Desde o século III, a palavra "teologia" tem sido usada pelos cristãos com o sig nific ado de "falar "falar a res peito de Deus". O s cris tãos tãos pe nsa m em sua sua fé fé,"teologia" é o termo empregado para designar esse p rocesso de reflexão e o resultado que com ele se alcança. Estudar teologi a significa refletir inte lectualmente sobre o ato, o conteúdo e as implicações da fé cristã. E v itando qualquer tipo de pre p re conc eito confes sional, est e stee livr livr o visa vi sa levar os os iniciantes a entrar em contato com alguns temas, pr oblemas e personalida des fundamentais da teologia cristã: •as principais idéias resumidas no Credo dos Apósto los,•o modo como essas idéias foram expostas e justificadas,•o vocabulário básico, especialmente os termos técn icos empregados na e x po s ição dess as id idéias, ias,-•alguns debates fundamentais que influenciaram o pensamento cristão durante os últimos dois mil anos,•alguns dos principais pensadores que formaram a te ologia cristã no de correr dos séculos. O s l e i t o r e s t e r ã o t a m b é m a o p o r t u n i d a d e d e interagir com as idéias expos tas, entrando em contato com textos que oferecem algumas abordagens das questões discutidas. Os que não são cristãos terão interesse em saber em que os cristãos acre ditam e por que o fazem . A teo log ia oferece uma u ma ex plicação plicação da fé cristã e ajuda ajuda-- nos no s a saber saber por que qu e os cristã cri stãos os dive rg em sobre alguns algun s po ntos im po r tantes. tantes. A com pree nsão fundam enta l da da teo t eo log ia cristã c ristã tam bém terá v alor inestimável para os que estudam a história cultural, a literatura ou a arte do mundo ocidental. A li s t e r E . M c G r a t h , f o r m a do e m q u ím ic a e d o ut o r a d o e m bio bi o f ís ic a molecular molecular pel pelaa Univer sidade de de Ox for d, cursou cursou teologia em Ox fo rd e Cambridge, direcionando seus estudos para o tema da interação histórica histórica entre ciência ciência e religião, religião, com ên ênfase fase nos nos século séculoss X V I e X IX , Por Ediçõ Edições Loy ola publicou publicou:: O Deus Desconbedih, Um oislumhre ia Fnce Ae Deus e Fundamentos do diálogo entre Ciência e Religião.
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A l is t e r E .^Mc .^McG G r a t hi
LOGIA
TRADUTOR
Joshuah Soares
Ed i ções Loy ol a
Título original; The ology - The Basic Basics, s, Se co nd Editi Edition on
© 2004, 2008 by Alister E. McGrath Blackwell Publishing Ltd The Atrium, Southern Gate, Chichester, West Sussex, P019 8SQ ISBN 978-1-4051-6754-3
Edição publicada em acordo com Blackwell Publishing Ltd, Oxford, e traduzida por Edições Loyola do original em inglês. A precisão da tradução é de responsabilidade somente de Edições Loyola e não de Blackwell Publishing Ltd.
Preparação: Maurício Balthazar Leal Capa: Viviane Bueno Jeronimo Diagramação: Flávio Santana Revisão: Renato da Rocha
Edições Loyola Rua Rua 1822, 341 341 - Ipiran ga 04216 -000 São Pa ulo, SP T 55 11 3385 8500 F 55 11 2063 4275
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escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-03677-6 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2009
Sumário
Prefácio.......................................................................
7
.......................................... .... O Credo dos Apóstolos ......................................
11
P ara co m eç ar .............................................................
13
Capítulo i
A f é ........... ................ .......... ........... ........... .......... ........... ............ ........... .......... .......... ........... ........... ......... .... 29 Capítulo
2
Deus............................................................................... 51 Capítulo 3
A criação ......................................................................
71
Capítulo 4
Jesus.............................................................................. 95 Capítulo 5
A
.................................................................... .......................... 117 salvação ..........................................
Capítulo 6
A Trindade.................................................................141 Capítulo
7
A Igreja.......................................................................163 Capítulo 8
O s sacramentos.........................................................185 Capítulo 9
O céu.............................................................................207 Prosseguin do...............................................................229 Breve glossário de termos teológicos .................... 233 Dados sobre teólogos citados.................................243 índice onom ástico......................................................253
Aieal
Acofíiiâo. ** (Sí 9.15*
Prefácio
o que é a teologia? Essa palavra tem sido usada pelos cristãos desde o século III com o significado de "falar a respeito de Deus". Assim, "teologia cristã" significa algo como "falar sobre Deus à maneira cristã", num reconhecimento de que a palavra "Deus" significa diferentes coisas para diferentes tradições religiosas. Os cristãos pensam em sua fé, "teologia" é o termo empregado para significar esse processo de reflexão e o resultado que se alcança. Estudar teologia é o mesmo que pensar de maneira sistemática a respeito das idéias fundamentais do cristianismo, ou seja, é refletir intelectualmente sobre o ato, o conteúdo e as implicações da fé cristã. Às vezes, teologia significa também decidir qual é o melhor modo de entender algum aspecto da fé cristã. Temos um bom exemplo deste significado na doutrina sobre a Igreja. Para alguns, a Igreja é um "corpo misto" com posto de crentes e descrentes: para outros é um "corpo puro" formado só de crentes. É fácil dar exemplos. Perguntamos então: De onde procedem esses diferentes modos de ver? Quais são os seus méritos e implicações? Que diferenças surgem daí para a vida cristã? Outras vezes a reflexão teológica eqüivale a tentar entender por que as Igrejas cristãs abordavam idéias que à primeira vista pareciam ser complicadas e até mesmo incertas. Por que os cristãos
devem acreditar que Jesus Cristo é "verdadeiro Deus e verdadeiro homem", uma vez que esta expressão parece ser muito mais difícil que uma afirmação mais simples, como, por exemplo: "Jesus é verdadeiro homem"? Para tomar outro exemplo bem conhecido, podemos perguntar: Por que acreditar que Deus é uma trindade — "um só Deus em três pessoas" — , sendo este modo de falar muito mais complicado que simplesmente acreditar em Deus? Existem muitos motivos para querer pensar na fé cristã descendo a detalhes. Aqueles que não são cristãos terão interesse em saber em que é que os cristãos acreditam e por que motivo. A teologia oferece uma explicação da fé cristã e ajudanos a saber por que os cristãos têm divergências sobre alguns pontos importantes. Como afirma o teólogo medieval Anselmo de Cantuária (que viveu aproximadam ente entre 1033 e 1109), a teolog ia é, na essência, a "fé em busca da inteligência". Parte da dinâmica interna da vida da fé é o desejo de compreender aquilo em que se crê. Podese imaginar a teologia como o aprendizado cristão da mente. Para os cristãos, a reflexão teológica pode levar ao enriquecimento pessoal com uma apreciação aprofundada da fé. Para o grande teólogo cristão Agostinho de Hipona (354430), existe um genuíno estímulo intelectual em "travar combate com Deus". Ele fala de um "eros da mente" — uma como que aspiração a entender mais a respeito da natureza e dos modos de ser de Deus — e do impacto transformador que esse conhecimento pode causar na vida das pessoas. Outros autores cristãos têm insistido na importância prática da teologia, observando como a teologia é indispensável para o ministério da Igreja. A pregação, a espiritualidade e o trabalho pastoral, como muitos autores afirmam, têm seu fundamento último na teologia. Esta atividade de "pensar a respeito de Deus" ocorre em vários planos: em grupos de estudos eclesiásticos, em estudos bíblicos, na pregação e no âmbito acadêmico dos seminários. Contud o, o estudo da teologia vai além da Igreja cristã. Pelo menos, a compreensão fundamental da teologia cristã será de valor inestimável para quem estudar a história cultural, a literatura ou arte do mundo ocidental.
Esta introdução breve e fundamental à teologia cristã destina se, de modo particular, aos iniciantes que se sentem dominados por um certo receio de estudar teologia. O livro tem por finalidade levar essas pessoas a investigar alguns temas, problemas e personalidades fundamentais da teologia cristã, estimulandolhes o desejo de adquirir mais conhecimentos. Dadas as modestas dimensões do livro, os assuntos tratados serão necessariamente limitados, e alguns leitores poderão até sentir uma certa decepção em virtude da brevidade com que algumas exposições serão feitas e mesmo da omissão de materiais relacionados com os temas tratados. Em compensação, é tranqüilizador saber que existem inúmeras obras de muitos autores que poderão suprir essa exigüidade. Este livro, que pode parecer mais, por assim dizer, um "degustador" de teologia cristã, apresentará sugestões específicas sobre o que se pode fazer ulteriormente, depois de chegar ao término desta introdução. A obra procura explorar algumas idéias básicas do cristianismo, buscando entrosarse com alguns de seus principais representantes no intuito de apresentar os temas fundamentais da teologia cristã, partindo da suposição de que o leitor ainda não conhece nada sobre o assunto. O que se busca é introduzir e explicar os seguintes aspectos da teologia cristã: • • • • •
algumas das principais idéias resumidas no Cred o dos Apóstolos e tratadas de maneira mais pormenorizada, o modo com o essas idéias foram expostas e justificadas, o vocabulário básico, especialmente os termos técnicos empregados na exposição das idéias, alguns debates fundamentais que influenciaram o pensa mento cristão durante os últimos dois mil anos, alguns dos principais pensadores que formaram a teologia cristã no decorrer dos séculos.
Os leitores terão também oportunidade de interagir com as idéias expostas, estabelecendo um entrosamento com os textos que oíerecem algumas abordagens as questões discutidas. Ao t é r m i n o
do estudo deste livro, os leitores estarão capacitado s a prossegu ir no estudo de obras mais avançadas, inclusive consultando outras teo lógicas escritas por este autor e publicadas por Edições Loyola'. N ão há no livro a intenção de ad vogar nenhuma forma espe cífica de teologia cristã; o que se tem em vista é tãosomente introduzir os leitores em uma grande variedade de idéias. A obra é generosa tanto nos termos como na série de opiniões cristãs anotadas e na atitude positiva adotada. Não se pretende dirimir antigas disputas da teologia cristã. Em vez disso, as questões dispu tadas são apresentadas ao leitor, ajudandoo a compreender os pontos em questão. O catolicismo, a ortodoxia e o protestantismo estão representados nesta obra. A obra procura evitar qualquer tipo de preconceito confessional, a fim de expor com respeito e justo equilíbrio todas as teorias teológicas examinadas. O método aqui empregado é fruto de experiências de estudo de estudantes de Oxford no decorrer de muitos anos. Sou grato aos que me ajudaram a avaliar o trabalho. O enorme sucesso desta obra mais curta apanhou o editor e o autor de surpresa. Quando se tornou claro que o livro estava tendo uma penetração surpreendente, dec idimos com certa urgência sair à busca de uma avaliação detalhada da obra junto aos usuários finais. D aí surgiram muitas sugestões proveitosas para melhorias que foram incorporadas nesta nova edição. Nossa esperança é que esta versão aumentada do original possa representar um real benefício para quem ensina e também para quem estuda teologia. Exprimimos, desde já, nosso agradecimento por toda contribuição ulterior que nos ajudará a elaborar uma terceira edição em seu devido tempo. A l i s t e r M c G r a t h
Oxford
1. O Deus desconhecido ( 2 0 0 1 ) ; Fundamentos do diálogo entre ciência e religião ( 2 0 0 5 ) e U m vislumbre da face de Deus (2 0 0 5 ).
ÍO
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o C r e do dos A pós tolos
Este livro segue aproximadamente o roteiro dos artigos do Credo dos Apóstolos, que é um dos resumos mais conhecidos da fé cristã e costuma fazer parte do culto público, além de constituir muitas vezes o tema de sermões, livros didáticos e guias de estudo. A estrutura simples deste Credo fornece a estrutura ideal para investigação dos temas centrais da teologia cristã. Existem muitas versões primitivas destes artigos, mas a forma definitiva comumente divulgada fixouse no século VIII. C r e i o e m D e u s P a i t o do - p o de r o s o , criador do céu e da terra: E e m J e s us C r i s t o , s e u ú n i c o F i lh o , n o s s o S e n ho r , q ue f o i c o n c e b i d o p e lo p o d e r d o E s p ír i to S a n t o , n as c e u d a V ir g e m M a r i a , p a d e c e u s o b P ô n c i o P i la to s , foi crucificado, morto e sepultado,desceu à mansão dos mortos,ressuscitou ao terceiro dia,s u b i u a o s c éus ; e s t á s e n t a d o à d ir e i ta d e D e u s P a i t o d o - p o d e r o s o , d o n d e h á d e v i r a j u lg a r o s v i v o s e os m o r t o s .
li
C r e i o n o E s p ír i to S a n t o , n a s a n t a Ig r e j a c a t ól ic a , n a c o m u n h ã o d o s s a nt os , na remissão dos pecados,na ressurreição da carne, n a v i d a e te r n a. A m é m .
Para começar
Teologia significa "falar de Deus"; teologia cristã é "falar de Deus" do ponto de vista cristão. De início, reconhecese que os cristãos têm idéias bastante diferentes ao responder às perguntas; Quem é Deus? Com o que é que Deus se parece?. Essas questões estão expressas na Bíblia, o livro que todos os cristãos consideram ser de suma importância em matéria de fé. A teologia cristã pode ser vista não só como processo de reflexão sobre a Bíblia com a combinação de suas idéias e seus temas, mas também como resultado desse processo de reflexão em certas idéias, definidas muitas vezes como "doutrinas" (da palavra latina doctrina, que significa "ensinamento"). Existem também outros documentos que têm alto apreço entre os cristãos, como os credos. A palavra "credo" vem do verbo latino credo, que significa "creio". O credo é uma afirmação breve dos principais artigos da fé cristã. Os dois credos mais conhecidos são o Credo dos Apóstolos e o Credo Niceno. Esses credos antigos contêm alguns pontos fundamentais da fé e são usados em geral para fins didáticos. Muitos teólogos afirmam que a teologia cristã é a investigação das idéias básicas desses credos, com estudo do seu fundamento na Bíblia e do impacto que essas idéias têm sobre o pensamento e a vida cristã. Co m o p odem os começar a estudar teologia? U ma das maneiras consiste em ler obras de autores de teologia e procurar entender
a metodologia que eles adotam, procurando saber como desenvolvem suas idéias, como avaliam os argumentos, como usam a Bíblia e pensamentos de outros teólogo s em sua própria abordagem. C o n vém citar aqui dois teólogos da era clássica da teologia cristã: •
•
Tom ás de Aquino (entre os anos 1225 e 1274), grande te ólogo da Idade Média, cuja Summa theologiae {Suma teológica) é uma das obras mais admiráveis da teologia sistemática. Jo ão Calvino (15091564), cuja obra Instituição da religião cristã é um grande marco da teologia protestante.
No século XX, dois teólogos despertam um interesse especial: •
•
O autor protestante Karl Barth (188 61 968), cuja obra A dogmática da Igreja é considerada a publicação teológica mais importante do período. O teólog o católico Karl Rahner (1904 198 4), cuja ohra In vestigações teológicas restabeleceu o tipo de ensaio teológico breve como meio principal de debate e pesquisa.
Esta abordagem tem muitos pontos louváveis, mas impõe muitas exigências aos estudantes. Para começar, convém saber que se trata de textos muito prolixos. Além do mais, há necessidade de conhecer uma grande quantidade de material anterior antes de cheg ar a um entendimento razoável dessas obras. Afinal, por que deveríamos limitar o estudo da teologia a um número reduzido de personagens? Por este motivo, alguns autores acham que é mais indicada a abordagem histórica, segun do a qual se procura conhecer a história da teolog ia cristã para saber como se deu seu desenvolvimento ao longo dos séculos. Em vez de estudar um único indivíduo, os estudantes podem verificar o modo como o pensamento cristão evoluiu. Este é um bom método de estudar teologia, embora não se deva esquecer que também neste caso se requer muito esforço do s estudantes. N ão é fácil repassar com rap idez dois mil anos de história. Por razõ es m etodológicas, esta história costuma ser subdivida em períodos. Cada teólogo divide esses dois mil anos de história cristã a seu modo,mas
em geral adotam uma divisão como a que se expõe a seguir; os primeiros cem anos são chamados de período apostólico. O sentido hindamental desta palavra significa alguma coisa que "tem sua origem no tempo dos apóstolos" ou alguma coisa "diretamente ligada aos apóstolos". Tratase, portanto, do período durante o qual foram escritas as obras que hoje fazem parte do Novo Testamento e que geralmente se situam no século 1. Durante esse período, o cristianismo se expandiu por toda a região do mar Mediterrâneo, chegan do ainda mais longe. As viagens missionárias de São Paulo, descritas nos Atos dos Apóstolos, são um excelente exemplo desta atividade. Seguese o período patrístico, que se admite ter começado por volta do ano 100 e terminado com o Concílio de Calcedônia em 451. O termo patrístico originase da palavra latina pater, ou da grega patér, e designa os autores coletivamente conhecidos nesse período de formação do cristianismo como "Padres da Igreja" (infelizmente, houve entre eles muito poucas mulheres). O Concílio de Calcedônia foi um marco importante do pensam ento cristão, especialmente a respeito da identidade de Jesus Cristo. Muitos teólogo s são de parecer que no ano deste Concílio (451) encerrase uma importante era do desenvolvimento teológico. O período patrístico testemunhou importantes investigações teológicas da doutrina da Igreja, da identidade de Jesus Cristo, da doutrina da Trindade e da relação entre a graça e o livrearbítrio. Temse a seguir o período medieval, que, de modo geral, se entende do Concílio de Calcedônia até aproximadamente o ano 1500. O termo medieval aplicase aqui a um período médio ou "intermediário". O termo foi forjado po r autores humanistas do século XVI para definir o período (destituído de interesse para eles) entre a era clássica e o Renascimento. Nos dias de hoje ele é empregado de modo geral sem a conotação polêmica e crítica. O período medieval foi uma era de intensa produtividade teológica e deu ao mundo alguns gigantes da teologia. Já mencionamos Tomás de Aquino com sua volumosa Suma teológica, escrita no século XIII. Muitos outros nomes podem ser citados nesse período, como Duns Scott (12661308) e Cuilherme de Ockham (128 01349 ). Entre as muitas questões estu-
dadas detalhadamente nesse período, podemse mencionar a relação entre fé e razão e a teologia dos sacramentos. Na mesma época, houve uma investigação ininterrupta de questões debatidas durante o período patrístico, que trataram, por exemplo, da identidade de Cristo e da relação entre graça e livrearbítrio. O século XVI marcou um períod o de mudança radical na Igre ja do Ocidente. Foi o período da reforma, que testemunhou o surgimento da Reforma protestante, ligada a autores como Martinho Lutero (1483) e João Calvino, que deram início a uma nova era de reflexão teológica. Alguns temas teológicos tornaramse candentes nessa época, principalmente o lugar da Bíblia na reflexão teológica, a doutrina sobre a Igreja e a questão que indaga o que é prec iso fazer para ser salvo. A Igreja Católica também passou por uma fase de reforma ne ssa época com o Concílio de Trento (15441563), marcando a posição católica definitiva sobre importantes doutrinas da época. Muitos especialistas incluem o século XVII nesse período, afirmando que essa fase representa a consolidação protestante e católica dos avanços que tiveram início no século precedente. Foi nessa época que se deu a imigração de um grupo de cristãos para a América do Norte, estabelecendose naquela região um centro importante dos debates teológicos. Finalmente, o período moderno começa no século XVIII, em um período de grande instabilidade na Europa Ocidental, principalmente depois da Revolução Francesa, em 1789, e do posterior surgimento do marxismo na Europa Oriental no século XX. Apesar desses desassossegos, foi uma época de notável criatividade teológica em toda a Europa Ocidental e na América do Norte. Além disso, a presença crescente dos cristãos na África e na Ásia no século XX levou a um m aior interesse em elaborar "teologias locais" nessas novas regiões. Essas teologias locais se baseariam na tradição cristã, porém sensíveis às situações locais. Seria uma tarefa impossível fazer um levantamento desses desdobram entos esboçados com curtíssima brevidade nestes parágrafos.
O resultado final seria muito superficial e insatisfatório, e por isso não se adotou uma abordagem histórica nesta obra. O estudo da história da teologia é fascinante, mas precisa ser feito com muito maior profundidade do que se pôde fazer aqui. Felizmente, existe outra maneira de introdução à teologia, evitando esse problema. O método adotado nesta obra é temático. Examinaremos um grande número de campos do pensamento teológico para investigar o que os teólo go s cristãos disseram a respeito e com o desen volveram suas idéias. Poderemos, assim, discutir algumas importantes questões da teologia cristã de uma forma adequada, permitindo criar ferramentas para tratar de questões teológicas e não apenas conhecer o que alguns grandes teólogos pensavam a respeito dessas questões. Qu alquer com prom isso sério com a teologia envolverá o exame de temas teológicos específicos, teólogos individuais e a história da teologia. E impossível dedicarse adequadamente à teologia sem levar em conta o que os teólogos pensaram a respeito de certas coisas no passado e como tais coisas poderiam ser relevantes nos dias de hoje. Um livro sucinto como este não pode ter a pretensão de fazer jus às complexidades de pensadores individuais ou da história. N o entanto, a abord agem temática permitirá que olhemo s a história de um debate que tenha sido relevante para o tema em estudo e também que voltemos os olhos para teólogos individuais, quando eles tiverem uma contribuição particular a fazer para a discussão. O presente volume fornece dois outros recursos úteis para ajudar nesse processo de interação: um breve glossário de termos teológicos e dados biográficos dos principais teólogos mencionados no texto. Em toda a sua longa história, a teologia cristã sempre apelou para três recursos fundamentais: a Bíblia, a tradição e a razão. A abordagem temática permite explorar o lugar de cada um desses recursos na reflexão teológica. Em virtude de sua importância, examinaremos cada um deles com uma descrição pormenorizada antes de avançar para nosso primeiro tema.
Ap r e s e n t a ç ã o
da
B íb l i a
A palavra "Bíblia" vem do grego bihlia ("livros"), referindose a uma coleção de livros a que os cristãos atribuem autoridade em matéria de pensamento e vida. A Bíblia está dividida em duas partes principais, conhecidas como A ntig o Testamento e Novo Testamento. O termo "Antigo Testamento" é usado pelos autores cristãos para designar os livros da Bíblia cristã que foram considerados sagrados (e ainda o são) pelo judaísmo. Os cristãos concebem o Antigo Testamento como o cenário que prenuncia a vinda de Jesus de Nazaré, que leva os principais temas e instituições bíblicos ao seu cumprimento. Algumas vezes, esses textos são conhecidos como a "Bíblia hebraica". A palavra "testamento" deve ser explicada. Neste contexto teológico, significa "aliança" ou "concessão". A idéia fundamental é que o mesmo Deus que um dia fez uma aliança com o povo de Israel (a "antiga aliança") celebrou agora uma "nova aliança" com toda a hum anidade que promoveu o surgimento da Igreja cristã. O s principais pontos aqui contidos são: 1. O m esmo Deu s que cham ou o povo de Israel também ch amou a Igreja cristã. Ambos são "povos escolhidos", para usar a linguagem bíblica. 2. Um a nova fase do relacionamento de Deu s com a hum anidade se revelou em Jesus Cristo, e geralmente essa fase é chamada de "a nova aliança" ou "nova concessão". Essa realidade tem importantes implicações para a leitura cristã do Antigo Testamento. Para os cristãos, o Antigo Testamento antevê a vinda de Cristo. Essa idéia é desenvolvida regularmente no N ov o Testamento. Para investigar brevemente esse fato, basta ler os dois primeiros capítulos do evangelho segundo Mateus, o primeiro livro do N ov o T estamento. Co m essa leitura podese tentar respo nder às duas seguintes perguntas: 1. Quantas vezes uma frase com o "isto aconteceu para cum prir a profecia de..." ocorre nesses dois capítulos?
2. Por que pensam os que M ateus julga de tão grande importância o fato de que Jesu s Cristo cumpre a profecia do An tigo Testamento? Existe um acordo amplamente divulgado entre os cristãos segundo o qual a Bíblia ocupa um lugar de suma importância para a reflexão teológica e para a devoção pessoal. Todas as confissões de fé protestantes insistem no lugar central da Bíblia, N estes últim os tem pos, o C on cilio Vaticano 11 (19 62 19 65 ) re afirmou a importância da Bíblia na teologia e na pregação cristã da Igreja Católica. A autoridade da Bíblia é vista como ligada à idéia da "inspiração " — em outras palavras, de certa forma as palavras da Bíblia transmitem as palavras de Deus. Isto é o que declara com toda clareza a maior parte das confissões de fé protestantes, como, por exemplo, a "Confissão de Fé Gálica" (1559), que contém a seguinte declaração: A c r e d it a m o s q ue a P a la v r a c o n t id a ne s te s liv r o s pr o c e d e d e D e u s e r e c e be sua autoridade somente dele e não dos seres humanos.
O Catecismo da Igreja Católica (1992) expõe um modo de pensar semelhante: Deus é o autor da Sagrada Escritura. As realidades divinas reveladas, que se e n c o n t r a m c o n t i d a s e a pr e s e n t a da s n o t e x t o d a S a g r a d a E s c r i tu r a , f o r a m e s c rit as s o b a i ns p i r a ç ã o d o E s p ír i t o S a n t o . A S a n t a M ã e , a Ig r e j a , b a s e a n do - s e n a f é d a e r a a p o s t ól ic a , a c e i ta c o m o s a g r a d o s e c a n ô n i c o s o s l iv r o s d o A n t i g o T e s t a m e n t o e d o N o v o T e s t a m e n to , e m s ua t o t a lid a d e c o m t o d a s as pa r te s , f u nd a n do - s e n as r a z õ e s s e g u n d o as qu a is , t e n d o s i d o e s c r it os s o b i ns p i r a ç ã o d o E s p ír i t o S a n t o , e ss es liv r o s t ê m D e u s c o m o s e u autor e foram transmitidos como tais à própria Igreja. Deus inspirou os a ut or e s h u m a n o s d o s liv r o s s a g r a d os .
Existem algumas discordâncias no seio do cristianismo quanto à definição exata do que se deve admitir como contido na Bíblia.
A mais importante dessas discordâncias diz respeito a um conjunto de obras geralmente denominadas "apócrifas" (em grego, "coisas ocultas") ou "obras deuterocanônicas". Tal é o caso, por exemplo, do livro da Sabedoria de Salomão e do livro de Judite. O pontochave é que esses livros, embora datados do período do Antigo Testamento, não foram originariamente escritos na língua hebraica e, portanto, não foram incluídos nas Bíblias judaicas ou hebraicas. Às vezes, eles são reunidos sob o título "Tanakh", acrônimo formado pelas palavras hebraicas torah, nevi'm, ketuvim (lei, profetas, escritos). Os protestantes tendem a conceber os livros apócrifos como interessantes e informativos, mas não de importância doutrinal. Os católicos, por sua vez, consideramnos parte do texto da Bíblia. Essa diferença refletese no modo como a Bíblia protestante e a Bíblia católica são dispostas. As Bíblias protestantes, tais como a famosa Bíblia do Rei James, do ano de 161 1, ou a Nova Versão Internacional, abrangem esses textos como uma terceira parte da Bíblia conhecida como "Apócrifos". As Bíblias católicas, tais como a Bíblia de Jerusalém, incluem esses livros na parte do Antigo Testamento.
A TRADIÇÃO Uma série de controvérsias surgidas na Igreja primitiva tornou importante o conceito de tradição. A palavra "tradição" vem do termo latino traditio, que significa "entrega", "transmissão" ou "passar adiante". Essa idéia é de caráter totalmente bíblico, podemos ouvir São Paulo lembrando aos seus leitores que estava transmitindolhes os ensinamentos fundamentais da fé cristã que ele mesmo tinha recebido de outras pesso as ( iC o r 15,14). O termo pode referirse tanto à ação de transmitir ensinamentos a outras pessoas — algo que, conforme Paulo insiste, deve ser feito dentro da Igreja — com o a um con junto de ensinamentos transmitidos de ssa maneira. A tradição pode, assim, ser entendida tanto como o processo quanto como o conjunto de ensinamentos. Três cartas do Novo Testamento relacionadas particularmente com questões sobre a estrutura da Igreja e a transmissão de ensinamento cristão: 1Timóteo, 2 Timóteo e Tito (as ch a-
madas epístolas pastorais), ressaltam, de modo particular, a importância de "guardar o bom depósito confiado a vós" (2Tm 1,14). O Novo Testamento também emprega a noção de tradição no sentido negativo, significando alguma coisa como "idéias e práticas humanas que não estão divinamente autorizadas". Assim, Jesus Cristo criticava abertamente algumas tradições humanas no judaísmo, como se pode ver, por exemplo, em Mateus 15,16 e Marcos 7,13. A importância da idéia da tradição tornouse óbvia primeiramente em uma controvérsia surgida no século II. A "controvérsia gnóstica" centralizavase em uma grande quantidade de questões, inclusive na questão sobre o modo como a salvação devia ser alcançada. (A palavra gnóstico provém do termo grego gnosis, "conhecimento", e referese à crença em idéias secretas que precisavam ser conhecidas para que se alcançasse a salvação.) Os autores cristãos se viram obrigados a tratar de algumas interpretações da Bíblia muito incomuns e criativas. Como deveriam proceder diante dessas teorias? Se a Bíblia devia ser tomada como um livro de autoridade, toda interpretação da Bíblia deveria ser considerada dotada de igual valor? Ireneu de Lião (entre os anos 130 e 200), um dos maiores teólogos da Igreja, não pensava assim. Saber como a Bíblia devia ser interpretada era uma questão de suma importância. Os hereges, argumentava ele, interpretavam a Bíblia de acordo com seu próprio gosto. Os fiéis ortodoxos, pelo contrário, interpretavamna segundo o modo aprovado pelos autores apostólicos. O que tinha sido transmitido desde os apóstolos por intermédio da Igreja não eram meramente os textos bíblicos em si mesmos, mas uma certa forma de leitura e compreensão dos textos: T o d o a q ue l e q ue d e s e ja r e c e b e r a v e r d a d e d e v e c o n s i d e r a r a t r a d i ç ã o a p o s t ó li c a q ue f o i d a d a a c o n h e c e r e m t o d a a Ig r e j a , e m t o d o o m u n d o . T e m o s c o n d i ç ã o d e e n um e r a r a q ue l e s q ue s ã o b is p o s n o m e a d o s p e lo s a p ó s t o l o s e seus sucessores nas igrejas até os dias de hoje, e que não ensinaram e não conheceram nada destas coisas como estas pessoas imaginam.
O argum ento de Ireneu é que é possível esten der uma corrente contínua de ensinamento, vida e interpretação cristã desde a época dos apóstolos até o período em que ele mesmo vivia. A Igreja é capaz de transmitir àqueles que mantiveram o ensinamento da Igreja e a certo tipo de público os credos comuns que expunham as principais linhas da fé cristã. A tradição é, dessa forma, a testemunha que garante a fidelidade ao ensinamento apostólico original, constituindo uma salvaguarda contra as inovações e falsas interpretações dos textos bíblicos por parte dos gnósticos. Esse desdobramento é de grande importância, porque está contido no aparecimento dos "credos", as afirmações públicas dotadas de autoridade dos pontos básicos da fé cristã, fundamentados na Bíblia, evitando, assim, interpretações dissidentes do material bíblico. Esse ponto foi ainda desenvolvido no início do século V por Vincent de Lérins (falecido antes de 450), que se preocupava com certas inovações doutrinárias que estavam sendo introduzidas e divulgadas sem motivos aceitáveis. H avia a necessidade de elaborar normas públicas para julgar essas doutrinas. Assim, pois, que norma existia que pudesse proteger a Igreja contra os erros? Para Vincent, a resposta era clara: a tradição. A tradição era "uma regra de interpretação dos profetas e dos apóstolos de maneira que fosse dirigida pela regra da Igreja universal".
Os
CREDOS
Tendo observado a importância dos credos, podemos investigar como chegaram até nós na forma atual. O surgimento dos credos foi ensejado por dois fatores de grande importância: 1. A necessidade de afirmações públicas da fé que pudessem ser usadas no ensinamento e na defesa da fé cristã contra as falsas interpretações. 2. A necessidade de "profissões de fé" pessoais, por ocasião do Batismo. Já abordamos o primeiro ponto, o segundo necessita de uma indagação ulterior. Sabese que a Igreja primitiva atribuía suma im-
portância ao Batismo dos novos membros. N os séculos 111 e IV, desenvolveuse um modelo definido de instrução e Batismo; os novos membros da Igreja eram instruídos nos elementos fiandamentais da fé cristã durante o período da Quaresma e eram batizados no dia de Páscoa. Pediase que esses novos membros da Igreja confirmassem sua fé dando o consentimento às declarações principais da fé cristã. D e acordo com a Tradição apostólica, de autoria de Hipólito Romano (falecido por volta de 236), que data dos primeiros anos do século III, sabemos que eram feitas três perguntas ao candidato ao Batismo; "Crês em Deus Pai todopoderoso? Crês em Jesus Cristo, nosso Salvador? Crês no Espírito Santo, na santa Igreja, no perdão dos pecados?" Com o passar do tempo, essas perguntas foram sendo pouco a pouco trocadas por uma profissão da fé que cada candidato devia pronunciar. O credo mais importante que surgiu desses "credos batismais" é o "Credo dos Apóstolos", amplamente empregado no culto cristão dos nossos dias. Tradicionalmente, ele expõe doze artigos, cada um atribuído a um dos doze apóstolos. Embora nos dias de hoje se admita que esse credo não foi, de fato, escrito pelos próprios apóstolos, podese dizer que é "apostólico", porque contém as principais idéias da fé cristã que a Igreja recebeu dos doze apóstolos. A forma atual do credo pode ser atribuída ao século VIII. Na forma atual (transcrita anteriormente), essa profissão de fé consta de três partes, que correspo ndem às três perguntas que, com o afirma Hipó lito, eram feitas aos candidatos ao Batismo naquela época (século III). Sem dúvida, cada uma das três perguntas foi expandida, mas a estrutura fundamental ainda pode ser identificada. O Credo dos Apóstolos oferece um resumo bastante cômodo de alguns dos temas principais da fé cristã, e utilizaremos seus artigos como base da exposição que será feita em todo este livro.
A RAZÃO Finalmente, é preciso notar a importância da razão na teologia cristã. Tradicionalmente, a teologia cristã tem atribuído à razão uma função auxiliar da revelação. Tomás de Aquino afirma que as verda-
des sobrenaturais precisam ser reveladas a nós. A razão humana, por si mesma, não pode pretender ter acesso aos mistérios divinos, mas pode refletir sobre as verdades divinas, uma vez que tenham sido reveladas. Esse foi o modo de pensar adotado pela maior parte dos teólogos cristãos. A razão permite que reflitamos sobre a revelação, desde que adotemos para isso uma atitude crítica. Essa atitude crítica e ao mesmo tempo positiva perante a razão humana pode ser observada em toda a obra de Agostinho de Hipona, que foi, talvez, o escritor mais importante e influente do Ocidente latino. O argumento proposto por Agostinho é que a razão humana e as filosofias nela baseadas têm muita coisa a oferecer à teologia, desde que essas filosofias sejam utilizadas criteriosamente. Agostinho usa uma analogia bíblica interessante para provar este seu mo do de pensar. Q ua nd o Israel saiu do Egito na época do Êxodo, levou consigo "muitos tesouros dos egípcios". Tomando o Êxodo como modelo, Agostinho argumenta que não há motivo que possa impedir os cristãos de extrair tudo o que existe de bom na filosofia para o serviço da pregação do Evangelho. Da mesma maneira como Israel deixou para trás o fardo do Egito, porém levando consigo os tesouros, assim também a teologia pode abandonar o que é inútil na filosofia e aproveitar o que é bom e útil. S e a q ue l e s q ue s ã o c h a m a d o s f i lós o f o s , p r i n c i p a l m e n t e o s p l a t ôn i c o s , d i s s e r a m a l g u m a c o i s a v e r d a d e i r a e c o m p a t ív e l c o m n os s a f é, ta is c o is a s n ã o d e v e m s er r e j e it a da s , m a s a p r o v e i ta d a s [ . .. ] . O s e g íp c io s p o s s u ía m í d o lo s e impunham um fardo pesado que os filhos de Israel detestavam e dos quais escaparam, mas os egípcios possuíam também preciosos vasos de o u r o e p r a t a e in d u m e n t á r i a q ue n o s s o s a n t e pa s s a d o s , a o s a ír e m d o E g i to , t o m a r a m c o n s i g o , e m s e g r e d o , a f im d e f a z e r o m e l h o r us o d es s es o b je t o s p r e c io s o s (E x 3,21 - 22,- 1 2 , 3 5 - 3 6 ) [ . .. ] . D a m e s m a m a n e i r a , a c i ê n c i a d o paganismo não consta inteiramente de falsos ensinamentos e superstições [ . .. ] m a s c o n t é m e x c e l e nt e s l iç õe s a pt as a s er u t il iz a d a s p e l a v e r d a d e , a l é m d e p o s s u ír e m e x c e l e nt e s v a l o r e s m o r a i s .
'
A atitude de Ago stinho — atitude que vigorou até os inícios da era moderna — determinou em grande parte o pensam ento do cristianismo sobre o lugar da razão. Toda essa atitude mudou na grandiosa "Idade da Razão" da cultura ocidental, que a maior parte dos historiadores faz remontar aos aproximadamente duzentos anos entre 1750 e 1950. Nesse período, passouse a afirmar a confiança na capacidade da razão humana para explicar e dominar o universo. Afirmavase que a razão era capaz de deduzir qualquer coisa que precisasse ser conhecida a respeito de Deus. Não havia necessidade de propor a revelação divina. Pelo contrário, poderíamos nos apoiar totalmente na razão. Essa posição geralmente é conh ecida com o "racionalismo" e ainda se encontra em alguns círculos teológicos em nossos dias. No entanto, a credibilidade dessa teoria foi gravemente abalada ao se constatar de dia para dia que diferentes culturas possuem distintas noções de racionalidade. A razão não era a qualidade universal que muitos racionalistas pensavam que fosse. Existe, naturalmente, um interesse contínuo, hoje em dia, em avaliar o papel da razão na teologia. O sinal mais claro desse interesse é o debate sobre os "argumentos para a prova da existência de Deus". O debate apresenta uma questão em aberto, indagando se a existência de Deus (sem falar da existência do Deus dos cristãos) pod e ser provada pela razão. N esse sentido, o vivo interesse desp ertado por essa questão demonstra que a razão tem um papel relevante no debate teológico. Um pouco mais adiante, teceremos alguns breves comentários sobre esses argumentos. Por ora, consideraremos apenas um dos aspectos mais interessantes da relação entre fé e razão : o uso de "auxiliares" ou de "sócio s de diálogo" em teolo gia, que se exprime pela conhecida expressão latina ancilla theologiae, que significa literalmente "serva da teologia".
A " s e r v a ";
d iá l o g o
E NT RE A T E O L O G IA E A C U L T U RA
Existe uma antiga tradição na teologia cristã que consiste em se inspirar em recursos intelectuais alheios à tradição cristã como meio de elaborar a visão teológica. Esse método (geralmente cha-
mado de ancilla theologiae, como acabamos de notar) parte da idéia básica de que os sistemas filosóficos podem ser bastante úteis para estimular a reflexão teológica, possibilitando o diálogo entre pensadores cristãos e a cultura que os cerca. Os dois exemplos históricos mais importantes desse método de abordagem da teologia são os diálogos estabelecidos com o platonismo e o aristotelismo. O diálogo com o platonism o foi de suma importância nos cinco primeiros séculos da Igreja cristã, especialmente no mundo de língua grega do Mediterrâneo oriental. Ao se expandir por aquela região, o cristianismo encontrouse com correntes filosóficas rivais, das quais uma das mais importantes foi o platonismo. Essas correntes filosóficas podiam ser vistas positivamente ou negativamente; podiam ser uma oportunidade de diálogo e desenvolvimento intelectual e, ao mesmo tempo, podiam ser uma ameaça à existência do cristianismo. A tarefa encarada por autores como Justino Mártir (entre os anos 100 e 165) ou Clemente de Alexandria (entre os anos 150 e 230) consistia em utilizar os méritos intelectuais óbvios do platonismo para construir uma visão cristã do mundo, sem com prom eter a integridade do cristianismo. N o entanto, ap esar das semelhanças eventuais, o cristianismo não é platonismo. Abriuse um novo debate no século XIII, na Idade de Ouro da teologia escolástica. A redescoherta de Aristóteles pelos estudiosos medievais parecia oferecer novos recursos para ajudar na pesquisa de cada aspecto da vida intelectual, inclusive nos ramos da física, da filosofia e da ética. Era inevitável que também os teólogos quisessem saber o uso que poderiam fazer das idéias e dos métodos de Aristóteles para construir uma teologia sistemática. Surgiu assim a volumosa obra de Tomás de Aquino conhecida como Suma teológica, considerada uma das maiores obras da teologia já escritas. Nesses dois casos, o uso de outra disciplina intelectual como ancilla theologiae oferece oportunidades e riscos na mesma medida. É importante avaliar essas oportunidades e esses riscos. As duas principais oportunidades oferecidas à teolo gia pelo recurso a outra disciplina podem ser resumidas da segu inte maneira:
1. É possibilitada uma investigaç ão muito mais rigo rosa das idéias do que seria possível de outra maneira. Os problemas que a teologia cristã encontra ao tentar desenvolver suas idéias, têm, muitas vezes, paralelo em outras disciplinas. Tomás de Aquino, por exemplo, constatou que a noção de "movente imóvel" de Aristóteles era útil para expor alguns argumentos que provassem a existência de Deus. 2. A segund a oportunidade permite que a teolo gia cristã estabeleça diálogo com outra visão do m undo — elemento principal da forma como a Igreja testemunha ao seu contexto secular. No século II, Justino Mártir acreditava claramente que muitos platônicos se impressionariam com as idéias paralelas existentes entre platonismo e cristianismo a ponto de poderem se converter. Do mesmo modo, o apóstolo Paulo em seu discurso pronu nciado no Areópago, referido nos Atos dos Apóstolos (17,2231), expõe alguns temas da filosofia estóica ao tentar comunicar a mensagem cristã à cultura ateniense. Não obstante, ao longo desses aspectos positivos, devese ter em mente também um risco óbvio ; as idéias que não são distintamente cristãs podem desempenhar um papel importante (talvez até decisivo) no campo da teologia cristã. Por exemplo, as idéias de Aristóteles a respeito do modo próprio do raciocínio lógico ou as idéias cartesianas a respeito do ponto de partida próprio de qualquer disciplina intelectual podem encontrar seu caminho na direção da teologia cristã. Em algumas ocasiões, isto poderá ter um desenvolvimento neutro, já em outras circunstâncias, poderá ser reconhecido como ocasião de implicações negativas, ameaçando a integridade da teologia cristã e, em última análise, distorcendo sua pureza. Martinho Lutero, o grande reformador alemão, afirmava que a teologia medieval tinha permitido o surgimento de muitas dessas distorções mediante o uso excessivo e parcialmente nãocrítico das idéias de Aristóteles na Idade Média.
Apesar dessas preocupações, o método continua a ser amplamente empregado. Muitos teólo gos alemães do século XIX julgavam ser a obra d os filósofos G. W. R He gel ( 17701831 ) e Immanuel Kant (17241804) uma parceira útil para o diálogo. No século XX, Rudolf Bultmann (18841976) e Paul Tillich (18861965) também achavam que o diálogo com o existencialismo era teologicamente produtivo. Ultimamente, eu mesmo afirmei que os métodos de trabalho e as hipóteses das ciências naturais podem ser teologicamente importantes. Pr o s s e g u i n d o
Esta "introdução" esboçou um quadro rápido da teologia cristã, mas deixou grandes áreas completamente intocadas. A melhor maneira de preencher essas lacunas consiste em começar a investigar alguns temas teológicos específicos, utilizando esses meios de reflexão sobre algumas questões, idéias, personalidades e debates da teologia cristã. Para isso, utilizaremos uma estrutura própria. Em vez de explorar as questões aleatoriamente, faremos nossos estudos seguindo o esquema resumido no Credo dos Apóstolos. Ao tomar esta decisão, fui influenciado por duas considerações especiais. Muitas pessoas que irão utilizar este livro participarão de grupos de estudos em igrejas e faculdades em que o Credo dos Apóstolos é um ponto de referência óbvio para a discussão. Muitos colegas dão cursos de doutrina cristã fundamental esquematizados segundo os artigos do Credo dos Apóstolos, de modo que este livro poderá servir também como leitura auxiliar. No entanto, o método básico do livro não se prende a um determinado modo. Os temas identificados para ulterior pesquisa são de grande interesse teológico e interpretam o contexto em que são estudados. Por onde deveremos começar? Obviamente, procuraremos considerar o que significa dizer que "cremos" em Deus. O Cred o dos Apóstolos iniciase com "Creio". O que significa isto? Que questões são levantadas com essa expressão? Poderemos passar a examinar essas questões. :
Capítulo
A fé
"Creio em Deus." Essa frase concisa de abertura do Credo dos Apóstolos levanos diretamente ao primeiro tema teológico. O que significa falar sobre "crer em Deus"? O que devemos entender pelas palavras "crença" e "fé"?
