BRUNA BALLAROTTI
O MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA E A CRIAÇÃO DO SUS: Uma História na Luta pela Saúde
Trabalho apresentado à Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a conclusão do Curso de Graduação em Medicina.
Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina 2010
BRUNA BALLAROTTI
O MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA E A CRIAÇÃO DO SUS: Uma História na Luta pela Saúde
Trabalho apresentado à Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito para a conclusão do Curso de Graduação em Medicina.
Presidente do Colegiado: Prof. Dr. Carlos Eduardo A. Pinheiro Professor Orientador: Luiz Roberto Agea Cutolo
Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina 2010
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DEDICATÓRIA
“Sonhar Mais um sonho impossível Lutar Quando é fácil ceder Vencer O inimigo invencível Negar Quando a regra é vender Sofrer A tortura implacável Romper A incabível prisão Voar Num limite improvável Tocar O inacessível chão É minha lei, é minha questão Virar esse mundo Cravar esse chão Não me importa saber Se é terrível demais Quantas guerras terei que vencer Por um pouco de paz E amanhã, se esse chão que eu beijei For meu leito e perdão Vou saber que valeu delirar E morrer de paixão E assim, seja lá como for Vai ter fim a infinita aflição E o mundo vai ver uma flor Brotar do impossível chão” Chico Buarque
“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” Karl Marx
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente gostaria de agradecer ao meu pai e a minha mãe, Ariclenis e Inês, por serem exemplos de integridade, amor, solidariedade, compaixão, fraternidade e alegria. Agradecer também por terem me incentivado desde sempre a tecer meus próprios caminhos e por terem me apoiado incondicionalmente em minhas decisões, por mais incomuns que fossem. Agradeço meu namorado, Felipe. Um companheiro de militância, meu melhor amigo, meu grande amor. Obrigada por tantos momentos de reflexão compartilhados. Obrigada pelo apoio, pelo companheirismo, pela paciência, por todo carinho e paixão nesses anos. Quero agradecer a Didi, grande companheira de militância em todo nosso percurso de anos de DENEM. Foram incontáveis horas de reflexão e debate que a confecção desse TCC proporcionou. Poder compartilhar mais esse processo contigo foi muito especial. Obrigada pela amizade e pelo companheirismo desde sempre. Agradeço Didi, Denize e Julia por compartilharmos esse apreço, quase incontrolável, pela história do Movimento Estudantil. Agradeço também pela contribuição direta para com o registro histórico do Movimento Estudantil de Medicina. Agradeço Armando, Alcindo, Cacá, Giliate e Denize pela disponibilidade em contribuir com o projeto de pesquisa sobre a relação do Movimento Estudantil de Medicina com a luta da saúde nesses últimos 25 anos, da qual esse TCC faz parte. Agradeço a Simone, Aline Lino, Carla, André, Fabíola e Ana Laura por todo apoio e incentivo que recebi durante o curso, incluindo o TCC. Pela amizade, pelo companheirismo e pela diversão garantida também, obrigada. Agradeço Esteban, Kariny, Ronaldo, Halana e Igor, figurinhas que me receberam caloura no CALIMED. Aos meus companheiros da chapa Libertária e da gestão A_colher, pelo convívio e aprendizado em conjunto. Agradecer o carinho dessa nova geração que constrói hoje o CALIMED na figura do João Paulo Garibaldi.
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Agradeço, na figura da geração “fênix” da regional, todos amigos e companheiros de luta da Regional Sul-1 da DENEM, locus privilegiado de formação política nesses anos todos. Agradeço a todos meus companheiros de gestões da DENEM, 2006, 2007 e 2008 pelas diferentes experiências vividas em conjunto. Foram anos de muita luta e de muito aprendizado. Agradeço também às amizades que fizemos nesse período de movimento estudantil, do Rio Grande do Sul ao Paraná, a São Paulo, ao Rio de Janeiro, a Bahia, a Pernambuco... Quero agradecer especialmente a um grupo de amigos médicos/futurosmédicos revolucionários cujo companheirismo extrapolou os limites do movimento estudantil. O apoio de vocês tem sido “inominável”. Quero agradecer ao meu orientador Cutolo, que desde lá no início do curso, quando era meu supervisor das atividades na ULS de Carianos, demonstrou ser um exemplo de profissional, ético, humano, comprometido. Foram muitas muit as as reflexões compartilhadas nesses anos em que convivemos na UFSC. Agradeço especialmente por ter aceitado o desafio de me orientar em um TCC cujo tema foge um pouco do esperado para um TCC de Medicina. Quero agradecer ao Marcão, mestre e companheiro, por tantos momentos de aprendizado nesses anos na UFSC. Quero agradecer especialmente pela provocação que me fez durante uma aula no Internato, sobre a história do Movimento Estudantil de Medicina, que foi um dos disparadores para que eu optasse por pesquisar nessa área. Agradeço também por ter me proporcionado a oportunidade de atuar enquanto educadora no curso técnico em Saúde Comunitária no Iterra, Escola Josué de Castro em Veranópolis-RS. Agradeço aos meus companheiros do MST das turmas de saúde de 2006 e 2009 com os quais eu com certeza mais aprendi do que ensinei. É impossível citar a todos, mas gostaria de agradecer a todas as pessoas, professores, servidores, estudantes, lutadores e lutadoras, que de alguma forma contribuíram para esse TCC e para minha formação em Medicina como um todo, nesses sete anos. Muito obrigada.
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo descrever a trajetória do Movimento Estudantil de Medicina enquanto ator social na luta pela saúde, a partir de uma narrativa histórica que tem como recorte um período que vai desde a origem deste movimento, no final do século XIX, até o momento de criação da sua entidade representativa, a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), organizada no final da década de 1980. O resgate histórico foi feito através de pesquisa bibliográfica, de análise documental dos arquivos preservados pela DENEM, e de entrevista semi-estruturada à militante do período correspondente na história da executiva. A narrativa histórica, criada com base nos dados da pesquisa, demonstra que durante a década de 1970 o Movimento de Área se consolidou enquanto instrumento de resistência e organização estudantil, frente às conseqüências da Reforma Universitária de 1968 e do AI-5 durante a Ditadura Militar. O trabalho destaca também, como elemento constituinte do MEM, o seu protagonismo no processo de formulação e construção do SUS, junto ao Movimento de Reforma Sanitária do final da década
de
1970
até
o
fim
da
década
de
Palavras-chave: Palavras-chave: História, Sistema Si stema Único de Saúde, Reforma dos Serviços de Saúde.
1980
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ABSTRACT
This work has as objective to describe the Medicine Students Movement (MEM, in portuguese) trajectory as a social actor in the struggle for health, using a historical narrative which has as a subject the time period that goes from the origins of this movement, at the end of 19th century, to the moment of creation of its representative entity, the National Executive Direction of Medicine Students (DENEM, in portuguese), created at the end of the 1980 decade. The historical research was made through bibliographical research, analysis of documents preserved by the DENEM, and a semi-structured interview made to militants from the correspondent time period in the Executive Direction history. The historical narrative created using the researched data demonstrates that, during the 1970 decade, the specific area movement consolidated itself as an instrument of resistance and students’ organization, in opposition to the consequences of University Reform Act of 1968 and the Institutional Act 5 (AI-5 in portuguese) during the Military Dictatorship. This work also brings attention, as a constitutive element of the MEM, to its protagonism in the making of the Single Health System (SUS, in portuguese), together with the Health Care Reform Movement, from the end of
the
1970
decade
until
the
end
of
Keywords: History, Single Health System, Health Care Reform.
the
1980
decade.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABEM
Associação Associação Brasileira de Educação Médica
ABRASCO
Associação Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva
AI-5
Ato Institucional número 5/1968
AIS
Ações Integradas de Saúde
ANDES ANMR
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior Associação Associação Nacional dos Médicos Residentes
CA
Centro Acadêmico
CALIMED
Centro Acadêmico Livre de Medicina
CASL
Centro Acadêmico Sarmento Leite
CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
CEPSH
Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos
CLAEM
Congresso Latino americano de Estudantes de Medicina
CNRS
Comissão Nacional da Reforma Sanitária
CNS
Conferência Nacional de Saúde
CINAEM COBREM
Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina
CONEEM
Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Medicina
CONUNE
Congresso da União Nacional dos Estudantes
CPMF CUT
Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira Central Única dos Trabalhadores
DA
Diretório Acadêmico
DABT
Diretório Acadêmico Barros Terra
DCE
Diretório Central dos Estudantes
DEE
Diretório Estadual dos Estudantes
DENEM
Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina
DNE
Diretório Nacional dos Estudantes
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DOI-CODI ECEM
Destacamento Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna Encontro Científico dos Estudantes de Medicina
ENE
Encontro Nacional dos Estudantes
EREM
Encontro Regional dos Estudantes de Medicina
FASUBRA FEAB
Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil
IFMSA
International Federation of Medical Students Associations
ME
Movimento Estudantil
MEC
Ministério da Educação
MEM
Movimento Estudantil de Medicina
MEP
Movimento de Emancipação do Proletariado
NUTES
Núcleo de Telessaúde
OBAN
Operação Bandeirantes Bandeirant es
OPAS
Organização Panamericana de Saúde
PCB
Partido Comunista Brasileiro
PCdoB
Partido Comunista do Brasil
PCR
Partido Comunista Revolucionário Revolucionário
PES
Planejamento Estratégico e Situacional
PES
Projeto de Educação em Saúde
PT
Partido dos Trabalhadores
PTEM
Proposta de Transformação do Ensino Médico
RUTE
Rede Universitária de Telemedicina
SESAC
Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária
SISNEP SUDS
Sistema Nacional de Informações Sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos Sistema Unificado Descentralizado de Saúde
SUS
Sistema Único de Saúde
TCC
Trabalho de Conclusão de Curso
UEE
União Estadual dos Estudantes
UFBA
Universidade Federal da Bahia
x
UFF
Universidade Federal Fluminense
UFRGS
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFSC
Universidade Federal de Santa Catarina
UNE
União Nacional dos Estudantes
UNEM
União Nacional dos Estudantes de Medicina
USAID
United States Agency for International Development
xi
SUMÁRIO
FALSA FOLHA DE ROSTO....................................................................................................................................i FOLHA DE ROSTO.................................................................................................................................................ii DEDICATÓRIA .......................................................... ........................................................... ................................ iii AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................................... iv RESUMO ............................................................................................................................................................... vi ABSTRACT .......................................................................................................................................................... vii LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS .......................................................................................................... viii SUMÁRIO ............................................................................................................................................................. xi INTRODUÇÃO....................................................................................................................................................... 1 CAPÍTULO 1: CAMINHOS PERCORRIDOS....................................................................................................... PERCORRIDOS....................................................................................................... 5 CAPÍTULO 2: DA ORIGEM DO MOVIMENTO ESTUDANTIL AO SURGIMENTO DAS ENTIDADES ESTUDANTIS ........................................................................................................................ 8 CAPÍTULO 3: O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A DITADURA CIVIL-MILITAR ..................................... 11 CAPÍTULO 4: O SURGIMENTO DOS ENCONTROS CIENTÍFICOS DOS ESTUDANTES DE MEDICINA .......................................................................................................................... 17 CAPÍTULO 5: CONTEXTO GERAL DO MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA NA DÉCADA DE 1980 ................................................................................................................... 20 CAPÍTULO 6: MOVIMENTO DE REFORMA SANITÁRIA, A 8ª CONFERÊNCIA E O MEM ................................................................................................................................................................. 23 CAPÍTULO 7: A CRIAÇÃO DA DENEM ........................................................................................................... 28 CAPÍTULO 8: PRIMEIROS ANOS DE DENEM: ESTRUTURAÇÃO E A CONSTITUINTE .................................................................................................................................................. 33 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................................ 38 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................... 40 NORMAS ADOTADAS ....................................................................................................................................... 42 APÊNDICE 1 ........................................................................................................................................................ 43 APÊNDICE 2 ........................................................................................................................................................ 44
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INTRODUÇÃO
