editorial
VERDADE ETERNA com nossos irmãos. Naturalmente, é essencial que a doutrina seja claramente apresentada na sua totalidade. Nada é tão estranho ao espírito do ecumenismo como um falso irenismo, no qual a pureza da doutrina católica sofre perdas e seu significado genuíno gen uíno e certo se nubla”.
Enquanto nos aproximamos do notável marco histórico de 31 de outubro de 2017 e dos 500 anos da Reforma Protestante do século 16, voltamos a refletir acerca da Providência Divina e de como, ao longo dos tempos, ela agiu de modo a preservar sua Igreja na verdade.
Católicos e protestantes juntos? Há evangélicos Por esse motivo, só temos a lamentar as que creem nisso, mas as barreiras são maiores do que tentativas de releitura e desconstrução do evento, as de 1517. Por isso, a aproximação só ocorre onde o empreendidas pela teologia liberal católica, luterana (tu objeto da fé não importa e as diferenças doutrinárias quoque? ) e protestante em geral. A são menosprezadas. Em 2014, notícia “sensacional” “sensacional” que fez a alegria ao receber um grupo da Igreja ... católicos e protestantes do pluralismo relativista foi que o Papa Evangélica Luterana na Alemanha, serão unha e carne se o Francisco abraçou a comemoração o Papa previu a comemoração único artigo de fé a ser dos 500 anos da Reforma Protestante. conjunta e declarou: “Em 2017, abraçado for a doutrina da Amplamente noticiado pelos meios os cristãos luteranos e católicos de comunicação, o ponta-pé ( não não Trindade... comemoram juntos o quinto resisti à metáfora) inicial foi dado em centenário da Reforma. Naquela 31 de outubro de 2016, na Suécia, ocasião, luteranos e católicos terão, em uma cerimônia conjunta da Igreja Católica e da pela primeira vez, a oportunidade de manter uma Federação Luterana Mundial. A rádio do Vaticano mesma comemoração ecumênica global, não sob informou que “Ao dar início a um ano de eventos para a forma de uma celebração triunfalista, mas sim de marcar o 500º aniversário da Reforma Protestante, [ele] confessar nossa fé comum no Deus Trino”. Isto é, também destacará os importantes desenvolvimentos católicos e protestantes serão unha e carne se o único ecumênicos ocorridos durante os últimos 50 anos de artigo de fé a ser abraçado abra çado for a doutrina da Trindade, o diálogo entre católicos e luteranos”. que é bem menos do que o histórico Credo Apostólico. Não se suponha, porém, estar a ICAR disposta a Nunca foram retiradas as maldições do Concílio voltar às Escrituras e abraçar, por exemplo, a doutrina da de Trento para os defensores de Sola Scriptura, Sola Justificação pela Fé Somente. Que não haverá qualquer Gratia, Sola Fides, Solus Christus e Soli Deo Gloria. As concessão, já estabelecia o Decreto do Concílio firmes declarações da Confissão de Fé de Westminster Vaticano II sobre o Ecumenismo, Unitatis Redintegratio: também permanecem, porque a Escritura não mudou. “A forma e o método pelo qual a fé católica é expressa A palavra do Senhor permanece para sempre. nunca devem tornar-se um obstáculo ao diálogo
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sumário Servos Ordenados Igreja Presbiteriana do Brasil Ano 10 – Nº 53 abril / maio / junho de 2017 ISSN 977-2316-5553-07
editorial Verda de e te rna
1
igreja
A igreja como agente do Reino de Deus
Uma publicação da
por alderi souza de matos EDITORA CULTURA CRISTÃ Rua Miguel Teles Júnior, 394 – C ambuci 01540-040 – São Paulo – SP – Brasil Fone (11) 3207-7099 Fax (11) 3209-1255 www.editoraculturacrista.com.br
[email protected] Superintendente Haveraldo Ferreira Vargas Editor Cláudio Antônio Batista Marra Editor assistente Eduardo Assis Gonçalves Produtora Mariana de Paula dos Anjos Colaboraram nesta edição Tradução Suzana Klassen Revisão Cínthia Vasconcelos Capa & Editoração
3
diaconia
Qualificações bíblicas para os diáconos po r a rc h i b a l d a l e x a nd e r al l i s on
7
a igreja no mundo Como viveremos agora? po r a l b er t m oh l er
11
oração aos moços Um ministério bem-sucedido por fi lipe font es
14
500 anos da reforma A mensagem da Reforma para os dias de hoje po r so l a no p o rt e l a
18
Magno Paganelli Conselho de Educação Cristã e Publicações
Clodoaldo Waldemar Furlan (Presidente) Domingos da Silva Dias (Vice-president (Vice-presidente) e) Alexandre H. M. de Almeida (Secretário) André Luiz Ramos, Anízio Alves Borges, José Romeu da Silva, Mauro Fernando Meister
evangelização Oportunidade e oposição po r cl á ud i o m ar ra
25
a igreja no mundo Vivendo “já” com vistas ao “ainda não” p o r h e b e r j r.
Conselho Editorial
Antônio Coine, Cláudio Marra (Presidente), Heber Carlos de Campos Jr., Marcos André Marques, Mauro Fernando Meister, Misael Batista do Nascimento, Tarcízio José de Freitas Carvalho, Ulisses Horta Simões
29
identidade presbiteriana Oportunidade e oposição por cláudio marra
32
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igreja | alderi souza de matos
A IGREJA COMO AGENTE DO REINO DE DEUS Devemos reetir bíblica e contextualmente sobre o que é a igreja de Cristo e como ela deve ser agente do Reino de Deus no mundo. Precisamos também analisar criticamente nossos modelos de eclesiologia sobre como o povo de Deus se relaciona com o Senhor, como se organiza organicamente e como se relaciona com o mundo em missão; bem como pensar sobre como a igreja e o Reino devem ser vividos nestes dias entre a primeira e a segunda vinda de Jesus.
1. Aspectos bíblicos e históricos 1.1 Jesus e a mensagem do reino
Nos evangelhos sinóticos, a mensagem pregada por Jesus é identificada como “o evangelho [boas novas] do reino” (Mt 4.23; 9.35; 24.14; Mc 1.14-15; Lc 4.43; 8.1; 16.16). Esse reino é o “reino de Deus” ou sua expressão sinônima “reino dos céus”, que ocorre somente em Mateus (3.2; 4.17, etc.; ver, porém, 12.28; 19.24; 21.31,43). O Evangelho de João usa poucas vezes a expressão “reino de Deus” (só em 3.3,5), possivelmente substituindo-a por conceitos equivalentes, como
“vida eterna”. Ao todo, a expressão ocorre mais de 80 vezes nos evangelhos. 1.2 O reino de Deus no Antigo Testamento
O conceito do reinado ou senhorio de Deus era familiar aos ouvintes de Jesus, estando presente no Antigo Testamento. Desde o início, Deus deixou claro que ele era o verdadeiro rei de Israel. Quando o povo pediu um rei humano, o Senhor manifestou o seu desagrado (1Sm 8.5-7). A ideia de Deus como rei está presente em todas as Escrituras Hebraicas (Dt 33.5; Jz 8.23; Is 43.15; 52.7), em especial nos Salmos (10.16; 3
22.28; 24.7-10; 47.2,7-8; 93.1; 97.1; 99.1,4; 103.19; 145.11-13). Algumas passagens identificam o reino de Deus com o reino de Davi (1Cr 17.14; 28.5; 29.11; Jr 23.5; 33.17). Esse reino será eterno e só alcançará a sua consumação em um tempo futuro, assumindo feições escatológicas (Dn 2.44).
igreja 1.3 Diferentes entendimentos
Nos dias de Jesus, os judeus piedosos esperam a vinda do reino (Mc 15.43; Lc 23.51). Após séculos de dominação estrangeira, havia a tendência de se entender o reino politicamente – a restauração do antigo reino de Israel. A vinda do reino seria a repentina intervenção de Deus na vida do seu povo, libertando-o de seus opressores e restaurando a sua liberdade, independência e prosperidade como nos dias de Davi. Até mesmo os discípulos de Jesus tinham essa expectativa (Mt 20.21; Mc 11.10; Lc 19.11; At 1.6). 1.4 O aspecto cronológico
Nos evangelhos, o reino num certo sentido já estava presente (Mt 12.28; Lc 17.21); todavia, a ênfase principal está na iminência da sua chegada (Mt 3.2; 4.17; 10.7; Mc 1.15; 9.1; Lc 9.27; 10.9,11; 19.11; 21.31). Muitas passagens falam do reino como uma realidade futura, escatológica (Mt 8.11s; 13.43; 26.29; Mc 14.25; Lc 13.28s; 14.15; 22.16,18; 23.42; 1Co 15.50; 1Ts 2.12; 2 Tm 4.1,18; Tg 2.5; 2Pe 1.11; Ap 11.15; 12.10). 1.5 A proclamação do reino
Além de anunciar o reino (Lc 9.11; At 1.3) e revelar os seus mistérios (Mt 13.11; Mc 4.11), Jesus incumbiu os seus discípulos de fazerem o mesmo (Mt 10.7; 24.14; Lc 9.2,11,60); a igreja primitiva fez isso (At 8.12; 19.8; 20.25; 28.23,31; Cl 4.11). 1.6 As características do reino
O Novo Testamento aponta as características do reino. É uma dádiva do Pai: Lc 12.32; equivale à vida eterna: Mc 9.47; é uma realidade interior: Lc 17.20s; é algo novo: Mt 11.11s; Lc 7.28; 16.16; agora inclui trigo e joio: Mt 13.24,47; cresce silenciosamente: Mt 13.31,33,38,41; Mc 4.26,30; representa graça e juízo: Mt 18.23; 20.1; os filhos do reino podem perdê-lo: Mt 21.31,43;
22.2; Lc 13.28s; alguns não o herdarão: 1Co 6.9s; 15.50; Gl 5.21; Ef 5.5; não consiste em palavra, mas em poder: 1Co 4.20. Cristo deu a Pedro e aos demais apóstolos as chaves do reino: Mt 16.19; 18.18. Há também o reino de Cristo: Mt 16.28; Lc 22.29s; Jo 18.36; 1Co 15.24; Cl 1.13; 2Tm 4.1. 1.7 Os sinais da presença do reino
Entre os sinais da presença do reino estão: humildade: Mt 5.3; justiça: Mt 5.10; 6.33; justiça, paz e alegria: Rm 14.17; amor a Deus e ao próximo: Mc 12.34; obediência: Mt 5.19s; fazer a vontade de Deus: Mt 6.10; 7.21; 21.31,43; dependência de Deus e confiança nele (ricos e pobres): Mt 19.23s; Mc 10.23-25; Lc 6.20; solidariedade com os sofredores: Mt 25.34; fidelidade: Lc 19.11ss; vigilância: Mt 25.1; requer novo nascimento: Jo 3.3,5. 1.8 Nossa atitude
Também é enfatizada a nossa atitude para com o reino: buscá-lo acima de tudo: Mt 6.33; recebê-lo como uma criança: Mt 18.1-4; 19.14; renunciar a outras coisas por ele: Mt 19.12,29; Mc 9.47; 10.29; Lc 18.29; sofrer por ele: At 14.22; 2Ts 1.5; apossar-nos dele como de um tesouro: Mt 13.44-46; não olhar para trás: Lc 9.62. 2. Interpretações
O “reino de Deus” é um dos conceitos mais frutíferos e ao mesmo tempo controvertidos da teologia cristã. Nos dias de Jesus, entre os judeus, a expressão era usada em pelo menos três sentidos diferentes: (a) o reino eterno e invisível de Deus, que é independente da resposta ou do conhecimento humano (Sl 145.13); (b) a realização do reino de Deus em grupos ou indivíduos que aceitam a sua soberania (por exemplo, se diz que um prosélito “tomou sobre si o jugo do reino de Deus”); (c) o reino escatológico no fim da história, quando todos reconhecerão a soberania de Deus. 4
Os evangelhos deixam claro que há uma relação indissolúvel entre Jesus e o reino. Ele não somente anuncia o reino, mas a sua pessoa e obra são elementos essenciais do reino. Em Jesus, o reino de Deus se tornou uma realidade muito mais plena no mundo do que já havia sido até então. Jesus exemplificou de maneira suprema a submissão à vontade de Deus que é a característica mais importante do reino de Deus. Assim sendo, em sua pregação os apóstolos associavam o reino de Deus com a mensagem acerca de Jesus (At 8.12; 28.23,31; Cl 1.13). 3. O reino de Deus na história
Assim como nos dias de Jesus, ao longo da história da igreja o “reino de Deus” tem sido objeto de diferentes entendimentos. Orígenes afirmou que o próprio Jesus era o reino; alguns entendem que o reino se refere a um relacionamento apropriado com Deus; outros o têm identificado com a igreja visível ou com uma ordem social transformada; ainda outros têm insistido que Jesus se referia a uma intervenção apocalíptica da parte de Deus. Esse conceito tem sido utilizado tanto para sustentar o status quo quanto para inspirar ideais revolucionários e contestadores. Desde a época de Agostinho tem havido a tendência de institucionalizar o conceito do reino identificando-o com a igreja. Embora o reino já esteja presente no mundo, ele ficaria circunscrito à igreja. Outra posição vê o reino como futuro, ainda que iminente. É o caso de movimentos apocalípticos como o montanismo do 2º século e muitos outros através dos séculos. Nos Estados Unidos do final do século 19 e início do século 20 (1880– 1930), o chamado “evangelho social” deu grande ênfase ao conceito do “reino de Deus”. Seu principal expoente foi Walter Rauschenbusch (18611918), um pastor batista de origem alemã. Procurando responder aos
igreja problemas sociais das grandes cidades norte-americanas num contexto de crescente industrialização, urbanização e imigração, o movimento apregoou a “implantação do reino de Deus na terra” e a necessidade de uma “sociedade redimida”. O reino de Deus passou a ser visto exclusivamente em termos de transformação da sociedade e justiça social. Um livro foi particularmente influente no sentido de popularizar as idéias do evangelho social: Em seus Passos que Faria Jes us (1897), de Charles Sheldon. Em seu livro O Reino de Deus na América (1937), H. Richard Niebuhr demonstrou que o tema do reino de Deus dominou o pensamento teológico americano desde o início. Esse conceito teve diferentes sentidos ao longo do tempo, desde a soberania de Deus na época dos puritanos e de Jonathan Edwards, passando pelo reino de Cristo na época dos avivamentos do século 19, até o reino terrenal de Deus no liberalismo do início do século 20. Para os liberais, o reino de Deus “não era um reino celestial de outra vida muito distante e futura, e sim o reino de amor e justiça nesta terra, tão completamente e tão rapidamente quanto possível”. A I Guerra Mundial (1914-1918), a quebra da bolsa de Nova York (1929) e outros eventos negativos destruíram as esperanças otimistas dos liberais. 4. Significado para hoje
No seu sentido amplo, o reino é um símbolo da vontade de Deus que pode ser realizada em situações particulares através da obediência humilde, mas que nunca é plenamente concretizada dentro das fronteiras da História por causa das limitações humanas. O reino fala de uma tensão: como Cristo já veio ao mundo, morreu e ressuscitou, há uma dimensão presente do reino. Como Cristo ainda não voltou para pôr fim à realidade presente e instaurar os novos céus e terra, o reino é também futuro.
Assim sendo, o reino está presente em parte, mas a sua manifestação final permanece uma esperança para o futuro. O cristão sabe que o reino veio num novo sentido em Cristo, que ele pode vir na sua própria vida, mas que ainda não veio plenamente. Desse modo, ele vive no mundo presente como um cidadão obediente desse reino, ao mesmo tempo em que ora com esperança confiante: “Venha o teu reino”. Porque o reino é de Deus, ele não virá como resultado do esforço humano. Não é sustentável a visão otimista de que o desenrolar da História está trazendo os estágios finais do reino. Este não pode ser entendido como um conceito evolutivo ou primariamente como um conceito moral e ético. Por outro lado, os cristãos sabem que devem orar e trabalhar para que o reino se faça cada vez mais presente; eles sabem que, pelo menos em algumas áreas ou situações, a realidade do reino pode se tornar mais palpável neste mundo caído. 5. O reino e a igreja 5.1 O que é a igreja
A igreja é o conjunto daqueles que crêem em Cristo e que se associam uns aos outros por causa da sua fé comum. À luz das Escrituras, a igreja é uma realidade essencialmente corporativa, comunitária. Ela é descrita como o corpo de Cristo, a família da fé, o povo de Deus, um rebanho, um edifício e outras figuras que acentuam o seu caráter de comunidade e solidariedade. Os propósitos da igreja são basicamente cinco: adoração, comunhão (koinonía), edificação, proclamação (kérygma), serviço (diakonía). Esses propósitos apontam para três dimensões essenciais da vida da igreja: seu relacionamento com Deus, seus relacionamentos internos e seu relacionamento com o mundo. A missão da igreja se relaciona principalmente com os dois últimos aspectos: proclamação e serviço. 5
Porque o reino é de Deus, ele não virá como resultado do esforço humano. Não é sustentável a visão otimista de que o desenrolar da História está trazendo os estágios fnais do reino.