O
Q U E É A FÉ
O sentido bíblico da palavra "fé" tem muitos aspectos. Existe um tema bíblico de particular importância: a idéia da confiança em Deus relatada na famosa narrativa do Antigo Testamen to sobre a v o cação de Abraão no livro do Gênesis (15,16). Essa narrativa conta com o Deus prometeu dar a Abraão uma descendên cia numerosa, tão numerosa quanto as estrelas que aparecem de noite no firmamento. Abraão acreditou em Deus, isto é, confiou na promessa que tinha sido feita a ele. Da mesma forma, as multidões que rodeavam Jesus muitas vezes são descritas como multidões que tinham "fé", isto é, acreditavam que Jesus tinha uma condição especial, uma identidade ou autoridade especial, e que dispunha de meios para curar as pessoas de suas enfermidades ou atender a suas preocupações (ver, por exemplo, Lc 5,20; 17,19). Aqui, de novo, a idéia fundamental é a confiança — neste caso, uma confiança mesclada com discerni-
mento de que existe alguma coisa a respeito de Jesu s que merece tal atitude de confiança. Na linguagem comum, palavras como "fé" e "crença" passaram a significar algo como uma "tênue forma de conhecimento". Sei que a fórmula química da água é H^O ou que a terra gira ao redor do sol. Quando digo: "Sei" que "a capital dos Estados Unidos da América é Washington, DC", quero dizer que essa afirmação pode ser comprovada. Porém, quando digo "Creio em Deus", essa expressão é entendida amplamente com o significando alguma coisa como "Acho que existe um Deus, mas não posso demonstrar isso com certeza". Esse uso comum dos termos "fé" e "crença" está sujeito a desorientações por não justificar a complexidade da noção teológica de "fé". Nos séculos XVIIl e XIX, a filosofia ocidental acreditava, de modo geral, que qualquer coisa em que se pudesse acreditar podia ser provada — fosse por raciocínio lógico, fosse p or experimentação científica. O grande matemático do século XIX W. K. Clifford (18451879) afirmava: "E errado sempre, em toda parte e para qualquer pessoa acreditar em qualquer coisa de que não se tenha prova suficiente". Esse "positivismo" exerceu um vigoroso impacto na cultura ocidental, com uma influência que ainda prevalece em nossos dias. A idéia da "fé em Deus" foi ridicularizada por alguns autores racionalistas segundo os quais seria absolutamente irrelevante a noção de Deus se a existência de Deus não pudesse ser provada. No entanto, com o avançar do tempo, a credibilidade desta posição acabou gravemente enfraquecida. Tornouse cada vez mais claro que muitas das crenças fund amentais da cultura ociden tal estão além de qualquer prova. O filósofo da ciência Michael Polanyi afirmou que certas crenças que não podem ser provadas estão latentes nos métodos de trabalho das ciências naturais. Como Alfred, Lord Tennyson (18091892), afirmou, em seu poema "The Ancient Sage", nada em que realmente vale a pena acreditar pode ser provado da forma que pessoas como Clifford exigiam:
Nada que merece ser provado é p r o v a d o o u r e f u t a d o . P o r t a n t o , s e ja s áb io , tome sempre o lado mais radiante da dúvida'.
Partindo dessa afirmação, os filósofos se tornaram muito mais realistas. Algumas coisas podem ser provadas, outras, porém, estão além de qualquer prova por sua própria natureza. Deus é uma destas coisas. A
E X IS T Ê N C IA D E D e U S P O D E S E R P R O V A D A ?
A atitude cristã fundamental perante as provas da existência de Deus pode ser explicada da seguinte maneira: 1. A existência de Deus é uma coisa que a razão não pode provar conclusivamente. No entanto, o fato de a existência de Deus estar além da razão não significa de maneira alguma que ela seja contrária à razão. 2. Certas razões excelentes podem ser aduzidas para sugerir a existência de Deus, mas essas razões não podem ser tidas com o "provas" no sentido de "demonstrações lógicas rig orosas" ou "experimentos científicos conclusivos". 3. A fé referese à confiança em Deus antes que a con cordar que Deus existe. A seguir, vamos investigar esse aspecto da teologia cristã um pouco mais detidamente, destacando as idéias de Tomás de Aquino, talvez o teólogo mais famoso e influente da Idade Média. Nascido na Itália, ele conquistou grande fama em sua carreira de mestre e escritor na Universidade de Paris e outras universidades do norte da Europa. Sua fama está ligada principalmente à sua conhecida obra Suma teológica, elaborada no final de sua vida e deixada inacabada. Ele escreveu também muitas outras obras importantes, principalmente 1. F o r n o t h i n g w o r t h y p r o v in g c a n be p r o v e n /N o r y e t d is p r ov e n : w h e r e f o r e t h o u be w is e ,/C le a v e e v e r to the s unn ie r s id e o f d o ub t .
a Summa contra Gentiles (Suma contra gentios), que representa uma afirmação importante da racionalidade da fé cristã e especialmente da existência de Deus. Tomás de Aquino achava que era absolutamente apropriado identificar as explicações em defesa da existência de Deus tiradas da experiência humana geral do m undo. Suas "Cinco vias" representam cinco linhas de argumentação em favor da existência de Deus, cada uma delas baseada em algum aspecto do mundo que "aponta" para a existência do seu criador. ‘ Que tipos de indicação Tomás de Aquino identifica? A linha básica que orienta seu pensamento é que o mundo espelha Deus como seu criador, idéia de Aquino que recebe uma expressão mais formal em sua doutrina sobre a "analogia do ser". Exatam ente com o o artista pode assinar um quadro que pinta para identificálo como seu trabalho, também Deus estampou sua "assinatura" divina na criação. O que observamo s no mundo — por exemplo, os sinais da organização do mundo — pode ser explicado se Deus foi seu criador. Se Deus criou o mundo e imprimiu sua divina imagem e semelhança no mundo, então algo da natureza de Deus pode ser conhecido por meio da criação. Perguntamos: Em que elementos da criação podemos encontrar provas da existência de Deus? Tomás de Aquino afirma que a ordem do universo é a prova mais convincente da existência e da sabedoria de Deus. Essa hipótese fundamental está na base de cada uma das Cinco vias, embora seja de importância particular no caso do argumento muitas vezes m encionado com o "argumento do d esíg nio" (ou da finalidade) ou "argumento teleo lógico". Consideraremos a primeira e a última dessas duas "vias" para ilustrar as questões. A primeira via começa pela observação de que as coisas que existem no mundo estão em movimento e mudança. O mundo não é estático, mas dinâmico. Exemplos desse dinamismo são a chuva que cai do firmamento, as pedras que rolam pelos vales, a Terra que gira ao redor do Sol (um fato, aliás, desconhecido de Tomás de Aquino). Essa primeira via de argumentação de Tomás de Aquino
é mencionada normalmente como "argumento do movimento'', no entanto, é claro que o "movimento" em questão se entende realmente em term os mais gerais, sem dúvida seria mais ap ropriado usar o termo "mudança". Podese perguntar então: Como é que a natureza entrou em movimento? Por que ocorrem as mudanças? Por que a natureza não é estática? Tomás de Aquino afirma que tudo o que se move é movido por outra coisa. Cada movimento tem uma causa. As coisas não se movem somente por se mover, mas são movidas por outra coisa. Ora, cada causa de movimento deve, por sua vez, ter outra causa. E essa outra causa deve ter também outra causa. Assim, Tomás de Aquino argumenta que existe uma série de causas de movimento por trás do mundo da forma com o o conhecem os. Se não há um número infinito dessas causas, argumenta Tom ás de Aquino, deve haver uma causa única na origem de toda a série. Desta causa original do movimento é que se origina, em última análise, todo movimento ulterior. Esta é a origem da grande cadeia de causalidade que vemos refletida na forma como o mundo se comporta. Partindo da constatação do movimento das coisas, Tomás de Aquino afirma que existe uma causa única original de todo esse movimento. Essa causa única e primeira, insiste Tomás de Aquino, não é outra senão Deus. N os últimos tempos, esse argumento tem sido reafirmado, des crevendo Deus como aquele que trouxe o mundo à existência. Por essa razão, esse argumento é chamado muitas vezes de argumento "cosmológico" (da palavra grega kosmos, "universo"). A afirmação mais comum do argumento é feita nas seguintes linhas: 1. Tudo que se encontra contido no universo depende de ou tra coisa para sua existência. 2. O que é válido para as partes individuais também é válido para o todo. 3. O universo depende, assim, de outra coisa para sua ex istência, enquanto existiu ou enquanto existirá. 4. O universo depende, pois, de Deus para sua existência.
O argumento supõe basicam ente a existência do universo com o alguma coisa que requer explicação. E óbvio que esse tipo de argumento referese diretamente à pesquisa cosm ológica m oderna, particularmente a respeito da teoria do big bang da origem do cosmos. A quinta e última via é conhecida como "argumento teleológico", que se origina da palavra grega telos, "finalidade" ou "meta". Tomás de Aquino observa que o mundo mostra sinais claros de um plano inteligente. Os processos e objetos naturais parecem estar adaptados, tendo em vista alguns objetivos bem definidos. Parecem ter uma finalidade. Parecem ter sido plan ejados. M as as coisas não se planejam por si mesmas: são causadas e planejadas por algum outro ser Partindo desta observação, Tomás de Aquino conclui que a fonte dessa organização natural deve ser atribuída a Deus. Esse argumento foi desenvolvido por William Paley (17431805). De acordo com Paley, o mundo é como um relógio: mostra prova de um plano inteligente, tendo sido criado para uma determinada finalidade. Se existe o relógio, deve existir também o fabricante do relógio. Paley sentiase especialmente impressionado com a forma construtiva do olho humano, que, conforme afirmava, era tão com plexo e tão desenvolvido que só podia ser o resultado de um projeto e de uma construção inteligente. O argumento de Paley exerceu grande influência na Inglaterra no século XIX. No entanto, a plausibilidade desse argumento foi ofuscada pela teoria da evolução proposta por Charles Darwin (1809 188 2), que propô s uma explicação alternativa do m odo como as estruturas complexas teriam surgido. Em sua obra A origem das espe'cies (1859), Darwin insistia que a explicação de tudo isso poderia ser puramente natural, sem necessidade de um projetista divino inteligente. No entanto, o "argumento do desígnio" permanece como uma idéia intrigante que continua a fascinar as pessoas. Obviamente, os cinco argumentos de Tomás de Aquino baseiamse em uma estrutura única. Cada argumento depende de atribuir uma seqüência causal à sua origem única, identificando essa origem única com Deus. N ão se trata aqui de provas no sentido rigoroso
da palavra, porque na realidade se pressupõe a existência de Deus! O método de Tomás de Aquino é, na verdade, um tanto diferente. Seu argumento é que, se pressupusermos que Deus criou o mundo, chegaremos a um modo de compreender o mundo que, por sua vez, nos faz entender muitas coisas. Em outras palavras, Tomás de Aquino está afirmando que, na perspectiva cristã, a existência de Deus corresponde bem àquilo que se pode observar no mundo. Temse, então, uma confirmação e não propriamente uma prova da existência de Deus.
As
P R O V A S A C IM A E X P O S T A S T Ê M A L G U M A U T IL I D A D E ?
Acontece, porém, que outros teólogos consideram as "provas" acima descritas com ceticismo. O grande matem ático e filósofo francês Blaise Pascal (16231662) tinha duas preocupações principais a respeito da metodologia adotada por Tomás de Aquino. Em primeiro lugar, ele julgava difícil aceitar que o "deus" filosófico um tanto abstrato que resulta dos argumentos de Tom ás de Aquino fosse alguma coisa como o Deus Vivo do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Em seus Pensamentos, Pascal exprime mais ou menos esta idéia: "As provas metafísicas da existência de Deus são tão remotas e afastadas do raciocínio humano, tão complexas, que pouco é o impacto que causam". Em segundo lugar. Pascal afirma que essas "provas" supõe m que Deus é conhecido principalmente por meio da razão. Para Pascal, o coração humano também tem motivos para crer (ou não crer!) em Deus. "Conhecemos a verdade não só através da razão, mas também através do coração." O apelo de Deus à condição humana foi bem mais além de qualquer ressonância entre o mundo como o conhecemos e as idéias da fé cristã, e estendese até incluir uma aspiração profunda por Deus, que Pascal considera de grande importância na busca antiga e interminável de Deus e de seu sentido definitivo. Por fim, de acordo com Pascal, não po dem os persuadir alguém a entrar no Reino de Deus. A existência de Deus não é algo que possa ser provado. Da mesma maneira, a nãoexistência de Deus
também não pode ser provada. Não é difícil entender que o ateísmo também é uma crença. O ateu acredita que não existe Deus. Essa crença, porém, é tão difícil de provar como a crença cristã na existência de Deus. Um dos críticos mais severos e perspicazes das provas racionais da existência de Deus foi o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (18891951). O argumento que ele expõe é simples: as assim chamadas "provas da existência de Deus" são formuladas por pessoas que já acreditam em Deus por outras razões, admitindo apenas que essas provas são importantes para defender a fé que já possuem. A pr o v a d a e x is tê n c ia de D e u s t e m de s er a l g u m a c o is a c a p a z de c o n v e n c e r d e q ue D e u s e x i s te . A m e u v e r, o s crentes q ue f o r n e c e r a m e ss as pr o v a s p r e t e n d i a m m u n i r s ua "c r e n ça " d e u m a a n ál is e e de f u n d a m e n t o i n t e l e c t ua l , e m b o r a e le s m e s m o s n u n c a h o u v e s s e m d e c r e r c o n v e n c i d o s p o r es sas p r ov a s .
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FÉ E S T Á A L É M DA R A Z Ã O , M A S N Ã O É C O N T R Á R IA À R A Z Ã O
Um a das discu ssões recentes mais importantes da relação entre fé e razão encontrase na encíclica de 1998 Fides et ratio (Fé e razão), do papa João Paulo II. Na encíclica, João Paulo II (Karol Wojtyla, 19202005) expõe a visão cristã clássica da relação entre fé e razão de uma maneira bastante acessível. A seguir, vamos investigar os argumentos desse importante documento. A carta abrese com a declaração de que a fé e a razão podem agir conjuntamente: A f é e a r a z ão s ão c o m o dua s asas c o m as q ua is o e s p ír it o h u m a n o se e le v a a té a c o n t e m p l a ç ã o d a v e r d a de , e D e u s c o l o c o u n o c o r a ç ã o h u m a n o o d e s e jo d e c o n he c e r a v e r d a de — e m s u m a , de c o n h e c e r a si m e s m o — de m o d o q ue , c o n h e c e n d o e a m a n d o a D e u s , as pe s s oa s po s s a m t a m b é m a l cançar a plenitude da verdade a respeito de si mesmas.
Essa afirmação encerra um argumento rico e pod eroso que merece atenção especial. A idéia fundamental é que os seres humanos
aspiram a conhecer a verdade e encontramse em uma constante busca da verdade. "Nas profundezas do coração humano existe uma semente de desejo e saudade de Deus." Então, a razão sozinha pode conduzir a humanidade até essa verdade? A encíclica rende um digno tributo à filosofia, como a busca humana legítima da verdade. A filosofia é "uma das mais nobres atividades humanas", "impulsionada pelo desejo de descobrir a verdade última da existência". No entanto, sem ajuda, a razão humana não pode penetrar plenamente no mistério da vida nem responder a perguntas como "por que estamos aqui?". Por este motivo Deus, em sua benevolência, optou por tornar essas coisas conhecidas por meio da revelação, do contrário permaneceriam desconhecidas. "A verdade que nos foi dado conhecer pela revelação não é produto nem consumação de um argumento inventado pela razão humana." A encíclica explica que a fé não é uma confiança cega, oposta à evidência do mundo, mas, pelo contrário, mostra que o mundo — que os cristãos vêem com o criação de Deus — está repleto de indícios da existência e da natureza de Deus. A encíclica alude ao sermão que Paulo pregou no Areópago de Atenas (At 17), afirmando que é absolutamente razoável deduzir a existência de Deus das maravilhas da natureza e do sentido humano da divindade que existe dentro de nós. Essas coisas não podem ser aduzidas como "provas", mas são confirmação ou reafirmação dos temas fundamentais da fé. No século XI, Anselmo de Cantuária afirmava que a "fé busca o entendimento". Depois de adquirir a fé, desejamos compreender sua dinâmica e suas estruturas internas. Semelhantes linhas de argumentação são desenvolvidas por John Polkinghorne (nascido em 1930), um dos principais físicos teó ricos da GrãBretanha, que d emonstra um vivo interesse pela teolo gia cristã. Em todos os seus numerosos livros, Polkinghorne demonstra que o cristianismo, como as ciências naturais, tem a preocupação de buscar o sentido do mundo com base na comprovação existente. "A fé não é questão de fechar os olhos, ranger os dentes e crer no impossível. A fé supõe um salto, mas um salto para a luz e não para o
escuro." A fé deve ser entendida com o "crença motivada, baseada na prova". A fé está baseada rigorosamente na reflexão sobre o mundo — nos vários "rastros" que levam às suas origens e à sua natureza. Por exemplo, Polkinghorne afirma que a ciência nos mostra um universo profundamente inteligível, racionalmente belo, perfeitamente afinado e produtivo, intrinsecamente racional, parcialmente encoberto em sua índole, aberto em seu processo e gerador de informações em sua própria natureza. Essas propriedades notáveis, argumenta ele, não são meros acidentes felizes, senão alguma coisa que precisa ser explicada. Para Polkinghorne, a melhor explicação dessas observações é que o mundo é a criação ordenada de Deus. Esse modo de ver é baseado em prova, perguntando como é que tudo o que observamos po de ser explicado da melhor maneira possível. N ão se trata de uma visão conclusiva, mas é altamente sugestiva. Polkinghorne também põe em relevo a importância da figura de Jesus de Nazaré para a fé cristã. Jesus faz parte da prova que deve ser avaliada: O c e n t r o d a m i n h a f é e s t á e m m e u e n c o n t r o c o m a f ig u r a de J e s us C r i s t o , quando o encontro nos evangelhos, no testemunho da Igreja e dos sa c r a m e n t o s . A q u i e s tá o â m a g o d a m i n h a f é e da m i n h a e s p e r a n ç a c r is t ã. N o e n t a n t o , e m u m n ív e l s u bs i diár i o , po r é m d e a p o i o , e x i s te m t a m b é m indícios da presença de Deus que surgem dos nossos conhecimentos cien t íf ic o s . O m o d o a tua l c o m o r e s p o n d e m o s à p e r g u n ta "C o m o ? " le v a- no s também a fazer outra pergunta, "Por quê?", de modo que a ciência, por si mesma, não é, a nosso ver, suficiente e intelectualmente satisfatória.
Apesar de alguns autores ateístas insistirem em retratar a fé cristã como um salto cego no escuro, é claro que a realidade é outra. A fé, como Tomás de Aquino explica, tem suas razões. Até esta altura, consideramos a fé principalmente como aceitação intelectual. Para Tomás de Aquino, a fé poderia ser definida como "assentimento à revelação divina". Contudo, a fé é um pouco mais que isso. No século XVI, começouse a dar uma ênfase particular à dimensão relacional da fé. "Crer em Deus" é algomais que
aceitar que Deus existe, é confiar nesse Deus. A seguir consideraremos esta importante dimensão da fé. A
FÉ E A S P R O M E S S A S D E D e U S
Martinho Lutero é um dos numerosos autores que afirmam que a fé, como a Igreja cristã entende esse termo, é muito mais que um assentimento intelectual. Na verdade, a fé acredita que certas coisas são verdadeiras. Existe, indiscutivelmente, um elemento de entendimento na fé. Mas ainda não é tudo. Para Lutero, a fé é fundamentalmente confiança. Ele emprega muitas vezes a palavra latina ^át ^átícw, ícw, que po de ser traduzida tradu zida por po r "confiança", para deno de notar tar a dimensão da fé que ele pretende realçar. A fé implica a confiança no Deus que faz promessas, promessas em que se pode confiar. No seu principal ensaio de 1520, O cativeiro de Babilônia da Igreja, Lutero insiste nesse aspecto da fé: O n d e e x i s te t e a P a l a v r a de d e D e u s q u e f a z pr p r o m e s s a s , d e v e e x i s t ir i r n e ce ce s s a riamente a fé da pessoa que aceita essas promessas. E claro que o início da nossa salvação é uma fé que se prende à Palavra da promessa de Deus que, sem qualquer esforço de nossa parte, em sua misericórdia livre e sem m e r e c i m e n t o s , s e d ir i r i g e a n ós ós e n os o s o f e r e c e a pa pa l a v r a d a p r o m e s s a .
Podemos destacar para discussão três pontos relacionados com a idéia idéia de fé segundo segun do Lutero : 1. A fé fé tem uma referência referência pessoal, antes que puramente h istórica. 2. A fé fé diz respeito resp eito à confiança nas prom pro m essas de Deu s. 3. A fé fé une o crente com co m Cristo. C risto. Trataremos de cada um desses pontos separadamente. Primeiro: a fé não é simplesmente um conhecimento histórico. Lutero afirma que a fé que se contenta em acreditar na confiabilidade histórica dos evangelhos não é uma fé que muda nosso relaciona relacionamento mento com Deus. O s pecado res são perfei perfeitament tamentee capazes
de confiar nos dados históricos dos evangelhos, porém esses fatos em si mesmos não são adequados para a verdadeira fé cristã. A fé salvífica tem a ver primariamente com acreditar e confiar que Cristo nasceu para nós pessoalmente e cumpriu em nosso favor a obra da salvação. Lutero explica esse ponto da seguinte maneira: M u it i t a s v e z e s t e n h o f a l a d o de d e d o is i s t i po p o s d if i f e r e n te t e s d e f é. é. O p r i m e i r o é o seguinte: você acredita que é verdade que Cristo é a pessoa descrita e pro clamada nos evangelhos, mas você não crê que ele é essa pessoa para você m e s m o . V o c ê d u v i d a q u e p o d e r e c e b e r e s se s e d o m d e le l e e p e n s a: a : "S "S i m , t e n h o certeza de que ele é aquela pessoa para outros (como Pedro e Paulo, e para a s pe pe s s o as a s r e l ig i g i o s a s e s a n ta t a s ). ) . M a s e le l e é a q ue u e l a pe pe s s o a p a r a m i m ? P o s s o c o n fiantemente esperar receber tudo dele na forma como os santos esperam?" C o m o s e v ê , es e s sa s a fé f é n ã o t e m v a l or o r , p o r q u e n ã o r e c e b e n a d a d e C r i s t o e n ão ão saboreia nada dele; não pode sentir a alegria nem o amor dele ou por ele. E s sa s a é u m a f é r e l a c i o n a d a c o m C r i s t o , m a s n ã o a f é e m C r i s t o [ . .. . . ] . A ú n ic ic a f é q ue u e m e r e c e s e r c h a m a d a d e f é c r i s t ã é e st s t a : v o c ê a c r e d i ta t a s e m r e s e rv rv a s q u e não é só para Pedro e os santos que Cristo é tal pessoa, mas também para v o c ê m e s m o — d e f a to t o , pa p a r a v o c ê m a i s q u e pa p a r a q u a l q ue u e r o u t r a pe p e s s oa oa .
O segundo ponto diz respeito à fé como confiança (jiducia). Esta noção de fé tornase proeminente na concepção de fé propagada no século XVI e ocorre freqüentemente nos escritos tanto de Lutero como de Calvino. Lutero usa uma analogia da navegação para explicar a importância da confiança e do comprometimento na vida da fé: fé: "Tudo dep ende da fé. fé. A pessoa pe ssoa que não tem tem fé é com o a lguém que tem de n avegar mas tem tem m edo de confiar confiar na na embarcaç em barcação. ão. Assim, fica onde está e nunca se salva, porque não subirá na embarcação caçã o para navegar". navegar". A fé não não consiste co nsiste m eramente em acreditar que alguma coisa é verdadeira, mas em estar preparado para agir sobre essa crença e apoiarse nela. Para usar a analogia de Lutero: a fé não consiste simplesmente em acreditarmos que existe a embarcação, mas em subirmos na embarcação e nos confiarmos a ela. Em que é que se pede que confiemos? Pedese simplesmente que tenhamos fé na fé? A pergunta pode ser formulada talvez com
maior exatidão: Em quem se pede que confiemos? Para Lutero, a resposta era inequívoca: a fé é a preparação para colocar nossa confiança nas promessas de Deus e na integridade e na plenitude do Deus que fez essas promessas. Os que crêem "devem ter certeza de que aquele que prometeu o perdão a todo aquele que confessar seus pecados cumprirá com toda a fidelidade a promessa feita". Para Lutero, a fé é tão forte quanto aquele em quem acreditamos e em quem confiamos. A eficácia da fé não está baseada na intensidade com que acreditamos, mas sim na confiabilidade daquele em quem acreditamos. O que conta não é a grandeza de nossa fé, mas a grandeza de Deus. E Lutero diz: Mesmo que minha fé seja fraca, ainda assim possuo exatamente o mesmo tesouro e o mesmo Cristo que os outros possuem. Não há diferença [...]. é como duas pessoas que possuem cada qual cem moedas de ouro. Uma pode levar essas moedas em uma sacola de papel, a outra num estojo de aço. Mas, apesar dessas diferenças, as duas possuem o mesmo tesouro. A s s i m , o C r i s t o q u e v o c ê e e u p o s s u ím o s é u m ú n i c o e o m e s m o , i n d e p e n dentemente da força ou fraqueza da sua ou da minha fé.
O fundamento da fé importa muito mais que sua intensidade. Não tem sentido confiar apaixonadamente em alguém que não merece confiança. É preferível um grau mínimo de fé em alguém totalmente confiável. Mas a confiança não é uma atitude eventual. Para Lutero, a fé é uma visão inabalável e confiante da vida, uma postura constante de convicção da fidelidade das promessas de Deus. Karl Barth declara essa postura no século XX: "Só em Deus existe fidelidade, e a fé é a confiança que podemos ter nele, em sua promessa e em sua orientação. Ter fé em Deus é confiar que Deus está ali para mim; é vivenciar essa certeza". Em terceiro lugar, lugar, a fé fé une o crente com co m Cristo Cr isto.. Lutero afirma afirma este princípio princípio com clareza no ensaio A liberdade do cristão, escrito em 1520. A f é u n e a a l m a c o m C r i s t o , c o m o a n o i v a s e u n e a o n o i v o . P a u l o e n s i n a qu uee C r i s t o e a a l m a s e t o r n a m u m s ó c o r p o p o r e s te te m i s t é r i o ( E f 5 , 3 1 - 3 2) 2) .
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Ora, se são um só corpo e se o matrimônio é real, este é o mais perfeito matrimônio, e os matrimônios humanos não passam de exemplos apaga d o s de d e s te t e v e r d a d e i r o m a t r i m ô n i o . S e g ue ue - s e d a í q u uee t u d o o q ue ue p o s s u e m o possuem em comum, tanto as coisas boas como as más. Por isto, o crente p o d e o r g ul u l h a r - s e e g lo l o r ia ia r - s e d e t u d o o q u uee C r i s t o p o s s u i, i , c o m o s e ttu udo pertencesse a ele mesmo, e tudo o que o crente possui Cristo exige tam b é m c o m o s e u. u. V e j a m o s c o m o i s t o a c o n t e c e e q u uaa is i s o s b e n e f í c i o s q u e no no s o f e r e c e . C r i s t o é c h e i o d e g r a ç a, a , v i d a e s a l v a ç ão ã o . A a l m a h u m a n a é c he he i a d e p e c a d o , m o r t e e c o n d e n a ç ã o . E n t r e e ss s s as a s du d u a s c o is is a s s u r g e a f é. é. O p e c a d o , a m o r t e e a c o n d e n a ç ã o s ão ã o a s s u m id id o s p o r C r i s t o , e a g r a ç a , a v i d a e a salvação passam a pertencer ao crente.
Portanto, a fé não é o assentimento dado a um conjunto abstrato de doutrinas. Aqui se encontra, talvez, a fraqueza do modo de ver de Tom ás de Aquino. A fé é uma "aliança "aliança de casam ento" (Lutero), indicando o compromisso e a união mútua entre Cristo e o crente, é a resposta que a pessoa inteira do crente dá a Deus e que, por sua vez, conduz à presença real e pessoal de Cristo no crente. "Conhecer Cristo é conhecer seus benefícios", escreve Felipe M elanchthon (1497 1560 ), com panheiro de Lutero Lutero em em Wittenberg Wittenberg.. A fé oferece ao crente o próprio Cristo e também seus benefícios, como, por exemplo, o perdão, a justificação e a esperança. Calvino explica essa idéia com uma clareza característica: "Por nos ter enxertado em seu corpo [Cristo] nos torna participantes não só de tod os os seus benefícios, ben efícios, mas também também dele dele mesmo". Calvino insi insist ste: e: "Cristo não é recebido meramente no entendimento e na imaginação. As promessas o oferecem não para obtermos, afinal, simplesmente uma visão e um entendimento dele, mas para gozarmos de uma verdadeira comunicação com ele". F é E D Ú V I D A : O P R O B L E M A D O S O F R IM IM E N T O
A fé nunca pode provar seus postulados. Aliás, esse problema não é exclusivo do cristianismo. Qualquer sistema de crenças encontrase na na mesma po sição — inclus inclusive ive o sist sistema ema do ateísmo.
A crença em Deus não pode ser provada nem negada com absoluta certeza. No âmbito desse tema, examinaremos uma parte da teologia que dep ara com uma dificuldade dificuldade encontrada por muitos cristãos. cristãos. Se Deus é bom, por que existe sofrimento e dor no mundo? Como é possível reconciliar a presença do mal ou do sofrimento com a afirmação cristã da bondade de Deus que criou o mundo? Examinaremos a seguir alguns modos de investigação desse problema na tradição cristã. A explicação dada por Ireneu de Lião no século II teve uma aceitação generalizada. Para Ireneu, a natureza humana é uma potência, isto é, uma coisa que pode vir a ser. Os seres humanos são criados com certas aptidões para crescer até a maturidade. A capacidade para o amadurecimento espiritual não pode se desenvolver em situações abstratas, ela precisa ter contato com e passar pela experiência do bem e do mal para tomar decisões verdadeiramente informadas. Essa tradição costuma ver o mundo como um "vale of soulmaking"^ (para usar a expressão do poeta inglês John Keats, 17951821), onde o encontro com o mal é visto como prérequisito para o crescimento e o desenvolvimento espiritual. No período moderno, esse modo de pensar foi adotado pelo filósofo John Hick (nascido em 1922), hoje amplamente considerado seu expoente mais influente e persuasivo. Em sua obra O mal e o Deus de amor, ele afirma que os seres humanos são criados incompletos. Para vir a ser o que Deus pretende, devem tomar parte no mundo. Deus não criou os seres humanos como autômatos, mas como indivíduos capazes de responder livremente a Deus. Se não houver uma opção real entre o bem e o mal, as exortações para "optar pelo bem" não terão nenhum sentido. Assim, pois, o bem e o mal são presenças necessárias no mundo, para que o desenvolvimento humano informado e expressivo possa acontecer. Bem diferente é a visão que se revela nos escritos do filósofo Alvin Plantinga (nascido em 1932), que oferece uma "defesa do 2 . A e x p r e s s ão ão c o r r e s p o n d e a "v a l e d e lá l á g r i m a s ". ". ( N . d o E . )
livrearbítrio" firmemente fiindamentada na tradição cristã. A visão de Plantinga retoma alguns temas de Agostinho de Hipona, especialmente o argumento de que o mal se origina do mau uso do livre arbítrio. A visão fundamental de Plantinga pode ser resumida nos seguintes pontos: 1. O livrearbítrio é moralmente importante e significa que o mundo em que os seres humanos possuem livrearbítrio é superior ao mundo hipotético em que não o possuem. 2. Se os seres hum anos fossem coagido s a fazer exclusivamente o bem, essa imposição significaria negação do livre arbítrio. 3. Deus deve fazer existir o melhor mundo que ele puder criar. 4. Conseqüentem ente, devese concluir que Deus deve criar um mundo com livrearbítrio. 5. Isto significa que Deus não é responsável se o ser hum ano opta pelo mal. Deus opera sempre sujeito a autolimita ções, de maneira que não obriga os seres humanos a fazer o bem. Kick e Plantinga oferecem soluções filosóficas para o problema do mal. Outros tentaram adotar uma visão teológica mais rigorosa com base em idéias específicas da fé cristã. Um dos argumentos mais influentes nessa linha de pensamento é o de que Deus sofre ou, em outras palavras, toma parte nos sofrimentos do mundo. Em O Deus crucificado, publicado em 1974, Jürgen Moltmann (nascido em 1926) afirma que o sofrimento de Cristo na Cruz é ao mesmo tempo o fundamento e o critério de uma teologia autenticamente cristã. Precisamente por ser Jesus o Deus encarnado (conforme examinaremos mais adiante neste livro), o sofrimento de Cristo é também o sofrimento de Deus. Moltmann afirma que um Deus que não pode sofrer é deficiente e não perfeito. Afirmando que Deus não pode ser f orçado a mudar nem sofrer, ele declara que Deus se dispôs a sofrer. O sofrimento
de Deus é a conseqüência direta da decisão divina de sofrer e da dis posição divina para sofrer. "Na paixão do Filho, o próprio Pai padece as dores do abandono. Na morte do Filho, a morte recai sobre o próprio Deus e o Pai sofre a morte do seu Filho no amor que tem ao ser humano aban donado." A visão de Moltmann abriu um novo caminho para o problema do sofrimento. Tradicionalmente, uma das grandes preocupações aqui era o sentimento de que Deus devia possuir uma certa imunidade contra os sofrimentos do mundo, estand o fora e acima de todo sofrimento como um espectador alheio e afastado. A pergunta de muitos era: Como seria possível pensar em um Deus assim, que depois de ter criado o mundo o tivesse abandonado à dor e ao sofrimento? O importante livro de Annie Besant Por íjue não creio em Deus (1887) exprime essa preocupação com clareza: "Não creio em Deus. Minha mente não encontra razões para edificar uma fé razoável. Meu coração se rebela contra a Indiferença Todopoderosa em face da dor dos seres sensíveis". A resposta de Moltmann é que Deus opta por participar do sofrimento deste mundo. Longe de se manter "indiferente", ele mostra o compromisso e a compaixão ao entrar neste vale de lágrimas, assumindo sua dor e seu sofrimento. Esta visão ajuda a reduzir as dificuldades intelectuais que a existência do sofrimento cria para a fé? Este é um ponto discutível, mas mesmo assim leva a outro aspecto da questão de não pouca importância para entender a natureza da fé. Podese considerar o problema do sofrimento sob dois aspectos distintos: um deles busca o sentido do sofrimento, o outro tenta fazer as pessoas encarálo, a viver de maneira sensata e corajosa diante do sofrimento e da dor. Esta visão é bem descrita nos textos de Dietrich Bonhoeffer (19061944), para quem "o nosso Deus é um Deus que sofre", que toma sobre si o peso dos nossos pecados, da nossa dor e da nossa angústia. O sentido mais profundo da Cruz de Jesu s é que não existe na face da terra um sofrimento que não tenha sido também padecido por Deus. Para Bonhoeffer, a Igreja é a presença continuada do Cristo sofredor no curso da história, um corpo formado por pessoas
chamadas a participar do sofrimento messiânico de Deus, prontas a ajudar os outros a carregar seu fardo e, assim, cumprir o dever a elas imposto pelo próprio Cristo. E por meio do sofrimento que os cristãos aprendem a encaminhar o resultado final de suas ações para Deus, o único que pode leválos à perfeição, na glória. E é na morte que eles encontram a verdadeira liberdade, ao se encontrarem face a face com Deus. Segundo Bonhoeffer, o Deus sofredor não abandonou seu povO; pelo contrário, ele se encontra ao lado do povo como companheiro do seu sofrimento que o conduzirá a um lugar onde não há sofrimento nem dor. O século XX atestou que muita tinta se gastou para descrever a questão sobre o que a existência do sofrimento tem a dizer a resp eito da existência de Deus. Os resultados não chegaram a nenhuma conclusão, em parte porque se tem constatado cada vez mais que o debate não leva a lugar algum. Como observa o filósofo William Alston (nascido em 1921), qualquer argumento lógico que tenta demonstrar que o mal é logicamente incompatível com a existência de Deus "é atualmente reconhecido em (quase) toda parte" como um argumento completamente falido. Apesar disso, o debate continua com toda a sua importância, mesmo que a conclusão seja indefinidamente adiada. En t r o s a m e n t o
co m o texto
Neste capítulo inicial, examinamos alguns aspectos da fé. Vimos como a fé pode ser compreendida de diversas maneiras. Crer em Deus significa tanto aceitar que existe um Deus como que este Deus pode ser conhecido e que se pode confiar nele. Já examinamos algumas idéias expostas nos escritos de Tomás de Aquino e de Martinho Lutero para ilustrar esses pontos. Agora vamos avançar um pouco mais e interagir com um texto teológico. Por que isso é tão importante? Porque, em um determinado momento, haverá necessidade de 1er obras que tratam de teologia. Por isso, é importante começar a interagir com essas obras o
quanto antes e da melhor maneira possível. Alguns capítulos deste livro têm uma parte que ajuda a estabelecer um entrosam ento com um trecho breve de um teólogo importante ou com um documento teológico. Esses textos serão escolhidos entre muitas tradições cristãs que oferecem experiência ao tratar de muitas abordagens diferentes. O leitor será guiado ao longo desse processo. Para começar, os textos serão breves, mas, aos poucos, irão se tornando mais longos. Inicialmente, o leitor será bastante ajudado, mas à medida que for adquirindo confiança não necessitará mais de muita ajuda. Começaremos esse processo de entrosamento com um trecho breve, porém fascinante, de um importante autor protestante sobre o tema da fé. Tratase de Instituição da religião cristã, de João Calvino, obra publicada pela primeira vez em 1536, com muitas ediçõ es até a definitiva em 1559. C alvino é um teólo go b as tante preciso e lógico, em geral muito fácil de 1er e compreender. A seguir, vamos interagir com a definição de fé que ele expõe em sua obra principal: Teremos uma definição certa da fé se dissermos que é um conhecimento f ir m e e c e r t o d a b e n e v o l ê n c i a d iv i n a pa r a c o n o s c o , f u n d a m e n t a d o n a v e r dade da promessa da graça de Deus em Cristo, não só revelado à nossa mente mas também selado em nossos corações pelo Espírito Santo.
O leitor deve procurar 1er tod o o texto para saber o que Calvino está explicando. Em seguida, deve buscar entrosarse com as idéias expostas por Calvino por meio dos quatro pontos propostos: Observar que a definição de fé exposta por Calvino é trinitária. M ais adiante, no capítulo 6, examinaremos esse aspecto mais detidamente. Por ora, o leitor deve observar com o Calvino atribui diferentes aspectos da fé a cada uma das três pessoas da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Procurar anotar qual é cada um desses aspectos.
Se estiver estudando este livro em um grupo de estudo, falar um pouco a respeito dessa idéia, procurando saber se essa tríplice estrutura da definição agrada.
Observar agora que a primeira parte desta definição explica que a fé é "um conhecimento firme e certo da benevolência divina para conosco". Notar, em primeiro lugar, com o Calvino usa uma linguagem que denota a confiança em Deus, realçando a confiabilidade de Deus. Notar também como a fé é definida como "conhecimento" — porém, um tipo de conhecim ento ba stante específico. N ão é só "conhecimento" nem m esmo "conhecimento de Deus", mas é, especificamente, conhecimento da benevolência de Deus para conosco. Calvino emprega uma linguagem bastante específica e intencional. A fé tem seu fundamento na bondade de Deus. N ão se trata simplesmente de admitir que Deu s existe, mas de encontrar a bondade de Deus para conosco. O leitor concorda com Calvino neste ponto?
A definição continua e explica que a fé está "fundamentada na verdade da promessa da graça de D eus em Cristo". Observar, de novo, como a fé está relacionada com o conhecimento — o uso da palavra "verdade" é muito importante neste texto. Calvino quer deixar bem claro que a fé não é uma invenção ou ilusão humana, mas uma coisa fundada nos alicerces da verdade. Notar, porém, como Calvino passa a relacionar este fundamento com a "promessa da graça de Deus". Para
Calvino, estamos tratando com um Deus que nos faz promessas — promessas em que pod em os confiar plenamente. Talvez o leitor tenha interesse em comparar essa idéia com o modo de pensar de Lutero sobre esse assunto, do qual tratamos anteriormente neste capítulo, para notar a semelhança de Lutero e Calvino a esse respeito. E importante saber como Calvino identifica Cristo como a confirmação ou meio da manifestação dessas promessas. Convém ler 1 Coríntios 1,20 para observar como o pensamento de Calvino se relaciona com o texto de Paulo.
Calvino afirma claramente que a fé envolve a mente e o coração. Caso o leitor esteja participando em um grupo de estudo, talvez deseje pesquisar como Calvino trata dessas duas coisas. Notar, mais uma vez, com o Calvino afirma que a fé realmente está na esfera do conhecimento, como algo que afeta nosso modo de pensar, nossa mente. Todavia, a fé é mais do que isso: é uma coisa que nos transforma internamente. Notar como a linguagem de Calvino sobre o "coração" mostra uma mudança mais profunda dentro de nós, como algo que é bem mais que a simples aceitação mental de uma idéia. Calvino vê Deus agindo em todo o processo de aproximação da fé. A fé não é uma visão humana, é conhecimento pessoal de Deus, tornado possível pela ação do Espírito Santo.
Tendo explorado o sentido da "fé", podemos agora investigar seu conteúdo, a começar por Deus.
Capítulo
Deus
A realidade de Deus está no centro da teologia cristã. Muitas das questões teológicas mais fundamentais estão relacionadas com o modo como Deus pode ser representado e descrito. Mas talvez haja ainda uma pergunta mais importante a ser feita: De cjue Deus estamos falando? É claro que a brevíssima palavra "Deus" requer uma explicação ampla. As reflexões de Israel sobre a identidade do seu Deus — que os israelitas definiam com frases do tipo "o Senh or Deus de Israel" — situavamse em um plano de o posição ao po liteísmo (crença em muitos deuses). Cada nação daquela região possuía seu próprio Deus. Muitos povos tinham até panteões bastante desenvolvidos, reconhecendo muitos deuses diferentes, cada um com seu próprio nome, com sua função própria ou com sua esfera de influência. O Antigo Testam ento alude a esses deuses por seus nomes, como, por exemplo, Baal, deus cananeu da fertilidade. O simples fato de falar de Deus não oferecia muitas informações. A questão não passava de uma petição de princípio sobre a pergunta óbvia (e perfeitamente legítima): De que Deus é que se tratava? Uma parte da missão da teologia cristã consiste em procurar saber em que Deus os cristãos crêem. Esse processo de identificação pode ser visto tanto no Antigo com o no N ov o Testamento. Para os profetas do Antigo Testamento,
Israel conhecia e adorava o Deus que o tinha tirado do Egito e conduzido à terra prometida de Canaã. N o N ov o Testamento, encontramos essa idéia retomada e desdobrada. O s cristãos crêem no mesmo Deus em quem criam as grandes figuras de fé do Antigo Testamento, como Abraão, Isaac, Jacó e Moisés. Este Deus é definitiva e plenamente manifestado em Jesu s Cristo. Assim, em 2 Coríntios 1,3, Paulo fala de "Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo". A idéia fundamental que descobrimos em todo o Novo Testamento é que os cristãos adoram e reconhecem o mesmo Deus de Israel, com a diferença de que os cristãos afirmam que esse Deus é revelado de maneira suprema e definitiva em Cristo. Notamos que o exórdio da epístola aos Hebreus declara que o mesmo Deus que falou a Israel "muitas vezes e de diversos modos" através dos profetas "nesses últimos tempos manifestouse a nós em seu Filho", que deve ser reconhecido com o a "representação exata" de Deus (H b 1,13). Este argumento é de suma importância, porque demonstra como a concepção que os cristãos têm de Deus está vinculada à pessoa de Cristo. Conhecer Cristo é conhecer Deus. O u então, com o explica um autor do século II: "Temos de aprender a falar de Cristo como Deus" (1 Clemente 1,1). Perguntamos então: "Que Deus é esse em quem os cristãos crêem? O primeiro artigo do Credo dos Apóstolos dá uma explicação inicial quando faz o cristão dizer que crê em um Deus que é "o Pai todopoderoso, Criador do céu e da terra". Mais adiante, no próximo capítulo, investigaremos o tema riquíssimo e poderoso da criação. Por ora, vam os considerar a idéia de Deus com o "Pai todopoderoso". Podemos dividir essa afirmação em duas partes, cada uma mereceria um capítulo separado, mas devido à limitação de espaço trataremos delas brevemente, perguntando inicialmente o que significa falar de Deus como "Pai". An a l o g i a s
n a t e o l o g ia
Uma das coisas que mais chamam a atenção a respeito da representação cristã de Deus é o uso abundante de imagens. Deus é
representado c om o pastor, rei, rocha — e também com o pai. Antes de abordarm os a idéia de Deu s com o "pai", será proveitoso examinar a questão do uso em geral das analogias na teologia. A Bíblia emprega muitas analogias para falar de Deus. Neste sentido, podemos considerar, por exemplo, um dos versículos bíblicos mais conhecidos, o primeiro do Salmo 23: "O Senhor é o meu pastor". Esta imagem de Deus como pastor encontrase com freqüência no Antigo Testamento, por exemplo no Salmo 80,1, em Isaías 40,11 e em Ezequiel 34,12. A figura é retomada no Novo Testamento e aplicada aje su s em jo ão 10,11: o "bom pastor". O que nos diz essa analogia a respeito de Deus? Como podemos desenvolver essa imagem teologicamente? A resposta mais fácil a esta pergunta consiste em estabelecer um debate com a imagem para ver o que acontece. Se o leitor estiver participando de algum grupo de estudo, aconselhamos a fechar este livro e falar sobre a questão que se segue. Se, no entanto, estiver estudando sozinho, sugerimos anotar o que lhe ocorrer à mente em resposta a ela: Que idéias ocorrem à mente quando falamos de um pastor? Para quase todas as pessoas, vêm ao pensamento quatro idéias. Em primeiro lugar, vem à mente a idéia da dedicação afetuosa ao rebanho. O pastor era uma pessoa que dedicava todo o seu tempo às ovelhas do seu rebanho. Em Israel, o pastor costumava ser considerado um marginalizado, precisamente por causa do tempo que era obrigado a passar com o rebanho, de modo que se via impedido de tomar parte nas atividades sociais. Assim, falar de Deus como pastor é o mesmo que falar de um comprometimento total de Deus com Israel e com a Igreja. Essa idéia é desdobrada com muita insistência no Novo Testamento, especialmente na parábola da ovelha reencontrada em Lucas 15,37. Aqui, o pastor busca ativamente a ovelha perdida para reconduzila ao rebanho, A intensificação d efinitiva dessa imagem está no evangelho de João (10,1116), onde é realçada a idéia de que o bom pastor — imediatamente identificado com Jesus — chegará ao extremo de expor a própria vida para garantir a segurança de suas ovelhas.
Em segundo lugar, pensar em Deus como pastor significa afirmar que Deus nos guia. O pastor sabe onde se encontram o alimento e a água, e guia o rebanho até onde esses bens se encontram. Comparar Deus com um pastor é mostrar a constante presença de Deus em Israel e na Igreja: é afirmar o desvelo de Deus para nos proteger dos perigos que a vida nos traz e para nos conduzir a um lugar de fartura e segurança. Deus "guarda seu rebanho como um pastor, toma os cordeirinhos em seus braços e os conduz no colo, bem junto do coração, e conduz com carinho as ovelhas que têm crias" (Is 40,11). Em terceiro lugar, a imagem de Deus como pastor falanos de nós mesmos, do ponto de vista cristão. Somos o rebanho das pastagens de Deus (SI 79,13, 95,7, 100,3). Somos ovelhas sem capacidade de cuidar de nós mesmas, continuamente nos desgarrando. Não somos autosuficientes, precisamos aprender a depender de Deus como as ovelhas dependem inteiramente do pastor para sua existência. Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que reconheçamos nossa total dependência de Deus. Assim, a condição de pecado inerente ao ser humano é comparada muitas vezes com o afastamento de Deus, como o desgarramento de uma ovelha: "Como ovelhas, estávamos todos perdidos, cada qual ia em frente por seu caminho" (Is 53,6, cf. SI 119,176, iPd 2,25). E assim como o pastor sai à procura da ovelha desgarrada Deus veio buscarnos em nossa perdição para nos trazer de volta ao rebanho. A comparação com a parábola do filho pródigo de Lucas 15,1132 é clara. Nesse capítulo do Evangelho de Lucas, são narradas três histórias de "desencaminhamento" que terminam com "reencontro" e "júbilo": o pastor encontra a ovelha extraviada em Lucas 15,38, a mulher acha a moeda perdida em Lucas 15,810, o pai reencontra o filho que tinha perdido em Lucas 15,1132. Em todas essas analogias observamos a mesma ênfase constante da fé cristã: nós estamos desgarrados e Deu s vem ao mundo em Jesus Cristo para nos reencontrar e trazer de volta para casa.