“I. De que serve a bondade Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados aqueles para os quais eles são bons? De que serve a liberdade Se os livres têm que viver entre os não-livres? De que serve a razão Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necessitam? II. Em vez de serem apenas bons, esforcem-se Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade Ou melhor: que a torne supérflua! Em vez de serem apenas livres, esforcem-se Para criar um estado de coisas que liberte a todos E também o amor à liberdade torne supérfluo! Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo um mau negócio.” Bertolt Brecht
A Universidade Federal de Santa Catarina exige, como requisito para aquisição do grau de médico, a elaboração e defesa de uma monografia, o Trabalho de Conclusão de Curso. O estudante, então, deve escolher um tema de seu interesse para esse último e mais importante trabalho da graduação. Tal situação nos remete a refletir sobre quais temas, dentro da ampla área de conhecimento da Medicina, nos despertou apreço e curiosidade. Meu contato com a história do Movimento Estudantil de Medicina não se inicia com a confecção deste trabalho. Ingressei no curso em 2004, e a apresentação de um projeto de
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extensão (Projeto de Educação em Saúde - PES) na Semana de Acolhimento aos calouros, organizada pelo Centro Acadêmico Livre de Medicina (CALIMED), me pescou. Era um projeto com crianças numa comunidade carente de Florianópolis, no Saco Grande, que me permitiu mais contato com o mundo real, com a realidade que a maioria dos brasileiros está exposta, e me permitiu também iniciar estudos na área. Foi meu primeiro contato com as obras do Paulo Freire e com o Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels. A participação no PES me aproximou do espaço do CALIMED, e o CALIMED me incentivou a conhecer os espaços da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), e em julho de 2004 fui ao meu primeiro Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM) em Curitiba. Em um turbilhão de informações e idéias, fui começando a compreender o contexto da saúde no país, o contexto da saúde na vida das pessoas e os determinantes sociais da saúde. De uma formação alienada que temos no Ensino Médio, sem dúvida minha admissão na Universidade foi um divisor de águas em termos de acesso, interpretação e aplicação do conhecimento. Essa autora que vos fala foi descobrir fora das salas de aula sua motivação para se formar médica. Afinal de contas, decidi cursar Medicina porque, além de ser um desafio intelectual, a profissão me permitiria ajudar as pessoas. A maior parte da minha vida morei em Sorocaba – SP e minha família me educou dentro dos valores cristãos de amor ao próximo, de fraternidade, de solidariedade, e acredito que isso é parte importante i mportante da formação do meu caráter . No movimento estudantil descobri que a real forma de “ajudar as pessoas” não se daria através de uma ação individual. É necessário mudar profundamente a estrutura da sociedade em que vivemos. O encontro com o Movimento Estudantil de Medicina (MEM) propiciou não apenas um contato com instrumentos de luta e organização tais quais o CALIMED e a DENEM, mas também um espaço de formação política e militância com o qual assumi compromissos. Estes compromissos me levaram, levaram, inclusive, a postergar postergar o término de minha minha graduação. graduação. No ano de 2008, após dois anos de militância regional, assumi a Coordenação Geral da DENEM e a vaga estudantil no Conselho Nacional de Saúde, em indicação conjunta com a União Nacional dos Estudantes. Foi um ano intenso, tendo na conjuntura do país uma agenda cheia para a saúde no ano em que o SUS completava vinte anos. Em 2008, o movimento estudantil viveu, junto com os diversos atores sociais que constituem os sindicatos, partidos e organizações populares, o fim da CPMF, a crise dos Hospitais Universitários e as mudanças na gestão da
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saúde, com a implantação das Fundações Estatais de Direito Privado em diversos estados do Brasil. Em janeiro de 2009 encerrei a gestão no XXI Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (COBREM) e retornei à Florianópolis para o Internato Médico, última etapa do curso antes da graduação em Medicina. Neste regresso encontrei não apenas o desafio das novas responsabilidades que os internos assumem com os pacientes e o exercício da clínica. Encontrei também o desafio do TCC e vi nele a possibilidade de me despedir do MEM, enquanto estudante, através do registro da origem e a trajetória desse movimento. Assim, a opção por resgatar a história do MEM relacionando-a com a história das políticas de saúde no Brasil teve sua principal motivação no contexto vivido pelo movimento em 2008. Em janeiro daquele ano, o COBREM, encontro que, através de uma metodologia de Planejamento Estratégico, aponta as diretrizes para o trabalho da DENEM no ano de gestão que se inicia, tirou como eixo resgatar e ressignificar o movimento da Reforma Sanitária Brasileira. Para a nossa geração do MEM, após seis anos de Governo Lula e um olhar muito crítico sobre os poucos avanços do Sistema Único de Saúde no país, se fazia necessário repensar sobre a relação do movimento com a pauta da saúde. Realizamos um Seminário em setembro daquele ano com o tema “A Luta pela Saúde: Desafios da Militância após 20 anos de SUS”, onde divergências em torno da atualidade da bandeira do SUS enquanto estratégia para disputar outro modelo de sociedade, produziu um debate bastante rico entre os grupos que disputavam a DENEM. Ao revisitar os clássicos da Reforma Sanitária, observa-se que as referências à participação estudantil neste processo não são poucas. Entretanto, a maior parte da literatura em saúde disponível no Brasil é produzida por outros atores sociais, que privilegiam a trajetória das suas organizações nestes trabalhos. Assim, os estudantes são citados, mas a riqueza da sua participação perde pela falta de foco. Na realidade, o próprio estudo do movimento estudantil se concentra no papel que este desempenhou desempenhou nos anos 60, havendo uma grande lacuna no que se refere à sua atuação política nas décadas de 70 e 80. Estas décadas são justamente o período mais significativo para a concepção do novo modelo de saúde que viria a ser implantado com o SUS. No que se refere ao Movimento Estudantil de Medicina, a produção acadêmica mais importante se concentra em outro período histórico e área: a década de 90, com foco na pauta da Educação Médica. Nesta fase se destaca a Dissertação de Mestrado do ex-Coordenador Geral da DENEM (1991-1992) Rogério Carvalho Santos “Um Ator Social em Formação: da Militância à Descrição e Análise do Processo de Formação
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Médica no Brasil” (SANTOS, 1998), que trabalha o histórico do projeto CINAEM (Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico) e a sua ligação umbilical com o MEM. Frente a esta lacuna, compreendi que cabe ao próprio movimento resgatar e registrar a sua história. Optei então por descrever a trajetória do Movimento Estudantil de Medicina enquanto ator social na luta pela saúde, a partir de uma narrativa histórica que tem como recorte um período que vai desde a origem deste movimento, no final do século XIX, até o momento de criação da sua entidade representativa, a DENEM, organizada no final da década de 1980. Foram de fundamental importância para este trabalho o acervo documental da DENEM e o contato que tive com antigos militantes, que rápidamente acolheram a proposta do trabalho. A dissertação de mestrado da Prof. Mirza Pellicciotta “Uma Aventura Política: As Movimentações Estudantis dos Anos 70” (PELLICCIOTTA, 1997) foi também uma bibliografia valiosa na compreensão do dito Movimento de Área e de seu ressurgimento nos anos 70. Essa monografia está desenhada da seguinte forma: no Capítulo I pretendo detalhar os caminhos percorridos na confecção deste trabalho; no Capítulo II abordo o período de origem do Movimento Estudantil até o surgimento das entidades estudantis, advento do surgimento das Universidades no governo de Getúlio Vargas; no Capítulo III pretendo resgatar a história do ME no período pré-golpe de 1964, bem como durante a Ditadura CivilMilitar e o ressurgimento do Movimento de Área como forma de resistência na primeira metade da década de 1970; no Capítulo IV vou abordar o surgimento dos Encontros Científicos dos Estudantes de Medicina e o teor dos debates realizados no final da década de 1970; no Capítulo V trago elementos do contexto geral do MEM na década de 1980; no Capítulo VI irei estabelecer a relação da 8ª Conferência Nacional de Saúde e a construção do SUS com o MEM; no Capítulo VII tratarei da criação da DENEM em 1986 e sua relação com o contexto de disputa da UNE; finalmente no Capítulo VIII abordarei a estruturação da DENEM nos seus primeiros anos e o impacto dos debates da Constituinte dentro do movimento.
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CAPÍTULO 1 CAMINHOS PERCORRIDOS
Quando defini o tema da monografia, motivada pela importância do resgate histórico dos movimentos sociais e, nesse caso especificamente, do Movimento Estudantil de Medicina, a escolha da abordagem qualitativa de investigação se deu em função do seu objeto de estudo. Não seria possível tratar os dados levantados de maneira objetiva por instrumentos padronizados ou sistematizá-los em estatísticas. Segundo bibliografia (LUDKE 1986, TRIVINOS 1987) a pesquisa qualitativa contempla essa necessidade de analisar os sujeitos e processo das relações, permite descrever fenômenos sociais. A abordagem qualitativa foi, portanto, uma opção epistemológica e dialética para confecção desse trabalho. Na pesquisa qualitativa a amostragem intencional permite ao pesquisador a utilização de pequenas amostras para obtenção de dados porque o pesquisador direciona sua pesquisa aos documentos e sujeitos que acredita serem as melhores fontes de informação para o objetivo de seus estudos. Assim, escolhi como amostragem dessa pesquisa trabalhar com entrevistas e documentos para resgatar a história da DENEM. Para resgatar a história do MEM prévia à criação da DENEM tive como base pesquisa bibliográfica de obras que abordassem história do Movimento Estudantil como um todo, ou história do Movimento da Reforma Sanitária. Não encontrei nenhuma publicação que versasse sobre a história do MEM, especificamente. A proposta do trabalho foi, a partir dos dados pesquisados, de todas as formas elencadas acima, criar uma narrativa histórica sobre a origem e trajetória do MEM. As entrevistas foram realizadas com cinco pessoas que foram militantes da DENEM e desempenharam papéis centrais no seu período. Escolhi cinco presidentes/coordenadores gerais de cinco diferentes períodos desses quase vinte e cinco anos de DENEM. Todos aceitaram prontamente. Pelo curto tempo de pesquisa dessa monografia, que acontece concomitantemente concomitantemente ao nosso n osso Internato Médico, nesse processo de seleção eu exclui potenciais entrevistados que, pela minha experiência nos anos anteriores de DENEM, haviam sido convidados para atividades dos encontros e congressos mas que costumavam não participar pela dificuldade de agenda. Como essa exclusão não acarretava significativamente no conteúdo dos relatos, considerei adequado convidar outros sujeitos, também lideranças, do
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mesmo período. Três das entrevistas foram realizadas presencialmente, em Florianópolis, Porto Alegre e São Paulo, e duas foram realizadas através do serviço de webconferência da RUTE (Rede Universitária de Telemedicina) do Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (HU/UFSC) em conjunto com o NUTES (Núcleo de Telessaúde) do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC/UFPE). Para as entrevistas, eu utilizei um roteiro de Entrevista Semi-Estruturada, que permite, a partir de um roteiro inicial, aprofundar questões com o entrevistado na medida em que elas são colocadas na conversa. Partindo do pressuposto de que a conjuntura tem relação com as posturas tomadas tanto pelos sujeitos como pelo Movimento, e que a proposta é resgatar a história do MEM estabelecendo relação com a luta da saúde, elaborei o seguinte roteiro: Identificação; Idade; Gênero; Instituição em que trabalha; Cargo em que trabalha; Como entrou no Movimento Estudantil; Qual período vivenciou o Movimento Estudantil de Medicina; Qual período foi membro da gestão da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina e que cargos ocupou; Qual era o contexto socio-político-econômico do Brasil nesse momento e a relação que se estabelecia com as políticas de saúde; Quais eram as principais pautas e atuações do MEM e da DENEM relacionadas à construção do Sistema Único de Saúde e qual a relação com o contexto indicado acima. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Foi garantido aos entrevistados o comprometimento dos pesquisadores em seguir preceitos éticos, de manter sigilo e anonimato e de só divulgar os dados após seu consentimento, constantes nas Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (nº196 e nº251, de 07/08/1997). Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice 1). Na pesquisa documental reuni grande número de documentos já digitalizados (principalmente a partir de 2000) disponibilizados publicamente pela entidade e compilados em CDs que foram sistematizados por membros da Sede Nacional da DENEM de 2006, complementados pela Sede de 2007 e pela Sede de 2008. Desde atas de toda variedade de fóruns deliberativos da DENEM (ECEMs, COBREMs, etc), compilados dos planejamentos anuais da DENEM, a compilado das entrevistas com os ex-coordenadores gerais da DENEM, realizadas por gestões anteriores. Como fui gestão da executiva por quatro anos, eu já armazenava em meu computador uma enorme quantidade de documentos. Em relação aos arquivos da era anterior ao uso habitual de computadores, esses são conservados pela
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DENEM. No presente ano, o acervo de registro histórico da executiva encontrava-se temporariamente no Diretório Acadêmico Barros Terra (DABT) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Em uma visita de um final de semana consegui reunir mais algumas centenas de dados: mais atas, boletins, projetos, jornais, correspondência da DENEM aos CA´s, relatórios dos ECEMs (mesmo anteriores a criação da DENEM). Os documentos foram classificados por data de publicação e foram sendo inseridos no trabalho conforme fossem acrescentar dados relevantes à narrativa histórica. No decorrer do trabalho conclui que o objeto inicial de pesquisa era deveras amplo para uma monografia de conclusão de curso. Assim, optei pelo recorte, utilizando entrevista e análise documental referentes aos ECEMs da década de 1970 até o período de criação da DENEM no final da década de 1980. O projeto de pesquisa que originou esse trabalho foi inscrito no Sistema Nacional de Informações Sobre Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (SISNEP) em 16 de novembro de 2009. Foi também submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH) da Universidade Federal de Santa Catarina e aprovado em 30 de novembro de 2009 sob número de processo 524/2009.
