus tímpanos estavam prestes a explodir. Mas o que acontecia dentro de seus ouvidos estava longe de ser maravilhoso. www.sciam.com.br 43
Um teste de audição, se aplicado antes e imediatamente após o jogo, poderia ter acusado uma acentuada deterioração. O som mais sutil que um fã poderia ter escutado antes do apito inicial, digamos palavras sussurradas, talvez não fosse mais detectável até o meio tempo. Até o apito final, os limiares de audição poderiam ter aumentado em até 20 a 30 dB. À medida que o zumbido nos ouvidos dos fãs diminuiu ao longo de alguns dias, o resultado do teste de audição, chamado audiograma, pode muito bem ter voltado à linha de base, ou basal, enquanto a capacidade de escutar sons fracos retornava. Durante muito tempo cientistas julgaram que assim que limites auditivos voltavam ao normal, o ouvido também deveria fazer o mesmo. Recentemente, porém, meus colegas e eu demonstramos que essa suposição não é verdadeira. Exposições que levam a um aumento apenas temporário de limiares podem, sim, causar dano imediato e irreversível a fibras do nervo auditivo, que transmite informações sonoras para o cérebro. Esse dano pode não afetar a detecção de tons, como mostra o audiograma, mas ele pode dificultar a capacidade de processar sinais mais complexos. Essa condição recém-identificada é chamada perda auditiva “oculta” porque um audiograma normal pode esconder o dano neural e a deficiência auditiva associada a ele. À medida que uma pessoa continua a abusar de seus ouvidos, o estresse sobre as fibras nervosas pode aumentar. De fato, essa perda de integridade pode contribuir para a deterioração gradual da capacidade de pessoas de meia-idade e idosos discriminarem as sutilezas da fala. No entanto, a perda auditiva oculta não é, de forma alguma, restrita a adultos mais velhos. A mais recente pesquisa sugere que ela está ocorrendo em idades cada vez mais tenras na sociedade industrial devido à maior exposição a sons altos; alguns evitáveis, outros não.
MARAVILHA SENSORIAL
A vulnerabilidade do ouvido resulta de sua impressionante sensibilidade, que lhe permite funcionar em uma vasta gama de níveis sonoros. A nossa capacidade de discernir um som baixo, sutil, em frequências de cerca de mil oscilações por segundo, ou 1.000 hertz (Hz) — em outras palavras, o limite em que podemos perceber esse som — é definido como zero decibel. Utilizando essa medida logarítmica, cada aumento de 20 dB no nível de um som corresponde a um aumento de 10 vezes na amplitude das ondas sonoras. A zero dB, os ossos do ouvido médio, cujas vibrações estimulam o processo auditivo, se movem menos que o diâmetro de um átomo de hidrogênio. No extremo oposto, como nos níveis recordes de mais de 140 dB do jogo do Kansas City Chiefs, que simplesmente induzem dor, o ouvido é forçado a lidar com ondas sonoras 10 milhões de vezes superiores em amplitude. A audição começa quando o ouvido externo canaliza ondas sonoras através do canal auditivo até o tímpano, que vibra e aciona os ossos do ouvido médio. Em seguida, as vibrações resultantes prosseguem até a cóclea, o tubo cheio de fluido do ouvido interno, onde se localizam células ciliadas que ocupam uma faixa espiralada de tecido chamada órgão de Corti, ou órgão espiral. Essas células recebem seu nome de saliências semelhantes a pelos conhecidos como estereocílios, que se projetam em feixes de uma extremidade das células. As células ciliadas mais sensíveis a baixas frequências ficam em uma das extremidades da espiral coclear, e as mais sensíveis a altas frequências se localizam na outra ponta. À medida que ondas sonoras flexionam esses “pelos”, as células convertem vibrações em sinais químicos, emitindo uma molécula neurotransmissora, glutamato, na outra extremidade, onde as células ciliadas formam sinapses com as fibras do nervo auditivo. Na sinapse, o glutamato liberado por
uma célula ciliada atravessa uma estreita fissura para se ligar a receptores na extremidade, ou terminal, de uma fibra nervosa auditiva. Cada terminal se encontra em uma extremidade de uma célula nervosa que estende uma longa fibra, um axônio, até a sua outra extremidade, no tronco cerebral. O glutamato ligado a fibras nervosas dispara um sinal elétrico que percorre todo o comprimento do nervo auditivo até o tronco cerebral. De lá, os sinais passam por uma série de circuitos neurais paralelos que atravessam várias regiões, do tronco cerebral ao mesencéfalo e o tálamo, terminando sua jornada no córtex auditivo. Em conjunto, esse complexo circuito analisa e organiza nosso ambiente acústico em uma série de sons reconhecíveis, seja uma melodia familiar ou o som estridente de uma sirene. Células ciliadas são de dois tipos: externas e internas. As externas amplificam os movimentos induzidos por som no ouvido interno, enquanto as internas traduzem esses movimentos nos sinais químicos que estimulam o nervo auditivo. As células internas são as mais diretamente atuantes no processo que consideramos ser “audição”, porque 95% das fibras nervosas auditivas só formam sinapses com células ciliadas internas. Por que tão poucas fibras conectam as células ciliadas externas ao cérebro continua sendo um mistério, mas já foi teorizado que as fibras ligadas a células ciliadas externas talvez sejam a fonte da dor que todos nós sentimos quando a altura de uma onda sonora se aproxima de 140 dB. Historicamente, a perda auditiva tem sido avaliada principalmente por meio de audiogramas. Os otologistas, médicos especializados em ouvidos e audição, sabem há muito tempo que operários que moldam chapas metálicas em caldeiras por percussão frequentemente apresentavam perda permanente de audição para tons na região de frequência média. Audiogramas registram nossa capacidade de detectar tons a intervalos de oitavas de fre-
EM SÍNTESE
åDUym¹àD `¹´ÿy´`¹´D¨ sustenta que ruídos altos provocam som abafado ou zumbido nos ouvidos, mas que eles se recuperam logo.
% ÿyå my àù m¹ y¨yÿDm¹å podem produzir mD´¹å Èyà®D´y´ïyå D UàDå ´yàÿ¹åDå Dùmtivas que conduzem os sons ao cérebro.
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ÈyàmD DùmïÿD ¹`ù¨ïD que resulta pode permitir que alguém ouça sons sem discernir o que um orador está dizendo.
7® ®ym`D®y´ï¹ ÈDàD ày`ùÈyàDà UàDå ´yàÿ¹åDå mD´`DmDå ȹmy åyà ù®D 幨ùcT¹ para esse problema amplamente difundido.
Fibra nervosa auditiva (verde)
T R AU M A AU D I T I VO
O estrago pelo som em altos volumes
Caminho para o cérebro 2ù m¹D¨ï¹mD´`Dïyà®´DåmyUàDå´¹ nervo auditivo. Como resultado, as conexões com o ouvido interno são perdidas e a audição é prejudicada
Quando ondas sonoras viajam através do canal auditivo, além do tímpano, elas chegam ao ouvido interno. Ali, no chamado órgão de Corti, vibrações induzidas por som estimulam as células ciliadas externas (detalhe)Í Ç§`DlDä por essas células externas, essas vibrações são então detectadas por outras internas, também ciliadas, que as traduzem em sinais químicos que serão x³þDl¸äÇDßDUßD䳸³xßþ¸Dølîþ¸Í 3DUxäx há tempos que danos às células ciliadas provocam perda de audição. Mas foi constatado ÔøxDäUßDäîDUyǸlx äxß lD³`D das por ruídos altos, levando a uma perda auditiva mesmo quando as células ciliadas permanecem intactas.
Nervo auditivo
Células ciliadas internas (azul)
Canal auditivo Órgão de Corti Células ciliadas externas (vermelho)
Tímpano
quência: por exemplo, 250, 500, 1.000, 2.000, 4.000 e 8.000 Hz. Nos estágios iniciais da perda auditiva induzida por ruído, o audiograma exibe o que é chamado “doença do caldeireiro”, uma incapacidade de detectar sons nas frequências médias da faixa de audição humana. Nas décadas de 50 e 60, estudos epidemiológicos de operários em fábricas barulhentas mostraram uma clara relação entre o tempo no emprego e um declínio da acuidade auditiva. O déficit inicial de aproximadamente 4.000 Hz tendeu a se espalhar para outras frequências com o tempo. Muitos trabalhadores mais velhos perderam a audição completamente acima de 1.000 ou 2.000 Hz. Uma perda sonora tão alta causa uma deficiência auditiva grave porque grande parte das informações na fala se situa na faixa de frequência que se tornou “surda”, ou deixou de responder. Na década de 70, estudos humanos como esses inspiraram o governo dos Estados Unidos a estabelecer diretrizes para níveis de ruídos a fim de limitar as exposições no local de trabalho. Hoje, várias agências federais regulam esses níveis, inclusive o Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional e a Administração Ilustração de Bryan Christie
de Saúde e Segurança Ocupacional (OSHA), mas diversas agências sugerem limites diferentes. A falta de concordância precisa reflete os desafios na avaliação dos riscos de danos provocados por ruídos. E o problema é duplo. Primeiro, existem enormes diferenças individuais em suscetibilidade a ruídos: há o que poderia ser descrito como ouvidos “duros ou resistentes” e ouvidos “delicados”. Isso significa que os reguladores precisam decidir que porcentagem da população querem proteger e que nível de perda auditiva é aceitável. O segundo problema é que os efeitos de ruídos na audição resultam de uma complexa combinação de tempo de duração, intensidade e frequência de sons a que uma pessoa é exposta. Atualmente, a OSHA determina que os níveis sonoros não devem exceder 90 dB para uma jornada de trabalho de oito horas. O risco de danos provocados por ruídos acima de 90 dB é mais ou menos proporcional à energia total aplicada ao ouvido. Para cada 5 dB adicionais acima do padrão de oito horas, as diretrizes da OSHA recomendam uma redução de 50% do tempo de exposição; em outras palavras, um trabalhador não deve ser exposto
a 95 dB por mais de quatro horas ou a 100 dB por mais de duas horas por dia. Por essas medidas, a exposição a 142 dB ou mais de fãs de futebol americano que disputam o recorde Guinness de ruído excederia as orientações da OSHA em cerca de 15 segundos. É claro que a entidade não regulamenta os níveis de ruídos para fãs em jogos de futebol, nem para fazendas dos EUA, onde adolescentes que dirigem tratores e colheitadeiras durante o dia todo correm sério risco de perda auditiva. Nos últimos 60 anos, otologistas presumiram que leituras ou interpretações rotineiras de um audiograma revelam tudo o que é preciso saber sobre danos induzidos por ruídos na audição. De fato, o audiograma mostrará se houve danos às células ciliadas do ouvido interno, e estudos das décadas de 40 e 50 revelaram que essas células estavam entre as mais vulneráveis do ouvido interno a sobre-exposições acústicas. Experimentos em animais, alguns conduzidos em nosso laboratório, mostraram que as células ciliadas externas são mais vulneráveis que as internas, que células ciliadas na seção da cóclea, que detecta tons de alta frequência, são mais vulneráveis www.sciam.com.br 45
A L G U M A S M E D I DA S S I M P L E S
Como proteger sua audição Em várias espécies animais diferentes, os danos neurais no ouvido são irreversíveis após duas horas de exposição contínua a ruídos de 100 a 104 decibéis (dB). Tudo leva a crer que isso vale para humanos. A maioria das exposições diárias em nossas vidas não duram tanto tempo. Ainda assim, é prudente evitar uma exposição desprotegida a quaisquer sons que ultrapassem 100 dB. Muitos sons na vida cotidiana nos levam a uma zona de perigo. Locais de shows musicais e boates rotineiramente produzem picos que chegam a 115 dB e níveis médios superiores a 105 dB. Sopradores de folhas movidos a gasolina e máquinas de cortar grama atingem os ouvidos dos usuários a níveis de 95 a 105 dB, assim como serras circulares. A frequência dos sons é importante. O ruído mais agudo ou estridente de uma lixadeira de cinta é mais perigoso ao mesmo nível de decibéis que o rugido menos estrepitoso de uma motocicleta com escapamento aberto ou mal regulado. Britadeiras produzem níveis de 120 dB até para transeuntes, e o contínuo som de “disparos de metralhadoras”, ou impulsos rápidos da broca de metal no concreto produzem muitos dos perigosos sons agudos e estridentes. O que podemos fazer? Atualmente quase todos nós temos acesso a medidores surpreendentemente precisos de níveis sonoros em nossos bolsos ou bolsas. Existem inúmeros aplicativos gratuitos ou de baixo custo para iOS e Android que fornecem leituras `¸³Eþxä lx ÇßxääT¸ 丳¸ßD Ç߸løąlD Ç¸ß um instrumento musical ou um motor de carro que “explode” e que se situam em uma faixa de precisão de 1 a 2 dB do mais caro xÔøÇDx³î¸ Ç߸ä丳D§ lx ¸³î¸ßDx³î¸ de sons. O app para iOS que melhor funcionou para mim, o Sound Level Meter Pro, custa menos de US$ 20 e me forneceu leituras com uma precisão de menos de 0,1 dB. Uma vez que você se conscientiza de quais sons em seu ambiente são potencialmente perigosos, a boa notícia é que proteî¸ßxä x`Dąxä lx ¸øþl¸ä äT¸ UDßDî¸äj
E`xä de usar e portáteis. Se bem inseridos, tampões ou plugues de espuma podem atenuar o nível de som em 30 dB nas regiões de frequência mais perigosas. Pressione um entre os dedos para espremê-lo no cilindro mais ³¸ Ôøx `¸³äxøß xj x äxølDj ¸ ³äßD rapidamente o mais fundo que pode em seu canal auditivo. Isso não é mais difícil ou peri-
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goso do que colocar fones de ouvido intra-auriculares (também chamados “earbuds”). Deixe-os expandir lentamente e, em um minuto você está pronto para qualquer ação. Se estiver assistindo a um show, esses tampões de espuma abafam demais o som. Quando você quiser escutar o som, mas só em um nível mais seguro, use protetores auditivos para músicos. Há várias marcas disponíveis on-line por US$ 10 a US$ 15 por par. Eles são projetados para fornecer uma atenuação sonora de 10 a 20 dB, com igual abafamento para sons de baixa e alta frequência para não afetar o timbre da música. Mais importante: preste atenção a o que seus ouvidos estão lhe dizendo. Se você deixou um evento ou uma atividade sentindo que os sons parecem abafados, como se tivesse algodão nos ouvidos, ou se sente um zumbido neles, pode ser que tenha destruído algumas sinapses do nervo auditivo. Não se desespere, mas tente evitar que isso aconteça novamente. —M.C.L. 140 decibéis Motor a jato