5.2 Igreja e reino
O Novo Testamento não identifica a igreja com o reino de Deus. Obviamente há uma relação entre ambos, mas não uma coincidência plena. A igreja tem limites claros, assume formas institucionais, tem líderes humanos. Nada disso se aplica ao reino de Deus, que é mais intangível, impalpável. Este é uma realidade que transcende os limites da igreja e que pode não estar presente em todos os aspectos da vida da igreja. É como dois círculos que se sobrepõem em parte e que se afastam em parte. Historicamente, a igreja por vezes tem se harmonizado com o reino, outras vezes tem estado em contradição com ele. Todavia, dada a importância da igreja no propósito de Deus, ela é chamada para expressar a realidade do reino, para ser o principal agente do reino de Deus no mundo. Para que isso aconteça, a igreja e seus membros precisam manifestar os sinais do reino, ser instrumentos do reino na vida das pessoas, da sociedade, do mundo. Sempre que a igreja busca em primeiro lugar a glória de Deus, fazer a vontade de Deus, viver uma vida de humildade, amor, abnegação, altruísmo, solidariedade, etc., ela se torna agente e instrumento do reino. O reino pode se manifestar, e com frequência se manifesta, fora dos limites institucionais da igreja. Quando
igreja isso ocorre, a igreja deve se regozijar com essas manifestações, apoiá-las e incentivá-las. Todavia, existem aspectos do reino que só a igreja pode evidenciar, principalmente a proclamação do evangelho, das boas novas do amor de Deus revelado em Cristo. 5.3 A igreja sob o senhorio de Deus
A oração do Senhor é um bom ponto de partida para se refletir sobre o reino de Deus. Nessa oração, Jesus coloca Deus em primeiro lugar, como o centro dos nossos interesses e afeições, e relaciona isso com o reino. “Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.910). O reino de Deus torna-se presente quando os crentes se unem para invocar a Deus como Pai, quando reconhecem a sua soberania sobre suas vidas, quando o reverenciam e se submetem a ele, quando procuram fazer a sua vontade na terra como ela é feita no céu. Para que a igreja seja uma verdadeira agente do reino, primeiramente ela precisa refletir sobre a sua relação com Deus, fazer disso a sua prioridade máxima, identificar-se com os seus propósitos, associar-se a ele em sua obra de restauração da criação. A igreja precisa ser teocêntrica, a começar do seu culto. Quando o culto e a vida da igreja são voltados em primeiro lugar para a satisfação de necessidades humanas, e não para a glória e o louvor de Deus, a igreja deixa de ser teocêntrica, e em assim fazendo, não pode ser agente do reino de Deus no mundo. 5.4 A igreja – lugar de reconciliação
Ao mesmo tempo em que cultiva a sua vida com Deus, a igreja deve ser um lugar de relacionamentos interpessoais transformados. Uma igreja teocêntrica será também um lugar de companheirismo, solidariedade
e edificação mútua. Essa é uma das grandes ênfases do Novo Testamento. Assim como Deus nos amou e nos perdoou em Cristo, também devemos amar, aceitar e ministrar uns aos outros. Daí o grande número de exortações em que aparecem as palavras “mutuamente” ou “uns aos outros”. Como corpo de Cristo, a igreja deve reconhecer, respeitar e até celebrar certas diferenças; ao mesmo tempo, deve transcender essas diferenças, cultivando uma vida de união e fraternidade (Rm 10.12; 1Co 12.12-27; Gl 3.28). Isso fica especialmente claro no que diz respeito aos dons (capacitações para testemunho e serviço), que são sempre discutidos em conexão com o corpo de Cristo (Rm 12.3-8; 1Co 12.112; Ef 4.11-12). Os dons espirituais só têm razão de ser quando são exercidos, não para proveito e exaltação pessoal, mas para a edificação dos irmãos, para a realização do ministério da igreja. Um dos argumentos que Paulo usa em favor da tolerância na igreja é o fato de que não se deve fazer perecer “o irmão por quem Cristo morreu” (ver Rm 14.15; 1Co 8.11). 5.5 Igreja, reino e sociedade
Em ordem de prioridade, a relação da igreja com o mundo está em terceiro lugar, o que não significa que seja algo opcional, secundário. Assim como aconteceu com Israel, a igreja foi formada para realizar uma missão. Se ela ignorar essa missão, nega a sua razão de ser e está sujeita ao juízo de Deus, como aconteceu com Israel. A missão primordial da igreja no que diz respeito ao mundo é a proclamação do “evangelho do reino”, assim como fizeram Jesus e os seus discípulos. Corretamente entendido, esse evangelho inclui muitas coisas importantes. Em primeiro lugar, esse evangelho é um convite a indivíduos, famílias e comunidades para se reconciliarem com Deus mediante o arrependimento e a fé em Cristo. Todavia, o evangelho são as boas novas de Deus para todos 6
os aspectos da vida, pessoal e coletiva. Assim sendo, a legítima proclamação do evangelho não vai se limitar ao aspecto religioso e à dimensão individual (experiência de conversão pessoal), mas vai mostrar o senhorio de Cristo sobre todos os aspectos da existência. Além disso, essa proclamação não ficará restrita ao aspecto verbal, mas incluirá ações concretas que expressem a amor de Deus pelas pessoas (Tg 2.1417; 1Jo 3.16-18). Aí podem ser incluídas muitas iniciativas, que vão desde o socorro a necessidades imediatas até a luta por mudanças estruturais que irão produzir maior justiça na sociedade. Exemplos: auxílio financeiro a pessoas e instituições, trabalho voluntário, mobilização para a criação de leis justas, luta pela ética na vida pública, participação em projetos comuns com outras igrejas e instituições, etc. 5.6 Quando a igreja é um obstáculo
A igreja se torna um entrave para os interesses do reino de Deus em várias situações: quando está mais preocupada com a sua própria sobrevivência, prestígio e poder; quando não consegue abrir mão de suas peculiaridades a fim de poder dialogar com outras igrejas e grupos; quando não procura “seguir a verdade em amor” (Ef 4.15); quando se retrai do mundo com medo de perder a sua identidade ou quando se identifica com o mundo com medo do escândalo da cruz. Conclusão
Vivendo entre dois mundos, o cristão experimenta uma série de paradoxos: o reino já veio, mas ainda não veio em sua plenitude; vivendo no mundo, ele experimenta as realidades do reino de Deus e do império das trevas; na própria igreja, existe trigo e joio, pecado e graça. Redimido por Cristo e conduzido pelo seu Espírito, ele ora: “Venha o teu reino”, e se dispõe: “Eis-me aqui, envia-me a mim”. http://www.mackenzie.br/7135.html
diaconia | archibald alexander allison
QUALIFICAÇÕES BÍBLICAS PARA OS DIÁCONOS Um exercício de estudo bíblico
I. Exegese de 1Timóteo 3.8 – “respeitáveis” Tradução: “(...) quanto aos diáconos, é necessário que sejam respeitáveis...” Estrutura: As qualificações para o cargo de diácono aparecem logo depois das qualificações para o cargo de bispo (presbítero). Em termos gramaticais, os versículos 8-9 dependem do versículo 2. “Respeitáveis” é a primeira de cinco qualificações na primeira frase que compreende os versículos 8-9. Comentário: Várias considerações nos levam a concluir que, no versículo 8, o apóstolo Paulo apresenta as qualificações para o cargo de diácono na igreja. Em primeiro lugar, o versículo 8 vem logo depois das qualificações que Paulo apresenta para o cargo de bispo. Em segundo lugar, o apóstolo liga o versículo 8 ao versículo 2 com o uso de “da mesma forma” ou “semelhantemente”. Em terceiro lugar, o texto grego do versículo 8 não contém um verbo principal. Os versículos 8-9 compartilham do mesmo verbo principal do versículo 2 (“seja”). Por esse motivo, algumas traduções colocam o “sejam” do versículo 8 em itálico. O termo “semelhantemente” indica que os versículos 8-13 são, de algum modo, análogos aos versículos 2-7. Em Filipenses 1.1, Paulo se dirige aos santos na igreja de Filipo, incluindo os bispos e diáconos. Tanto o cargo de bispo quanto
o de diácono são funções eclesiásticas De acordo com a primeira específicas. Os versículos 2-7 são qualificação, o diácono deve ser semelhantes no sentido de ambos “respeitável”, nobre ou repleto de apresentarem as qualificações para um dignidade. Não deve fazer piadas de cargo eclesiástico. As qualificações tudo, mas sim, mostrar-se sério quanto para esses dois cargos também são às coisas importantes. Deve ser uma semelhantes, porém não idênticas. pessoa decente. A fim de ser digno de Em Atos 6, os apóstolos julgaram ser respeito e honra, deve ser irrepreensível. necessário escolher homens para ajudá- Se um diácono pode ser justamente los em seu trabalho. Com imposição de acusado e condenado por um pecado, mãos, ordenaram esses homens para um não é digno de respeito e honra e não cargo específico na igreja. Em 1Timóteo será tido em alta consideração pelos 3.8-13, o Senhor nos apresenta as membros da igreja. Essa pessoa não qualificações para aqueles que servem cumpre, portanto, o primeiro requisito. à igreja como diáconos. O povo de Deus deve ter não apenas O verbo “sejam”, implícito no texto respeito e consideração, mas também grego do versículo 8, significa que essas reverência com aqueles que exercem qualificações para o diaconato são a função de diáconos. Devem acatar essenciais, e não apenas diretrizes úteis. o diácono por seu caráter admirável São obrigatórias, requisitos que Deus e devem ter amor e apreço por ele. estipulou para o cargo de diácono em Ser respeitável é ser digno dessa sua igreja. Professamos que Cristo é o consideração e honra. rei da igreja, o que significa que devemos Conclusões seguir as regras que ele determina para nós em sua Palavra. Deus incumbiu (1) Todo diácono deve ser um homem sua igreja de manter todos os homens de caráter justo e íntegro diante de Deus indignos afastados do diaconato. Caso e dos homens, de modo que se mostre um homem que já exerce essa função digno da reverência, respeito, honra, se mostre inadequado para ela, cabe admiração, amor e apreço do povo de à igreja removê-lo desse cargo. Ao Deus. Essa era uma das qualificações remover os homens não qualificados dos sete homens escolhidos para ajudar de seus cargos, a igreja mantém a os apóstolos em Atos 6.3: “homens de disciplina, defende a honra de Cristo e boa reputação”. garante sua própria edificação em paz, (2) Qualquer homem cujo pureza e união. comportamento, costumes, pensamentos 7
diaconia ou atitudes não são honrados, apropriados e dignos de respeito e admiração, não preenche esse requisito e não deve ocupar o cargo de diácono. (3) Um homem na função de diácono com caráter e reputação maculados por um comportamento pecaminoso ou inapropriado deve ser removido de seu cargo. (4) A congregação deve respeitar e honrar os diáconos.
Conclusões (1) Todo diácono deve sempre falar a verdade e ser um homem de palavra. Essa injunção equivale à ordem de Deus para que todos os cristãos digam a verdade e sejam sinceros em suas palavras. (2) A duplicidade, a hipocrisia ou a fala deliberadamente enganosa desqualificam o indivíduo para o diaconato. (3) É especialmente importante que as palavras de um diácono sejam confiáveis, verdadeiras e livres de qualquer dissimulação, uma vez que ele lida com o dinheiro e as propriedades da igreja. É possível que um diácono que não preenche esse requisito acabe roubando da igreja. (4) Um diácono não deve se dirigir com bondade aos pobres e necessitados e, depois, falar mal deles para outros.
II. Exegese de 1Timóteo 3.8: “de uma só palavra” Tradução: “(...) quanto aos diáconos, é necessário que sejam (...) de uma só palavra...” Estrutura: Essa é a segunda das cinco qualificações para o cargo de diácono na primeira frase (v. 8-9). Comentário: Um diácono não deve ter duas palavras. Não deve dizer uma coisa quando quer dizer outra. Não deve dizer uma coisa para uma pessoa e o contrário III. Exegese de 1Timóteo 3.8: “não para outra, falando apenas o que cada inclinados a muito vinho” um deseja ouvir. Não deve ser mentiroso. Tradução: “(...) quanto aos diáconos, é Não deve usar palavras enganosas. Deve necessário que sejam (...) não inclinados dizer a verdade com clareza, fidelidade a muito vinho... ” e coerência. Deve ser um homem de Estrutura: Essa é a terceira das cinco palavra e falar com sinceridade. qualificações para o cargo de diácono Em Mateus 5.37, Jesus ordena na primeira frase que compreende os que todos os cristãos tenham uma só versículos 8-9. Também é o primeiro de palavra: “Seja (...) a tua palavra: Sim, dois requisitos negativos no versículo 8. sim; não, não. O que disto passar vem Comentário: O verbo grego significa do maligno”. Guiado pelo Espírito, “se ocupar com” algo ou “se dedicar a” Paulo destaca esse atributo como uma algo. Paulo usa esse mesmo verbo em qualidade essencial para um diácono. 1Timóteo 4.13, quando diz a Timóteo: Em seu comentário sobre esse ver- “Até a minha chegada, aplica-te à leitura, sículo, João Calvino escreve: “devemos à exortação, ao ensino”. Paulo deseja entender por ‘diáconos’ aqueles que são que Timóteo se dedique ou se ocupe da mencionados em Atos 6.3, aqueles que leitura, exortação e ensino. são encarregados de cuidar dos pobres”. Em 1Timóteo 3.8, Paulo diz a Timóteo E prossegue: “As quatro qualidades que o diácono não deve se ocupar de principais que Paulo exige são bastante beber muito vinho, beber em excesso. conhecidas, mas é preciso observar com Provérbios 23.30 inclui tanto aquele que cuidado que ele os admoesta, ainda, a bebe em excesso de vez em quando, não terem duas palavras, pois se trata mas também aquele que se excede de uma falta difícil de evitar nesse tipo regularmente. O vinho ocupa um lugar de trabalho e que, no entanto, mais do inapropriado na vida desse indivíduo que qualquer outra, não deve, de modo e adquire uma importância indevida. algum, estar presente”. Nesse sentido, tal homem é escravo 8
da bebida, pois ela toma uma parte exagerada de seu tempo, de seus pensamentos e desejos e de sua vida como um todo. Esse indivíduo não é qualificado para ser diácono na igreja. As Escrituras dizem que um homem que se demora em beber vinho e que busca bebida misturada sofre angústias, tristezas, contendas, queixas, ferimentos sem causa e vermelhidão dos olhos. Quem ansiar por vinho e for cativado por ele verá coisas estranhas e dirá coisas perversas. Será como aquele que, ao perder os sentidos, se deita no meio do mar ou no alto do mastro de um navio e que descansa apenas para poder acordar e voltar a beber (Pv 23.29-35). Paulo não diz que um diácono não deve beber vinho. Aqueles que tomam esse versículo como base para exigir que os diáconos se abstenham completamente do vinho, deturpam essa qualificação, distorcendo o seu verdadeiro significado. Outras passagens das Escrituras nos dizem que, assim como Deus faz crescer o capim para o gado e as plantas para o homem se alimentar, também dá o vinho. É o Senhor quem oferece ao homem “o vinho que alegra o coração do homem, o azeite que lhe dá brilho ao rosto, e o alimento, que sustém as forças” (Sl 104.14-15). Jesus transformou água em vinho, bebida normal em seu tempo, e mais tarde o usou como um dos elementos da Ceia. Devemos continuar a usá-lo até a volta de Cristo. Mais adiante, Paulo diz a Timóteo: “Não continues a beber somente água; usa um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades” (5.23). As Escrituras expressam a bênção da aliança de Deus da seguinte maneira: “Honra ao SENHOR com os teus bens e com as primícias de toda a tua renda; e se encherão fartamente os teus celeiros, e transbordarão de vinho os teus lagares” (Pv 3.9-10). O vinho é uma das boas dádivas de Deus e deve ser usado para a sua glória. O diácono não se deve deixar dominar pelo vinho, mas sim, ser
diaconia capaz de dominar-se para a glória de Deus. Apesar do texto mencionar especificamente o vinho, esse princípio se aplica a qualquer alimento ou bebida que exerce domínio sobre um homem, especialmente aquilo que prejudic a o discernimento e a capacidade de controlar suas palavras e ações . Por
isso Deus ordenou a Arão e seus filhos: “Vinho ou bebida forte tu e teus filhos não bebereis quando entrardes na tenda da congregação, para que não morrais” (Lv 10.8-9). As Escrituras justificam essa ordem: “para fazerdes [Arão e seus filhos] diferença entre o santo e o profano, o impuro e o limpo e para ensinardes aos filhos de Israel todos os estatutos que o SENHOR lhes tem falado por intermédio de Moisés” (Lv 10.10-11).