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CAPÍTULO 2 DA ORIGEM DO MOVIMENTO ESTUDANTIL AO SURGIMENTO SURGI MENTO DAS ENTIDADES ESTUDANTIS
2.1. Origem do Movimento Estudantil
Há registros de movimentações políticas desenvolvidas por estudantes no país desde o período do Brasil Império, no final do século XIX. É possível encontrar referências significativas do conjunto de atividades políticas e culturais realizadas por estudantes, em diferentes modalidades de agrupamentos, ainda no período anterior à criação da Universidade brasileira. Clubes e Sociedades Acadêmicas da época se envolveram em questões como a abolição da escravatura e o republicanismo, tendo inclusive suas teses publicadas na imprensa da época defendendo seus posicionamentos (SIQUEIRA, 2004, p. 15). Ainda desse período consta o primeiro registro de organização dos estudantes de Medicina no Brasil, oriundos da primeira faculdade do gênero no país, a Escola de Medicina da Bahia, criada em 1808 em Salvador, posteriormente denominada Universidade Federal da Bahia (UFBA). A Sociedade de Beneficência Acadêmica foi criada com o intento de realizar benfeitorias na área do Terreiro de Jesus em Salvador (onde se localizava a faculdade) e a Sociedade Alfredo de Brito voltava-se mais para o desenvolvimento da nova escola que ali se formava. No início do século XX ocorrem as primeiras tentativas de organizar o Movimento Estudantil (ME) nacionalmente. Um exemplo disso é o Primeiro Congresso Nacional dos Estudantes realizado em São Paulo em 1910 (SIQUEIRA, 2004, p. 15). Entretanto, até 1937, ano de fundação da União Nacional dos Estudantes (UNE), “as entidades estudantis surgidas pecavam, ou por possuírem um caráter local, carecendo, pois, de expressividade nacional, ou por seu fôlego curto, surgindo e desaparecendo, muitas vezes sem deixar qualquer rastro” (MENDES JUNIOR, 1982, p. 35).
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2.2. Criação da Universidade e o Surgimento das Entidades Estudantis
Do final da década de 1920 à década de 1930 é possível observar outro conjunto de pautas que despertaram o interesse e o envolvimento dos estudantes, principalmente relacionadas à reforma do Ensino Superior e à criação da Universidade. O Estado passa a promover a agregação de diversas instituições acadêmicas, Faculdades e Academias, em uma única instância administrativa comum, a Universidade (PELLICCIOTTA, 1997, p. 11). Na perspectiva de organizar a especialização do trabalho sob a estratégia de desenvolvimento econômico nacional, a instituição universitária ocupa um papel significativo dentro do projeto político nacionalista de Getúlio Vargas. Em função disso, o remodelamento da estrutura de gestão acadêmica que é implantado prevê também uma política que visa disciplinar a influência dos estudantes dentro da mesma: Com criação da Universidade, os estudantes são “orientados” (para não dizer forçados) a modificar o caráter de suas atividades coletivas para seguir um modelo institucional de entidade “de classe” implantado pelo Estado na sociedade civil; mudança que “dispensa” a presença de inúmeras federações, ligas, agremiações, clubes e grupos diversos para compor uma organização centralizada de cunho representativo e espírito corporativo, com assento reconhecido nas instâncias de gestão da Universidade, e posteriormente do Estado (conforme a hierarquia de representação do “corpo estudantil”). É nesse contexto, portanto, que surge a estrutura hierárquica e representativa dos Diretórios Acadêmicos, Diretórios Centrais, Uniões Estaduais, e União Nacional dos Estudantes, que desde então ocupa um lugar determinado entre os mecanismos de gestão da Universidade. (PELLICCIOTTA, 1997, p. 11)
A origem tutelar dessas entidades, porém, não garantiu sua submissão, pelo contrário. J. A. Guilhon Albuquerque, através do seu estudo “Movimento Estudantil e Consciência Social na América Latina” (ALBUQUERQUE, 1977, pp. 69-80), desenvolve essa questão. questão. Seu trabalho constata que, apesar apesar da incorporação da organização organização estudantil estudantil pelos mecanismos institucionais de gestão da Universidade no pós – 1930, não se consegue conter o afloramento das diferenças internas destas entidades. A iniciativa da universidade que tentava impor uma nova caracterização de movimento com uma dinâmica de “classe estudantil” uniforme e coesa, acabou resultando por fim, na criação de uma outra dinâmica de
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funcionamento político-representativo. O autor destaca o fato de que as estruturas de organização política que o Movimento Estudantil desenvolve no período 30/68 conseguem incorporar, ao mesmo tempo, perspectivas sindicais e perspectivas político-partidárias em uma dinâmica de forte significação coletiva. Os aspectos sindicais dizem respeito às problemáticas de formação e inserção profissional, à defesa de um lugar social e político enquanto profissional. A dinâmica de caracterização partidária permite que as diversas leituras e perspectivas políticas de organização coletiva se expressem e se articulem – sendo que a formação dos partidos se transforma t ransforma em um instrumento de organização política através do qual os variados grupos disputam as direções das entidades, estabelecem tendências e criam articulações, dando forma à multiplicidade das discussões, proposições, deliberações coletivas presentes no movimento.
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CAPÍTULO 3 O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A DITADURA CIVIL-MILITAR
3.1. Movimentações Movimentações no período anterior ao Golpe de 19 64
Do final da década de 1950 ao início da década de 1960 o Movimento Estudantil desenvolve, de forma mais intensa, sua concepção sobre o papel da Universidade, a qual diz respeito não apenas ao desenvolvimento econômico do país, mas também a uma problemática político-social mais abrangente. Para o ME, a Universidade é um instrumento de superação das desigualdades, e expandir a Universidade significa algo que vai para além da ampliação de vagas, significa desempenhar um papel político de estímulo às lutas por direitos sociais e pelo desenvolvimento cultural (PELLICCIOTTA, 1997, p. 17). Essas reflexões embalaram as lutas em torno da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, publicada ao final de 1961, que acabou estabelecendo critérios excludentes de educação e aponta para uma perspectiva privatista de ensino superior. Ainda nesse período, os debates em relação à necessidade de “reformas de base”, proposto pelo Governo João Goulart, motiva uma série de movimentações por parte da sociedade civil. A UNE realiza em 1960 e 1962 Seminários Nacionais de Reforma Universitária, precedidos de seminários regionais, dos quais foram elaborados documentos norteadores de uma articulação mais ampla em torno da “reforma estudantil da Universidade”. O teor destes documentos é indicativo do caráter autônomo e politizado que essas entidades estudantis adquirem a partir desse período, momento em que se caminha para uma radicalização das articulações políticas. Através de uma dinâmica de participação direta dos estudantes, a UNE alcança rapidamente uma maior legitimidade, realizando com sucesso a “Greve por 1/3” (a qual reivindicava participação paritária nos órgãos de gestão da Universidade), paralisando a maioria das 40 Universidades brasileiras da época, em 1962 (POERNER, 1979, p. 196). O Golpe de Estado em 1964 interrompe o processo de articulação do Movimento Estudantil tal como se encontrava. O Regime Militar estabelece uma série de mudanças
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econômicas, políticas, sociais e culturais no país, sob as quais tanto a instituição universitária quanto a organização política se tornam objetos específicos de controle e intervenção por parte do Estado (PELLICCIOTTA, 1997, p. 19).