Enfim, falar de "Deus com o pastor" significa afirmar que "Deus é como um pastor". Isso quer dizer que a imagem de pastor nos ajuda a pensar na natureza de Deus, oferecendonos idéias para imaginar sua natureza. Não que se queira pensar que Deus seja idêntico a um pastor humano, mas sim que algum aspecto de um pastor humano nos ajuda a ter uma certa idéia da natureza divina. Perguntamos: Todo aspecto da analogia humana deve ser atribuído a Deus? Toda analogia falha em algum elemento da comparação. Até que ponto podemos considerar essa analogia sem que ela deixe de ser confiável? Podem os estudar essa questão com o auxílio de uma pequena lista de coisas que se podem afirmar sobre os pastores: 1. 2. 3. 4.
Os Os Os Os
pastores pastores pastores pastores
cuidam do rebanho. protegem o rebanho contra os perigos. guiam o rebanho para com er e beber. são seres humanos.
Nos itens acima vemos com clareza que os três primeiros aspectos da analogia podem aplicarse ao nosso modo de pensar sobre Deus. Deus cuida, protege e guia. Em todos esses aspectos, a analogia se aplica muito bem e esclarece a natureza de Deus. Consideramos ainda que, em última análise, os pastores são seres humanos. Este particular aspecto da analogia pode ser aplicado? É evidente que não temos uma idéia de Deus como sendo um ser humano. Embora Deus não seja um ser humano, não deixa de ser verdadeiro para nós que o comportamento de um determinado grupo de seres humanos é visto como nos ajudando a entender melhor a natureza divina. Contudo, parece que esse é um aspecto da analogia em que não devemos insistir muito. Essas considerações são bastante simples, e convém notar que não vêm ao caso quando se trata seriamente de estudos da teologia cristã. A questão é bem outra. O que fazemos é investigar a importante questão teológica de procurar saber até onde se pode aprofundar a analogia de Deus e de que modo as analogias podem oferecer um estímulo visual po deroso para a reflexão teológ ica. Surge aí tam -
bém a questão de saber por que devemos usar imagens para buscar o conhecimento de Deus. Por que não usar meios e conceitos mais abstratos para falar e pensar a respeito de Deus? A resposta dada pela tradição da teologia cristã pode ser resumida da seguinte maneira: não existe nenhum meio pelo qual o ser humano criado possa contemplar Deus diretamente. Por isso, precisamos formar uma idéia de Deus como que em uma imagem de tamanho reduzido, apropriada à nossa capa cidad e humana. Alguns autores cristãos da época inicial do cristianismo costumavam comparar o conhecimento de Deus com o modo de olhar diretamente para o Sol. O olho humano simplesmente não tem capacidade para suportar o brilho pleno da luz solar. Do mesmo modo, a mente humana não pode ver a plena glória de Deus. Contase a história de um imperador pagão que foi ter com o rabi judeu Josué ben Ananias e pediu para ver o Deus de Josué. O mestre respondeu que era impossível. A resposta não satisfez o imperador. Então o rabi levou o imperador para fora e pediu que ele se postasse sob o Sol a pino do meiodia e olhasse para o Sol. O imperador respondeu que era impossível. O rabi lhe disse: "Se não podes olhar para o Sol que Deus criou, tampouco poderás contemplar a glória do próprio Deus!". Mesmo que os olhos humanos não tenham condições de suportar o pleno resplendor do Sol, sempre existe a possibilidade de fitar o Sol através de um vidro escurecido. Esse vidro reduz em grande parte o resplendor do Sol, de modo que os olhos humanos possam fitálo. Só assim é possível olhar para o Sol. Dessa mesma maneira é que podemos ter uma idéia dos modelos ou figuras com que as Escrituras representam Deus, revelandoo em proporções controláveis, de modo que a mente humana possa alcançálo. João Calvino afirma que Deus conhece as limitações de nossa mente diante das idéias e por isso revelase a nós por meio de modos ao nosso alcance. Segundo ele, a revelação de Deus é adaptada ou "acomodada" à nossa capacidade de refletir. Calvino insiste que Deus simplesmente não pode ser compreendido pela mente huma-
na. O que se sabe de Deus sabese por revelação, e a revelação é adaptada à nossa capacidade de criaturas humanas, finitas e decaídas. Isso não quer dizer que se possa atribuir a Deus alguma fraqueza ou incapacidade. Nessa atitude, o que se manifesta é simplesmente reflexo da natureza divina generosa e bondosa com que Deus leva em conta nossa fraqueza. Calvino comenta que "Deus se acomoda à nossa capacidade", usando palavras, idéias e imagens que podemos assimilar. Assim, depois de termos examinado as analogias usadas na teologia, podemos considerar a analogia específica que encontramos no Credo, que nos fala de Deus como pai. D
e u s c o m o pa i
A noção de Deus como pai está profundamente inserida na fé cristã, em parte devido à oração que Cristo ensinou aos discípulos, hoje conhecida como o Painosso. Não há quem não conheça as palavras iniciais; "Painosso...". Se Jesus se refere a Deus dessa maneira, essas palavras tornamse de grande importância para a fé cristã. Mas como interpretar essa imagem? De novo estamos diante de uma analogia. Que tipo de idéias essa analogia encerra? Talvez o leitor gostasse de reservar alguns momentos para anotar algumas idéias que a imagem em questão encerra, do mesmo modo que foi feito na abordagem da analogia do pastor. Poderiam ocorrer à mente algumas idéias como as que se seguem, para uma breve consideração; 1. O pai 2. O pai 3. O pai 4. O pai
é um ser humano. transmite existência aos filhos. cuida dos filhos. é de sexo masculino.
A primeira característica não se aplica ao nosso pensamento sobre Deus. Como vimos no caso da analogia do pastor, essa impropriedade da analogia decorre inevitavelmentedo uso da linguagem extraída da ordem criada para fazer referência ao criador. A
segunda característica é muito importante. Deus é aquele de quem nos originamos. Sem Deus, não estaríamos aqui. Não só o Antigo Testamento, mas também o Novo Testamento afirma nossa completa dependência de Deus do início ao fim. Outra idéia clara que a analogia do pai encerra é a do cuidado. O Antigo Testamento, de modo especial, muitas vezes compara a relação de Deus com seu povo ao relacionamento de um pai com o filho. Quando o filho é uma criança, depende totalmente do pai para todas as coisas, com um relacionamento estreitíssimo. À medida que o filho cresce, começa a exercer sua independência e a se afastar do pai, de modo que o relacionamento se torna mais distante. O profeta Oséias ilustra o modo como Israel se tornou um estranho diante do Deus que o tinha trazido à existência: Q u a n d o Is r ae l e r a c r i a nç a e u o a m a v a , d o E g it o c h a m e i o m e u f ilh o . Q u a n to mais, porém, eu os chamava, mais de mim eles se afastavam. Sacrifi cavam vítimas aos Baals, queimavam sacrifícios a seus ídolos. Sim, fui eu q u e m e n s i n o u E f r a i m a a n da r , s e g u r a nd o - o p e l a m ã o . S ó q ue e le s n ão p e r cebiam que era eu quem deles cuidava. Eu os lacei com laços de amizade, e u os a m a r r e i c o m c o r da s d e a m o r ( O s 1 1 ,1 - 4 ).
Como Jesus Cristo proclamou no Sermão da Montanha (Mt 7,911), os bons pais desejam dar boas coisas a seus filhos, porém, muito mais Deus, nosso pai celestial, quer dar boas coisas àqueles que as pedem na oração. Examinando agora o quarto aspecto, constatamos que é o que gera mais debate e requer um exame mais aprofundado. Tanto o An tigo como o Novo Testamento usam linguagem masculina para falar de Deus. A palavra grega para deus (theos) é masculina, e a maior parte das analogias empregadas com referência a Deus nas Escrituras — com o pai, rei, pastor — são palavras masculinas. Isto significa que Deus e de sexo masculino? É importante notar que a Bíblia usa também imagens femininas para exprimir o amor de Deus à humanidade. Assim como a mãe não pode esquecer o filho nem revoltarse contra ele, do mesmo
modo Deus nunca pode esquecer seu povo e rebelarse contra ele (Is 49,15). Existe um laço de afeto natural entre Deus e os filhos simplesmente porque foi ele quem os trouxe à existência. Assim é que Deus nos amou primeiro (ijo 4,1019). O Salmo 51,1 fala da "grande compaixão" de Deus. É interessante notar que a palavra hebraica correspondente a "compaixão" (rachmin) deriva da raiz da palavra "ventre" (rechmen). A compaixão que Deus tem por seu povo é a mesm a que a mãe tem por seu filho — com o em Isaías 66,1213. A compaixão nasce do ventre materno. Então Deus é de sexo masculino? Quando o cristianismo chama Deus de "pai", acha que Deus é uma divindade de sexo masculino? Anteriormente, observamos a índole analógica da linguagem teológica. As pessoas consideradas individualmente ou as funções sociais, extraídas em grande parte do mundo rural do antigo Oriente Próximo, são identificadas como modelos para a atividade e a personalidade divina. Uma dessas analogias é a do pastor, outra é a do pai. No entanto, afirmar que "o pai na antiga sociedade israelita constituiu uma analogia apropriada de Deus" não é o mesmo que dizer que Deus é "de sexo masculino". Falar de Deus como pai é dizer que o papel do pai no antigo Israel permitenos ter idéias da natureza de Deus. N ão se afirma que Deus é um ser humano masculino. O An tigo Testamento tem passagens claras em que as mães também servem de analogia para exprimir os aspectos do amor de Deus por Israel. Embora sejam muito mais abundantes as referências aos modelos paternos que aos maternos, não há dúvida de que tanto a função paterna quanto a materna servem como analogias que nos levam ao conhecimento de Deus na Bíblia. A questão que vale a pena esclarecer aqui é que a Deus não se aplica sexo m asculino nem feminino, porque o sexo é um atributo da ordem criada, que não se pode supor que corresponda diretamente a uma polaridade dentro de Deu s criador. N a verdade, o Antigo Testamento evita por completo atribuir qualquer função sexual a Deus, em razão das fortes influências pagãs dessas associações de sexualidade humana com as divindades. O s cultos da fertilidade praticados
em Canaã afirmavam as funções sexuais de deuses e deusas, o Antigo Testamento rejeita a idéia de atribuir gênero ou sexualidade a Deus. O importante teólogo luterano alemão Wolfhart Pannenberg (nascido em 1928) expõe esse ponto em sua Teologia sistemática (1990): O a s p e c t o d o c u id a d o p a te r n a l é a s s u m id o de m o d o p a r t i c u la r n a q u i lo q ue o A n t i g o T e s t a m e n t o t e m a d i z e r s o br e o c u id a d o p a te r n a l q ue D e u s d e m o n s t r a p o r I sr a el. A d if e r e n c i a ç ão s e x ua l n a c o m p r e e n s ã o d e D e u s s e r ia p o l i t e í s m o e , p o r e ss a r a z ã o , f o r a d e c o n s i d e r a ç ã o p a r a o D e u s d e Is r a e l [ . .. ] O f a t o de q ue o c u i d a d o d e D e u s m o s t r a d o a Is r ae l p o d e s e r e x p r e s s o t a m b é m c o m o a m o r m a t e r n o m o s t r a c o m s uf ic ie n te c l ar e z a c o m o n ã o se d á importância à distinção sexual na compreensão de Deus como Pai.
Na tentativa de desfazer a idéia de representar Deus como sendo de sexo masculino, muitos autores recentes têm explorado a idéia de Deus conhecido como "mãe" (mostrando os aspectos femininos de Deus) ou como "amigo" (mostrando os aspectos mais neutros de Deus). Temos um excelente exemplo dessas idéias na obra Modelos de Deus, da teóloga norteamericana Sallie McFague (nascida em 1933). Reconhecendo que falar de "Deus como Pai" não significa que Deus seja de sexo masculino, ela escreve: D e u s c o m o m ã e n ã o s i g n if ic a q ue D e u s s e ja m ã e o u p ai. I m a g in a m o s D e u s como mãe e como pai ao mesmo tempo, mas sabemos que estas e quais quer outras metáforas são inadequadas para exprimir o amor criativo de D e u s [ . ..] . N o e n t a n t o , f a la m o s d es te a m o r e m l in g u a g e m q ue é c o n h e c i da e cara a nós, a linguagem da mãe e do pai que nos dão a vida, de cujo corpo nós viemos e de cujos cuidados dependemos.
O novo interesse pelas questões levantadas quanto à condição masculina da maior parte das im agens bíblicas de Deus levou a uma leitura cuidadosa da literatura espiritual dos períodos primitivos da história cristã, levando também a uma apreciação mais aprofundada do uso de imagens de caráter feminino durante esses períodos iniciais. Temos um excelente exemplo nas Revelações do divinp amor.
um relato de dezesseis visões que teve a autora inglesa Juliana of Norwich (1342 a aproximadamente 1416) em maio de 1373. As visões são notáveis pela tendência distintiva de referências a Deus e a Jesus Cristo em termos fortemente maternais. V i q ue D e u s se a le g r a e m s er n o s s o P a i e t a m b é m q ue r e j u b il a e m s er no s s a Mãe,- e, de novo, vi que ele sente júbilo em ser nosso verdadeiro Esposo, tendo nossa alma como sua noiva amada [...]. Ele é o fundamento, a subs tância e a própria essência daquilo que é pela natureza. Ele é o verdadeiro Pai e a verdadeira Mãe daquilo que as coisas são pela natureza.
Falando de Deus como "pastor" ou "pai", entramos em outro tema importante do pensamento cristão sobre Deus, a saber, o conceito de um Deus pessoal, do qual passaremos a tratar.
Um D eus
p e s so a l
Ao longo dos séculos, tanto teólogos como simples cristãos nunca hesitaram em falar de Deus em termos pessoais. Por exemplo, o cristianismo atribui a Deus uma série de atributos, como amor, confiança e propósito, que parecem ter fortes conotações pessoais. M uitos autores mostram que a prática cristã da oração p arece estar modelada no fato do relacionamento entre uma criança e seus pais. A oração exprime uma relação de complacência que é de confiança pessoal em Deus. Da mesma forma, uma das principais imagens soteriológicas de Paulo — a reconciliação — está claramente assentada sobre o modelo do relacionamento pessoal humano. Supõese aqui que a transformação do relacionamento entre Deus e os seres humanos pecadores por meio da fé é comparável à reconciliação de duas pessoas, como, por exemplo, entre marido e mulher separados. Para os primeiros autores cristãos, a palavra "pessoa" é uma expressão da individualidade do ser humano, como se vê em suas palavras e ações. Acima de tudo, existe uma insistência na idéia do relacionamento social. A pessoa é alguém que desempenha um pa-
pel no drama social, é alguém que se relaciona com os demais. A pessoa tem um papel a cumprir na rede de relações sociais. "Individualidade" não supõe relacionamentos sociais, ao passo que "personalidade" referese à parte que é representada pelo indivíduo em uma rede de relacionam entos através dos quais a pesso a é percebida pelas outras como um ser individual. A idéia básica expressa pela idéia de "um Deus pessoal" é assim a idéia de um Deus com quem pod em os existir em relacionamento análog o ao que pode haver entre uma pessoa e outra. É útil considerar as nuances implicadas na expressão "um Deus impessoal". A frase indica um Deus que é distante e indiferente, que lida com a humanidade (se Deus de alguma forma lida conosco) em termos gerais que não levam em conta a individualidade humana. A idéia do relacionamento pessoal, como acontece, por exemplo, no amor, sugere um caráter recíproco no modo como Deus nos trata. Essa idéia é incorporada na noção do Deus pessoal mas não nas concepções impessoais da natureza de Deus. Existem nuances fortemente negativas em torno da idéia expressa pela palavra "impessoal", que passaram para o pensamento cristão a respeito da natureza de Deus. É importante observar também que as relações pessoais estabelecem uma estrutura dentro da qual temas bíblicos essenciais como "amor", "confiança" e "fidelidade" têm um significado próprio. O Antigo e também o Novo Testamento estão cheios de afirmações sobre o "amor de Deus", a "confiança de Deus" e a "fidelidade de Deus". "Amor" é uma palavra usada principalmente para significar as relações pessoais. Além disso, o grande tema bíblico de promessa e cumprimento baseiase, em última análise, em uma relação pessoal, em que Deus promete certas coisas bem definidas (como a vida eterna e o perdão) a certos indivíduos. Um dos grandes temas que dominam o Antigo Testamento, de modo bastante particular, é o da aliança entre Deus e seu povo, pela qual todos se obrigam mutuamente. "Serei o seu Deus, eles serão o meu povo" (Jr 31,33). A idéia fundamental que jaz na base dessa afirmação é o compro-
misso pessoal de Deus com o povo de Deus, e do povo de Deus com seu Deus. Uma análise filosófica do século XX, indagando sobre o que significa falar de uma "pessoa", também ajuda a esclarecer o que significa falar de um Deus pessoal. Em sua obra principal E u e T u ( í 927), o autor judeu Martin Buber (18781965) estabeleceu uma distinção fundamental entre duas categorias de relações: relações Eu- T u, que são "pessoais", e relações Eu—Isto, que são relações impessoais. Aprofundaremos um pouco mais essas distinções básicas antes de considerar sua importância teológica. 1. Relações Eu- Isto: Buber usa esta categoria para se referir à relação entre sujeitos e objetos, como, por exemplo, entre o ser humano e um lápis. O ser humano é ativo, ao passo que o lápis é passivo. Essa distinção muitas vezes é mencionada em linguagem mais filosófica como relação sujeito— objeto, em que um sujeito ativo (neste caso o ser humano) se relaciona com um objeto inativo (neste caso o lápis). De acordo com Buber, o sujeito age como um Eu e o objeto como um Isto. A relação entre o ser humano e o lápis poderia ser descrita como uma relação Eu—Isto. 2. Relações Eu- T u■ . N este ponto ch egam os ao centro da filosofia de Buber. A relação EuTu existe entre dois sujeitos ativos, entre duas pessoas. Tratase de alguma coisa que é mútua e recíproca. "O Eu da palavra principal EuTu aparece como uma pessoa e tornase cônscio de si mesma". Em outras palavras, Buber sugere que as relações pessoais humanas exemplificam as características essenciais da relação EuTu. É o próprio relacionam ento — esse vínculo intangível e invisível que liga duas pessoas — que é o centro da idéia da relação EuTu de acordo com a filosofia de Buber. Quais são, então, as implicações teológicas dessa análise da pessoa? Com o a filosofia de Buber nos ajuda a com preend er e investigar a idéia de Deu s com o pessoa? Surgem aqui muitas idéias, todas
com importantes aplicações teológicas. Além disso, Buber previu algumas dessas aplicações. Na parte final de Eu e Tu ele examina a implicação da sua análise no modo de pensar e falar de Deus ou, para usar seu termo preferido, o "Tu Absoluto". 1. A análise de Buber afirma que Deu s não pode ser reduzido a um conceito ou a alguma formulação conceituai nítida. De acordo com Buber, só um "isto" pode ser tratado de forma conceituai. Deus é o "Tu" que pela própria natureza nunca poderá tornarse um "Isto". Explicando: Deus é um ser que escapa às tentativas de objetificação e transcende toda descrição. A teologia deve aprender a reconhecer e a combater com a presença de Deus, constatando que essa presença não pode ser reduzida a um pacote nítido de conteúdo. 2. A análise de Buber permite avançar várias idéias sobre a revelação. Para a teologia cristã, a revelação de Deus não é simplesmente um dar a conhecer os fatos sobre Deus, mas uma auto- revelação de Deus. A revelação de idéias a respeito de Deus deve ser suplementada pela revelação de Deus como pessoa, uma presença tanto quanto conteúdo. Poderíamos explicar isto dizendo que a revelação inclui o conhecimento de Deus como um "Isto" e como um "Tu". Conseguimos conhecer coisas a respeito de Deus e também chegamos a conhecer Deus. Da mesma forma, o conhecimento de Deus abrange o conhecimento de Deus como "Isto” e "Tu". "Conhecer a Deus” não significa simplesmente um conjunto de dados a respeito de Deus, mas um relacionamento pessoal. 3. O "personalismo dialógico" de Buber também evita a idéia de Deus com o objeto, talvez o aspecto mais fraco e mais criticado de algumas expressões teológicas do protestantismo liberal do século XIX. A característica e nãoinclusiva expressão do século XIX "a busca de Deus pelo homem" resume a
premissa básica desta análise; Deus é um "Isto", um objeto passivo, esperando ser descoberto pelos teólogos (não pelas teólogas), que são vistos como sujeitos ativos. Na obra que escreveu em 1938, A verdade como encontro, Emil Brunner (18891966) afirma que Deus tem de ser visto como Tu, isto é, um sujeito ativo. Como tal. Deus poderia suprimir a iniciativa dos seres humanos por meio de uma autorevelação e da disposição de se tornar conhecido de maneira histórica e pessoal, a saber, por Jesus Cristo. A teologia se tornaria assim a resposta humana à automanifestação de Deus, em vez de ser a busca de Deus pelo ser humano. A idéia de Deus como pessoa tem sua importância em outras áreas da teologia. Além de nos ajudar a formar uma noção a respeito da revelação, essa idéia esclarece também a idéia da salvação. Em 2 Co ríntios 5,18 19, Paulo fala de Deus que nos "reconcilia" com ele por meio de Jesus Cristo. Esta idéia de "reconciliação" é uma entre as numerosas idéias usadas no Novo Testamento para representar as conseqüências da morte de Cristo na cruz. O que desperta real interesse é que nesta passagem Paulo, para significar a restauração da relação entre Deus e a humanidade, emprega a mesma palavra greg a que usou anteriormente, em 1 Coríntios 7,101 1, para falar da restauração da relação entre o homem e sua esposa numa eventual separação. Nesta passagem parece que Paulo está sugerindo que Cristo é o mediador ou intermediário que restaura a relaçã o entre Deus e a huma nidade para ser com o era antes. A qui, uma noção tirada do mundo das relações pessoais ajuda a esclarecer a noção de salvação e a diferença que a morte e ressurreição de Cristo estabelece para as coisas . _
D
e u s c o m o t o d o -p o d e r o s o
O C r e d o f a la de D e u s c o m o "t o do - po de r o s o ". D a í s ur g e no s s a indag ação; O que sig nifica dizer que Deus é "todo- poderoso"? À pr i
meira vista, isso poder ia parecer sem s entido. O sig nificado da pa lavr a "todo- poderos o" é perfe itame nte óbv io na ling uag em de cada dia, significa "capaz de fazer qualquer coisa". Quando cremos que D e u s é r e a l m e nt e t o do - p o de r o s o , e s t a mo s a f i r m a n d o s i m pl e s m e n t e que Deus pode fazer qualquer coisa. Com isso a discussão poderia cheg ar ao fim. O que mais dev eria ser dito? No entanto, uma das tarefas da teologia consiste em nos es t im u l a r a e m p r e g a r a l in g u a g e m de m a n e i r a c r ít ic a — f a z e ndo - n os pensar sobre o que realmente entendemos ao falar de Deus. Será que a ques tão é assim tão simples? Se rá que a palav ra "todo- poder os o" não teria uma diferença sutil ao ser aplicada a Deus? Para examinar esse ponto consideremos uma simples afirmação: D i z e r q ue D e u s é to d o - p o de r o s o s ig n i fic a q ue D e u s p o d e f a z e r q ua l qu e r coisa.
Se o leitor estiver participando de um grupo de est udos po derá debater essa afirmação. Se estiver desenvolven do um trabalho individual poderá interromper o estudo a esta altura e refletir. Esta afirmação está certa? Que questões ela levanta? Em primeiro lugar, parece bastante simples. No entanto, surgem algumas dificuldades logo de início. Eis uma primeira pergunta: "Deus po de traçar um triângulo de quatro lados?" Não é preciso pensar mu ito para saber que esta pergunta tem de ter uma resposta negativa. Os triângulos têm três lados,- desenhar alguma coisa com quatro lados é desenhar um quadrilátero e não um triângulo. Podemos fazer outra pergunta: "Deus pode criar uma pedra tão pesada que ele mes mo não possa levantar? " Esta perg unta im plica um interessante quebra- cabeça lóg ico. Se Deus não pode criar uma pedra como essa, existe alguma coisa que ele não pode fazer. Mas, se Deus pode criar uma pedra que não pode levantar, então ele não pode levantá- la, e assim existe ainda o utra coisa que De us não pode fazer. Seja qual for a resposta a essas perguntas, a capacidade de Deus para fazer qualquer coisa não vem ao caso. Em outras pala vras, a onipotência de Deus é posta em questão em cada situação.
No entanto, ao refletir um pouco mais, não fica claro se essas perguntas causam algum tipo de problema para a compreensão que o cristão deve ter de Deus. T riângulos de quatro lados não ex istem e não p o d e m e x is tir . O f a t o de D e u s n ão p o d e r f a z e r u m t r i ân g u lo de quatro lados não constitui uma questão séria. Somos apenas for çados a reformular nossa simples afirmação de um modo mais com plicado: "Dize r que Deus é todo- poderos o sig nifica que De us pode fazer qualquer coisa que não implique uma contradição lógica". Po demos, tam bém , seg uir T omás de A quino , que observ a que não se trata de que Deus não possa fazer tais coisas,- simplesmente se trata de que essas coisas n ão po de m ser feitas. A te olo g ia se oc upa de alg o mais do que desses quebra- cabeças lóg icos . A v er dadeira ques tão refere- se à própria nature za div ina. P odem os com eça r a nos entrosar com esse importante assunto considerando a pergunta predileta dos filósofos medievais: D e u s p o d e f a z e r a l g u é m q u e o a m a o diá- l o?
A q ui de no v o c o nv é m faze r um a pa us a e pe ns ar nes ta pe r g un ta , ta l v e z d e ba t e nd o- a e m g r u po . A pr i m e i r a v is t a, a pe r g u nt a pa r e ce um pouco estranha. Por que Deus quereria transformar em ódio o am or que alg uém lhe tem? A questão parece irreal e sem se ntido. Se fizermos um exame mais profundo, veremos que a q uestão co meça a ter algum significado. Em um nível, não há problemas a esse res peito. "Dize r que Deus é todo- poder os o s ignifica que Deus pode fazer qualquer coisa que não im plique c ontr adição lóg ica." A qui não existe essa contradição. Deus deve ter a capacidade de transformar o amor de uma pessoa em ódio. Ma s envolve- se aqui uma questão mais profunda sobre o caráter d e D e u s . P o d e r í a m o s i m a g i n a r D e u s desejando fazer isso? Para esclarecer melhor este ponto, façamos outra pergunta: "Deus pode des cumprir suas promessas?" N ão ex iste contr adição l ó gica em quebrar promessas. Isso acontece sempre. Pode ser lamen tável, mas não há dificuldade intelectual implicada nessa questão.
Se Deus pode fazer qualquer coisa que não implique contradição lógica, certamente ele pode descumprir uma promessa. No entanto, para os cristãos esta insinuação é ultrajante. Aquele Deus que conhecemos e amamos é o Deus que permanece fiel ao que foi prometido. Se não pudermos confiar em Deus, em quem poderem os confiar? A sugestão de que Deus pode romp er uma promessa contradiz o aspecto vital do caráter de Deus, a saber, a fidelidade e a confiabilidade de Deus. Um dos grandes temas tanto do Antigo como do Novo Testamento é o da total fidelidade e confiabilidade de Deus. Os seres humanos podem falhar, mas Deus permanece fiel. Consideremos as seguintes passagens da Bíblia; S a b er ás , po is , q ue o S E N H O R , t e u D e u s , é o ún i c o D e u s , u m D e u s f ie l, q u e g u a r d a a a l i a n ç a e a m i s e r i c ór d i a a t é m i l g e r a ç õe s ( D t 7 , 9 ) . F ie l é o S E N H O R e m s uas pa la v r a s (S I 1 4 5 , 1 3 ).
A questão aqui é saber que existe uma tensão entre o poder e a confiança. U m impo stor todo po dero so p ode fazer prom essas que não podem ser sustentadas. Todavia, um dos mais profundos pensamentos da fé cristã é que conhecemos um Deus que pode fazer qualquer coisa, mas que escolheu resgatarnos. Deus não precisa fazer uma aliança com Israel, mas quis fazer, e tendo feito a aliança permanece fiel a essa promessa. Vemos aqui a idéia importante da autolimitação divina, a noção de que Deus escolhe livremente comportarse de determinadas maneiras e, ao proceder assim, coloca limites à própria ação divina. Deus não pode ser acusado de agir arbitrariamente ou com capricho, pelo contrário. Deus age com confiabilidade e fidelidade. Se Deus realmente está revelado em Cristo, devemos saber que o poder de Deu s não é simbo lizado pela espada ou pela carruagem, símbolos comuns do poder militar e político do mundo da época de Jesus, mas sim pela cruz, símbolo associado à infâmia, ao fracasso e à impotência. Talvez a afirmação mais dramática da noção de autolimitação divina possa ser encontrada nas Cartas eUocumentos
íJa prisão, escritos por Dietrich Bonhoeffer nos últimos anos da Segunda Guerra Mundial: D e u s se de i x a a r r e b a ta r pa r a f o r a d o m u n d o n a c r u z . E l e é f r a c o e i m p o tente no mundo, e esta é precisamente a maneira, a única maneira como e le e s tá c o n o s c o e n o s a j u da [ . .. ] . A B íb li a n o s d ir i g e p ar a a im p o t ê n c i a e s o f r i m e n t o d i v i n o , •s ó o D e u s q u e s o f r e é qu e p o d e a j ud a r .
Em uma era que passou a suspeitar cada vez mais da idéia do "poder," é importante recordar que falar de um Deu s todop oderoso não supõe que Deus seja um tirano. Para Bonhoeffer, significa que Deus escolhe ficar do lado das pessoas em sua impotência, sendo esse um tema principal da interpretação da cruz de Cristo, a que aludiremos de passagem. Retornemos ago ra à pergunta com que iniciamos o tema. Deus pode fazer qualquer coisa? A resposta do bom senso seria bastante simples. Se Deus é todopoderoso, ele deve ser capaz de fazer qualquer coisa. No entanto, a teologia cristã insiste no fato de que a onipotência divina deve ser posta no contexto da natureza divina, a natureza de um Deus correto e fiel, em cujas promessas devemos confiar. Como acontece muitas vezes, devemos ter todo cuidado ao transferir conceitos do contexto humano para nossa reflexão a respeito de Deus. En t r o s a m e n t o
co m o texto
O Catecismo da Igreja Católica é um dos documentos teológicos mais importantes do século XX e conquistou muita admiração pela clareza de sua apresentação. Ao tratar da alusão a Deus como "pai", o Catecismo reúne vários pontos importantes, todos dignos de cuidadosa atenção. Eis o que diz o textO; A o d e s ig n a r a D e u s c o m o n o m e de "P a i", a l in g u a g e m d a f é in d ic a p r i n c ip a l m e n t e d o is a s pe c to s : q u e D e u s é o r i g e m p r i m e i r a d e t o d a a u to r i d a d e transcendente e que, ao mesmo tempo, é bondade e solicitude de amor
para todos os seus filhos. Essa ternura paterna de Deus pode também ser expressa pela imagem da maternidade, que enfatiza a imanência de Deus, a i n t i m i d a d e e n t r e D e u s e s ua c r i a tu r a . A l in g u a g e m d a f é in s pir a - s e , a s sim, na experiência humana dos pais (genitores), que são de certo modo o s pr i m e i r o s r e p r e s e n ta n te s de D e u s p a r a o h o m e m . M a s e ss a e x p e r iê n c ia h u m a n a e n s i n a t a m b é m q ue o s p ais h u m a n o s s ão f a lív e i s e q ue p o d e m desfigurar o rosto da paternidade e da maternidade. Convém então lem brar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Ele não é nem homem nem mulher, é Deus. Transcende também a paternidade e a ma ternidade humanas, embora seja sua origem e sua medida: ninguém é pai como Deus é Pai.
A seguinte estrutura pode ajudar no interesse por este texto, quer o leitor esteja estudando individualmente, quer esteja participando de um grupo de estudo. Quais são os dois pontos principais que o Catecismo acredita que devem ser considerados ao se falar de Deus como pai? Podese tentar identificar algumas passagens bíblicas ligadas a este texto.
O Catecismo também afirma a importância das imagens maternas. De que forma este modo de ver suplementa as imagens paternas? Como estes temas contribuem para apelar para o amor "paterno/materno" de Deus?
O que acha o leitor que o Catecismo quer dizer quando afirma que "ninguém é pai como Deus é Pai"?
Capítulo
A criação
Todos os credos cristãos afirmam que Deus é o criador do mundo. O tema se encontra em todas as Bíblias cristãs e é o primeiro que encontramos ao ler a Bíblia na ordem canônica, ou seja, ao começar pelo livro do Gênesis (Gênesis é uma palavra grega que literalmente significa "início” ou "origem"). Convém, por conseguinte, começar este capítulo examinando a compreensão da criação no Antigo Testamento. A CRIAÇÃO NO A n t i g o T
estamento
O tema "Deus com o Criador" é de grande importância no Antigo Testamento. Muitas vezes a atenção prendese a narrativas da criação encontradas nos dois primeiros capítulos do livro do Gênesis com que o Antigo Testamento tem início. No entanto, devese observar que o tema está profiindamente inserido em todo o Antigo Testamento, encontrandose nos três principais gêneros literários de seus diferentes escritos, o histórico, o sapiencial e o profético. Por exemplo, Jó 38,142, que é uma forma de literatura sapiencial, expõe o que inquestionavelmente é a compreensão mais completa de Deus como criador encontrada no Antigo Testamento, afirmando o papel de Deus como criador e sustentador do mundo.
É possível discernir dois contextos distintos, ainda que associados, em que se encontra a noção de "Deus como criador" no Antigo Testamento: primeiro, no contexto que reflete o louvor de Deus no culto de Israel, tanto no culto individual como no social, em segundo lugar, em contextos que põem em realce o Deus que criou o mundo e também o Deus que libertou Israel da escravidão, continuando a sustentálo até o presente. De particular interesse para nosso estudo são o tema do Antigo Testamento sobre "criação como ordem" e a maneira como se estabelece o tema da "ordem," que possui grande importância crítica, sempre justificado com referência aos fundamentos cosmológi cos. Descrevese, muitas vezes, o modo como o Antigo Testamento retrata a criação sob o aspecto de comprometimento e vitória sobre as forças do caos. Esse "estabelecimento da ordem" geralmente encontrase representado de duas maneiras distintas: 1. Podese pensar na criação com o imposição de ordem a um caos informe. Este modelo está associado de maneira especial à imagem de um oleiro que trabalha com a argila para criar uma estrutura reconhecidamente ordenada (por exemplo, Gn 2,7, Is 29,16, 44,8, Jr 18,16). 2. A criação pode ser imaginada com o o conflito vitorioso de Deus com uma série de forças caóticas, muitas vezes descritas como um dragão ou outro monstro (que tem nomes diferentes como Beemoth, Leviatã, Nahar, Rahab, Tannim ou Yam), que devem ser subjugados (Jó 3,8, 7,12, 9,13, 40,1532; SI 74,1315; 139,1011; Is 27,1; 41,910; Zc 10,11). Percebese que existe um paralelo entre a narrativa do Antigo Testamento que mostra o envolvimento de Deus com as forças do caos e narrativas semelhantes encontradas em outros textos do Oriente Próximo antigo (por exemplo, as mitologias ugarítica e cananéia). No entanto, existem marcantes diferenças em alguns pontos importantes, inclusive na insistência que se nota no Antigo Testamento em afirmar que as forças do caos não devem ser vistas
com o divinas. A criação não deve ser entendida simplesmente com o formação do universo, mas como domínio de Deus sobre o caos e a organização do mundo. Talvez uma das afirmações mais importantes feitas pelo Antigo Testamento seja que a natureza não édivina. A narrativa da criação no Gênesis afirma que Deus criou a Lua, o Sol e as estrelas. A importância desta questão é facilmente descurada. Cada uma dessas entidades celestes era adorada como divina no antigo mundo. Afirmando que essas entidades foram criadas por Deus, o Antigo Testamento deixa claro que elas estão subordinadas a Deus e não possuem uma natureza divina intrínseca.
O
C O N C E I T O D E C R IA Ç Ã O E X N IH IL O
Tendo introduzido brevemente alguns aspectos do conceito de criação, devemos passar agora à consideração de alguns deles de um ponto de vista mais teológico. Um dos desdobramentos mais importantes da doutrina da criação surge em resposta à controvérsia gnóstica do século IL Para o gnoticismo, na maior parte de suas formas principais, deveria ser estabelecida uma distinção profunda entre o Deus que resgatou a humanidade do mundo e uma divindade um pouco inferior (muitas veze s deno minada "o Demiurgo"), que criou aquele mundo em primeiro lugar. O Antigo Testamento era visto pelos gnósticos como um relato que trata desta divindade menor, ao passo que o Novo Testamento se ocupa mais do Deus redentor. Os cristãos, por sua vez, viam ambos os Testamentos como se referindo ao único e mesmo Deus, isto é, um Deus que cria e resgata, ao mesmo tempo. (Esta idéia de continuidade da ação divina é descrita muitas vezes pela expressão "economia da salvação".) Como tal, a crença em Deus como criador e na autoridade do Antigo Testamento era interligada em um estágio primitivo da teologia cristã. Entre os autores antigos que primeiro trataram deste tema merece menção especial o bispo Ireneu de Lião.
Originouse um debate que tinha com o questão central a criação exnihilo ("criação do nada"). Convém lembrar que o cristianismo teve sua origem e se expandiu inicialmente pelo mundo mediterrâneo oriental dos séculos I e II, dominado por várias filosofias gregas pagãs. A noção geral que a filosofia grega pagã tinha das origens do mundo podia ser resumida da seguinte maneira: Deus não deve ser pensado como tendo criado o mundo, mas sim como aquele que é um arquiteto, que pôs em ordem a matéria preexistente, uma matéria que já estava presente dentro do universo e não precisava ser criada, mas apenas precisava receber uma forma e uma estrutura definitivas. Deus deve ser pensado, portanto, como aquele que modelou o mundo, valendose da matéria preexistente. Assim, em um de seus diálogos (Timeu), Platão desenvolveu a idéia de que o mundo tinha sido criado de uma matéria preexistente que foi organizada até formar o mundo atual. Esta idéia de Platão foi retomada por muitos autores gnósti cos, que nesse ponto foram seguidos por alguns teólogos cristãos, como Teófilo de Antioquia (falecido por volta de 184) e Justino Mártir, que professavam a crença na matéria preexistente que tinha sido configurada para formar o mundo no ato da criação. Em outras palavras, a criação não tinha sido do nada (ex nihilo), mas devia ser vista como ato de construção com base em material que já existia, da mesma forma como uma pessoa pode construir um iglu empregando a neve ou, então, da mesma forma como se pode construir uma casa utilizando as pedras. Conseqüentemente, a existência do mal no mundo devia ser explicada com base na cond ição de im po ssibilidade de tratar dessa matéria preexistente. As opções de Deus ao criar o mundo eram limitadas pela má qualidade do material disponível. A presença do mal ou os defeitos que existem no mundo não devem ser, portanto, atribuídos a Deus, senão às deficiências do material com que o mundo foi construído. Diante dessas filosofias, o conflito com o gnoticismo forçou os pensadores cristãos a reconsiderar a questão. Em parte, a idéia da criação a partir de matéria preexistente foi desacreditada pelas
associações gnósticas e, em parte, também passou a ser contestada pela leitura cada vez mais aprofundada das narrativas da criação apresentadas no Antigo Testamento. Reagindo contra essa visão do mundo de orientação platônica, vários dos principais autores cristãos dos séculos II e III argumentavam que tudo tinha sido criado por Deus. N ão havia matéria preexistente, tudo exigia a criação do nada. Ireneu ensinava que a doutrina cristã da criação afirmava a bondade inerente da criação, que contrastava fortemente com a gnóstica de que o mundo material era mau. Tertuliano (entre aproximadamente 155 e 230) pôs em relevo a decisão divina de criar o mundo. A existência do mundo em si devese à liberdade e à bondade de Deus e não a uma necessidade intrínseca resultante da natureza da matéria. O mundo depende de Deus para sua existência. Esta idéia estava em aberto contraste com a teoria de Aristóteles de que o mundo não dependia de nada para existir e que a estrutura particular do mundo era intrinsecamente necessária. Apesar desta convicção, nem todos os teólogos cristãos adotaram esta mesma posição no estágio primitivo do surgimento da tradição cristã. Orígenes, talvez um dos maiores autores platôn icos do cristianismo dos primeiros séculos, considerava claramente plausível a doutrina da criação a partir de matéria preexistente.
A
C R IA Ç Ã O E O D U A L I S M O
A questão central relacionada com a doutrina da criação que de via ser debatida no período inicial da teologia cristã apresentavase, dessa maneira, como uma questão de dualismo — visão do mundo segundo a qual existem dois princípios últimos distintos, ou duas esferas, como bem e mal ou matéria e espírito. O exemplo clássico do dualismo encontrase em algumas formas de gnosticismo, rigorosamente impugnadas por Ireneu em sua condenação da existência de dois deuses, o Deus supremo, fonte do mundo espiritual invisível, e uma divindade menor que tinha criado o mundo a partir de coisas materiais. Este modo de ver revela um forte dualismo, uma vez que
estabelece uma tensão fundamental entre o reino espiritual (visto com o bom ) e o reino material (visto com o mau). A doutrina da criação afirmava que o mundo material era criado como bom por Deus, apesar de sua contaminação subseqüente pelo pecado. Igual modo de ver estava associado com o maniqueísmo, uma visão do mundo gnóstica que Ag ostinho , em sua juventude, achava atraente. Por volta do final do século IV, a maior parte dos te ólo go s cristãos já havia rejeitado a doutrina platônica, mesm o na forma pro po sta por Orígenes, e afirmava que Deus era o criador tanto do mundo espiritual como do mundo material. O Credo Niceno iniciase com uma declaração de fé em Deus "criador do céu e da Terra", afirmando assim a criação divina tanto do mundo material como do mundo espiritual. Na Idade Média, reapareceram certas formas dualistas, principalmente na corrente de pensam ento dos cátaros e albigenses, que ensinavam que a matéria é má e tinha sido criada ex nihilo pelo diabo. Contra essas correntes, o Quarto Concilio de Latrão (1215) ensina que Deus é o autor da criação boa a partir do nada. Cremos firmemente e confessamos publicamente que existe só um único Deus verdadeiro [...] o único princípio do universo, Criador de todas as coisas invisíveis e visíveis, espirituais e físicas, o qual, desde o princípio de todos os tempos e pelo seu poder onipotente, criou tudo a partir do nada (ex nihilo).