Conclusões (1) Um diácono não deve ser dado ao vinho, nem ser dominado por ele ou qualquer outro alimento ou bebida que prejudique seu discernimento. O vício da bebida desqualifica um indivíduo para o diaconato. (2) Ao contrário da embriaguez, a plenitude do Espírito (Ef 5.18). Uma das qualificações dos sete homens escolhidos para ajudar os apóstolos em Atos 6.3 era que eram “cheios do Espírito”. IV. Exegese de 1Timóteo 3.8: “não ser gananciosos” Tradução: “(...) quanto aos diáconos, é necessário que sejam (...) não cobiçosos de sórdida ganância...” Estrutura: Essa é a quarta das cinco qualificações para o cargo de diácono na primeira frase (v. 8-9). Também é o último de dois requisitos negativos no versículo 8. Comentário: No grego, Paulo usa um adjetivo composto, constituído dos termos “vergonhoso” e “ganho”. Seu significado fica mais claro na tradução “cobiçosos de sórdida ganância”, que se refere a tudo aquilo que o homem obtém
por meios desonestos ou que é, em si, vergonhoso ou perverso. Pedro diz a mesma coisa quando exorta os presbíteros: “(...) pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangimento, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade” (1Pe 5.2). Com isso, ele afirma que a motivação de um indivíduo para servir como presbítero não deve ser o ganho desonesto. O mesmo se aplica aos diáconos, que também não devem buscar esse tipo de benefício. O diácono não deve procurar se exaltar acima do rebanho de Deus por meio do seu cargo nem granjear para si poder, controle ou autoridade sobre outros. Não deve se encher de orgulho em função da honra, respeito, prestígio ou lisonja que talvez receba. Sua motivação para o diaconato não deve ser algum proveito que poderá obter com seu cargo. Antes, deve ser motivado por um desejo ardente de servir a Jesus Cristo e ao povo de Deus. Um diácono deve ansiar por usar os dons e habilidades que Deus lhe deu para expandir o reino de Deus. A incumbência do diácono é servir a Deus ajudando o pastor e os presbíteros em seu trabalho e auxiliando os membros da congregação em suas necessidades. O diácono tem o dever de dar, e não tomar; de servir, e não buscar o ganho desonesto. Em vez de procurar o ganho sórdido, cabe-lhe ter sempre em mente que Cristo, apesar de ser rico, se fez pobre por nós para que, por meio de sua pobreza, pudéssemos nos tornar ricos (2Co 8.9). Um diácono deve servir a fim de que outros possam ser beneficiados. Deus nos dá o poder de obter riquezas (Dt 8.18). Certamente não é errado um diácono ser rico, uma vez que as riquezas podem ser uma benção concedida pelo Senhor na aliança (cf. Pv 3.9-10; Jó 42.12). Portanto, essa qualificação não proíbe o diácono de adquirir riquezas. Antes, o proíbe de cobiçar a riqueza de seu próximo e desejar ganhos obtidos de maneira indevida. O diácono deve 9
se lembrar das palavras de Paulo aos presbíteros de Éfeso: “Tenho-vos mostrado em tudo que, trabalhando assim, é mister socorrer os necessitados e recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber” (At 20.35). Essa qualificação deve ser aplicada de maneira ampla, pois diz respeito ao dinheiro e aos bens materiais. Um homem que só quer riquezas não deve ser diácono. “... os que querem ficar ricos caem em tentação, e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores” (1Tm 6.9-10). Também se aplica à obtenção indevida de coisas imateriais, como poder, honra e louvor. Ao defender a si mesma ou outros de críticas ou acusações, uma pessoa não deve visar seu próprio benefício. Um diácono não deve usar seu cargo na igreja para favorecer a si mesmo, mas sim, para servir o povo de Deus.
Conclusões (1) Ter ou obter dinheiro e riqueza pode ser bênção concedida pelo Senhor. Não é algo que o homem piedoso deve evitar, como a teologia católica e o asceticismo equivocadamente afirmam. (2) Essa qualificação proíbe o diácono de obter dinheiro ou bens materiais por motivos pecaminosos ou de maneira desonesta. Um homem não deve se tornar diácono visando o dinheiro ou qualquer outro benefício material. (3) Também se desqualifica para esse cargo o homem que visa, acima de tudo, obter poder, controle, autoridade, honra, prestígio, respeito ou lisonja, e não glorificar a Deus e servir a igreja para a sua edificação. (4) Um homem que se mostra inescrupuloso ao obter o que deseja também cobiça o ganho sórdido e,
diaconia portanto, não é qualificado para ser diácono.
V. Exegese de 1Timóteo 3.9 Tradução: (8) “(...) quanto a diáconos, é necessário que sejam (...) (9) conservando o mistério da fé com a consciência limpa”.
Estrutura: Essa é a última das cinco qualificações para o cargo de diácono na primeira frase (v. 8-9). Dois dos requisitos intermediários são apresentados de forma negativa, mas os dois primeiros e o último são declarados de forma afirmativa. Comentário: O apóstolo Paulo emprega o termo “mistério” várias vezes em suas cartas para se referir a uma verdade antes obscura e relativamente desconhecida, mas que Deus esclareceu para o seu povo através de uma revelação especial. Em Efésios 3.36, por exemplo, Paulo escreve: “(...) segundo uma revelação, me foi dado conhecer o mistério, conforme escrevi há pouco, resumidamente; pelo que, quando ledes, podeis compreender o meu discernimento do mistério de Cristo, o qual, em outras gerações, não foi dado a conhecer aos filhos dos homens, como, agora, foi revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito, a saber, que os gentios são coherdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho”. 1Coríntios 2.7-8,10 é outro exemplo apropriado: “... falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória... Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus”. No final de 1Timóteo 3, Paulo se refere ao mistério da piedade quando escreve no versículo 16: “(...) grande
é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória”. Nesse versículo, Paulo usa a expressão “mistério da piedade” para falar da fé cristã. O “mistério da fé” no versículo 9 se refere à mesma coisa. João Calvino comenta que, nesse versículo, Paulo “confere ao resumo do ensinamento cristão a nobre designação de ‘mistério da fé’ uma vez que, por meio do evangelho, Deus revela aos homens mortais uma sabedoria que deixa maravilhados os anjos do céu; portanto, não é de se admirar que possa ser grande demais para a capacidade humana”. Um diácono deve crer verdadeiramente em Deus e conhecer e aceitar como sendo autêntico tudo o que Deus revelou em sua Palavra. Deve viver em obediência à vontade revelada de Deus como única diretriz para nos orientar a fim de glorificarmos e gozarmos a Deus. Não deve ser um hipócrita que professa sua convicção, mas não dá frutos de arrependimento e fé verdadeira em Jesus Cristo. Ter uma consciência limpa significa ser purificado da culpa do pecado pelo sangue de Jesus Cristo e revestido de sua retidão imaculada pela fé. Ter uma consciência limpa é ser um cristão autêntico, remido por Cristo e renovado de modo a viver em obediência à santa lei de Deus. É a isso que Hebreus 10.19-22 se refere: “Tendo (...) irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos consagrou pelo véu, isto é, pela sua carne, e tendo grande sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos, com sincero coração, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado de má consciência e lavado o corpo com água pura”. Um diácono deve se apegar firmemente à verdade, à fé cristã autêntica. Deve crer nessa verdade e praticá-la, pois Deus, o Espírito Santo, o regenerou, lhe deu um novo coração, 10
arrependimento e fé e Cristo, purificou sua consciência das obras mortas para que possa servir ao Deus vivo. Um homem que vive em pecado ou não obedece a Deus em alguma área de sua vida não pode ter uma consciência limpa, pois esta requer uma vida de fé, de obediência e de sujeição à Palavra de Deus e ao domínio de Cristo o Rei em todas as coisas. Nas palavras de João Calvino: “É como se ele dissesse: ‘Crendo de coração na doutrina pura de nossa religião, com um temor sincero de Deus, são homens devidamente instruídos na fé, que não ignoram coisa alguma necessária para o conhecimento de um homem cristão” (Comentário sobre 1Timóteo 3.9).
Conclusões (1) Os diáconos devem ser cristãos autênticos, seguros da doutrina e obedientes e fiéis em seu viver. Devem ser comprometidos com a fé reformada – com tudo o que Deus nos revelou em sua Palavra. Devem se apegar, sem quaisquer reservas, à fé de nossos pais. (2) Apesar dos diáconos não exerceram uma função de ensino na igreja, Deus não deseja que qualquer pessoa inepta na fé cristã ocupe um cargo público em sua igreja. (3) É importante que o diácono se mostre apto na fé cristã (ver Hb 5.214), pois precisará, com frequência, aconselhar e procurar consolar outras pessoas. Tais incumbências fazem parte do trabalho do diácono ao ministrar para o povo de Deus. O conselho e consolo que oferece devem ser bíblicos e idôneos em seu caráter doutrinário e corretos e sábios em seu caráter prático. Tal idoneidade e integridade só podem vir do estudo fiel e do uso apropriado das Escrituras. Traduzido e adaptado de Ordained Servant , vol 6, n. 1 (janeiro, 1997), com
permissão. O Rev. Archibal Alexander Allison é pastor em Fort Collins, Colorado – EUA. Tradução de Susana Klassen.
a igreja no mundo | albert mohler
COMO VIVEREMOS AGORA? Enquanto a maioria dos evangélicos assistia à série de televisão
Gunsmoke e levava os lhos para o recém-inaugurado Walt Disney World, Francis Schaeffer observava uma nova cosmovisão tomar conta da cultura mais ampla. Uma abordagem da obra Como viveremos? , quarenta anos depois.
Em 1976, grandes expoentes do evangelicalismo pareciam ver o mundo por uma lente cada vez mais esperançosa. Os clamores culturais cheios de urgência da década de 1960 davam a impressão de estar se dissipando. Como sabemos hoje, na verdade não era o caso. Em 1973, a Suprema Corte deu o veredicto do caso Roe vs. Wade que legalizava o aborto a pedido da mãe em todo o país. Correntes intelectuais mais amplas preparavam o terreno para uma grande mudança cultural. Evangélicos usavam broches com a palavra “Encontrei” e construíam templos gigantescos enquanto a cultura fazia sua transição para um secularismo hostil que só se tornaria evidente uma geração depois. Alguns, porém, perceberam o que estava acontecendo. Em 1976 completei 17 anos e tinha diante de mim o último ano do ensino médio e a missão de entender o mundo ao redor. Naquela época, já enfrentava alguns dos dilemas e dúvidas que eclodiriam nas décadas seguintes. Felizmente, encontrei ajuda em várias fontes. O Rev. D. James Kennedy me apresentou os textos de Francis Schaeffer. Li com voracidade O Deus que se Revela [título em português, da Cultura Cristã) e Fuga da razão , bem
como O Deus que Intervém [título em português, da Cultura Cristã). A essa altura, ainda não conhecia Schaeffer pessoalmente, mas seus escritos foram como uma tábua de salvação teológica para mim. Embora não compreendesse plenamente tudo o que ele apresentava em seus livros, entendia os pontos principais, e eles me ajudaram a enxergar como a fé cristã interagia com as dúvidas do mundo ao meu redor e oferecia respostas para elas. Minhas perguntas eram de grandes proporções. Ao mesmo tempo, estava encantado com o universo que havia se descortinado para mim por meio de duas séries de televisão britânicas, diferentes de tudo o que havia sido apresentado nessa mídia até então. Não perdia um minuto dos belíssimos documentários de Lord Kenneth Clark Civilisation [Civilização] e dos documentários de Jacob Bronowski The Ascent of Man [A ascensão do homem]. O relato de Bronowski da história da humanidade e do surgimento da ciência moderna me fascinava, mas eu sabia que parte considerável de sua argumentação contradizia diretamente o cristianismo. A série Civilisation, em contrapartida, não causava essa preocupação. Acompanhava com atenção cada 11
Richard Albert Mohler, Jr., é pastor e teólogo e o nono presidente do Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, Kentucky. Foi descrito como um dos evangélicos mais inuentes dos Estados Unidos da América.
teologia reformada ocidentais” – deixava isso claro. Era praticamente o oposto da narrativa de Lord Clark. Schaeffer não discordava de toda a linha seguida na série Civilisation, mas discordava de muitos dos argumentos de Clark e, o que era mais importante, de sua interpretação humanista. O título da obra de Schaeffer me pareceu estranho. E ainda parece. Apesar da gramática estar correta, é uma forma incomum de fazer essa pergunta. Mas, até aí, Schaeffer era um sujeito incomum. Era conhecido por vestir-se como se tivesse descido das montanhas suíças em um século anterior. De certa forma, havia. Francis e sua esposa, Edith, haviam fundado e dirigido L’Abri, um ministério Francis August Schaeer (1912-1984) nas montanhas suíças que atraía jovens palavra e imagem enquanto Kenneth desiludidos e confusos do mundo inteiro, Clark narrava a história da civilização especialmente dos Estados Unidos, e lhes ocidental e ilustrava cada período apresentava o evangelho de Cristo e, com suas explicações magistrais de de modo estranho, porém maravilhoso, pinturas, arquitetura, literatura e música. respondia a suas perguntas por meio de Encantado, queria conhecer as catedrais, uma abordagem apologética racional e abadias, museus e bibliotecas que Lord convincente em favor do cristianismo Clark me mostrou na televisão pela bíblico. Enquanto outros líderes construíam seu império evangélico, os primeira vez. No entanto, ele também narrava uma Schaeffers acolhiam dezenas de jovens história cujo centro era ocupado pelos cabeludos e intelectualmente irrequietos, valores estéticos. Embora eu tivesse cativavam sua mente e interpretavam conhecimento da Reforma Protestante, a cultura ao redor. Li Como viveremos? não sabia o suficiente para entender nas primeiras semanas do último ano que Lord Clark relatava a história da do ensino médio. De acordo com meu civilização e da cultura ocidentais sob registro de leitura, que iniciei quando tinha 13 anos, esse era o octogésimo livro que uma ótica humanista. eu comprava com meu dinheiro. Naquela Em 1976, Francis Schaeffer lançou época, $12,95 era uma fortuna. Eu sabia seu livro Como viveremos? (com o que valia o investimento, mas o texto de subtítulo original “A ascensão e declínio Schaeffer me perturbou. Quem estava do pensamento e da cultura ocidentais”) certo a respeito da história da civilização e comprei um dos primeiros exemplares. ocidental, Francis Schaeffer ou Lord Fiz uma leitura intensiva, de capa a capa, Kenneth Clark? Da primeira vez que li o ciente de que Schaeffer também estava livro, fiquei na dúvida. Lord Clark destacava contando a história da civilização ocidental. a ascensão contínua da cultura ao longo Como viveremos? era um projeto que dos séculos, até o presente. Schaeffer incluía o livro e vários episódios em vídeo, considerava que a cultura moderna, em como a série Civilisation, de Lord Clark. sua maior parte, era contrária a Deus e Não se tratava de uma coincidência. estava se desintegrando, sem acesso à Com esse projeto, Schaeffer estava capacidade de analisar o mundo de forma refutando tanto Bronowski como Clark, transcendente nem de afirmar qualquer mas principalmente este último. Estava verdade absoluta. Via o humanismo contando uma história bem diferente. que assomava como um desafio direto O subtítulo do livro – “A ascensão e ao cristianismo. Percebi que Lord Clark o declínio do pensamento e da cultura acreditava na mesma realidade, mas via 12
o novo humanismo como uma forma de libertação das crenças religiosas antigas persistentes. Para minha vergonha, não havia me dado conta dos pressupostos por trás da história da civilização apresentada por Clark. O choque entre Clark e Schaeffer em minha primeira leitura de Como viveremos? abriu meus olhos para o grande choque entre cosmovisões que se tornou uma área de interesse de grande importância e urgência em minha vida. Por um lado, sentia-me constrangido por não haver reconhecido o que havia de errado na narrativa de Clark. Por outro, sabia que ansiava por entender a intersecção de pensamento, moralidade, arte, cultura, arquitetura, música, ciência, filosofia e cristianismo bíblico. Schaeffer não contou a história de maneira perfeita. Algumas de suas generalizações foram amplas de demais e faltaram detalhes cruciais. Críticos posteriores de Schaeffer o consideraram o arquiteto de um esforço impossível de reconstruir o cristianismo evangélico por meio do resgate da teologia reformada e da autoridade bíblica. Os mais liberais argumentaram que Schaeffer criou um beco sem saída do qual o evangelicalismo ainda não conseguiu escapar. Minha visão é bem diferente dessas opiniões. Gerações posteriores de estudiosos evangélicos alcançaram realizações bem maiores que Schaeffer no tocante à erudição e à influência sobre várias disciplinas nos meios acadêmicos. No entanto, Schaeffer propôs e respondeu às perguntas mais urgentes muitos anos antes da renascença da erudição evangélica moderna. Anos antes de expressões como “cosmovisão” e “asserções da verdade absoluta” se tornarem correntes no vocabulário evangélico, Schaeffer apresentou esses termos e enfatizou sua importância. Tinha consciência de que um grande conflito de cosmovisões estava em andamento e se preocupava seriamente com uma geração de jovens que, naquele momento, estava escolhendo entre o cristianismo e a revolução intelectual.