3.2. Movimento Estudantil na Ditadura Civil-Militar
A partir de 1964, um novo corpo de Leis, Decretos e Atos Institucionais passa a reger a sociedade brasileira, buscando desestruturar todo e qualquer tipo de organização que se oponha aos interesses do regime em andamento. No que tange à Universidade, a Lei Suplicy (4.464 de novembro de 1964) é a responsável pelo primeiro grande impacto nesse sentido. Buscando responder à radicalização do debate e das ações estudantis, no contexto do Golpe de Estado, a Lei visa estabelecer uma nova dinâmica de representação, com novas finalidades. Restringe atividades como manifestações, apoio às greves, propaganda político-partidária. Em substituição à UNE e às UEEs cria, respectivamente, o Diretório Nacional dos Estudantes (DNE) e os Diretórios Estaduais dos Estudantes (DEEs). Estes, juntamente com os Diretórios Acadêmicos (DAs) e Diretórios Centrais dos Estudantes (DCEs) “permitidos”, passam a atuar sob controle direto das Congregações, Conselhos Universitários e do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Neste momento há uma importante descaracterização do papel de representação estudantil desempenhado desde sua origem na década de 1930 (PELLICCIOTTA, 1997, p. 39). Do controle dos DAs ao controle das reitorias, de 1965 a 1968 fica cada vez mais explícito o caráter das mudanças em implantação na Universidade, que, a partir das orientações estabelecidas estabelecidas pelos acordos MEC-USAID (United States Agency for International Development) e pelo Relatório Meira Mattos, são cunhadas na Lei 5.540 de 1968 (Lei da Reforma Universitária). Durante esse período, grandes manifestos, passeatas e greves são motivados por medidas da reforma como implantação do ensino pago nas escolas públicas, corte de verbas, nomeação dos reitores pelo Governo Militar, e também em repúdio ao caráter imperialista da reforma. Em um cenário de progressiva repressão e perseguição das organizações estudantis, respaldadas por uma série de decretos que restringem cada vez mais as possibilidades de
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articulação política dentro do espaço da Universidade, o ME opta pelo enfrentamento ao Governo, obtendo destaque dentro do processo mais amplo de resistência a ditadura. Na medida em que ocupa um lugar mais expressivo entre os movimentos sociais, estreita-se a relação entre o ME e organizações de esquerda, principalmente entre 1967 e 1968, almejando ao mesmo tempo transformar a Universidade e recusar a ditadura militar (RIDENTI, 1993, p. 130). Neste limiar entre a clandestinidade e a “luta de massas”, em outubro de 1968, é realizado o XXX Congresso da UNE em Ibiúna, onde todos os 700 delegados são presos. É a véspera do Ato Institucional número 5. Nas palavras de Mirza M. B. Pellicciotta e Artur J. Poerner: A ‘queda’ de Ibiúna configura uma ruptura não apenas da condição institucional deste movimento, mas da transmissão do seu projeto e perspectiva de atuação política. Os arquivos dos Centros Acadêmicos não deixam dúvida de que a partir de então se estabelece ‘um vazio’ acerca dos acontecimentos do pré-68; um vazio que se estende a períodos mais recuados como a ‘apagar’ a trajetória de lutas políticas e sociais que teve a Universidade como objeto central das reivindicações e projetos de mudança. (PELLICCIOTTA, 1997, p. 44) O Movimento Estudantil, tal como é entendido até aqui neste trabalho, foi interrompido no Brasil em 68, com o AI-5. Já sem condições sequer para se reunirem nos colégios e universidades, e muito menos para saírem às ruas em passeata, os estudantes começaram a se agrupar e a ser arregimentados em organizações de luta armada. E partiram para uma guerra adulta, única forma de participação política que o regime militar lhes deixara. E único caminho que eles acreditavam poder conduzi-los a libertação do seu povo. (POERNER, 1979, pp. 306-307)
A opção pela luta armada, urbana e rural, como instrumento de resistência e de revolução social surge em um contexto progressivamente progressivamente violento de fechamento político e se relaciona diretamente com as experiências e leituras vigentes entre as esquerdas (PELLICCIOTTA, 1997, p. 121). Se a opção pela militância exclusiva em grupos organizados, e não mais no ME, já era uma tendência em alguns grupos, o processo acelerouse com o bloqueio das atividades políticas no interior do ME imposto pelo AI-5, pela Lei 5540/68 e em seguida pelo Decreto 477 de 1969 - conhecido como o “AI-5 das Universidades”. Enquanto mais de uma dezena de organizações intensificam suas atividades no ano de 1969, o Governo Militar aprimora seu aparelho de “combate à subversão”, criando
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a Operação Bandeirantes (OBAN) e estruturando os DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna). À exceção de poucas operações de guerrilha bem sucedidas, os militares conseguem “desmantelar” praticamente todas as organizações armadas entre 1969 e 1971. Apenas a Guerrilha do Araguaia tem sua final derrota em 1974 (RIDENTI, 2007, p. 133). É possível dividir a década de 1970 em dois períodos de características distintas. De 1970 a 1975 é presenciado o ressurgimento dos Diretórios, que se articulam principalmente em torno da pauta da d a Universidade. É neste contexto de exacerbação das conseqüências de um modelo produtivista, burocrático e autoritário que a rearticulação dos DAs gradualmente adquire consistência consistência e legitimidade na proporção em que “politiza” “politiza” os seus seus problemas problemas específicos. Ainda na primeira metade da década, têm t êm destaque os chamados “Movimentos de Área”, com base nos Centros e Diretórios Acadêmicos de um mesmo ramo profissional, que passam a realizar congressos e encontros nacionais. De 1975 a 1979 a principal característica é o processo de reorganização institucional do movimento, principalmente através da articulação dos “DCEs livres” para reestruturação das entidades perseguidas pela ditadura, as UEEs e a UNE. No estudo “Uma Aventura Política: As Movimentações Estudantis dos Anos 70”, de Mirza M. B. Pellicciotta, a autora afirma que na primeira fase da década de 70 poderemos constatar que é nela que se “ensaia” a construção de um contra-discurso da reforma da Universidade. Que, por baixo do aparente contexto de “vazio” político, se esconde uma luta pela recriação da dinâmica democrática do ME fundamentada na participação coletiva e na releitura crítica dos processos burocráticos e autoritários de formação acadêmica pretendidos pela Reforma da Universidade. Afirma também que [...] [...] apesar de não se poder encontrar nesse período a emergência de mobilizações e de processos de radicalização política do porte dos acontecimentos de 64/68 ou 75/80, é neste momento que o projeto de Universidade se torna mais uma vez objeto central de um percurso crítico e coletivo de reflexões e aprimoramentos (PELLICCIOTTA, 1997, p. 74).
Nesse primeiro período da década podemos observar divergências em relação ao papel do ME dentro da Universidade, e em função disso, uma mudança de nomenclatura das organizações estudantis. Os Diretórios Acadêmicos agregam estudantes que mantém como
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tática de luta a perspectiva de debate mais centrado nas questões de formação e de inserção profissional, bem como a possibilidade de participação p articipação nos fóruns da Universidade (que ainda proíbem o exercício de representação dos estudantes). Os Centros Acadêmicos (CAs) agregam estudantes que priorizam um debate mais amplo sobre as mudanças profundas necessárias na ordem social, e que sustentam a proposta de uma atuação mais independente dos mecanismos de gestão institucional (PELLICCIOTTA, 1997, p. 80). A partir de 1969, mas principalmente entre 1972 e 1974, são realizados diversos “Encontros de Área”, onde estudantes dos cursos de Medicina, Arquitetura, Direito, Engenharia, Sociologia, Administração, Comunicações, Comunicações, Economia e Veterinária se dedicam a discutir e trocar experiências de mobilização relacionadas com a melhoria do ensino e das condições/perspectivas condições/perspectivas de inserção profissional. O que é deliberado nesses fóruns retorna para as Faculdades através dos CAs/DAs, potencializando os embates cotidianos. Alguns desses fóruns dão origem, posteriormente, a entidades de caráter nacional como a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB) (PELLICCIOTTA, 1997, p. 72) e a Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), objeto deste estudo. A mobilização dos estudantes através dos Encontros de Área é tamanha que, ainda em 1972, surgem as primeiras campanhas integradas “contra o Jubilamento” e “pelo Ensino Gratuito” enfrentando a problemática da privatização do ensino superior (PELLICCIOTTA, 1997, p. 82). Como conseqüência, são reeditadas ou criadas medidas que visam reprimir esse tipo de organização, antes antes desconsideradas desconsideradas como “políticas” (PELLICCIOTTA, 1997, p. p. 83). Deste modo, torna-se progressivamente mais difícil o uso do espaço da Universidade para essa modalidade de evento. Na medida em que aumenta a repressão às atividades realizadas pelos CA/DAs e Encontros de Área, o agravamento das condições de funcionamento acadêmico impulsiona os estudantes a buscarem uma postura mais radicalizada e autônoma em relação à administração da Universidade (principalmente das públicas). Este período de 1975/79 é caracterizado então pelo surgimento de “entidades livres” (a começar pelo DCE Livre da USP), pelo fortalecimento das organizações de esquerda neste contexto, que, constituindo “tendências”, passam a disputar as entidades estudantis, e pela articulação dos Encontros Nacionais dos Estudantes (ENEs), que se realiza pela primeira vez em 1975. Neste mesmo ano, são realizadas uma série de greves e manifestações que vão se intensificar em 1976 e 1977, levando à dimensão pública a “crise da Universidade”, bem como a perspectiva mais ampla
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de transformação social sustentada pelos estudantes. No empenho de reorganizar o ME de forma mais centralizada e a dar cabo dos desafios colocados no final da década, todas as formas de organização estudantil (CA/DAs, DCEs, Encontros de Área, Centros de Estudos, etc) são convocadas para restabelecer a institucionalidade das entidades, culminando com o Congresso de Reconstrução da UNE em Salvador, em 1979.
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CAPÍTULO 4 O SURGIMENTO DOS ENCONTROS CIENTÍFICOS DOS ESTUDANTES DE MEDICINA
Planejado inicialmente para acontecer em 1968, em 1969 é realizado o primeiro Encontro Científico dos Estudantes de Medicina do Brasil (ECEM – BRASIL) em Salvador, na Bahia. Reunindo estudantes da maioria das escolas de Medicina existentes na época, o ECEM se propunha a “aumentar o congraçamento entre estudantes de outras escolas, assim como discutir os problemas comuns a classe estudantil e promover o aperfeiçoamento dos órgãos e entidades de representação” (ECEM, 1977). Desde sua criação, o ECEM vivenciou a disputa entre ser um encontro científico, centrando suas atividades principalmente em apresentação de trabalhos e artigos ou ser um encontro científico que a partir do mote da produção do conhecimento e do papel da Universidade, problematizasse a quem serve tais conhecimentos e a quem a formação dos médicos estava voltada. Nesse sentido, o segundo modelo de encontro, mais politizado, predominou principalmente do final da década de 70 em diante. Segundo relato de F. E. Campos, em entrevista à Sarah Escorel: Até 1976 o ECEM era uma coisa basicamente oficialista, onde o aluno apresentava o trabalhinho que fazia como ajudante do professor. Financiado pelo MEC, o estatuto do ECEM continha a proibição de se tratar de questões políticas. Então, o setor mais progressista ou de esquerda do movimento estudantil, naquela época, não encontrava no ECEM nenhum espaço para realmente discutir as questões. (ESCOREL, 1998, p. 70)
Parte dos estudantes que buscavam discutir determinantes sociais, econômicos e políticos na questão da saúde se organizam a partir de 1974 nas Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária (SESACs) (CEBES, 1977, pp. 58-59). Organizadas por estudantes de toda área da Saúde, não apenas da Medicina, juntamente com profissionais e docentes, as Semanas aconteciam onde havia apoio institucional das Universidades. Foi um espaço importante de articulação, tendo como bandeiras principais a democratização do país e do setor, e contra a privatização da saúde (ESCOREL, 1998, p. 71). A partir de 1976 as SESACs foram se
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esvaziando na medida em que houve surgimento de outros loci de atuação como o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), os sindicatos, a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR), e a própria disputa do ECEM. Segundo Campos: Na II SESAC o Movimento Estudantil tomou a decisão de intervir no ECEM, quer dizer, recuperar o fórum ECEM e, em 1976, após a III SESAC em Curitiba, a reunião anual do ECEM já foi feita com uma estrutura controlada pelos estudantes. Exatamente por isso o ECEM perdeu toda ou quase toda a ajuda oficial. (ESCOREL, 1998, p. 71)
A partir do ECEM de 1976, é possível acompanhar o debate dos determinantes sociais em saúde adquirindo maior consistência e importância, bem como a análise da estrutura do sistema de saúde e a relação com a formação dos médicos. No Relatório Final do ECEM de 1977, em Florianópolis, Flori anópolis, podemos ver um exemplo desse processo: Mesmo uma análise superficial permite identificar a causa básica da existência de um quadro tão grave da saúde do brasileiro no seu baixo nível de renda [...] esta situação de brutal desigualdade no plano econômico é garantida, no plano político, por um regime violentamente repressivo que atuando em todos os níveis [...] age no sentido de impedir o avanço da consciência e da organização de amplas camadas de descontentes da população e, fundamentalmente, das classes trabalhadoras. [...] Coerente com todo o sistema de exploração que vigora hoje no país, a Medicina que aqui se desenvolve é também baseada na empresa privada. A indústria farmacêutica e as empresas hospitalares e de outros serviços dependem da população doente para extraírem seus lucros. [...] Hoje, o Estado se desobriga ele próprio de fornecer os serviços de saúde pagando a empresas privadas por estes serviços. Estas empresas de saúde visam, naturalmente, o lucro. Daí decorre a “comercialização” da Medicina no Brasil e a conseqüente deterioração do nível de atendimento médico. Desse modo, hoje a política nacional de saúde se resume a medidas paliativas que em nada contribuirão para uma verdadeira melhoria na realidade de saúde brasileira. Esta situação se reflete diretamente no ensino médico, quando o nosso currículo é orientado para uma prática médica de especialização, em detrimento da formação do médico generalista de que precisamos. [...] Tendo em vista os aspectos analisados, achamos que a melhoria dos níveis de saúde da maioria da população brasileira está intimamente relacionada com a organização livre e independente dos trabalhadores em suas entidades representativas para que possam conquistar reais avanços de seus níveis de vida e saúde. (ECEM, 1977)
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Ainda no ECEM de 1977 esse debate se torna público através do jornal “O Estado” de Santa Catarina, onde o então Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina afirma “Estudante de Medicina não é especialista em distribuição de renda para poder dizer que a saúde do povo vai mal porque não tem dinheiro para comprar alimentos”. Em resposta à pergunta do jornal do por que discutir esses temas em um encontro científico, os estudantes afirmam: Porque não existe ciência isolada dos problemas da sociedade. Ciência e política são indissociáveis. Assim, ao mesmo tempo que sabemos que os principais problemas de saúde da maioria do nosso povo decorre de seu baixo nível socioeconômico, nos deparamos com um currículo de ensino que não está voltado para atender os reais interesses dessa imensa maioria. (O ESTADO, 1977, p. 16)
Para além dos temas centrais elencados acima, diversos outros se somavam aos debates do ECEM nesse período inicial na década de 70. Do repúdio à repressão do Governo Militar às tentativas de organização estudantil em diversas universidades do país até a defesa da criação de uma empresa estatal (Quimiobrás) para fazer frente à exploração da indústria farmacêutica multinacional, os ECEMs apontavam a necessidade de mudanças profundas na estrutura social e econômica brasileira. Agregando estudantes de todas as regiões do Brasil, da maioria dos cursos de Medicina do país, públicos ou privados, com uma programação plural de característica política, científica e cultural, o ECEM se consolidou como o maior encontro anual dos estudantes de Medicina. Com adaptações relacionadas à conjuntura de cada período, o ECEM acontece tradicionalmente na metade do ano até os dias de hoje. Ausente apenas nos anos de 1984 e 1989, são quarenta edições que se completam em 2010. Para relação de sedes dos ECEMs, ver Apêndice 2.