Im p l i c a ç õ e s
da doutrina da criação
A doutrina de Deus como criador tem várias implicações importantes, entre as quais convém notar quatro. Em primeiro lugar, devese notar uma distinção entre Deus e a criação. Um tema importante da teologia cristã, desde os primeiros tempos, consiste em resistir à tentação de fundir em uma só entidade o criador e a criação. O tema é afirmado com clareza na epístola de Paulo aos Romanos, cujo capítulo inicial critica a tendência de reduzir Deus ao nível do mundo. De acordo com Paulo, existe uma
tendência humana natural, em conseqüência do pecado, de servir "antes às coisas criadas do que ao criador" (Rm 1,25). A tarefa central da teolo gia cristã da criação consiste em distinguir Deus da criação, apesar de afirmar, ao mesmo tempo, que a criação é criação de Deus. Podese ver como esse processo é desenvolvido nos escritos de Agostinho de Hipona. É também de grande importância nos escritos de reformadores, como João Calvino, que se preocupavam em criar uma espiritualidade de afirmação do mundo em resposta à tendência monástica geral de renunciar ao mundo, como se notava com evidência no livrinho A imitação de Cristo, atribuído a Tomás de Kempis (13801471), com sua insistência característica no "desprezo do mundo". Existe uma tensão no pensamento de C alvino entre o mundo como criação do próprio Deus e o mundo da criação decaída. Por ser criação de Deus, o mundo deve ser honrado, respeitado e afirmado; po r ser criação decaída, deve ser condenado para ser redimido. Essas duas idéias poderiam ser descritas como os dois focos da elipse da espiritualidade de afirmação do mundo feita por João Calvino. Um modelo semelhante pode ser discernido na doutrina de Calvino sobre a natureza humana, na qual, apesar da insistência na natureza pecadora da humanidade decaída, ele nunca perde de vista o fato de que essa humanidade permanece como criação de Deus. A pesar de manchada pelo pecado , a criação permanece como criação e posse de Deus, e assim deve ser valorizada. A doutrina da criação conduz a uma espiritualidade crítica de afirmação do mundo em que o mundo é afirmado sem cair na armadilha de ser tratado como se fosse um Deus. Em segundo lugar, a criação supõe a autoridade de Deus sobre o mundo. Uma nota bíblica característica é que o criador tem autoridade sobre a criação. Os seres humanos são vistos, pois, como parte da criação, com uma função especial dentro da criação. A doutrina da criação conduz à idéia de administração humana da criação, que deve ser posta em contraste com a noção secular de posse humana do mundo. A criação não é nossa, nós somos depositários da criação em nome de Deus. Devemos ser os administradores da
criação que pertence a Deus, e somos responsáveis pelo modo de exercer essa administração. A idéia é de grande importância com relação às preocupações ecológicas e ambientais, em que se estabelece um fundamento teórico do exercício da responsabilidade humana neste planeta. Em terceiro lugar, a doutrina de Deus como criador implica a bondade da criação. Em toda a primeira narrativa bíblica da criação, encontramos a afirmação: "E Deus viu que era bom" (Gn 1,10,18,21, 25,31). (A única coisa eventualmente que "não é boa" é o fato de Adão estar só. A humanidade é criada como um ser social e deverá existir com relação aos outros.) Na teologia cristã, não há lugar para a idéia gnóstica ou dualista do mundo como um lugar inerentemente mau. Como examinaremos em outra parte, ainda que o mundo tenha caído no pecado, permanece como criação boa de Deus e capaz de ser resgatada. Isto não quer dizer que a criação seja atualmente perfeita. Um componente essencial da doutrina cristã do pecado é o reconhecimento de que o mundo se afastou da trajetória em que Deus o colocou na obra da criação. O mundo se desviou de seu curso primário e decaiu da glória em que foi criado. O mundo com o o vemos não é o mundo que devia ser. A existência do pecado humano, do mal e da morte é, em si mesma, sinal do grau de afastamento da ordem criada do seu modelo composto. Por este motivo, a maior parte das reflexões cristãs sobre a redenção encerra a idéia de algum tipo de restauração da criação à sua integridade original para que as intenções de Deu s com respeito a essa criação possam encontrar seu cumprimento. A afirmação da bondade da criação também evita a idéia, inaceitável para a maior parte dos cristãos, de que a Deus compete a responsabilidade pelo mal. A ênfase constante que a Bíblia põe na bondade da criação é uma advertência de que a força destrutiva do pecado não está presente no mundo por desígnio ou permissão de Deus. Em quarto lugar, a doutrina da criação afirma que os seres humanos são criados à imagem de Deus (Gns 1,2627). Essa idéia,
central em toda doutrina cristã da natureza humana, é de grande importância como aspecto da própria doutrina da criação. "Tu nos criaste para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não en contrar repouso em ti," (Agostinho de Hipona). Com essas palavras se estabelece a importância da doutrina da criação para o exato entendimento da experiência, da natureza e do destino humanos. Voltaremos a tratar desse tema brevemente. M
odelos de
D
eus c o m o criador
A maneira como Deus age como criador tem sido objeto de grande discussão na tradição cristã. Muitos modelos ou formas de representar o modo com o Deus deve ser imaginado em sua obra de criação do mundo desenvolveramse de diferentes modos, cada um deles lançando alguma luz sobre a rica e complexa compreensão cristã da noção de criação. 1. Emanação. Esse termo foi amplamente empregado pelos a tores cristãos primitivos para explicar a relação entre Deus e o mundo. Embora o termo não seja usado por Platão ou Plotino, muitos autores patrísticos que demonstravam simpatia pelas várias formas de platonismo viram nisso uma forma cômoda e apropriada de articular as idéias platônicas. A imagem que domina essa teoria é a imagem da luz ou do calor que é irradiado pelo Sol ou que surge da condição humana, como por exemplo o fogo. Essa imagem da criação (à qual o Credo Niceno alude com a expressão "luz da luz") sugere que a criação do mundo pode ser vista como um transborda mento da energia criadora de Deus. Assim como a luz se origina do Sol e se reflete na natureza, da mesma forma a ordem criada provém de Deus e se manifesta na natureza divina. Existe, com base nesse modelo, um nexo natural ou orgânico entre Deus e a criação. No entanto, o modelo possui alguns pontos fracos, como veremos agora. Primeiro, a imagem do Sol que irradia sua luz — ou a imagem do fog o que irradia calor — implica uma emanação involuntária e não uma d ecisão con sciente de criar. A tradição cristã tem
demonstrado de maneira compatível que o ato da criação depende de uma decisão prévia da parte de Deus para criar, uma decisão que esse modelo não pode exprimir adequadamente. Esta consideração leva, naturalmente, à segunda fraqueza, referente à natureza impessoal do modelo em questão. A idéia de um Deus pessoal que expressa a personalidade no próprio ato da criação e na subseqüente criação é difícil de representar por meio dessa imagem. N o entanto, o modelo articula claramente um nexo íntimo entre o criador e a criação, conduzindonos à expectativa de que algo da identidade e da natureza do criador deve ser encontrado na criação. D essa forma, seria de esperar que a beleza de Deus, tema de particular importância na teologia medieval primitiva e retomado nos escritos posteriores de Hans Urs von Balthasar (19051988), devesse refletirse na natureza da criação. 2. Construção. Muitas passagens bíblicas retratam Deus co um arquiteto que deliberadamente constrói o mundo, por exemplo o Salmo 127,1. As imagens são poderosas, traduzindo as idéias de finalidade, planejamento e intenção deliberada de criar. A imagem é importante porque atrai a atenção tanto para o criador como para sua criação, e além de demonstrar a habilidade do criador permite apreciar a beleza e a ordem da criação resultante, tanto pelo que ela é em si mesma como pelo testemunho da criatividade e do cuidado do criador. Apesar destas considerações, a imagem tem uma deficiência no que se refere à idéia a que acenamos no Timeu de Platão. Esse diálogo retrata a criação como evolução de uma matéria preexistente. Aqui a criação é entendida com o um ato que dá forma e modela alguma co isa que já está ali, uma idéia que, como vimos, estabelece pelo menos um grau de tensão com a doutrina da criação ex nihilo. A imagem de Deus como construtor parece supor a formação do mundo a partir de um material que já existe ali e que é, obviamente, imperfeito. Não obstante, apesar dessa dificuldade, podese ver que o modelo exprime a idéia de que aquele caráter do criador é, de alguma forma, expresso no mundo natural exatamente como o do artista
que se retrata na sua obra. De um modo particular, a noção de "ordenar", isto é, a atribuição ou imposição de coerência ou estrutura ao material preexistente, é afirmada com clareza nesse modelo. Qualquer que possa ser a noção complexa da "criação" no contexto cristão, certamente essa noção inclui o tema fundamental da ordenação, uma noção especialmente significativa nas narrativas da criação apresentadas no Antigo Testamento. 3. Expressão artística. Muitos autores cristãos de diferen perío dos da história eclesiástica falam da criação com o "obra da mão de Deus", comparandoa com uma obra de arte que é, ao mesmo tempo, bela em si mesma e expressiva da personalidade do criador. Esse modelo da criação como "expressão artística" de Deus como criador é particularmente bem descrita pelo teólogo norteamericano do século XVlll Jonathan Edwards (17031758), como veremos. A imagem presta uma ajuda especial pelo fato de preencher uma lacuna dos dois modelos observados acima, a saber, seu caráter impessoal. A imagem de Deus como artista transmite a idéia de uma expressão pessoal na criação de alguma coisa que é bela. Mais uma vez, as eventuais fraquezas precisam ser observadas: por exemplo, o m odelo poderia levar facilmente à idéia da criação a partir de matéria preexistente, como no caso de um escultor com uma estátua esculpida de um bloco de pedra já existente. No entanto, o modelo oferece pelo menos a possibilidade de pensar na criação a partir do nada, como no caso de um autor que escreve um romance ou de um compositor que cria uma melodia e uma harmonia. Esse modelo nos anima também a buscar a autoexpressão de Deus na criação, dando ainda mais credibilidade teo lógica à teolo gia natural. Existe também um nexo natural entre o conceito de criação como "expressão artística" e o conceito de grande significado de "beleza". A
H U M A N ID A D E E A C R IA Ç Ã O ; A "i M A G E M D E D e U S "
"Que coisa é o homem, para dele te lembrares?" (SI 8,5). Desde o começo da história, as pessoas mostram admiração ao verem o
lugar que ocupam no plano maior das coisas. Por que estamos aqui? Qual é o nosso destino? Qual é o sentido da existência humana? A doutrina da criação oferece um quadro dentro do qual podemos entender e apreciar essas questões. Um dos temas fundamentais da doutrina cristã da criação é que a humanidade foi criada 'a imagem de Deus" (Gn 1,27). Essa expressão breve, porém profunda e importante, abre o caminho para entendermos corretamente a natureza humana e o lugar que de modo geral ocupamos na ordem criada. A humanidade não é divina, mas possui um relacionamento com Deus que é diferente da relação com as criaturas. A humanidade é portadora da imagem de Deus. Segundo pensam alguns, essa é uma afirmação da posição privilegiada da humanidade na criação. No entanto, para a maior parte dos teólogos cristãos essa é, acima de tudo, uma afirmação da responsabilidade abso luta pelo mundo em que vivemos. Como, então, devemos entender essa relação com Deus? Como podemos visualizála? A teologia cristã apresenta um grande número de modelos, entre os quais podem os citar três, cada um me recedor de um meticuloso exame. 1. A soberania de Deus. A "imagem de Deus" pode ser vista co uma parte restante da autoridade de Deus sobre a humanidade. No antigo Oriente Médio, os monarcas freqüentemente ostentavam imagens de si mesmos como afirmação do poder que exerciam sobre determinada região — lembremonos, por exemplo, da estátua de ouro de Nabucodonosor descrita no livro de Daniel (3,17). Ser criado à "imagem de Deus" pode ter o sentido de ser responsável diante de Deus. Este argumento importante está subentendido em um incidente do ministério de Jesus Cristo relatado em Lucas 20,2225. Desafiado a responder se era justo para os judeus pagar imposto às autoridades romanas, Jesus pediu que mostrassem uma moeda. E perguntou; "De quem traz ela a efígie e a inscrição?" Aqueles que estavam ao seu redor responderam; "De César", e Cristo diz para dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Alguns podem achar que essa resposta é uma fuga da questão, mas não é. Nessa
resposta, Jesus nos lembra de que as pessoas que são portadoras da imagem de Deus, isto é, a humanidade, devem se dedicar a ele. 2. A correspondência humana a Deus. A idéia da "imagem de De pode ser entendida como se referindo a algum tipo de correspondência entre a razão humana e a racionalidade de Deus como criador. Nesse modo de considerar as coisas existe uma ressonância intrínseca entre as estruturas do mundo e o raciocínio humano. Essa visão é exposta com especial clareza na principal obra teológica de Agostinho a respeito da Trindade (De Trinitate): A im a g e m d o C r i a d o r d e v e e nc on tr a r - s e n a a l m a r a c i o n a l o u i n te l e c tu a l
da humanidade [...]. [A alma humana] foi criada à imagem de Deus para p o d e r f a z e r us o d a r a z ã o e d a in t e l i g ê n c i a p a r a se a p r o x i m a r d e D e u s e c o n t e m p lá- l o .
Para Agostinho, fomos criados com os recursos intelectuais que podem nos levar ao conhecimento de Deus por meio da reflexão sobre a natureza. Nos líltimos anos a importância desse ponto tornouse objeto da pesquisa do exprofessor de física teórica da Universidade de C am bridgejoh n P olkinghorne, que se tornou teólogo . Polkinghorne observa que alguns dos mais belos modelos imaginados pelos matemáticos ocorrem de fato na estrutura do mundo físico que nos rodeia. Parece existir uma relação de bases profundas entre a razão de dentro (a racionalidade de no ssa mente — neste caso, a matemática) e a razão de fora (a ordem e estrutura racional do mundo físico que nos rodeia). As duas coisas se combinam muitíssimo bem. Por que nossa mente possui uma form ação tão perfeita para entender os modelos profundos do mundo que nos rodeia? Polkinghorne sustenta que parece existir algum tipo de "ressonância" ou "harmonização" entre a ordenação do mundo e a capacidade da mente humana para discernir e representar essa harmonia: "Se a congruência profunda da racionalidade presente em nossa mente com a racionalidade presente no mundo deve ter uma explicação válida, essa explicação deve estar em uma razão mais
profunda que deve ser o fundamento de ambas. Essa razão deve ser proporcionada pela Racionalidade do Criador". 3. Imagem e racionalidade. Uma terceira visão afirma que a "im gem de Deus" se refere à capacidade de relacionarse com Deus. Ser criado "à imagem de Deus" significa ter a possibilidade de se relacionar com Deus, o termo "imagem", neste caso, exprime a idéia de que Deus criou a humanidade para um determinado fim, a saber, para relacionarse com Deus. Esse tema desempenha um papel de destaque na espiritualidade cristã. Nossa meta é existir com relação ao nosso criador e redentor. Este tem sido um tema importante nas obras de C. S. Lewis (18981963). Para Lewis existe uma lacuna dentro de nós, formada por Deus e que só Deus pode preencher, e na ausência de Deus experimentamos um profundo sentimento de anseio, que, na verdade, é um anseio por Deus, mas que a humanidade decaída e sujeita ao pecado lê equivocadamente, acidentalmente ou deliberadamente como um anseio por coisas que se encontram no mundo. Estas coisas nunca satisfazem. Se somos feitos para Deus, e só para Deus, nada mais existe que possa nos satisfazer. E, como Lewis costumava afirmar constantemente, esse sentimento de anseio que nos é dado por Deus apresenta a chave para responder às grandes questões da vida com as quais a humanidade se confronta.
A
C R IA Ç Ã O E A T E O L O G I A N A T U R A L
Assim, pois, se Deus criou o mundo, o que é que o mundo pode nos dar a conhecer a respeito de Deus? Essa pergunta foi debatida na teologia cristã durante muitos séculos. "Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas mãos" (SI 19,1). Esse texto bem conhe cido p ode ser visto com o representante de um tema geral na Bíblia cristã de que alguma coisa da sabedoria de Deus que fez o mundo pode ser conhecida através do mundo que foi por ele criado. Sabese que a investigação desse tema é uma das partes mais férteis da teologia. Co m eçam os nossa exp osição examinando o
que se considera amplamente como marco desse tema: a contribuição de Tomás de Aquino. A Summa contra gentiles de Tomás de Aquino foi escrita durante os anos 12591261, inicialmente em Paris e depois em Nápo les. Uma das discussões mais importantes diz respeito ao modo como se pode ter uma compreensão de Deus com relação à criação, uma relação que Tom ás de Aquino analisa sob a luz da causalidade: para ele, existe uma fundamental "semelhança {similituâo) com Deus" na ordem criada em conseqüência de ser Deus a causa, em certo sentido da palavra, de todas as coisas criadas. Dado que obviamente nenhuma coisa criada pode vir à existência espontaneamente, seguese que a existência de todas as coisas pode ser considerada conseqüência da relação de depend ência causai entre a criação e o criador. C om base no raciocínio das categorias de causalidade da doutrina de Aristóteles, Tomás de Aquino expõe uma posição que podemos resumir da seguinte maneira: 1. Suponham os que A seja causa de B. 2. Supo nhamos também que A possui a qualidade Q. 3. Portanto, B possu irá a qualidade Q por ter A com o causa. Esse argumento pleno estabelecido por Tomás de Aquino é complexo e tem suas dificuldades, mas a conclusão é clara. Existem, por assim dizer, vestígios físicos ou metafísicos na criação que estabelecem a base para o argumento indutivo da existência da sua causa e das suas origens. Se Deus fez o mundo, a "assinatura" de Deus (por assim dizer) pod e ser encontrada na ordem criada. Tomás de Aquino explica isso da seguinte maneira: A m e d it a ç ã o s o br e as o br a s [ de D e us ] n o s p e r m it e , p e l o m e n o s a té c e r to g r a u , a d m i r a r e r e f le t ir s o b r e a s a b e d o r i a d e D e u s [ . .. ] . S o m o s c a p a z e s de d e d u z i r a s a b e d o r ia d e D e u s d a r e f le x ão s o b r e as o br a s d e D e u s [ . .. ] . E s sa c o n s i de r a ç ã o da s o b r a s de D e u s l ev a - n os à a d m i r a ç ã o d o p o d e r s u b l im e d e D e u s e , c o n s e q ü e n t e m e n t e , i ns p i r a r e v e r ê n c ia p o r D e u s n o s c o r a ç õe s
humanos [...]. Essa consideração também impele as almas para o amor da b o n d a d e d e D e u s [ . .. ] . S e a b o n d a d e , a b e l e z a e a a d m i r a ç ã o d as c r ia tur a s s ão t ão a g r a d áv e i s à m e n t e h u m a n a , a f o n t e o r i g i n a l d a p r ó p r i a b o n d a d e de Deus (comparada com as gotas de bondade encontradas nas criaturas) a t r a ir á a m e n t e h u m a n a p a r a s i m e s m a .
Po r isso, pode- se co nhece r alg uma coisa que nasce da torre nte da beleza de Deus a partir dos arroios da criação. J o ão C a l v i n o t a m b é m t r a t o u des se t e m a . O p r im e i r o l iv r o d a sua obra A instituição cristã abre-se com a exposição desse problema fundamental da teologia cristã, indagando: Como podemos saber alguma coisa a respeito de Deus?. Calvino afirma que é possível discernir um conhecimento geral de Deus em toda a c riação: na humanidade, na ordem natural e no próprio processo histórico. Dis t ing u e m - s e d o is f u n d a m e n t o s p r in c ip a is de ss e c o n h e c i m e n t o , u m subjetivo, outro objetivo. O primeiro fundam e nto é um "s entido de div indade " (sensus divinitatis) ou "semente de religião" {semen religionis), p l a n t a d a p o r D e u s em cada ser huma no. De us inc utiu em cada ser hum a no um senso ou pressentimento inato da existência divina. E como s e alguma coisa a respeito de Deus tivesse sido gravada no coração de cada ser huma no. C a lv ino identifica três co nseqüências dessa cons ciência inata da div indade: a univer s alidade da re lig ião (a qual, qua ndo não info r m a da pela revelação cristã, se degenera na idolatria), a inquietude da consciência e o temor servil de Deus. Calvino diz que esses três ele mentos servem como ponto de contato para a proclamação cristã. O s e g un do f u n da m e n to d o c o n h e c i m e n t o de D e u s c o m o c r i a dor está na v ivê ncia e reflex ão sobre a ordem do univers o. A co ns i deração da ordem criada que culmina na própria humanidade leva ao reconhecimento de Deus como criador e ao reconhecimento da sabedoria e da justiça divina. É i m p o r t a n t e d e ix a r c la r o q u e C a l v i n o n ão p r e t e nd e s u g e r ir de forma alguma que tal conhecimento de Deus a partir da ordem da criação seja próprio ou exclusivo dos fiéis cristãos,- o que ele explica
é que clualcjuer pessoa, com base na reflexão inteligente e racional so bre a ordem da criação, deve ter capacidade para chegar a admitir a idéia de Deus. A or dem c riada é co m o um "palco" ou co m o um "espelho" em que se manifestam a presença, a natureza e os atri butos de Deus. Apesar de invisível e incompreensíve l. Deus quer ser conhecido sob a forma das coisas criadas e visíveis na criação. Deus criador pode ser conhecido, embora com certas limitações, por meio da própria criação. E m s e g uid a, C a l v i n o i n t r o d u z a n o ç ã o d e r e v e l aç ão . A E s c r i tura reitera o que se pode saber de Deus por meio da natureza escla recendo, ao mesmo tempo, e aperfeiçoando essa revel ação geral. "O c o n h e c i m e n t o de D e u s , m a n if e s t a do c o m c la r e z a na o r d e m d o u n i verso e em todas as criaturas, é explicado ainda com maior clareza na Palavra." E somente pela Escritura que os que crêem têm acesso ao conhecimento das ações redentoras de Deus na história, culmi nan do na v ida, m or te e ress urreição de Jesus Cr isto. Para Ca lv ino, a re v elação está ce ntra lizada na pess oa de Jesus Cristo,- nosso c o nhecimento de Deus nos vem por meio dele, de modo que Deus só pode ser plena me nte c onhe cido em Jesus C risto , que, por sua ve z, só pode ser conhecido por meio da Escritura. No ent anto, a ordem criada oferece pontos de contato importantes para e ssa revelação. A idéia f unda m e nta l é que o c o n he c im e nt o de D e us c r ia do r pode ser obtido por meio da natureza e também pela revelação, com a revelação explicando, conformando e desdobrando o que pode ser c o n h e c i d o g r a ça s à n a tur e z a . O c o n h e c i m e n t o de D e u s r e d e nt o r , q ue p a r a C a l v i n o é u m c o n h e c i m e n t o c a r a c t e r ís t ic o d o c r i s t ia n is m o , só pode ser obtido por meio da revelação cristã, em Cristo e pela Escritura. É preciso dizer que nem todos os teólogos estão con vencidos dos méritos e da legitimidade da teologia natural. Talvez a atitude mais negativa adotada nos últimos tempos pela teolo gia cristã seja a de Karl Barth, cuja controvérsia, em 1934, c o m E m i l B r u n n e r s o b r e essa ques tão tornou- se um ma rco dos debates te ológ icos . E m 1934, Brunner publicou uma obra intitulada Natureza e graça, na qual afir
mav a que "a tarefa da nossa g era ção te ológ ica consiste em encontra r o caminho de volta para legitimar a teologia natura l". Brunner si tuava essa teoria na doutrina da criação, especificamente na idéia de que a nature za está co ns tituída de tal for ma que ex iste um a analog ia com o ser de Deus. Apesar da condição de pecado da natureza hu mana, não desaparece a capacidade de discernir Deus na natureza. Os seres humanos, apesar de pecadores, permanecem capazes de reconhecer Deus na natureza e nos acontecimentos da história, e também de ter consciência de sua culpa diante de Deus. Assim, pois, existe um "ponto de contato" com a revelação divina na natureza humana, em conseqüência da doutrina da criação. B r u n ne r a f i r m a q u e a n a t ur e z a h u m a n a e s t á c o n s t i t uíd a de t a l forma que existe um ponto de contato já pronto para a revelação d i v i n a . D e s s a m a n e i r a , a r e v e l a ç ão d ir ig e - s e à n a t ur e z a h u m a n a q ue j á te m a lg um a idé ia d a q uilo de que a r e v e la ção tr ata. P o r e x e m plo , consideremos o chamado do evangelho à "penitência pelo peca do". Brunner diz que esse chamado quase não terá sentido se os seres humanos não tiverem já um certo conhecimento da noção de "pecado". Nesse sentido, a exortação do evangelho à penitên c ia d ir ig e - s e a u m a a u d i ê n c ia q ue j á de v e p o s s u ir p e l o m e n o s u m a certa idéia daquilo que "pecado" e "penitência" pod em significar. A r e v e la ção tr a z c o ns ig o um a c o m pr e e ns ão m a is ple na do s ig nif i c a d o d o p e c a d o , m a s a o f a zê - lo t r a z e m a c r é s c i m o a c o n s c i ê n c ia humana atual do pecado. Barth reagiu com ira a essa idéia, e a réplica que publicou para Brunner rompeu abruptamente a antiga amizade que un ia esses dois teólog os . A réplica tinha um dos títulos mais curtos que a his tória da literatura religiosa já produziu: Neim (Não!). Barth estava decidido a dizer "não" à avaliação positiva de Brunner sobre a teologia natural, que parecia supor que Deus necessita de ajuda para se tornar conhe cido, ou que os seres humanos de certa forma cooper am com Deus no ato da revelação. Para Barth, essa atitude subverte a liberdade e a soberania de Deus na revelação. "O Espírito Santo [...] não ne cessita de nenhum ponto de contato acima daquele qu e ele mesmo
estabelece." Esta foi a resposta de Barth; para ele, não existe nenhum ponto de contato inerente à natureza humana, porque qualquer "ponto de contato" nesses termos já é, por si, resultado da divina rev elação. A rev elação é algo que é ev ocado pela Palavra de Deus e não uma coisa que é uma característica da natureza humana.
Subentendida nessa teoria encontrase outra questão que muitas vezes costuma ser negligenciada. Por trás do apelo de Brunner existe uma idéia que pode remontar a Lutero naquilo que ele denomina "as ordens da criação". De acordo com Lutero, Deus tinha estabelecido certas "ordens" providencialmente na criação para impedir que a criação submergisse no caos. Entre essas ordens estavam a família, a Igreja e o Estado. (A estreita aliança entre a Igreja e o Estado no pensamento luterano alemão pode ser vista como reflexo dessa idéia.) O protestantismo liberal alemão do século XIX tinha absorvido essa idéia, desenvolvendo uma teologia que permitia que a cultura alemã, associada à afirmação positiva do estado, viesse a adquirir notável importância teológica. O debate BarthBrunner ocorreu em 1934, ano em que Adolf Hitler conquistou o poder na Alemanha. Com isto surgiram muitas dificuldades para sustentar a idéia das "ordens" da criação, porque parecia criar um espaço conceituai para os governo s serem recon hecidos como autorizados por Deus, ou como refletindo a natureza de Deus. Em parte, a preocupação de Barth era que Brunner, talvez não intencionalmente, tivesse lançado o fundamento teológico de um Estado transformado em modelo de Deus. E quem, perguntava Barth, haveria de querer modelar Deus nos moldes da Alemanha nazista de Adolf Hitler e suas instituições? Houve outros que se admiraram da exatidão dessa crítica. A crença de que Deus possa ser conhecido, até certo ponto, sempre limitado, suporia talvez que pudéssemos construir Deus à imagem de Hitler? Houve algumas críticas a Barth, como a de James Barr, exegeta do Antigo Testamento (19242006), que afirma que se trata aqui de uma possibilidade remota, que recebeu credibilidade indevida nos textos de Barth por causa da situação política da época. N o
entanto, Barr achava que se tratava de uma possibilidade remota. Entendida com o deve ser, a teologia natural tinha po uco a ver, se é que tinha, com a situação política da Alemanha nazista. Apesar de tudo, a crítica de Barth à teolo gia natural não deixa de ter sua importância, apesar dessa observação cautelar. C
r i a ç ã o e c r ia c i o n is m o
Nos últimos tempos surgiu uma controvérsia, especialmente na América do Norte, sobre a interpretação dos primeiros capítulos do livro do Gênesis, com respeito à discussão científica da evolução biológica da humanidade. O termo "criacionismo" passou a ser empregado com referência aos autores que defendem a posição de que a humanidade começou a existir da mesma forma como existe hoje, por um ato criador direto de Deus. Essa posição opõese ao modelo evolucionista comum, baseado na obra de Charles Darwin A descen dência do homem, que ensina que a humanidade foi evoluindo durante um longo período de tempo até chegar à forma atual. Podemse apontar no protestantismo norteamericano contemporâneo pelo menos quatro posições sobre essa matéria. Uma posição é a do "criacionismo da Terra jovem", que representa a continuação de interpretações do livro do Gênesis, amplamente divulgadas na literatura popular e por vezes até em alguns meios acadêmicos, antes do ano 1800. Segundo essa teoria, a Terra foi criada em sua forma básica entre 6.000 e 10.000 anos atrás. Os criacionistas da Terra jovem costumam fazer a leitura dos dois primeiros capítulos do livro do Gênesis ao pé da letra, de modo que não se admitam a existência de criaturas vivas antes da criação do Éden nem a existência da morte antes da Queda. A maior parte dos defensores dessa forma de criacionismo afirma que todos os seres vivos foram criados simultaneamente dentro do prazo proposto pelos cálculos da criação registrados no Gênesis, com a palavra hebraica y om (dia) significando um período de 24 horas. Obviamente, essa opinião depara com enormes dificuldades científicas, basta
lembrar- nos da ex istência de fósseis que rev elam uma duração de tempo bem mais longa e a existência de espécies extintas. Uma versão alternativa é a do "criacionismo da Terra antiga", provavelmente o ponto de vista da maior parte dos s eguidores do protestantismo conservador. Essa posição não enfrenta dificuldade para a dmitir a long a duração do m und o e afirma que a teoria da "T erra jo v e m " ex ig e m o dif ic a ção ao m e nos s ob dois aspe ctos : pr im e ir a m e n te, o termo "dia" nos relatos da criação narrados no Gênesis deve ser in te r p r e t a d o c o m o u m l o n g o p e r ío d o de t e m p o e não c o m o u m p e r ío do específico de 24 horas. Em segundo lugar, pode haver um longo intervalo cronológico entre Gênesis 1,1 e Gênesis 1,2. Explicando melhor: pode existir um período de tempo bem longo entre o ato primordial da criação do universo e o aparecimento da vida na Terra. Esse ponto de vista é defendido pela famosa obra Schofield Reference Bihle, editada pela primeira vez em 1909, muito embora as idéias ali contidas poss am rem ontar a autores co m o o teólog o escocês T homas G h a l m e r s (17801847) no primeiro quartel do século XIX. Uma terceira posição despertou grande interesse nos últimos anos. É a teoria conhecida como "desígnio inteligen te", segundo a qual a vida biológica mostra uma "complexidade irredutível" que torna impossível explicar sua origem e seu desenvolvimento a não s er a d m it in do - s e u m d e s í g n i o i nt e l ig e n t e de D e u s c r ia do r . O d e s í g nio inteligente não nega a evolução biológica enquanto tal,- a sua crítica fundamental do darwinismo condena a crença principal desta teoria de que a ev olução não tem me ta. A teoria do des íg nio inte li g e n te a f i r m a que o d a r w i ni s m o c o m u m se v ê e n r e d a d o e m m ú lt i pl a s dificuldades que só podem ser esclarecidas pela idéia da criação in tencional das espécies individuais. Seus críticos afirmam que essas dificuldades são exageradas, ou que serão resolvidas oportunamente por futuros avanços teóricos. Existe ainda uma quarta opção que chega até a obra pioneira de D a r w i n e q ue e n t e n d e a c r ia ç ão c o m o u m pr o ce s s o p e r m a n e n t e e não como um acontecimento que não se repete. Deus dá início ao processo que avança até o aparecimento final da humanidade. A
essa posição se dá muitas vezes o nome de "evolução teísta", e con ta entre suas fileiras com o romancista e teólogo v itoriano Charles K i n g s l e y (18191875), cujo pensamento insistia que o aspecto mais caracte rístico da d outr ina cristã da cr iação era que D eus fez as coisas com o poder de se fazerem a si mesmas. Em 1844, Frederick Temple
(18201902), que mais tarde se tornou arcebispo de Cantuária, afir mou que Deus fez algo mais esplêndido do que simple smente criar o m u n d o , f a z e n d o o m u n d o fazer a si mesmo. Esse debate adquiriu impo rtância especial na A mér ica do N or te nos últimos anos em razão da pressão exercida por p astores e orga nismos cristãos conservadores que acreditam que os relatos criacio nistas sobre as origens da humanidade deveriam ser ensinados lado a lado c om os relatos de Da r w in nas escolas públicas americanas. Esta opinião representa um importante exemplo do debate teoló gico com conseqüências políticas. Mas, seja qual for o resultado desta controvérsia, o debate nos faz recordar que o simples verbo "criar" pode ser mais co m plex o do que parece à prime ira vista.
En t r o s a m e n t o
co m o texto
Já vimos como a firme afirmação de Calvino sobre o conhecimento natural de Deus contribuiu com um notável estímulo para o desenvolvimento do conceito de teologia natural por aqueles que eram seus seguidores dentro do movimento da Reforma. Um bom exemplo dessa conceituação encontrase na Confissão Gálica (1559), profissão de fé calvinista em que se afirma que Deus se revela à humanidade de duas formas distintas: P r i m e i r o , n a s o br a s d e D e u s , j á n a c r i a ç ão , j á n a p r e s e r v a ç ão e m a n u t e n ç ã o destas obras. Segundo, e mais claramente, na sua Palavra que foi revelada através dos oráculos no começo e, posteriormente, confiada aos livros a que damos o nome de Sagradas Escrituras.
Uma idéia correspondente é exposta na Confissão Belga ou, para usar um título mais obsequioso, "Confissão de Fé das Igrejas
Reformadas Valona e Flamenga", elaborada por Guido des Brès em 1561. Essa profissão de fé ampliava a breve afirmação da teologia natural proposta na Confissão Gálica. De novo, afirmase que se obtém o conhec imento de D eus de dois m odos : pela natureza e pelas Escrituras. Os dois temas que surgem claramente dessas afirmações confessionais podem ser resumidos da seguinte maneira: 1. Ex istem dois mo dos de co nhe cim e nto de De us, a saber, pela ordem natural e pela Escritura. 2. O se g undo m o do é mais claro e mais pleno que o primeiro. N o t e x t o tr a n s c r i to a s e g uir , e x a m i na r e m o s o e n s i n a m e n t o sobre essa questão exposto no segundo artigo da Con fissão Belga. O d o c u m e n t o m o s t r a um a ób v i a d e p e n d ê nc i a da C o n f is s ão G ál ic a anterior e pode ser considerado uma ampliação das idéias desta em certos pontos. Conhecemos Deus de duas maneiras. Primeiro, pela criação, conservação e governo do universo, que aparece aos nossos olhos como um belo livro, no qual todas as criaturas, grandes e pequenas, são como inúmeros perso nagens que nos levam a contemplar as coisas invisíveis de Deus, isto é, seu p o d e r e s ua div i n da d e , c o m o o A p ós t o l o P a ul o d e cla r a e m R o m a n o s 1 ,2 0. T o d a s es sas c o is a s s ão s u f ic ie n te s p a r a c o n v e n c e r a h u m a n i d a d e , i m p e d i n d o q u a l q ue r e s c us a . S e g u n d o , e le se d á a c o n h e c e r m a is m a n if e s t a e p l e n a m e n t e a n ós p e l a s ua P a l a v r a s a n t a e d i v i n a , o u s eja , n a m e d i d a d o q ue é ne c e s s á r i o s a b e r m o s , d u r a n t e e s ta v i d a , p a r a a s ua g l ó r i a e a n o s s a s a l v a ç ã o .
Essa breve afirmação revela-se de extraordinária im portância para o des env olv imento ta nto das ciências físicas co m o das b io lóg i cas nos Países Baix os. A inv e nção do m icr os cópio no f inal do século X V II po r A n t o n V a n L eeuv ^^enhoek (16321723), r e l o j o e i r o h o l a n dês, pode ser vista como a tentativa de examinar o "pequeno livro" da natureza mais detalhadamente para daí partir para a apreciação mais detida da sabedoria de Deus na criação. Para aux iliar na intera ção c om o tex to, no es tudo indiv idual ou em g rupo, pode- se usar a seg uinte estrutura:
Examinar em Rom anos 1,20 o texto que desempenha um papel importantíssimo nesse documento. Ler a passagem no contexto original, a partir do versículo 1 8 . 0 que é que Paulo explica? C om o a idéia é desenvolvida na Confissão Belga?
Com o se entende a relação entre o conhecimento natural e o conhecimento revelado exposta no documento?
O exame do texto poderá estimular os leitores a dese jarem aprofundar o estudo da natureza? Se sim, quais os motivos? E com o este pon to pod e se relacionar com a observação histórica de que as ciências naturais parecem ter florescido nessas regiões da Europa?
Capítulo
Jesus
Uma das tarefas fundamentais da teologia cristã consiste em es clarecer a ident idade e o s ignifica do de Jesus Cr isto , fig ura centra l da fé cristã. O s cristãos de todos os tem pos insis tem que ex iste alg o de es pecial, alg o qualitativ am ente difer ente a res peito de Jesus, que o co lo ca acima de outros mestres o u pensadores re lig iosos. E m que consiste exatamente esse algo especial? Essa questão é tratada na parte da t e o l o g i a c r is t ã t r a d i c io n a l m e n t e c o n h e c i d a c o m o cristologia. Se a teo logia busca "compreender o que significa Deus", a cristologia tenta "com pree nder o que sig nifica Jesus Cristo". Deve- se observ ar aqui um termo correlato: "soteriologia" (da palavra grega sotería, que significa "salvação"), no sentido de "compreensão da salvação". Parte da tarefa da teologia cristã consiste em reunir os vários elementos do testemunho bíblico da identidade e do significado de Jesus. Os vários motivos bíblicos que precisam ser integrados aqui abrangem os seguintes pontos: 1. O s ter mos que o N o v o T es tamento usa para se referir a Jesus. 2.
O que se e ntende que Jesus re alizou, o que se ente nde c o m o d ir e t a m e n t e r e l a c i o na d o c o m s ua id e n t id a d e . E x is t e u m n e x o í n t i m o e n t r e o e n t e n d i m e n t o c r i s t ã o d a pessoa de
Cristo e a ohra ohra de Cristo. Em outras palavras, a discussão a respeito da iâentidaâe iâentidaâe de Cristo está ligada à discussão a respeito da ohra realizada realizada p o r C r i s t o . E x a m i n a r e m o s m a i s p r o fu f u n d a m e nt n t e e s s a q u e s tã t ã o a o r ef e f le le ti t i r mo m o s s ob o b r e a s al alv a ção no capítulo seguinte.
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' 3. O impacto imp acto que Jesu s causou nas nas pessoas pesso as durante durante o seu m inistério: por exemplo, por meio das curas que operava. 4. A ressurreição, que os autores do Novo Testamento interpretam como endosso e validação da exaltação de Jesus com respeito a Deus. Dessa maneira, para Paulo, a ressurreição demonstra que Jesus é o Filho de Deus (Rm 1,34). Pela limitação do espaço de que dispomos para tratar desse assunto, não podemos estudar como convém todos os a spectos alu didos. No entanto, poderemos ao menos começar a des vendar esse campo fascinante da teologia cristã. Começaremos por refletir sobre alguns títulos empregados p elos auto autores res do N o v o T es tamento ao fala fa larr de de Jesus, Jesus, obse rv ando o significado desses títulos para a definição da identidade de Jesus.
O M
e s sia s
O título tí tulo "Cr " Cr isto" ou "Messi "Messias" as" é em preg ado muitas mui tas v ezes para desig nar Jesus Jesu s no N o v o T estamento. Essa Es sass duas duas palavras palavras refer ref erem em-- se à mesma idéia: a primeira é a versão grega, a segunda a versão he b r a ic ic a ( t a n to t o a p a la l a v r a g r e g a c o m o a h e br b r a i c a s ão ão m e n c i o n a d a s j u n t a s e m J o 1,41). Q u a n d o , e m M a t e u s 16,16, Pedro reconhece Jesus co m o Cr isto, "Filh " Filhoo do De us v i v o", o", está identificando Jesus Jesu s c om o Messias desde desde m uito te m po esperado. E muito fácil fá cil p ara o leitor oc i dental moderno supor que "Cristo" era o sobrenome d e Jesus, sem perceber que a palavra é realmente um título; "Jesus, o Cristo". O ter mo "Messias" Messias" sig nifica nifica litera li tera lmente "o " o ungido", ungido" , alg uém q ue ue f o i u n g i d o c o m ó le l e o . O c o s t u m e da d a u n ç ão ão , p r a t i c a d o n o A n t i g o T estame nto, nt o, s imbolizav a que a p essoa ung ida dessa d essa maneira era er a v is ta como destinada por Deus a desempenhar poderes e funções, de
modo que, ao se falar de rei, entendese por esta palavra o "ungido de Deus", com o em em 1 Samuel 24,6. Entendese, Entendese, portanto, que o sig nificado básico da palavra "rei" é o "Rei de Israel ungido por Deus". Com o decorrer do tempo, o termo aos poucos passou a significar um libertador que fosse, por sua vez, descendente de Davi, predestinado a restaurar em Israel a idade de ouro de que este povo gozava sob o reinado de Davi. Dur ante o pe ríodo do m inis ini s tério d e Jesus, Jesus, a Palestina Palesti na estava estava ocupada e governada por Roma. Existia um intenso sentimento na cionalista naquela época, alimentado por um forte ressentimento em relação ao poder de ocupação estrangeira, e esse fato parece ter incutido nova força à expectativa tradicional da vi nda do Messias, Para muitos, o Messias deveria ser o libertador a q uem caberia ex pulsar os romanos do solo de Israel para restaurar a linha de descen dência do rei Da v i. E óbv io que qu e Jesus Jesu s se recusav recu sav a a ser se r co ns idera do o Messias nesse sentido. Em nenhum momento do seu ministério en contramos qualquer insinuação de violência contra Roma que fosse sugerida ou que pudesse ser um ataque explícito con tra a adminis tração traçã o rom ana. O s ataqu ata ques es d e Jesus Jesu s são sã o dirigidos principalme nte contra o seu próprio povo. Assim, depois da entrada triunfal em J e r u s a l ém é m ( M t 2 1 , 8 - 1 1 ) , c o m t o do d o s o s i n dí d í c i o s d e u m a v e r d a de de i r a demonstração ou gesto messiânico deliberado, Jesus imediatamente e x p u l s a os os v e n d i lh l h õe õ e s d o T e m p lo l o ( M t 21,1213).
Jesus não parece ter sido preparado para aceitar o título de "Messias" no decorrer do seu ministério. O evangelho de Marcos deve ser lido lido com co m a devida cautela cautela para atender a essa interpretação. interpretação. Q u anan do Pedro o aclama Messias, dizendo: "Tu és o Cristo!", Jesus imediatamente manda que ele ele se cale cale (Mc (M c 8,2930). N ão se chega cheg a a desvendar desvendar plenamente o significado do "segredo messiânico". Por que Marcos deveria afirmar que Jesus não reivindicou explicitamente que era o Messias, quando era abertamente assim considerado por muita gente? Talvez a resposta possa ser encontrada mais adiante no mes mo evangelho de Marcos, na narrativa da única passagem em que Jesus explicitamente reconhece sua identidade de Me ssias. Quando
Jesus é levado, como prisioneiro, à presença do sumo sacerdote, admite que é o Messias (Mc 14,6162). N e s s e m o m e n t o , q u a n d o não é mais possível nenhuma ação violenta ou políti ca de qualquer tipo, Jesus revela sua identidade. Ele era verdadei ramente o liber tador do povo de Deus, porém não no sentido político do termo. A s i n c o m p r e e n s õe s l i g a d a s a o t e r m o , p r i n c i p a l m e n t e n o s c ír c u l o s nacionalistas judaicos radicais, parecem ter feito Jesus minimizar o lado messiânico da sua missão. Os judeus não esperavam que seu Messias fosse executado como um criminoso comum. Convém notar que, imediatamente d e po p o is i s q ue ue P e d r o o r e c o n he h e c e u c o m o M e s s ia i a s , J e s us us c o m e ç o u a e x plicar aos discípulos que ele deveria sofrer, ser rejeitado pelo seu p r ó p r i o p o v o e s e r m o r t o ( M c 8,2931), um fim nada auspicioso para uma carreira messiânica. Paulo explicou bem esse fato aos cris tãos de Corinto ao afirmar que a idéia de um "Messias crucificado" (ou "Cristo crucificado") era uma idéia escandalosa para os judeus ( i C o r 1,23). Desde o começo, não resta dúvida de que os cristãos reconheciam a existência de um nexo entre a missão messiânica de Jesus e o destino do misterioso "Servo Sofredor": E r a o m ai a i s d e s p r e z a d o e a b a n d o n a d o d e to to d o s , h o m e m d o s o f r i m e n t o , e x perimentado na dor, indivíduo de quem a gente desvia o olhar, repelente, d el e l e n e m t o m a m o s c o n h e c i m e n t o . E r a m n a v e r d a d e os o s no n o s s os o s s o f r i m e n to to s q u e e le l e c a r r e g a v a , e r a m a s no n o s s a s d o r e s q u e l e v a v a às às c o s ta t a s . E n ó s a ch c ha váv am os qu uee e le le e r a u m c a s t i g a d o , a l g u é m p o r D e u s f e r i d o e m a s s a c r a d o . M a s e s t a v a s e n d o t r a n s p a s s a d o p o r c a us u s a d e n os o s s a s r e b e l d ia ia s , e s t a v a s e n d o esmagado por nossos pecados.
O
c a s t ig ig o q u e t e r í a m o s d e p a g a r c a i u s o b r e
ele,- c o m o s s eu e us f e r i m e n t o s v e i o a c u r a pa p a r a n ó s [ . .. . . ] . F o i e n t ã o q ue ue o S e n h o r f e z c a ir i r s o b r e e le l e o pe p e s o d o s p e c a d o s d e t o d o s n ó s ( Is Is 5 3 , 3 - 6 ) .
Se n h o r Outro título que atrai nossa atenção é "Senhor" (em grego kyrios). A A palavra é usada em dois sentidos principais no Novo Tes
tamento. É empregada como título polido de respeito, particular mente no tratamento das pessoas. Assim, quando Mart a dirige a pa lavra a Jesus e o cham a d e "S enhor" ( j o 11,21), certamente, embora não nã o necessariamente, necessariamente, ela apen ap enas as estava esta va tra tando Jesus Jesus co m o de v ido respeito. De importância infinitamente maior são as freqüentes passa g e n s d o N o v o T e s t a m e n t o e m q ue ue s e a t r i bu b u i a J e s us us o t ít í t u l o d e "S "S e nhor". nhor" . A confiss ão de que "Jesu "Jesuss é o Se nhor " (Rm 10,9, i C o r 12,3) era evidentemente vista por Paulo como a afirmação da caracte rística essencial do Evangelho. Os cristãos são aqueles que "in v o c a m o n o m e d o S e n h o r " ( R m 10,13, i C o r 1,2). Q u e s e n t i d o t e m e s ta t a e x p r e s s ão ão ? E c l a r o q ue ue e x i s t ia ia u m a t e n d ê n c i a n o j ud ud a í s m o da Palestina, no primeiro século do cristianismo, a usar a palavra "Senhor" (em aramaico mare) mare) para designar o ser divino ou, pelo menos, uma figura decididamente superior ao simples ser humano, além do sentido da função de respeito ou de título de honra. Po r é m , d e p a r t i c u l a r i m p o r t â n c i a é o u s o d a p a l a v r a g r e g a kjrios para traduzir o nome de quatro letras usado para se refe rir a Deus no A n t i g o T e s t a m e n t o ( m u i t a s v e z e s d e s i g n a d a s c o m o tetragrammaton, e x p r e s s ã o f o r m a d a d a s p a l a v r a s g r e g a s tetra, tetra, "quatro", e grammaton, "letras"). Como se trata aqui de um ponto important e, precisamos estudá estudá- lo mais detidame nte. O s a ut u t or o r e s d o A n t i g o T e s t a m e n t o r e l ut u t a v a m e m r ef ef er er ir ir - s e a Deus diretamente, porque, sem dúvida nenhuma, consideravam tal tratamento comprometedor para a transcendência divina. Às vezes, quando havia necessidade de referir-se a Deus, procura vam usar um "criptograma" de quatro letras, transliterado como Y H W H . E s s e g r u p o d e q u a t r o l e t r a s , q u e n a t r a d u ç ã o i n g l e s a d a Bíblia conhecida como "Versão do Rei James" atribui a Deus o nom e d e "Jeov "Jeov á", e que que a Bíbli Bíb liaa d e J er usalém tr aduz por "Y ahw eh", eh", era usado para representar o nome sagrado de Deus. Outras pala vras hebraicas poderiam ser empregadas para mencionar deuses em geral, mas o nome Yahweh era reservado somente ao "Deus de A b r a ã o , Is a a c e J a c ó".