teologia reformada
Schaeffer também acreditava que nossa cosmovisão determina, inevitavelmente, nossas avaliações morais e nossa compreensão da realidade. Estava certo em desafiar Lord Kenneth Clark para um duelo intelectual, embora ele talvez nem soubesse da existência de Schaeffer. O objetivo de Schaeffer não era convencer Lord Clark de que ele estava errado a respeito da trajetória da civilização ocidental; seu desejo era que os cristãos entendessem o que estava em jogo. Schaeffer estava coberto de razão quando começou Como viveremos? com estas palavras: “Existe um fluxo na história e na cultura”. Sim, existe um
fluxo, e os cristãos precisam saber em que direção a cultura está fluindo. “As pessoas têm pressupostos e vivem de modo mais coerente com esses pressupostos do que até mesmo elas próprias se dão conta”, escreveu Schaeffer, referindo-se ao fato de que a maioria dos evangélicos não tinha consciência da tempestade de cosmovisões que se aproximava. Para ele, os pressupostos da cosmovisão humanista e secular que assomava se manifestaram primeiro na arte e nas esferas mais elevadas da cultura. Tinha razão. Enquanto a maioria dos evangélicos assistia à série de
televisão Gunsmoke e levava os filhos para o recém-inaugurado Walt Disney World , Schaeffer observava uma nova cosmovisão tomar conta da cultura mais ampla. Tinha razão, também, quando propôs que a maior ameaça à fidelidade ao evangelho era a promessa de paz e afluência pessoais. Sua crítica à igreja por um legado de racismo e de uso indevido da prosperidade econômica foi profética. Estava certo quando viu desdobramentos como Roe vs. Wade e entendeu que um movimento sísmico havia causado mudanças na cultura, e que viriam abalos ainda maiores. Ademais, ele fez a pergunta certa: como viveremos? Isto é, como devemos viver? Essa pergunta que tanto inquietou Schaeffer em 1976 também é inquietante para nós hoje. Estamos prestes a descobrir se os cristãos desta geração crerão e viverão o cristianismo bíblico autêntico. Como viveremos agora? Postado em http://www.albertmohler. com/2016/10/27/will-live-now-francisschaeffers-live-40-years/. Acesso 27.10.2016. Traduzido por Susana Klassen.
LIVROS DE FRANCIS SCHAEFFER PUBLICADOS PELA CULTURA CRISTÃ Como viveremos. Uma análise de momentos
Igreja no século 21, A. Os livros de Francis
históricos que contribuíram para a formação dos dias atuais e o pensamento daqueles que os geraram. É lançada luz sobre as características principais de nossa época para que soluções sejam encontradas para os problemas que enfrentamos. (224 p.) Deus que intervém, O. O pensamento moderno abandonou a ideia de verdade, com trágicas consequências. A única esperança está em confrontar nossa cultura com a verdade apresentada com paixão e sem concessões, e vivida de modo completo, em todas as áreas da vida. (304 p.) Deus que se revela, O. Como podemos vir a saber e como podemos saber que sabemos. O pensamento moderno está errado em suas posições quanto a como sabemos e o que sabemos. Contra o silêncio e desespero do homem moderno, podemos conhecer o Deus que intervém porque ele se revela. (144 p.)
Schaeffer tornaram-se um marco na história do pensamento cristão e inuenciaram milhões de
leitores. Nesta edição reunimos quatro de seus mais notáveis títulos: A igreja no nal do século 20 , A igre ja diante do mundo que a observa , Um manifesto cristão e O grande desastre evangélico. (352 p.) Josué e a história bíblica. Essas meditações mostrarão aos leitores o alimento histórico, espiritual e intelectual disponível para a vida cristã por meio do exemplo de Josué e seus companheiros. (176 p.) Morte na cidade. Como devemos olhar para este mundo pós-cristão e nos comportar como cristãos nele? Este livro olha para a situação que enfrentamos no mundo moderno e a perspectiva que devemos ter como cristãos neste mundo. (112 p.) Não há gente sem importância. Muitos se olham e concluem que seus talentos, energia e conhecimento limitados signifcam que eles não 13
têm importância. Biblicamente, porém, não há gente sem importância. (208 p.) Obra consumada de Cristo, A. Romanos tem inuenciado grandemente a igreja ao longo dos
séculos. Essa discussão de Romanos 1–8 traz um desafo especial para mentes inquiridoras,
que desejam ver a Bíblia aplicada à sua vida e à sua época. (256 p.) Poluição e a morte do homem. Quando tivermos aprendido a visão cristã da natureza, então poderá haver uma ecologia verdadeira. Somos todos criaturas. (96 p.) Verdadeira espiritualidade. Uma abordagem dos fundamentos de uma vida que se relaciona de modo aberto e sincero com Deus, com os outros e conosco mesmos, sem legalismo e com toda a beleza de Cristo. (224 p.) E também, de sua esposa: Celebração do matrimônio (Edith Schaeffer)
Uma apresentação positiva das alegrias do casamento, visando preparar pessoas para os desafos da vida conjugal. (96 p.)
oração aos moços | filipe fontes
UM MINISTÉRIO BEM-SUCEDIDO A mensagem do Paraninfo da Turma Rev. Hermisten Costa aos formandos do JMC, 2016
Prezados formandos
Agradeço o privilégio de falar a vocês neste dia tão especial. Muitos dos seus mestres foram meus mestres, e eu tenho certeza de que eles poderiam, com maior propriedade, ocupar o lugar que ocupo neste momento. Apesar disso, vocês atribuíram a mim esse privilégio. Recebam minha gratidão! E permitamme convidar meus mestres, agora colegas, a sentirem-se homenageados através da honra concedida a quem deles foi aluno. Além de minha gratidão, recebam meus parabéns! Vocacionados por Deus, vocês se apresentaram com disposição e cumpriram a etapa do preparo acadêmico, que é tão importante para o exercício dessa vocação. Tenho consciência de que isso somente foi possível porque vocês foram motivados e acompanhados pela graça de Deus. Mas sei também que não foi sem esforço
e dedicação que chegaram até aqui. Por isso, além de minha gratidão, recebam também os meus parabéns! Por último, nesta introdução, recebam os meus votos de um ministério bem-sucedido. Hoje é o fim de uma etapa, mas também o início de outra. O que trouxe a maioria de vocês ao Seminário não foi o desejo de obter um diploma de teologia, mas o de ser pastor. E o meu desejo é que Deus vos conceda grande sucesso no ministério pastoral. Durante o tempo em que estudamos juntos tivemos boas conversas. Na maioria delas, o protagonismo foi exercido pelos conceitos técnicos de teologia filosófica, enquanto os conselhos pastorais foram mais coadjuvantes, surgindo, em geral, a título de aplicação. Na conversa de hoje, será um pouco diferente. O pressuposicionalismo, a filosofia reformacional e o triperspectivismo sairão um pouco de cena e constituirão 14
o pano de fundo para os conselhos pastorais. Nesta última vez em que lhes falo, tendo como pressuposto meu desejo de que tenham um ministério bem-sucedido, eu escolhi fazer duas coisas: (i) oferecer alertas a respeito do que pode comprometer o seu ministério e pode conduzi-los ao fracasso; (ii) acompanhar esses alertas com dicas práticas que, eu espero, os ajudem a fugir dessas coisas e a trilhar caminhos mais seguros. O primeiro alerta é:
1. Cuidado com o orgulho Depois de quatro ou cinco anos vocês estão deixando o Seminário, e eu não tenho dúvidas de que, intelectualmente, vocês cresceram muito nesse período. Brincando um pouco: alguns anos atrás muitos de vocês não tinham lido sequer a coleção de gibis da turma da Mônica. Agora, já leram algo de filosofia, sociologia, psicologia, antropologia, e muito de
oração aos moços literatura teológica (exegese, teologia realizar. Troquem as fraldas dos seus bíblica, teologia sistemática, história filhos pequenos; lavem as panelas da igreja, apologética – para mencionar engorduradas do jantar; incluam-se apenas algumas das disciplinas na escala para lavar os banheiros por que compuseram o seu currículo). ocasião dos acampamentos. Trabalhos Inegavelmente, vocês cresceram, sujos costumam ser bons lugares de adquiriram muito conhecimento, e isso meditação! 2. Meditem constantemente no que é uma grande bênção! Neste mundo, no entanto, bênçãos Deus fez e no que ele continua fazendo e riscos andam sempre de mãos dadas. para que vocês sejam aquilo que são C.S. Lewis costumava afirmar isso, hoje Reflitam sobre a eleição, rememorem da forma pictórica que lhe é peculiar, dizendo que quanto maior é o anjo, maior a história da redenção, cantem a cruz, também o demônio ! Ou seja, quanto e apreciem a ação do Espírito Santo maior é a dádiva, maior é o risco de a na vida eclesiástica. Permitam-se ser lembrados disso na prática também. colocarmos no lugar do seu doador. O conhecimento é uma grande Por alguns instantes no dia, desviem dádiva. Afinal, como aprendemos os olhos dos jornais e contemplem a juntos, conhecimento é Revelação. O beleza do mundo. Procurem ver boas conhecimento de Deus, então, é motivo imagens; ler boas poesias; escutar boas de glória. Ele mesmo disse que se existe histórias; ouvir boas músicas; assistir a alguma coisa pela qual devemos nos bons filmes, e sejam, pela experiência gloriar é nisto: em conhecê-lo e saber biblicamente orientada dessas coisas, que ele é o Senhor! Conhecer a Deus é remetidos à grandiosidade da graça de motivo de glória. Mas para pecadores Deus, fonte de toda beleza que há no como nós, a linha de separação entre mundo, inclusive em vocês. Lembrema glória e o orgulho é sempre tênue se de que, se algo de bom, justo e belo demais. Por isso, ao mesmo tempo em existe em vocês, é fruto da obra de Deus que nos convida a nos gloriarmos em e não do seu próprio trabalho! conhecê-lo, Deus também nos adverte 3. Orem com regularidade (cultivem em sua Palavra a cuidarmos do modo vida de oração) como convém saber, por que o saber Além de uma evidência, a oração ensoberbece. é um exercício do reconhecimento de Sendo assim, tomem cuidado com nossa carência e de nossa dependência o orgulho! Mantenham-no o mais de Deus. Portanto, orem frequentemente. sufocado possível. E aqui vão algumas 4. Vivam de modo autêntico a vida dicas de como fazer isso: comunitária; como parte do rebanho de 1. Meditem constantemente no que a Bíblia diz sobre a sua natureza (criaturas limitadas, falíveis, e, principalment e, pecadoras)
Obriguem-se a ser lembrados disso na prática. Realizem algum tipo de trabalho sujo, de preferência aqueles que vocês menos gostam de
Deus, e não fora e acima dele
Cultivem boas amizades na igreja, porque líderes solitários correm grande risco de andar pelo caminho do orgulho, sem ter quem os alerte. Não andem sozinhos.1 Prefiram a companhia das pessoas que, em vez de elogiarem sempre, os ferem lealmente quando 15
entendem ser necessário. Fujam dos lábios bajuladores que, segundo a sabedoria bíblica, são causa de ruína (Pv 26.28). Tomem cuidado com o orgulho. Esse é o primeiro alerta que eu faço. O segundo é:
2. Cuidado com o egoísmo Nós, pastores, temos um costume que considero ruim. É o que chamo de vitimização pastoral . Algumas vezes, nós nos referimos ao ministério como se ele fosse algo extremamente penoso, que nos impõe exclusivamente peso e sacrifício. Eu não creio que isso seja verdade. Obviamente, eu não estou negando que o ministério pastoral seja uma atividade exigente. Ele é. O ministério impõe certo peso sobre nós, e exige de nós certo sacrifício. O que estou dizendo é que o ministério não é feito apenas disso. Ele também oferece muitas alegrias e, por que não dizer, muitos privilégios. Eu fui chamado ao ministério através do exemplo de meu pai.2 Foi com ele, principalmente, que eu aprendi o que significa ser pastor. Meu pai costuma unir essas duas verdades sobre o ministério, dizendo que ser pastor é experimentar a paradoxal alegria de sofrer por Cristo Jesus. O exercício do ministério pastoral envolve peso e sacrifício, mas também inclui privilégios, e eles são ainda maiores quando o ministério é exercido numa denominação histórica e bem estruturada como a Igreja Presbiteriana do Brasil. A brincadeira que costumamos fazer é que seminarista não tem alma, ou está no limbo; e, figurativamente, ela tem o seu ponto de correspondência com circunstâncias reais. Mas a verdade completa é que, mesmo
oração aos moços sendo ainda seminaristas, vocês já próprio do que visando a glória de Deus para evitar que o egoísmo se apodere de nosso coração. experimentaram alguns dos privilégios e o bem de sua igreja. do ministério pastoral. Depois de Estejam atentos e tomem cuidado 2. Sejam dizimistas fieis e ofertantes se tornarem seminaristas, vocês com o egoísmo! Lutem sempre contra regulares começaram a ser considerados ele. E aqui vão algumas dicas que podem Dízimos e ofertas são bênçãos e tratados de um modo diferente ajudar: para quem os recebe. Mas o princípio pela igreja. Grande parte de vocês 1. Reconheçam os seus limites de bíblico é o de que mais bem-aventurado estudou esses quatro ou cinco anos atuação é dar do que receber (At 20.35). Quem sendo sustentada pela igreja. Como Façam isso no re la ci on am en to oferta costuma ser mais abençoado candidatos ao sagrado ministério, do que aquele para quem as ofertas passaram a desfrutar de posições com as pessoas que estão debaixo são destinadas. E uma das bênçãos e relacionamentos dos quais não de sua autoridade. Lembrem-se de que vocês foram chamados para ser desfrutadas pelo ofertante é a de tornardesfrutavam antes da candidatura. pastor das pessoas, não para ser o se menos dependente do que tem, Em breve vocês serão ordenados. dono delas. Respeitem, portanto, a exercitando sua dependência de Deus. E esses privilégios farão parte da sua consciência e a liberdade individual de A entrega regular de dízimos e ofertas é vida de forma ainda mais intensa. outro bom antídoto contra o egoísmo. Vocês receberão autoridade sobre um suas ovelhas. Orientem, admoestem 3. Procurem servir a Deus com afinco grupo de pessoas ( Poder ). Receberão e, se for necessário, disciplinem as o direito de serem sustentados pelas ovelhas. Mas façam tudo isso de forma independentemente da posição que ele pessoas que estão debaixo de sua cuidadosa, sem violar a consciência lhes permitir ocupar Trabalhem na igreja local com a autoridade ( Dinheiro). Serão autorizados individual e liberdade delas, exigindo a exercer funções na estrutura de uma mais do que aquilo que é permitido exigir. mesma seriedade com que trabalhariam Reconheçam limites também em nos concílios e nas autarquias da igreja. instituição histórica e respeitada como a Igreja Presbiteriana do Brasil ( Posição sua relação com o poder. Lembrem-se Ensinem às sociedades internas da sua de que, no mundo criado, autoridade tem igreja com o mesmo ânimo dedicado a e influência). Assim como o conhecimento, o a ver, primariamente, com funções e não grandes conferências. E, se possível, poder, o dinheiro e a influência não com pessoas. Não se confundam com façam algum trabalho voluntário, no qual são coisas ruins em si mesmas. Pelo as cadeiras nas quais Deus lhes permitir possam doar o tempo e energia como contrário, também são dádivas legítimas assentar. Mantenham a convicção de um ato de amor. O serviço abnegado das quais podemos e devemos desfrutar, que elas serão sempre maiores do que também pode ajudar muito vocês na luta e que podem ser meios pelos quais o vocês. E, enquanto estiverem assentados contra o egoísmo. nelas, procurem compreender os seus Tomem cuidado com o egoísmo. É senhorio de Cristo se revela em nós. limites. Não invadam outras esferas! o segundo alerta que eu faço a vocês. E Mas lembrem-se de C.S. Lewis: Não queiram tomar decisões a respeito o terceiro, finalmente, é: quanto maior o anjo, maior também o 3. Cuidado com a hipocrisia demônio. Assim como é tênue a linha do que não foi colocado em suas mãos. E estejam sempre prontos a se levantarem entre a glória do conhecimento e o Um dos grandes privilégios do orgulho, é tênue também a linha entre os das cadeiras onde estão assentados, ministério pastoral é que, no exercício de privilégios do ministério e o egoísmo. A quando Deus as pedir de volta. nossas atividades, lidamos todos os dias orientação de 1Pedro 5.2 – pastoreai o Por fim, reconheçam li mites na com aquelas coisas mais diretamente rebanho de Deus que há entre vós (...) relação com as pessoas que exercem relativas a Deus. No ministério, os meios não por sórdida ganância, mas de boa autoridade sobre você. Façam distinção de graça se tornam, de certa forma, vontade – não foi dada por acaso. Ela clara entre a esfera pública e a privada, objetos obrigatórios de nossa relação pressupõe um perigo real. O ministério e não se valham de vínculos pessoais diária. Poucas pessoas de suas igrejas pastoral inclui privilégios, e vocês serão para ultrapassar hierarquias que foram serão tão obrigadas a ler e conhecer a tentados a usufruir dos privilégios do regularmente estabelecidas. Reconhecer Bíblia quanto vocês; a orar tanto quanto ministério pastoral mais em benefício os nossos limites é uma boa coisa a fazer vocês; a participar dos sacramentos 16
oração aos moços como vocês participarão. Esse é um grande privilégio! Mas lembrem-se de C.S. Lewis pela última vez: quanto maior o anjo, maior também o demônio. O contato diário com as coisas de Deus pode ser uma bênção, mas o risco da familiaridade, da banalização e da hipocrisia, está sempre diante de quem lida cotidianamente com as coisas de Deus. Tomem cuidado com esse perigo! Comecem a se preocupar profundamente com a sua vida espiritual, (i) quando a sua consciência assumir a cisão radical entre vida pública e particular ; (ii) quando o descompasso entre pregação e prática já não lhes for mais incômodo; (iii) quando a retórica, a eloquência, a performance, forem amplificadas para cobrir a irresponsabilidade e as dissonâncias de uma vida que começa a se desenvolver distante de Deus. Não subestimem o risco da banalização das coisas de Deus e da hipocrisia! E, para que possam evitá-lo: 1. Sejam cuidadosos na vida devocional
Separem um tempo diário para ler a Bíblia e orar particularmente. Lutem para não ler a Bíblia procurando sermão, como se ela fosse apenas o seu objeto de trabalho. Se for preciso, evitem conjugar tão diretamente a vida devocional com as atividades ministeriais. Escolham um livro bíblico diferente daquele em que estão pregando. Permitam-se ser ensinados por outra pessoa; escolham um bom devocionário. Exponham-se à pregação e ao ensino de colegas sempre que possível; e façam isso de modo nãocrítico; procurando aprender com eles em vez de ensiná-los. Sejam cuidadosos na vida devocional. 2. Cultivem uma visão vertical da vida, e não se preocupem exageradamente com a sua reputação
Lembrem-se da recomendação de Paulo a Timóteo, procura apresentarte aprovado a D e u s , porque a hipocrisia costuma ganhar espaço em nossa vida, quando, em vez de viver primariamente diante de Deus, vivemos primariamente diante dos outros. Então, sejam corajosos, e vivam coram Deo! Não tenham medo de admitir erros e pecados, e de voltar atrás em decisões que julgarem erradas – como se isso fosse depor contra a liderança de vocês. Como diz Ted Christman, em um dos artigos do livro Amado Timóteo, organizado por Tom Ascol: ...um verdadeiro pastor que ama é capaz de admitir diante de suas ovelhas que ele estava errado, talvez até mesmo que ele pecou. Embora nosso Supremo Pastor nunca esteja errado e jamais tenha pecado, para que nós sejamos como ele em humildade temos de estar prontos a ser construtivamente criticados. A longo prazo, ganhamos muito mais a confiança de nosso povo nos humilhando diante deles, do que sempre insistindo que estamos certos.3 Vivam diante de Deus, não diante das pessoas! Esse é um dos caminhos para que sejam evitadas a banalização das coisas de Deus e a hipocrisia.