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CAPÍTULO 5 CONTEXTO GERAL DO MOVIMENTO ESTUDANTIL DE MEDICINA NA DÉCADA DE 1980
Durante a década de 1960 o Movimento Estudantil foi um dos primeiros movimentos sociais a realizar uma experiência de diálogo efetivo com grande parte da sociedade, como afirma Marcos R. Mesquita no seu estudo “Identidade, Cultura e Política: Os Movimentos Estudantis na Contemporaneidade” (MESQUITA, 2006). Durante esse período, e também ao final da década de 70, onde o ME retorna às ruas para se manifestar pelo fim da Ditadura Militar, “o ME se constituiu como o ator de maior resistência e visibilidade na luta em defesa da liberdade e das garantias políticas polít icas e sociais” (MESQUITA, 2006, p. 85). Se no final da década de 1970 o ME era reconhecido como um instrumento capaz de mobilizar e de ser porta-voz dos anseios de grande parte da sociedade, a década de 1980 apresenta ao movimento um cenário bastante diferente, onde seu papel de protagonista é substituído pelo protagonismo de outros atores, como o movimento sindical. Como relata um dos entrevistados: “A década de 80, o início dela marca a etapa final da transição controlada que os militares propuseram para acabar com a ditadura. Há a ascensão então de um conjunto de lutas sociais que estavam já germinando de algum tempo – a resistência civil – também no âmbito do próprio espaço universitário, alguns núcleos. Então o próprio nascimento da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM) nesse contexto marcou de alguma maneira uma espécie de mudança na agenda. É que o Movimento Estudantil de Medicina (MEM) não era diferente dos outros segmentos do ME que tinham se recomposto, digamos, a partir de 1976, 1977 sobretudo, com as mobilizações que ocorreram em torno às grandes bandeiras da redemocratização. 1977 foi um ano fundamental porque o ME assumiu naquele contexto uma posição de vanguarda, já que os demais movimentos estavam desarticulados, paralisados ou reprimidos. Se a gente olha historicamente 1977 marca uma volta às ruas através do ME, que em seguida em 1978, na greve de Osasco e depois, vai ganhar um perfil mais operário também, até chegar às grandes greves de 1979 e 1980 no ABC. Então nesse momento o ME era uma vanguarda de uma luta política geral, não existe uma luta específica. Não havia uma agenda nem pro sistema de saúde, nem uma agenda pra própria educação médica, muito menos.
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O que havia era uma organização que ganhava cores políticas políticas através dos Centros Acadêmicos, geralmente através de organizações ligadas a grupos de esquerda mesmo e que tratavam de influenciar então esse pensamento político.” (Militante do MEM 82-89)
O que se enxerga durante esse período é uma transição entre a luta política geral, focada principalmente na bandeira pelo fim da ditadura militar, e a luta dentro da universidade, e no caso do MEM, também dentro do contexto de criação do Sistema Único de Saúde: “É uma etapa de refluxo do ponto de vista da capacidade política. Mas isso também abriu a visibilização do fato de que tinham outras tarefas, ligadas inclusive a própria questão do conhecimento, da prática profissional que a gente deveria encarar. Então nós começamos na experiência particular de Porto Alegre, começamos a participar, a partir de 1983, daqueles movimentos que levaram às Ações Integradas de Saúde (AIS), em 1984, que levaram já ao desenvolvimento do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS) mais tarde, já na Nova República. Também na transição ali do final da ditadura pra Nova República, foi nesse processo que a gente foi aprendendo, digamos, o que era isso, porque nós também não tínhamos uma idéia clara sobre isso. A Reforma Sanitária era uma idéia, uma coisa difusa, em textos e tal, mas ela não tinha uma materialidade até esse momento. Porque o momento então que se abre, o regime militar abre essa possibilidade, por mais que não vá participar desse espaço as pessoas que vinham já desde os anos 70 postulando coisas em torno a isso, livros da Maria Cecília Donangello, e na sucessão chegando até então o Sérgio Arouca, isso vai ganhando pra nós uma materialidade, a gente começa a estudar isso, faz núcleo de estudos sobre educação médica, saúde pública pra entender esse cenário que se abriu pra nós. Foi um período muito interessante. E aí as coisas se precipitam, de 1984 pra frente com o final do governo militar em 1985 e a convocatória da 8ª Conferência, nós começamos a participar da Frente Nacional que se formou, pra discutir os temas relacionados à saúde.” (Militante do MEM 82-89)
Podemos dizer que a criação da DENEM esteve relacionada com três cenários com os quais estabelecia uma interface, e cujas movimentações se intensificam de 1985 para 1986. O primeiro é da conjuntura interna do MEM que, como relatado acima, vivenciava um processo de transitar da luta contra a Ditadura Militar para a luta enquanto estudante universitário, principalmente problematizando a educação médica hegemônica no país e a relação da formação dos médicos com as necessidades de saúde da população brasileira. Em
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outro cenário temos a convocação da 8ª Conferência Nacional de Saúde que mobilizou diversos setores militantes da área em torno da construção das bases do que viria a ser o Sistema Único de Saúde criado na Constituição de 1988. Se as discussões sobre organização da saúde no país já era pauta desde a década de 1970, esse é um momento onde o debate ganha materialidade. No terceiro cenário temos a relação com a UNE, que vivia um processo de discussão sobre sua própria estrutura: “A convocatória da 8ª Conferência então nos pega num momento particularmente interessante porque desde 1983 a gente vinha participando dos espaços locais, mas também vínhamos abrindo um diálogo nacional na reconstrução desse espaço do MEM com muita dificuldade. Existia uma sub-secretaria de Medicina da UNE dentro da secretaria de Biomédicas e era muito truncado esse diálogo, um diálogo daquele velho perfil partidário, PCdoB tinha hegemonia nessa estrutura então nossa participação era sempre muito difícil. E a gente acabou então entrando por dois caminhos para se reagrupar, ampliando uma série de discussões no âmbito dos ECEM´s e por outro lado explorando espaço nos Congressos de Educação Médica, da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), que eram também espaços novos, onde os estudantes nunca tinham tido muito protagonismo, mas que nos permitiu discutir os elementos da educação médica. Então entre 1983 e 1985, até início de 1986, esses eram os espaços que a gente vinha se movimentando. E dentro do âmbito do movimento estudantil geral, a discussão sobre uma redemocratização da própria UNE, o debate sobre eleições eleições diretas começou a ganhar força. Então Então isso tudo converge pro início de 1986.” (Militante do MEM 82-89)
Para fins didáticos, a descrição desse período será dividida em três partes: 1)a relação r elação do MEM com os acontecimentos ligados diretamente à construção do SUS no período 86 e 87; 2) a descrição de como se deu o processo de fundação da entidade DENEM de 85 para 86; 3) A conjuntura do MEM e a relação deste com as pautas de saúde no período da Constituinte até o fim da década, de 87 a 90 aproximadamente. aproximadamente.
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CAPÍTULO 6 MOVIMENTO DE REFORMA SANITÁRIA, A 8ª CONFERÊNCIA E O MEM
A partir de meados da década de 1970, ainda sob a Ditadura Militar, se organiza o Movimento de Reforma Sanitária, ou Movimento Sanitário, articulado ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Este reunia profissionais, intelectuais e lideranças políticas da área da saúde, vindos, na maioria, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, inspirado na Reforma Sanitária Italiana, buscava a transformação do setor Saúde, pressupondo a democratização da sociedade e representando, assim, um foco de oposição ao regime militar (CORREIA, 2005, p. 61). Com o fim da Ditadura Militar em 1985, a chamada “Nova República” inicia uma transição negociada entre os segmentos que sustentavam o regime anterior e os segmentos de oposição que se organizavam em uma democracia de fachada, consentida pelo regime autoritário. O Governo Sarney é caracterizado por esse conjunto heterogêneo de forças políticas, que reuniam desde tendências privatizantes a tendências estatizantes. Em geral as forças antagônicas se anulavam e o saldo político era conservador. Na esfera da saúde mais especificamente, a Nova República encontra o Movimento da Reforma Sanitária mobilizado e articulado, com o acúmulo de alguns anos de lutas e um repertório de propostas convergentes para um projeto alternativo ao modelo médico-assistencial, além de quadros técnico-políticos inseridos nos ministérios da Saúde e da Previdência e Assistência Social. Tais condições históricas tornaram possível a realização, em março de 1986, da 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS), congregando o expressivo número de cinco mil participantes, provenientes de um leque bastante diversificado de agentes/sujeitos sociais e políticos da sociedade civil organizada. (BRASIL, 2006, p. 46)
Um dos entrevistados relata como foi a articulação para eleição dos delegados da UNE para a 8ª CNS: “Convocaram a 8ª Conferência, fizemos a provocação de discutir ‘Bom, e como é que a UNE participa?’. A gente não queria que fosse simplesmente designado pela
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direção da UNE os delegados pra 8ª Conferência. Aí nós fizemos um Seminário Nacional pra discutir o tema da saúde na Constituinte, que ia ser convocada em seguida e com vistas a organizar o nosso debate para a 8ª Conferência. Isso foi os dias que precederam o início da 8ª Conferência em Brasília, em março em 86. Então o que aconteceu foi que numa articulação entre Centros Acadêmicos de Medicina que estavam mais engajados já nesse debate, a gente conseguiu basicamente polarizar todo o debate. Tanto é que os 5 delegados da UNE, porque era entre todos os cursos de Biomédicas, os 5 delegados da UNE pra 8ª Conferência foram da Medicina. Porque nós chegamos organizados, tínhamos um debate. Se apoiou muito em documentos que tinham sido produzidos pelo CEBES, pela ABRASCO, traduzimos isso pra um debate estudantil que pudesse apropriar e aí saímos delegados. Nesse trânsito também nós permanentemente tínhamos uma preocupação de que nós tínhamos que encontrar nossa especificidade no debate, não bastava a gente fazer um discurso genérico, sobre a política em geral, nem um discurso genérico sobre a saúde em geral, nós tínhamos que entender que nós, estudantes de Medicina, qual era o nosso papel naquele contexto histórico, o que que a gente queria aportar.” (Militante do MEM 82-89)
A 8ª CNS foi antecedida por conferências municipais e estaduais pelo país e debateu sobre temas que seriam fundamentais para a mudança das condições de saúde da população brasileira. O teor dos debates pode ser inferido a partir da definição do conceito de saúde aprovado na plenária final: Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso à serviços de saúde. É, assim, antes de tudo o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. (CNS, 1986, p. 4)
A partir do conceito supracitado, supracitado, a saúde foi defendida como direito de todos e dever do Estado. A universalidade, integralidade e equidade, princípios do sistema sendo gestado, também são definidos na 8ª CNS, além de diversas outras diretrizes acerca da organização, financiamento e participação popular na dinâmica do mesmo.