130 Tiros
120 Britadeira
110 Local de show/boate Perda auditiva com 100 2 horas de exposição Cortador de grama a gasolina Perda auditiva com 90 8 horas de exposição Motocicleta
80 Tráfego urbano 70 Aspirador de pó 60 Conversa normal 50 Chuva
que as da região de baixa frequência, e que, uma vez perdidas, ou muito danificadas, elas jamais se regeneram. Antes mesmo de degenerarem, ruídos altos podem danificar os feixes de estereocílios sobre as células, e esse dano também é irreversível. Quando ocorrem danos ou morte de células ciliadas, os limiares auditivos são elevados, o volume do rádio precisa ser aumentado, ou um colega do outro lado da mesa tem de erguer a voz. Um estudo mais incisivo de lesão coclear em humanos tem sido dificultado pelo fato de que as diminutas células ciliadas não podem ser submetidas a biópsias com segurança, nem imageadas em uma pessoa viva com qualquer técnica existente. Danos associados à perda auditiva induzida por ruído em humanos só têm sido estudados em pessoas que doaram seus ouvidos para estudos científicos após a morte. Em parte, devido a essas limitações, a pergunta se a perda auditiva é inevitável no processo de envelhecimento, ou se é uma consequência da reiterada exposição ao clamor da vida moderna, continua sendo um mistério para cientistas auditivos. Uma sugestão tentadora veio de um estudo realizado na década de 60, em que os pesquisadores selecionaram grupos que viviam em ambientes excepcionalmente silenciosos, como a tribo dos mabaan no deserto sudanês. Os testes de audição em homens mabaan de 70 a 79 anos foram significativamente melhores em comparação com norte-americanos da mesma idade. Evidentemente, esses estudos não têm como detectar outras diferenças entre um norte-americano médio e um típico mabaan, como as associadas a uma herança genética ou à dieta. DANO PROFUNDO
Investigações recentes conduzidas por meus colegas e mim sobre os efeitos de ruídos na audição acresceram uma dimensão nova e preocupante à nossa compreensão dos perigos da sobre-exposição acústica. Cientistas e médicos sabem há muito tempo que parte da deficiência auditiva decorrente da exposição a ruídos é reversível e parte não é. Em outras palavras, às vezes os limiares de audição voltam ao normal poucas horas ou dias após uma exposição, outras vezes a recuperação será parcial, ou inGráfico de Amanda Montañez
completa, e o limiar mais alto persistirá para sempre. Cientistas auditivos costumavam acreditar que se a sensibilidade limiar se recuperava, o ouvido também se recuperava completamente. Agora sabemos que isso não é verdadeiro. O estalar alto dos fogos de artifício em 4 de julho ou o rugido da multidão em um jogo de futebol não só afeta as células ciliadas, mas também danifica as fibras nervosas auditivas. Na década de 80, nós e outros mostramos que ruídos excessivamente altos causam danos aos terminais das fibras nervosas, onde elas formam sinapses com células ciliadas. O inchaço e por fim a ruptura dos terminais provavelmente ocorre em resposta a uma liberação excessiva da molécula sinalizadora de glutamato pelas células ciliadas superestimuladas. De fato, uma libertação excessiva de glutamato em qualquer parte do sistema nervoso é tóxica. A sabedoria convencional sustentava que essas fibras danificadas por ruído tinham de se recuperar ou regenerar após uma exposição a sons intensos porque limiares auditivos podem voltar ao normal em ouvidos que apresentavam um inchaço massivo imediatamente após o evento. Em meu laboratório estávamos céticos de que sinapses tão severamente danificadas podiam se regenerar no ouvido adulto. Também sabíamos que danos induzidos por ruído ao nervo não seriam refletidos necessariamente nos testes padrão porque estudos com animais que remontavam à década de 50 mostraram que a perda de fibras nervosas auditivas, sem prejuízo de células ciliadas, não afeta o audiograma até que a perda se torne catastrófica, ou superior a 80%. Parece que não é necessário ter uma densa população de fibras nervosas para detectar a presença de um tom em uma silenciosa cabine de teste. Por analogia, pegue uma imagem digital de um grupo de pessoas e a processe repetidamente com uma resolução cada vez mais baixa. À medida que você reduz a densidade de pixels, os detalhes da imagem se tornam menos nítidos. Você ainda sabe que
há pessoas na imagem, mas não consegue mais identificá-las. Similarmente, teorizamos que a perda difusa de neurônios não precisa afetar necessariamente sua capacidade de detectar um som, mas poderia facilmente degradar a compreensão da fala em um restaurante barulhento. Quando começamos a investigar os danos induzidos por ruídos em nervos, na década de 80, a única maneira de contar as sinapses entre fibras nervosas auditivas e células ciliadas internas era com uma técnica chamada microscopia eletrônica de corte em série, um processo altamente laborioso que requer cerca de um ano de trabalho para analisar as sinapses neurais em apenas algumas poucas células ciliadas de uma cóclea. Vinte e cinco anos depois, minha colega
dar a estrutura molecular dessas sinapses. Anticorpos capazes de se ligar a estruturas de cada lado da sinapse entre a célula ciliada interna e a fibra nervosa auditiva e “etiquetá-las” com diferentes marcadores fluorescentes tinham se tornado disponíveis. As etiquetas nos permitiram contar as sinapses facilmente sob um microscópio de luz. E rapidamente acumulamos dados que mostravam que alguns dias após a exposição a ruídos, quando o limiar auditivo havia retornado ao normal, até 50% das sinapses nervosas auditivas tinham sumido e nunca mais se regeneraram. A perda do resto dos neurônios – os corpos celulares e axônios que se projetam para o tronco cerebral– tornou-se evidente em poucos meses. Após dois anos, metade dos neurônios auditivos havia desaparecido totalmente. Assim que as sinapses foram destruídas, as fibras afetadas perderam sua utilidade e não reagiram mais a sons de qualquer intensidade. Nos últimos anos, documentamos a degeneração de sinapses induzida por ruídos em camundongos, cobaias e chinchilas, e em tecido humano post mortem. Mostramos, tanto nos estudos animais como em ouvidos humanos, que a perda de conexões entre fibras nervosas auditivas e células ciliadas ocorre antes das elevações limiares associadas à perda dessas células. A ideia de que danos neurais auditivos causam uma espécie de perda auditiva oculta, um importante componente da deficiência auditiva induzida por ruídos e associada à idade, agora é amplamente aceita e muitos cientistas e médicos auditivos estão trabalhando para desenvolver testes para determinar se o problema é generalizado e se os nossos estilos de vida ruidosos estão levando a danos auditivos epidêmicos em pessoas de todas as idades.
A PERDA AUDITIVA OC TAMBÉM PODE AJUD A EXPLIC CAR OUTRA QUEIXAS ASSOCIADA AUDIÇÃO, IN NCLUSIV ZUMBID DO NO OUVI Sharon G. Kujawa do Hospital de Olhos e Ouvidos de Massachusetts e eu estávamos tentando determinar se um episódio de superestímulo acústico nos ouvidos de jovens camundongos podia acelerar o início da perda auditiva associada à idade. O nível de ruído a que expusemos os animais foi projetado para produzir apenas uma elevação temporária dos limiares auditivos e, portanto, nenhum dano permanente às células ciliadas. Como esperado, as cócleas dos roedores pareciam normais poucos dias após a exposição. Mas, à medida que examinamos os animais ao longo de um período de seis meses a dois anos depois, observamos uma perda cumulativa de fibras nervosas auditivas, apesar da presença de células ciliadas intactas. Felizmente, muito tinha sido aprendido desde a década de 80 sobre como estu-
CONSERTANDO NERVOS
Colocado em termos simplificados, o audiograma, o teste padrão-ouro de audição, mede limiares auditivos e é um “termômetro” sensível de danos em células ciwww.sciam.com.br 47
liadas cocleares. No entanto, ele é um indicador muito fraco, ou insatisfatório, de danos causados em fibras nervosas auditivas. Nossa pesquisa mostrou que a lesão neural da perda auditiva oculta não afeta a capacidade de detectar a presença de sons, mas muito provavelmente degrada nosso potencial para entender a fala e outros sons complexos. De fato, ela pode ser um significativo fator contribuinte para a queixa clássica dos idosos: “Posso escutar as pessoas falando, mas não consigo discernir o que estão dizendo”. Audiologistas sabem há tempos que duas pessoas com audiogramas similares podem ter um desempenho muito diferente nos chamados testes de fala na presença de ruído, que medem o número de palavras identificadas corretamente à medida que o nível de barulho de fundo aumenta. Antigamente, eles atribuíam essas diferenças ao processamento cerebral, mas nossa pesquisa sugere que grande parte delas surgem devido a diferenças na população sobrevivente de fibras nervosas auditivas. A perda auditiva oculta também pode ajudar a explicar outras queixas comuns associadas à audição, inclusive o tinido – o zumbido nos ouvidos – e a hiperacusia ou acuidade auditiva exacerbada, que é a incapacidade de tolerar até mesmo sons de intensidade moderada. Essas condições frequentemente persistem mesmo quando um audiograma não acusa um problema. No passado, cientistas e clínicos apontavam para o audiograma normal de um portador de tinido ou hiperacusia e concluíam, mais uma vez, que o problema devia surgir no cérebro. Nós, em vez disso, sugerimos que o dano pode ter ocorrido no nervo auditivo. Nossa pesquisa levanta questões sobre os riscos da exposição rotineira a música alta em shows e boates e através de dispositivos pessoais de som. Embora a perda auditiva induzida por ruído seja claramente um problema entre músicos profissionais, inclusive os que tocam música clássica, estudos epidemiológicos de ouvintes casuais falharam consistentemente em encontrar um impacto substancial em seus audiogramas. As diretrizes federais desenvolvidas para minimizar os danos provocados por ruídos 48 Scientific American Brasil | Setembro 2015
na força de trabalho dos EUA estão todas baseadas na suposição de que, se os limiares pós-exposição voltam ao normal, o ouvido também se recuperou completamente. Como vimos, essa premissa é equivocada; portanto, segue-se naturalmente que os atuais regulamentos para ruídos podem ser inadequados para evitar amplos danos neurais induzidos por barulho e a deficiência auditiva que provocam. Para resolver essa questão, precisamos de testes diagnósticos melhores para determinar danos neurais auditivos, principalmente em vista das limitadas possibilidades de contar sinapses em tecidos post mortem. Uma abordagem promissora se baseia em uma medida já existente da atividade elétrica em neurônios auditivos, chamada potencial evocado auditivo de tronco encefálico (ABR). O ABR pode ser medido em uma pessoa desperta ou adormecida, porém equipada com eletrodos aplicados ao couro cabeludo para medir a atividade elétrica em resposta à apresentação de estímulos tonais de frequências e níveis de pressão sonora diferentes. Historicamente, o teste ABR tem sido interpretado em grande parte numa base de “passa ou falha”: a presença de uma resposta elétrica clara evocada por um som é interpretada como uma audição normal, e a ausência de uma reação é evidência de deficiência auditiva. Em trabalhos com animais, mostramos que a amplitude do ABR em níveis de som altos é muito informativa: ela aumenta proporcionalmente em relação ao número de fibras nervosas auditivas que retêm uma conexão viável com as células ciliadas internas. Da mesma forma, um recente estudo epidemiológico inspirado por nossa pesquisa aplicou uma variante do teste ABR
em um grupo de estudantes universitários britânicos com audiogramas normais e constatou amplitudes de respostas menores entre os voluntários que relataram ter sido expostos repetidamente à barulheira de boates e shows musicais. Em busca de potenciais tratamentos para a perda auditiva oculta, agora estamos considerando se podemos reverter a degeneração induzida por ruído ao tratarmos os neurônios sobreviventes com substâncias químicas destinadas a regenerar fibras nervosas, restabelecendo suas conexões com células ciliadas internas. Embora as próprias sinapses sejam destruídas imediatamente após a exposição ao ruído, a lentidão da degeneração do restante do nervo – seu corpo celular e axônios – nos deixa otimistas de que a função normal pode ser restaurada em muitos voluntários humanos. Obtivemos resultados animadores em estudos com animais ao ministrarmos diretamente ao ouvido interno neurotrofinas, que são proteínas que promovem o crescimento de nervos. A perda auditiva oculta em breve poderá ser tratável por injeção, através do tímpano, de géis que liberam lentamente neurotrofinas para restaurar sinapses meses ou anos após uma agressão por ruídos altos e persistentes. As injeções seriam aplicadas imediatamente após uma exposição a ruídos fortes, como as explosões das duas bombas na linha de chegada da Maratona de Boston, em 2013, que danificaram a audição de mais de 100 espectadores. Algum dia, um otologista talvez seja capaz de ministrar drogas à cóclea, por meio de um procedimento minimamente invasivo, e de tratar de danos auditivos induzidos por ruído com a mesma facilidade com que um oftalmologista corrige um olho míope por cirurgia a laser do cristalino.
PA R A C O N H E C E R M A I S
3Ă´DÈï¹ÈDïĂ ´ ïy ´¹åyyāȹåym D´m D´ `¹`¨yDi Èà®DàĂ ´yùàD¨ myy´yàDï¹´ ´ D`Õùàym åy´å¹à´yùàD¨ yDà´ ¨¹ååÎ Sharon G. Kujawa e M. Charles Liberman em Hearing Research. Publicado on-line em 11 de março de 2015. mm´ ´åù¨ï ï¹ ´¦ùàĂi `¹`¨yDà ´yàÿy myy´yàDï¹´ Dïyà Úïy®È¹àDàĂÛ ´¹åy´mù`ym yDà´ ¨¹ååÎ Sharon G. Kujawa e M. Charles Liberman em Journal of Neuroscience, vol. 29, nº 45, págs. 14,077–14,085; 11 de novembro de 2009. D OS N OSSOS A RQU I VOS
y ÿ¹¨ïD D¹ yÕù¨ U๠`¹® ¹ày¨Då U»´`DåÎ Charles C. Della Santina, edição nº 96, maio de 2010.