Yahweh Yahweh é, é, portanto, um nome específico de Deus, quase como um nome próprio, formado por um grupo de quatro consoantes nunca empregado para identificar outros seres divinos ou angélicos, com o outras outras palavras palavras hebraicas traduzidas traduzidas com o "deus" "deus",, que são substantivos comuns atribuídos a "deus" ou "deuses" em geral, mas nunca ao próprio Deus de Israel ou outros deuses (como os deuses pag ãos de outr outras as nações). nações). O tetragra tetragrama ma só é empregad o para desig nar o nome do Deus específico que Israel conhecia e adorava e que foi revelado através da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Talvez a tradução mais apropriada desse grupo de letras (YHWH) em nossos idiomas ocidentais seja "Senhor" ou o próprio termo hebraico "Yahweh". Quando o Antigo Testamento foi traduzido do hebraico para o grego, a palavra kyrios co m eçou a ser usada de mo do geral geral para traduzir duzir o sagrado nome de Deus. D as 6.823 veze s que o nome aparece em hebraico, o grego o traduz por kyrios ("senhor") 6.156 vezes. O nome gre go passou passo u a ser aceito aceito sempre que se fazia fazia referência referência direta direta e especificamente ao Deus que se revelou a Israel no monte Sinai e que celebrou uma aliança com seu povo naquela ocasião. Os judeus não haveriam de atribuir esse termo a mais ninguém e a nenhuma coisa mais. Atribuir essa palavra a uma pessoa ou alguma coisa era o mesmo que admitir que tal pessoa ou coisa era de condição divina. O historiador Flávio Josefo conta que os judeus se recusavam a chamar o imperador romano de kyrios porque consideravam este nome reservado unicamente a Deus. Já os autores do Novo Testamento nunca hesitaram em usar esse nome sagrado ao se referirem a Jesus, no pleno sentido dessa palavra. O nome usado exclusivamente para se referir a Deus era atribuído da mesma forma a Jesus. Não se trata aqui de um erro eventual eventual que pudesse ser com etido por autores mal mal informados, que talvez ignorassem o sentido judaico próprio daquele nome, visto que os primeiros primeiros discípulos discípulos era eram m judeus. judeus. O s autores do N ov o T estamento — com o Paulo Paulo,, que emprego u mais mais abundantemente abundantemente o termo "Senhor" ao se refer referir ir a Jesus Jesu s — tinham tinham plena consciênc ia das
implicações desse nome e consideravam que os fatos a respeito de Jesus, especialmente a ressurreição dentre os mortos, os obrigavam a afirmar co m esse nom e a ident idade de Jesus. T ratava- se de uma decisão deliberada, refletida, informada e justificada, inteiramente apropriada à luz da história de Jesus que foi elevado à glória e ma je s ta de e está s e nta do à m ão dir e ita de D e us e que, po r ta nto , c o m partilha a mesma condição divina e deve ser tratado com o nome de Deus.
Filho
de
D
eus
O utr o título que o N o v o T estamento atribui a Jesus é o de "Fi l h o de D e us ". N o A n t i g o T e s t a m e nt o , o t e r m o é us a d o a l g um a s v e z es para referir- se aos seres ang élicos ou s obrenaturais (SI 8,6/ J ó 38,7/ D n 3,25). O s t ex t os m e s s iân ic o s d o A n t i g o T e s t a m e nt o re fer em- s e ao Messias que virá como o "Filho de Deus" (2Sm 7,1214/ SI 2,7/
86,2627). Q u a n d o o N o v o T e s t a me nt o e m pr e g a es ta e x pr es s ão, p a rece estar mostrando o desenvolvimento do sentido q ue o termo ti n h a n o A n t i g o T e s t a m e nt o , c o m m a i o r ê nf a s e e m s ua e x c lus i v ida de . E mbo ra todas as pessoas sejam filhos de De us e m ce rto s entido da palavr a, o N o v o T es tamento af irma que Jesus é o F ilho de Deus. Paulo distingue Jesus como Filho de Deus natural e considera aque les que crêem co m o filhos por a doção. A re lação entre os que crêem e De us é bem dis tinta da re lação de Jesus c om Deus, e mbor a todos possam ser designados como "filhos de Deus". Examinaremos essa questão adiante ao considerarmos a idéia da adoção como modo de pensar a respeito dos benefícios que Cristo obteve para nós na cruz. Da mesma forma, na primeira carta de João, Je sus é chamado "o Filho", ao passo que as pessoas que crêem são designadas como "filhos". Existe uma distinção bem nítida a respeito da relação de Jesus com Deus expressa no título "Filho de Deus". A c o m pr e e ns ão da r e la ção de J esus c o m De us , ex pr ess a na relação entre Pai e Filho mostrada no Novo Testamento, é dada de muitas formas. E m prime iro lugar, nota mo s que Jesus se dirige d i
retamente a Deus como “Pai", usando a palavra aramaica A hhá, que, com o se sabe, reflete um relacionam ento bastante íntimo (Mc 14,36 e também Mt 6,9; 11,2526; 26,42; Lc 23,34.46). Em segundo lugar, muitas passagens evangélicas mostram com clareza que os evangelistas consideram Jesus Filho de Deus ou que Jesus trata Deus como seu pai, mesmo quando não o afirma explicitamente (Mc 1,11; 9,7; 12,6; 13,32; 14,6162; 15,39). Em terceiro lugar, o evangelho de João contém inúmeras expressões que denotam a relação entre pai e filho (notemse especialmente as passagens Jo 5,1627; 17,126), com ênfase especial na identidade de vontade e propósito do Pai e do Filho, indicando a estreita relação entre Jesus e Deus como a entendiam os primeiros cristãos. Em todos os níveis do Novo Testamento, nas palavras do próprio Jesus ou na impressão que era criada entre os primeiros cristãos, entendese claramente que Jesus tem uma relação única e íntima com Deus, publicamente demonstrada pela ressurreição (Rm 1,34). Filho
do
H
omem
Para muitos cristãos, o termo "Filho do Homem" corresponde naturalmente a "Filho de Deus". Tratase de uma afirmação da humanidade de Cristo, da mesma forma como a expressão "Filho de Deus" é uma afirmação com plementar de sua divindade. M as a qu estão não é tão simples. O termo "Filho do Homem" (em hebraico hm adam ou em aramaico harnasha) é usado em três con textos principais no Antigo Testamento: 1. C om o forma de tratamento do profeta Ezequiel. 2. Para mencionar uma figura escatoló gica — com o em Daniel 7,13 14 — , cuja vinda prenuncia o fim da história e o início do juízo divino. 3. Para destac ar o contraste entre a pequenez e a fraqueza da natureza humana e a cond ição superior ou de permanência de Deus e dos anjos, como em Números 23,19 e no Salmo 8,14.
Esse terceiro significado referese naturalmente à humanidade de Jesus, podendo estar subentendido em algumas das referências nos evangelhos sinóticos. Mas o segundo uso do termo foi o que mais atraiu a atenção dos exegetas. O alemão Rudolf Bultmann, estudioso do Novo Testamento, afirma que o texto de Daniel 7,1314 indica a expectativa da vinda de um "Filho do FJomem" no final da história e argumenta que Jesus compartilha essa expectativa. As alusões que Jesus faz "ao Filho do FJomem, vindo nas nuvens com grande poder e glória" (Mc 13,26), devem ser entendidas, conforme ensina Bultmann, como relacionadas com a figura de outra pessoa diferente de Jesus. Bultmann sugeria que a Igreja primitiva tinha juntado "Jesus" e o "Filho do FJomem" entendendo tratarse de uma só e a mesma pessoa. Portanto, foi a Igreja primitiva que inventou a aplicação do termo a Jesus. Essa opinião de Bultmann, no entanto, não teve uma aceitação universal. Outros estudiosos argumentam que o termo "Filho do FJomem" contém em si várias associações, inclusive de sofrimento, vingança e julgamento, podendo, naturalmente, aplicarse a Jesus. G eorge Caird é um estudioso do N ov o Testamento que desenvolveu essa explicação, afirmando que Jesu s usou o termo "para exprimir sua unidade essencial com a hum anidade e, acima de tudo, com os fracos e humildes, e também para mostrar seu caráter de representante predestinado do novo Israel e portador do juízo e do reino de Deus". D
eus
Finalmente, precisamos considerar um grupo de textos do Novo Testamento que contêm a afirmação mais importante e extraordinária de todas: que Jesus é verdadeiramente Deus. Todo material que até aqui consideramos neste capítulo pode ser visto como conduzindo a essa conclusão. A afirmação de que Jesus é uma pessoa divina é o auge do testemunho do Novo Testamento à pessoa de Jesus Cristo. Cerca de dez passagens do Novo Testamento parecem falar explicitamente de Jesus nesse sentido: João 1,1/ 1,18;
20,28; R o m a n o s 9,5; T i t o 2,13; H e b r e u s 1,89; 2 P e d r o 1,1; 1 J o ã o 5,20. Outros textos acenam nesta direção, supondo quase s empre a me s ma conclusão- . Mate us 1,23; J o ã o 17,3; G á l a t a s 2,20; Efésios 5,5; C o l o s s e n s e s 2,2; 2 Tessalonicenses 1,12; 1 T i m ó t e o 3,16. Poderíamos continuar o exame dos vários títulos que o Novo T es tamento e mpreg a ao se referir a Jesus para ilustrar as diversas fa cetas de seu testemunho complexo a respeito da identidade e do sig nifica do de Jesus. Ex iste, no e ntanto , o per ig o de que, ao fazê- lo, nos descuidemos do essencial. Quer dizer, deixaremos de ver que esses tí tulos, juntame nte c om as narrativas do N o v o T estamento a res peito do impacto que Cristo causava naqueles que encontrava, se reúnem para formar um m odelo. É claro que o N ov o T estamento dá tes temunho de Jesus co m o o co njunto de todas as promessas de De us tes temunhadas no A ntig o T es tamento e levadas à re alização e à fr uição plenas. A s af ir m açõe s a r e s peito de J es us po de m ser e nqua dr a da s e m duas categorias gerais. Primeiro, existem afirmações a respeito da função de Jesus-, o que Deus fez por nós em Jesus. Em segundo lu gar, temos afirmações a respeito da identidade de Jesus: que m é Jesus. Essas duas categ orias es tão intima m e nte re lacionadas. T udo o que Jesus realizou está fundamentado nessa identidade; sua identidade é demonstrada em suas obras. Do mesmo modo como as peças de u m que br a - c a be ç a s ão m o n t a d a s pa r a f o r m a r um t o d o c o m p a t ív e l em que nenhuma peça pode se distinguir por si mesma, assim os "tí t ulo s c r i s t o l óg i co s " do N o v o T e s t a m e n to j unt a m- s e p a r a f o r m a r u m quadro geral que nenhum título pode manifestar adequadamente es tando separado. T omados c oletiva me nte, esses títulos for ma m um retrato persuasivo, rico, profundo e poderoso de Cr isto, o Salvador divino e o Senhor, que continua a exercer influênci a e atração enor mes sobre os seres humanos, pecadores e mortais.
Af i r m a ç õ e s
f u n c i o n a i s s o b r e J e s u s
A lé m de um g r a nde núm e r o de a fir maçõe s s obre a identidade de Jesus, existem várias passagens importantes do Novo Testamento
que falam da importância de Jesus sob as pecto s funcionais, isto é, e m t e r m o s q ue i de n t i f ic a m J e s us c o m o d e s e m p e n h a n d o c e r ta s f u n çõe s ou tarefas relacionadas com Deus. Três grupos de textos são de par ticular impo rtância, por identificar em a função de Jesus referindo- se claramente à sua identidade.
1. Jesus é 0 salvador da humanidade. O Antigo Testamento afirma que existe um único salvador da humanidade: Deus. Apesar do pleno conhecimento de que só D eus é o salvador e de que só D eus po de sa lvar, os cristãos primitivos afirmavam que Jesus era o Salvador. Como Atanásio de Alexandria (entre aproximadamente 296 e 373) afirmava, nenhuma criatura, por maior que fosse, poderia chegar a esse ponto. Se Jesus Cristo trouxe a salvação à humanidade, como se declara no Credo, então ele deve ser Deus. Se Jesus Cristo é alguma outra coisa, mas não Deus, ou seja, se Jesus Cristo é uma criatura, então toda "salvação" que ele traz não é a mesma que é oferecida por Deus. O peixe veio a tornarse símbolo da fé dos primeiros cristãos, porque as cinco letras que formam a palavra "peixe" na língua grega (1CHTHUS) são as cinco letras que formam a expressão "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador". Para o Novo Testamento, Jesu s salva seu povo dos seus pecados (Mt 1,21), só em seu nome é que se encontra a salvação (At 4,12), ele é o que "comanda a salvação" (FJb 2,10); ele é o "Salvador, que é Cristo, o Senhor" (Lc 2,11). Nessas afirmações, como em muitas outras, entendese que Jesus age como Deus, fazendo algo que, falando propriamente, só Deus pode fazer. 2. Jesus é adorado. No contexto judaico em que os primeiros cristãos agiam, era Deus e somente Deus que podia ser adorado. Paulo advertia os cristãos de Roma que havia um perigo constante de que as pesso as adorassem criaturas, quando deveriam adorar só o seu criador (Rm 1,23). No entanto, a Igreja cristã primitiva adorava Cristo como Deus, uma prática que se reflete claramente no Novo Testamento. Assim, o texto de 1 Coríntios 1,2 fala dos cristãos com o aqueles que "invocam o nom e de N osso Senho r Jesus Cristo", usando uma linguagem que reflete as fórmulas do Antigo Testamento referentes ao culto ou à adoração de Deus, como em Gênesis 4,26 e
13,4, n o S a l m o 105,1, e m J e r e m i a s 10,25 e e m j o e l 2,32. Entende- se dessa ma neira c om toda a clareza que Jesus ag ia co m o Deus , sendo objeto de adoração. Jesus revela Deus. 'Todo aquele que me vê, vê o Pai" (Jo 14, 3. Essas palavras notáveis, tão características do evangelho de João, afirmam a crença de que o Pai fala e age no Filho, em outras palavras, essa passagem afirma que Deu s é revelado em Jesus e por Jesus. Ver Jesus é ver o Pai; em outras palavras, entendese que Jesus age com o D e i^ Esses três grupos de textos evangélicos mostram clarameMe\^ com preensão de Jesus que transcende a categoria da pura hur Apesar disso, nem os autores do Novo Testamento nem a cristã entendem que tal afirmação negue a Jesus a co n d içã íX aK ^ humano. Diante de qualquer passagem bíblica que afii*^(^^ltóitamente que Jesus era mais que um simples ser h u m a tt ô \^ tó ^ pã^agen s podem ser apresentadas afirmando que ele era re^ m ír te um verdadeiro ser humano. Jesus chorava, sofria, se^ai^avà^sSentia emoções humanas. Uma das tarefas perenes da te<^giWpistã tem sido a explicação da relação entre os elem entosJaumah^ e divino na pessoa de Jesu s Cristo. Em primeiro lugar^esi 4s(^ ^ u m verdadeiro ser humano. Ele era uma pessoa que sofria d ^ ( q t í ^ ^ i a o que é ter fome e ter sede. No entanto, esta id é iá ^ w sis ^ ^ n ã o é suficiente para justificar o retrato bíblico de Jesus. I^ çisam o s buscar o motivo em uma segunda conclusão. indo lugar, o Novo Testamento insiste que Jesus era ís que um ser humano. Sem negar absolutamente a ver humanidade de Jesus, o Novo Testamento declara que ele ^"Filho de Deus", "Senhor" etc. O Novo Testamento aplica a Jesus palavras reservaaas a Deus e atribui a eie ações que são atriDuíaas somente a Deus.
M
o d e l o s c r i s t o l ó g i c o s primitivos
De tudo o que foi dito até aqui, toda e qualquer tentativa de integrar o testemunho bíblico à identidade de Jesus de Nazaré terá de interliga r um g rande núme ro de afirmações diferentes e, pelo m e
no s e m c e r t o s e n ti do , a t é c o nt r a d it ór i a s . N a v e r d a de , u m v a s t o c o n ju n t o de tex tos afir ma que J esus de N a z a r é era um ser hum a n o que sabia bem o que era se ntir sede, fome , cansaço e dor. N o enta nto, existe também um grande número de textos que afirma que ele era c o n s i de r a d o m a is que u m s er h u m a n o . O q ue J e s us d e N a z a r é d i z ia e fazia indicava que, no sentido próprio do termo, ele era divino. O e n i g m a q ue a t e o l o g i a c r i s tã é c h a m a d a a r e s olv e r é s abe r c o m o esses dois elementos podem estar unidos. Como é que a teologia p o de r i a lo c a liz á- lo e m u m m a p a c o n c e i t ua i ? C o m o p o de r i a s it uá- lo nas coordenadas de tempo e eternidade, humanidade e divindade, particularidade e universalidade? Não se trata de um processo fácil, inclusive porque a idéia de alguém que pudesse ser, ao mesmo tempo. Deus e ser humano pare cia ser ilógica e incoerente. Qual seria, então, a maneira mais apro priada de repres entar Jesus que pudesse preserv ar e encerrar o c o m ple x o t e s t e m u n ho d o N o v o T e s t a me nt o n o i m p a c t o e x e r c ido s o br e o povo? A o encarar a questão da identidade de Jesus de N aza ré, surgiu u m r e c o n h e c i m e n t o , p o r a s s im diz e r , d o lo r o s o , a c e n a n do pa r a a i m pos s ibilidade de definir a identida de e o sig nificado de Jesus. M uitas soluções simples foram tentadas para log o ser rejeitadas no primeiro período da reflexão teológica do cristianismo. Resu miremos a seguir três dessas soluções inadequadas. O adocionismo j u l g a q u e J e s u s é f u n d a m e n t a l m e n t e u m s e r h u m a n o u n g i d o p e l o E s p ír i to S a n t o d a m e s m a m a n e i r a q ue o s p r of e t as d o A n t i g o T e s t a m e n to , ma s e m u m g r a u s upe r io r . N o b a t is m o p o r J o ão B atista, Jesus foi, diga mo s assim, "adota do" pelo Pai, tornandose o Filho de Deus . Ele rece beu a miss ão de pre g ar a Boa- nov a do Reino e recebeu o poder de operar milagres. De acor do com essa opinião, Jesus pertence à mesma linhagem de todos o s profetas do A n t ig o T e s ta m e nto, dis tinto desses pr of e tas e m g r au, mas não e m qualidade. E m cer to se ntido, pode- se cons ider ar aqui que a Ig reja aceita a idéia judaica da época, proc urando adaptá- la para corres ponde r a Jesus de Naza ré. N ão foi preciso m uito te m po para se dar conta de que essa posição era simplesmente inadequada.
Outros teólogos preferiram o pensamento que ressaltava a di v i nd a d e d e J e s us de N a z a r é , a o m e s m o t e m p o e m q ue m i ni m i z a v a s u a h u m a n i d a d e . D a í s u r g i u o docetismo ( p a l a v r a o r i g i n a d a d o v e r b o g r e g o dokein, que sig nifica "parecer"). O doce tism o afirma a div inda de abs oluta de Jesus, mas uma div indade que m a ntinha a aparência de ser huma no. E mbo ra re almente div ino. C ris to apresentava- se à h u m a n i d a d e c o m o a l g u é m que p a r t ic ip a v a da c o n d i ç ão h u m a n a . A o tratar dessa corrente teológica, os historiadores n ão têm certeza ab soluta de que o docetismo formava uma escola de pensamento coe rente na Igreja primitiva, no entanto existem razões convincentes de que essa corrente representava uma forma de tendência teológi ca que passou a ser vista cada vez mais como inadequada. Quando a Igreja começou a avaliar a importância de afirmar a humanidade de Cristo, inclusive por causa do nexo que tinha co m a natureza h u m a n a e m g e r a l, o d o c e t i s m o pa s s o u a s er v i s t o c o m o o p i n i ão t e o lógica simplista. Talvez a doutrina errada mais importante sobre a id entidade de Jesus tenha sido o arianismo ( n o m e o r i g i n a d o d o P a d r e c r i s t ã o Á r io , que v iv e u e m A le x a ndr ia no s éculo IV , e ntr e os anos 256 e
326). Á r io e ns ina que J es us C r is to não é D e us , mas a mais pe r f e ita de todas as criaturas de Deus. E possível traçar uma linha clara se parando Deus de sua criação. Não há alternativas, nenhuma posi ção interm ediária. A o insistir nessa div isão rig orosa, Á rio afirma que Jesus de Nazaré deve ser situado no lado da criatura e não no lado divino dessa divisão. As passagens bíblicas que parecem atribuir di v indade a Jesus dev em ser interpretadas c om o títulos honoríficos. Os adversários de Ário, principalmente Atanásio, afirmavam que a interpretação que Ário dava das passagens bíblicas essenciais (especialmente passagens do e v ang elho de J oão ) eram e quivocadas. A lé m dis s o, A ta nás io afir mav a que a inte r pr e ta ção de Á r io t o r n a va incoerente todo o Evangelho. As doutrinas do cristianismo não podiam ser isoladas umas das outras para serem interpretadas em separado, porque formam uma rede com cada linha ligada e dando apo io às demais. S ó Deus pode salvar, mas o N o v o T es tamento afir
ma claram ente que Jesus é o S alv ador da huma nidade. Se Jesus não fosse Deus não poderia salvar e, conseqüentemente, a proclamação d o E v a n g e l h o s er ia in c oe r e n te . A l é m d o ma is , A t a n ás i o d e m o n s trava que os cristãos adoravam Jesus. Ora, se Jesus não fosse Deus, os cristãos seriam culpados de idolatria, ao adorarem algo que não era Deus. A tanásio ensinava que a tentativa de A r io de ex plicar a identidade de Jesus de Na za ré era uma opinião errada que neg av a o tes tem unho bíblico de Jesus o u a ex periência da Igreja que pr oc la m a v a J e s us c o m o S e n h o r e S a lv a d o r .
O C oN cíLio DE C a l c e d ô n i a O C o n c i l io de C a l c e d ôn ia ( r e a liz a do n o a n o 4 5 1 ) f o i u m marco da teologia cristã, que levou a termo um longo período de es tudo e reflex ão que dur ou alguns s éculos. A ex pressão "De finição de Calcedônia" é reservada para descrever, de um modo geral, a doutrina das duas naturezas de Cristo, expressa no Concilio da se g u in t e m a ne i r a : N ó s t o d o s c o n f e s s a m o s un a n i m e m e n t e que N o s s o S e n h o r J e sus C r i s t o é o único e o mesmo Filho, perfeito na divindade e na humanidade, verda d e ir a m e n t e D e u s e v e r d a d e i r a m e n t e h u m a n o , c o m a l m a r a c io n a l e c o r p o , c o m a m e s m a s u b s t ân c ia d o P a i e m r e l a ç ão à d iv i n d a d e , e s e n d o d a m e s m a substância humana na humanidade e igual a nós mesmos em todas as coi sas, exceto no pecado (F^ebreus 4,5).
Calcedônia supunha um generoso grau de diversidade no modo de compreender o conceito das "duas naturezas" de Cristo. Des de que se reconhecess e que Jesus Cr isto é v er dadeirame nte d i vino e verdadeiramente humano, a maneira precisa de articular ou analisar essa doutrina não tinha impo rtânc ia f undam enta l. Em parte, a decisão de Calcedônia de insistir nas duas naturezas de Cristo e aceitar, ao mesmo tempo, a pluralidade de interpretações sobre a relação entre as duas afirmações reflete a situação política daquele tempo. Em uma época em que reinava um desacordo generalizado
na Igreja sobre a maneira mais confiável de declarar as "duas nature zas de Cristo", o Concílio foi obrigado a adotar um a atitude realista para apoiar o conse nso de que necessitava. O consens o era o re co nhecimento de que Cristo era ao mesmo tempo divino e humano, mas não o de como a natureza divina e a humana se relacionavam reciprocamente. A do utr ina cr is tã da pe s s oa de J es us C r is to c o s tum a ser tr ata da muitas vezes como doutrina da "encarnação". "Encarnação" é uma pa la v r a d if íc i l, m as a o m e s m o t e m p o i m p o r t a n t e , o r i g i n a d a d o t e r m o latino para "carne" e que resume e afirma a crença fundamental cristã de q ue J e s us C r i s t o é ao m e s m o t e m p o d i v i n o e h u m a n o . A i d éi a da enca rna ção é o aug e da reflex ão cristã sobre o mis tério de C r is to : o re co nhe cim e nto de que Jesus C r isto rev ela Deus,- de que ele re presenta Deus,- de que ele fala como Deus e por Deus,- de que Jesus Cristo age como Deus e por Deus,- de que ele é Deus. Em suma, to mando as palavras de um autor do primeiro século, d evemos apren der a "pensar a res peito de Jesus c om o pensam os a re speito de De us" (2 Clemente 1,1-2). Temos, assim, condição de dar o passo essencial subentendido em todo o pensamento cristão sobre a e ncarnação: afirmar que, como Jesus Cristo age como Deus e por Deus em todo contexto importante, devemos concluir que para todos os efeitos ele é Deus.
A
E N C A R N A ÇÃ O E O S ÍC O N E S
Um dos debates teológicos mais interessantes do período patrístico tardio ocorreu na Igreja oriental com relação ao lugar que ocupavam os ícones no culto cristão e nas formas de devoção. U m " í c o n e " ( d o g r e g o eikon) é u m q u a d r o o u p i n t u r a r e l i g i o s a q u e é c o m o u m a j a n e l a a tr a v és d a q ua l o h u m a n o e v is ív e l a pr o x im a - s e de algum modo do divino e invisível, que é inacessí vel. Essa prática foi severamente condenada e combatida por alguns que supunham que o uso de imagens no culto cristão incidia na rigorosa conde nação bíblica da idolatria, uma coisa explicitamente proibida nos
Dez Mandamentos. Uma facção formada por pessoas conhecidas como "iconoclastas" (palavra de origem grega que significa "quebradores de imagens") pretendia suprimir o uso das imagens na Igreja. Retratar Deus em uma imagem significa que Deus pode ser d e s c r i to o u d e f i n id o , o q ue s i g n if i c a l im i t a r a d i v i n d a d e à e s t r e i te z a da m e n t e h u m a n a . No entanto, muitos autores da época dessa controvérsia de fendiam o uso de ícones com base em fundamentos teológicos explícitos, principalmente na doutrina da encarnação. Germano, p a t r i a r c a d e C o n s t a n t i n o p l a ( f a l e c i d o p o r v o l t a d e 733), defendeu rigorosamente o uso dos ícones no culto público e n a devoção pri vada, com base no seguinte argumento da encarnação: "Represento o Deus invisível não como invisível, mas enquanto e le se tornou visível para nós, pela participação em nossa carne e nosso sangue". P o r é m , o a r g u m e n t o t e o l óg i c o m a is i nt e r e s s a nt e e m d ef e s a d o c u lt o d os íc o ne s f o i e x po s t o pe l o t e ó lo g o J o ã o D a m a s c e n o ( e nt r e a p r o x i m a d a m e n t e 675 e cerca de 749). Em uma série de três tratados contra os que rejeitam o uso dos ícones, redigido originariamente em grego na primeira meta de d o s é c ulo V I II , J o ã o D a m a s c e n o a f i r ma que o f a t o t e o l óg i c o da encarnação de Cristo proporciona o fundamento sólido para o uso dos ícones na devoção cristã. João Damasceno recorr e a uma visão da realidade da encarnação para defender o uso de objetos físicos, inclusive ícones no culto religioso. Ele pergunta: onde está o erro de empregar materiais físicos para representar e trans mitir coisas espi rituais? Nas Bíblias não se usa papel e tinta, que, afinal, são substân cias materiais, para transmitir a verdade divina? C risto não morreu numa cruz de madeira para salvar o mundo? Em tais c asos, objetos materiais estão implicados na obra da salvação do mundo. E que dizer da e ncarnação? A enca rnação não s ig nifica que a palav ra se torna carne, isto é, o imaterial assumindo o material? E que dizer do pão e do v inho da Eucaristia? São objetos ma teriais que, no e ntanto, pode m servir de meios para tra nsm itir as realidades espirituais. O mesmo se pode dizer dos ícones.
Joã o Dam asceno nos surpreende ainda com m ais um argumento baseado na encarnação. A encarnação legitima o uso de objetos materiais como instrumentos de devoção e, além do mais, nos permite pintar a imagem de Deus, um ato que antes da vinda de Cristo era impossível. Como Cristo é a "imagem (eikon) do Deus invisível" (Cl 1,5), os ícones podem ser usados para representálo, como escreve Joã o Dam asceno: [Antes da encarnação] não havia como representar a Deus em imagens, uma vez que ele não tem um corpo nem uma face. Porém agora, depois que ele se tornou visível na carne e viveu entre os m ortais, po sso fazer uma imagem daquilo que vi de Deus. Não adoro a matéria, adoro o Criador da matéria que se tornou matéria por minha causa e operou minha salvação através da matéria.
C
risto como mediador
Co m o, então, devem os conceber a identidade de Cristo? Q ue modelos ou analogias podem ajudar quando tentamos visualizar o lugar de Jesus Cristo no m apa das possibilidades divinas e humanas? Nesta parte, examinaremos um título de Cristo no Novo Testamento relativamente fácil de entender para considerar suas implicações. O Novo Testamento em várias passagens referese a Cristo como mediador entre Deus e a humanidade, por exemplo em Hebreus 9,15 e 1 Timóteo 2,5. Entendese aqui que Cristo é mediado r entre o Deus transcendente e a humanidade decaída. Qual é o objeto da mediação? São dadas duas respostas complementares básicas no Novo Testamento e na longa tradição do entrosamento teológico cristão com a Escritura: a revelação e a salva ção. Cristo é mediador tanto do conhecimento de Deus como da amizade com Deus.
A assim chamada "cristologia do Logos" de Justino Mártir e de outros autores patrísticos é um exemplo excelente da noção da mediação do conhecimento de Deus por meio de Cristo. O Logos
é interpretado como princípio mediador que preenche a lacuna entre o Deus transcendente e a criação que é obra de Deus. Embora presente de m aneira transitória nos pro fetas do A ntigo Testamento, o Logos tornase encarnado em Cristo e assim oferece um ponto de mediação entre Deus e a humanidade. Uma explicação correlata encontrase na obra O mediador, de Emil Brunner (de 1927), e de uma maneira mais evoluída em sua obra Verdade como encontro, de 1938. Nesta última obra, argumenta que a fé é principalmente um encontro com Deus que se encontra conosco pessoalmente em Jesus Cristo. Outros autores afirmaram a importância de Cristo como aquele que é o mediador da salvação. Esta abordagem pode ser vista na Instituição de Jo ão Calvino (de 1559). Cristo é visto aqui como único canal ou foco através do qual a obra redentora de Deus é dirigida e posta à disposição de toda a humanidade. A humanidade, originariamente criada por Deus, era boa sob todos os aspectos. Por causa da Queda, os dons e as faculdades humanas naturais sofreram uma redução radical. Em conseqü ência, não só a razão humana, mas tam bém a vontade humana foi contaminada pelo pecado. A descrença é vista, dessa forma, como ato de vontade e, ao mesmo tempo, ato da razão. Não é simplesmente falta de discernir a mão de Deus na ordem criada, mas uma decisão deliberada, não discernir a ordem criada e não obedecer a Deus. Calvino desenvolve as conseqüências dessa condição em dois níveis distintos, embora claramente relacionados. No âmbito da re velação, os seres humanos carecem dos recursos racionais e volitivos necessários para discernir Deus plenamente na ordem criada. Exis t e m c o m p a r a ç õe s ób v i a s a q ui c o m a c r i s t o l o g i a d o L o g o s de J u s t i no Mártir. Na esfera soteriológica, os seres humanos carecem do que é e x ig ido das pessoas para a lcança r a salvação,- os seres hum an os não cjuerem ser salvos (por causa da debilitação da mente e da vontade proveniente do pecado) e são incapazes de salvar a si mesmos (visto que a salvação pressupõe obediência a Deus, atualmente impossí v e l p o r ca us a do p e c a d o ) . O v e r d a d e i r o c o n h e c i m e n t o d e D e u s e a
salvação devem, por conseguinte, vir de fora da con dição humana — a s s im im C a l v i n o e x p õ e o s f un u n d a m e n t o s d e s ua ua d o ut u t r i n a s o br br e a mediação de Jesus Cristo. A a n áli ál i s e q u e C a l v i n o f a z d o c o n h e c i m e n t o d e D e u s e d o p e cado humano lança os fundamentos da sua cristologia; Jesus Cristo é o mediador entre Deus e a humanidade. Para agir c omo tal, Jesus C r i s t o d ev e v e s er e r a o m e s m o t e m p o d i v i n o e h u m a n o . D a d o q ue ue se se t o r nou impossível para nós subir até Deus, por causa de nossos peca dos, do s, De us e sc olhe olhe descer até até nó n ós. Se Jesus C r isto não fosse fo sse um s im ples ser ser hum a no , outros seres sere s huma nos não pode r iam benefi benefici ciarar- se d e sua su a pres pres ença enç a o u ativ ati v idade. id ade. "O F ilho il ho d e Deus tornou tornou-- se F ilho il ho do FJomem, e recebeu o que é nosso de tal maneira que transferiu para nós nós o que é seu, seu, f az e ndo a quilo que é nosso po r nature za torn to rnarar- se nosso através da graça". A i n s i s t ê n c i a de C a l v i n o n a pr e s e n ç a d e m e d i a ç ã o de D e u s em Cristo leva-o a insistir também no nexo íntimo e ntre a pessoa e a obra d e C ris to. Baseand Baseand o- se em um a tra dição dição que que re m onta a E u s é b i o d e C e s a r é i a ( e n t r e a p r o x i m a d a m e n t e 260 e cerca de 340), Calvino argumenta que a obra de Cristo pode ser resumida em três funções ou ministérios (o munus triplex Christi)-. Christi)-. profeta, sacerdote e rei. rei. O ar g ume nto f undam e ntal é que que Jesus Jesu s C r isto re úne em sua sua pes soa as trê tr ê s g randes rand es funçõ funç õ es d e me diação do A ntig o T estame nto. nt o. Em seu múnus profético, profético, Cristo é o arauto e testemunha da graça de Deus. Ele é o mestre dotado de sabedoria e autorida de divina. Em seu múnus real. real. Cristo inaugurou um reino que é celestial, não ter re no,- espiritual, e não físico. Esse reino é exercido entre aqueles que crêem através at ravés da ação açã o do E spírito spí rito S anto. Finalme nte, por seu múnus mú nus sacerdotal. sacerdotal. C r i s t o p o d e n o s r e i n t e g r a r n o f a v o r d i v i n o , m e d i a n t e o oferecimento de sua morte como satisfação por nosso pecado. Nas três condições mencionadas. Cristo conduz ao pleno cumprimento seu se us ministérios min istérios d e me diação diaçã o da A ntig a A liança li ança , ma nifes tando esse essess ministérios sob uma luz nova e mais clara ao se cum prirem em sua condição de mediador.
En t r o s a m e n t o
co m o texto
D o r o t h y L . S a y e r s (18931957) é t a l v e z m a i s c o n h e c i d a p o r seus romances policiais, que apresentaram Lord P Lord P e te te r W i m s e y c o m o um detetiv detetiv e ar istocrático istocrát ico amador. A lém desse ess e lado l ado nov elesco, ela el a despertou também um grande interesse pela teologia cristã, como s e e x p l ic ic a m u it i t o b e m p o r um u m a c o n f e r ê n c i a q ue u e p r o f e r i u n a é po po c a da S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l , e m 1940, sobre a importância dos credos. Ela faz uma u ma análi análise se impor tante e penetrante da relação relação entre a div in dade e a humanidade de Cristo nessa conferência, publicada poste r i o r m e n t e e m u m a c o l e ç ão ã o i n ti t i t ul u l a d a "C " C r e d o o u C a o s ? " (1947).
O tema fundamental é que não basta absolutamente concordar que Jesus Jesu s tivesse algumas idéias idéias úteis úteis se não tem os bons bo ns motivos mo tivos para afirmar afirmar que existe a lgo diferente e distinto distinto em Jesu Jes u s que nos faz levar muito a sério essas idéias. A partir dessa constatação, Sayers afirma que as grandes questões da cristologia são inevitáveis e devem ser tratadas. Tomando o surgimento do nazismo na Alemanha com Adolf Hitler nos anos 1930 como exemplo, ela afirma que as exigências da autoridade moral ou cultural devem ser fundamentadas em alguma coisa intrínseca à pessoa de Cristo. Do contrário. C risto será será julga do pelos princípios morais e cult cultura urais is em vez de ser o fundamento e o critério desses princípios. É absolutamente inútil dizer que não importa saber quem foi e o que é Cristo, ou com que autoridade Ele fazia tudo o que fazia, seria também inútil afirmar que não importa saber se, pelo fato de ser somente some nte homem, hom em, ele era uma pessoa pesso a simpática, cujos princípios devem ser modelo para nossa vida, porque, afíinal, tudo isto é puro humanismo. Assim, se o "homem mediano" na Alemanha preferir pensar que Hitler é um tipo de pessoa mais distinta, que propõe princípios ainda mais atraentes, o humanista cristão nada tem a responder [...]. O dogm dog m a central central da encarnação é o dogm a pelo qual a relevância relevância é sustentada ou negada. Se Cristo é somente homem, nesse caso ele é totalmente irrelevante para qualquer pensamento a respeito de Deus, se é somente Deus, nesse caso ele é totalmente irrelevante para qualquer experiência da vida humana humana [...] .
A m e u v e r , n e m pr o f e s s o r e s n e m p r e g a d o r e s e x p l i c a m c o m a devida clareza que os dogmas não são um conjunto de proposições arbitrárias a priori, priori, f o r m u l a d a s p o r u m a c o m i s s ã o d e t e ó l o g o s e n v o l vidos em uma luta dialética, em que muitas dessas proposições fo ram marteladas sob pressão de uma urgente necessidade prática de dar uma resposta à heresia. A s pe r g u n t a s f o r m u l a d a s a s e g uir ui r p o d e m s e r úte út e i s pa r a i n t e r a g i r com o texto, tanto no estudo particular como no tra balho em grupo:
Ler atentamente o parágrafo inicial. Que idéia Sayers pretende incutir ali? Qual a crítica fundamental que e la la f a z a o "h "h um u m a n i s m o c r is is t ão ão "? "? C o m o S a y e r s e n t e n de de a questão da identidade identidade d e C r i s t o p a r a c o n f i g u r a r n o s s o pensamento sobre a relevância de Cristo para a vida?
Pensar na seguinte citação-. "Se Cristo é somente ho mem, ele é absolutamente irrelevante para qualquer pensamento a respeito de Deus,- se é somente Deus, é completamente irrelevante para qualquer experiência da vida humana". Localizar essa afirmação no texto. Como é que Sayers chega a essa conclusão? E como ela desdobra as idéias contidas nessa afirmação?
Ler atentamente a parte conclusiva da passagem cita d a. A lg uns afirmam que que certas cert as doutrinas doutrin as sobre Jesus Jesus — c o m o , p o r e x e m p l o , a d o u t r i n a s e g u nd n d o a q ua u a l el ele é di d i v i no n o e hu h u m a n o — t o r n a m u m s im i m pl p l e s E v a n g e l ho ho d es e s n e c e s s a r ia i a m e nt n t e c o m p l ic i c a d o . O q ue u e v o c ê a c ha h a qu que Sayers poderia dizer em resposta a essas objeções?
Capítulo
A salvação
Um tema central da mensagem cristã é que a condição huma na foi transformada, de alguma forma, pela morte e ressurreição de Jesus Cr isto . Esse Es se p roces so co s tuma ser descr ito it o co m o "salvaçã "salvação" o".. A p alavra "salvaçã "salvação" o" é empreg ada no s entido mais mai s am plo, não obs tante seu significado específico, como veremos logo adian te.
É importante saber que o termo termo "salvação" "salvação" não possui neces ne cessasariamente uma conotação especificamente cristã, e pode ser em pregado no sentido secular. Por exemplo, era comum para os autores soviéticos, especialmente em fins da década de 1920, falar de Lenin como "salvador" do povo russo. Os golpes militares em Estados africanos na década de 1980 freqüentemente criavam "conselhos de salvação nacional" que procuravam restaurar a estabilidade política e econômica. Assim é que salvação pode ser um termo meramente secular, relacionado com a emancipação política ou com a busca humana da libertação. libertação. Mesmo no plano religioso, a salvação não é uma idéi a especi ficamente cristã. Não todas, porém muitas religiões do mundo pos s u e m c o n c e it i t o s d e s a lv l v a ç ão ão . D e u m a r e l ig i g i ão ão p a r a o ut ut r a e x is t e m d i ferenças enormes a respeito da idéia de como a salvação é obtida e do modelo ou forma que a salvação deve tomar.
Ao começar o estudo da teologia da salvação, precisamos ter em mente duas questões. Em primeiro lugar, como a salvação em si deve ser entendida. De que modo a noção cristã da natureza da salvação se torna distintiva? Em segundo lugar, como é possível a salvação e como, de modo particular, ela está fundamentada na história de Jesus Cristo? Ou então, em outras palavras, qual o fundamento da salvação de acordo com o cristianismo? Essas perguntas têm sido objeto de intensa discussão em toda a história cristã. A seguir, examinaremos brevemente alguns desses temas. Começaremos por considerar a primeira questão: O que e a salvação?. Uma maneira de iniciar o estudo desse tema consiste em refletir sobre algumas imagens da salvação apresentadas nas cartas de Paulo. Im a g e n s
p a u l i n a s d a s a d /a ç ã o
Em todas as suas cartas, Paulo emprega uma rica série de imagens para iluminar iluminar e esclarecer os benefícios que Cristo garante para aqueles que crêem. Ele supõe claramente que seus leitores terão capacidade para entender o que essas analogias devem transmitir. A seguir, estudaremos algumas dessas analogias a fim de avaliar a importância que possuem. A primeira imagem é a da própria salvação. O termo tem inúmeros significados, inclusive de libertação de perigos ou do cativeiro, ou libertação de alguma forma de doença fatal. Noções como "cura" e "liberação" podem ser incluídas nesse importante termo paulino. Agostinho de Hipona compara a Igreja a um hospital pelo fato de estar cheia de pessoas em processo de cura. Paulo vê a salvação com dimensões passadas — por exemplo em Romanos 8,24 — , presente presentess — com o em 1 Co Corínti ríntios os 1,18 1,18 — e futu futura ras, s, com o em em Romanos 13,1 13,11. 1. Assim, a palavra palavra "salvação" referese referese a uma co isa que já acontec aco nteceu eu no passado, está ocorrendo no presente e terá lugar no futuro. Uma segunda imagem importante é a de adoção. Em várias partes, Paulo fala de cristãos como "adotados" na família de Deus
(Rm 8,15.23; G1 4,5). Admitese, de modo geral, que Paulo aqui se inspira em uma prática de caráter jurídico, comum à cultura greco romana (embora se deva observar que se trata de uma prática não reconhecida pela legislação judaica tradicional). De acordo com muitos intérpretes de Paulo, falar dos "crentes" como adotados na família de Deus é afirmar que eles compartilham os mesmos direitos de herança que Jesus Cristo compartilha e, por conseguinte, receberão a glória que Cristo alcançou (embora hajam de conseguir isto só depois de participarem dos sofrimentos de Cristo). Na época da Reforma, no século XVI, muitos pensadores atribuíram grande importância à imagem de justificação. Especialmente nas cartas que tratam da relação do cristianismo com o judaísmo (como as cartas aos Gálatas e aos Romanos), Paulo afirma que os que crêem foram "justificados pela fé" (por exemplo, Rm 5,12). Afirma se com isso uma mudança da condição jurídica do crente diante de Deus e sua garantia, em última análise, de absolvição diante de Deus, apesar da con dição humana de pecado. O termo "justificação" e o verbo "justificar" passaram a significar "o relacionam ento correto com Deus" ou talvez o "tornarse correto diante de Deus". Uma quarta imagem é a de redenção. O principal significado desse termo é "garantir a libertação de alguém m ediante pagamento". N o mundo antigo que serviu de pano de fundo para o pensam ento de Paulo, o termo podia ser usado para aludir à libertação de prisioneiros de guerra ou para garantia da liberdade daqueles que se vendiam como escravos, muitas vezes para ressarcir uma dívida de família. A idéia básica de Paulo parece significar que a morte de Cristo garante a liberdade dos crentes contra a escravidão da lei ou da morte para que possam se tornar servos de Deus (i C o r 6,20; 7,23).
O
P RO B L E M A D E A N A L O G IA ; S A L V A ÇÃ O C O M O RE SG A T E
Em um capítulo anterior, observamos como o uso teológico de analogias levantou algumas questões interessantes. Até onde podem ser levadas essas analogias? Por exemplo, ao pensar em Deus
como "pai", estaríamos supondo que Deus seja de sexo masculino? Semelhante questão surge com relação ao pensamento a respeito da salvação, e por conseguinte examinaremos a questão tomando a imagem da salvação como "resgate". A imagem da morte de Cristo como resgate tornouse um tema de importância central para os autores patrísticos gregos, como Ireneu. O Novo Testamento fala de Jesus que dá a vida em resgate dos pecadores (Mc 10,45; iTm 2,6). Quais são, então, as implicações dessa imagem? A palavra "resgate" sugere três idéias correlatas; 1 Libertação : o resgate é alguma coisa que consegue a liberdade para uma pessoa mantida em cativeiro. 2. Pagamento: o resgate é uma soma de dinheiro paga para conseguir a libertação de alguém. 3. Alguém a cjuem o resgate épago-, o resgate geralmente é pago a uma pessoa que capturou outra. N ão há dúvida de que o No vo Testamento proclama que fomos libertados do cativeiro pela morte e ressurreição de Jesus. Fomos libertados do cativeiro, do pecado e do medo da morte (Rm 8,21; Hb 2,15). E claro também que o Novo Testamento entende a morte de Jesus como preço que tinha de ser pago para conseguir nossa libertação (iCor 6,20; 7,23). Sob esses dois aspectos, o uso da palavra "redenção" nas Escrituras corresponde ao sentido comum da palavra. Mas o que dizer sobre a terceira acepção? O Novo Testamento não sugere em nenhuma parte que a morte de Jesus foi o preço pago a alguém (por exemplo, ao demônio) para conseguir a libertação. Alguns autores patrísticos, contudo, supunham que podiam levar a analogia até o extremo, declarando que Deus nos tinha libertado do poder do demônio oferecendolhe Jesus como preço de nossa libertação. Orígenes (entre aproximadamente 185 e cerca de 254), que foi talvez o mais especulativo dos teó logos da patrística primitiva, pensava assim. Se a morte de Cristo era um resgate, argumentava Orígenes, esse resgate deveria ter sido pago a alguém. Mas a quem? Não po-
dia ser pago a Deus porque Deus não estava mantendo os pecadores com o reféns. Portanto, o resgate tinha de ser pago ao demônio. Gregório Magno (entre aproximadamente 540 e 604) desenvolveu ainda mais essa idéia. O demônio tinha adquirido sobre a humanidade decaída direitos que Deus era obrigado a respeitar. O único meio possível de libertar a humanidade da dominação e da opressão satânica darseia se porventura o demônio superasse os limites de sua própria autoridade, vendose obrigado a perder seus direitos. E como isto poderia ser conseguido? Gregório sugere que poderia ser alcançado se uma pessoa sem pecado entrasse no mundo, mantendo, porém, a forma de uma pessoa pecadora normal. O demônio não observaria isto a não ser quando fosse já tarde demais. Ao exigir autoridade sobre essa pessoa pecadora, o demônio ultrapassaria os limites da sua autoridade, sendo assim obrigado a perder seus direitos. Gregório sugere a imagem de um anzol com a isca, em que a humanidade de Cristo é a isca e sua divindade, o anzol. O demônio, como um grande monstro marinho, morde a isca e depois descobre, tarde demais, o anzol. "A isca tenta para fazer o anzol pegar. Assim foi que o próprio Nosso Senhor, vindo redimir a humanidade, se transformou como que em um anzol, para causar a morte do demônio." Outros autores exploraram outras imagens para explicar a me sma idéia de armadilha armada para surpreender o demônio. Alguns compararam a morte de Cristo a uma rede armada para apanhar pássaros ou a uma ratoeira. Foi este aspecto do significado da cruz que causou maior inquietação posteriormente. Parecia que Deus era culpado do engano. Onde se nota mais claramente esse tema é, talvez, nos escritos de Rufino de Aquiléia (entre aproximadamente 345 e 410), particularmente na exposição que faz do Credo dos Apóstolos datada aproximadamente do ano 400: [A finalidade da encarnação] era que a virtude divina do Filho de Deus pudesse ser como uma espécie de anzol escondido sob a forma de carne
humana [... ] para atrair o príncipe d o mundo para uma disputa, para que o Filho pudesse oferecer a ele a sua carne humana como isca e para que a divindade, que estava oculta, pudesse apanhálo e prendêlo no anzol [...]. Depois, da mesma maneira como o peixe que morde a isca do anzol não só não consegue livrarse dela mas acaba sendo arrancado para fora da água para servir de alimento para os outros, assim aquele que tinha o poder da morte pegou o corpo de Jesus na morte, sem perceber o anzol da divindade escondido dentro da isca. Ao engolir o anzol, o inimigo foi imediatamente apanhado. As portas do inferno foram destruídas e ele foi retirado do fosso para se tornar alimento para os outros.