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A Conferência não teve a participação do setor privado da saúde, o que não evitou debates polêmicos sobre as modalidades de gestão do novo sistema de saúde: A questão que talvez mais tenha mobilizado participantes e delegados foi a natureza do novo Sistema Nacional de Saúde: se estatizado ou não, de forma imediata ou progressiva. A proposta de estatização imediata foi recusada, havendo consenso sobre a necessidade de fortalecimento e expansão do setor público. Em qualquer situação ficou claro, porém, que a participação do setor privado deve-se dar sob o caráter de serviço público ‘concedido’ e o contrato regido sob as normas do Direito Público. (CNS, 1986, p.2) “Quando se deu o debate na 8ª Conferencia, a posição da CUT, por exemplo, era uma posição de que nós tínhamos que criar um sistema totalmente estatal, estatizar todos os sistemas de saúde. E na nossa participação como delegação da UNE a gente até podia concordar com uma idéia de princípio, mas a gente não via nenhuma viabilidade política, isso isolava a CUT. Então nós acabamos sendo uma espécie de mediadores de algumas discussões dizendo que o que nós precisávamos era um sistema público nacional. Se isso era composto por prestadores estatais, privados, privados com fim de lucro e sem fins de lucro, isso tinha que ser resolvido no âmbito dos mecanismos do controle público. Sabendo que isso arrastava um problema importante que era a relação mesmo do público com o privado [...] Acho que isso continua sendo um problema grave. E ao colocar uma bandeira de universalização com integralidade, por trás disso evidentemente estava, embora na época nunca se usava esse conceito, é o problema da equidade. Das brechas enormes que tem no país. Mas acho que pro momento aquilo foi, digamos, o possível. O problema não estava tanto na definição inclusive do que depois se conquistou na Constituição, mas está realmente na forma de definir quem é o ator que opera isso, quer dizer, e a contradição entre o mandato constitucional e a estrutura do Estado brasileiro. Mas claro, na época a gente não tinha uma visão suficientemente profunda e potente pra poder enfrentar isso e acho até que nem tinha ambiente político para poder enfrentar isso. Embora isso tivesse na preocupação também de vários pensadores aí da origem da própria Reforma Sanitária. Então o que se faz aí foi organizar um processo de intervenção sobre a Constituinte, onde nós fomos sócios, digamos, de várias iniciativas que não eram nossas de origem como participar da Plenária Nacional [de Entidades e Movimentos Populares de Saúde].” (Militante do MEM 82-89)
Após a conferência, o governo convocou uma Comissão Nacional da Reforma Sanitária (CNRS) paritária (que dessa vez contou com a participação do setor privado) de
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caráter consultivo para elaborar sugestões para a Assembléia Nacional Constituinte, que estabeleceria o reordenamento institucional e jurídico do novo sistema de saúde. Recebendo críticas de que seus posicionamentos teriam “aplainado por baixo” questões polêmicas e deixado de se posicionar politicamente (BRASIL, 2006, p. 50), os defensores da Reforma Sanitária se aglutinam na Plenária Nacional de Entidades e Movimentos Populares de Saúde, visando à inserção das deliberações da 8ª CNS no texto constitucional (BRASIL, 2006, p. 51). Essa disputa foi registrada no “Jornal do XVII ECEM, órgão preparatório do Encontro Científico dos estudantes de Medicina” que foi realizado em 1987 na cidade de Campinas: Como já se esperava, a Constituinte está sufocada pelo peso dos setores conservadores. Também na área da saúde esta situação se faz sentir: há grandes interesses em jogo no esforço dos “lobbies” antimudanças para barrar qualquer reforma sanitária séria e profunda. Sem pressão da população e dos imediatamente envolvidos no tema (profissionais de saúde, estudantes entidades sanitárias), a transformação dos serviços de saúde ficará congelada. O que pensam a este respeito os estudantes de medicina? Estamos, também nós, com a palavra. [...] Houve consenso em torno de temas como a conceituação de Saúde, seus determinantes, sua incorporação aos direitos de cidadania, o conseqüente dever do Estado, a criação do Sistema Único de Saúde, a interdependência entre política social e econômica, a caracterização dos serviços de saúde como públicos e essenciais, propondo-se alterações no relacionamento com o setor privado. Algumas divergências surgiram em torno da estratégia de construção do Sistema Único de Saúde e estabeleceu-se polêmica a intervenção do Estado e o caráter estatizado ou não do novo sistema. O setor privado esteve ausente, resolvendo uma semana antes da abertura da Conferência boicotá-la, não comparecendo. Isso não impediu que se discutisse seu papel e as formas de relacionamento e controle que necessitariam ser adotados com relação ao setor privado. No sentido de continuar a discussão iniciada na Oitava Conferência Nacional de Saúde, diversas entidades e movimentos populares de saúde chamaram discussões, que culminaram com a aprovação, pela Plenária Nacional de Entidades e Movimentos Populares de saúde, de uma proposta de emenda ao dispositivo de saúde do Projeto de Constituição, que deverá ser apresentada à Assembléia Nacional Constituinte, após abaixo assinado de 30.000 assinaturas. Apresentamos nesse jornal ambas as propostas, a da Comissão Nacional de Reforma Sanitária e a da Plenária Nacional. (DENEM, 1987)
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Um dos entrevistados comenta a relação do MEM com a Plenária Nacional de Entidades e Movimentos Populares de Saúde: “Essa plenária era o espaço de mobilização que tinha no país, essa frente que eu me referia, e que aí convergiam movimentos populares, movimentos sindicais, parlamentares e o espaço partidário de articulação, a rticulação, que na verdade vários partidos estavam ali. Então isso foi uma coisa que a gente procurou acompanhar, valorizar, fizemos uma orientação aos Centros Acadêmicos que eles se somassem nas instâncias que operavam essa frente nos estados. Com resultado muito irregular, porque claro, os Centros Acadêmicos com maior grau de politização, de envolvimento se aproximaram mais, conseguiram materializar isso. Já outros, principalmente nas escolas privadas p rivadas já era muito mais difícil, o resultado era muito irregular. O que nós procurávamos fazer como Direção Nacional era nos manter, digamos, conectados com a articulação já desse fórum na sua expressão nacional, tratando de apoiar e de difundir o que vinha sendo tratado, de intervir aportando às visões do próprio movimento e tal.” (Militante do MEM 82-89)
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CAPÍTULO 7 A CRIAÇÃO DA DENEM
A história da criação de uma entidade representativa dos estudantes de Medicina não começa na década de 1980. Desde a década de 1940, o debate em torno de criar uma entidade que organizasse os estudantes de Medicina em prol de debater e intervir sobre a realidade que os cerca, já era presente nos espaços que agregavam esses estudantes. No caso, a partir da Semana Brasileira de Debates Científicos, foi criada a União Nacional dos Estudantes de Medicina (UNEM) na década de 1950, a primeira entidade representativa dos estudantes de Medicina do Brasil. A UNEM realizou atividades até a década de 1960, sendo extinta com a Ditadura Militar. Ao fim da década de 1970, com a conquista dos ECEMs como espaço mais politizado de organização dos estudantes, houve articulação para se criar uma federação nacional (PELLICCIOTTA, 1997, p. 87), porém não chegou a ser concretizado. A conjuntura da década de 1970, com a Reforma Universitária do Regime Militar e a repressão de Estado bastante presente, o ME lançou mão de diversas formas de organização e resistência para dar cabo de expressar suas demandas e bandeiras na nova conjuntura. A própria criação dos Encontros de Área nesse período é um exemplo disso. Com o fim da ditadura, o MEM usufrui desse acúmulo político da década anterior para se adequar à nova conjuntura que se desenhou na década de 1980 e nas seguintes. De forma que a criação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina nunca se colocou de forma sectária aos espaços de organização já existentes, tendo inclusive se vinculado formalmente à UNE nos seus primeiros anos. É como se a organização setorial dos estudantes de Medicina em uma entidade desempenhasse um papel complementar, mas que também não se limitava somente às pautas exclusivamente “corporativas”, específicas da Medicina. A pauta da saúde sempre funcionou como um instrumento problematizador da estrutura da sociedade, extrapolando então à esfera da saúde exclusivamente, ao mesmo tempo em que se fazia uma abordagem diferenciada da encontrada nos espaços do ME geral. A forma de organização que o MEM apresenta no início da década de 1980 remete à estrutura criada na década anterior. O grande espaço anual de articulação do movimento se constitui nos ECEMs e um fórum composto pelos CA/DAs de Medicina, o Conselho Nacional
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de Entidades Estudantis de Medicina (CONEEM), se reunia anualmente durante os próprios ECEMs para deliberar sobre próxima sede e temática do próximo encontro. Com a refundação da UNE em 1979, os CONEEMs passam a integrar a estrutura deliberativa da Subsecretaria de Medicina, da Secretaria de Biomédicas da UNE. Quem coordenava um CONEEM era o secretário de Biomédicas da UNE ou o coordenador de Medicina, pois na época tinham os dois. Era algo super colado. Imaginem reunir os Centros Acadêmicos de Medicina e depois vinha um cara do PCdoB para ver como era a reunião e para coordená-la. Quase sempre tinha pau. Com o ECEM de 85 isso começou a mudar. Propusemos uma outra dinâmica, que se realizassem CONEEM’s pelo menos semestrais, tanto é que o projeto do ECEM de 86 (foi o ECEM de Fortaleza) foi discutido em dois CONEEM’s e amadureceu mais. Ganhou, depois de Porto Alegre, a conotação de projeto. Em 85 teve um projeto de ECEM, assim como em 86, e começamos a discutir que produto a gente queria. (DENEM, 1999, p. 2)
No primeiro semestre de 1986, além da 8ª CNS, outro evento gerou grande mobilização: o Congresso da UNE em Goiânia. Não tendo ocorrido CONUNE em 1985, havia considerável expectativa por parte da oposição ao grupo majoritário da UNE, composto pela juventude do PCdoB, de que iriam virar a situação: “A gente conseguiu uma maioria política no Congresso, e pra romper a reprodução hegemônica do PCdoB a gente propõe fazer uma eleição direta. Só que o negócio foi tão desgastante em termos de tempo do Congresso, que quando se aprova isso praticamente já era o tempo, tinha acabado o Congresso. Então a nossa turma debanda e fica só a base do PCdoB, mais disciplinada, mais organizada, e com a decisão já tomada de ser uma eleição direta eles definem o calendário e a forma, e ao fazer isso eles fazem de uma maneira supremamente reduzida no tempo.” (Militante DENEM 82-89)
A eleição direta seria nacional, em 30 dias. Eles tinham toda a máquina nas mãos e então fizeram todos correr atrás dessa máquina, ditando as regras. Mas teve uma mobilização grande [...] E foi com essa expectativa positiva que nós tínhamos, que finalmente chegamos nos dois dias de votação. O balanço no final do primeiro dia, pelo menos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina era muito positivo para nós. Eis que na noite do primeiro dia de votação vem a notícia de fraudes maciças em São Paulo. Tinham conseguido fazer votar uma escola que não existe, uma escola inteira. Não tinha conversa, fizeram uma grande fraude. Só que o pessoal de São Paulo ao invés de separar as urnas, fazer um processo de restringir o espaço das
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fraudes, partiram para o cacete. E na Paraíba também teve denúncia de fraude e a oposição queimou urnas que tinham suspeita de fraude. Embananaram toda a eleição em São Paulo e na Paraíba. Era tudo o que o PCdoB queria. Suspenderam a eleição, guardaram todas as urnas do primeiro dia e isso demorou meses de discussão. No final, a diretoria do PCdoB que ainda estava em exercício, abriu as urnas e decretou a vitória de sua chapa. Imaginem: o ME de uma expectativa de grande eleição direta, recompor o movimento, cai em uma situação de vácuo total e de uma grande desmotivação. Mantiveram o aparelho. Foi aí que em cima disso ficou a diretoria eleita até 87, quando eles perderam finalmente a eleição para a UNE no congresso de Campinas. O MEM depois do pique do ECEM de Porto Alegre, muita troca entre os Centros Acadêmicos , projeto do ECEM de Fortaleza... Paramos para pensar: e agora? Só tinha uma saída: não poderíamos ficar reféns desse processo do movimento geral e vamos tentar desenvolver um MEM com o que se tem. (DENEM, 1999, p. 2)