CLIMA
MUDANÇA DE ESTADO Seca pode fazer a Califórnia ficar como o Arizona – Dan Baum
TODAS AS FOTOGRAFIAS DE JUSTIN SULLIVAN Getty Images
Em 1860, um naturalista
APÓS TRÊS ANOS da pior seca já registrada da Califórnia, o Lago Oroville, fotografado em julho de 2011 (acima) e em agosto de 2014 (abaixo), caiu para 32% de sua capacidade.
chamado William Brewer partiu para fazer o primeiro levantamento geológico do jovem estado da Califórnia. Ao chegar ao pequeno vilarejo de Los Angeles, com suas construções de tijolos de adobe, em 2 de dezembro, ele anotou em seu diário que “tudo o que é desejável do ponto de vista natural para tornar o lugar um paraíso é água, mais água”. Três semanas depois uma furiosa torrente de água, a pior tempestade de chuva em 11 anos, destruiu grande parte dos edifícios. Assim é o clima na Califórnia. O registro secular, gravado em anéis de árvores, mostra padrões similares aos de hoje: longos episódios de secas pontuados por passageiros anos chuvosos. No ano de 1130, a chuva foi diminuindo gradualmente e não recomeçou para valer por outros 40 anos. Secas de várias décadas de duração aparecem regularmente em anéis de árvores ao longo de toda a história da Califórnia. Mas a simples falta de chuva registrada nesses anéis já não é mais uma definição prática de seca. Existe outra melhor, porém mais subjetiva: a diferença entre a umidade existente e a umidade necessária. Por esse padrão, a seca atual não tem precedentes. Sim, a Califórnia está mais seca do que em qualquer época desde 1895, quando as pessoas começaram a fazer registros meteorológicos. Mas o estado também está anormalmente quente, 2014 foi quase 1o C mais quente que o ano mais quente anterior, e 2015 parece estar caminhando para ser mais quente ainda, o que aumenta cruelmente a sede da terra por água, justamente em um momento em que há pouca disponível. Além disso, as expectativas humanas em relação às suas terras são diferentes de quaisquer outras na história. Quase 40 milhões de pessoas agora chamam a Califórnia de “lar”, e o resto do país e grande parte do mundo dependem dos alimentos cultivados ali. Californianos podem recitar com precisão as secas que suportaram: 1977, 1986-1991, 2001-2002, 2006-2007 e esta, que começou em 2011. É possível que futuros cientistas de anéis de árvores não interpretem todos eles como uma sequência de eventos distintos, mas como o início de uma dessas megassecas ao estilo medieval; porém mesmo aquelas tinham alguns anos chuvosos intercalados.
Se a superlotada cultura de hortaliças do vale central da Califórnia de fato estiver se encaminhando para décadas de baixa precipitação em uma era de calor sem precedentes, o chamado Estado Dourado poderá acabar se tornando um lugar muito diferente. No pior caso, ele poderia ser despojado de sua exuberante agricultura e imponentes florestas. No melhor, sua população poderia recorrer às inovações pelas quais o estado é famoso e transformá-lo no laboratório do mundo para conservação e reúso de água. Seja como for, uma penosa adaptação ao novo “normal” está em pleno andamento. Para entender a seca da Califórnia, é preciso seguir o caminho da água. Essa jornada é cheia de surpresas, a começar pelo fato de que seu ponto de partida fica a mais de 9.600 quilômetros de distância, no meio dos verdejantes arquipélagos do Pacífico ocidental de Fiji, Vanuatu e das Ilhas Salomão. Normalmente, o sol aquece o Oceano Pacífico ao longo da linha do equador, e os ventos superficiais prevalecentes, de leste a oeste, empurram as águas cálidas para o mar pontilhado de ilhas a oeste da Linha Internacional de Data (LID). Ali, a água literalmente se acumula em um enorme “monte”, ou “colina”, que não só é alguns graus mais quente que o mar ao largo da costa da América do Sul, mas também cerca de 1,2 metro mais elevado. Todo esse calor alimenta trovoadas que lançam umidade a grandes altitudes na atmosfera, onde a corrente de jato, os ventos de alta altitude que sopram para o leste em vez de para o oeste, a incorpora em sua viagem rumo à América do Norte. Quando a massa de água quente equatorial permanece mais ou menos a oeste da LID, ocorre o fenômeno La Niña, que é associado a secas no sudoeste dos EUA. Se os ventos equatoriais na superfície do oceano enfraquecerem ou se inverterem, ela se desloca para leste da linha de data e, se o efeito for suficientemente pronunciado, temos o El Niño, que traz mais chuva para o ocidente. O que acontece agora realmente não parece ser nem El Niño, nem La Niña. Durante alguns invernos boreais passados, aquele ponto a oeste da LID estava meio grau Celsius acima da média dos últimos 30 anos, o que é muito em termos climáticos. A área também recebeu cerca de 300 mm de chuvas adicionais no inverno de 2013-2014, além de um ciclone de categoria 5, que lançou uma enorme quantidade de calor do oceano incomumente quente na atmosfera superior. No início de 2015, dois outros ciclones, mais gigantescos ainda na região, fizeram o mesmo. Cientistas detestam afirmar exatamente o que causa o quê em um clima mutante, mas alguma coisa relacionada àquela massa de água quente no Pacífico ocidental, talvez em combinação com um diferencial decrescente entre as temperaturas no equador e
D´ Dù® é escritor; sua obra mais recente Gun guys: A road trip. Ex-redator da equipe da revista The New Yorker, já fez reportagens em cinco continentes.
nos polos, parece estar emperrando as engrenagens meteorológicas. Uma “crista” de alta pressão atmosférica estacionou sobre o Pacífico oriental, bem na rota da corrente de jato úmida e, como um gigantesco bloco de pedra que foi parar em um riacho, está deslocando o fluxo e empurrando a corrente de jato para o norte. O que teria sido água de chuva da Califórnia está se precipitando em enormes quantidades sobre o Alasca e o noroeste do Canadá, e isso pode ter contribuído para as históricas nevascas, de Chicago a Boston, no inverno boreal passado, e para as inundações no Reino Unido. Essas cristas que bloqueiam a corrente de jato de alta pressão são comuns ao largo da costa californiana, mas normalmente se dissipam em poucas semanas, quando são “rompidas”, ou desfeitas por tempestades. A crista atual, porém, vem persistindo desde o inverno de 2013-2014, diminuindo apenas ligeiramente de tempos em tempos, para então, estranha e incomumente, se reagrupar de novo e impedir a passagem da umidade do ar. Daniel Swain, um aluno de doutorado de 25 anos da Universidade Stanford, deu à anomalia o nome que “pegou”: Crista Ridiculamente Resiliente (Ridiculously Resilient Ridge), ou Triplo R. Várias tempestades menores perfuraram a Triplo R no inverno passado, inclusive uma chuvarada torrencial em fevereiro, mas em vez de se dispersar, a crista estranhamente coalesceu (se aglutinou de novo). Ninguém sabe quanto tempo ela durará. A maior parte da água trazida do Pacífico ocidental cai primeiro no alto das montanhas da Serra Nevada, uma cordilheira que se estende por mais de 600 quilômetros ao longo da fronteira oriental do estado. Foi ali que comecei a procurar pela água sumida da Califórnia, mais especificamente, no Lago Echo, muito acima do Lago Tahoe, na fronteira com o estado de Nevada. Em anos chuvosos, a água é trazida pela corrente de jato e precipita ali em quantidades titânicas. Um homem que conheço certa vez esquiou até a área para encontrar sua cabana à margem do lago, cavou buracos na neve por toda a encosta da montanha para tentar encontrar sua casa e não a achou; ele teve de voltar de lá esquiando no escuro. Comparativamente, este ano praticamente não nevou no Lago Echo. A sotavento, o lado protegido da crista Triplo R, o inverno norte-americano de
EM SÍNTESE
åy`D ´D D¨ºà´D não tem precedente. Registros em anéis de árvores mostram que episódios de estiagem, de décadas de duração, já atingiram o estado antes, mas nunca com tanta pressão populacional.
' yåïDm¹ yåïE ®ùmD´m¹ como resultado disso. Na Serra Nevada, árvores grandes e velhas estão morrendo, sendo substituídas por outras menores. Mesmo as icônicas sequoias podem estar em risco.
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' DÕù y๠m¹
' yåïDm¹ ȹmyàD `Dà como o Arizona. Mas há esperança. O pensamento criativo já começou, e muitos veem a seca como uma oportunidade para resgatar a Califórnia, e ganhar dinheiro no processo.
FAZENDEIROS do município de Firebaugh, no Vale Central, inspecionaram suas lavouras (acima, à esquerda); amendoeiras próximas murcharam (acima, à direita), e placas foram usadas em protesto contra os cortes de água impostos a fazendeiros (abaixo, à direita). Em Porterville, centenas de domicílios estão sem abastecimento (abaixo, à esquerda).
2013-2014 viu níveis historicamente baixos de neve acumulada na Serra Nevada e, neste último inverno, a situação foi ainda pior, com apenas 5% da média. Em abril, os acúmulos em Lago Echo normalmente atingem a altura de um humano, mas quando cheguei lá, no chamado “Dia do Imposto” (prazo final para a entrega da declaração anual do imposto de renda), só havia alguns pequenos amontoados de branco embaixo das árvores. Do lago, dirigi uns 320 quilômetros rumo ao sul, passando pelo Parque Nacional Yosemite, para visitar Nathan Stephenson, ecologista de plantas do Serviço Geológico dos EUA (USGS), que trabalha entre as icônicas árvores gigantes da Califórnia, no Parque Nacional das Sequoias. A reserva se avulta acima do condado Tulare, no Vale Central, o “ponto zero” da seca. O Rio Kaweah flui do parque para o extremamente depauperado Lago Kaweah e de lá para o vale mais abaixo. Em seus 35 anos de trabalho no parque, Stephenson viu secas chegarem e partirem, mas nunca uma como esta. “Só de olhar, eu estimaria que 30% dos carvalhos nas encostas estão mortos ou morrendo”, avaliou, examinando uma área florestal que, mesmo para o olho destreinado, parecia pálida e “cansada”, pontilhada de árvores marrons. Stephenson é alto e magro, com uma barba grisalha e a disposição bem-humorada de um homem que é pago para passar seu tempo ao ar livre em um parque nacional. Mas ele estava “de cara fechada”, com ar sombrio,
enquanto olhava para a encosta arborizada sob a aba de seu chapéu do USGS. “Só estamos em abril”, comentou exasperado. Entramos novamente em seu Subaru e subimos a montanha até um bosque de ciprestes, ou cedros-do-incenso-da-califórnia, permeado de espécimes de cor acentuadamente amarelo-amarronzada. “Eles são centenários e muito resistentes, hospedeiros de poucos insetos”, observou Stephenson. “De brincadeira, temos chamado essas árvores de ‘as imortais’ porque elas parecem nunca morrer.” Ele parou e esticou uma mão para apalpar as agulhas marrons de um cedro. “Agora acho que são mortais.” Por fim, subimos ao reino das próprias gigantes, as magníficas sequoias, muitas das quais se erguiam em meio a montes de suas próprias agulhas mortas; testemunhas de como a seca está afetando suas extremidades. Aqui, há 33 anos o USGS monitora 20 mil árvores de várias espécies em 30 trechos bem espaçados. As árvores, inclusive sequoias, estão morrendo e também de modo imprevisível. Em tempos normais, um fio ininterrupto de água se estende das raízes de uma árvore para cada folha ou agulha, sendo “sugada” para cima através de diminutos capilares à medida que a árvore transpira água no ar. Mas agora, exemplares de todas as espécies estão morrendo de cavitação: quando o fio de água se rompe e bolhas de ar entram nos capilares, precipitando o fim. www.sciam.com.br 51
EM NÚMEROS
Uma seca sem precedentes DîøD§ äx`D ³D D§
¹ß³D y äî¹ß`D ä¸U ÔøD§Ôøxß DäÇx`î¸Í ' ßE`¸ DUDĀ¸ y UDäxDl¸ ³¸ ³l`x lx Severidade de Seca de Palmer (PDSI, na sigla em inglês), um algoritmo de umidade do solo concebido para medir o impacto de longo prazo de uma seca, considerando níveis de reservatórios, dados de águas äøUîxßßF³xDäj x ¸øîß¸ä ³l`Dl¸ßxä lx §x³îD ¸þx³îDcT¸Í 'ä lDl¸ä lxĀD `§D߸ Ôøxj xU¸ßD `¸³l cÆxä xĀîßxDäj îD³î¸ äx`Dä `¸¸ ùlDäj äx î¸ß³DßD Dä
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娴Dåÿyàï`DåÈàyïDå´yåïyàE`¹Dȹ´ïD® casos de condições extremamente úmidas ou secas (com um desvio de +4 a –4 da média).
Èåºm¹ú®m¹ Recentes anos de estiagem têm sido intercalados por anos excepcionalmente chuvosos, mas essa umidade não compensou a tendência geral de ressecamento. Padrões similares ocorreram há séculos; as megassecas medievais, de décadas de duração, que aparecem nos registros de anéis de árvores californianas também incluíam ocasionais anos chuvosos.
Extremamente úmido
8
Úmido
4
Seco
0
–8 1895
1905
1915
´m`ymy3yÿyàmDmymy3y`Dmy0D¨®yà DmD ȹ´ï¹ ´¹ àE`¹ D`®D àyÈàyåy´ïD ù® ÿD¨¹à mensal do Índice de Severidade de Seca de Palmer para cada uma de sete divisões regionais. Os pontos que estão dentro da faixa “normal” (de +4 a -4) aparecem mais apagados ao fundo. Drenagem da costa norte Drenagem do distrito de Sacramento Bacias do interior nordeste Drenagem da costa central Drenagem do distrito de San Joaquin Drenagem da costa sul Bacias dos desertos do sudeste
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1925
1935
1945
1955
1965
1975
1985
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5y´m{´`DÈDàD åy`Då
A Califórnia foi poupada, em grande parte, dos efeitos calamitosos da chamada “Dust Bowl” (a seca, com enormes tempestades de poeira, que atingiu 400 mil km2 do país nos anos 30). Por essa razão os fazendeiros desalojados das Grandes Planícies fugiram para lá em busca de trabalho.
As curvas sólidas são linhas de tendência polinomial que my¨´yD®DåùïùDcÇyåyàDåmy condições nas sete divisões regionais da Califórnia. A crescente densidade de linhas cor de cinza verticais após 1975 indica um aumento na frequência de extremas condições secas e úmidas. Em termos gerais, porém, todas as linhas de tendência se curvam para baixo durante esse período, indicando que todas as regiões no estado estão tendendo à seca.
1995
2005
2015
3y`Dy´yàD¨ĆDmDy my¨¹´DmùàDcT¹ Uma característica incomum e desagradável da atual estiagem é que tantas regiões diferentes nesse estado grande yy¹àD`D®y´ïyÿDàDm¹ estão passando por ela em um nível extremo.