As imagens de vitória sobre o demônio exerceram uma grande atração popular. A idéia medieval da "aniquilação do inferno" dá testemunho desse poder. Conforme essa idéia, depois que morreu na cruz, Cristo desceu ao inferno e destruiu os portões infernais para que as almas aprisionadas pudessem ser libertadas. A idéia permaneceu (um tanto apagada, é verdade) em 1 Pedro 3,1822, que faz referência a Cristo "pregando aos espíritos na prisão". O hino "Vós, coros da No va Jerusalém", escrito por Fulbert de Chartres (falecido em 1028), exprime esse tema em dois versos que aludem à imagem de Cristo como o "leão de Judá" (Ap 5,5), derrotando Satanás, a serpente (Gn 3,15): O leão de Judá rompe seus grilhões e esmaga a cabeça da serpente e lança seu clamor no reino da morte para despertar os mortos aprisionados. Ao seu comando, as profundezas do abismo do inferno devolvem sua presa, a multidão dos que foram resgatados segue seu caminho, com Jesus à frente'. 1. For Judah's lion bursts his chains/Cmshing the serpent's head,/And cries aloud through death's domain/To wake the imprisoned dead./Devouring depths of hell their prey/At his command restore,/His ransomed hosts pursue their way/here Jesus goes before.
Semelhante idéia se encontra em "Piers Plowman", um do s poe mas mais importantes da língua inglesa do século XIV. N ess e poema, Piers adormece e sonha com Cristo abrindo os portões do inferno e dizendo as seguintes palavras a Satanás: Aqui está minha alma como resgate de todas estas almas pecadoras, para resgatar as que merecerem. Elas são minhas, saíram de mim e, portanto, tenho todo direito a elas [...]. Tu, através da falsidade e do crime, e contra tudo o que é justo, arrebataste o que me pertence, dentro de meu próprio campo. Eu, com toda justiça, recupero estas almas pagando o resgate, sem recorrer a nenhum outro meio. O que adquiriste por artifício é reconquistado pela graça [...]. E, assim como uma árvore fez Adão e toda humanidade perecerem, da mesma forma a árvore do meu suplício os reconduzirá à vida.
T
eorias sobre a reconciliação
Depois de termos examinado algumas imagens bíblicas da salvação e o modo como devem ser interpretadas, podemos agora começar a considerar como esses temas foram explorados e desenvolvidos na tradição teológica cristã. Esta parte da teologia cristã é descrita tradicionalmente co m o "teorias da reconciliação". A palavra "reconciliação" traduz o termo inglês atonment, que remonta ao ano 1526, quando o escritor inglês William Tyndale (entre aproximadamente 1594 e 1536) empreendeu a tradução do Novo Testamento em inglês. Naquela época, não existia uma palavra em inglês que exprimisse o significado de "reconciliação" (expiação). Tyndale teve de inventar uma palavra, criando assim at- one- ment, que logo passou a significar "os benefícios que Jesus Cristo oferece aos que crêem através de sua morte na cruz". Essa palavra incomum é muito pouco usada no inglês moderno e percebese que tem um sabor arcaico. Para evitar a impressão de que o pensamento cristão pareça estar desatualizado, os teólogos de hoje preferem tratar desse tema como "doutrina da obra de Cristo".
A seguir, examinaremos três abordagens sobre a cruz que tiveram um papel importante na teologia cristã. Elas não esgotam de maneira alguma a reflexão cristã sobre esse tema de grande importância. A
C R U Z C O M O S A C R IF ÍC IO
Em primeiro lugar, o Novo Testamento, partindo das imagens e expectativas do Antigo Testamento, apresenta a morte de Cristo na cruz como sacrifício. Essa visão, que está especialmente relacionada com a carta aos Hebreus, apresenta a oferta sacrifical de Cristo como um sacrifício verdadeiro e perfeito, capaz de cumprir aquilo que os sacrifícios do Antigo Testamento só podiam prefigurar, mas não podiam cumprir. De modo particular, o uso que Paulo faz do termo grego hilasterion, comumente traduzido como "sede da misericórdia" (Rm 3,25), também tem sua importância aqui, pela origem que tem nos rituais sacrificais do Antigo Testamento, que tratam da purificação do pecado. Essa idéia é desenvolvida posteriormente na tradição cristã. Para a humanidade ser restituída a Deus, o mediador deveria sacrificar a si mesmo; sem esse sacrifício, a restituição a Deus seria impossível. Atanásio afirma que o sacrifício de Cristo era superior aos sacrifícios exigidos na Antiga Aliança sob vários aspectos: Cristo oferece um sacrifício que é fidedigno, de efeito permanente e de natureza segura. Os sacrifícios oferecidos de acordo com a Lei não eram fidedignos, porque tinham de ser oferecidos todos os dias e precisavam sempre ser purificados. Pelo contrário, o sacrifício do Salvador foi oferecido só uma vez e cumprido em sua integridade, tendo assim um efeito permanente.
Esse argumento é desdobrado ulteriormente nas Cartas pascais de Atanásio, escritas todos os anos para celebrar a festa da Páscoa. Nessas cartas, Atanásio discorre sobre a idéia do Novo Testamento de que existe uma importante analogia entre a morte de Cristo na
cruz e o sacrifício do cordeiro na festa judaica da Páscoa, que c om emora a libertação de Israel do Egito: [ C r i s to ] , v i n d o v e r d a d e i r a m e n t e d e D e u s P a i, e n ca r no u- s e p o r n ós d e m o d o q ue p ud e s s e o f er e ce r - s e a o P a i p o r n ós p a r a no s r e s g a t a r a tr a v é s d e s ua o f e r t a e s e u s a c r i f íc i o [ . .. ] . E s t e é a q u e le q u e n o s t e m p o s a n t i g o s f o i sacrificado como um cordeiro, tendo sido prefigurado naquele cordeiro. Posteriormente, foi imolado por nós. "Cristo, nossa Páscoa, é imolado" (1 C o r ín t i o s 5 ,7 ) .
Agostinho de Hipona trouxe uma nova luz para explicar toda a discussão sobre a natureza do sacrifício de Cristo, expondo uma definição convincente do sacrifício em sua obra A Cidade de Deus: "Um verdadeiro sacrifício é oferecido em toda ação designada para nos unir com Deus em uma amizade santa". Com base nessa definição, Agostinho não teve dificuldade para falar da morte de Cristo como sacrifício: "Por sua morte, que certamente é um verdadeiro e único sacrifício oferecido por nós, ele purificou, aboliu e extinguiu toda culpa pela qual os principados e poderes nos mantinham legalmente presos para pagar a pena". Nesse sacrifício. Cristo era ao mesmo tempo vítima e sacerdote, ele se ofereceu como sacrifício: "Ele se ofereceu em sacrifício pelos nossos pecados. E onde é que ele encontrou aquela oferta, a vítima pura que deveria oferecer? Ele ofereceu a si mesmo, uma vez que nenhum outro podia ser encontrado para o sacrifício". Essa maneira de entender o sacrifício de Cristo viria a ter uma importância decisiva em toda a Idade Média para configurar o entendimento ocidental a respeito da morte de Cristo. Dada a importância de Agostinho, podemos citar na íntegra a passagem que se destaca como a expressão mais sucinta de suas idéias a respeito: Assim, o verdadeiro Mediador, que "tomou a forma de um servo" para se tornar "o mediador entre Deus e a humanidade, a pessoa de Cristo Jesus" Timóteo 2 , 5 ) , recebeu o sacrifício na "forma de Deus" (Filipenses 2 ,7 - 8 ) , em união com o Pai, com quem ele é um único Deus. E, contudo, na "forma (1
de servo", ele determinou que haveria de ser o sacrifício, em vez de receber o sacrifício para impedir que alguém pudesse pensar que tal sacrifício devesse ser oferecido a qualquer criatura. Assim ele é ao mesmo tempo sacerdote que fez a oblação de si mesmo e também a própria oblação.
Hugo de São Vítor (falecido em 1142), escrevendo no início do século XII, considerou as imagens de "sacrifício" oportunas para explicar a lógica interior do sentido da morte de Cristo na cruz. Cristo podia ser um sacrifício eficaz para o pecado da humanidade precisamente porque podia apresentar nossa natureza pecadora decaída diante de Deus: Da nossa natureza ele tomou a vítima para nossa natureza, de modo que toda a oferta consumida que tinha sido oferecida pudesse vir daquilo que é nosso. Ele assim fez para que a redençã o a ser oferecida pudesse ter um nexo con osco, por sua natureza tirada da nossa natureza. Deverem os verdadeiramente nos transformar em participantes dessa redenção se formos unidos pela fé com o redentor que estabeleceu a amizade conosco por sua carne.
A eficácia do sacrifício de Cristo permanece, portanto, em sua humanidade e em sua divindade. A
C R U Z C O M O V IT Ó R IA
O segundo modo de considerar o significado da cruz abrange uma série de passagens bíblicas que destacam a noção da vitória divina sobre forças hostis. O N ov o Testamento afirma que Deus nos deu a vitória pela ressurreição de Jesus Cristo. "Graças sejam dadas a Deus que nos deu a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo" (iCor 15,57). A Igreja primitiva se gloriava com o triunfo de Cristo na cruz e com a vitória que ele conquistou sobre o pecado, a morte e Satanás. M as de que maneira essa vitória pode ser entendida? Qu em é que foi derrotado? E de que maneira? O s autores cristãos dos cinco primeiros séculos sentiamse fortemente atraídos pelas imagens de C risto obtendo vitória pela cruz. Era
claro para eles que Cristo tinha vencido a morte, o pecado e o diabo. Da mesma forma como Davi matou Golias com suas próprias armas, assim Cristo derrotou o pecado com a própria arma do pecado, que é a morte. Por uma derrota manifesta, a vitória foi conquistada contra uma multidão de forças ocultas que tiranizavam a humanidade. Autores patrísticos como Atanásio de Alexandria e Agostinho de Hipona empregaram um grande número de imagens fundamentais para explicar a natureza da escravidão humana sob o pecado e a maneira como fomos libertados pela morte e ressurreição de Cristo. Éramos mantidos atados pelos laços do temor da morte. Éramos prisioneiros do pecado. Éramos apanhados nas armadilhas do poder do diabo. Com grande habilidade, estes escritores construíram um quadro coerente do dilema humano. Os seres humanos são mantidos como presas de forças hostis e são incapazes de se libertar sem um auxílio externo. Era preciso haver alguém que viesse entrar nessa prisão e libertar os prisioneiros. Alguém de fora da situação humana teria de entrar em nossa condição humana para nos libertar. Alguém teria de romper os laços que nos mantinham cativos. O tema é retom ado inúmeras vezes: som os apanhados em nossa situação, e a única esperança que nos resta é uma libertação vinda de fora. De acordo com esse modo de ver, Cristo, por sua morte e ressurreição, enfrentou e desarmou a multidão de forças hostis que coletivamente nos mantinham em cativeiro. A cruz e a ressurreição representam um ato dramático da libertação divina pelo qual Deus liberta seu povo do cativeiro das forças hostis como uma vez libertou seu povo Israel do cativeiro do Egito. O autor do século II Ireneu de Lião afirma: "O Verbo de Deus foi feito carne para que pu desse destruir a morte e nos restituir à vida, uma vez que estávamos presos pelos laços do pecado, tendo nascido no pecado, vivendo sob o domínio da morte". Essa nota de triunfo levou os cristãos a se valer das imagens da cultura romana do período clássico tardio nas maneiras de repre sentar os benefícios que Cristo conquistou na cruz. A vitória de Cristo era representada como uma grande procissão triunfal, comparável
àquelas que eram feitas na antiga Roma, em que os grandes feitos militares de seus heróis eram celebrados. Em sua forma clássica, a parada triunfal acompanhava o herói vitorioso desde o Campo de M arte através das ruas de Roma, para terminar no Tem plo de Júpiter na Colina do Capitólio. A parada tinha na vanguarda os soldados do general vencedor, que levavam muitas vezes cartazes com dizeres que descreviam o general e seus feitos, ou então mostravam mapas dos territórios conquistados. Outros soldados conduziam carros contendo o butim que era trazido para o tesouro de Roma. Uma parte da parada era formada pelos prisioneiros de guerra, muitas vezes chefes de cidades ou países derrotados, que vinham conduzidos algemados. Esse era um curto passo que os autores cristãos primitivos davam para transformar essas imagens na proclama ção de Cristo com o herói vencedor. Esse simbolismo poderoso assentouse firmemente no Novo Testamento, que falava de Cristo vitorioso que "tornou o cativeiro cativo" (Ef 4,8). Embora esse tema possa ser visto em algumas peças de arte cristã desse período primitivo, o impacto mais dramático que teve foi nos hinos daquela época. Um dos mais belos hinos da Igreja Cristã da época retrata a procissão triunfal de Cristo e celebra sua vitória sobre os inimigos. O hinógrafo Venâncio Honório Clementiano Fortunato (entre aproximadamente 530 e cerca de 610) nasceu em Ceneda, perto de Treviso, no norte da Itália. Tornouse cristão quando ainda criança e estudou em Ravena e Milão. Tornouse conhecido como excelente poe ta e orador, vindo posteriormente a ser eleito bispo de Poitiers por volta de 599. Ele é lembrado principalmente por ser autor do poema "Vexilla regis prodeunt" (Avançam as bandeiras reais). De acordo com uma tradição bem comprovada, no ano 569 Santa Radegunda presenteou um grande fragmento daquilo que se acreditava ser a verdadeira cruz de Cristo à cidade de Poitiers, na Gália meridional. Radegunda tinha obtido esse fragmento do imperador Justino II. Fortunato foi a pessoa escolhida para receber a relíquia na chegada a Poitiers. Quando os portadores do sagrado fragmen-
to encontrav am- se a prox imadam ente a duas milhas de distância da cidade, Fortunato, acompanhado de uma grande multidão de fiéis e entusiastas, alguns desfraldando bandeiras, levando cruzes e outros instrumentos sagrados, foram ao encontro dos que tr aziam a relí quia. Enquanto marchavam, cantavam o hino que Fortunato tinha c o m p o s t o pa r a a o c as i ão . O h i n o f o i l o g o i nc o r p o r a d o a o O f í c i o do Domingo da Paixão da Igreja ocidental, sendo utilizado ainda em nossos dias. A seg uir são transcritas três estrofes do te x to or ig inal em latim, seguidas de uma tradução literal; Vexilla Regis prodeunt:
Avançam os estandartes do Rei,
Fulget Crucis mysterium
resplandece o mistério da cruz
Qua vita mortem pertulit
pela qual a vida venceu a morte
Et morte vitam protulit.
e pela morte a vida triunfou
Arbor decora et fulgida
Árvore bela e refulgente
Orn ata Regis purpura,
ornada com a púrpura do Rei,
Electa digno stipite
único madeiro digno de tocar
Tam sancta membra tangere.
aquele corpo santíssimo.
Beata cujus brachiis
Abenço ados braços da balança.
Pretium pependit saeculi,
que pesou o resgate do mundo
Statera facta corporis
ao receber aquele corpo
Tulitque praedam tartari.
que arrebata a presa aos infernos.
(A propósito, convém notar aqui a importância dos hinos e cân ticos cristãos como meio de tornar as afirmações doutrinais memorá veis e acessíveis às comunidades. Os hinários da Igreja Cristã costu mam ser as afirmações mais importantes e memoráveis da doutrina.)
A
C R U Z E O P E R DÃ O
Uma terceira abordagem do sentido da morte de Cristo constitui uma série de passagens bíblicas que tratam das noções
de juízo e perdão. A compreensão da obra de Cristo descrita acima possui muitos pontos de atração, por causa do seu sentido dramático. No entanto, existem aqui alguns pontos fracos. Para o autor do século XII Anselmo de Cantuária, dois pontos fracos são de importância toda especial. Em primeiro lugar, deixase de explicar por que Deus quereria nos resgatar. Em segundo lugar, não valeria muito a pena saber como Jesus Cristo estava envolvido no proc esso da redenção. Anselmo achou que era necessário explicar melhor a questão. Para satisfazer essa necessidade, ele elaborou uma forma de encarar a obra de Cristo que destaca a idéia central da retidão da obra criada. Deus criou o mundo de uma certa forma que exprime a natureza divina. Ele também criou os seres humanos para que pudessem gozar da amizade de seu Criador na eternidade. E esta finalidade parece ter sido frustrada pelo pecado humano, que aparece como uma barreira entre a humanidade e Deus. Foi introduzida, assim, uma ruptura fundamental na criação. A ordem moral foi violada. Dessa maneira, supõese que deveria haver uma redenção da humanidade para que a retidão natural da ordem criada pudesse ser restaurada. Nesse sentido, Anselmo entende a redenção como restauração da humanidade ao seu estado original na criação. Como é, então, que podemos ser redimidos? Anselmo ressalta que Deus se obriga a nos redimir de um modo compatível com a ordem moral da criação, refletindo sua própria natureza. Deus não pode criar o universo de uma maneira como expressão da sua vontade e da sua natureza e, de maneira totalmente diferente, violar a ordem moral agindo de um modo completamente distinto, para redimir a humanidade. D eus deve nos redimir de uma maneira co m patível com sua própria natureza e seus desígnios. A redenção deve, em primeiro lugar, ser uma redenção moral e, em segundo lugar, deve ser vista como moral. Deus não pode empregar um padrão de moralidade em uma determinada circunstância e outro padrão em outras circunstâncias. Portanto, Deus está com o que obriga do por si mesmo a respeitar a ordem moral da criação.
Depois de ter resolvido essa questão, Anselmo passa a considerar o modo como a redenção se torna possível. O dilema fundamental pode ser resumido da seguinte maneira: Deus não pode nos redimir para gozarmos de sua amizade sem antes tratar do pecado humano. O pecado é a ruptura da ordem moral do universo, que representa a rebelião da criação contra o criador. O pecado representa um insulto e uma ofensa a Deus. A situação deve, portanto, ser corrigida antes que se restaure a amizade entre Deus e a humanidade. Deus deve então "reparar" a situação de modo compatível não só com a divina misericórdia mas também com a divina justiça. Anselmo introduz aqui o conceito de "satisfação", que significa pagamento ou ressarcimento da ofensa causada pelo pecado humano. Uma vez que for dada a satisfação, a situação poderá voltar ao normal. Porém, é preciso dar antes a satisfação. O problema, como Anselmo observa, é que os seres humanos não têm capacidade para prestar essa satisfação, que está muito além de seus recursos. Eles precisam oferecer a satisfação, mas não podem. A humanidade deve dar satisfação de seus pecados, mas não pode. Deus não é obrigado a dar essa satisfação, mas poderia fazêlo se fosse apropriado. Portanto, argumenta Anselmo, se Deus viesse a se tornar um ser humano, o Deuspessoa poderia então ter a obrigação (como ser humano) e a capacidade (como Deus) de dar a satisfação necessária. Assim, a encarnação leva a uma solução justa do dilema humano. A morte de Jesus na cruz demonstra a oposição total de Deus ao pecado, embora ao mesmo tempo forneça os meios pelos quais o pecado pode ser verdadeiramente perdoado, ficando assim aberto o caminho para a renovação da amizade entre a humanidade e Deus. A idéia fundamental é que o valor da satisfação assim oferecida tem de ser equivalente ao peso do pecado humano. Anselmo argumenta que o Filho de Deu s se encarnou para que Cristo, na condição de Deus encarnado, pudesse possuir tanto a obrigação humana de pagar a satisfação como a capacidade divina de pagar uma satisfação da grandeza necessária para a redenção. Esta idéia é retomada
fielmente pela Sra. Cecil F. Alexander em seu famoso hino do século XIX intitulado "There is a Green Hill Far Away" (Existe ao longe uma colina verdejante): N ã o h a v ia o u tr o c a p a z de pagar o preço do pecado,Só Ele poderia abrir as portas d o c é u pa r a p o d e r m o s e n t r a r á
A base teológica da noção de "satisfação" foi mais plenamente desenvolvida no século XIII por Tomás de Aquino, que fundamenta em três considerações a propriedade da "satisfação de Cristo" para compensar o pecado humano: A s a tis f a ç ão p r o p r ia m e n t e d it a se d á n o m o m e n t o e m q ue a l g u é m o f e r e c e à pessoa ofendida alguma coisa que lhe causa uma satisfação maior que o ó d i o d a o fe n s a. A s s i m , C r i s t o , s o f r e n d o e m c o n s e q ü ê nc i a d o a m o r e da obediência, ofereceu a Deus alguma coisa maior do que poderia ser paga e m r e s s a r c i m e n t o d e t o d a o f e n s a d a hu ma n id a de , - p r i m e i r o , p o r c a us a d a g r a n d e z a d o a m o r , e m c o n s e q üê n c i a d o q u a l e le sofreu,- s e g u n d o , p o r c a u sa da dignidade da vida que ele entregou em satisfação, que era a vida de D e u s e d e u m s e r hum a no ,- t e r c e i r o , p o r c a us a d a a b r a n g ê n c i a t o t a l d e s ua paixão e da grandeza do sofrimento que ele tomou sobre seus ombros.
Tomás de Aquino segue aqui Anselmo, ao afirmar que a dignidade inerente à morte de Cristo está fundamentada em sua divindade. Por que a morte de Cristo é tão significativa e possuía a capacidade de nos redimir? Argumenta Tomás de Aquino: porque ele — e só ele — é o Deus encarnado. Com o diz Tomás de Aquino: "A dignidade da carne de Cristo deve ser considerada não de acordo com a natureza da carne, mas conforme a pessoa que assumiu essa carne, que era Deus, de quem obteve essa dignidade infinita". Em
2. T h e r e w a s n o o t h e r g o o d e n o u g h /T o p a y t he p r i c e o f s in,- /He o n l y c o u l d u n l o c k t h e g a t e , /O f h e a v e n , a n d l e t us i n.
respo sta à questão de por que a morte de uma pe ssoa deveria ter esse significado de salvação, Tomás de Aquino afirma que a importância de Cristo nesse assunto não está na humanidade, mas na divindade. N o entanto, apesar dessa ênfase na divindade de C risto, é claro que Tomás de Aquino tom ou cu idado para explicar que a importância da humanidade de Cristo não deve ser negligenciada. Podese argumentar que a tanto a primeira como a terceira consideração de Tomás de Aquino atribuem um lugar importante à humanidade de Cristo no processo da redenção, destacando a importância salvífica do amor e no sofrimento de Cristo. Anselmo demonstrava uma tendência a tratar a humanidade de Cristo como sendo um pouco mais que o meio pelo qual Cristo podia assumir a pena devida ao pecado humano. Tomás de Aquino pode, assim, fazer uma afirmação mais positiva do papel soteriológico da humanidade de Cristo. Como é que o ato de Cristo na cruz pode nos afetar? De que maneira participamos dos benefícios de sua morte e ressurreição? Anselmo achava que esse ponto não precisava ser discutido e por isso não prossegue nesse assunto, porém, houve alguns autores posteriores que acharam que a questão precisava, sim, ser tratada. Assim, pois, podem ser expostas três maneiras de compreender como os crentes se relacionam com Cristo. Participação. Pela fé, aqueles que crêem participam em Jesus Cristo. Eles estão "em Cristo", conforme a conhecida expressão usada por Paulo. Eles são assimilados em Cristo e participam de sua vida ressuscitada. Conseqüentemen te, participam de todos os ben efícios conquistados por Cristo mediante sua obediência na cruz. Representação. Cristo é o representante da aliança da hum anidade. Pela fé, todos nós somos abrangidos pela aliança entre Deus e a humanidade. Tudo o que Cristo conquistou para nós é posto à nossa disposição, em virtude da aliança. Assim como Deus fez a aliança com Israel, do mesmo modo também fez semelhante aliança com a Igreja. Cristo, pela obediência na cruz, representa o povo da aliança de Deus, conquistando benefícios para esse povo na qualidade de representante desse povo. Ao receber a fé, as pessoas entram no
âmbito da aliança e assim participam de todos os benefícios que Cristo conquistou. Substituição. Cristo é visto aqui como um substituto nosso. Teríamos nós de ser crucificados por causa de nossos pecados, mas Cristo é crucificado em nosso lugar. Deus permite que Cristo fique em nosso lugar, tomando sobre seus ombros nossa culpa, para que a justiça de Cristo conquistada pela obediência na cruz possa ser a nossa justiça. Sa l v a ç ã o , pecado e C risto
O que é o pecado? Na linguagem cotidiana, a palavra "pecado" significa uma "falta moral", um "ato imoral", mas na teologia o significado é mais preciso. O sentido fundamental de "pecado" é de alguma coisa que separa a humanidade de Deus. A salvação é o rom pimento da barreira de separação da humanidade de Deus graças à intervenção de Cristo. Muitos teólogos cristãos vêem esta idéia prefigurada e simbolizada em um incidente ocorrido por ocasião da morte de Cristo, quando o véu do Templo se rasgou em duas partes (Mt 27,51). Com o a grande cortina separava o Santo dos S antos do espaço do Templo reservado à gente comum, o rompimento do véu significava a remoção das barreiras entre a humanidade e Deus, pela morte de Cristo. O pecado é a antítese da salvação. É tarefa bastante fácil elaborar uma lista de conceitos fundamentais da salvação encontrados no Novo Testamento e relacionálos com os correspondentes conceitos de pecado. Alguns exemplos poderão ajudar a esclarecer essa questão. Como então esse nexo entre pecado e salvação aparece na pessoa de Jesus Cristo como salvador da humanidade? Como é que a obra salvífica de Cristo se relaciona com o desassossego humano? A questão foi tratada pelo teólogo bizantino N icolau Cab asilas (nascido aproximadamente em 1322) ao afirmar que a morte de Cristo ocorreu de maneira que ele podia lidar com as três fontes de aflição
Pecado A l ie n a ç ão
Salvação R e c o n c ilia ç ão
Cativeiro
Libertação
Culpa
Perdão
Condenação
Justificação
Doença
Cura
E s t ar p e r d i d o
Ser re encontra do
da humanidade pecadora, a saber, a natureza transitória e finita, a condição de pecado e o destino decisivo da mortalidade. Em cada um destes aspectos, afirma Cabasilas, Cristo entrou na situação humana para transformála. Ao se encarnar, ele transformou a natureza humana. Ao morrer na Cruz, derrotou o pecado . E pela ressurreição ele derrotou o poder da morte. Ao fazer essas três coisas. Cristo aboliu os obstáculos com que a humanidade deparava no caminho de retorno a Deus, passando a participar da comunhão com o criador e redentor Uma visão um pouco diferente surgiu no seio da teologia reformada nos séculos XVI e XVII, embora as idéias em jogo possam remontar a um período bem anterior. Esta visão referese normalmente ao "tríplice ofício de Cristo", com respeito às três funções que Cristo desempenha no drama da redenção. Afirmase que Cristo cumpriu os três grandes "ofícios" ou "papéis" do Antigo Testamento: profeta, sacerdote e rei. Essas três categorias aparecem como sumário conveniente de tudo o que Cristo realizou para redimir seu povo. Jesus é profeta: Mateus 21,11/ Lucas 7,16, sacerdote: Hebreus 2,17; 3,1/ e rei: Mateus 21,5/ 27,11; assim. Cristo reuniu em sua pessoa os três grandes ofícios do Antigo Testamento. Jesus é o profeta que, como Moisés, podia ver Deus face a face (Dt 17,15); ele é o rei que, como Davi, estabelecerá um novo povo de Deus para reinar sobre esse povo com justiça e compaixão (2Sm 7,1216)/ ele é o sacerdote que purificará o pov o de seus pecados. Assim, os três dons
oferecidos a Jesus pelos reis magos (ou sábios do Oriente, conforme Mt 2,112) representam essa tríplice função. O teólogo François Turrettini, de Genebra (16231687), expõe essa visão com grande clareza. Ele identifica a tríplice crise da humanidade como constando de "ignorância, culpa e sujeição ao pecado" e afirma que Cristo assume cada uma dessas necessidades e as transforma pela redenção que operou por meio da cruz e ressurreição. A t r íp l ic e m is é r ia d a h u m a n id a d e , r e s ulta n te d o p e c a d o , o u s eja, a i g n o rância, a culpa e a opressão com sujeição ao pecado, exigia esse tríplice o f í c io . A i g n o r â n c i a é s a n a da p e l o o f íc i o p r o f é t i c o , a c u l p a p e l o o f í c i o s a cerdotal e a opressão com sujeição ao pecado é remediada pelo ofício real. A ! u 2 d o p r o f e t a d i s s i p a a s t r e v a s d o e r r o , - o m é r i t o d o s a c e r d o t e a p a g a a c u l p a e o b t é m a r e c o nc il ia ç ão ,- o p o d e r d o r e i de s f a z a s u j e i ç ão a o p e c a d o e à m o r t e . O p r o f e t a n o s m o s t r a D e u s , o s a c e r d o te n o s c o n d u z a D e u s e o r e i n o s c o l o c a j u n t o d e D e u s e n os g l o r if ic a c o m e le . O p r o f e t a il u m i n a a mente pelo dom da inteligência, o sacerdote conforta o coração e a c o n s c i ê n c ia p e l o d o m d a c o n s o l a ç ã o , o r e i s u b j ug a as m ás i n c l i n a ç õe s p e l o d o m d a s a n t if i c a ção .
Esse modelo de ensinamento se propagou pela teologia reformada tardia, com o se pode saber pelos escritos do grande teólogo de Princeton, no século XIX, C harles H od ge ( 1797 1878), para quem a humanidade decaída necessita de "um salvador que seja um profeta para nos instruir, um sacerdote para nos reconciliar e interceder por nós e um rei para nos governar e proteger". A SALVAÇÃO, C r i s t o e a v i d a r e d i m i d a
Como vimos anteriormente, um aspecto da noção cristã de salvação é que esta está especificamente ligada à morte e ressurreição de Cristo. Este é um modo importante como a noção cristã de salvação pode ser distinguida da idéia comum de libertação ou autorealização, ou das idéias de salvação encontradas em outras
religiões. Existe, todavia, outro modo como a idéia cristã da salvação está especificamente unida a Jesus de Nazaré, a saber; Cristo fornece um modelo ou paradigma da vida redimida. Em certo sentido, Cristo dá forma ou configuração específica à existência cristã. Em geral, o cristianismo genuíno afirma que a vida cristã se torna possível por meio de Cristo, sempre distinguindo dois caminhos diferentes, segundo os quais a vida cristã que resulta é "amoldada" ou "especificada" por Cristo; 1. A vida cristã tom a a forma da tentativa contínua do fiel de imitar Cristo. Ao se tornar cristão, o fiel trata Cristo como exemplo da relação ideal com Deus e com o próximo e tenta imitar essa relação. Essa atitude de "imitação" pode ser notada nas obras de alguns autores espirituais medievais. Um exemplo clássico é o de Tomás de Kempis, no famoso opúsculo A imitação de Cristo. Essa importante obra da espiritualidade monástica põe ênfase na responsabilidade humana para acomodar nossa vida ao exemplo dado por C risto, especialmente no tocante à idéia de "carregar a cruz". 2. A vida cristã é um processo de "conform ação a Cristo" em que os aspectos externos da vida do fiel são ajustados ao relacionamento interno com Cristo pela fé. Esta atitude é característica de autores como Martinho Lutero e João Calvino e baseiase na idéia segundo a qual Deus amolda o fiel à semelhança de Cristo por meio do processo de renovação e regeneração operado pelo Espírito Santo.
En t r o s a m e n t o c o m o t e x t o
O texto que apresentamos para estudo ulterior é tirado de um sermão pregado por Agostinho de Hipona, um dos maiores teólogo s da Igreja cristã. Agostinho era considerado um grande pregador, lúcido e firme, e seus sermões contêm passagens detalhadas, porém
bastante acessíveis, sobre os principais temas da teo logia cristã. Não é de surpreender que ele pregasse comumente sobre o sentido da cruz e o sentido pelo qual a morte e a ressurreição de Cristo são garantia da salvação da humanidade. O sermão citado baseiase na parte de abertura do quinto capítulo do Apocalipse, a partir do qual Agostinho indaga como se pode pensar em Cristo considerandoo ao mesmo tempo leão e cordeiro: "o leão de Judá" e o "cordeiro de Deus" que tira os pecados do mundo. S e C r i s t o n ã o tiv e s s e s id o c o n d e n a d o à m o r t e , a m o r t e n ã o t e r ia pe r e c i do . O
d e m ô n io f o i v e n c i d o p o r s eu p r ó pr i o t r o f é u de v i tór i a . O d e m ô n io
sahou de alegria quando seduziu o primeiro homem e o precipitou na morte. Seduzindo o primeiro homem, o demônio o matou,- matando o ú lt im o h o m e m e le pe r d e u o pr i m e i r o h o m e m c a íd o e m s ua a r m a d il ha . A v i tó r i a d e N o s s o S e n h o r J e s us C r i s t o v e i o n a h o r a e m q u e e le r e s s u s c it o u dos mortos e subiu ao céu. Foi nesse ponto que o texto do Apocalipse q ue o u v i s te s h o j e f o i c u m p r i d o : " O l e ão d a t r i b o d e J u d á s a i u v e n c e d o r " (Apocalipse 5,5). Aquele que tinha sido imolado como cordeiro é hoje chamado o leão, isto é, leão por causa da coragem, cordeiro por cau s a d a in oc ên cia ,- l e ã o p o r q u e n ã o f o i v e n c i d o , c o r d e i r o p o r c a us a d e s ua mansidão. Por sua morte, o cordeiro imolado venceu o leão "que vagueia b u s c a n d o a l g u é m p a r a de v o r a r " (1 P e d r o 5 , 8 ). O d i a b o , p o r o u t r o l a d o , é chamado aqui leão por causa da sua condição selvagem e não por sua b r a v u r a [ . .. ] O d i a b o s a l to u d e a le g r ia q u a n d o C r i s t o mor reu,- e c o m a p r ó p r i a m o r t e d e C r i s t o o d i a b o f o i v e n c i d o : e le m o r d e u a is c a da r a to e ir a , e le a le g r o u- s e c o m a m o r t e d e C r i s t o , a c r e d i ta n d o q u e er a o s e n h o r d a morte. Porém, aquilo que tinha causado sua alegria sacudiu a isca diante d e le . A c r u z d o S e n h o r f o i a r a t o e i r a d o d ia b o : a is c a q ue o a p a n h o u f o i a morte do Senhor
Depois de ler atenciosamente o texto acima, procure responder, por si mesmo ou no estudo em grupo, às perguntas formuladas a seguir.
Procure lembrarse das três formulações do sentido da cruz, expostas neste capítulo. Qual delas deve ser mais apropriada para a explicação de Agostinho?
Procure resumir, com suas próprias palavras, o argumento básico que Agostinho expõe. De que maneira a morte de Cristo na cruz liberta a humanidade da sujeição ao poder do diabo, de acordo com A gostinho?
O que Agostinho quer dizer quando escreve "A cruz do Senhor foi a ratoeira do diabo"? Em sua opinião, que im pacto essa afirmação teria cau sado nos ouvintes? A seu ver, o que ele estava procurando demonstrar?
Capítulo
A T rindade
Para muitos, a doutrina da Trindade é uma das partes mais frustrantes da teolo gia cristã. C om o se pode pensar em um Deus em "três pessoas"? Muitos suspeitam de que se trata aqui simplesmente de uma tentativa dos teó logos de tornar o assunto inacessível a estranhos. Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos da América, foi um crítico rigoroso daquilo que ele definiu como "incompreensível jargão da aritmética trinitária". Por que, nesta terra, precisaríamos falar de Deus desse modo rebuscado e enigmático? Existirá aí uma insinuação de que a teologia é totalmente irracional? Nestes últimos tempos os cristãos têm tomado conhecimento da condenação dessa doutrina pelo Islã, segundo o qual esse ensinamento põe em risco a doutrina da unidade de Deus. A CRENÇA NA T r INDADE
A melhor maneira de entender o fundamento dessa doutrina aparentemente desnorteante é considerar que esse é o modo inevitável e legítimo de pensar a respeito de Deus, com base no entrosamento comprovado com o testemunho bíblico das palavras e obras de Deus. A doutrina da Trindade pod e ser considerad a o resultado de um processo de reflexão, sustentada e crítica, sobre o modelo da
atividade divina revelada nas Escrituras e continuada na experiência cristã. Com isto não se afirma que as Escrituras contenham uma doutrina explícita da Trindade, mas sim que dão testemunho de um Deus que exige a própria compreensão em um nível trinitário. A primeira vista, só existem dois versículos bíblicos abertos à interpretação trinitária: Mateus 28,19 e 2 Coríntios 13,14. O primeiro versículo é o que ordena aos discípulos que batizem as pessoas "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", o segundo fala do Pai, do Filho e do Espírito usando palavras conhecidas a respeito da "graça". Ambos os versículos lançaram profundas raízes na consciência cristã, o primeiro por causa da associação que tem com o batismo e o segundo pelo uso comum da fórmula da oração e devoção cristã. No entanto, esses dois versículos, tomados em con junto ou isoladamente, dificilmente podem ser interpretados com o constituindo a doutrina da Trindade. Os principais fundamentos da doutrina da Trindade não estão assentados nos dois versículos mencionados acima mas, pelo contrário, devem ser encontrados no modelo da atividade divina testemunhado no N ov o Testamento. O Pai é revelado em Cristo pelo Espírito. Existe um nexo íntimo entre o Pai, o Filho e o Espírito nos escritos do Novo Testamento. Repetidas vezes as passagens do Novo Testamento ligam esses três elementos como partes de um todo maior. A totalidade da presença salvífica e do poder de Deus parece poder ser expressa envolvendo os três elementos, como se pode ver, por exemplo, em: 1 Coríntios 12,46, 2 Coríntios 1,2122, Gálatas 4,6, Efésios 2,2022; 2 Tessalonicenses 2,1314 ; Tito 3,46; 1 Pedro 1,2. A melhor maneira de começar a refletir sobre a doutrina da Trindade é constatar que a Bíblia cristã expõe a natureza e as ações do Deus uno, o Deus a que os cristãos se referem como "Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo". Embora insista que existe um só Deus, o cristianismo afirma uma visão de Deus rica e complexa, dificílima de traduzir em palavras. Ao lon go dos séculos, o s teólo go s cristãos concluíram que existem aqui duas alternativas. Poderiam expor um conceito bastante simples de Deus, fácil de entender, mas •V
que, não justifica o testemunho profundo e de múltiplos aspectos sobre Deus registrado na Bíblia e, subseqüentemente, no culto e na experiência cristã. Alternativamente, poderiam fazer todo esforço para permanecer fiéis a esse testemunho de Deus, ainda que o resultado final fosse difícil de entender. A teologia cristã ortodoxa aceitou sempre a segunda alternativa. Podese observar aqui a citação de um dito de Agostinho de Hipona: "Se podes entender isto plenamente, isto não é Deus"^. Quais são então os elementos básicos da visão cristã de Deus formalmente expostos na doutrina da Trindade? Os três elementos principais são: 1. Deus criou o mundo, organizand oo com ordem e forma. 2. Deus redimiu o mundo em Jesus C risto. 3. Deus está presente no mundo aqui e agora, guiando e animando os fiéis. É fácil expor uma noção simples de Deus contendo um desses elementos. Por exemplo, ao se falar de Deus como criador ou legislador não surge nenhum problema intelectual fundamental. No entanto, o que se tem aqui é apenas uma parte da visão cristã de Deus, em que há mais omissões que afirmações. A doutrina da Trindade entretece os fios da meada da noção cristã de Deus, dando uma visão de Deus fiel à experiência cristã daquele Deus, mesmo que surja daí um desafio intelectual. A omissão de alguma coisa pode tornar a doutrina mais fácil de entender, mas neste caso a representação de Deus assim obtida será distorcida e inadequada e não dará uma noção correta de Deus. Finalmente, a doutrina da Trindade pode ser considerada admitindose que as palavras humanas são simplesmente inadequadas para expressar a glória e a maravilha de Deus. O teólo go inglês Charles G ore (1 85 31932) expõe este argumento da seguinte forma: A l in g u a g e m h u m a n a n ã o p o d e e x p r im ir a d e q u a d a m e n t e as r e a lid a d e s d i v i na s . A t e n d ê n c i a c o n s t a n t e a p e d i r d e s c ul pa s p e l a l in g u a g e m h u m a n a , o
grande elemento do agnosticismo, o terrível senso das insondáveis pro fundezas além do pouco que se chega a conhecer estão sempre presentes n a m e n t e d o s t e ó lo g o s q ue s a b e m d e q ue c o is a e s t ão t r a t a n d o a o pr o c u r a r e l a bo r a r um a c o n c e p ç ão d e D e u s . "V e m o s c o m o n u m e s p e lh o ", d i z S ão P a u l o , "c o m o e m u m e nig ma,- c o n h e c e m o s s ó e m p a r te ". S a n t o H i l á r i o [ d e P o i tie r s ] que ix a - s e : "S o m o s o b r i g a d o s a p r o c u r a r o in a c e s s í v e l , s u b i r at é o n d e n ã o p o d e m o s c he g a r , f a l a r o qu e n ã o p o d e m o s e x pressar,- e m v e z d o m e r o a t o d e a d o r a ç ã o d e f é, s o m o s o b r i g a d o s a c o n f i a r as c o is a s p r o f u n d a s d a r e l ig i ão a o s p e r ig o s d a e x p r e s s ão h u m a n a ".
O segundo dos três elementos que mencionamos tem despertado particular importância no desenvolvimento da doutrina da Trindade, podendo ser considerado diretamente relacionado com a evolução da cristologia. Quanto maior é a ênfase posta pela Igreja em afirmar que Cristo é Deus, tanto maior é a pressão no sentido de esclarecer como Cristo se relaciona com Deus. O desenvolvimento da doutrina da Trindade ocorreu em três fases e completouse definitivamente em fins do século IV. Fase Reconhecimento da plena divindade de Jesus Cristo. T Fase: Recon hecim ento da plena divindade do Espírito. 3®Fase: Form ulação definitiva da doutrina de Trindade, inserindo e explicando estas idéias centrais e determinando sua relação miítua. Esse desdobramento seqüencial da doutrina da Trindade é reconhecido por Gregório de Nazianzo (329389), que chamou a atenção para o progresso gradual no esclarecimento e na compreensão do mistério da revelação de Deus no curso do tempo. Ele afirma que era impossível tratar da questão da divindade do Espírito enquanto não ficasse esclarecida a questão da divindade de C risto : O A n t ig o T e s t a m e nt o pr e g a v a a b e r t a m e n te o P a i e m a is o b s c u r a m e n te o F i l ho . O N o v o T e s t a m e n t o r e v e l ou o F i lh o e de u a lg u m a s i dé ia s s o b r e a d i v i n d a d e d o E s p ír i to S a n t o . A g o r a o E s p ír i to h a b i t a e m n ós e é r e v e l a do mais claramente a nós. Não era apropriado pregar o Filho abertamente
enquanto a divindade do Pai não tinha sido ainda admitida. Nem con vinha aceitar o Espírito Santo antes do reconhecimento da divindade do F i lh o [ . .. ] . P e l o c o n t r á r i o , a tr a v é s d o p r o g r e s s o g r a d u a l e [ d e] a v a n ç o s parciais, deveríamos progredir e conquistar maior clareza de forma que a l u z d a T r i n d a d e v i e s s e a b r i lh a r .