A partir desse contexto é elaborada a proposta da criação de uma Federação Nacional dos Estudantes de Medicina. Uma federação traduzia a proposta de uma organização que contemplasse desde a esfera local a nacional de forma orgânica, somado o fato da única entidade de área consolidada naquele momento ser a Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB), que serviu de referência. A proposta foi levada ao ECEM de Fortaleza em 1986 através do jornal “O Bisturi”, do Centro Acadêmico Sarmento Leite (CASL) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O jornal trazia também mais dois artigos que seriam importantes para a discussão da nova entidade. Um versava sobre a centralidade da disputa da hegemonia dentro da escola médica do ponto de vista da formação, estabelecendo as bases do que foi aprovado no ECEM de Fortaleza como Proposta de Transformação do Ensino Médico (PTEM). O outro propunha o planejamento estratégico para as entidades estudantis como instrumento para que os CA/DAs tivessem um protagonismo mais organizado. Sobre as bandeiras que envolveram a criação da nova entidade: “Por isso que nesse processo da 8ª Conferência e a preparação pro ECEM de Fortaleza, em julho de 86, nós estávamos preocupados com duas questões. Uma era: qual era a nossa agenda específica? Como MEM, para além dos compromissos gerais de um sistema universal de saúde, qual era nossa especificidade nisso? Por um lado. E por outro lado, como nos organizaríamos pra poder avançar nesse tipo de perspectiva. Então a questão da agenda, a gente foi cada vez mais tomando
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consciência que nós tínhamos um aporte estratégico que era desarmar a reprodução da hegemonia feita na escola de medicina do ponto de vista da formação. Daí surge o que seriam as bases da Proposta de Transformação do Ensino Médico (PTEM), que é aprovado no ECEM de Fortaleza. Isso foi uma coisa importante porque a gente começa, naquele momento, coletivamente, a fazer uma reflexão do que deveria ser a educação médica para que ela pudesse ser uma educação médica orgânica a um sistema universal, integral, etc. Essa era uma preocupação. Até porque a gente fazia uma avaliação de que o ME não convocava, ele convocava os estudantes organizados nas várias correntes e tal, mas ele não convocava a massa estudantil. [...] E nós refutávamos que parte desse afastamento, dessa dificuldade é que os temários políticos, digamos assim, eles acabavam se afastando das especificidades da vida estudantil, onde o principal problema era as falências do próprio ensino médico. E aí não era uma questão apenas de resolver as falências da educação médica através de uma proposta que pudesse ser conservadora, do tipo melhorar o ensino mas dentro de uma visão só biomédica ou da prática liberal, mas sintonizar com o momento do Brasil naquele momento. Que o momento do Brasil era de uma redemocratização política, mas que tinha um desafio social-econômico imenso por trás. [...] portanto, os desafios que na área da saúde estavam colocados eram desafios da ordem do acesso universal, integral, com participação cidadã, que são os elementos que estavam na bandeira geral de luta pela Reforma Sanitária Brasileira e que foram incorporadas por nós.” (Militante DENEM 82-89)
A proposta de criação da federação gerou polêmica com os demais segmentos do Movimento Estudantil: Imaginem: propor essa idéia de Federação num contexto de uma grande crise institucional da UNE. A interpretação que várias correntes políticas do ME fizeram, era que nós queríamos rachar a UNE. Não tinha nada a ver, queríamos participar da UNE, da vida da UNE, mas só que nos temos também que responder às nossas necessidades para poder ingressar no debate geral com os nossos problemas articulados. Isso sustentou essa linha, que era isso. Só que de qualquer maneira, havia toda uma resistência contra por parte dessas forças políticas internas, e não era só o PCdoB. Era do pessoal que era do PCR (Partido Comunista Revolucionário), que na verdade era um racha do PCdoB que surgiu no fim da década de 70 e que tinha muita presença no movimento estudantil. Era o grande pólo de oposição ao PCdoB. Tinham muito peso quanto ao número de CA’s. Então, quando você ia discutir isso a nível de ECEM, não se podia ignorar esse fato. Eles viam isso como um racha na UNE, mas aí o próprio debate, umas três ou quatro reuniões de
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CONEEM dentro do ECEM para discutir isso, a idéia foi amadurecendo. (DENEM, 1999, p. 3)
Quando se conseguiu articular uma maioria favorável à criação da entidade, essa foi vinculada à Secretaria de Biomédicas da UNE, como a sub-Secretaria de Medicina. Eleito o Secretário de Biomédicas da UNE, a Subsecretaria de Medicina automaticamente ficava sob a organização da DENEM, sendo eleita no fórum do ECEM. Durante as negociações optou-se pela denominação Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina para não caracterizar um racha. A DENEM foi fundada em 2 de agosto de 1986, em Fortaleza. A sigla DENEM viria meses depois no CONEEM de Teresópolis. A estrutura inicial da DENEM refletia o conflito presente nas articulações para criação da entidade, a fragmentação e a disputa por espaço político: Outra coisa que foi complicada na negociação era que todo mundo queria ter um pedaço dessa tal Direção Executiva para garantir seu espaço político. Então a forma de organização que sai do ECEM de Fortaleza é um negócio esquizofrênico. O Presidente em Porto Alegre, o Diretor de Administração no Ceará, o Diretor de Comunicação e Divulgação em Santos, o Diretor Financeiro em Teresópolis... imagina, mas não tinha jeito. Ou fazia assim, ou não tinha. Foi o limite da negociação. (DENEM, 1999, p. 3)
O primeiro presidente da DENEM foi Armando De Negri, do CASL, militante que na época se organizava no MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado). Para relação dos seguintes presidentes e coordenadores gerais, ver Apêndice 2.
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CAPÍTULO 8 PRIMEIROS ANOS DE DENEM: ESTRUTURAÇÃO E A CONSTITUINTE
Se do ECEM de 1986 definiu-se a composição da Direção Executiva Nacional a partir de representações de diferentes correntes político-partidárias, a partir do CONEEM de Teresópolis em janeiro de 1987 há uma mudança dessa configuração. Esse CONEEM é marcado por um amadurecimento da tática de mobilizar os estudantes a partir de seus CA/DAs, trazendo principalmente a bandeira da transformação do ensino médico atrelado a um projeto social maior. Dessas reflexões parte a necessidade de aprimorar as relações com o movimento geral, com demais movimentos sociais, e outras entidades. A partir do ECEM de 1987 em Campinas pactua-se que a Direção Executiva deve responder a um projeto político coletivo do movimento, e assim a estrutura da Direção passa a ser coletiva com uma Sede da Presidência única, com os Vice-Presidentes Regionais, e com Assessorias temáticas (Cultura, Educação, Frentes de Trabalho, etc) distribuídas pelos CA/DAs do país. É incentivada a organização de Encontros Regionais dos Estudantes de Medicina (EREMs) de preferência antes dos ECEMs. Na região Sul os encontros regionais já aconteciam antes da criação da DENEM. O ano de 1987, entre a 8ª CNS e a nova Constituição, apresentou além do processo de estruturação da executiva, uma intensificação dos debates relacionados à Constituinte e à criação do Sistema Único de Saúde, como relatado em capítulo anterior. No dia 13 de maio, durante o ECEM de Campinas, foi convocado o Dia Nacional de Luta pelo Ensino Médico, cujo tema era: “Basta de aprender nos pobres para só cuidar dos ricos”. Em uma Carta Aberta a DENEM afirma: Basta de colaborarmos com toda essa injustiça que oprime nosso povo. Os estudantes de Medicina buscam agora uma nova formação médica que os comprometa com a saúde da população, combatendo os interesses lucrativos e desumanos das multinacionais da área da saúde e das empresas de assistência médica. Queremos uma Reforma Sanitária com a população participando do controle efetivo do sistema de saúde único, hierarquizado e sob controle do Estado. Não queremos mais praticar uma Medicina que ‘enriquece com a morte dos pobres e
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com a neurose dos ricos’. Queremos ser trabalhadores comprometidos com a saúde do povo e sua libertação. Queremos assumir nosso verdadeiro compromisso: servir à vida. (DENEM, 1987 p. 2)
Ainda em 1987 boletins da executiva incentivavam a assinatura das Emendas Populares encaminhadas à Constituinte: A Denem se juntou às entidades populares [...] em uma Plenária Nacional de Saúde e lançaram uma proposta de Reforma Sanitária bem mais avançada que aquela da Comissão Nacional da Reforma Sanitária. [...] Além dessa emenda popular prioritária para nós, também estamos apoiando de forma prioritária a emenda pelo Ensino Público e Gratuito, puxada pelo ANDES e FASUBRA [...] De forma secundária estamos batalhando por outras 5 emendas populares: 1- Pelos direitos dos índios; 2- Pela Reforma Agrária; 3 - Pelos direitos da mulher; 4 - Pela não fabricação de armas nucleares no Brasil; 5 - Pela participação popular. (DENEM, 1987)
Uma pauta que esteve presente durante esse período de organização da executiva foi das Frentes de Trabalho. Desde as AIS e o SUDS, alguns CA/DAs já j á incentivavam estudantes a interagir com experiências de Medicina Comunitária em locais pioneiros no que tange o grau de implementação dessas políticas. No ECEM de fundação, a DENEM já fica comprometida a organizar e expandir essa proposta: As frentes de trabalho foram apresentadas neste CONEEM de Maio 87 mais como proposta, mais objetivo, porque estava lá na Ata de Fundação, digamos assim, no documento que criou a DENEM em 1986, mas nós não tínhamos materialidade. No CONEEM de Maio de 87 isso foi retomado com mais detalhes e no ECEM de Campinas isso começa a se delinear de forma mais intensa, tanto é que no final de 87, início de 88 se fazem as primeiras frentes nacionais de trabalho, que foram no Ceará. Em 87 amadurece a idéia. Nós queríamos ter uma experiência piloto que desse base para a gente impulsionar depois no núcleo dos Centros Acadêmicos nesta questão de um projeto comunitário, que materializasse a idéia da Proposta de Transformação do Ensino Médico e que criasse parâmetros diferentes. Tanto é que a frente de trabalho que foi na comunidade do Pirambu lá em Fortaleza, ela reuniu gente de dez ou doze CA’s de todo o país, que a nossa intenção era que iriam voltar para seus CA’s e se transformassem nos articuladores, nos promotores de experiências. Foi um negocio muito voluntarista, mas funcionou no sentido de começar uma mobilização mais prática. O interessante é que criou um grupo, o do
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Pirambu, quase uma seita religiosa, que tinham ido lá e tal. O pessoal voltou com aquela aura, ‘tivemos uma experiência comunitária’. E deu uma elevação. Mais foi importante, porque criou uma liderança, mas nesse primeiro momento criou uma coisa meio gozada. (DENEM, 1999, p. 6)