Gráfico de Pitch Interactive
FONTE: CENTROS NACIONAIS PARA INFORMAÇÕES AMBIENTAIS DA ADMINISTRAÇÃO NACIONAL OCEÂNICA E ATMOSFÉRICA (NOAA)
Extremamente seco
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Outras árvores fecham os poros em suas folhas durante períodos de estiagem para reter água. Mas nesse caso elas não podem absorver dióxido de carbono (CO2). Em geral a umidade retorna e os poros se abrem novamente antes que as árvores morram asfixiadas, mas essa seca está sendo tão longa, persistente e quente que muitas estão sendo fatalmente pressionadas a “optar” entre reter sua água ou respirar. E depois há os besouros atraídos para árvores estressadas pela seca, que estão devastando vastas faixas de pinheiros em toda a região oeste. Uma vez que uma árvore morre, os besouros voam para a próxima. Às vezes, durante essa seca, eles voam em “enxames” tão densos que é possível colhê-los em pleno ar com um boné de beisebol. Na primavera passada, um levantamento aéreo de uma enorme faixa de florestas da Serra Nevada californiana, inclusive o parque das sequoias, identificou mais de 10 milhões de árvores mortas, 10% da área pesquisada, a maioria delas mortas no ano anterior. Se a estiagem persistir por tempo suficiente, ela poderia secar e matar as majestosas florestas das terras altas da Califórnia e aniquilar as sequoias gigantes, que incluem a “general Sherman”, um colosso de quase 84 metros de altura e mais de 11 metros de diâmetro na base, a maior árvore do mundo por volume. Uma perda florestal massiva seria um enorme prejuízo para o estado, mas também poderia ser calamitosa para o planeta, e não só porque isso liberaria incontáveis toneladas adicionais de CO2 em uma atmosfera que já está mesmo esquentando. No ano passado, Stephenson foi autor principal de um amplo estudo, sobre 673.046 árvores de 403 espécies em seis continentes, que chocou a comunidade botânica ao constatar que, ao contrário da crença popular, árvores crescem mais rápido quanto maiores e mais velhas ficam. Se a floresta da Serra Nevada continuar morrendo, ela será repovoada por árvores muito jovens, que provavelmente absorverão menos CO2, o gás do aquecimento global, da atmosfera que a atual floresta de exemplares de muitas idades diferentes. Em anos chuvosos, a neve que se acumula na Serra Nevada contém água suficiente para encher os reservatórios do estado. A cada primavera e verão, ela escorre lentamente por sua encosta ocidental e, sem interferência humana, encontra seu caminho para a próxima parada em nossa busca pela água ausente da Califórnia, um gigantesco atributo desse estado “abarrotado”, que se esconde em plena vista: o delta dos rios Sacramento e San Joaquin, de 2.850 quilômetros quadrados. Esse delta está localizado pouco a leste da Baía de São Francisco. Antes da chegada dos colonizadores, ele era um pântano de água doce, cheio de canais, lamaçais e ilhas, mas agora grande parte é cultivada e até abriga mais de meio milhão de pessoas em cidades como Antioch e Rio Vista. No entanto, vastas extensões continuam sendo uma grande planície aluvial natural, não desenvolvida; uma área um tanto assustadora, coberta por densa vegetação tropical e perfeitamente plana, que a multidão frenética dificilmente chega a ver, entrecortada por mais de 1.125 quilômetros de emaranhadas vias navegáveis. Este é o maior estuário na Costa Oeste americana, ponto de confluência dos rios que drenam os vastos vales de Sacramento e San Joaquin, além de ser a grande “central de coleta” para o escoamento gerenciado das
águas superficiais da Califórnia. Água liberada por reservatórios localizados no norte do estado para fazendas e cidades no sul tem de passar por ali. Levei horas zanzando entre estradas de terra e vias elevadas pavimentadas para encontrar o pequeno canto do delta conhecido como Clifton Court Forebay, um reservatório artificial, onde avultam as casas de bombas que transportam água pelo amplo canal revestido de concreto, chamado Aqueduto da Califórnia, rumo a Los Angeles, a 547 quilômetros de distância, e através do aqueduto Delta-Mendota Canal para as esparramadas fazendas do Vale Central. A água de superfície da Califórnia é tão intensamente gerenciada que parece mais um produto industrial que um recurso natural. Uma rede de reservatórios estaduais e federais; uma complexa grade de canais e aquedutos; e um enorme emaranhado de leis de água, direitos à água, regulamentos ambientais, ordens judiciais e pareceres jurídicos dividem, ou parcelam, a água de um jeito que certamente enfurece a todos. Cerca de metade da água de superfície é deixada nas córregos, rios e no delta para garantir a manutenção de terras úmidas e hábitats de peixes, cumprir os termos da Lei de Espécies Ameaçadas, e impedir o refluxo de água salina através do delta para os canais e aquedutos. A outra metade abastece humanos: 20% para as cidades que, em abril deste ano receberam ordem do governador Jerry Brown para reduzir o consumo, em média, em 25%, e 80% para fazendeiros. Pelo menos em teoria. Este ano e no ano passado, a água de superfície está tão escassa que o abastecimento para a maioria dos agricultores foi zero. Devido à microgestão das águas superficiais da Califórnia, é chocante que seja quase completamente desregulada a utilização de lençóis freáticos, de longe a maior parte dos recursos hídricos do estado. A Califórnia é a unica unidade federativa dos EUA em que alguém pode bombear tanta água subterrânea quanto quiser, desde que não seja desperdiçada ou vendida. A atual seca precipitou uma espécie de “corrida aquática” no Vale Central, com todos os fazendeiros empenhados em cavar mais fundo que seus vizinhos, “como um bando de crianças de quatro anos com um milk shake e um monte de canudos”, nas palavras de um agroeconomista. Ninguém sabe quanta água está sendo bombeada para fora, mas os níveis dos lençóis freáticos estão historicamente baixos. O fazendeiro com o poço mais profundo em uma determinada área vai usando a água, e se isso significar que os poços de seus vizinhos secam, que assim seja. Alguns já estão perfurando a uma profundidade de quase 460 metros para acessar água que pode ter caído em forma de chuva há 10 mil anos. Uma água “fossilizada” desse tipo, que ficou em contato com substratos geológicos por tanto tempo, frequentemente está contaminada com arsênio, cromo, sal e outras substâncias tóxicas. Além disso, perfurar tão fundo é caro. Os fazendeiros que conseguem encontrar alguém que faça o trabalho, as listas de espera chegam a um ano, talvez gaste US$ 500 mil no projeto, e isso não inclui o elevado custo de bombear a água dessas profundezas “abissais” para a superfície. Certa tarde, a uns 300 quilômetros ao sul do delta, perto da cidade rural de Visalia, segui uma coluna de fumaça até uma plantação cheia de laranjeiras mortas que tinham sido empilhadas por www.sciam.com.br 53
escavadeiras em montes enormes, do tamanho de casas grandes, e incendiadas. O proprietário, que estava lá de pé olhando com expressão sombria e triste, me contou que tinha arrendado os pouco mais de 32 hectares e suas 10.600 árvores saudáveis para um agricultor que, na primavera passada, tinha instalado tubulações ilegais e vendido a água do poço da fazenda a um vizinho, deixando as árvores morrerem. Não são só os proprietários de terras que estão sendo prejudicados. Yolanda Serrato, de East Porterville, uma cidadezinha pobre, sem governo municipal e habitada por trabalhadores rurais no condado de Tulare, estava regando seu pequeno gramado em dezembro passado, quando a mangueira começou a “cuspir” e parou de sair água, definitivamente. Os EM PORTERVILLE, os residentes cujas torneiras haviam secado poços rasos de cerca de 400 de seus vizinhos também encheram tambores com água não potável na frente da unidade do corpo de secaram mais ou menos à mesma época, deixando-os bombeiros de Doyle County. dependentes de um misto de assistência pública e caridade. Quando conheci Serrato, ela estava encostada à sua cerca de tela de arame, olhando rua abaixo à procura da de glória como estrela científica. Quando estávamos sentados em picape que talvez lhe trouxesse algumas garrafas de água. Foi difí- seu escritório, em Sacramento, à margem nordeste do delta, ela cil não ver East Porterville como uma possível precursora do dia virou suas palmas para cima, entrelaçou os dedos e explicou que em que muitos californianos serão forçados a deixar suas casas a estrutura microscópica da argila consiste em minúsculas placas inclinadas ao acaso. “Imagine quanta água caberia na pia de por falta de água. sua cozinha se você colocasse ali um monte de pratos de jantar e A primeira lei da hidrodinâmica é a água fluindo na direção os deixasse se inclinando uns sobre os outros de qualquer jeito”, de dinheiro. É provável que leve muito tempo antes que a maioria sugeriu. Então ela girou as mãos para pressionar suas palmas. dos californianos, especialmente nas cidades litorâneas, confronte “Agora imagine empilhar esse pratos ordenadamente e o que isso torneiras secas. São Francisco, por exemplo, extrai sua água do faria com o espaço para água entre eles.” Essencialmente é isso o antigo Reservatório Hetch Hetchy, a uns 270 quilômetros de dis- que acontece quando uma quantidade excessiva de água é bomtância, no Parque Nacional Yosemite. Los Angeles, como qualquer beada muito rapidamente do solo; as placas microscópicas que um que tenha visto o filme Chinatown sabe, secou o Vale Owens, a constituem a argila deslizam para uma posição sobreposta. Em mais de 300 quilômetros, na década de 20, e agora obtém a maior outras palavras, a camada de argila colapsa. Centenas de metros acima, a terra desmorona junto. Desde a parte de sua água de reservatórios localizados ainda mais ao norte. Enquanto a Califórnia tiver um pingo de água, ela sem dúvida flui- década de 20, vastas áreas do Vale Central sofreram uma subsidência, de aproximadamente nove metros. Em apenas dois anos, rá na direção dos ricos moradores de áreas costeiras. No Vale Central, porém, o problema está apenas começando. de 2008 a 2010, mais de um décimo do vale afundou cinco centíPara entender por que, precisamos seguir o caminho das águas metros. Isso significa trabalho para equipes de manutenção, que no subsolo profundo. O Vale Central é essencialmente uma enor- consertam rachaduras em rodovias e pontes, e para trabalhadome depressão de 51,8 mil quilômetros quadrados de camadas de res ferroviários que renivelam trilhos. Esse afundamento tamargila, cascalho, sedimentos e areia, encravada entre cadeias de bém dificulta o fornecimento de água em todo o estado. Canais e montanhas de “rochas duras”. Em camadas de cascalho e areia, a aquedutos podem se estender por centenas de quilômetros sem água corre lateralmente com facilidade. Um fazendeiro que bom- bombas, porque se inclinam muito sutilmente para baixo. Não é beia águas subterrâneas consegue surrupiá-la de um vizinho. preciso uma subsidência acentuada para interferir no fluxo, que Mas a umidade está armazenada principalmente em camadas de foi o que aconteceu no ano passado, entre outros lugares, no ponargila, que gotejam sua carga lentamente nas camadas de casca- to de junção onde um grande canal encontra o Reservatório San lho e areia. É o modo como a argila armazena água que torna o Luis, na região central da Califórnia. Mas as interrupções no abastecimento dificilmente são o pior de tudo. Uma vez que uma atual frenesi de bombeamento preocupante. Desastres têm um jeito peculiar de catapultar cientistas da camada subterrânea de argila desmorona, ela nunca mais pode obscuridade à fama da noite para o dia. Michelle Sneed, jovem armazenar água. Portanto, os fazendeiros californianos que geóloga do USGS, batalhou durante anos para se especializar em bombeiam água freneticamente não estão apenas depauperando um campo bem pouco empolgante, subsidência ou afundamento o aquífero de que dependem, mas também o estão destruindo. A única esperança é recarregar o que resta do aquífero o mais do solo, que subitamente se tornou crucial para o futuro da Califórnia. Com olhos azuis surpreendentemente francos e longos rápido possível. O problema é que nem todo subsolo é igualmencabelos ondulados, ela parecia estar desfrutando seu momento te recarregável. Sob cerca da metade do Vale Central predomina 54 Scientific American Brasil | Setembro 2015
a chamada argila Corcoran, resquícios de um leito lacustre milenar, que pode ser perfurada por poços, mas que, ao contrário da maioria das argilas, permanece em grande parte impermeável à água. Geólogos conseguem identificar áreas permeáveis, sem a Corcoran, e, portanto, geologicamente adequadas para serem inundadas para o reabastecimento dos lençóis freáticos. Mas algumas são cobertas por subdivisões, shopping centers ou fazendas; e identificar solo permeável e obter permissão para inundá-lo é uma tarefa formidável. Cientistas da Universidade da Califórnia em Davis estão conduzindo um experimento com o Conselho da Amêndoa da Califórnia para verificar se pomares de amendoeiras situados sobre solo geologicamente apropriado podem ser inundados no inverno, quando as árvores estão dormentes, a fim de realimentar o aquífero. No entanto, isso não suscita apenas questões geológicas, mas também jurídicas: a lei da Califórnia exige que os fazendeiros utilizem a água que recebem do estado somente para “usos benéficos”, e o reabastecimento de lençóis freáticos pode ser proibido como “irrigação excessiva”. Depois, há a questão sobre se um agricultor que