Conclusão Ao final deste discurso, expresso novamente minha gratidão, tributo mais uma vez o meu reconhecimento, e reafirmo o meu desejo de que vocês tenham um ministério abençoado e feliz. Como procurei mostrar, isso vai depender de vocês; das motivações e das escolhas que farão ao longo de todo o ministério. Mas isso não vai depender de vocês. É isso mesmo: depende e não depende. E já que Calvino está no paradoxo, encerro com as palavras de Lutero em Os sete salmos de penitência , 17
escritas como se estivesse ouvindo o próprio Deus: Isso deve ser, não de acordo com teu entendimento, mas acima dele; mergulha na insensatez e dar-te-ei meu entendimento; não saber para onde vais é saber exatamente para onde vais. Meu entendimento torna-te insensato. Assim saiu Abraão de sua pátria sem saber para onde ir. Confiou em minha sabedoria e desistiu de sua própria, e encontrou o caminho certo e o destino certo. Eis o caminho da cruz: tu não o podes achar; eu tenho que guiar-te como a um cego. Por isso, nem tu, nem ser humano, nem criatura, mas eu, eu em pessoa te ensinarei através do meu Espírito e Palavra, o caminho que deves trilhar. Não a obra que tu escolhes, não o sofrimento que tu imagines, mas sim o caminho que te é preparado contra a tua escolha, contra teu pensamento e desejo… A esse segue, a esse te chamo, nele sê discípulo; é tempo oportuno, teu mestre chegou.4 O Rev. Filipe Costa Fontes, professor no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição, SP, é Bacharel em Teologia pelo JMC e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, tem Licenciatura Plena em Filosofia pelo Centro Universitário Assunção, é Mestre em Teologia (THM) com concentração em Filosofia pelo Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, Doutor e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM. 1 Inspirado em: LIDÓRIO, R. Liderança e Integridade, Belo Horizonte: Betânia, 2008, p. 27. 2 Filipe Fontes é filho do Rev. Paulo Fontes, pastor presbiteriano e Capelão do Seminário Presbiteriano Rev. Denoel Nicodemos Eller, em Belo Horizonte, MG (N.do E.). 3 CHRISTMAN, T. “Ame seu rebanho”, in: Tom Ascol (org.), Amado Timóteo: uma coletânea de cartas ao pastor . São José dos Campos: Fiel, 2005, p. 66-67. 4 LUTERO, M. Os sete salmos de penitência (1525). Weimarer Ausgabe, vol. 18, p. 489.
500 anos da reforma | solano portela
A MENSAGEM DA REFORMA PARA OS DIAS DE HOJE Por que lembrar a Reforma?
Em 31 de outubro d e 1517, Martinho Lutero afixou as suas hoje famosas 95 Teses à porta da catedral de Wittenberg. Periodicamente as igrejas evangélicas relembram aqueles eventos que, na soberana providência de Deus, preservaram viva a sua Igreja. Muitos, entretanto, questionam essas comemorações e alguns chegam até a contestar a lembrança da Reforma.
“Por que considerar o que aconteceu há quase 500 anos?” Seguramente, a razão para muitos não estudarem a Reforma é o mero desconhecimento do fato, a falta de informação ou o não se aperceberem da sua importância na vida da Igreja e da humanidade. Outros há que procuram um esquecimento voluntário daqueles eventos do século 16. Martin Lloyd-Jones nos diz que entre aqueles que rejeitam a memória da Reforma
temos, basicamente, dois tipos de argumentação: 1º) Dos que dizem que o passado nada tem a nos ensinar; e 2º) Dos que vêem a Reforma como uma tragédia na história religiosa da humanidade. Para os primeiros, somente o progresso científico e o futuro nos interessam. Firmadas em uma mentalidade evolucionista, essas pessoas partem para uma abordagem histórica de que o presente é sempre melhor do que o passado. Eles nada enxergam na História que possa nos servir de lição, apoio, ou alerta. Já para os segundos, devemos estudar a unidade e não um movimento que trouxe a divisão e o cisma ao cristianismo. Para eles, perdemos tempo quando nos ocupamos de algo “tão negativo”. Podemos dar graças, entretanto, pelo fato de que um segmento da Igreja ainda acha importante relembrar e aplicar as questões levantadas pelos 18
Reformadores. Contudo, o mesmo Martin Lloyd-Jones alerta para um perigo que ainda existe no interesse pelos acontecimentos que marcaram o século 16. Na realidade, ele nos confronta com uma forma errada e uma forma certa de relembrar o passado, do ponto de vista religioso. A forma errada seria estudar o passado por motivos meramente históricos. Esse estudo seria semelhante à abordagem que um antiquário dedica a um objeto. Por exemplo, quando ele examina uma cadeira, não está interessado se ela é confortável, se dá para sentar-se bem nela, ou se ela cumpre adequadamente a sua função de cadeira. Basicamente, a preocupação se resume à sua idade, ao seu estado de conservação e, principalmente, a quem ela pertenceu. Isso determinará o valor daquele objeto para o antiquário e motivará o seu estudo.
500 anos da reforma Em Mateus 23.29-35 teríamos um exemplo dessa abordagem errada do passado. O trecho diz: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque edificais os sepulcros dos profetas, adornais os túmulos dos justos e dizeis: Se tivéssemos vivido nos dias de nossos pais, não teríamos sido seus cúmplices no sangue dos profetas! Assim, contra vós mesmos, testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós, pois, a medida de vossos pais. Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno? Por isso, eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas. A uns matareis e crucificareis; a outros açoitareis nas vossas sinagogas e perseguireis de cidade em cidade; para que sobre vós recaia todo o sangue justo derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o santuário e o altar”. Jesus diz que aqueles homens pagavam tributo à memória dos profetas e líderes religiosos do passado. Eles prezavam tanto a História que cuidavam dos sepulcros e os enfeitavam, proclamavam a todos que os profetas haviam sido homens bons e nobres, e atacavam quem os havia rejeitado. Diziam eles: “se tivéssemos estado lá, se tivéssemos vivido naquela época, não teríamos feito isso!” Mas Jesus não se impressiona e os chama de hipócritas! A argumentação de Jesus é a seguinte: “Se vocês se dizem admiradores dos profetas, como é que estão contra aqueles que representam os profetas e proclamam a mesma mensagem que eles proclamaram?” Jesus testou a sinceridade deles pondo a descoberto a atitude que mantinham contra aqueles que pregavam a mensagem de Deus e mostra que eles próprios
seriam perseguidores e assassinos dos proclamadores da mensagem dos profetas de Deus. Esse é também o nosso teste: alguém pode olhar para trás e louvar homens famosos, mas isso pode ser pura hipocrisia se não aceitar, no presente, aqueles que pregam a mensagem de Lutero e de Calvino. Somos mesmo admiradores da Reforma promovida por aqueles grandes profetas de Deus? Mas existe uma forma correta de relembrar o passado. Ela pode ser deduzida não apenas por exclusão e inferência do texto anterior, mas principalmente da passagem de Hebreus 13.7-8, que diz: “Lembrai-vos dos vossos guias, os quais vos pregaram a palavra de Deus; e, considerando atentamente o fim da sua vida, imitai a fé que tiveram. Jesus Cristo, ontem e hoje, é o mesmo e o será para sempre”. A maneira correta de relembrar a Reforma é, portanto, verificar a mensagem, a Palavra de Deus como foi pregada; e isso não apenas por um interesse histórico de “antiquário”, mas com o bom propósito de imitar a fé ali demonstrada. Devemos observar esse evento e aqueles homens, para aprender e seguir os seus exemplos, discernindo a sua mensagem e aplicando-a aos nossos dias. DISTORÇÕES VERIFICADAS NA LEMBRANÇA DA REFORMA Muitos de nós, que crescemos neste país de maioria católica, já ouvimos, numa ou noutra ocasião, alguma posição distorcida tanto sobre os fatos da Reforma do século 16 quanto sobre os Reformadores. Uma das versões comuns, na visão da Igreja Católica, apresenta Lutero como um 19
monge que queria casar-se e que por isso teria brigado com o Papa. Outros dizem que Lutero ambicionava o poder político; e ainda outros dizem que Lutero era apenas um místico rebelde, sem convicções reais e profundas. Até mesmo a descrição dele como doente da alma, psicopata, enganador e falso profeta permanece em vários escritos de historiadores famosos do período. Um famoso autor e historiador católico brasileiro chegou a escrever que “excomungado em Worms, em 1521, Lutero entregou-se ao ócio e à moleza”. Em anos mais recentes, um novo tipo de abordagem da Reforma tem surgido nos círculos católicos, embora continue representando alguma forma de distorção. Por exemplo, em 1983, quando se completaram 500 anos desde o nascimento de Lutero, o Papa participou de algumas cerimônias comemorativas do evento na Alemanha. Certamente o Papa não fez por convencimento das verdades ensinadas por Lutero, pois a igreja que representa nada mudou doutrinariamente após a sua participação. A visita do Papa evidencia, entretanto, uma comprovação de que a imagem de Lutero e os princípios que pregava estão sendo alvos de um revisionismo histórico para fins de distorções. Diluir a força das doutrinas que Lutero pregava possibilita uma aproximação com os fatos históricos descontextualizados. Em 1967, nos 450 anos da Reforma, a revista TIME escreveu o seguinte: “O domingo da Reforma está se tornando um evento ecumênico que olha para o futuro, em vez de para o passado”. Na mesma ocasião, um semanário jesuíta fez esta afirmação: “Lutero foi um profundo pensador espiritual que foi levado à revolta por papas mundanos e incompetentes”. Essas colocações
500 anos da reforma fazem da Reforma uma revolta contra pessoas individuais e não contra um sistema de doutrinas de uma igreja apóstata, que continua persistindo em seus conceitos e práticas divorciados da Palavra de Deus. Refletindo o sentimento ecumênico que permeou a segunda metade do século 20, bispos das Igrejas Católica e Luterana dos Estados Unidos fizeram uma declaração solidária, no aniversário da Reforma, dizendo o seguinte: “… recomendamos um programa conjunto, entre os membros de nossas igrejas, de estudos, reflexão e oração”. Podemos imaginar os jesuítas, consciente e sinceramente, fazendo orações, estudos e reflexões em comemoração à Reforma do século 16? Certamente, isso só seria possível se os jesuítas ignorassem os pontos doutrinários fundamentais levantados pelos Reformadores. Refletindo uma visão políticosociológica da Reforma, outra distorção permeou, durante muito tempo, o pensamento revisionista da História. Na época em que o comunismo ainda imperava na Europa Oriental, porta-vozes do partido comunista da Alemanha relembraram Lutero como sendo “um precursor da revolução”. ESQUECIMENTO DOUTRINÁRIO DOS PRINCÍPIOS DA REFORMA Muitas das comemorações conjuntas da Reforma por católicos e protestantes, descritas acima, só ocorrem porque não se falam nas doutrinas principais levantadas pelo movimento do século 16. Tristemente, temos observado que mesmo no campo chamado “evangélico” a situação é semelhante. Raras são as igrejas e denominações evangélicas que ensinam o que foi a Reforma do século
16 e muito poucas as que comemoram o evento e aproveitam para relembrar e reaplicar os princípios nela levantados. Mais recentemente, temos observado que tem sido removida a clara linha que separa o protestantismo do catolicismo quanto ao entendimento da fé cristã e da salvação. Isso, que até alguns anos atrás era praticado somente pela teologia liberal – que já havia declaradamente abandonado os princípios norteadores da Palavra de Deus – hoje está presente no campo protestante evangélico. Essa falta de discernimento e conhecimento histórico, prático e teológico tem-se achado até mesmo dentro do campo ortodoxo, incluindo teólogos reformados e tradicionais. Referimo-nos ao documento “Evangélicos e Católicos Juntos” ( Evangelicals and Catholics Together ), publicado em 1994 nos Estados Unidos, e que tem sido uma fonte de controvérsia desde a sua divulgação. A base e intenção do documento foi a realização de ações conjuntas de cunho moral-político por católicos e protestantes, mas ele evidencia uma grande falta de discernimento e sabedoria. Por exemplo, o documento defende que as pessoas convertidas devem ser respeitadas na decisão de se filiar ou a uma igreja católica ou a uma protestante. Essas declarações foram emitidas como se a fé fosse a mesma, como se a doutrina fosse igual, como se a base dos ensinamentos fosse comum, como se as distinções inexistissem ou fossem extremamente secundárias. A premissa básica do documento “Evangélicos e Católicos Juntos” é que a evangelização de católicos é algo indesejável e não recomendável, uma vez que a verdadeira fé e prática cristã já devem estar presentes na Igreja de Roma. Em sua essência, esse 20
documento é a grande evidência do esquecimento da Reforma do século 16 e do que ela representou e representa para a verdadeira Igreja de Cristo. Algum evangélico poderia argumentar, “mas isso é coisa de americano, não atinge o nosso país!” Ledo engano! A conhecida e prestigiada Revista Ultimato trouxe em suas páginas, no número de setembro de 1996, artigos e depoimentos advindos do campo evangélico ortodoxo, refletindo basicamente a mesma compreensão do documento “Evangélicos e Católicos Juntos”, ou seja: que as distinções relativas à Igreja de Roma seriam secundárias e não essenciais. Tal situação reflete pelo menos uma crassa ignorância da doutrina católica romana. Por exemplo os cânones 9 e 11 do Concílio de Trento, escritos no auge da Contra-Reforma, mas nunca abrogados até os dias de hoje, dizem o seguinte: Cânon 9 —Se alguém disser que o pecador é justificado somente pela fé, querendo dizer que nada coopera com a fé para a obtenção da graça da justificação; e se alguém disser que as pessoas não são preparadas e predispostas pela ação de sua própria vontade—que seja maldito. Cânon 11—Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela imputação da justiça de Cristo ou unicamente pela remissão dos seus pecados, excluindo a graça e amor que são derramados em seus corações pelo Espírito Santo, e que permanece neles; ou se alguém disser que a graça pela qual somos justificados reflete somente a vontade de Deus—que seja maldito. Estas declarações, ou melhor, maldições, foram pronunciadas contra os protestantes. Elas atingem o cerne