Dada a importância do reconhecimento da divindade do Espírito Santo para o desenvolvimento da doutrina da Trindade, consideraremos essa questão mais detalhadamente. O E s pír it o S a n t o
"Deus é espírito" (] o 4,24). O que é que isso nos diz a respeito de Deus? Os idiomas modernos usam pelo menos três palavras: "vento", "respiração" e "espírito" para traduzir o termo h ebraico ruach. Esta importante palavra hebraica tem um significado profundo, virtualmente impossível de ser traduzido nos idiomas modernos. Ruach, que tradicionalmente se traduz simplesmente como "espírito", está associado a uma série de significados, cada um dos quais lança alguma luz sobre as complexas associações da noção cristã do Espírito Santo. 1. Espírito como vento. O s escritores do Antigo Testamento tom o devido cuidado para não identificar Deus com o vento de modo que se reduza Deus ao nível de uma força da natureza. No entanto, é traçado um paralelo entre o poder do vento e o poder de Deus. Falar de Deus como espírito é trazer à mente a energia poderosa do "Senhor dos Exércitos", recordando a Israel o poder e o dinamismo do Deus que tinha chamado Israel do Egito. Esta imagem do Espírito como poder de redenção é talvez afirmada em sua forma mais significativa na narrativa da saída do Egito, em que um poderoso vento dividiu o mar Vermelho (Ex 14,21). Aqui a idéia de rwacfo encerra tanto a idéia do poder como a do desígnio redentor de Deus. A imagem do vento permitiu também explicar e visualizar, de maneira bastante ilustrativa, a experiência humana de Deus. Os escritores do Antigo Testamento tinham consciência da vivência da
presença e da atividade de Deus de duas formas bastante distintas. As vezes tinhase a experiência de Deus como juiz que condenava Israel por sua obstinação, em outras ocasiões, tinhase a experiência de Deus como aquele que refresca o povo eleito do mesmo modo como a água refresca o deserto. A imagem do vento trazia em si essas duas idéias de maneira poderosa. Convém recordar que Israel, ao sair do Egito, seguiu pelo lito ral do mar Mediterrâneo pelo lado ocidental, tendo grandes desertos do lado oriental. Quando o vento soprava do leste, era sentido como uma névoa de areia fina que vergastava a vegetação e ressecava a terra. Pessoas que tinham viajado por essas regiões descreveram a força e o poder notável desses ventos. Até mesmo a luz solar era obscurecida pela tempestade de areia, impelida pelo vento. Um vento assim era considerado pelos escritores bíblicos um modelo da maneira como Deus demonstrava a finitude e a transitoriedade da criação. "A grama murcha e as flores fenecem, quando o espírito do Senhor sopra sobre elas" (Is 40,7). Como o vento tórrido do Oriente, como o siroco da Arábia destruíam as plantas e a relva, assim se compreendia que Deus destruía o orgulho humano (ver SI 103,1518; Jr 4,11). Como a relva que brota, fresca e verde, para logo murchar ao sopro do vento abrasador do deserto, assim os impérios humanos surgem para logo ruir diante da face de Deus. N o tempo em que o profeta Isaías escrevia suas profecias, Israel se encontrava no cativeiro da Babilônia. Para muitos, parecia que o grande império da Babilônia era uma característica histórica permanente que nenhum fenômeno poderia mudar. N o entanto, o profeta mostra a transitoriedade dos grandes feitos humanos proclamando sua destruição, quando Deus sopra sobre eles. Só Deus permanece, e tudo o mais se encontra em estado de contínua mudança. Já os ventos vindos do oeste eram totalmente diferentes. No inverno, os ventos de oeste e sudoeste traziam chuva para o terreno ressecado e sopravam do mar para a terra. No verão, os ventos do oeste não traziam chuva, mas frescor. A intensidade do calor do deserto era aliviada por estas brisas suaves. E da mesma forma como
esse vento refrescava, umedecendo o solo ressecado no inverno e aliviando o calor do dia durante o verão, assim se entendia que Deus refrescava as necessidades espirituais humanas. Em uma série de poderosas imagens, Deus é comparado pelos escritores do Antigo Testamento à chuva trazida com o vento do Ocidente (Os 6,3), refrescando a terra. 2. Espírito como respiração. A idéia do espírito está relacionada com a vida. Quando Deus criou Adão, soprou sobre ele o hálito da vida de modo que Adão se tornou um "ser vivo" (Gn 2,7). A diferença fundamental entre o ser vivo e o ser morto é que o ser vivo respira e o morto não respira. Esta observação trouxe a idéia de que a vida dependia da respiração. Deus é aquele que sopra o hálito da vida nas conchas vazias e as traz à vida. Deus trouxe Adão à vida soprando sobre ele. A famosa visão do Antigo Testamento do vale onde jaziam ossos secos (Ez 37,114) também ilustra essa alegoria. Os ossos secos podem reviver? Os ossos só voltarão à vida quando a respiração entrar neles (Ez 37,910). O modelo de Deus como espírito encerra, pois, a idéia fundamental de que Deus é aquele que dá a vida e aquele, ainda, que pode trazer os mortos de volta à vida. É importante observar que o termo ruach está relacionado, muitas vezes, com a obra da criação de Deus (por exemplo, Gn l,2, Jó 26,121 3; 33,4; SI 104,2731), mesmo que o papel preciso do Espírito não apareça de maneira específica. Existe uma relação clara entre o "Espírito" e o ato de dar a vida por meio da criação. 3. Espírito como carisma. O termo técnico "carisma" referese ao ato de "encher um indivíduo com o espírito de Deus", pelo qual a pessoa em questão recebe a possibilidade de praticar tarefas que de outra forma seriam impossíveis. O dom da sabedoria é retratado, muitas vezes, como conseqüência da concessão do espírito (Gn 41,389; Ex 28,3; 35,31; Dt 34,9). Às vezes, o Antigo Testamento atribui dons de liderança ou brio militar à influência do Espírito (Jz 14,6.19; 15,14.15). No entanto, o aspecto mais abrangente desta característica do Espírito referese à questão da profecia.
O Antigo Testamento não dá muitas informações no momento de explicar como os profetas eram inspirados, guiados ou motivados pelo Espírito Santo. Antes do exílio dos israelitas na Babilônia, a profecia estava relacionada, muitas vezes, com experiências extáticas de Deus, envolvendo um comportamento selvagem (iSm 10,6; 19,24). No entanto, a atividade da profecia aos poucos foi se tornando relacionada com a mensagem antes que com o comporta mento do profeta. As credenciais do profeta estão em ser ele dotado pelo Espírito (Is 61,1; Ez 2,12; Mq 3,8; Zc 7,12), que autentica a mensagem do profeta; mensagem que geralmente é descrita como a "palavra (dabhar) do Senhor". Mas o Espírito Santo é divino? Atanásio e Basílio de Cesaréia (por volta de 330379) afirmam que sim, apelando para a fórmula, em seu tempo universalmente aceita, que era empregada no Batismo. Desde a época do Novo Testamento (Mt 28,1820), os cristãos eram batizados em nome "do Pai, do Filho e do Espírito Santo". Atanásio explica que essa fórmula tinha implicações importantes para a compreensão da condição da pessoa do Espírito Santo. Em sua Carta a Serapião, Atanásio declara que a fórmula batismal exprime com clareza que o Espírito compartilha a mesma divindade do Pai e do Filho. Este argumento prevaleceu definitivamente. No entanto, os escritores patrísticos hesitavam em falar abertamente do Espírito como Deus, visto que esta prática não tinha sido sancionada pelas Escrituras; essa questão é amplamente tratada por Basílio de Cesaréia em seu tratado sobre o Espírito Santo (37437 5). Mesmo posteriormente, por volta do ano 380, Gregório de Nazianzo admitia que muitos teólo gos cristãos orto dox os não tinham muita certeza se deviam tratar o Espírito San to "com o atividade, com o criador ou como Deus". Essa cautela pode ser observada na declaração final da doutrina do Espírito Santo formulada pela assembléia conciliar reunida em Constantinopla no ano 381. Nessa assembléia, o Espírito era descrito não como Deus, mas como "o Senhor e doador da vida, que procede do Pai e com o Pai e o Filho é juntamente adorado e glorificado". A linguagem é inequívoca: devese entender que
Espírito possui a dignidade e o lugar do Pai e do Filho, mesmo que o termo "Deus" não seja usado explicitamente. O
Três fatores eram de particular importância para estabelecer a divindade do Espírito Santo no decorrer do último quartel do século IV, como se expõe a seguir. Em primeiro lugar, como afirma Gregório de Nazianzo, as Escrituras aplicam todos os títulos de Deus ao Espírito, com exceção da expressão "não gerado". Gregório afirma de modo especial o uso da palavra "santo" para se referir ao Espírito, argumentando que essa santidade não é resultado de uma fonte externa, mas sim conseqüência direta da natureza do Espírito. O Espírito deveria ser considerad o com o aquele que santifica, e não como aquele que precisa ser santificado. Em segundo lugar, as funções específicas do Espírito Santo manifestam a divindade do Espírito. Dídimo, o Gego (falecido em 398), foi um dos muitos autores que explicaram que ao Espírito competia criar, renovar e santificar as criaturas de Deus. Pergunta se; Como poderia uma criatura renovar ou santificar outra criatura? Só sendo divino é que o Espírito poderia cumprir essas funções. Se o Espírito Santo desempenhava funções específicas de Deus, devese concluir que o Espírito Santo compartilha a natureza divina. Essa questão é declarada com clareza particular por Basílio de Cesaréia ao escrever: T o d o s o s q u e n e c e s s i ta m d e s a n t i f i c a ç ã o s e v o l t a m p a r a o E s pír ito ,- t o d o s os que o buscam são aqueles que vivem pela virtude, porque seu sopro de r e s p i r a ç ão o s r e f r e s c a e a j u d a n a b us c a d e s u a m e t a n a t u r a l e p r ó pr i a . T e n d o a c a p a c i da d e d e a p e r f e i ç o a r o s o ut r o s , o E s p í r it o n ã o n e c e s s i ta d e n a d a m a i s . E l e n ã o p r e c is a r e s t a ur a r s ua f o r ç a , p o r q u e e l e é o q u e d á a v i d a [ . .. ] e compartilha os dons da graça, a cidadania celeste, o lugar no coro do a n jo s , a a le g r i a s e m f im , h a b i t a n d o e m D e u s , t o r na n do - s e c o m o D e u s e — o m a i o r de t o d o s o s d o n s — to r na nd o- s e d i v i no .
Para Basílio, o Espírito faz que as criaturas sejam como Deus e participantes da divindade, e somente aquele que é divino pode fazer isto. (N o capítulo 4 examinamos com o esse mesmo argumento
foi empregado para deduzir a divindade de Cristo do fato de que o N ov o Testamento o reconhecia como "salvador".) Em terceiro lugar, a referência ao Espírito na fórmula batismal da Igreja era interpretada como apoio à divindade do Espírito. O Batismo era administrado em nome do "Pai, do Filho e do Espírito Santo" (M t 28,17 20). Atanásio e outros ensinavam que essa fórmula estabelecia as ligações mais íntimas entre as três pessoas da Trindade, tornando impossível sugerir que o Pai e o Filho compartilhavam a substância da Divindad e, ao passo que o Espírito era simplesmente uma criatura. De igual forma, Basílio de Cesaréia afirmava que a fórmula batismal supunha claramente a inseparabilidade do Pai, do Filho e do Espírito. Essa associação verbal, de acordo com Basílio, encerrava evidentemente grandes implicações teológicas. Com o pleno reconhecimento da divindade do Espírito Santo no século IV, abriuse o caminho para o desenvolvimento definitivo da doutrina cristã da Trindade. A DOUTRINA DA T r INDADE
O ponto de partida das reflexões cristãs sobre a Trindade é, como vimos, o testemunho do Novo Testamento da presença e da atividade de Deus em Cristo pelo Espírito. Para Ireneu, todo o processo da salvação, desde o começo até o fim, dava testemunho da ação do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ireneu empregou uma frase que iria caracterizar de maneira proeminente os futuros debates sobre a Trindade; "economia da salvação". O termo "economia" precisa ser explicado. A palavra grega oikonomia significa basicamente "a maneira como nossos negócios são organizados" (assim, tornase clara a relação com o sentido moderno da palavra). Para Ireneu, "economia da salvação" significa "o modo como Deus organizou a salvação da humanidade no curso da história". Em sua época, Ireneu sofria uma forte pressão por parte dos críticos gnósticos que ensinavam que o Deus criador era distinto do Deus redentor (e inferior a ele), como se viu no capítulo 3. Mar
c i ão d e S ín o p e ( p o r v o l t a de 1 1 0 - 1 6 0 ) a f ir m a que o D e u s d o A n t i go Testamento era apenas um Deus criador, totalmente distinto do D e u s r e d e n to r d o N o v o T e s t a m e nt o. E m c o n s e q üê nc ia , o A n t i g o T es tamento deveria ser deix ado de lado pelos cristãos, que dev eriam concentrar sua atenção no Novo Testamento. Ireneu rejeitava vigo rosamente esta idéia e insistia que todo o processo da salvação, des de o primeiro momento da criação até o último insta nte da história, era obra de um único e me sm o Deus. Ex istia uma única e co nom ia da salvação, em que o único Deus, que era criador e redentor, operava a redenção da criação. Em sua obra Demonstração da pregação apostólica, Ireneu insiste nas funções distintas porém correlatas do Pai, do Filho e do Espírito na economia da salvação. Ele afirma sua fé em D e us P a i n ão c r i a do , q u e é i n f i n i t o , i n v i s í v e l , ú n i c o D e u s , c r i a d o r d o u n i v e r
so,- e s te é o p r i m e i r o a r t i g o d a n o s s a f é [ . . .] . E a P a l a v r a de D e u s , o F i l h o d e D e u s , N o s s o S e n h o r J e s us C r i s t o [ . .. ] q ue n a pl e n i tu d e d o s t e m p o s , p a r a r e u n i r to d a s as c o is a s e m s i, to r n o u- s e u m s e r h u m a n o e n t r e o s s er es h u m a n o s , c a p a z d e s er v i s t o e t o c a d o , p a r a d e s t r ui r a m o r t e , d o a r a v i d a e r e s t aur a r a a m i z a d e e n tr e D e u s e a h u m a n i d a d e . E o Espírito Santo [ . .. ] q ue , na plenitude dos tempos, foi derramado de um modo novo sobre a nossa natureza humana para renovar a humanidade por toda parte em todo o mundo na visão de Deus.
Esta passagem exprime com clareza a idéia da Divindade em que cada pessoa é responsável por um aspecto da economia da sal v ação. L ong e de ser uma simples peça insig nificante da e speculação teo lóg ica, a doutr ina da T rindade está dire tame nte fundam e ntada na complexa experiência humana da redenção em Cristo e se esforça para explicar essa experiência. Tertuliano explica que a ação de Deus na economia da sal v a ç ã o é c o m p l e x a , r e v e l a n d o a o m e s m o t e m p o u m a unidade e uma distinção. A doutr ina da T rindade afirma, dessa forma, a unidade de D e u s , e m b o r a r e c o n h e c e n d o a c o m p l e x i da d e e a pr o f u n d e z a da v i são cristã de Deus. T er tuliano ex plica que a substância é o que une os
três aspectos da economia da salvação e a pessoa é o que as distingue. A s três pe ssoas da T r inda de s ão dis tinta s mas n ão div ida s {distincti non divisi), diferentes mas não separadas ou independentes uma da outra (discreti non separati). A c o m p le x i da d e da e x pe r i ê nc ia hu m a n a d a redenção é, pois, o resultado das três pessoas da Divindade agindo de modos distintos, porém coordenados, na história humana, sem qualquer perda da unidade total da Divindade. A v e r dade ir a dif ic ulda de par a a m a io r pa r te da s pe s s oas es tá na visualização d a T r i n d a d e . C o m o p o d e t e r s e n t i d o u m a i d é i a t ã o c o m p l e x a e a bs t r at a? C o nt a - s e q ue S ão P a t r íc io (e nt r e a p r o x i m a d a m e n t e 391 e cerca de 461), patrono da Irlanda, usou a comparação de uma folha de trevo (emblema nacional da Irlanda) para ilustrar c o m o u m a ún i c a f o l h a po d e r i a te r tr ês e l e m e n t o s d is t i nt o s . G r e g ór i o de Nissa usa uma série de analogias em suas cartas para explicar aos leitores a realidade da T rindade, como : 1. A a n a l o g i a d o m a n a n c ia l , da f o n t e e d o c ur s o d a g u a . U m e l e m e n t o b r o t a d os d e m a is e t o d o s c o m p a r t i lh a m a m e s m a substância que é a água. Embora os diferentes aspectos do curso dágua possam ser distinguidos, n a v e r d a d e n ão p o d e m ser separados. 2
A analog ia de uma corrente. Ex istem muitos elos na cor rente, mas a união com um dos elos depende da união com todos. Da mesma maneira, Gregório explica que aquele que encontra o Espírito Santo também encontra o Pai e o Filho.
3
A ana log ia do arco- íris. P ar tindo da afirmação de que Cristo é "luz da luz", Gregório de Nissa afirma que o arcoíris permite que possamos distinguir e apreciar as diferen tes cores do raio solar. Só existe um raio de luz, mas as cores se unem intimamente umas com as outras.
Na exposição a seguir, analisaremos uma forma mais recente de pensar s obre a T rindade e que parece es clarecedora para muitos . Trata-se de uma explicação dada pelo teólogo americano contem p o r ân e o R o b e r t J e n s o n ( na s c i d o e m 1930), exposta em sua obra The
Triune Identity: God According to the Gospel [ A identidade triúna: Deus de a c o r do c o m o E v a n g e lho ] (1982). A T r i n d a d e e o n o m e d e D eu s
P ar a c o m p r e e n d e r a t e o r i a de J e n s o n , p o d e m o s f a z e r u m a s i m ples pergunta: Quem é o Deus de Israel? Uma resposta é que Deus é Deus,- como não existe outro deus, não há mais nada a explicar. Porém, convém lembrar que o antigo Israel existia num contexto politeísta. Existiam muitos "deuses" ao redor de Israel. Era perfeita mente justo perguntar qual era o Deus que Israel considerava seu. Em outras palavras, o Deus que Israel conhecia e adorava precisava ser identificado, precisava ter um nome. O A n t ig o T e s ta me nto d e clara que o De us de Israel é o Deus que se re v elou a A br a ão, Isaac e J ac ó, o Deus que c o ndu ziu o pov o de Israel do Eg ito para a terra p r o m e t i d a c o m d e m o n s t r a ç ão de g r a nd e s s ina is e p r o d íg i o s . E m o u tras palavras, damos um nome a Deus narrando a história de Deus. Isto é o que fazemos também quando tentamos identificar uma pessoa. Nossa conversa com alguma pessoa seria mais ou menos as sim: "V ocê conhece J o hn Brow n? N ão conhece. Pois bem, você se lembra de ter lido a notícia de um homem que conseguiu atravessar a remo o O ce an o A tlântico, um ano atrás? O barco quase foi a pique em determinado momento. Quando ele terminou a viagem escreveu um liv ro s obre a sua v iag em. Sabe de quem estou falando!" O que você está fazendo aqui é simplesmente contando a história que tem como centro John Brown. Você está identificando John Brown dessa ma neira. J o hn Br ow n é a pessoa central da história. O me s mo acontece q u a n d o se f a la de D e us e d o A n t i g o T e s t a m ent o. O A n t i g o T e s t a m e n to identifica Deus a partir da história do povo de Deus: as grandes his tórias de A bra ão, Isaac e J acó, da saída do E g ito etc., narradas para identificar a Deus. O De us de Israel é aquele que ag ia dessa maneira. Essa ex plicação é ilustrada em muitas passagens do A ntig o T es t a m e n t o , c o m o , p o r e x e m p l o . Ê x o d o 19,45, D e u t e r o n ô m i o 26,59, Ezequiel 20,526. Pergunta: Quem é Deus? Resposta: Deus é aquele
que libertou Israel do Egito. Naturalmente, Deus ta mbém possui um nome, um nome difícil de traduzir,- As três traduções mais conhecidas do nome de Deus são "Yahweh", "o Senhor" e "Jeová". Porém, a idéia que se tem de Deus parte sempre das ações praticadas por Deus.
Agora voltemos a atenção para o Deus que os cristãos veneram e adoram. Quem é esse Deus? Para responder, o Novo Testamento conta uma história: talvez a história mais famosa do mundo, a história de Jesus Cristo. E, quando a história chega ao seu auge, ao narrar a ressurreição de Jesus dentre os mortos, ficamos sabendo que Deus, para os cristãos, é aquele que assim agiu para ressuscitar Jesus. Pergunta: Quem é o Deus que os cristãos veneram e adoram? Resposta: "O que ressuscitou Jesus dos m ortos" (Rm 4,24). Naturalmente, os autores do Novo Testamento explicam com suficiente clareza que aquele que "ressuscitou Jesus N osso Senhor dos m ortos" é o mesmo Deus que libertou Israel do Egito, afirmando assim a continuidade entre o Antigo Testamento e o Novo Testamento, entre Israel e a Igreja. Como afirma Jenson, essa idéia pode ser desdobrada sem maiores dificuldades. A ressurreição de Jesus e a vinda do Espírito no dia de Pentecostes são tratadas no Novo Testamento como fatos intimamente relacionados um com o outro. A complexidade das afirmações do Novo Testamento sobre a relação de Deus, Jesus e o Espírito desafia uma categorização nítida. Mas o que permanece sempre claro é que "Deus" é aquele que ressuscitou Jesus dos m ortos e agora está presente na Igreja através do Espírito Santo. De diversas maneiras, a expressão cristã "Pai, Filho e Espírito Santo" (Mt 28,19, 2C or 13,14) corresponde à expressão do Antigo Testamento "o Deus de Abraão, Isaac e Jacó", identificando o Deus em questão. Pergunta: De que Deus estamos falando?. Resposta: Do Deus que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos e agora está ptesente através do Espírito. A fór m ula tr initár ia po de ser e x plicada, dessa mane ir a, c o m o um nome próprio, uma forma abreviada de identificar exatamente de que De us es tamos fa lando. O cris tianis mo res ume, nessa frase clara, as questões importantes da história da salvação, os grandes momentos (ressurreição e Pentecostes) em que Deus estava tão manifestamente
presente e ativo. O cr istianism o v incula Deus es pecificame nte a esses acontecimentos da mesma forma como Israel relacionava especifica me nte Deus co m a saída do Eg ito. O cristianismo prende nossa aten ção a certos aco ntec ime ntos específicos e m que a pres ença e a ativ ida de de Deus podem ser concentradas e publicamente demonstradas. A do utr ina da T r inda de po de ser v is ta, e ntão , c o m o r e s um o da história do modo como Deus tratava Israel e como trata a Igreja. Essa doutrina descreve a história de como Deus crio u e resgatou a humanidade, afirmando que é a história de um únic o e mesmo D e u s . A o se f ala r a r e s p e it o de u m g r a n d e e s t a dis t a m o d e r n o , c o m o W in s t o n C hu r c h ill o u J o h n R K e nne dy , a a te nção se v o lta pa r a os pontos principais de sua carreira, os momentos em q ue galgou o pa tama r da his tória para mudar seus rumos. A ss im, a doutrina da T rin dade identifica aqueles grandes momentos da históri a da salvação em que De us estava ativ o, se ndo visto em sua atividade. A doutrina afirma que Deus está ativo no mundo, que Deus é con hecido por suas obras, e mostra a criação, a morte e ressurreição de Jesus Cristo e Pentecostes como pontos críticos do modo de agir de Deus para c o n o s c o . A d o u t r i na d a T r i nd a de de c la r a , p o r t a n t o , q u e m é e x a t a mente o Deus de que estamos tratando. J ens on desenvolv e essa ex posição de um m o do atual e acessível, ofer ecendo uma nov a visão criativa da doutrina da T rindade. E m seu liv r o A identidade triúna, ele explica que "Pai, Filho e Espírito Santo" é um nom e próprio do De us que os cristãos conhe ce m em Jesus C risto e por Jesus C ris to. E abs olutamente necess ário que Deus tenha um nom e pr óprio. "O discurso trinitár io é o esforço do cristianismo para identificar o De us que nos r eiv indicou para si. A doutrina da T rinda de abrange tanto o nome próprio, 'Pai, Filho e Espírito Santo' [...], co mo o des env olv imento e a análise aperfeiçoada das corr es ponden tes descrições de identificação". Jenson observa que o antigo Israel se encontrava em um contexto politeísta, no qual o termo "deus" dava informações relativamente escassas. Era necessário nomear o D e u s e m questão. A mes ma s ituação foi confr ontada pelos autores do N o v o Testamento, que se sentiam obrigados a identificar o Deus desde o
âmago de sua fé e distinguir esse Deus dos muitos outros deuses ve nerados e re conhecidos na reg ião, e specialmente na Á sia Menor . Dessa maneira, a doutrina da T rindade identifica os nomes d o D e u s cristão, porém identifica e nom eia este Deus de um m o do com patív el com o tes tem unho bíblico. N ão se trata de um nom e que nós mesmos escolhemos, mas sim de um nome que foi escolhido para nós e que somos autorizados a usar. Dessa maneira, Jenson defende a priorida de da auto- rev elação de De us c ontra as interpretações huma nas de conceitos de div indade . "O ev ang elho identifica seu De us da seg uinte maneira: Deus é aquele que ressuscitou o Jesus de Israel dos mortos. Toda a missão da teologia pode ser descrita pelo de sdobramento da frase de várias maneiras. U m a dessas maneiras apres enta a ling uag em e o pensa me nto tr initár io da Igr eja." A doutr ina da T rindade, afirma Jenson, permite que a Igreja descubra a distinção de seu credo e evite o perigo de ser absorvida por concepções rivais de Deus. A do utr ina da T r inda de está c e ntr a liz a da , as s im, no r e c o nhe c i mento de que Deus recebe seu nome na Escritura e no testemunho da Igreja. Segundo a tradição hebraica. Deus é identificado por seus f e it os h is t ór i c o s . J e n s o n o bs e r v a c o m o m u it o s t ex t os d o A n t i g o T e s tamento identificam Deus com referência aos atos divinos pratica dos na história, tais como a libertação de Israel do cativeiro do Egi t o. O m e s m o p a d r ão tor na - s e e v ide n te n o N o v o T e s t am e nt o: D e u s é identificado com referência a acontecimentos hist óricos específi cos, principalmente a ressurreição de Jesus Cristo. Deus passa a ser i de n t i f ic a d o c o m r e l a ç ão a J e s us C r i s t o . Q u e m é D e us ? D e que D e u s estamos falando? D o Deus que ress uscitou Jesus C ris to dos mortos . C o m o d e cla t r a J e n s o n , "o a p a r e c i m e n t o d o p a d r ão s e m â n ti c o e m que os usos de 'Deus' e Jes us Cr isto' são mutua m en te deter minantes" é de fundamental importância no Novo Testamento. O E v a n g e l ho d o N o v o T e s t a m e nt o é a ex p r es s ão d e u m a n o v a d e s c r iç ão i d e n t i f i c a d o r a d e s te m e s m o D e u s [ de Is r a el ] . A a p l i c a ç ã o q u e pa s s a a s er feita dessa nova descrição é o acontecimento, o testemunho da questão f u n d a m e n t a l d o N o v o T e s t a m e n to . D e u s , n o E v a n g e l h o , é "a q ue le q ue
r e s s u s c i to u J e s u s d o s m o r t o s " . A i d e n t i f i c a ç ã o d e D e u s p e l a r e s s u r r e i ção não substituiu a identificação pelo Êxodo, o mesmo Deus que ressuscitou Jesus dos mortos é aquele que libertou Israel do cativeiro do Egito. Mas o elemento novo que constitui o conteúdo do Evangelho é que Deus agora se i d e n t i f ic o u ta m b é m c o m o " a qu e le q u e r e s s u s c it o u J e s us N o s s o S e n h o r d os m o r t o s " (R m 4 , 2 4 ) . N o N o v o T e s t a m e n t o es sas f ras es to r na m - s e o m o d o - p a d r ã o d e s e r e f e r ir a D e u s .
Jenson retoma a concepção pessoal de Deus a partir da espe culação metafísica. T a i, Filho e E spírito S anto" é um nom e pr ópr io que aprendemos a empregar para nos referirmos a Deu s e nos diri girmos a ele. "Os meios lingüísticos de identificaç ão, como nomes próprios e descrições de identificação, ou as duas coisas, são uma necessidade da religião. As orações, como outros pe didos e louvo res, dev em ser dirig idas a Deus." A T rindade é, por tanto , um instr u mento de precisão teológica, que nos força a exprim ir uma noção clara ao tratarmos de Deus. Os cristãos não crêem e m um deus ge nérico, mas em um Deus realmente específico que é c onhecido por meio de uma série de ações na história.
A
COMUNICAÇÃO COM A T r INDADE: HINOS
É possível que nossa exposição até este ponto tenha dado a impres são de que a doutr ina da T rindade é quase inacess íve l, te ndo p o u c o a v e r c o m as r e a l id a de s d a v i da c r is t ã. C o n t u d o , c o m o j á o b servamos neste livro, muitos teólogos se deram conta da importân c ia do s hi n o s e n t o a d o s na s c o ng r e g a ç õe s c o m o m e i o de c o m u ni c a r a t e o l o g i a a o s f i é i s e m g e r a l . P a r a C h a r l e s W e s l e y (17071788), os hinos não eram simplesmente instrumentos de adoração de Deus, m as c o n s t i tu ía m t a m b é m m e i o s d e e du c a ç ão t e o l óg i c a . O que p o deria ser, então, mais natural que tentar expor os temas fundamen t ais d a d o u t r i n a d a T r i n da d e na f o r m a d e u m h in o ? E m 1746, W e s le y e dito u um a c o le tâne a de 24 hinos breves so bre a T rindade. Indiv idual e coletiv am ente, esses hinos conse g uem co m unica r e ex plicar as idéias centrais da T rindade sem recorrer à
linguagem técnica ou aos requintes teológicos. Sirva de exemplo o hino que transcrevemos a seguir; 1. Father of M ankind be ever ador'd; Thy M ercy we find, in sending our Lord, To ransom and bless us, Thy Goodness we praise. For sending in Jesus, Salvation by Grace. 2. O Son of F^is Love, Who designest to die. Our Gurse to remove, Our Pardon to buy, Ac cept our Thanksgiving, Alm ighty to save. Who openest F4eaven, To all that believe. 3. O Spirit of Love, O f F^ealth, and of Power, Thy working we prove, Thy Grace we adore. Whose inward Revealing applies our Lord's Blood, Attesting and sealing us Children of C od'. O hino expõe a idéia da "economia da salvação", a noção cristã própria do modo como a salvação se realiza na história. A preocupação de Wesley é mostrar os principais aspectos dessa idéia e como a ação do mesmo e único Deus triúno pode ser sentida em toda sua ação. Cada pessoa da Trindade tem seu papel próprio a desempenhar, segundo uma noção que em teologia se diz "apropriação". Todo aspecto do grande drama da redenção se manifesta interligado. O Pai, o Filho e o Espírito Santo aparecem como que entretecidos nesta grandiosa tapeçaria da salvação divina em uma narrativa contínua. Sem dúvida, o pensamento teológico de Wesley carece de elaboração sob 1. L P a i da h u m a n i d a d e , s e m p r e te a d o r e m o s : / e n c o n t r a m o s t ua m i s e r i c ór d i a , e n viando- nos nosso S enhor,/ teu resgate nos abe nçoou,/ tua bondade louvam os ,/ Por n o s e n v i a r e s e m J e s us , / s a l v a ç ão p e l a g r a ç a . 2 . Ó F i l ho d o s e u a m o r , q u e v o s d i g n a s te morrer,/ para remover nossa condenação, e adquirir nosso perdão,/ aceita nos sa g r a t i d ão , ó T o d o - P o d e r o s o p a r a s a l v a r / q ue a b r is t e o c é u pa r a t o d o o q u e c r ê. 3. Ó espírito de amor, de saúde e de poder/ tua obra nos prova, tua graça adoramos/ cuja ín t i m a r e v e l a ç ão a p l i c a e m n ós o s a n g u e d o S e n h o r / t e s ti f ic a n do - n o s e s e la n do - n os como Filhos de Deus. (N. do E.)
alguns aspectos, mas a finalidade principal do hino trinitário acima transcrito é clara; ajudar as congregações a apreciar o modo como a doutrina da Trindade tece um manto inconsútil da redenção. En t r o s a m e n t o c o m o t e x t o
Karl Barth é considerado um dos maiores teólogos do século X X e a ele se a tr ibui o m é r it o da r e de s c o be r ta do inte r e s s e pe la do utrina da T rindade nas última s décadas. A s idéias de Bar th sobre a T r i n da d e s ão im p o r t a n t e s p a r a a c o m p r e e n s ã o d os d e ba t e s t e o lógicos destes últimos tempos. Lamentavelmente, são idéias um pouco difíceis de ser entendidas pelos principiantes no estudo da teologia, e por isso serão dadas explicações mais amplas nesta par te do livro sobre esse tema. O po nto essencial a apreciar é que as reflex ões de Bar th sobre a T rindade baseiam- se na cre nça funda m e ntal dele de que a autorevelação de Deus é um fato. Barth pergunta no início de seu tratado Dogmática da Igreja-, O que deve ser v er dadeiro se Deus pode ser c o n h e c i d o des se m o d o ? C o n v é m le r o te x t o a ba ix o c o m v a g a r e t e nt a r apreciar as questões que Barth propõe. A q u e s tão da a uto - r e v e la ç ão de D e u s q ue a s s im se im p õ e a n ós c o m o p r i meira questão não pode, caso sigamos o testemunho da Escritura, ser se parada de uma segunda questão, que pode ser formulada da seguinte ma n e ir a : C o m o a c o n t e c e , c o m o se p r o v a q ue e ss e D e u s s e r e v e l a a si m e s m o ? T a m b é m n ã o p o d e s er s e p a r a da de um a t e r c e ir a qu e s t ão : Q u a l o r e s ul ta d o ? Q u e b e n e f íc i o e ss a q u e s t ão t r a z p a r a a pe s s o a a q u e m d i z r e s p e it o ? C o n siderando o contrário, nem a segunda nem a terceira questão podem ser s e p ar a da s d a p r im e i r a [ . .. ] . Deus s e r e v e l a . D e u s s e r e v e l a a t r a v é s dele mesmo. D e u s r e v e l a a si mesmo. S e q uis e r m o s d e f a to c o m p r e e n d e r a r e v e l a ção c o m respeito ao seu objeto, isto é. Deus, então a primeira coisa que temos de c o n s t a t a r é q u e e ss e o b j e t o . D e u s , i s t o é, a q u e l e q u e s e r e v e l a , é i d ê n t i c o a o s e u p r ó p r i o a t o r e v e l a d o r e t a m b é m a o e f e i to q u e p r o d u z . A p a r t ir de s te fato, a que apenas acenamos, é que aprendemos que devemos começar o estudo da doutrina da revelação pela doutrina do Deus triúno.
"Deus se revela. Deus se revela através dele mesmo. Ele revela a si mes mo.” Com essas palavras, Barth estabelece a estrutura de revelação que conduz à formulação da doutrina da Trindade. Freqüentemente Barth cita a frase latina: Deus dixiU ("Deus disse") ao discorrer sobre a revelação. Para ele, Deus disse e é missão da teo log ia inve stig ar o que essa rev elação pressupõe e implica. Para Barth, a teologia é um processo de "pensar a posteriori" a res peito do que se enco ntra c o ntido na auto- rev elação de Deus. Temos de "pesquisar cuidadosamente a relação entre o nosso co nhecimento de Deus e o próprio Deus no seu ser e na sua natureza". Com essas afirmações, Barth estabelece o contexto da doutrina da T rindade: cons idera ndo que a auto- reve lação de Deus ocorreu, o que é que deve ser v er dadeiro s obre De us, da do o a conte cime nto desse fato? O que é que a atualidade da rev elação tem a nos dize r a respeito do ser de Deus? O pon to de partida de Barth para essa ex posição da Trindade não é uma doutrina ou uma idéia, mas sim a atualidade do Deus que fala e do Deus que é ouvido. Como pode Deus ser ouvido quando a humanidade pecadora é incapaz de ouvir a Palavra de Deus? A e x plic a ção a c im a é s im ple s m e nte um a pa ráf ras e de a lg um as partes da metade do primeiro volume da obra de Karl Barth Dogmá tica da Igreja, intitulada "A doutrina da Palavra de Deus", entremeada co m ev entuais citações . O que se diz a í é m uita coisa que necessita de um desdobramento ulterior. Existem dois temas que convém ob servar com especial cuidado: 1. A h u m a n i d a d e p e c a d o r a é f u n d a m e n t a l m e n t e i n c a p a z de ouvir a Palavra de Deus. 2. N o e ntanto, a hum anida de pecadora ouv iu a Palavr a de Deus, v isto que essa Palavr a tor na sua co ndição de pecado c o n h e c i d a à hu m a n i d a d e . O próprio fato da ocorrência da rev elação nessas condições ex ige explicação. Para Barth, esse fato supõe que a humanidade é passiva no proce ss o do recebimento,- o proce ss o de rev elação é, desde o início até o fim, um processo sujeito à soberania de Deus como Senhor. Para a re velação ser rev elação. De us deve ser ca paz de fazer sua auto- rev elação à humanidade pecadora, apesar da condição de pecado da humanidade.
Uma vez que esse paradoxo é avaliado, a estrutura geral da doutrina de Barth sobre a Trindade pode ser acompanhada. N a revelação, conforme Barth explica. Deus deve ser como aparece na autorevelação divina. Deve haver uma correspondência direta entre o revelador e a revelação. Se "Deus se revela como Senhor" (afirmação caracteristicamente barthia na), então Deus deve ser o Senhor "antecedentemente em si mesmo". A revelação é a reiteração no tempo daquilo que Deus verdadeiramente é na eternidade. Existe, pois, uma correspondência direta entre: 1. o Deus que se revela e 2. a autorevelação de Deus. Para expor essa questão em linguagem de teologia trinitária, dizse que o Pai é revelado no Filho. Perguntase; E o Espírito? Neste ponto chegamos àquele que é talvez o aspecto mais difícil da doutrina trinitária de Barth; a idéia de Ojfenbarsein, que significa a "capacidade de revelarse". Para investigar esse ponto, precisamos usar uma ilustração que o próprio Barth não emprega. Imaginemos dois indivíduos caminhando nos arredores de Jerusalém em um dia de primavera por volta do ano 30 da nossa era. Eles vêem três homens sendo crucificados e param para observar. O primeiro indivíduo volta a atenção para a figura central e diz: "Um criminoso comum está sendo executado". O segundo indivíduo, vo ltando a atenção para o mesmo homem, responde: "É o Filho de Deus morrendo por mim". Dizer que Jesus é a autorevelação de Deus não é o mesmo que efetuar a revelação, deve haver algum meio pelo qual Jesus é reconhecido com o autorevelação de Deus. E este reconhecim ento da revelação como revelação que constitui a idéia de Ojfenbarsein. Como se chega a este discernimento? Barth explica com bastante clareza: a humanidade pecadora não é capaz de chegar a ele sem um auxílio especial. Barth não está preparado para permitir à humanidade um papel positivo na interpretação da revelação, acreditando que tal coisa equivaleria a submeter a revelação divina às teorias humanas do conhecimento. O reconhecimento da revelação como revelação deve ser uma obra propriamente dita de Deus, ou mais exatamente a obra do Espírito. A humanidade não se torna capaz de ouvir a palavra do Senhor (capax
verhi Domini), para depois agir em resposta à palavra que ouviu,- tanto a au dição como a capacidade de ouvir são dadas em um só ato pelo Espírito. Barth conseguiu demonstrar que as noções de revelação e da T rindade são co m pletam e nte inter- relacionadas, de m o do que uma não pode ser afirmada sem a outra. Crer no Deus que se revela eqüi vale a crer implicitamente na noção trinitária de D eus, que a teolo g ia deve des dobrar e ex plorar. Para Bar th, a do utrina da T rindade é, pois, suposta por todo o projeto da teologia cristã . Embora muitos possam invocar alguma ressalva quanto a alguns aspectos da abor dagem de Barth, poucos são os que poderiam negar qu e a teoria por ele exposta representa um marco teológico sólido. A s pe r g untas for muladas a s eg uir po de m ser úte is pa ra inte r ag ir com o texto, tanto no estudo particular como no tra balho em grupo:
Tente expor com suas próprias palavras o argumento que liga o ato da revelação com a doutrina da Trindade.
T e n te r e s p o nd e r à s e g uin te p e r g u n ta h ip o t é t ic a : A r e velação ocorre se não a reconhecemos como revela ç ão ? V o c ê p o d e r ia , t a lv e z , v aler - s e d o e x e m p lo d a d o acima (a cena do Calvário) para responder.
C o m base na passag em transcrita da obra Dogmática da Igre ja, exponha como Barth entende que o Pai, o Filho e o Es pírito Sa nto se re lacionam n o processo da div ina revela ção. V oc ê poderia, talvez, re petir a própria ex posição de Bar th, para depois ex plicá- la c o m suas próprias palavras .
Capítulo
A Ig reja
o C r e d o d os A p ós t o l o s t e m u m a c l áus u la q ue a f ir m a que os cristãos crêe m na Ig reja. O que sig nifica esta cláusula? C o m o se deve definir a Ig reja e qual é sua finalidade? Esta parte da teo log ia chamase tra dicionalme nte "eclesiologia" (da palav ra g reg a para igreja, ekklesia). Esta é uma das partes mais delicadas da teologia porque suscita questões denominacionais complicadas, de importânci a central para a identidade das várias Igrejas. Neste capítulo examinaremos diver sos aspectos da doutrina da Igr eja. Deve- se notar que ta m bém nesta parte do livro a limitação do espaço impede um aprofundamento maior de certas questões de grande interesse. A I g r e j a :
l o c a l o u universal
?
o N o v o T e s t a m e n t o us a a pa la v r a "Ig r e j a " de d ua s f o r m a s u m tanto diferentes. Em várias passagens, o termo "Igreja" é usado para designar congregações cristãs individuais: reuniões locais, visíveis, de pessoas que crêem. Por exemplo, Paulo escreveu cartas às Igrejas das cidades de C o r into e Filipos. O A pocalipse faz referência às "sete Igrejas da A sia", prov av elme nte s ignificando sete com unidades cristãs locais da re g ião da A sia M e no r (a T urquia dos dias de hoje ). Contudo, em outras passagens encontramos o termo usado no sen
t i d o m a is a m p l o e g e n e r a l iz a d o d e a l g u m a c o is a c o m o "o c o r p o t o t a l dos crentes cristãos". A tens ão e ntre o s ignifica do local e o sig nifi cado universal da palavra "Igreja" é de suma importância e requer exame cuidadoso. Como os dois aspectos podem ser mantidos? T ra dicionalme nte, resolve- se essa tensão a rg ume ntando que há uma só Igreja universal que existe nas comunidades locais. Com base nessa teoria, existe uma única Igreja Universal de todos os fiéis cristãos, que toma a forma de Igrejas locais individuais em uma dada região. Um modo convincente de conceber essa distin ção deve-se a João Calvino, que estabeleceu uma distinção digna d e nota entre a Igreja visível e a Igreja invisível. Em um plano, a Igreja é a comunidade dos fiéis cristãos como grupo visível, mas é também a sociedade dos santos e a companhia dos eleitos: uma entidade invisível.
Igreja invisível A Ig r e ja é a as s e m bléia do s e le ito s que só De us co nhec e A Ig r e ja é u m o b je t o de fé pr e s e nte e de espe rança futura A Ig r e ja é f o r m a da s ó pe lo s e le ito s
Igreja visível A Ig r e ja é a c o m un id a d e v is ív e l de f iéis n a t er r a A Ig r e ja é um o b je t o de v iv ê n c ia presente A Ig r e ja a br a n g e b o ns e ma us , e le ito s e réprobos
Para Calvino, a distinção entre Igreja visível e Igreja invisível é basicame nte es catológ ica, isto é, tem a ve r com o fim dos tempos. A Igreja invisível é a que começará a existir no fim dos tempos, quando Deus convocar o juízo final da humanidade. A s idéias de C a lv in o r e ce be r a m um a ex pr es s ão m ais f o r m a l na Confissão de Fé de Westminster, documento que exerceu enorme influência nos círculos eclesiásticos puritanos e reformados: A Ig r e ja C a t ó l i c a o u un iv e r s a l, q ue é in v is ív e l, é c o m p o s t a d o n úm e r o t o t a l d o s e l e i to s q ue f o r a m , s ão o u s e r ão r e u n id o s e m u m a ún i c a Ig r e j a s o b C r i s t o , q u e é s ua c a b e ç a [ . .. ] . A Ig r e j a v i s ív e l , qu e t a m b é m é c a t ó l ic a o u
universal de acordo com o Evangelho (não confinada a uma nação como antigamente sob a lei), é com posta de todo s aqueles que em todo o mundo professam a verdadeira religião juntamente com seus filhos.
A importância desse modelo e de outros semelhantes pode ser compreendida melhor considerandose a seguinte questão: Como podemos falar de uma "única" Igreja cristã quando existem tantas denominações cristãs distintas?. U m a ú n i c a Ig r e j a ?
Ao encarar a tensão patente entre a crença teórica em uma "única Igreja" e a realidade meramente observável da pluralidade de Igrejas, os autores cristãos desenvolveram teorias para poder incorporar esta última noção de pluralidade de Igrejas na estrutura da crença teórica de uma única Igreja. Podemse distinguir quatro abordagens principais da questão da unidade da Igreja, cada uma dotada de seus pontos fortes e pontos fracos característicos. 1. Abordagem imperialista. Essa abordagem declara que existe somente uma única Igreja empírica, isto é, observável, que merece ser conhecida e tratada como verdadeira Igreja. Todas as demais são expressão fraudulenta desse título ou, quando muito, não passam de mera aproximação do título real. Essa posição foi mantida pela Igreja C atólica Rom ana até a época do Concilio Vaticano II (19621965), quando se deu um passo colossal para reconhecer outras Igrejas cristãs como Igrejas de irmãos "separados". 2. Abordagem platônica. Essa abordagem estabelece uma distinção fundamental entre a Igreja empírica (isto é, a Igreja como realidade histórica visível) e a Igreja ideal. Essa noção teve apoio relativamente insignificante na linha central da teologia cristã, embora alguns especialistas na matéria suponham que possa haver alguma coisa dessa idéia na distinção que Calvino faz entre Igreja "visível" e Igreja
"invisível". No entanto, como já observamos, essa distinção pode ser interpretada de uma maneira melhor sob o aspecto escatológico. 3. Abordagem escatológica. No pensamento escatológico, a desunião atual da Igreja será abolida no último dia. A situação atual é passageira e será concluída no dia do juízo. Esse modo de ver baseiase na distinção que Calvino faz entre Igreja "visível" e Igreja "invisível" como se considerou acima. 4. Abordagem biológica. Essa abordagem compara a evolução histórica da Igreja com o desenvolvimento dos galhos de uma árvore. Essa imagem, desenvolvida pelo escritor pietis ta alemão do século XVIII Nicolau von Zinzendorf (17001760), retomada com entusiasmo pelos escritores anglicanos do século XIX, supõe que as diferentes Igrejas empíricas, por exemplo a Igreja Católica, a Igreja Ortodoxa e a Igreja Anglicana, possam ser vistas com o possuindo uma unidade orgânica, apesar das diferenças institucionais. Nos últimos anos, muitos teólogos interessados no ecumenismo (palavra originada do grego oecumene, "o universo habitado", e hoje entendida de um modo geral como "movimento em busca da unidade cristã") têm afirmado que é preciso resgatar hoje, após séculos de distorções, o verdadeiro fundamento da "unidade da Igreja". A máxima ubi Christus, ibi ecclesia (a Igreja está onde Cristo se encontra), atribuída a Inácio de Antioquia (entre aproximadamente 50 e cerca de 107), aplicase à Igreja que está em Cristo, antes que em qualquer fator histórico ou cultural. Esses teólogos afirmam que em todo o Novo Testamento a diversidade das Igrejas locais não é vista como algo que com prom ete a unidade da Igreja. A Igreja já possui unidade graças a sua vocação comum em Deus que se manifesta em diferentes comunidades de diferentes culturas e situações. Seguese, portanto, que a "unidade" não deve ser entendida sociologicamente nem organizacionalmente, mas sim teologicamente. Hans
A Igreja
Küng (nascido em 1928) insiste nessa característica em seu estudo magistral intitulado A Igreja. A u n i d a d e d a Ig r e j a é u m a e n t id a d e e s p ir i tu a l. É o ú n i c o e o m e s m o D e u s
que reúne, de todos os lugares e de todos os tempos, aqueles que estão d is p e r s o s p a r a le v á- lo s a c o n s t i t u ir o ú n i c o p o v o d e D e u s . É o ú n i c o e o mesmo Cristo que ensinou sua palavra e o único e o mesmo Espírito que reúne todos no mesmo vínculo da sociedade do mesmo corpo de Cristo [ . .. ] . A Ig r e j a e u n a e , po r t a n t o , deve ser úni c a .