tinha sido incumbido com a ingrata tarefa de criar uma GSA com a cidade de Visalia e um distrito local de irrigação. “É como escrever uma nova linguagem”, queixou-se ele. Vinte e quatro quilômetros mais adiante, Denise Atkins, analista administrativa de recursos hídricos do condado, admitiu que só conseguir que todos concordem sobre quem terá voz ativa na GSA local é um pesadelo; quanto mais fazer com que as pessoas aceitem compartilhar dados. “Há cinco anos, se você quisesse perguntar a um produtor ‘Como você se sente em relação a um medidor em seu poço?’, seria melhor usar Kevlar”, observou ela referindo-se ao material usado em coletes à prova de bala. “Agora os fazendeiros estão ficando entusiasmados em saber quanta água consomem.” Atkins se inclinou sobre sua mesa bagunçada, revirou os olhos e acrescentou, em voz baixa: “Embora a resposta geralmente seja ‘Meu vizinho está bombeando demais’”. Cientistas divergem sobre a explosiva questão de se a seca é causada por mudanças climáticas antropogênicas. No ano passado, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOOA) disse que não, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) opinou que é possível, e uma equipe de cientistas climáticos da Universidade Stanford, que incluiu Daniel Swain – que batizou a anomalia Triplo R –, afirmou que sim. O grupo modelou climas atuais e pré-industriais e determinou que as condições associadas ao fenômeno Triplo R são três vezes mais prováveis agora. Independentemente de as mudanças climáticas estarem ou não provocando a seca, todo mundo parece concordar que o calor adicional está exacerbando os efeitos da baixa umidade, das florestas da Serra Nevada às fazendas do Vale Central. Após anos de algo um tanto parecido com o fenômeno La Niña, a NOAA anunciou em março o início de um fraco El Niño, mas advertiu que ele provavelmente não afetará o clima na Califórnia significativamente tão cedo. O estado talvez tenha alguns anos chuvosos em seu futuro próximo, mas o solo do alto da Serra Nevada até o fundo do Vale Central está tão ressecado, tão desidratado, que levará anos para reidratá-lo adequadamente e muito mais tempo para começar a recarregar o lençol freático. A Califórnia pode optar por considerar as atuais condições como uma anomalia e “gerenciar isso como um desastre”, mas isso seria um terrível engano, alertou Noah Diffenbaugh, fellow sênior do Instituto Woods para o Meio Ambiente da Universidade Stanford. “Está claro que a Califórnia tem um clima diferente agora.” Se esse clima envolve, digamos, uma seca de 30 anos semelhante às que ocorreram na Idade Média, as florestas das montanhas morrerão porque sua água não é gerenciada, e as próximas vítimas serão as fazendas e os pomares do Vale Central que têm sido tão emblemáticos da Califórnia nos últimos 100 anos. Uma linha de raciocínio sobre o fim da agricultura californiana é mais ou menos assim: E daí? A agricultura só representa cerca de 2% da economia do estado, e a enxurrada de alimentos baratos, intensivos em água, de que o mundo desfrutou talvez sempre tenha sido a ilusão irreal de pessoas sem uma perspecti-
A seca está transformando a Califórnia em quase todos os aspectos concebíveis – meteorológico, geológico, biológico, agrícola, social, econômico e político. armazena água desse jeito tem direito a receber uma quantidade igual mais tarde. E, para inundar uma lavoura ou um pomar visando reabastecer águas subterrâneas, é necessário mais que permissão e direitos legais; é preciso água. Ultimamente, porém, não há água suficiente nem para alimentar as culturas atuais, quanto mais “estocá-la” para as futuras. Qualquer esquema massivo de recarga terá de esperar por um ano chuvoso. A crise tem sido suficientemente grave para dar ao governador Brown e ao Legislativo cobertura para mudar as leis de água da Califórnia, de 150 anos, em um pequeno passo rumo à regulamentação de lençóis freáticos. De acordo com uma lei aprovada em novembro passado, os departamentos para recursos hídricos locais em cada uma das 515 bacias de águas subterrâneas distintas do estado terão cinco anos para apresentar planos para seu uso sustentável e outros 25 para alcançá-los. Isso sacudirá o estado politicamente porque departamentos municipais de água, distritos de irrigação gerenciados por fazendeiros, comissões distritais de água, e outras agências relacionadas à gestão desse recurso, todas mergulhadas em seus próprios mundos, com seus próprios dados proprietários e interesses concorrentes, terão de se reunir em agências para a sustentabilidade de águas subterrâneas – ou GSAs na sigla em inglês – para compartilharem seu bem mais valioso. Em um prédio de escritórios temporários, revestido de painéis baratos de madeira, que serve como escritório do Distrito de Água do condado de Tulare, mais ou menos no meio do Vale de San Joaquin, conheci um jovem chamado Benjamin Siegel, que
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va abrangente de milênio. “A Califórnia ficaria bem” sem agricultura, disse para mim Richard Howitt, um agroeconomista britânico da Universidade da Califórnia em Davis com acentuado humor seco. “Nós nos transformaríamos em uma economia do Arizona. Eliminaríamos progressivamente a agricultura irrigada e passaríamos para filmes [a indústria cinematográfica da Califórnia responde por 2,1% do produto interno bruto do estado], tecnologia de informação [8%] e tudo mais.” Sem dúvida alguma, frutas, nozes e legumes ficariam mais caros para todos, mas a própria Califórnia poderia facilmente sobreviver à base de indústrias, saúde, finanças e educação que fazem de sua economia a sétima maior do mundo, especialmente se não estivesse desviando quatro quintos de sua água utilizável para a agricultura irrigada. Realisticamente, porém, é difícil imaginar um estado tão inovador como a Califórnia simplesmente permitindo que o orgulho de suas lavouras desapareça. Mais de 30% da agricultura no Vale Central se destina ao cultivo de uvas e frutos como amêndoas, nozes, pistache e frutas cítricas, que representam um investimento enorme que, após o plantio, pode levar até sete anos para se tornar lucrativo. Fazendeiros do Estado Dourado já estão se voltando para uma vigorosa indústria de alta tecnologia que produz irrigadores equipados com GPS, irrigação baseada em meteorologia, sensores de umidade do solo e outros dispositivos agroeletrônicos projetados para reduzir o consumo de água. Em junho, em uma medida ainda mais radical, o estado deu o impensável passo de impor restrições hídricas à “realeza” agrícola californiana, àqueles que detêm direitos sobre água ribeirinha nos vales dos rios Sacramento e San Joaquin, que remontam à época “corrida ao ouro” e que durante muito tempo eram considerados invioláveis. Viajando pela Califórnia, é fácil perceber que o sofrimento, mas também o pensamento criativo, apenas começaram. A seca está transformando a Califórnia em quase todos os aspectos concebíveis – meteorológico, geológico, biológico, agrícola, social, econômico e político. A combinação de um baixo índice de umidade e temperaturas elevadas muito provavelmente será a condição climática do futuro. Mesmo quando ocorrem esporádicos anos chuvosos, o inexorável aquecimento global garante que a precipitação não ocorra mais em forma de intensas nevascas, e, portanto, densas camadas de neve que distribuem água lentamente, mas como furiosas torrentes de chuva. É por isso que em novembro passado os californianos votaram a favor da Proposição-1, a destinação de mais de US$ 7 bilhões para a infraestrutura hídrica, quase 50% dos quais irão para a construção de novas barragens e reservatórios, um projeto de obras públicas de proporções enormes. E é aí que reside o otimismo velado da seca californiana: o ônus de uma pessoa é a oportunidade de outra. O Corpo de Engenheiros do Exército quer extrair o concreto de um trecho de quase 18 quilômetros do Rio Los Angeles, atualmente um horroroso sistema de drenagem de águas pluviais que pouco faz além de canalizar cerca de 783,5 milhões de litros de água por dia para o oceano. O projeto permitiria que pelo menos parte dessa água reabastecesse ou recarregasse o aquífero e injetasse mais de US$ 1 bilhão na economia local. 56 Scientific American Brasil | Setembro 2015
A tecnologia de dessalinização também tem o potencial de abastecer o litoral com água praticamente ilimitada, mas ela é incrivelmente cara, tem uma enorme pegada de carbono porque consome tanta energia e gera quantidades imensuráveis de água intensamente salina, difícil de ser eliminada com segurança. O verdadeiro potencial da gestão de secas reside na conservação e reciclagem de água. O Instituto Pacific, um think tank ambiental com sede em Oakland, estima que simplesmente conseguir que as pessoas usem água de forma mais eficiente dentro e fora de casa poderia economizar à Califórnia 3,7 trilhões de litros por ano, quase 30% de seu consumo de água urbana. A Proposição-1 inclui US$ 725 milhões para a reciclagem, sete vezes mais que o estado já destinou para essa finalidade. Isso corresponde a apenas cerca de 20% do que a divisão californiana da Associação WateReuse, o grupo comercial para a indústria de reciclagem de água, acredita seria necessário para maximizar o potencial dessa tecnologia no estado, mas o dinheiro estadual se destina a atrair fundos municipais, distritais e privados para projetos de reúso de água. A modernização de parques municipais, campos de golfe, fábricas, edifícios de escritórios e até domicílios com as chamadas “tubulações violeta”, que transportam água reciclada suficientemente limpa para utilização em paisagismo, vasos sanitários e outros propósitos não potáveis, está prestes a se tornar um setor multimilionário da economia. A transição já começou em Orange County que, desde 2008, vem tratando e recuperando mais de 30% de suas águas residuais para padrões potáveis, injetando-as no aquífero. O município limpa outros 17% de suas águas residuais o bastante para processos industriais, paisagismo e usos domésticos como descargas de vasos sanitários. A infraestrutura foi cara, mas a maior parte da água tratada custa ao distrito um pouco mais da metade do que custaria importar água do Rio Colorado, que também está sendo rapidamente depauperado. Em novembro passado, o conselho municipal de San Diego aprovou o investimento de US$ 3 bilhões no equipamento que permitirá à cidade reciclar água suficiente para um terço de seus cidadãos. A WateReuse insiste que a purificação de águas residuais poderia suprir todas as necessidades municipais de oito milhões de pessoas, 20% da população da Califórnia, além de criar um número sem precedentes de empregos no processo. O novo “normal” é um pouco assustador, mas isso é a Califórnia. Problemas, sim, mas há ouro nessas soluções.
PA R A C O N H E C E R M A I S
¨®Dïy `D´y D´m D¨¹à´D mà¹ùï ´ ïy ÷Àåï `y´ïùàĂÎ Michael E. Mann e Peter H. Gleick em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 112, no 13, págs. 3858– 3859; 31 de março de 2015. 7´Èày`ymy´ïym ÷Àåï `y´ïùàĂ mà¹ùï àå§ ´ ïy ®yà`D´ 3¹ùïĀyåï D´m y´ïàD¨ 0¨D´åÎ Benjamin I. Cook, Toby R. Ault e Jason E. Smerdon em Science Advances, vol. 1, nº 1, artigo nº e1400082; 1º de fevereiro de 2015. āȨD´´ yāïày®y yÿy´ïå ¹ ÷ĈÀñ ๮ D `¨®Dïy ÈyàåÈy`ïÿyÎ Editado por Stephanie C. Herring et al. em Bulletin of the American Meteorological Society, vol. 95, nº 9, págs. S1– S104; setembro de 2014 D E N OSSOS A RQU I VOS
`¹àày´ïy my ¦Dï¹ yåïE `D´m¹ yåïàD´DÎ y $Dåïyàåj ymcT¹ À÷j ¦D´y๠my ÷ĈÀÎ
PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21
UMA OVA
VI ÃO PARA EXAME Muitas vezes avaliações escolares aumentam a ansiedade e atrapalham o aprendizado. Uma nova pesquisa mostra como reverter essa tendência Annie Murphy Paul EM SÍNTESE
yåmy D DÈà¹ÿDcT¹ da lei Nenhuma Criança Deixada para Trás, em ÷ĈĈ÷j ïy® åy ´ïy´å`Dm¹ D ¹È¹å ção de pais e professores a testar crianças da terceira à oitava séries.
Ilustrações de Mario Wagner
à ï`¹å Dàù®y´ïD® Õùy exames provocam ansiedade em alunos transformando escolas em fábricas de preparação para testes, prejudicando a aprendizagem.
0yåÕùåDå y® `{´`D `¹´ïÿD e psicologia mostram que testar, quando feito corretamente, pode åyà ù® ¦yï¹ y`DĆ my DÈày´myàÎ Submeter-se a provas pode produ-
zir uma recordação melhor de fatos e uma compreensão mais profunda do que uma educação que não inclui exames. 0Dày`y® åyà È๮åå¹àyå como avaliações de
aprendizado profundo testes em desenvolvimento para avaliar com que grau de sucesso alunos atendem aos padrões de referência adotados em 43 estados.
August 2015, ScientificAmerican.com 57
PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21
´´y$ùàÈĂ0Dù¨é colaboradora frequente do The New York Times, e das revistas Time e Slate. É autora de The cult of personality testing e de Origins, que foi incluído na lista dos 100 Livros Notáveis de 2010 do The New York Times. Seu próximo livro, a ser lançado pela Crown, é intitulado Brilliant: The science of how we get smarter.