500 anos da reforma doutrinas. Entre as teses, encontramos expressões de compreensão dos ensinamentos da Bíblia, como por exemplo na tese 62 (“O verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto evangelho da glória e da graça de Deus”) e na tese 94 (“Os cristãos devem ser exortados a seguir a Cristo, a sua cabeça, com diligência”). Entretanto, devemos reconhecer que elas estão longe de ser, em sua totalidade, expressões precisas da verdadeira fé cristã. Elas registram, na realidade, o início do pensamento de Lutero, que seria trabalhado e refinado por Deus ao longo de estudos e experiências posteriores do Reformador. Vejamos os seguintes exemplos: Lutero faz referência ao purgatório, sem qualquer contestação à doutrina em si, em 12 das suas teses (teses 1011, 15-19, 22, 25-26, 29, 82). Ex.: Tese 29: “Quem disse que todas as almas no Purgatório desejam ser redimidas? Temos exceções registradas nos casos de S. Severino e S. Pascal, de acordo com uma lenda sobre eles”. Além da menção aos santos na tese CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS SOBRE A acima, Lutero faz referência a Maria como REFORMA E OS REFORMADORES mãe de Deus (Tese 75), aparentemente não no sentido histórico do termo (o termo Nosso apreço pela Reforma e pelas histórico, em grego Theotokos, tinha suas doutrinas não deve nos levar a uma o propósito de reconhecer a divindade visão utópica e idealista com relação aos de Jesus), mas no conceito católico seus personagens principais. Devemos da expressão, que infere a existência reconhecer os seus feitos, mas também de um poder especial em Maria: Diz a as suas limitações. É na compreensão da Tese 75– “É loucura considerar que as falibilidade humana que detectamos a mão indulgências papais têm tão grande poder soberana de Deus empreendendo os seus que elas poderiam absolver um homem propósitos na História. Vejamos alguns que tivesse feito o impossível e violado pontos que valem a pena ser recordados: a própria mãe de Deus”. Quatro teses sugerem legitimidade A. Lutero foi um homem falível ao papado e à sucessão apostólica (77, As 95 teses de Lutero realmente 5-6, 9). Ex.: Tese 77: “É blasfêmia contra representaram um marco e um ponto São Pedro e contra o Papa dizer que São de partida para a recuperação das sãs Pedro, se fosse o papa atual, não poderia da doutrina da justificação somente pela fé e são contrárias à defesa inabalável da soberania de Deus na salvação, proclamada pela Reforma do século 16. Essas maldições continuam fazendo parte dos ensinamentos da Igreja Católica. A visão distorcida do evangelho e da evangelização, no campo católico romano, não é algo que data apenas da Era Medieval. Vejam esta declaração extraída da encíclica papal “O Evangelho da Vida,” escrita e divulgada à Igreja em 1995: “O evangelho é a proclamação de que Jesus possui um relacionamento singular com todas as pessoas. Isso faz com que vejamos em cada face humana a face de Cristo”. Certamente teríamos que chamar essa visão do evangelho de universalismo e declará-la contrária à fé cristã histórica. Perante esse emaranhado de opiniões tão diferenciadas; perante o testemunho e o registro implacável da História; perante a crise de identidade, de doutrina e de prática litúrgica que nossas igrejas atravessam, qual deve ser a nossa compreensão da Reforma?
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conceder graças maiores [do que as atualmente concedidas].” Além disso, verificamos que resquícios do romanismo se fizeram presentes na formulação da Igreja Luterana, principalmente na sua estruturação hierárquica e na compreensão quase católica dos elementos da Ceia do Senhor. Possivelmente poderíamos também dizer que na Reforma encontramos individualismo em excesso e falta de unidade entre irmãos de mesma opinião teológica (principalmente nas interações dos luteranos com Zuínglio e Calvino). Mas, com todas essas limitações, os Reformadores foram poderosamente utilizados por Deus na preservação das suas verdades.
B. A revolta de Lutero foi eminentemente espiritual Não poderemos compreender a Reforma se acharmos que Lutero foi movido por uma revolta contra pessoas, contra padres corruptos, apenas. A ação de Lutero foi uma revolta contra uma estrutura errada e uma doutrina errada de uma igreja que distorcia a salvação. A Reforma não foi um movimento sociológico; Lutero não pretendia ensinar a salvação do homem pela reforma da sociedade, embora compreendesse que a sociedade era reformada pelas ações do homem resgatado por Deus. Na realidade, a Reforma do século 16 foi um grande reavivamento espiritual operado por Deus, que começou com uma experiência pessoal de conversão. C. Lutero não formulou novas doutrinas, ou novas verdades, mas redescobriu a Bíblia em sua pureza e singularidade As 95 teses representam coragem, desprendimento, uma preocupação
500 anos da reforma legítima com o estado decadente da Igreja, e uma busca dos verdadeiros ensinamentos da Palavra. Mas é um erro achar que a Reforma marca a aparição de várias doutrinas nunca dantes formuladas. A Palavra de Deus, cujas doutrinas estavam soterradas sob o entulho da tradição, é que foi resgatada. Uma das características comuns das seitas é a presunção de ter descoberto supostas verdades que eram totalmente desconhecidas até que foram reveladas a algum líder. Essas “verdades” passam a ser determinantes na interpretação das demais e tornamse o ponto central dos ensinamentos da seita. A Reforma coloca-se em completa oposição a essa característica. Nenhum dos Reformadores declarou ter “descoberto” qualquer verdade oculta. Eles tão somente apresentavam, com toda singeleza, os ensinamentos das Escrituras. Seus comentários e controvérsias versavam sempre sobre a clara exposição da Palavra de Deus. Mais uma vez, Martin Lloyd-Jones nos indica “que a maior lição que a Reforma Protestante tem a nos ensinar é justamente que o segredo do sucesso, na esfera da Igreja e das coisas do Espírito, é olhar para trás”. Lutero e Calvino, diz ele, “foram descobrindo que estiveram redescobrindo o que Agostinho já tinha descoberto e que eles tinham esquecido”. A MENSAGEM DA REFORMA PARA OS DIAS DE HOJE As mensagens proclamadas pela Reforma continuam sendo pertinentes aos nossos dias. Da mesma forma como a Palavra de Deus é sempre atual e representa a sua vontade ao homem, em todas as ocasiões, a Reforma, com suas mensagens extraídas dessa mesma
Palavra, transborda em atualidade para a cena contemporânea da Igreja Evangélica. Vejamos apenas alguns pontos pregados pelos Reformadores e a sua aplicação presente: A. A Reforma resgatou o conceito de pecado (Rm 3.10-23) A venda das indulgências mostra como o conceito do pecado estava distorcido na ocasião da Reforma do século 16. A Igreja Medieval e, principalmente, as ações de Tetzel, fugiram totalmente da visão bíblica de que pecado é uma transgressão da Lei de Deus, qualquer falta de conformidade com seus padrões de justiça e santidade. A essência do pecado foi banalizada ao ponto de se acreditar que o seu resgate podia se efetivar pelo dinheiro. É fácil ver as implicações que a falta de um conceito bíblico de pecado traz para outras doutrinas chaves da fé cristã. Por exemplo: se o resgate é em função da soma de dinheiro paga, como fica a expiação de Cristo, qual a necessidade dela? Ao se insurgir contra as indulgências, Lutero estava, na realidade, reapresentando a mensagem da Palavra de Deus sobre o homem, seu estado, suas responsabilidades perante o Deus Santo e Criador e sua necessidade de redenção. Esses conceitos estão cada vez mais ausentes da doutrina da Igreja contemporânea. A mensagem da Reforma continua necessária aos nossos dias. Estamos nos acostumando a ouvir que todas as ações são legítimas; que pecado é um conceito relativo e ultrapassado; que o que importa é a felicidade pessoal e não a observância de princípios. Mesmo nos meios evangélicos, existe grande falta de discernimento — há uma preocupação muito maior com a necessidade de encontrar justificativas, explicações e 22
Nenhum dos Reformadores declarou ter “descoberto” qualquer verdade oculta. Eles tão somente apresentavam, com toda singeleza, os ensinamentos das Escrituras.
racionalizações do que com a convicção e o arrependimento.
B. A Reforma pregou a doutrina da justificação somente pela fé (Gl 3.1014) A Igreja Católica havia distorcido o conceito da salvação, pregando abertamente que a justificação se processava por intermédio das boas obras de cada fiel. Lendo a Palavra, Lutero verificou o quão distanciada essa pregação estava das verdades bíblicas — a salvação é uma graça concedida mediante a fé e as boas obras não fornecem a base para ela; mas apenas a evidenciam e são subprodutos dela. A salvação procede da infinita misericórdia de Deus para com o homem pecador. É Deus quem arranca o homem da lama e perdição do pecado. Enfim, a obra completa da salvação é realizada por Deus. Hoje, estamos novamente perdendo essa compreensão – a mensagem da Reforma é necessária. A justificação pela fé continua sendo esquecida e procura-se a justificação pelas obras. Muitas vezes prega-se e procura-se a justificação perante Deus através do envolvimento em ações de cunho social. A justificação pela fé está sendo, ultimamente, considerada um ponto
500 anos da reforma secundário, mesmo no campo evangélico. Assim, muitos têm partido para trabalhos de ampla cooperação, como base de fé e de unidade, como vimos no pensamento expresso pelo documento já referido: Evangéli cos e Católicos Juntos.
C. A Reforma resgatou o conceito da autoridade vital da Palavra de Deus (2Pe 1.16-21) Na ocasião da Reforma, a tradição da Igreja já havia se incorporado aos padrões determinantes de comportamento e da doutrina e, na realidade, já havia abandonado as prescrições das Escrituras. A Bíblia era conservada distante e afastada da compreensão dos devotos; era considerada um livro só para os entendidos, um livro obscuro e até perigoso para as massas. Os Reformadores redescobriram e levantaram bem alto o único padrão de fé e prática: a Palavra de Deus e, por este padrão, aferiram tanto as autoridades como as práticas religiosas em vigor. O mundo está sem padrão, mas não é somente o mundo, a própria Igreja Evangélica está voltando a enterrar o seu padrão em meio a um entulho místico pseudo-espiritual – a mensagem da Reforma continua necessária. Sabemos que nas pessoas sem Deus imperam o subjetivismo e o existencialismo. A única regra de prática existente parece ser: “Comamos e bebamos porque amanhã morreremos”. Verificamos que nas seitas existe uma multiplicidade de padrões. Livros e escritos são apresentados como se a sua autoridade estivesse paralela ou até acima da Bíblia. A cena comum é a apresentação de novas revelações, geralmente de caráter escatológico e de características fluidas, contraditórias e totalmente duvidosas.
No meio eclesiástico liberal, já nos acostumamos a identificar o ataque constante à veracidade das Escrituras. Já há mais de dois séculos os liberais têm contestado sistematicamente a Palavra de Deus, como se a fé cristã verdadeira fosse capaz de subsistir sem o seu alicerce principal. Mas é no campo evangélico que somos perturbados com os últimos ataques à Bíblia como regra inerrante de fé e prática. Ultimamente muitos pseudo-intelectuais têm questionado a doutrina que coloca a Bíblia como um livro inspirado, livre de erro. Podemos tomar como exemplo o caso do Fuller Theological Seminary. Essa famosa instituição evangélica foi fundada em 1947 sobre princípios corretos. Logo após o seu início, formulou-se uma declaração de fé que especificava: “…os livros do Antigo Testamento e Novo Testamento…, nos originais, são inspirados plenariamente e livres de erro, no todo e em suas partes…” Entretanto, em 1968, o filho do fundador, Daniel Fuller, que havia estudado sob Karl Barth, começou a questionar a inerrância da Bíblia, fazendo distinção entre trechos “revelativos” e trechos “não revelativos” das Escrituras. Foi seguido nessa posição pelo presidente, David Hubbard, e por vários outros professores, todos considerados evangélicos. Logicamente não há critério coerente ou dotado de autoridade para se fazer essa distinção. Subtrai-se da Igreja o seu padrão, derruba-se um dos pilares da Reforma, e a Igreja é retroagida a uma condição medieval de dependência dos “especialistas” que nos dirão quais as partes em que devemos crer realmente e quais as que devemos descartar como mera invenção humana. No campo evangélico neopentecostal a suficiência da Palavra de Deus é 23
desconsiderada e substituída pelas supostas “novas revelações”, que passam a ser determinantes das doutrinas e práticas do povo de Deus. A Confissão de Fé de Westminster, em seu Capítulo 1º, apresenta a mensagem inequívoca da Reforma do século 16, cada vez mais válida aos nossos dias. Ali a Bíblia é descrita como sendo a “… única regra infalível de fé e de prática”.
D. A Reforma redescobriu na Palavra a doutrina do sacerdócio Individual do crente (Hb 10.19-21) Essa doutrina apresenta a pessoa de Cristo como único mediador entre Deus e os homens, concedendo a cada salvo “acesso direto ao trono” por intermédio do sacrifício de Cristo na cruz e pela operação do Espírito Santo no “homem interior”. O ensinamento bíblico, transmitido pela Reforma, eliminava os vários intermediários que haviam surgido ao longo dos séculos, entre o Deus que salva e o pecador redimido. Na ocasião, esse era um ensinamento totalmente estranho à Igreja de Roma, que sempre se apresentou como tendo a palavra final de autoridade e interpretação das Escrituras. Lutero rebelou-se contra o véu de obscuridade que a Igreja lançava sobre as verdades espirituais e levou os fiéis de volta ao trono da graça. Isso proporcionou uma abertura providencial de conhecimento teológico e religioso. Lutero sabia disso, mas sabia também que o acesso a Deus deveria estar fundamentado nas verdades da Bíblia, tanto que um de seus primeiros esforços, após o rompimento com a Igreja Romana, foi a tradução da Palavra de Deus para a língua falada em seu país: o alemão. O ensinamento do sacerdócio individual do crente foi o grande
500 anos da Reforma responsável pelo estudo aprofundado das Escrituras e pela disseminação da fé reformada. Levados a proceder como os bereanos, os crentes verificaram que não dependiam do clero para o entendimento e aplicação dos preceitos de Deus e passaram a entender com determinação as doutrinas cristãs. A mensagem da Reforma continua sendo necessária hoje. A igreja contemporânea está multiplicandose em quantidade de adeptos, mas é uma multiplicação estranha que segue acompanhada de uma preguiça mental quanto ao estudo. Parece que fomos todos tomados de anorexia espiritual, onde nos contentamos com muito pouco, nos achamos mestres sem estudar, nos concentramos na periferia e não no cerne das doutrinas e ficamos felizes com o recebimento só do “leite” e não da “carne”. A mensagem da Reforma é necessária para que não venhamos a testemunhar a consolidação de toda uma geração de “analfabetos cristãos”. Em vez de procurar “tudo enlatado” e de deixar que apenas formas de entretenimento povoem nossa mente e coração, devemos nos lembrar constantemente da importância de “guardar a palavra no coração”. Precisamos nos aperceber de que a objetividade da Palavra de Deus é verdade proposicional objetiva. Mas essa objetividade tem de ser acompanhada do nosso estudo e da nossa capacidade de compreensão, sob a iluminação do Espírito Santo de Deus, e da aplicação coerente dos ensinamentos desta Palavra em nossa vida.