Depois do ECEM de 1987 a DENEM passou a aprimorar as articulações com outros atores. Movimentos sociais das áreas da saúde e da educação, sindicatos, demais setores do Movimento Estudantil, ANMR (Associação Nacional dos Médicos Residentes), entidades médicas (apesar da tensão gerada com a Carta do Dia Nacional de Luta), uma série de departamentos de Saúde Coletiva nas Universidades, CEBES, ABEM e a Organização PanAmericana de Saúde (OPAS) são exemplos dos interlocutores do período. A DENEM também busca diálogos internacionais, chegando a estabelecer contato pela primeira vez com a International Federation of Medical Students Associations (IFMSA) e participando da General Assembly de Lagos na Nigéria em 1988. A DENEM é responsável, também, pela articulação do 1º Congresso Latino americano de Estudantes de Medicina (CLAEM) cujo tema foi “Sistemas de Salud y Educación Médica em Latinamerica y el Caribe: ¿ A quien servimos?” com a presença de diversas entidades de diferentes países do continente, em janeiro de 1988 em Porto Alegre. Durante o CLAEM é realizado um CONEEM que define como tema do ECEM de 1988 “Saúde e Revolução: Caminhos para Mudança Radical da Saúde na América Latina”. Contagiados pela discussão que se deu em torno do contexto latinoamericano, a radicalidade do momento se relaciona também com a conjuntura da Constituinte: “O Brasil é um país politicamente conservador então nessa altura do jogo também se tinha muitas preocupações. [...] tem que lembrar que o processo Constituinte passou por um momento complicado, [...] O que acontece ali, tinha o famoso Centrão na Constituinte. E o Centrão era a maioria do Congresso Constituinte, quer dizer, Centrão a palavra já diz por onde ia o negócio. Os caras, claro, queriam mudar tudo pra não transformar transformar nada. Exerce uma pressão, uma espécie espécie de gravitacional sobre o processo, de maneira que a tendência geral inercial era uma tendência conservadora e vários setores questionavam isso, mas eram setores minoritários. De maneira que isso reflete em nós, no ME, como também uma espécie de chamada a uma colocação do debate muito mais radical. O ECEM de Belo Horizonte foi interessante porque ele permitiu essa discussão, foi muito rica a discussão. [...] Era um cenário complexo. Basta lembrar que o Partido dos Trabalhadores não assina a nova Constituição [...],não se reconhece a Constituição
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porque se avalia que a Constituição Con stituição era insuficiente nas suas garantias. garantias . [...] Então quando vai nessa ascensão aí de colocar as coisas mais explicitamente , isso é uma necessidade que a gente sentiu de ir testando até onde que a gente poderia ir, o limite. O contexto pedia essa radicalidade. Primeiro que a gente precisa garantir o máximo de conquistas no texto. E na seqüência porque nós estávamos muito preocupados em como é que iria se aplicar essas coisas” (Militante DENEM 82-89)
Frente a necessidade de articulação com outros atores sociais neste contexto, somada às experiências obtidas com as Frentes de Trabalho, o ECEM de 1988 contou com a participação de movimentos sociais em suas atividades, abrindo uma nova gama de contatos e pautas. Se por um lado o encontro foi caracterizado por um aprofundamento e radicalização nos debates que eram prementes dada a conjuntura do país, por outro lado um conflito que não raro se evidencia na história do MEM, veio a tona: O programa do ECEM valorizou muito uma panorâmica sobre a questão da reforma da saúde na América Latina e o contexto todo mais estratégico da saúde que nos deu um outro nível de debate. Só que hoje podemos avaliar que a bola foi elevada demais naquele momento. Porque de alguma forma naquele ECEM houve um descolamento da base, onde a agenda se tornou tão avançada que não respeitou a velocidade média do movimento, deu um pulo. E aí nós tivemos problema dentro do ECEM, que foi um movimento espontâneo de contestar o perfil do próprio ECEM, que era um perfil muito político, que deveria ser um encontro científico, então teve uma reação extremada para o outro lado. E abriu um conflito que se expressou na plenária final do ECEM, onde nós estivemos a ponto de perder o controle do negócio e isso virar um movimento científico, o que já tinha ocorrido algo semelhante. [...] esse tipo de fissura que abriu no ECEM de Belo Horizonte em 88 era algo grave, que reivindicava que o ECEM tinha que ser um evento de massa, um evento científico, político-social, cultural e o porte que nós acabamos dando ao ECEM era um porte muito político. Os próprios militantes se ressentiam, porque a gente tinha uma programação política e uma programação outra, então separava os públicos. Resultado, para a gente fazer a recostura disso, nós propusemos a criação dos COBREMs. Então vamos criar os COBREMs com participação por delegados e lá se delibera formalmente as bases do projeto nacional da DENEM, com uma política nacional e se faz um debate com mais profundidade dos temas estratégicos. O ECEM fica como um evento de massa, onde esse debate se dá, mas como um grande debate que vai dar subsídio depois pra gente poder trabalhar a própria formação de políticas da DENEM. (DENEM, 1999, pp. 7-8)
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O primeiro Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (COBREM) foi realizado em 1989, em Brasília. Passou a acontecer periodicamente no início de cada ano, sendo caracterizado por uma programação mais densa, responsável pela elaboração do planejamento anual da DENEM através de uma adaptação da metodologia de Planejamento Estratégico e Situacional (PES). Tornou-se o segundo maior fórum deliberativo da entidade, inferior ao ECEM. Em outubro de 1988 é aprovada a nova Constituição, que ficou conhecida como a “Constituição Cidadã” pelo rol de direitos sociais que garantia. Apesar dos avanços que representou sua aprovação, após anos de Ditadura Militar e em um contexto de crise econômica que exacerbava a crise social, para diversos grupos a nova Constituição era insuficiente nas suas garantias. Um exemplo disso é o fato do Partido dos Trabalhadores (PT), que na época organizava a maioria dos agrupamentos e tendências de esquerda, não ter aprovado o texto da Constituição. No que tange a saúde, conseguiu-se garantir a saúde como direito de todos e como dever do Estado. Os chamados princípios doutrinários do novo sistema de saúde, a universalidade, a integralidade e a equidade foram apontados também na Constituição, bem como os chamados princípios organizacionais da descentralização, hierarquização, regionalização e o controle social. Com a necessidade de serem melhor definidos e regulamentados, mas foram. Contudo, o teor da Seção II, da Saúde (BRASIL, 1988, pp. 3334), difere substancialmente do relatório da 8ª Conferência Nacional de Saúde no tange elementos fundamentais para estruturação do sistema: a progressiva estatização e o financiamento. Ao permitir que a assistência à saúde seja livre à iniciativa privada, mesmo que de “forma complementar”, e ao omitir a forma com a qual se daria o financiamento desse novo sistema, a Constituição por fim deixa brechas que gerarão grandes contradições no decorrer da implementação do Sistema Único de Saúde. De forma que essas contradições serão motivo para muitos debates e mobilizações por parte dos estudantes de Medicina, organizados através de seus CA/DAs na DENEM, na luta em defesa do SUS que se estende até os dias de hoje.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre as diversas formas de organização e manifestação do Movimento Estudantil, o Movimento de Área tem pouco de sua história registrada. r egistrada. Resgatar o percurso que vai desde a origem do Movimento Estudantil de Medicina até sua consolidação enquanto instrumento de organização e resistência na década de 1970, e estabelecer a relação da fundação da DENEM com a luta da saúde no país foram os objetivos deste trabalho. É importante destacar que a tanto a criação da DENEM no ECEM de 1986, quanto o surgimento de outras executivas, no final da década de 1980, não são um produto pr oduto exclusivo da conjuntura dos movimentos sociais no Brasil durante o período de redemocratização do país. São, também, amadurecimento e consolidação de uma forma de organização estudantil que foi retomada no início da década de 1970. Sob a vigência do AI-5, com a UNE U NE na ilegalidade, com os DCEs e DAs sob controle do Regime Militar, os estudantes passaram a se organizar nos Encontros de Área para enfrentar as conseqüências da Reforma Universitária de 1968. O movimento usufrui dessa estrutura e experiência para se adaptar à conjuntura do final da década de 1980. Uma das peculiaridades, talvez mais preponderantes, do MEM é sua inserção na luta da saúde. Apesar do MEM ter se dedicado com mesma intensidade às outras pautas, como a Educação Médica e as grandes bandeiras do ensino superior brasileiro, a discussão da saúde sempre foi um campo privilegiado para problematização da estrutura da sociedade entre os estudantes de Medicina. Afinal de contas, como foi bem ilustrado pelo relatório final da 8ª CNS: Em seu sentido mais abrangente, a saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso à serviços de saúde. É, assim, antes de tudo o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. (CNS, 1986)
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No que tange a criação da DENEM, conforme descrito nesse trabalho, existe uma série de fatores que se somam ao acúmulo obtido pelo Movimento com os Encontros de Área na década de 1970. Dentre esses fatores podemos citar a conjuntura de disputa da UNE, incluindo a correlação de forças entre partidos e correntes que a disputavam; a demanda dos CA/DAs de trabalhar a pauta da formação médica; e o protagonismo que o MEM desempenhou no processo de formulação e construção do SUS, junto ao Movimento de Reforma Sanitária do final da década de 1970 até fim da década de 1980. O resgate da história de lutas dos movimentos sociais é fundamental para compreender as suas características e potencialidades. O resgate da história do Movimento Estudantil de Medicina só tem a contribuir para com a análise do caminho já percorrido, permitindo uma reflexão mais elaborada sobre os desafios da militância no presente e no futuro. Esse estudo aborda um período específico da história do MEM que vai desde sua origem até a criação da DENEM e a criação do SUS. Apesar de representar avanço significativo no que tange a conquista de direitos sociais no Brasil, o SUS enfrenta, desde sua origem, considerável dificuldade em ser concretizado. A defesa do SUS, de seus princípios, e a disputa contra a mercantilização da saúde continuaram mobilizando o MEM e se mantendo enquanto bandeira da DENEM nesses vinte e poucos anos. Neste TCC temos apenas o começo dessa grande história. Para relatar o que se segue mais estudos são necessários e devem ser feitos.
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REFERÊNCIAS
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NORMAS ADOTADAS
Este trabalho foi realizado seguindo a normatização para trabalhos de conclusão do Curso de Graduação em Medicina, aprovada em reunião do Colegiado do Curso de Graduação em Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, em 27 de novembro de 2005.
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APÊNDICE 1
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO Meu nome é Bruna Ballarotti e estou desenvolvendo a pesquisa “ O papel do
Movimento Estudantil de Medicina na Construção do Sistema Único de Saúde” . Esse estudo é necessário pois é preciso compreender quais foram as inserções do MEM enquanto ator do Movimento Sanitário nesse período para contribuir para análise e reflexão dos caminhos ainda a serem trilhados na construção do SUS. Serão realizadas entrevistas gravadas com sujeitos selecionados por terem tido atuação de destaque no MEM no seu período, que responderão a perguntas abertas sobre a relação do MEM e da DENEM com as pautas do SUS. Esse estudo não acarreta riscos, nem desconfortos aos entrevistados. Esperamos que forneça subsídios para a luta pela consolidação do SUS. Se você tiver alguma dúvida em relação ao estudo ou não quiser mais fazer parte do mesmo, pode entrar em contato comigo pelo telefone (48) 96160603 ou (48) 33341249. Se você estiver de acordo em participar, posso garantir que as informações coletadas serão confidenciais e só serão utilizadas neste trabalho. ________________________ Bruna Ballarotti Pesquisadora principal
__________________________ Prof. Luiz Roberto Agea Cutolo Pesquisador responsável
Eu,__________________________________,
fui
esclarecido
sobre
a
pesquisa “ O papel do Movimento Estudantil de Medicina na Construção do
Sistema Único de Saúde” e concordo que meus dados sejam utilizados na realização da mesma. Florianópolis, novembro de 2009.
Assinatura: ________________________ ____________________________________ _____________________ _________ RG:_______________________
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APÊNDICE 2
Ano 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
ECEMs Cidade sede Salvador Fortaleza Manaus Campo Grande Curitiba Natal Petrópolis Maceió Florianópolis Belém João Pessoa Curitiba Goiânia Recife Rio de Janeiro Porto Alegre Fortaleza Campinas Belo Horizonte Rio de Janeiro Belém Aracaju Fortaleza Salvador Santo André Maceió Natal Niterói Florianópolis São Luiz Londrina Rio de Janeiro São Paulo Curitiba São Luiz Fortaleza Florianópolis Niterói Campinas João Pessoa
DENEM CA/DA Sede Nacional / Coordenadores Gerais
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