Quem foi o primeiro americano a orbitar a Terra? A
NEIL ARMSTRONG
B YURI GAGARIN
C
JOHN GLENN
D NIKITA KRUSHCHEV
Em escolas dos Estados Unidos, questões de múltipla escolha como essa, acima, provocam ansiedade e até pavor. Seu surgimento significa que é hora de avaliação, e provas são eventos importantes, de peso, e excruciantemente desagradáveis. Mas não na escola de ensino fundamental Columbia Middle School, em Illinois, na sala de aula da oitava série da professora de história Patrice Bain. Ela tem olhos azuis vivazes, um sorriso rápido e cabelos platinados espetados que têm simultaneamente uma aparência meio punk e meio “duendesca”. Depois de apresentar a pergunta em uma lousa digital, ela espera enquanto seus alunos teclam suas respostas em dispositivos eletrônicos numerados, conhecidos como clickers. “O.K., todo mundo já respondeu?”, pergunta ela. “Número 19, estamos esperando por você!” Apressadamente, 19 digita uma opção e, juntos, Bain e seus alunos repassam as respostas da classe, agora exibidas na parte inferior da lousa inteligente. “A maioria de vocês acertou, John Glenn, muito bom.” Ela dá um risinho e balança a cabeça diante da resposta de três de seus alunos. “Oh, meus queridos”, diz Bain com uma reprimenda brincalhona. “Khrushchev não era um astronauta!” Bain passa para a próxima pergunta, repetindo rapidamente o processo de perguntar, responder e explicar, à medida que ela e seus alunos avançam pela década dos anos 60. Quando todos respondem corretamente, os alunos levantam as mãos e mexem os dedos simultaneamente, um gesto exuberante
A fracassada invasão da Baía dos Porcos envolveu os Estados Unidos e qual outro país? A HONDURAS B HAITI C CUBA D GUATEMALA
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que chamam “dedos espirituosos”. Este é o caso com a questão sobre a Baía dos Porcos: todos acertam. “Muito bem!”, Bain elogia entusiasmada. “Esse é nosso quinto ‘dedos espirituosos’ hoje!” Os gracejos na sala de aula de Bain estão a um mundo de distância da atitude tensa e defensiva em escolas públicas de todo o país. Desde a aprovação da lei Nenhuma Criança Deixada para Trás (NCLB, na sigla em inglês), em 2002, a oposição de pais e professores à sua determinação de avaliar “toda criança, todos os anos” da terceira à oitava série, vem se intensificando. Um número crescente de pais está tirando seus filhos dos testes estaduais anuais; o epicentro do movimento “opt-out” (“opte não”, em tradução literal) pode ser o estado de Nova York, onde até 90% dos alunos em alguns distritos teriam se recusado a fazer o exame de fim de ano no semestre passado. Críticos da acentuada ênfase de escolas americanas em testes reclamam que as avaliações por meio de exames provocam ansiedade em alunos e professores, transformando salas de aula em fábricas preparatórias para exames, em vez de laboratórios de aprendizagem genuína e significativa. No debate sempre polarizador sobre como estudantes americanos deveriam ser educados, a aplicação de testes tornou-se a questão mais controversa de todas. No entanto, um elemento crucial tem estado largamente ausente da discussão até agora. Pesquisas em ciência cognitiva e psicologia mostram que, quando ministrados corretamente, os testes podem ser uma forma excepcionalmente eficaz de aprender. Submeter-se a provas, e participar de atividades bem elaboradas antes e após os testes, pode produzir uma recordação melhor de fatos, assim como um entendimento mais profundo e complexo que uma educação sem exames. Mas uma metodologia de avaliação que apoia ativamente a aprendizagem, além de simplesmente avaliar, seria muito diferente do jeito como escolas americanas aplicam testes atualmente. O que Bain está fazendo em sua sala de aula é chamado prática de recuperação. Esse método tem uma bem estabelecida base de
suporte empírico na literatura acadêmica, que remonta a quase 100 anos, mas Bain, por desconhecer essas pesquisas, desenvolveu algo muito similar por si só ao longo de uma carreira de 21 anos em sala de aula. “Já me falaram que sou uma professora maravilhosa, o que é agradável de ouvir, mas ao mesmo tempo sinto a necessidade de dizer às pessoas: ‘Não, não sou eu, é o método’”, conta Bain em uma entrevista após o término de sua aula. “Tateei meu caminho até essa abordagem e vi que opera tantas maravilhas que tenho vontade de subir no topo de uma montanha e gritar para que todos possam me escutar: ‘Vocês também deveriam estar fazendo isso!’ Mas tem sido difícil persuadir outros professores a tentarem”. Então, há oito anos, ela chegou a Mark McDaniel através de um conhecido comum. Ele é professor de psicologia na Universidade Washington, em St. Louis, Missouri, a meia hora de distância de carro da escola de Bain. McDaniel havia começado a descrever sua pesquisa sobre a prática de recuperação para Bain quando ela o interrompeu com uma exclamação. “Patrice disse: ‘Eu faço isso na minha sala de aula! E funciona!’”, relembra McDaniel. Ele prosseguiu para lhe explicar que o que ele e seus colegas denominam prática de recordação [ou processo de recuperação de informações] é, essencialmente, testar. “Costumávamos chamar isso ‘o efeito-teste’ até ficarmos espertos e percebermos que nenhum professor ou pai se envolveria com uma técnica que contivesse a palavra ‘teste’”, admite McDaniel agora. A prática de recapitulação, ou recuperação, não emprega testes como uma ferramenta de avaliação. Pelo contrário, ela os trata como ocasiões de aprendizagem, o que só faz sentido assim que reconhecemos que não entendemos corretamente a natureza de testar. Consideramos os testes como uma espécie de sonda que “inserimos na cabeça de um estudante”, um indicador que nos diz o quanto o nível de conhecimento aumentou ali dentro, quando, de fato, toda vez que um aluno acessa conhecimento de memória, essa mesma memória muda. Sua representação mental se torna mais forte, mais estável e mais acessível. Por que isso seria assim? Faz sentido, considerando que seria humanamente impossível lembrarmos de tudo o que encontramos, observa Jeffrey Karpicke, professor de psicologia cognitiva na Universidade Purdue, em Indiana. Dado que nossa memória é necessariamente seletiva, a utilidade de um fato ou ideia, como é demonstrado pela frequência com que fomos levados a recordar ou recuperá-la, constitui uma base sólida para a seleção. “Nossas mentes são sensíveis à probabilidade de que precisaremos de conhecimento em algum momento futuro, e se recuperamos uma informação agora, há uma boa chance de que precisaremos dela novamente”, explica Karpicke. “O processo de resgatar uma memória altera ela mesma em antecipação de demandas que podemos encontrar no futuro.” Estudos que empregam sistemas de imageamento por ressonância magnética funcional do cérebro estão começando a revelar os mecanismos neurais subjacentes ao efeito-teste. Nas poucas análises conduzidas até agora, cientistas constataram que acessar ou recuperar informações da memória, em comparação com simplesmente reestudá-las, produz níveis mais elevados de atividade
em áreas específicas do cérebro. Essas regiões estão associadas à chamada consolidação, ou estabilização, de memórias e com a geração de sinais que as tornam prontamente acessíveis mais tarde. Pesquisadores demonstraram em vários estudos que quanto mais ativas essas regiões estiverem durante uma sessão inicial de aprendizagem, mais bem-sucedida é a recordação dos participantes do estudo semanas ou meses mais tarde. De acordo com Karpicke, recordar ou recuperar é a principal maneira como a aprendizagem acontece. “Recordar informações que já armazenamos na memória é um evento de aprendizado mais poderoso do que armazená-las em primeiro lugar”, enfatiza. “Em última análise, a recuperação é o processo que faz com que novas memórias se fixem.” A prática da recordação não só ajuda os alunos a lembrar de informações específicas que resgatam; ela também melhora a retenção de informações relacionadas que não foram testadas diretamente. Pesquisadores teorizam que, enquanto vasculhamos nossa mente em busca de uma determinada informação, estamos tentando relembrar; ou seja, acessamos memórias associadas e, ao fazermos isso, as reforçamos também. A prática de recuperação também ajuda a evitar que alunos confundam as matérias que estão aprendendo atualmente com outras que aprenderam anteriormente, e até parece preparar suas mentes para absorver o material ainda mais profundamente quando o encontram novamente depois de serem avaliados (um fenômeno que pesquisadores chamam “aprendizagem potenciada por testes”). Centenas de estudos demonstraram que a prática da recordação é melhor para aprimorar a retenção do que praticamente qualquer outro método que estudantes poderiam usar. Para citar um exemplo: em um estudo publicado em 2008 por Jeffrey Karpicke e seu mentor, Henry Roediger III, da Universidade Washington, os autores relataram que alunos que se testavam por conta própria em vocábulos lembravam 80% das palavras mais tarde, ao passo que os que estudavam os termos lendo-os repetidamente só lembravam de cerca de 30% deles. A prática da recuperação é especialmente poderosa em comparação com as estratégias de estudo favoritas de alunos em geral: destacar textos e reler suas anotações e livros didáticos; exercícios que uma recente revisão considerou estarem entre os menos eficientes. Além disso, testar não se limita apenas a reforçar a memorização de fatos isolados. O processo de resgatar informações da memória também promove o que pesquisadores chamam de aprendizado profundo. Estudantes que praticam a aprendizagem profunda são capazes de fazer inferências e estabelecer conexões entre os fatos que sabem, e são capazes de aplicar seus conhecimentos em contextos variados (um processo de aprendizagem que cientistas denominam transferência). Em um artigo publicado em 2011 no periódico Science, Karpicke e sua colega Janell Blunt, da Universidade Purdue, compararam explicitamente a prática de recuperação com uma técnica de estudo conhecida como mapeamento de conceito. Atividade favorecida por muitos professores como meio de promover o aprendizado profundo, esse mapeamento pede a alunos que desenhem um diagrama que ilustra o corpo de conhecimento que estão aprendendo com as relações entre conceitos representadas por ligações entre nodos, como estradas que ligam cidades em um mapa. www.sciam.com.br 59
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AVALIAÇÃO DO MEMBRO DE EQUIPE O teste mais observado do mundo, o PISA, se aventura em um novo domínio: mensagens instantâneas – Peg Tyre Quando dezenas de milhares de adolescentes de 15 anos de todo o mundo se sentarem diante de seus computadores para fazer o exame Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês) neste ano, eles serão testados em leitura, matemática e ciências. Os estudantes também terão de resolver uma nova e controversa série de questões desenvolvidas para medir “habilidades colaborativas para solucionar problemas”. Em vez de respostas curtas ou explicações mais longas, o examinando registrará resultados de jogos, resolverá quebra-cabeças e realizará experimentos com a ajuda de um parceiro virtual com o qual poderá se comunicar ao digitar texto em uma caixa de bate-papo (chat). Embora o novo domínio de teste ainda seja experimental, autoridades do PISA acreditam que os resultados desses problemas inéditos levarão governos a equipar melhor suas populações jovens para que prosperem na economia global. Os críticos da nova modalidade alegam que o PISA deu um passo atrás em um debate antigo e cáustico sobre se habilidades como raciocínio crítico e colaboração podem ser ensinadas e se o podem independentemente do conteúdo. Em vista do ritmo da inovação tecnológica, as
escolas precisam se adaptar, e o novo domínio fornece a essas instituições um roteiro para fazer isso, explica Jenny Bradshaw, gerente de projeto sênior do PISA, que supervisiona o teste: “Trabalhar com parceiros invisíveis, especialmente on-line, se tornará uma habilidade-pilar para o sucesso de carreira. Cada vez mais, essa será a forma como o local de trabalho e o mundo funcionarão”. Trata-se de um importante desvio do exame de 15 anos de existência, dirigido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Desde sua estreia em 2000, o PISA mediu a capacidade de alunos de aplicar leitura, matemática e ciência a situações da vida real. Os rankings do PISA e as manchetes que eles geram tornaram-se rapidamente um ponto crítico, ou de referência para formuladores de políticas preocupados com a competitividade internacional. O ranking do PISA estimulou, pelo menos em parte, uma grande variedade de esforços de reformas escolares nos Estados Unidos e na Europa. O desempenho medíocre dos EUA no 03 §xþ¸ø¸Çßxälx³îx DßD`¦'UDDDDßDßj em 2009, que os estudantes do país precisam “avançar do meio para a parte superior do ‘bando’ em ciências e matemática” em uma década.
Em seu estudo, Karpicke e Blunt orientaram grupos de voluntários ainda não graduados, 200 ao todo, a ler um trecho extraído de um livro didático de ciência. Em seguida, um grupo foi solicitado a criar um mapa conceitual referindo-se ao texto; o outro tinha de recuperar, de memória, o máximo de informações que podia do excerto que haviam acabado de ler. Em um teste dado a todos os estudantes uma semana mais tarde, o grupo da prática de recuperação foi mais capaz de recordar os conceitos apresentados no texto do que a turma de mapeamento de conceitos. Mais interessante: o primeiro grupo também se saiu melhor em fazer inferências, ou tirar conclusões e fazer conexões entre múltiplos conceitos contidos no texto. Karpicke e Blunt concluíram que, em termos gerais, a prática de recuperação era cerca de 50% mais eficaz para promover tanto a aprendizagem profunda como factual. Transferência, a capacidade de aplicar conhecimento aprendido em um contexto a outro, é o objetivo culminante do aprendizado profundo. Em um artigo publicado em 2010, o psicólogo Andrew Butler , da Universidade do Texas em Austin, demonstrou que a prática de recuperação promove a transferência melhor do que a abordagem convencional de estudar por meio de reler. No experimento de Butler, estudantes se dedicavam à releitura ou à prática de recordação após lerem um texto que pertencia a um 60 Scientific American Brasil | Setembro 2015
Em 2008, os gigantes da indústria de tecnologia Cisco, Intel e Microsoft, preocupados com o fato de receberem candidatos a empregos mal ÇßxÇDßDl¸äÇDßDîDßx
Dä`ßø`Däj`¸xcDßDD nanciar suas próprias pesquisas através de um grupo chamado Avaliação e Ensino de Habilidades do Século 21 (ATC21S, na sigla em inglês) para lx³î`DßxÇ߸¸þxßDä`DDlDäÙDU§lDlxä do século 21”; ou seja, basicamente a capacidade de raciocinar crítica e criativamente, trabalhar em cooperação com outros e se adaptar à crescente incorporação da tecnologia em negócios e na sociedade. Durante anos, o grupo persuadiu o PISA a começar a testar estudantes de todo o mundo em algumas dessas habilidades, e encontrou acadêmicos para fornecer uma estrutura conceitual de pesquisa para como isso poderia ser feito. Há três anos, o exame PISA incluiu questões destinadas a avaliar as habilidades de alunos de 15 anos de todo o mundo para resolver problemas. (De acordo com autoridades do PISA os estudantes chineses são bons solucionadores de problemas. Israelenses, nem tanto. E os americanos se situam em algum lugar na faixa mediana.) No entanto, os formuladores do teste decidiram que uma economia global conectada requer um `¸³¥ø³î¸lxDU§lDlxäD³lDDäxäÇx``¸iD solução de problemas em grupo mediada pela internet. Por essa razão, o PISA deste ano escrutinará a habilidade de estudantes de 51 países de resolverem problemas em colaboração. As próprias questões do teste são alternadamente divertidas e frustrantes. Embora pesquisa-
“domínio de conhecimento”, nesse caso, o uso de ondas sonoras por morcegos para se orientar. Uma semana depois, os alunos foram solicitados a transferir o que haviam aprendido sobre morcegos para um segundo domínio de conhecimento: a utilização navegacional de ondas sonoras por submarinos. Os estudantes que tinham se sabatinado sobre o texto original sobre morcegos foram mais capazes de transferir seu aprendizado para a situação dos submarinos. Por mais robustas que sejam essas descobertas, até recentemente elas foram feitas quase exclusivamente em laboratórios, com estudantes universitários como objetos de estudo. McDaniel queria há muito tempo aplicar práticas de recuperação em escolas no mundo real, mas obter acesso a salas de aula K-12 (a somatória dos anos de ensino fundamental e médio no sistema educacional básico dos Estados Unidos e Canadá) foi um desafio. Com a ajuda de Bain, McDaniel e dois de seus colegas da Universidade Washington, Roediger e Kathleen McDermott, criaram um ensaio randômico controlado na Columbia Middle School que, em última análise, envolveu nove professores e mais de 1.400 alunos. No decorrer do experimento, alunos das sexta, sétima e oitava séries estudaram ciências e estudos sociais de uma de duas maneiras: 1) o material era apresentado uma vez e de-
dores do ATC21S acreditem que seja melhor testar problemas colaborativos através de uma cooperação real, os examinandos do PISA trabalharão com uma parceira virtual apelidada “Abby”. Juntos, o aluno e Abby deverão, por exemplo, determinar as melhores condições para peixes que vivem em um aquário, em uma situação em que o testador controla a água, o cenário e a iluminação, e Abby regula alimentos, população de peixes e temperatura. Para resolver a tarefa, o aluno precisa construir um consenso sobre como resolver o problema, responder a preocupações, esclarecer mal-entendidos, compartilhar
informações de ensaios e sintetizar os resultados para chegar à resposta correta. Muitos críticos argumentam que novos domínios são um equívoco. “Existe um conjunto independente de habilidades – a colaboração para resolver problemas –, que é transferível entre domínios de conhecimento?”, pergunta Tom Loveless, pesquisador do Instituto Brookings. “A solução de problemas entre dois biólogos é igual à solução entre dois historiadores? Ou ela é diferente? Edu`Dl¸ßxäÇ߸ßxäääîDälxälx ¸³xÿxāZ§¹ä¸
¸ xÇxlD¸¸j¿}´¿´ö[îz³ääîl¸Ôøxx§Dy igual, mas nós simplesmente não sabemos isso.”