E. A Reforma apresentou, de forma clara e inequívoca, o conceito de Soberania de Deus (Sl 24) Na ocasião da Reforma, as expressões de religiosidade tinham se
tornado totalmente centralizadas no homem. Isso ocorreu principalmente pela grande influência de Tomás de Aquino na sistematização do pensamento católico romano. Abraçando as ideias de Pelágio, Aquino enfatizou completamente o livre arbítrio do homem. Ele desconsiderou a gravidade da escravidão ao pecado que torna o homem incapaz de escolher o bem. Lutero reconheceu que a salvação se constituía em algo mais que uma mera convicção intelectual. Era, na realidade, um milagre da parte de Deus. Por isso, ele tanto pregou quanto escreveu sobre “a prisão do arbítrio”. Costumamos atribuir a cristalização das doutrinas relacionadas com a soberania de Deus a João Calvino apenas, mas o ensinamento bíblico de Lutero traz, com não menor veemência, uma teologia teocêntrica na qual Deus reina soberanamente em todos os sentidos. Hoje, a mensagem continua a ser necessária, pois o homem, e não Deus, continua sendo o centro das atenções. Mesmo dentro dos círculos evangélicos, a evangelização elege a felicidade do homem como alvo principal, e não a glória de Deus. Até a nossa liturgia é desenvolvida em torno de algo que nos faça “sentir bem”, e não com o objetivo maior da glorificação a Deus. Nesse aspecto, deveríamos estar atentos à mensagem de Amós, que nos ensina (Am 4.4-5) que Deus não se impressiona com a liturgia que não é direcionada a ele. Nesse trecho vemos que a adoração realizada em Betel e Gilgal tinha várias características dos cultos contemporâneos: 1. Os locais eram suntuosos e famosos (Betel possuía belas fontes no topo da montanha). 2. A periodicidade dos cultos e possivelmente a frequência era exemplar (diariamente se reuniam). 24
3. As contribuições eram abundantes, superando até os padrões de Deus (de três em três dias traziam as ofertas). 4. O louvor era abundante (sacrifícios de louvor eram ofertados; Am 5.23 e 6.5 falam também do estrépito dos cânticos e da transbordante música instrumental). 5. Havia bastante publicidade (as ofertas eram divulgadas e apregoadas). 6. Havia alegria e deleite geral nos trabalhos (“disso gostais”, diz o profeta). O resultado de toda essa adoração centralizada no homem foi a mão pesada de Deus em julgamento sobre aquela sociedade insensível (com aquele culto, as pessoas, dizia o profeta, “multiplicavam as suas transgressões”). Realmente, à semelhança da Reforma, precisamos resgatar a pregação da soberania de Deus e demonstrar esta doutrina na prática de nossa vida e na das nossas igrejas.
CONCLUSÃO Devemos reconhecer a Reforma como um movimento operado por homens falíveis, mas poderosamente utilizados pelo Espírito Santo de Deus para resgatar suas verdades e preservar a sua Igreja. Não devemos endeusar os Reformadores nem a Reforma, mas não podemos deixá-la esquecida e nem deixar de proclamar a sua mensagem, que reflete o ensinamento da Palavra de Deus para os dias de hoje. A natureza humana continua a mesma, submersa em pecado. Os problemas e situações tendem a se repetir, até no seio da Igreja. O Deus da Reforma fala ao mundo hoje, com a mesma mensagem eterna. Devemos, em oração e temor, ter a coragem de pregá-la e proclamá-la à nossa Igreja. Adaptado de Fides Reforma ta 2/2 (1997)
evangelização | cláudio marra
OPORTUNIDADE E OPOSIÇÃO
Desafos atuais para a
pregação do evangelho
Graças a Deus temos liberdade para pregar o evangelho em nosso país! Oramos agradecidos, mas não aproveitamos a oportunidade que essa liberdade nos proporciona. E enquanto deixamos escapá-la, cresce contra nós a oposição gerada pelo pensamento da época. Aí nos acomodamos falando dessa oposição e não saímos do lugar. Mas o povo de Deus em outras épocas não teve essa liberdade e ainda teve de lidar com forte oposição. Se a reação tivesse sido o imobilismo, a Igreja não estaria mais aqui. Então a nossa existência como Igreja é um desao para que encaremos a oportunidade e a oposição.
Parecem dônios Gaio e Aristarco, companheiros desafios opostos. Muitas vezes não de Paulo. Querendo este apresentarsabemos lidar com elas. O apóstolo Paulo se ao povo , não lhe permitiram os teve em Éfeso uma experiência que, discípulos. Também asiarcas, que eram como poucas, nos mostra o seu modo amigos de Paulo, mandaram rogar-lhe exemplar de lidar com oportunidade e que não se arriscasse indo ao teatro” oposição. Demétrio, que fazia nichos (At 19.28-31). A massa ficou gritando de prata da deusa Diana, viu o efeito “... por espaço de quase duas horas : devastador que a pregação do evangelho Grande é a Diana dos efésios!” (v. 34). causava na idolatria e tratou de agitar Aproveitando o cansaço causado os artífices contra Paulo (At 19.25-27). por tanta gritaria, o escrivão da cidade O evangelho estava minando o dissolveu a assembleia. Quem quisesse comércio e o culto pagão. Demétrio que fosse procurar seus direitos na justiça fez um forte apelo e sua eloquência funcionou: “Ouvindo isto, encheram-se (19.35-40). “Cessado o tumulto, Paulo de furor e clamavam: Grande é a Diana mandou chamar os discípulos, e, tendodos efésios! Foi a cidade tomada de os confortado, despediu-se, e partiu para confusão, e todos, à uma, arremeteram a Macedônia” (At 19.1-41; 20.1). Ufa! Essa foi por pouco! para o teatro, arrebatando os maceOportunidade e oposição.
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evangelização I. Oportunidade e oposição em Éfeso O apóstolo Paulo demonstrou que já havia aprendido a lidar com oportunidade e oposição . Ele declara em 1Coríntios 16.9 que pretendia ficar em Éfeso até o Pentecostes, por isso concluímos, com a leitura de Atos 19, que, ao escrever 1Coríntios, ele ainda não passara por aquele perigo naquela cidade. Passara por outros. Ainda em 1Coríntios ele fala de lutar com feras em Éfeso (1Co 15.32). É fato que, desde o início ali, Paulo enfrentou resistência. De acordo com Atos 19, tendo chegado a Éfeso o apóstolo passou três meses falando na sinagoga. Boa oportunidade, mas os “empedernidos e descrentes” logo se manifestaram, “falando mal do Caminho” (19.9). Essa oposição conduziu ao afastamento do apóstolo da sinagoga e ao início das reuniões dos cristãos na Escola de Tirano e a novas conversões. As dificuldades continuaram. Exorcistas ambulantes pretendiam ganhar dinheiro usando o nome de Jesus e o de Paulo. Mas o seu plano não funcionou e sua derrota e vergonha pública (19.13-16) deram oportunidade a que o nome de Jesus fosse ainda mais engrandecido. “Assim, a palavra do Senhor crescia e prevalecia poderosamente” (19.20). É possível que a essa altura dos eventos o apóstolo tenha escrito 1Coríntios. E então, quase ao encerrar a carta, ele declara: “Ficarei ... em Éfeso até ao Pentecostes; porque uma porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu; e há muitos adversários” (1Co 16.5-9). Oportunidade e oposição .
Uma porta grande e oportuna, de um lado: o momento e as condições favoráveis para o cumprimento de seu ministério de proclamação do evangelho; do outro, a insistente oposição: adversários
fazendo fila para derrotá-lo, por causa há muitos adversários”. Não haveria momento mais apropriado para se usar do evangelho. Paulo não explica quais oportunidades uma conjunção adversativa. A palavra tinha em mente. Mas concluímos de mas caberia logicamente aí. Porém, sua construção verbal no verso 9 que a para Paulo, onde começa a oposição porta era ampla e continuava aberta. E não termina a oportunidade. A oposição vimos acima como a oposição agiu para apresenta novas oportunidades. Essa postura do apóstolo não derrubá-lo. Mais tarde, em outra carta aos Coríntios, Paulo se refere à experiência resultava apenas de seu otimismo ali com palavras muito dramáticas: “... natural, de sua agressividade inata. Ele não queremos, irmãos, que ignoreis a sabia ter sido escolhido por Cristo para natureza da tribulação que nos sobreveio a pregação do evangelho (Gl 1.15-16) e na Ásia, porquanto foi acima das nossas separado por ordem do próprio Espírito forças, a ponto de desesperarmos até da para essas viagens missionárias (At 13.1-3). Em 2Coríntios ele escreveu: “... própria vida” (2Co 1.8). Observe o modo de Paulo lidar com a quando cheguei a Trôade para pregar o oposição, mesmo violenta e inteiramente evangelho de Cristo ... uma porta se me irracional. Ele quis comparecer diante da abriu no Senhor ...” (2Co 2.12-13). As massa enlouquecida para falar ao povo. portas, as oportunidades, eram no Senhor, Seus companheiros o impediram, o que e do Senhor, por isso ele não recuaria, não deve ter sido fácil. É que, para o nem para salvar a própria vida (At 20.24). apóstolo, oposição não era motivo para partir, mas razão para ficar. Afinal, o II. Oportunidade e oposição em nosso Espírito Santo estava agindo em Éfeso, tempo Ao longo de sua história, a igreja tem desde os primeiros momentos em que o evangelho foi pregado ali. Doze homens enfrentado oportunidade e oposição , com foram batizados em nome de Jesus e maior ou menor confiança, com maior ou receberam o Espírito logo no primeiro menor sucesso. E nós também devemos momento (At 19.5-7). A pregação de hoje tomar conhecimento de nossas três meses na sinagoga resultou na oportunidades e de toda a oposição. conversão de um grupo que, somado aos As portas estão por toda a parte, é doze iniciais, mudou-se para a Escola de preciso reconhecê-las. Mas também Tirano e continuou a se desenvolver. Os será necessário saber de que modo o incrédulos, judeus e gentios, começavam adversário quer hoje barrar o progresso a se incomodar. Satanás, temendo a do evangelho e manter o povo nas trevas. perda de espaço numa sociedade até Será impossível no espaço de que então mergulhada nas trevas, usou os dispomos aqui abordar todas as formas “exorcistas ambulantes” para lançar de oposição que o cristianismo enfrenta descrédito sobre o cristianismo. Mas o em nossos dias. Por isso separei quatro evangelho progredia e o nome de Jesus era adversários atuais do evangelho. São cada vez mais engrandecido. Paulo então eles o Secularismo, o Relativismo , o via a oposição como sinal de oportunidade. Empirismo e o Hedonismo. É por isso que o apóstolo escreveu A. O Secularismo aos Coríntios: “... uma porta grande e oportuna para o trabalho se me abriu; e O Secularismo é praticado por aqueles há muitos adversários.” Ele não diz, “ mas que orientam a sua vida pelos valores 26
evangelização B. O Relativismo aceitos pela sua época. Preocupam-se com o dia a dia, com o que é palpável, Um segundo adversário é o chamado com emprego, com comer e dormir, com Relativismo, que nega a existência de casar ou ficar solteiro, com comprar e uma verdade absoluta. Pessoas podem com vender. Preocupam-se com tudo ter tido isoladamente essa convicção ao que ocorra aqui desde o nascimento longo da História, mas em nossos dias o até a morte. Até aqui eles se parecem Relativismo tomou conta da sociedade. com os crentes, mas a diferença é que Todos falam em minha verdade, sua para os secularistas isso é tudo. Alguns verdade como demonstração máxima rejeitam que Deus exista, bem como de entendimento da realidade. Daí todo o sobrenatural. Outros secularistas resulta o Pluralismo, para o qual todas declaram crer em Deus, mas não o levam as religiões são igualmente válidas. E é a sério. São dados a um misticismo claro que, para uma sociedade assim, é distorcido e valorizam a fé, mas não a fé insuportável ouvir um cristão anunciar salvadora colocada em Cristo. Valorizam que Jesus é a verdade. O único caminho a fé por si mesma, a fé na fé. para Deus (Jo 14.1-6). Uma proclamação E aí começa a oposição ao assim, pensam os relativistas, não deve cristianismo. Por negar qualquer deus ou ser apenas rejeitada, mas combatida e por idolatrar a própria fé, o Secularismo seus proclamadores silenciados. Porém, faz pouco caso da pregação cristã a oportunidade para se alcançar os e despreza as nossas tentativas de relativistas se encontra logo na própria abordagem. Mas essa oposição não formulação de seu credo. Quando dizem deve fazer a igreja desanimar. Essa gente que não há verdade absoluta estão dedicada a crenças que logo caem de declarando que essa própria afirmação moda precisa ser confrontada com a não merece crédito e um caminho Verdade Eterna. “... que aproveitará o se abre para a confrontação cristã a homem se ganhar o mundo inteiro e respeito da verdade. perder a sua alma?” (Mt 16.26) Aí está De novo, porém, a igreja tem de lidar uma oportunidade para a igreja. com o crente mundano, que tem horror E ainda enfrentamos o Secularismo quando os mestres da igreja insistem em nosso próprio meio . Trata-se de uma em denunciar o seu erro. Ele rejeita tal contradição, mas o crente mundano pregação e ensino como intolerante, absorve os valores deste século, em como se fosse virtude tolerar o mal. Se o detrimento do ensino das Escrituras. Diz pastor começar a corrigir letras de hinos crer em Deus, mas não consulta a sua e cânticos – se é que ele faz isso – eles Palavra e, se a consulta, não a segue e, vão se mostrar no mínimo impacientes. se a segue, é só quando lhe convém (Mt Essa preocupação com a verdade lhes 7.24-27). Confia na sua religião, confia parece inaceitável. Outros podem querer em ser assíduo aos trabalhos da igreja, praticar uma espécie de ecumenismo, confia que dar o dízimo é como pagar não por amor à unidade do corpo de um plano de aposentadoria. Acha que Cristo, mas por não ver diferença entre vai para o céu, mas o que mais deseja sistemas doutrinários que, na verdade, mesmo é se dar bem aqui. É o secularista se opõem. Esses são os relativistas, que prático, que, com sua vida, se opõe ao se opõem ao evangelho e precisam ser evangelho e precisa ser confrontado com confrontados com a Palavra de Deus (Jo a Palavra de Deus (Rm 12.1-2). 17.15-17). “... do modo por que Janes e 27
Jambres resistiram a Moisés, também estes resistem à verdade” (2Tm 3.8); “Tu, porém, permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o aprendeste” (2Tm 3.14).