pois os professores o revisavam três vezes com os alunos; 2) o material era apresentado uma vez, e os estudantes eram sabatinados sobre o assunto três vezes (usando clickers como os da atual sala de aula de Bain). Quando os resultados dos testes regulares de matérias individuais foram calculados, a diferença entre as duas abordagens ficou clara: os alunos obtiveram a nota média C+ (de 5,85 a 6,68 no Brasil) no material que haviam revisado e A- (de 8,34 a 9,17) no que tinha sido sabatinado (testado em aula). Em um teste de acompanhamento aplicado oito meses depois, os alunos ainda se lembravam muito melhor de informações para as quais tinham sido testados do que das que só tinham revisado. “Eu sempre havia considerado testes como uma forma de avaliar, não como uma forma de aprender, então estava cética de início”, admite Andria Matzenbacher, ex-professora da escola Columbia, que agora trabalha como designer instrucional. “Mas fiquei impressionada com a diferença que a prática de recuperação teve no desempenho dos alunos.” Mas Bain, por exemplo, não ficou surpresa. “Eu sabia que esse método funciona, mas foi bom vê-lo ser comprovado cientificamente”, observa ela. McDaniel, Roediger e Mc Dermott acabaram estendendo o estudo à Columbia High School (de ensino médio, antigo colegial), onde a prática
Sistemas escolares que querem preparar estudantes para o futuro deveriam ajudá-los a alcançar pleno domínio de matemática complexa, ciência e alfabetização em vez de investir recursos na promoção de conceitos nebulosos. Jenny Bradshaw, do PISA, reconhece que persistem questões sobre os domínios inovadores, mas argumenta que ela e sua equipe acreditam tratar-se de um experimento que vale a pena tentar. Enquanto pesquisadores do PISA conduzem estudos de validação e concentram grupos na solução de problemas em colaboração, outros já estão trabalhando na próxima meta do PISA. Em 2018, informa ela, sua equipe já terá divisado um jeito válido para medir a “competência global”. Como em educação é verdade que o que é testado é ensinado, o ATC21S está se preparando para a ansiedade internacional dos países mal colocados no ranking ao oferecer vídeos de salas de aula onde, segundo os pesquisadores, professores e alunos estão fazendo tudo certo. O grupo também ofereceu um Massivo Curso Aberto On-line (MOOC, em inglês) para treinar professores em como levar às suas salas de aula a solução colaborativa de problemas; 30 mil professores se inscreveram no programa, e 25% deles o concluíram. Peg Tyre é jornalista especializada em assuntos de educação e autora do livros The good school e The trouble with boys. Ela também é diretora de estratégia da Fundação Edwin Gould, que investe em entidades de apoio à educação.
Quanto tempo você gastou em revisões com cada um dos seguintes itens: • Lendo anotações de aula? _____ MINUTOS • Refazendo antigos problemas de lição de casa? _____ MINUTOS • Trabalhando em problemas adicionais? _____ MINUTOS • Lendo o livro? _____ MINUTOS Agora que revisou seu exame, estime a porcentagem de pontos que perdeu devido a cada um dos seguintes fatores: • ___ % POR NÃO ENTENDER UM CONCEITO • ___ % POR NÃO SER CUIDADOSO (I.E., ERROS DE DISTRAÇÃO) • ___ % POR SER INCAPAZ DE FORMULAR UMA ABORDAGEM PARA UM PROBLEMA
• ___ % POR OUTRAS RAZÕES (POR FAVOR, ESPECIFIQUE)
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Existe mais um aspecto nos testes estaduais padronizados que os impede de serem empregados de forma mais x`DąÇDßDDDÇßx³ląDxÍ ä perguntas que formulam são predominantemente de natureza äøÇxß`D§j¸Ôøx§xþDjÔøDäx inevitavelmente, a um aprendizado øD§x³îxäøÇxß`D§Í de sabatinas em aula produziu resultados igualmente impressionantes. Em um esforço para tornar a prática de recuperação uma estratégia comum nas salas de aula em todo o país, a equipe da Universidade Washington (com a ajuda da pesquisadora associada Pooja K. Agarwal, agora na Universidade Harvard) desenvolveu um manual para professores intitulado Como Usar a Prática de Recuperação para Melhorar a Aprendizagem (How to Use Retrieval Practice to Improve Learning). Mesmo sendo apoiados pelo peso das evidências, no entanto, os defensores da prática de recuperação ainda lutam contra uma reação reflexivamente negativa à aplicação de testes entre muitos professores e pais. Eles também enfrentam uma objeção mais ponderada, que argumenta mais ou menos o seguinte: os estudantes americanos já são testados excessivamente, com frequência muito maior que alunos de outros países, como a Finlândia e Cingapura, que se classificam regularmente bem mais à frente dos americanos em avaliações internacionais. Se testar é um jeito tão ótimo de aprender, por que nossos alunos não estão se saindo melhor? Marsha Lovett tem uma resposta na ponta da língua para essa pergunta. A diretora do Centro Eberly para Excelência no Ensino e Inovação Educativa, da Universidade Carnegie Mellon, é especialista em “metacognição”, a capacidade de pensar sobre a nossa própria aprendizagem, de estar ciente do que sabemos e não sabemos, e de usar essa consciência para gerenciar com eficiência o processo de aprendizagem. Sim, diz Lovett, estudantes americanos fazem muitos testes. É o que acontece depois, ou, mais precisamente, o que não acontece, que faz com que esses testes deixem de funcionar como oportunidades de aprendizagem. Os alunos frequentemente recebem poucas informações sobre o que acertaram e erraram. “Esse tipo de retroalimentação item por item é essencial para o aprendizado, e nós estamos jogando essa oportunidade fora”, critica. Além disso, os alunos raramente são instados a refletir de forma ampla e abrangente sobre sua preparação para os exames e seu desempenho neles. “Muitas ve62 Scientific American Brasil | Setembro 2015
zes eles só olham de relance para a nota e depois enfiam a prova em algum lugar e nunca mais olham para ela”, observa Lovett. “Mais uma vez, essa é uma oportunidade de aprendizagem realmente importante que estamos perdendo.” Há alguns anos, Lovett descobriu um jeito para fazer alunos refletirem após uma prova. Ela chama seu método “exam wrapper”, ou “invólucro de exame”. Quando o professor devolve um teste avaliado com nota a um aluno, junto com ele vem, literalmente, um pedaço de papel enrolado em volta da prova em si. Nesse papel há uma lista de questões: um exercício curto que os estudantes devem completar e devolver. O invólucro que Lovett desenvolveu para um exame de matemática incluiu questões como: Com base nas estimativas acima, o que você fará de modo diferente quando se preparar para o próximo teste? Por exemplo: você mudará seus hábitos de estudo ou tentará aprimorar habilidades específicas? Por favor, seja específico. Além disso, o que podemos fazer para ajudar? A ideia, explica ela, é fazer com que os alunos reflitam sobre o que não sabiam ou não entenderam, por que não conseguiram captar essa informação e como poderiam se preparar de modo mais eficiente antes do próximo teste. Ela vem promovendo a utilização de invólucros de exames junto aos membros do corpo docente da Universidade Carnegie Mellon há alguns anos, e vários professores, especialmente os de ciências, incorporaram a técnica em seus cursos. Eles entregam “invólucros” junto com exames graduados, os recolhem assim que foram preenchidos e, mais esperto que tudo, devolvem os papéis na época em que os alunos estão se preparando para a próxima prova. Essa prática faz uma diferença? Em 2013, Lovett publicou um estudo de invólucros de exames em forma de um capítulo no volume editado Using reflection and metacognition to improve student learning [Usando reflexão e metacognição para melhorar a aprendizagem de alunos]. De acordo com sua análise, as habilidades metacognitivas de alunos em classes que utilizavam os invólucros se desenvolveram melhor ao longo do semestre do que as de seus colegas em cursos que não se valiam deles. Além disso, uma pesquisa de fim de semestre constatou que entre os estudantes que receberam invólucros de exames, mais da metade citou mudanças específicas que haviam feito em suas abordagens de aprender e estudar como resultado do preenchimento do papel. A prática de usar invólucros de exames está começando a se espalhar para outras universidades e escolas K-12. Lorie Xikes leciona na escola de ensino médio Riverdale High School, em Fort Myers, na Flórida, e tem usado os papéis em sua aula de biologia avançada (AP Biology é um curso para alunos que querem seguir carreira nesse campo). Quando ela devolve provas, o papel do invólucro inclui questões como: Com base em suas respostas às perguntas acima, cite pelo menos três coisas que você fará de maneira diferente ao se preparar para o próximo exame. SEJA ESPECÍFICO.
R E CA P I T U L AÇÃO
Aproximadamente quanto tempo você passou se preparando para o teste? (SEJA HONESTO) TV/rádio/computador estavam ligados? Você esteve em qualquer site de mídia social enquanto estudava? Você estava jogando videogames? (SEJA HONESTO)
FONTE: “THE CRITICAL IMPORTANCE OF RETRIEVAL FOR LEARNING”, JEFFREY D. KARPICKE E HENRY L. ROEDIGER III, EM SCIENCE, VOL. 310; 19 DE FEVEREIRO DE 2008
Agora que revisou o teste, marque as äxø³îxä EßxDä x Ôøx îxþx l`ø§lDlxäi • APLICAR DEFINIÇÕES ________ • FALTA DE COMPREENSÃO DE CONCEITOS ______ • ERROS DESCUIDADOS ________ • LER/INTERPRETAR UMA TABELA OU GRÁFICO ________ “Alunos geralmente só querem saber sua nota, e nada mais”, diz Xikes. “Fazer com que preencham o papel do invólucro do exame faz com que parem e reflitam sobre como se preparam para um teste e se a sua abordagem está funcionando ou não para eles.” Além de distribuir invólucros de exames, Xikes também dedica tempo de aula para revisar a prova, questão por questão, uma retroalimentação que ajuda os estudantes a desenvolver a capacidade crucial de “monitoramento metacognitivo”; isto é, controlar o que sabem e o que ainda precisam aprender. Pesquisas sobre a prática de recuperação mostram que testar pode identificar lacunas específicas nos conhecimentos dos alunos, além de “esvaziar” a excessiva e generalizada confiança a que são suscetíveis, mas só se um feedback imediato é fornecido como um corretivo. Com o tempo, a reiterada exposição a esse ciclo de testes-retroalimentação pode motivar alunos a desenvolver a capacidade de monitorar seus próprios processos mentais. Estudantes de origem abastada, que recebem uma educação privilegiada, de primeira linha, podem adquirir essa habilidade naturalmente por uma questão de educação, mas essa mesma capacidade muitas vezes é inexistente entre estudantes de baixos níveis de renda, que frequentam escolas fracas, que lutam por sua sobrevivência, acenando com a promissora possibilidade de que a prática de recuperar poderia, de fato, começar a fechar as lacunas de desempenho entre os mais e menos favorecidos. É exatamente isso o que James Pennebaker e Samuel Gosling, professores da Universidade do Texas em Austin, constataram quando instituíram sabatinas diárias no amplo curso de psicologia que lecionam juntos. Os testes eram postados on-line, com um software que informava os alunos se tinham respondido a pergunta corretamente assim que davam uma resposta. As notas obtidas pelos 901 estudantes do curso, que incluía quizzes, ou questionários diários foram, em média, cerca de meia nota mais altas que as obtidas por um grupo de comparação de 935 ex-alunos de Pennebaker e Gosling, que haviam feito um curso de concepção mais tradicional sobre o mesmo assunto, ou material. Surpreendentemente, os estudantes que faziam os testes diários em sua aula de psicologia também tiveram desempenho meGráfico de Jen Christiansen
Testes que ensinam Sabatinas, ou quizzes, podem fazer mais que avaliar a aprendizagem, elas podem reforçá-la. Em um estudo elaborado para comparar a diferença de desempenho entre estudar e testar, publicado em 2008 no periódico Science, psicólogos pediram a quatro grupos de estudantes universitários que aprendessem 40 palavras do vocabulário suaíli. O primeiro grupo estudou os vocábulos e foi testado repetidamente. Os outros grupos falaram as palavras que tinham memorizado por meio de estudos posteriores ou testes, ou ambos. Uma semana depois, os estudantes que foram repetidamente sabatinados sobre todas as palavras lembraram 80% delas, ao passo que os voluntários que apenas estudaram as palavras só recordaram cerca de 30% dos vocábulos.
Benefícios claros de testes repetidos Participantes estudaram e foram testados sobre toda a lista em cada intervalo de estudo e exame
Participantes foram testados sobre toda a lista em cada exame, mas frases corretamente memorizadas foram subtraídas de estudos posteriores
Participantes estudaram toda a lista, em cada intervalo de estudo, mas frases corretamente memorizadas foram subtraídas de testes posteriores
Frases lembradas corretamente foram tiradas de estudos e testes posteriores
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Frases em língua estrangeira memorizadas corretamente (porcentagem, uma semana após a conclusão do período integral de estudos e testes)
lhor em seus outros cursos durante o semestre em que estavam matriculados na aula de Pennebaker e Gosling, assim como nos semestres subsequentes, o que sugere que as frequentes sabatinas acompanhadas de uma retroalimentação tiveram o efeito de melhorar suas habilidades gerais de autorregulação. O aspecto que foi mais empolgante para os professores é que os questionários diários levaram a uma redução de 50% na lacuna de conhecimentos, medidos por meio de notas, entre alunos de diferentes classes sociais. “A repetida aplicação de testes é uma poderosa prática que reforça, ou melhora diretamente as habilidades de aprendizagem e raciocínio, e pode ser especialmente útil para estudantes que começam com uma formação acadêmica mais fraca”, observa Gosling. Ele e Pennebaker, que publicaram com o estudante de graduação Jason Ferrell, da Universidade do Texas, suas constatações sobre os efeitos de sabatinas diárias em 2013 no periódico científico PLOS ONE, atribuíram ao “feedback rápido, direcionado e estruturado” que os estudantes receberam a melhoria da eficácia de testes repetidos. E é nisso que reside um dilema para alunos de escolas públicas americanas, que fazem em média 10 testes padronizados www.sciam.com.br 63
PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21
Se os próprios testes estaduais atualmente em curso nos Estados Unidos fossem avaliados de acordo com a mesma l`ø§lDlxxDxäD profundidade das questões que apresentam, quase todos seriam reprovados. por ano da terceira à oitava séries, de acordo com um recente estudo realizado pelo Centro para o Progresso Americano. Ao contrário dos exames elaborados e aplicados pelos professores e docentes perfilados aqui, as provas padronizadas geralmente são vendidas às escolas por editoras comerciais. As notas desses testes frequentemente chegam semanas ou até meses depois de terem sido feitos pelos alunos. E para manter o sigilo e a segurança das questões desses testes, e poder usá-las novamente em provas futuras, as empresas especializadas nesses exames não fornecem uma retroalimentação para todas as questões, mas apenas uma nota numérica sem grandes explicações. Existe mais um aspecto nos testes estaduais padronizados que os impede de serem empregados de forma mais eficaz como ocasiões de aprendizagem. As questões que formulam são predominantemente de natureza superficial, o que leva, quase inevitavelmente, a um aprendizado igualmente superficial. Se os próprios testes estaduais atualmente em uso nos Estados Unidos fossem avaliados de acordo com a mesma dificuldade e a mesma profundidade das questões que apresentam, quase todos seriam reprovados. Essa é a conclusão a que chegaram Kun Yuan e Vi-Nhuan Le, ambas então cientistas comportamentais na RAND Corporation, um think tank sem fins lucrativos. Em um relatório publicado em 2012, Yuan e Le avaliaram os testes de matemática e língua inglesa oferecidos por 17 estados, classificando cada questão de acordo com seu desafio cognitivo para os alunos testados. Para isso, as duas pesquisadoras da RAND usaram uma ferramenta chamada Webb’s Depth of Knowledge (Profundidade de Conhecimento de Webb), abreviado DOK, criada por Norman Webb, cientista sênior do Centro para Pesquisa Educacional de Wisconsin, que identifica quatro níveis de rigor mental, de DOK1 (recordação simples), a DOK2 (aplicação de habilidades e conceitos), até DOK3 (raciocínio e inferência), e DOK4 (planejamento e investigação estendida). A maioria das perguntas das provas estaduais examinadas por Yuan e Le estava nos níveis DOK1 ou DOK2. As autoras utilizaram o nível DOK4 como ponto de referência para as questões que medem o aprendizado mais profundo e, por este padrão, os testes estão falhando completamente. Apenas de 1% a 6% dos alunos eram avaliados quanto ao seu aprendizado mais profundo em leitura através de testes estaduais, relatam as pesquisadoras; 2% a 3% eram avaliados em aprendizado mais profundo em redação; 64 Scientific American Brasil | Setembro 2015
e zero % em aprendizado mais profundo em matemática. “O que testes medem é importante porque o que consta neles tende a impulsionar a instrução”, salienta Linda Darling-Hammond, professora emérita na Escola de Educação Graduada da Universidade Stanford e autoridade nacional em aprendizagem e avaliação. Ela frisa que isso é especialmente verdadeiro quando há recompensas e punições associadas aos resultados dos testes, como é o caso sob a lei Nenhuma Criança Deixada para Trás e as medidas de “responsabilidade” dos próprios estados. De acordo com Darling-Hammond, as disposições da lei NCLB efetivamente forçaram os estados a empregar testes de múltipla escolha de baixo custo, que podem ser assinalados por máquina, e é praticamente impossível que eles meçam o aprendizado profundo, argumenta ela. Mas outros tipos de testes poderiam fazer isso. Em colaboração com seu colega de Stanford Frank Adamson, Darling-Hammond escreveu o livro Beyond the bubble test (Além do teste de bolinhas, em tradução livre), de 2014, que descreve uma visão muito diferente de avaliação: testes que apresentam perguntas “abertas”, cujas respostas são avaliadas por professores e não máquinas; que estimulam os alunos a desenvolver e defender um argumento; e que pedem aos examinandos que realizem um experimento científico ou elaborem um relatório de pesquisa. Darling-Hammond salienta que, na década de 90, alguns estados americanos haviam começado a ministrar testes desse tipo, mas que esse esforço acabou com a aprovação da lei Nenhuma Criança Deixada para Trás. Ela reconhece que o interesse por testes mais sofisticados também acabou devido a preocupações de logística e custo. Ainda assim, avaliar os alunos dessa forma não é um sonho fantástico: outros países, como a Inglaterra e a Austrália, já estão fazendo isso. “Seus alunos estão realizando o trabalho de cientistas e historiadores reais, enquanto os nossos estão preenchendo bolinhas”, queixa-se Darling-Hammond. “É lamentável.” Mas ela vê alguns motivos para otimismo: uma nova geração de testes está sendo desenvolvida nos EUA para avaliar com que taxa de sucesso os estudantes atendem aos critérios dos Common Core State Standards, padrão baseado em um conjunto de pontos de referência acadêmicos em alfabetização e matemática que foram adotados por 43 estados. Dois desses testes, o Consórcio Smarter Balanced Assessment (Smarter Balanced) e o Parceria para Avaliação de Prontidão para a Faculdade e Carreiras (PARCC, na sigla em inglês) parecem promissores como provas de aprendizado profundo, opina Darling-Hammond, apontando para uma recente avaliação conduzida por Joan Herman e Robert Linn, pesquisadores no Centro Nacional de Pesquisa em Avaliação, Padrões, e Avaliação de Estudantes (CRESST), da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Herman salienta que os dois testes pretendem enfatizar questões de nível DOK2 e acima de profundidade de conhecimentos de Webb, com pelo menos um terço da pontuação total possível de um estudante vindo de questões de nível DOK3 e DOK4. “O PARCC e o Smarter Balanced podem não ir tão longe quanto gostaríamos”, admitiu Herman em uma postagem em seu blog no ano passado, mas “eles provavelmente produzirão um grande passo à frente”.
LIVROS
A enciclopédia que mudou o curso da história Obra dirigida por Diderot e d’Alembert sob a opressão absolutista e religiosa ganha tradução brasileira “Esta obra produzirá certamente, com o tempo, uma revolução nos espíritos, e espero que os tiranos, os opressores, os fanáticos e os intolerantes não ganhem nada com isto.” Com essas palavras em uma carta à sua amiga e confidente Sophie Volland, em setembro de 1762, às vésperas da publicação do oitavo volume de sua Enciclopédia, o escritor e filósofo francês Denis Diderot (1715-1797) sintetizou o espírito desse seu trabalho que, em coautoria com o físico e matemático Jean d’Alembert (1717-1783), se tornou um dos principais ícones do Iluminismo. A ideia de compilar conhecimentos em obras preparadas especificamente para esse fim já havia sido posta em prática desde a Antiguidade greco-romana, inclusive por Aristóteles (c. 384-322 a.C.). O primeiro projeto efetivamente proposto em moldes enciclopédicos só veio a ser formulado no início do século 17 pelo filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626) em seu livro Sobre a proficiência e o avanço do conhecimento divino e humano (1605). O projeto de Bacon inspirou a produção de obras como o Dicionário histórico e crítico (1697), do francês Pierre Bayle (1647-1706), e a Ciclopédia ou dicionário universal de artes e ciências (1728), do inglês Ephraim Chambers (1680-1740). A iniciativa de elaborar a Enciclopédia surgiu da ideia de publicar em francês a Ciclopédia – que chegou a ser editada até o final do século 19. O convite para traduzir a obra de Chambers foi feito a Diderot pelo editor parisiense André-François Le Breton. Depois de muitas manifestações do pensador ao editor, o
projeto editorial foi totalmente reformulado, passando de uma tradução à elaboração de uma obra original. Entre as primeiras exigências de Diderot a Breton, destacou-se “a escolha dos colaboradores segundo seus conhecimentos, liberdade completa para os autores e independência diante dos poderes constituídos”, conforme destacou Maria das Graças de Souza, professora de filosofia da USP, na introdução à edição brasileira, da qual é também uma das tradutoras.
“... POIS A ENCICLOPÉDIA DEVE TUDO AOS TALENTOS, NADA AOS TÍTULOS, ELA É A HISTÓRIA DO ESPÍRITO HUMANO, E NÃO DA VAIDADE DOS HOMENS.” (JEAN D’ALEMBERT) A publicação da Enciclopédia começou em 1751. A elaboração da obra contou com o trabalho de colaboradores, entre eles intelectuais então já consagrados, como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e o médico e filósofo Louis de Jacourt (17041779), autor de cerca de um quarto dos verbetes de toda a coleção. A obra também se caracterizou por seu projeto, fundado nos ideais iluministas de valorização da razão e de reforma da organização da sociedade, baseada no poder da religião e do absolutismo e do conhecimento herdado da tradição medieval.
Até 1772 foram publicados 35 volumes, cerca de metade deles com ilustrações. Publicada em cinco volumes – Discurso preliminar, O sistema dos conhecimentos, As ciências da natureza, Política e Sociedade e artes –, a edição brasileira também traz 170 do total de cerca de 600 imagens da obra original. Na nova versão as gravuras estão nos mesmos tomos em que estão os verbetes aos quais se referem. Além do importante trabalho de introdução e contextualização da obra – por meio de textos dos professores da USP Maria das Graças de Souza, Pedro Paulo Pimenta e Franklin de Matos –, outro ponto forte da edição brasileira é a versão bilíngue (francês-português) do “Discurso preliminar dos editores”, redigido por d’Alembert, que está no primeiro volume. Mais que uma obra de difusão do conhecimento à disposição de cada cidadão, e que um baluarte de combate ao absolutismo e ao pensamento medieval, a Enciclopédia é também o ponto de encontro desse espírito de libertação com um dos melhores estilos literários de crítica e do exercício vigoroso, inteligente e criativo da razão. – Maurício Tuffani Enciclopédia, ou dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios Denis Diderot e Jean d’Alembert (organização de Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza). Editora Unesp. 5 volumes. 2015. Preço: R$ 78,00 cada volume. www.sciam.com.br 65
CIÊNCIA EM GRÁFICO
Bactéria resistente no estômago Uma cepa difícil de combater de Shigella³`¸øF³`¸ßD³¸ääîDl¸ä7³l¸ä Tipos de bactérias que podem causar diarreia, como nas intoxicações alimentares, nos espreitam de todos os lados. Microrganismos como Escherichia coli e Shigella podem ser facilmente transmitidos em viagens internacionais e lugares como creches, onde é difícil manter a limpeza o tempo todo. Em abril os Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês) registraram um surto de Shigella sonnei que se tornou resistente à ciprofloxacina – um dos últimos antibióticos na forma de comprimido capaz de matar esse patógeno. Pesquisa da Scientific American mostra que a preocupante cepa continua circulando no país um ano após seu aparecimento.
Os CDC confirmaram 275 casos de Shigella resistente à ciprofloxacina entre maio de 2014 e maio de 2015 e liberaram dados um pouco mais detalhados sobre ocorrências confirmadas em cada estado à Scientific American (gráficos abaixo). Embora pareçam baixos, os números quase certamente representam apenas uma pequena fração dos casos de bactérias resistentes a esse medicamento. Todas as infecções por Shigella devem ser notificadas aos CDC, mas muitas pessoas contaminadas não vão ao médico. E aquelas que vão nem sempre são submetidas a exames para verificar a presença de Shigella e muito menos a resistência ao medicamento. – Rebecca Harrington
Casos de Shigella em alta 131 ALASCA
Då¹å ´¹ï`Dm¹å my Shigella (total cumulativo por semana*)
5¹ïD¨ my `Då¹å àyååïy´ïyå K `È๹āD`´D (24 de maio de 2014 – 0 1º de maio de 2015)
ALABAMA
1
24 de maio 3 de maio de 2015 de 2014
0† 0
ARKANSAS
25
401
CALIFÓRNIA
0†
CONNECTICUT
0
67 2
†
IDAHO
ILLINOIS
1
0† DAKOTA DO NORTE
67 11
0
12
9
DAKOTA DO SUL
12 1
IOWA‡
INDIANA
CAROLINA DO SUL
CAROLINA DO NORTE
1,042
604
679 0
HAVA͇
GEÓRGIA
4
COLORADO
CIDADE DE NOVA YORK
406 1
ARIZONA
345 0†
DELAWARE
FLÓRIDA
180
1
2,045
73
364
17
9
68 1
0† 6
KANSAS
KENTUCKY
0† LOUISIANA
1,277 778
839 27
1
MAINE
1
29
0
MARYLAND
11 1
MASSACHUSETTS
37
0
2
MICHIGAN
1 MINNESOTA
0
153
MISSISSIPPI
383
61 0† 0
0 MISSOURI
116 2
0†
MONTANA
NEBRASKA
1,405
0
25 0† 6
NEVADA
0
6
NEW HAMPSHIRE
36 2 0
7 1
2
162
NOVA JERSEY
0
289
393
7
2
NOVO MÉXICO
0 4 6
NOVA YORK
59 0†
3 0
0
1
154 0†
OHIO
359 1
19
20 0† 0 OKLAHOMA
574 0† 4
196
0
15 3
WASHINGTON D.C.
1
39
RHODE ISLAND
0
21
TENNESSEE
7
WISCONSIN
7
23
TEXAS
0† 2
2
0
66 Scientific American Brasil | Setembro 2015
VERMONT
220
0†
PENSILVÂNIA
43 3
VIRGÍNIA OCIDENTAL
VIRGÍNIA
0
4
203 18
WASHINGTON
33
625 0†
WYOMING
336
UTAH
4
OREGON
2,652 PORTO RICO
45
30 2
2
1
31 1
0
4 0† 2
204 6
0
12 2
2
122 5
FONTE: CENTROS PARA CONTROLE E PREVENÇÃO DE DOENÇAS
45 272
Eidc[heiZe]h|ÒYedeh[fh[i[djWcWjejWb_ZWZ[ZeiYWieiZ[i^_][bei[idei;K7fehgk[d[cjeZeiiedej_# ÒYWZei$EijejW_ii[cWdW_iieYWbYkbWZeiikXjhW_dZe#i[eWYkckbWZedWi[cWdWWdj[h_ehZeZWi[cWdWi[]k_dj[" Yed\ehc[eH[bWjh_eI[cWdWbZ[CehX_ZWZ[[CehjWb_ZWZ[Zei9:9$;ii[ijejW_ifeZ[cckZWhYecXWi[[c delWi_d\ehcW[i$ ;ijWZeii[cYWieih[i_ij[dj[i}Y_fheÓenWY_dWekgk[de\Wp[chej_d[_hWc[dj[j[ij[iZ[h[i_ij
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