C. O Empirismo Todas as novas respostas, que o ser humano foi propondo ao longo dos séculos para explicar o sentido da sua existência, surgiram primeiramente do fracasso das propostas anteriores. Se respostas satisfatórias tivessem sido dadas, o ser humano não buscaria outras. Na verdade, a perfeita resposta existe na Escritura (Jo 8.32). Mas aceitála está fora de cogitação para pessoas sem Deus. O ser humano rejeita a Escritura e sonda sua própria experiência como fonte de informação a respeito da verdade e do sentido da vida (Pv 21.2). Então a mensagem salvadora de Cristo é confrontada com experiências pessoais. Na verdade, a mídia apresenta experiências ocorridas nos mais diferentes ambientes religiosos como evidência de que o conteúdo da fé não importa. Jesus está ajudando os crentes do mesmo modo que o candomblé está ajudando seus adeptos, enquanto outros ainda experimentam os florais de bach ou a meditação transcendental e estão todos se dando bem. Por que discutir religião? A experiência de todos é válida, diz o Empirismo, e com isso se opõe ao evangelho que prega a verdade objetiva da Escritura acima e além da experiência pessoal, até mesmo contra ela (Jr 17.9). Mas é exatamente por isso que a pregação do evangelho é ainda mais necessária. Porque a verdade é objetiva e absoluta (2Tm 3.16-17; Jd 1.3), experiências que a contradizem tem de ser denunciadas como inadequadas para apontar o sentido da vida.
evangelização O culto da experiência está mais forte em nosso próprio meio do que sequer desconfiamos. A Palavra é rejeitada pelos crentes que confiam mais na sua própria experiência do que na Escritura, mesmo que não admitam isso. O fato é que não avaliam e interpretam suas experiências religiosas pela Escritura, mas avaliam a Escritura à luz de suas experiências. Essa postura vem causando há décadas divisões em nosso meio. E mesmo onde a igreja não se divide, ela certamente ficará enfraquecida pela oposição do Empirismo de muitos crentes. Uma igreja assim não prega o evangelho. Só “dá testemunho”.
D. O Hedonismo Hedonismo é o nome que se dá à corrente para a qual a busca do prazer é o alvo máximo do ser humano. Aliás, a nossa cultura virou uma corrida em busca do prazer e da felicidade. Embora às vezes pareça, ocristianismo não é um desmancha prazeres. Deus mesmo nos fez sensíveis ao prazer e ele também criou o que nos dá prazer . Por exemplo, comeremos qualquer coisa se estivermos esfomeados, mas Deus fez os alimentos com sabor agradável. Ele é definitivamente a favor do prazer. Porém, enquanto as Escrituras ensinam que o fim principal do ser humano é glorificar a Deus e para sempre ter prazer nele (Is 43.7; 1Co 10.31; Ef 1.5-6), o catecismo hedonista ensina que o fim principal do ser humano é ter prazer, venha ele de onde vier, com ou sem Deus. Isso só pode dar mal resultado (Pv 18.2). Por exemplo, o Roberto Carlos cantava que “o que é bom, é imoral, é ilegal, ou engorda”. Como pode ele dizer que é bom algo que engorda e, potencialmente, mata? É que bom para ele é o que dá prazer a curto prazo, mesmo que faça
mal a longo prazo. O importante é ser nem para curtir as piadas do pastor, feliz, nem que seja morto. nem sequer suas habilidades como Uma sociedade hedonista não vê orador. Não nos reunimos para curtir graça nenhuma no evangelho, que o excelente coral da igreja. Não nos prega a negação pessoal e a busca da reunimos para sentir fortes e prazerosas santidade pessoal, antes que a busca da emoções com as letras melosas de felicidade. Ela vai combatê-lo como coisa muitos hinos e cânticos. Não nos medieval, ultrapassada, obscurantista. E reunimos pelo prazer que isso nos dá. por isso mesmo precisa ouvi-lo e saber Nosso prazer no culto precisa derivar que Deus não é um desmancha prazeres. de adorarmos a Deus como lhe agrada. Ele mesmo inventou o prazer que agrada Ele é toda a assistência – o público – e os nossos sentidos, mas ele faz mais nós fazemos a apresentação, de modo do que isso, quando nos regenera e nos que lhe dê prazer. Senão: “Aborreço, capacita a um nível de prazer espiritual desprezo as vossas festas e com as que só se satisfaz na comunhão do vossas assembleias solenes não tenho próprio Deus e da sua Palavra: “Terei nenhum prazer” (Am 5.21). prazer nos teus decretos; não me Conclusão esquecerei da tua palavra” (Sl 119.16); “... Deus dá sabedoria, conhecimento e Há mais adversários ao evangelho prazer ao homem que lhe agrada” (Ec em nossos dias do que os apontados 2.26). aqui. Dentro e fora da igreja. Mas temos Os que pretendem ser cristãos e uma lição a aprender com Paulo: “... uma hedonistas ao mesmo tempo deverão porta grande e oportuna para o trabalho também ser confrontados pela Escritura, se me abriu; e há muitos adversários”. porque não dá certo buscar o seu próprio A oposição não o desanimava, mas prazer antes que o de Deus: “... assim o impulsionava para aproveitar novas eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir oportunidades. sobre eles o que eles temem; porque Paulo viu na oposição nova clamei, e ninguém respondeu, falei, e oportunidade para a pregação do não escutaram; mas fizeram o que era evangelho. O que explica seu otimismo mau perante mim e escolheram aquilo e energia é a confiança no poder de em que eu não tinha prazer” (Is 66.4). E quem o elegeu, chamou e comissionou. o que dá prazer a Deus? Será o culto que “... aprendi a viver contente em toda lhe oferecemos? Pode ser, mas não antes e qualquer situação ... tudo posso de nossa obediência: “Tem, porventura, naquele que me forta lece ” (Fp 4.11o SENHOR tanto prazer em holocaustos e 13). De acordo com Hebreus 12.3, sacrifícios quanto em que se obedeça “Considerai (...) atentamente, aquele à sua palavra? Eis que o obedecer é que suportou tamanha oposição dos melhor do que o sacrificar, e o atender, pecadores contra si mesmo, para que melhor do que a gordura de carneiros” não vos fatigueis, desmaiando em vossa (1Sm 15.22). Por isso, os que acham alma”. Jesus nos dá o modelo e o poder que o culto tem de ser do jeito que eles para continuarmos a enfrentar, com gostam, precisam aprender que o prazer sucesso, toda a oposição ao evangelho, em nosso culto deve ser primeiro o prazer vendo nas próprias adversidades nova do próprio Deus . Não nos reunimos para oportunidade para o cumprimento do nos sentirmos bem conosco mesmos, nosso chamado. 28
a igreja no mundo | heber jr.
VIVENDO “JÁ” COM VISTAS AO “AINDA NÃO” O cenário brasileiro tem experimentado um inuxo impressionante de livros que abordam o tema da cosmovisão. Simplicando um assunto bastante complexo, cosmovisão diz respeito a pressuposições que todo o ser humano possui (esteja ele consciente ou não) que residem em nosso mais interior (coração) formando assim uma orientação de vida, um comprometimento com verdades pelas quais se vive e morre. Trata se de um conjunto de motivações, crenças, certezas, valores e ideais que formam o instrumento interpretativo da realidade, além de ser a base de nossas ações e decisões.
Devido à tradição reformada refletir sobre esse assunto há mais tempo do que qualquer outro segmento da cristandade (com nomes como James Orr, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd, Francis Schaeffer, etc.), os autores modernos tratam de certos marcos históricos do cristianismo como fundamentos da cosmovisão reformada: criação, queda e redenção. Esse tripé tem sido uma das características mais comuns entre os livros que tratam de cosmovisão. Não que outros cristãos não afirmem tais acontecimentos na história da humanidade, mas são os reformados que costumam enfatizar
com maior frequência a importância de considerar a praticidade desses eventos para o nosso dia a dia. Esses pilares históricos não devem ser vistos como meros conceitos ou categorias intelectuais. Não se trata de proposições atemporais. A cosmovisão é uma história, a história da humanidade, a nossa história. Esse elemento existencial não pode ser esquecido no estudo de cosmovisões. Sendo assim, é quando encarnamos as verdades dessa história, e vivemos conscientes dela, que nossa cosmovisão se coaduna com a revelação bíblica. Viver à luz da criação significa, por exemplo, relacionar-se com as 29
A cosmovisão é uma história, a história da humanidade, a nossa história. Esse elemento existencial não pode ser esquecido no estudo de cosmovisões.
vida cristã (...) a consumação é o completar da redenção, mas não é para esta vida e não é operada pela igreja.
pessoas mais complicadas à luz do fato de ainda serem imagem e semelhança de Deus. Viver à luz da queda implica em não nutrir sonhos utópicos resultantes do esforço humano para construir uma sociedade melhor. Viver à luz da redenção envolve a noção de uma redenção tão abrangente que afeta pessoas não só em sua espiritualidade, mas em todas as áreas de sua vida, inclusive o seu habitat . Na área da redenção é que calvinistas têm o perigo de comunicar uma mensagem indevida. Se, por um lado, atacam corretamente o pessimismo do mundo evangélico em não integrar a fé às várias áreas de nossa atuação secular, por outro lado, correm o risco de criarem uma falsa expectativa de nossa atuação no reino de Deus. Desde a célebre obra de H. Richard Niebuhr, Cristo e Cultura , os calvinistas têm sido descritos como possuindo uma visão transformacionista da cultura. De acordo com Niebuhr, os calvinistas não são essencialmente contra a cultura, nem a recebem indiscriminadamente, não colocam a fé em um patamar acima da vida comum, nem mantém a fé e a vida comum em constante tensão. Eles se colocam como agentes transformadores da cultura . Autores modernos têm perpetuado essa leitura de Niebuhr e falado da importância de
uma fé holítisca no engajamento cultural. Os proponentes dessa visão falam de ir além de envolvimento cultural.1 Os cristãos devem trazer os efeitos da obra redentora de Cristo para as várias esferas da vida. Precisamos de cautela para não sermos nem pessimistas demais, nem otimistas demais. Aos cristãos cabe o redirecionamento da cultura em um rumo redentivo que a restaure, o máximo possível, dos efeitos do pecado. Isso não significa que nossa postura é de “transformação”, uma palavra otimista demais. Nossa atitude é de Reforma, participando dos movimentos de Deus em restaurar certas áreas da sociedade inclinada ao mal. Podemos ser instrumentos de Deus para frear a derrocada moral e espiritual como foram os reis de Judá que operaram Reforma após períodos de grande incredulidade e vileza (Ex: Asa, Ezequias, Josias). A Reforma Protestante do século 16, o Grande Despertamento na América do Norte colonial e Inglaterra do século 18, foram movimentos em que Deus freou a decadência de um povo e permitiu que certas áreas da sociedade fossem reformuladas segundo o padrão bíblico. A linguagem de Reforma impede que sejamos pessimistas quanto ao que Deus pode fazer neste mundo antes da segunda vinda de Jesus. Todavia, para que não sejamos otimistas demais, faz-se necessário acrescentar ao tripé reformado um quarto pilar: o da consumação. Tal inclusão ajuda-nos a separar o “já” e o “ainda não” da história da redenção. Isto é, a consumação é o completar da redenção, mas não é para esta vida e não é operada pela igreja. Se, por um lado, somos e devemos ser “sal da 30
terra” (Mt 5.13) no sentido de contribuir para o retardamento da putrefação de nossa sociedade – esse aspecto está de acordo com a visão transformacionista –, por outro lado, a parábola do joio (Mt 13.24-30, 36-43) é uma demonstração de que a construção de uma sociedade com a consequente retirada do mal no mundo será uma realização de Deus por intermédio dos seus anjos ( isto é, sem a partici pação do ser humano ) e não ocorrerá nesta vida (como é o anseio de muitos seres humanos). David VanDrunnen faz uma ressalva à visão transformacionista de representantes modernos como Henry R. Van Til (O Conceito Calvinista de Cultura), Cornelius Plantinga (O Crente no Mundo de Deus) e Albert M. Wolters ( A Criação Restaurada). Ele chama atenção para um elemento preocupante da escatologia dos transformacionistas: “Os autores transformacionistas tendem a colocar muita ênfase no caráter já manifesto do reino escatológico. Embora eles obviamente reconheçam que Cristo está voltando e que somente então é que todas as coisas serão perfeitamente restauradas, é curioso que a sua comum divisão tripartida da história em criação, queda, e redenção não inclua a quarta categoria de consumação. Lendo nas entrelinhas, eu sugiro que o relacionamento muito solto entre a transformação da cultura agora e a transformação final a ser realizada no retorno de Cristo contribua substancialmente para a ausência dessa quarta categoria… [Para eles] A obra de trazer a realização perfeita do reino escatológico na presente terra começa já nos esforços culturais do cristão aqui e agora. Consumação parece ser o clímax de um processo de redenção que já está
vida cristã a caminho ao invés de um evento único e radical na história.”2 VanDrunnen acertadamente nos lembra do aspecto radical e único da consumação. Cristo não irá só completar o que começou. Ele irá mudar tudo radicalmente. Após o amor esfriar, a apostasia se alastrar, e este mundo ser permeado por um governo maligno, Deus irá eliminar todo o mal com fogo (2Pe 3.10-13) e para o fogo (Ap 21.10) a fim de criar Novo Céu e Nova Terra. A ênfase no envolvimento com a cultura, por parte dos transformacionistas, é positiva. Afinal, não fomos remidos para vivermos em um gueto cristão, nos relacionando somente com crentes, realizando tarefas eclesiásticas, criando uma cultura separatista. Porém, nós não fomos chamados para remir a cultura que, de acordo com a Escritura, tende a piorar devido à apostasia. Somos instrumentos para remir pessoas, isso sim. A mensagem de Paulo no Areópago não transformou a cultura de Atenas, mas alcançou pessoas. Só Deus, e isto na consumação, é que promoverá a extinção das culturas pecaminosas e a santificação dos costumes e do conhecimento humano. Só Deus conseguirá plena redenção da cultura. Kevin DeYoung, avaliando a perspectiva missiológica da igreja moderna, afirma 1
“De vez em quando os cristãos dizem que nosso alvo principal é mudar o indivíduo, não o sistema. O dualismo persiste: de algum modo nossa vida espiritual pode ser separada de nossa vida cultural, e isso significa que podemos trabalhar no sistema aceito.” Walsh e Middleton, A Visão Transformadora, p. 89. Essa forma de colocar o problema demonstra o espírito revolucionário de subverter o sistema, o qual é próprio
que o que “está faltando na maioria das conversas sobre o reino é alguma doutrina de conversão ou regeneração. O reino de Deus não é essencialmente uma nova ordem da sociedade. Isso era o que pensavam os judeus nos dias de Jesus… Creio que entendo o que as pessoas querem dizer quando falam sobre redimir a cultura ou ser parceiras de Deus na redenção do mundo, mas o fato é que precisamos encontrar outra palavra. A redenção já foi realizada na cruz. Não somos parceiros na redenção de nada. Somos chamados a servir, dar testemunho, proclamar, amar, fazer o bem a todos e embelezar o evangelho com boas obras, mas não somos parceiros de Deus na obra da redenção. De modo similar, não há um texto nas Escrituras que diga que os cristãos constroem o reino. Ao falar sobre o reino, o Novo Testamento usa verbos como entrar, buscar, anunciar, ver, receber, olhar e herdar… no Novo Testamento nunca somos aqueles que trazem o reino.”3 Essa observação é muito perspicaz. O problema fundamental dessa tendência, de acordo com DeYoung, é que eles “estão repletos de ‘já’ e carentes de ‘ainda não’ em sua escatologia.”4 Creio que o equilíbrio foi estabelecido pelo nosso Salvador nas parábolas do reino em Mateus 13. Se, por um lado, a parábola do joio nos apresenta uma
redenção completada pelo Salvador sem a nossa participação, por outro lado temos as parábolas do grão de mostarda e do fermento (Mt 13.31-33) que falam do crescimento e da influência dos princípios do reino na sociedade. Não podemos ser extremados em nosso entendimento escatológico. Toda escatologia que enfatiza só o que Deus já fez, e está fazendo, produz uma cosmovisão ufanista demais. Toda escatologia que destaca o que Deus irá fazer na segunda vinda de seu Filho, sem levar em conta a redenção que se iniciou na primeira vinda, gera uma visão pessimista do crente no mundo. Precisamos de equilíbrio em nossa cosmovisão. Precisamos viver o “já” com vistas ao “ainda não”.
dos autores. David Vandrunnen. “The Two Kindgoms: A Reassessment of the Transformationist Calvin”, Calvin Theological Journal 40, no. 2 (nov 2005), p. 252. 3 Kevin DeYoung e Tedd Kluck, Por que amamos a igreja (São Paulo: Mundo Cristão, 2010), p. 50, 51. 4 DeYoung e Kluck, Por que amamos a igreja, p. 40.
O Dr. Heber Carlos de Campos Jr . é bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano JMC. Mestre em História da Igreja pelo CPAJ – Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper e Doutor em Teologia Histórica pelo Calvin Theological Seminary. Publicado originalmente em http://voltemosaoevangelho.com/ blog/2014/11/vivendo-ja-com-vistasao-ainda-nao/
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A redenção já foi realizada na cruz. Não somos parceiros na redenção de nada. Somos chamados a servir, dar testemunho, proclamar, amar, fazer o bem a todos e embelezar o evangelho com boas obras...