A idéia que Küng acentua é a de que a unidade da Igreja está fundamentada na obra salvífica de Deus em Cristo. Não se trata de uma Igreja incompatível com a Igreja que se adapta às condições culturais locais, que levam à formação das Igrejas locais. Küng explica: A u n i d a d e d a Ig r e ja pr e s s up õe a m u l t ip l i c i d a d e das Igrejas ,- as v ár ia s Ig r e ja s não precisam negar suas origens ou situações específicas,- sua linguagem, s ua h is t ó r i a , s e us c o s t um e s e t r a d iç õe s , s e u m o d o d e v i v e r e d e p e ns a r , s u a estrutura pessoal apresentarão diferenças fundamentais, e ninguém tem o d i r e i t o d e r e t ir a r d e la s e ss as e s tr ut ur a s . U m a m e s m a c o i s a n ã o é c o n v e n ie n t e pa r a to d o m u n d o , t o d o o te m p o , e m t o d o l u g a r
A discussão da universalidade da Igreja muitas veze s focaliza a idéia da "catolicidade", que requer uma explicação mais detalhada. A CATOLICIDADE DA ICREJA
Nas línguas modernas européias, o termo "católico" confundese muitas vezes, e de modo especial nos círculos nãoreligiosos, com a Igreja "Católica Romana", ou seja, o ramo do cristianismo que aceita a autoridade do papa e põe ênfase especial na continuidade histórica e institucional entre a Igreja do tempo presente e a Igreja da época dos apóstolos. Embora essa confusão seja compreensível, devese afirmar que não só os católicos romanos é que são católicos, da mesma forma que não somente os escritores ortodoxos orientais é que são ortodoxos em sua teologia. Na verdade, muitas
Igrejas protestantes, ao se ver um tanto embaraçadas pelo uso do ter mo "católica" em sua profis são de fé, subs tituíra m esse term o pela palavra "universal", não menos contenciosa, argumen tando que o adjetivo "universal" torna mais inteligível a crenç a em uma "Igreja universal e apostólica". O t e r m o "c a t ól ic o " v e m d o g r e g o kath'hoíou ("re lativo a o todo "). D o g r e g o a p a l a v r a p a s s o u p a r a o l a t i m c o m o catholicus c o m s e n t i do de "universal ou geral". Este significado da palavra é mantido na expressão inglesa catholic taste (que significa gosto abrangente e não gosto pelas coisas que são da Igreja Católica). Muitas versões mais antig as e algumas atuais da B íblia muitas v ezes referem- se a algumas ca r ta s d o N o v o T e s t a m e nt o ( c o m o as ca rta s de T ia g o e J o ã o ) c o m o "epístolas católicas", para significar que eram dirigidas aos cristãos em geral, diferentemente das epístolas de Paulo, dirigidas à neces sidade e às situações de Igrejas particulares, como a Igreja de Roma ou a Igreja de Corinto. O s e n ti do d e s d o b r a d o da p a la v r a p o d e s er n o t a d o m a is c l a r a me nte, talve z, nos escritos catequéticos de C ir ilo de Je rusa lém (entre a p r o x i m a d a m e n t e 315 e 386), no s éculo IV . N a co nfe rência catequética X V III, C irilo apresenta v ários s entidos da palav ra "católico": A Ig r e ja é a s s im c h a m a d a "c a t ólic a " p o r q u e s e e x p a n d i u p o r t o d o o u n i verso habitado, de uma a outra extremidade da terra, e também por ensi n a r a d o u t r i n a e m s u a t o t a l i d a d e (katholikos) e s e m d e i x a r n a d a d e f o r a d e t o d a a d o u t r i n a q ue o p o v o p r e c is a c o n h e c e r c o m r e l a ç ão à s c o is a s v i s ív e i s e invisíveis, seja no céu, seja na terra. E chamada também "católica" por que traz à obediência todo tipo de pessoas, governantes ou governados, i n s t r u íd o s e il e t r a d o s . E n f i m , a Ig r e j a o f e r e c e u m r e m é d i o d e c u r a u n iv e r s a l (katholikos) p a r a t o d o t i p o d e p e c a d o .
Como se pode entender, Cirilo usa o termo "católico " em qua tro acepções, que merecem ser explicadas. 1. C a t ó l ic o s i g n if ic a "p r o p a g a d o po r t o d o o m u n d o h a b i t a do". A qui C ir ilo observ a o se ntido g eog ráfico da palavra.
A n o ç ão de "ple nitude " o u "univ e r s a lida de " é e nte ndida , neste caso, como ordem de propagação da Igreja por todas as regiões do mundo. 2.
C a tólico s ignifica "sem ex cluir nada". C o m essa ex pres são, Cirilo exprime a "catolicidade" da Igreja que envolve a proclamação e a explicação completa da fé cristã. É um convite para considerar a totalidade da pregação e do en sinamento do Evangelho.
3. Católico significa que a Igreja estende sua missão e seu ministério a "todo tipo de pessoas". Aqui Cirilo aborda um tema essencialmente sociológico. O Evangelho e a Igreja são destinados a todo tipo de seres humanos, independentemente de raça, gênero ou condição social. Podemos ver aqui um eco claro da famosa afirmação de Paulo de que "não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois to do s vós sois um só em C risto Jesus" (G1 3,28). 4. Cató lico significa que a Igreja oferece e proclam a "um remédio universal e cura para todo tipo de pecado". Aqui Cirilo faz uma afirmação soteriológica: o Evangelho e a Igreja que proclama o Evangelho podem atender a todo tipo de necessidad es e dificuldades humanas. A Igreja pode oferecer um antídoto a todo tipo de pecado. Os vários significados do termo "católico" também são ex po s t o s c o m c la r e z a p o r T o m ás d e A q u i n o a o tr a t ar d o C r e d o d os A pós to lo s a r e s pe ito da do utr ina da Ig r eja. E m sua anális e , T omás de A q u in o dis ting ue três as pe ctos ess enc ia is da idéia de "c a to lic ida de ". A Ig r e ja é c a t ól ic a , is to é, un iv e r s a l, p r im e ir a m e n t e c o m r e s pe it o a o lug a r , p o r q u e s e e n c o n t r a e m t o d o o m u n d o (per totum mundum), c o n t r a r i a m e n t e ao que ensinam os donatistas. Está escrito em Romanos 1,8: "No mundo i n t e i r o s e f a z o e l o g i o d a v o s s a fé",- M a r c o s 1 6 , 1 5 : "I de p e l o m u n d o i n t e i r o e a n u n c i a i a B o a - n o v a a t o d a c r ia t ur a " [ . .. ] . E m s e g u n d o l ug a r , a Ig r e j a é un iv e r s a l c o m r e s p e it o à c o n d i ç ão d o p o v o , p o r q u e n i n g u é m é r e j e it a do , seja senhor ou servo, homem ou mulher. Lê-se em Gálatas 3,28: "Não se
distingue entre homem ou mulher". Em terceiro lugar é universal com respeito ao tempo. Alguns afirmam que a Igreja deve durar até um certo tempo, mas isto é falso, porque essa Igreja teve início desde o tempo de Abel e durará até o fim do mundo. Texto de Mateus 28,20; "Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos". E, após o término do tempo, a Igreja permanecerá no céu.
Convém observar que aqui se entende a catolicidade como universalidade geográfica, antropológica e cronológica.
A Ig r e j a :
santa o u simplesmente humana
?
Um dos debates mais interessantes sobre a doutrina da Igreja é o que indaga se seus membros são obrigados a ser santos. O debate aparece com máxima intensidade na controvérsia donatista, surgida no século IV, indagando se os chefes da Igreja eram obrigados a ser moralmente puros. N a épo ca do imperador romano D iocleciano (284313), a Igreja cristã estava sujeita a vários graus de perseguição. A perseguição de Diocleciano iniciouse por volta de ano 303 e terminou com a conversão do imperador Constantino e a proclamação do Edito de Milão, em 313. Por um decreto de fevereiro de 303, os livros cristãos eram queimados e as igrejas demolidas. Os chefes cristãos que entregavam seus livros para ser queimados eram conhecidos como traditores, isto é, que entregavam (os livros). A palavra moderna "traidor" deriva da mesma raiz. Um traditor foi Félix de Aptunga, que posteriormente consagrou Ceciliano bispo da grande cidade de Cartago no norte da África, em 311. Muitos cristãos locais sentiramse ultrajados ao saber que tal pessoa fora consagrada bispo e, assim, recusaramse a aceitar a autoridade de Ceciliano. A autoridade do novo bispo foi comprometida, como afirmavam, visto que o bispo que o consagrou tinha cedido à pressão da perseguição. Essa situação chegou a manchar a hierarquia da Igreja Católica. A Igreja devia ser pura e não poderia admitir tais pessoas. N a ocasião em que Agostinho (destinado a ser a figura central na controvérsia) regressou de Roma para o Norte da África, em 388,
um grupo dissidente tinha se estabelecido como grupo cristão princi pal naquela região, com forte apoio da população africana local. Os donatistas acreditavam que todo o sistema sacramental da Igreja Católica tinha sido corrompido por causa da fraqueza e da queda de seus chefes. Como é que os sacramentos poderiam ser administrados validamente por pessoas que estavam assim mancha das? Era necessário substituir essas pessoas por chefes mais aceitá veis, que tinham permanecido firmes na fé durante a perseguição. Era necessário também rebatizar e reordenar todos os que tinham sido batizados e ordenados por aqueles que tinham caído. Inevi t a v e lm e n t e , f o rm ou- s e um a f a c ç ão s e pa r atis t a. Q u a n d o A g o s t i nh o regressou à África, essa facção era maior que a Igreja da qual havia se afastado. A g o s tinho r e s po nde u e x po ndo um a te or ia da Ig r eja que, a seu v er , e s ta v a m a is f i r m e m e n t e f u n d a m e n t a d a n o N o v o T e s t a m e n t o que o e n s i n a m e n t o de D o n a t o . D e m o d o pa r tic ula r , A g o s t i nh o r e a lça v a a condição de pecado dos cristãos. A Igreja não deve ser entendida como um "corpo puro", uma sociedade de santos, mas como um "corpo misto" (corpus permixtum) de s a nt os e pe c a do r e s . A g o s t i n ho e n c o n tra esta imagem em duas parábolas bíblicas: a parábola da rede que apanha muitos peixes e a parábola do joio e do trig o. E esta última p a r á b o l a ( M t 13,2431) que tem importância especial e precisa ser ex posta mais de talhadame nte. A par ábola descreve o ag ricultor que, depois de s emear sua lav oura, des cobriu que junt o co m o trig o tinha n a s c i do t a m b é m o j o i o . O que f a z er ? A t e n t a t iv a de s e pa r ar o tr i g o do joio enquanto os dois estivessem crescendo seria um estrago, visto que, ao se tentar capinar o joio, também se p erderia o trigo. Por ém, na hor a da colheita, todas as plantas, tr igo ou jo io, seriam ceifadas e separadas, de modo que se poderia evitar perder o trigo. A s e par ação do be m e do m a l ocor r e , dessa m a ne ir a , no f im do s tempos e não na história. Para A g os tinho, essa parábola refere- se à Ig reja no m undo , onde vivem tanto os santos como os pecadores. Tenta r a separação neste m undo é coisa pre matura e impr ópria. A separação será feita
n o t e m p o p r ó p r i o d e D e u s , n o f ina l d a hi s t ór i a . N e n h u m s er h u m a n o p o d e f a z e r o j u lg a m e n t o o u a s e pa r a ção e m lu g a r de D e u s . Diante dessa narrativa, em que sentido a Igreja é santa? Para A g o s t inho , a s a ntida de e m que s tão não é a s a ntida de dos m e m br o s , mas a de C risto. A Ig reja não pode ser uma co ng re g ação de santos neste mundo porque seus membros estão contaminados pelo peca do or iginal. N o enta nto, a Ig reja é santificada e torna- se santa por Cristo, conforme uma santidade que será aperfeiçoad a e alcançada f i na l m e n t e n o j u í z o f ina l. A l é m de s t a a nál is e t e o l óg i c a , A g o s t i n h o faz a observação prática de que os donatistas não conseguiam su perar seus próprios altos padrões de mo ra lidade. A g os tinho faz ver que os donatistas, do mesmo modo que os católicos, não estavam livres da pos s ibilidade de embriagar- se o u de a g re dir as pessoas. A pe s a r de tudo , a v is ão do na tis ta de um "c o r po pur o" pe r m a nece como uma visão atraente para muitos. Como acontece muitas vezes em debates teológicos, a prova nunca está tot almente de um lado só da arg umentação. A idéia da Igreja co m o "corpo puro" s ub siste especialmente em denominações que atribuem su a identida de à ala radical da Reforma protestante, muitas vez es chamada de "anabatismo". A Re for ma ra dical conc ebia a Ig reja co m o "sociedade alternativ a" no c entro da cultura européia do s éculo X V I.
Para o autor protestante radical e líder eclesiástico Menno Simmons (14921559), a Igreja era "uma assembléia de justos", em oposição ao mundo, e não um "corpo misto", como afirma Agostinho: Na verdade, aqueles que meramente se gloriam de seu nome não são a verdadeira congregação de Cristo. A verdadeira congregação de Cristo é composta por aqueles que já estão verdadeiramente convertidos, que nasceram do alto, que possuem uma mente regenerada pela ação do Espírito Santo por terem ouvido a Palavra de Deus e por terem se tornado filhos de Deus.
N o ta - s e c o m c la r e z a q ue e x is t e m pa r a le l os m u i t o a c e n tu a do s com a opinião donatista da Igreja como corpo santo e puro, isola do das influências corruptoras do mundo e preparado para manter
sua pureza e sua distinção por quaisquer meios disciplinares que forem necessários. O anabatismo mantinha a disciplina nas comunidades por meio do "interdito", um meio pelo qual os membros da Igreja podiam ser excluídos das congregações anabatistas. Esse instrumento disciplinar era visto com o indispensável para a identidade da verd adeira Igreja. Em parte, o motivo pelo qual os anabatistas se separaram das Igrejas principais (prática que continua até os dias de hoje entre o grupo Amish, do condado de Lancaster, na Pensilvânia) foi a incapacidade daquelas Igrejas de manter a disciplina própria dentro de suas fileiras. A Confissão Schleitheim (1529) fixou sua doutrina do "interdito" nas palavras de Cristo registradas no evangelho de Mateus 18,1520: O interdito será usado contra todos os que se entregaram ao Senhor para caminhar de acordo com seus mandamentos e contra todos os que forem batizados no único corpo de Cristo, chamados irmãos ou irmãs, e que, contudo, às vezes caem e inadvertidamente abraçam o erro e o pecado. Essa gente será admoestada duas vezes em particular, e na terceira vez será submetida à disciplina pública ou sofrerá o interdito de acordo com a ordem de Cristo (Mateus 18).
O "interdito" era visto não só como intimidação, mas também como corretivo em seus efeitos, oferecendo, ao mesmo tempo, incentivo aos indivíduos punidos com interdito para corrigirem sua maneira de viver e como desestímulo a outros, quando quisessem imitar os que tinham caído em pecado. O Catecismo Racoviano Polonês (1605) dá cinco motivos para manter rigorosa disciplina nas comunidades anabatistas, refletindo quase sempre o critério de separação radical: 1. Para que o membro dec aído da Igreja po ssa ser curado e reintegrado na sociedade eclesiástica. 2. Dissuadir outros de com eter a mesma ofensa. 3. Eliminar o escândalo e a desordem do seio da Igreja.
4. Impedir que a palavra do Senhor caia na difam ação fora da congregação. 5. Impedir que a glória do Senhor seja profanada. Apesar das intenções pastorais, o "interdito" muitas vezes era interpretado com excesso de severidade, com os membros da con gregação muitas vezes evitando todo contato social (como "fuga") tanto com as pessoas punidas com o interdito como com sua família. Outros autores mostram como o termo "santo" é muitas vezes igualado à noção de "moralidade", "santidade" ou "pureza", que muitas vezes parece ser uma noção muito pouco relacionada com o comportamento dos seres humanos decaídos. No entanto, o termo hebraico haâaâ, que traduz o conceito de "santidade" no Novo Testamento, tem um sentido um pouco diferente, equivalente a "estar separado" ou "estar reservado". Existem várias nuances de dedicação- , ser "santo" é estar separado e dedicado ao serviço de Deus. Um elemento fundamental, talvez o elemento fundamental da idéia do Antigo Testamento a respeito da santidade, é a idéia de "alguma coisa ou alguém que Deus reservou". O Novo Testamento limita a idéia quase totalmente à santidade pessoal, aplicando a idéia aos indivíduos e desvinculandoa de "lugares sagrados" ou "coisas sagradas". As pessoas são "santas" por serem dedicadas a Deus e são distinguidas do mundo pela vocação que recebem de Deus. Muitos teólogos sugeriram a existência da correlação entre a idéia de "Igre ja" (no sentido do termo grego que alude "aos que são chamados") e "santos" (isto é, aqueles que foram segregados do mundo em razão de terem sido chamados por Deus). Assim, falar da "santidade da Igreja" é falar principalmente da santidade daquele que chamou aquela Igreja e seus membros. A Igreja foi separada do mundo para dar testemunho da graça e da salvação de Deus. Nesse sentido, existem nexos óbvios entre a Igreja que é "santa" e a Igreja que é "apostólica". O termo "santo" é teológico e não moral em suas conotações, afirmando a vocação da Igreja e de seus membros, assim como a esperança de que um dia a Igreja compartilhará a vida e a glória de Deus.
Portanto, se a Igreja não é definida pela santidade, qual é sua característica distintiva? Muitas respostas foram dadas a essa per gunta,- consideraremos uma delas a seguir. A Ig r e j a c o m o c o n s t i t u í d a p e l a P a l a v r a
D a ex posição que f izemos até aqui, entende- se co m clareza que os teólogos cristãos insistem no fato de que o termo "Igreja" deve ser definido teologicamente e não sociologicamente. "Crer na Ig reja" não é confiar na ins tituição da Ig reja, mas afirmar que a Ig reja é, em última análise, chamada ao ser por Deus, com a missão e a autorização que provêm de Deus. Um tema central da compreen são protestante da natureza e da missão da Igreja é o que focaliza a presença de Cristo decorrente da proclamação de sua palavra na pregação e nos sacramentos. Para Martinho Lutero, a Igreja é a co munidade chamada ao ser pela pregação da Palavra de Deus: A s s im , e m q u a lq u e r lu g a r q ue o uv is [ a P a la v r a de D e us ] p r e g a d a , p r o f e s s a d a , c o n f e s s a d a e a t u a d a , n ã o r e s t a d ú v i d a de q u e a v e r d a d e i r a I g r e j a C a tólica, "o povo cristão santo", deve estar ali, mesmo que seja um pequeno g r u p o d e pe s s oa s . A p a la v r a d e D e u s "n ã o v o l t a r á v a z i a " (Is a ía s 5 5 , 1 1 ) , m a s d e v e p o s s u ir p e l o m e n o s u m a q ua r t a pa r t e o u u m a p a r te d o c a m p o . E, ainda que não houvesse nenhum outro sinal a não ser só este, este sinal seria suficiente para provar que um povo cristão santo deve existir ali, por q ue a p a la v r a d e D e u s n ã o p o d e e s ta r s e m o p o v o d e D e u s e , a o c o n t r á r i o , o p o v o d e D e u s n ã o p o d e e s t ar s e m a p a la v r a d e D e u s . Q u e m pr e g a r i a a p a la v r a o u o u v i r ia a p r e g a ç ã o d a p a la v r a s e n ã o h o uv e s s e u m p o v o d e Deus? Em que o povo de Deus creria ou poderia crer se não houvesse a p a la v r a d e D e u s ?
A s s im , L ute r o c o n c lui que o m in is t é r io o r d e n a d o s e g undo o regime episcopal não é necessário para salvaguardar a existência da Igreja, mas a pregação do Evangelho é indispensável à iden tidade da Igreja. "Onde estiver a palavra ali estará a fé, e onde e s t i v e r a f é a li e s t a r á a v e r d a d e i r a Ig r e j a ." A Ig r e j a v i s ív e l é f o r
mada pela pregação da palavra de Deus: nenhuma assembléia humana pode alegar que é a "Igreja de Deus" se não está fundada no Evangelho. É mais importante pregar o mesmo Evangelho que os apóstolos do que ser membro de uma instituição historicamente originada deles. João Calvino tomou um rumo semelhante, realçando sempre a importância da proclamação da Palavra de Deus como elemento definitivo da identidade da Igreja: Sempre que vemos a Palavra de Deus puramente pregada e ouvida e os sacramentos administrados de acordo com a instituição de Cristo, não se duvida, de maneira alguma, que a Igreja de Deus existe. É que a promessa dele não po de falhar: "Sempre que dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estarei no meio deles" (Mateus 18,20) [...]. Se o ministério tem a Palavra e a venera, se possui a administração dos sacramentos, merece indubitavelmente ser con siderado Igreja.
Para Calvino, a pregação da palavra e a administração correta dos sacram entos estão ligada s à presença de C risto, e onde quer que Cristo esteja ali também se encontra a Igreja. O tema continuou a ter suma importância no século XX, principalmente nos escritos de Karl Barth. Para ele, a Igreja é a comunidade que nasce em resposta à proclamação da palavra de Deus. A Igreja é vista como uma comunidade que proclama as boasnovas daquilo que Deus fez pela humanidade em Cristo e que nasce sempre que a palavra de Deus é proclamada fielmente e aceita. Como Karl Barth expõe em seu discurso de 1948 ao Conselho Mundial das Igrejas, a Igreja é constituída pela "congregação {congregatio) de todos os fiéis (fidelium), (homens e mulheres) que o Senhor Jesus Cristo vivente escolhe e chama para ser testemunhas da vitória que ele já conquistou e para ser arautos de sua futura manifestação". A eclesiologia de Barth é absolutamente trinitária neste ponto, envolvendo o Pai, o Filho e o Espírito em uma compreensão dinâmica da natureza da Igreja. Para Barth, a Igreja não é uma ex-
tensão de Cristo, mas é unida a Cristo, chamada e e ncarregada por ele de servir ao mundo. Cristo está presente na Igr eja por meio do Espírito Santo. O pa p e l do E s p ír i to S a n t o é de p a r t ic u la r i m p o r t â n c ia . E m bora não seja correto afirmar que Barth possui uma compreensão "carismática" da Igreja, sua teoria cristológica da identidade da Igre ja a tr ibui um pa pe l de f inido e dis tintiv o ao E s pír ito S a nto , que ele resume como segue em sua obra Eshoço de Dogmática- . Credo ecclesiam ["Creio
na igreja"] significa que creio que aqui, neste lugar, nesta assembléia, se realiza a obra do Espírito Santo. Com isto não se pretende uma deificação da criatura, a Igreja não é o objeto da fé, não acreditamos na Igreja, acreditamos que nesta congregação a obra do Espírito Santo se torna um acontecimento.
A s s im , a Ig r e ja é v is ta c o m o a c o n t e c im e n t o e n ão c o m o in s tituição. Barth não identifica o Espírito Santo com a Igreja nem limita a operação do Espírito aos quadros institucionais da Igreja. E le a r g u m e n t a q ue o E s p ír i t o d á p o d e r e r e n o v a a Ig r e j a , u n in d o - a com a obra redentora de Cristo na cruz, como o instrumento p e l o q ua l C r i s t o r e s s u s c i ta d o t or na - s e p r e s e n t e e n tr e o p o v o de Deus. Desta forma, o Espírito protege a Igreja para não cair nos modos puramente seculares de entender a identidade e a missão da Igreja. Para muitos teólog os protestantes, o conceito- chave de "apostolicidade" significa conformidade com o ensinamento dos apóstolos ou, em outras palavras, manutenção da continuidade doutrin ária com os apóstolos pela fundamentação da crença e da prática da Escritura. Outros teólogos, contudo, insistirão em outros elementos. Muitos teólogos católicos, por exemplo, ensinam que a continuidade institu cional é i n d i s p e n s á v e l à i d e n t i d a d e d a I g r e j a . A l g u m a s v o z e s p r o testantes mais radicais, especialmente entre os anabatistas, afirmam que seria indispensável incluir a disciplina em qualquer definição de Igreja. Do contrário, como seria possível manter a pureza e a distin ção da Igreja?
C o r p o p u r o o u m is t o : q u a l a d i f e r e n ç a ?
No início deste capítulo, examinamos dois modos um tanto diferentes de entender a Igreja observável ou "empírica". Um desses modos afirma que a Igreja é um "corpo misto" de santos e pecadores, outro modo de ver afirma que a Igreja é (ou deveria ser) um corpo puro. Que diferença existe aqui para o ministério? Qual é o impacto que a teologia causa na prática? Devemos examinar brevemente alguns pontos. A eclesiologia do corpo puro supõe que os membros da Igreja são puros não só no âmbito da doutrina, mas também na esfera da moral. Portanto, a Igreja assim pura pode supor um nível bastante elevado de comprometimento por parte de seus membros. O evangelismo é algo que os membros da Igreja praticam fora da Igreja. A preg ação é primariamente um aprofundamento d os co nhecimentos da fé e estímulo para as responsabilidades sociais e pessoais das pessoas como crentes. Pelo mesmo motivo, essas formas de eclesiologia muitas vezes priorizam a disciplina. Se a Igreja é definida pela pureza doutrinária e moral, devem existir elementos para impor essa pureza, visto que, do contrário, a existência e a integridade da Igre ja são postas em questão. Anteriorm ente, observamos o "interdito" como instrumento de garantir a disciplina, pode haver, naturalmente, outros meios. A eclesiologia baseada no corpo misto deve supor um comprometimento bem menor da parte dos membros. O evangelismo é, então, alguma coisa que deve ser feita dentro da própria congregação. A pregação poderá tomar a forma do estímulo dos membros da congregação quanto às suas responsabilidades sociais como crentes, a pregação também deve, no entanto, ter em conta que alguns membros não serão convertidos. Correspondentemente, um grau menor de comprometimento pode ser esperado da congregação como um todo, embora muitos membros individuais devam manter um sério compromisso com a fé. Visto que essa forma de eclesiologia não exige pureza moral ou doutrinária por parte dos mem bros, não há necessidade de instrumentos para impor essa obrigação na congregação.
A Igreja
A maior parte das Igrejas que adotam essa forma de eclesiologia exige tal pureza de seus ministros, mas não de seus membros. O MINISTÉRIO NA I g REJA: O CONCÍLIO V a TICANO II
O que dizer do ministério na Igreja? Que meio de defesa teológica pode ser apresentado à existência de uma ordem sacerdotal distinta dentro da Igreja? E como é que essa situação se relaciona com todo o laicato? Na Igreja medieval do Ocidente se desenvolveu um modelo hierárquico de ministério que punha ênfase especial no sacerdote como alter Christus (outro Cristo), cuja missão era representar Cristo perante o povo de Deus, especialmente pela administração dos sacramentos. Reconheciase uma nítida distinção entre o "sagrado" e o "secular". Ao ser ordenado, o sacerdote passava a ser distinguido dos fiéis leigos por um "caráter indelével" atribuído em virtude do sacramento da Ordem. Essa visão foi questionada pelo movimento da Reforma, que procurou abolir a distinção entre o sagrado e o secular. (Alguns historiadores são de parecer que o protestantismo primitivo elimina o sagrado, mas talvez seja mais exato dizer que o movimento sacraliza o secular.) O que se negava era a distinção fundamental entre o sacerdócio ordenado pelo sacramento e o sacerdócio universal dos leigos. Além disso, o aspecto cúltico do sacerdócio era substituído por uma nova ênfase dada ao sacerdote com o encarregado do m inistério da palavra. A rejeição protestante da estrutura hierárquica do sacerdócio e da jurisdição dele decorrente levou o protestantismo a afirmar que seus ministros deveriam ser eleitos pela comunidade eclesiástica. Martinho Lutero afirmava a abolição de toda distinção entre o sacerdócio ordenado pelo sacramento da Ordem e o sacerdócio universal dos leigos. Todo membro fiel da Igreja, afirma Lutero, participa do sacerdócio social do povo de Deus em virtude do Batismo. Todo fiel é um sacerdote, mas nem todo fiel é chamado a exercer o "ofício e o trabalho" de um sacerdote. Para Lutero, o clero ordenado era
essencialmente detentor de ofício na comunidade, para o qual podia ser eleito e do qual podia ser destituído pela congregação local. O Concilio de Trento reagiu reafirmando a natureza hierárquica dos ofícios dentro da Igreja, e insistia que esses ofícios eram dotados de jurisdição espiritual específica. Reagindo à negação protestante do "caráter sacerdotal" conferido ao indivíduo no sacramento da Ordem, o Concilio de Trento reafirmou o nexo entre a autoridade sacerdotal e o papel do sacerdote como alter Christus ao oferecer o sacrifício da Missa. A celebração da Missa era vista, assim, como o elementochave da distinção do papel e da identidade do sacerdote, entendendose a Igreja primariamente com o estrutura hierárquica com autoridade de governo. O modelo acima foi reforçado pelo Concilio Vaticano I, que insistiu que a Igreja de Cristo não é uma comunidade de membros iguais, em que todos os fiéis gozam dos mesmos direitos. Na visão do Vaticano I, a Igreja é uma sociedade composta de membros desiguais, a saber, clérigos e leigos. Essa distinção costumava ser definida pelas expressões ecclesia docens (a "Igreja docente", isto é, a hierarquia) e ecclesia discens (a "Igreja discente", isto é, os leigos), com o dever de obedecer à hierarquia. Em meados do século XX, muitos teó logo s católicos julgaram ser necessário rever essa doutrina. Yves Congar (19041995) e outros lançaram as bases para a reabilitação da teologia do laicato, que, em sua opinião, tinha sido m arginalizado nos m odelos institucionais tradicionais da Igreja. (Certa vez, Congar fez a seguinte pergunta: "Qual é a posição do laicato na Igreja?" Eis a resposta: Os leigos se ajoelham diante do altar, tomam assento sob o púlpito e põem a mão na carteira.) Profeticamente, como se comprovou, Congar declarou que a renovação ou o desenvolvimento de uma teologia do laicato levaria a muito mais do que alguns poucos ajustes de opiniões ec lesiológicas — levaria a uma reorientação de toda uma visão daquilo que significava ser uma Igreja cristã. O Concilio Vaticano II reexaminou a questão e abriu o caminho para uma discussão teológica de vastas proporções e criativida
de sobre a relação entre sacerdotes e leigos. O documento conciliar conhecido como Constituição dogmática sobre a Igreja, identificado também como Lumen cjentium, as palavras iniciais do texto em latim, reafirma o relacionamento fundamental entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum ou universal do laicato. A Igreja recebeu de Jesu s C risto uma única missão, confiada a tod os o s membros do povo de Deus e não apenas aos membros distinguidos pelas ordens sacras. A Lumen gentium afirma que os leigos participam do sacerdócio de Cristo, de modo que todos são chamados a oferecer a Deus um sacrifício espiritual, dando testemunho de Cristo em face do mundo e construindo a Igreja, cada um conforme sua própria vocação. A missão da Igreja se estende a todos os povos, em todos os tempos. Para cumprir essa ordem. Deus estabeleceu um sacerdócio — o sacerdócio de Cristo — no qual todo s os membros do povo de Deus tomam parte, muito embora de maneiras distintas. Deus quis também que houvesse um sacerdócio ministerial para servir a toda a comunidade dos fiéis. A finalidade primária desse sacerdócio consiste em ativar e habilitar o sacerdócio de todos os batizados. Ao mesmo tempo em que afirma a natureza distinta e a legitimidade teológica do sacerdócio ministerial, o Concílio Vaticano II insiste que esse sacerdócio ministerial destinase a servir ao povo de Deus em sua totalidade. Sob certos aspectos, o Vaticano II faz ecoar alguns temas relacionados com a Reforma. O Concílio afirma que o laicato, em virtude do Batismo, participa a seu próprio modo do tríplice ofício de sacerdote, profeta e rei, próprio de Cristo. Conseqüentemente, os leigos participam da missão da Igreja, especialmente de um modo específico de sua vocação secular e de sua capacidade de se ocupar de assuntos temporais. "Eles são chamados de maneira especial para tornar a Igreja presente e atuante onde somente por meio deles a Igreja pode vir a ser o sal da terra." Essa nova visão levou ao reexame da história do sacerdócio. Para o autor católico belga Edward Schillebeeckx (nascido em
1914), as origens do sacerdócio cristão encontramse na dinâmica social das comunidades cristãs primitivas. Esse ministério adquiriu gradualmente uma dimensão cúltica que, subseqüentemente, veio a se tornar sua dimensão característica. No entanto, tratase aqui, como afirma Schillebeeckx, de uma eventualidade histórica que não precisa ser vista como obrigatória para a Igreja. As necessidades sacramentais da comunidade podem, em certas circunstâncias, habilitar um membro da Igreja designado, mas não distinguido com ordens sacras, a celebrar a Eucaristia. A posição de Schillebeeckx suscitou controvérsia no catolicismo, inclusive pelo fato de implicar a perda do sentido claro da identidade sacerdotal. Alguns afirmam que as dificuldades de nossos dias para recrutar candidatos ao sacerdócio católico no mundo ocidental devemse, ao menos em parte, a que o sacerdócio não mostra com a devida clareza ou não exige funções distintas das que podem ser exercidas pelos leigos. O debate prosseguirá, como continuarão outros, relacionados com o papel dos ministros no seio da Igreja. Os debates que envolvem a extensão do ministério sacerdotal ou episcopal a mulheres despertam questões semelhantes. Convém dizer que muitos desses debates reduzemse a uma única questão teológica, ainda que nada simples, que pode ser formulada da seguinte maneira; Em que sentido o sacerdote é diferente do cristão comum?. A resposta que for dada a essa pergunta determinará também a resposta a muitos dos problemas levantados nessa área tão preocupante. En t r o s a m e n t o c o m o t e x t o
Uma forma de entender a Igreja consiste em vêla como a esfera do amor transformador de Deus pela humanidade. Alguns teólog os afirmam que a Igreja poderia ser vista com o um jardim cercado de muros e não como o horto original do Éden, em que os crentes poderiam crescer na graça e na santidade, protegidos contra o mundo que os rodeava. Essa visão da Igreja cristã cria a noção de uma comunidade fechada e protegida, dentro da qual a fé, a esperança
e o amor podem florescer e onde os indivíduos podem viver em tranqüilidade entre si e com Deus. A Igreja é chamada e modelada fora da influência do mundo, mais ou menos como um horto considerado um recinto fechado dentro da mata virgem e que pode ser regado, cultivado e protegido. A Igreja é, assim, uma comunidade paradisíaca, em busca de recuperação dos valores do paraíso dentro do seu próprio perímetro. Esta idéia se encontra nos escritos de Efrém, o Sírio (falecido em 373), que afirmava regularmente que a Igreja não é meramente a porta do paraíso, de alguma forma o reino paradisíaco estava estabelecido dentro dos seus muros. Esta idéia se encontra também no hino do grande escritor inglês Isaac Watts (16741748). Embora mais conhecido pelo poema "When I survey the wondrous Cross", ele também escreveu um hino que trata da natureza da Igreja: Somos um jardim cercado de muralhas. Escolhido para ser um solo especial, Um modesto lote rodeado pela graça Na deserta vastidão do mundo. Como plantas de mirra e fragrância, Aqui estamos plantados pela mão de Deus Pai, E todas as suas fontes brotam em Sião, Para fazer crescer a tenra plantação. Desperta, vento celestial, e vem Soprar neste jardim perfumado, Espírito divino, desce e vem Soprar o vento da graça nas plantas deste horto'. 1. We are a garden walled around,/Chosen and made peculiar ground,/A little spot enclosed by grace/Out of the world's wide wilderness.//Like trees of myrrh and spice we stand,/Planted by God the Father's hand,/And all his springs in Zion flow,/To make the young plantation grow.//Awake, O, heavenly windl and come,/Blow on this garden of perfume/Spirit divine! descend and breathe/A gracious gale on plants beneath.
As imagens provêm de Agostinho de Hipona, que afirmava que no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento a Igreja é descrita como "um jardim fechado, minha irmã e noiva, uma fonte selada, um poço de água viva, um pomar de fruto escolhido" (Ct 4,1213). Watts desdobra essas imagens. As questões formuladas a seguir podem ajudar a interagir com o texto.
No primeiro verso, Watts usa a expressão "solo especial". O que será que ele quer dizer com isso? O que significa "especial"? De que maneira o texto de Watts ajuda a identificar o que é distintivo a respeito da Igreja?
Observese o uso da imagem da deserta vastidão do mundo. A expressão era popular no tempo em que o poeta escreveu esses versos. A famosa obra de John Bunyan Pilgrim's Progress alude a uma viagem através da deserta vastidão do mundo. O que o leitor acha que Watts espera demonstrar ao estabelecer o contraste do jardim da Igreja com a deserta vastidão do mundo? Como esta imagem nos ajuda a entender seu modo de considerar a natureza e o ministério da Igreja?
Com o o leitor acha que a imagem do jardim ajuda Watts a desdobrar a idéia de que a Igreja é um lugar de crescimento e desenvolvimento espiritual? Ele vê esse processo como alguma coisa que conseguimos ou como alguma coisa que se torna possível sendo guiada por Deus? Qual é o significado da referência ao vento do céu no verso final?
Capítulo
Os sacramentos
o termo "sacramento" é amplamente em pregado no cristianismo para identificar certos ritos ou cerimônias eclesiásticas que possuem significado especial. Em sua essência, o sacramento é um sinal externo e visível de uma graça interior e espiritual. As Igrejas Católica e Ortodoxa Oriental reconhecem sete sacramentos: Batismo, Eucaristia, Confirmação (ou Crisma), Confissão, Unção dos Enfermos, Matrimônio e Ordem. Os protestantes só reconhecem o Batismo e a Eucaristia como sacramentos instituídos por Cristo. Não existe um acordo generalizado no cristianismo sobre a melhor maneira de entender o sacramento relacionado com o pão e o vinho, de acordo com o mandamento de Cristo na Ultima Ceia. Nas obras teológicas encontramse comumente as seguintes referências: •
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Eucaristia. Este termo era muito emp regad o no cristianismo
primitivo, que usava o idioma grego, de onde passou para o cristianismo ocidental, onde foi bemaceito. O sentido fundamental da palavra eucaristia em grego é o de "ação de graças". Missa. Essa palavra surgiu na Igreja ocidental de língua latina, no século 111. O sentido original da palavra é "despe
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dida", isto é, a despedida da congregação ao término da celebração. Pouco a pouco o nome aplicado a esse aspecto específico da celebração do culto passou a designar a celebração inteira. Santa Comunhão. Esse nome reflete a convicção cristã fundamental da comunhão, ou seja, "comum união" entre o fiel que recebe o sacramento e Cristo que se oferece no sacramento. Ceia do Senhor. Esse termo relacionase particularmente com o protestantismo e reflete a crença de que a finalidade fundamental desse sacramento consiste em recordar o momento central da vida de Cristo que precedeu imediatamente o processo de traição, prisão, condenação e crucifixão.
Foram inúmeros os debates de natureza teológica travados sobre os sacramentos, como passaremos a estudar neste capítulo: 1. 2. 3. 4. 5.
O
O que é um sacram ento? O sacram ento faz o quê? Q ue fator afeta a eficácia do sacramento? Podese justificar o Batismo de bebês? Se Cristo está presente na Eucaristia, como é essa presença?
QUE É O SACRAMENTO?
O Novo Testamento não emprega o termo específico sacra mento; a palavra grega que se usa é mysterion (traduzida naturalmente por "miste'rio"), que significa a obra salvífica de Deus em geral. A palavra grega não é empregada para significar o que hoje entendemos por sacramento (por exemplo, para aplicarse ao Batismo), mas é claro, pelo que sabemos da história da Igreja primitiva, que, no estágio primitivo, se estabelecia um nexo entre o mistério da obra salvífica de Deus em Cristo e os "sacramentos" do Batismo e da Eucaristia.
O termo latino sacramentum passou a ser amplamente empregado na Igreja do Ocidente desde os séculos III e IV. O teólogo romano Tertuliano, no século III, escreve que, no uso latino normal, a palavra sacramentum significava "juramento sagrado", significando o juramento de fidelidade e lealdade que se exigia dos soldados romanos. Tertuliano empregou esse termo paralelamente como meio de mostrar a importância dos sacramentos com relação ao compromisso e à lealdade dos cristãos na Igreja. O tema viria a adquirir importância fijndamental na teologia dos sacramentos do reformador suíço Huldrych Zwingli (14841531). Como definir os sacramentos? Agostinho de Hipona afirma que a nota característica da definição do sacram ento é que ele é sinal de realidades sagradas. "Sacramentos são sinais aplicados a coisas divinas." No entanto, esses sinais não são arbitrários, porque existe um certo nexo entre o próprio sinal e a coisa representada. "Se os sacramentos não tivessem alguma semelhança com as coisas que representam, não poderiam ser sacramentos." Por exemplo, o Batismo usa a água, que é sinal de limpeza ou purificação, referindose, assim, à limpeza e à purificação da alma humana por meio da graça de Cristo. As idéias de Agostinho desenvolveramse e consolidaramse na era medieval. Hugo de São Vítor dá a seguinte definição: "Sacramento é um elemento físico ou material apresentado aos sentidos externos, representando por semelhança e significando por forma de sua instituição e contendo por sua santificação uma graça invisível e espiritual". Essa definição constituiu uma importante evolução do pensamento de Agostinho, que era um pouco vago sobre que tipo de sinais definiam os sacramentos. A definição de Hugo de São Vítor tem quatro aspectos: 1. Um elem ento "físico ou material", com o a água do Batismo, o pão e o vinho da Eucaristia ou o óleo da Unção dos Enfermos. 2. U m a "semelhança" com a coisa significada de modo que possa significála. Assim, podese afirmar que a água do
Batismo tem semelhança com o poder puruficador da graça de Cristo, permitindo representar a graça nesse contexto. 3. Deve haver uma razão válida para crer que o sinal em questão é autorizado a representar a realidade espiritual a que se refere. 4. O sacram ento é, de certo m odo, cap az de conferir aos que o recebem os benefícios que significam. Mas havia um problema; a definição de Hugo de São Vítor excluía a Penitência ou Confissão como sacramento, uma vez que esse sacramento não continha nenhum elemento material. Ora, naquela época, a Penitência era considerada elemento integral do sistema sacramental da Igreja, de modo que a teoria e a prática pareciam estar em contradição. Era urgente encontrar uma solução para o problema. Quem a apresentou foi Pedro Lombardo (entre aproximadamente 1100 e 1160). Pedro Lombardo omitiu um aspecto vital da definição de H ugo de São Vítor para harmonizar a teoria com a prática. O que Pedro Lombardo fez foi suprimir a referência a "elemento físico ou material" para definir o sacramento como "sinal da graça de Deus e forma da graça invisível, contendo sua imagem e existindo como sua causa". Esta definição foi incluída no manual Os (Quatro Livros das Sentenças de Pedro Lombardo, obra que gozava de respeitável autoridade e exercia grande influência na época, de maneira que passou a dominar a teologia medieval sem questionamento até a época da Reforma. No século XVI, o protestantismo questionou essa definição sob diversos aspectos, oferecendo uma definição mais restrita da característica essencial do sacramento. Martinho Lutero, escrevendo em 1520, afirma que a característica essencial do sacramento é o fato de ser um sinal físico da promessa de Deus, cujo uso tinha sido sancionado pelo próprio Cristo. Pareceu bem restringir o nome de sacramento às promessas de Deus que em si encerram sinais. O restante, sem relação aos sinais, são meramente promessas. Daí que, falando a rigor, existem somente dois sacramentos na
Igreja de Deus, o batismo e o pão, porque somente nessas duas coisas é que encontramos o sinal divinamente instituído e a promessa do perdão dos pecados.
A s s im, L ute r o lim it o u o núm e r o dos s acr ame ntos a dois : B atis mo e Eucaristia. Essa distinção fundamental entre p rotestantismo e catolicismo permanece até os dias de hoje.
O s SACRAMENTOS FAZEM O QUÊ? Pelo que já foi dito até aqui, a teologia cristã tem admitido u n i v e r s a l m e n t e o s s a c r a m e n t o s c o m o sinais. O s s a c r a m e n t o s f a z e m o quê? Significam a graça divina. N o e ntanto , essa res posta é apenas parcial. Os sacramentos realizam algo mais d o q u e s i m p l e s m e n t e s i g nificar a graça de Deus? Os sacramentos são meramente sinais ou são um tipo especial de sinais, como, por exemplo, um sinal eficaz que causa o que representa?
Alguns indícios dessa questão já aparecem no século II. Inácio de Antioquia afirma que a Eucaristia é "remédio da imortalidade e antídoto que significa que não haveremos de morrer, mas viver para sempre em Jesus Cristo". A idéia clara aqui é que a Eucaristia não só significa mas causa a vida eterna. A idéia é desenvolvida, subseqüentemente, por muitos outros autores, especialmente Ambrósio de Milão (entre aproximadamente 340 e 397). Escrevendo no século IV, Ambrósio afirma que no Batismo o Espírito Santo, "ao descer até a fonte ou sobre aqueles que estão sendo batizados, opera a realidade da regeneração". Na teologia medieval estabeleceuse uma cuidadosa distinção entre os "sacramentos da Antiga Aliança" (como a circuncisão) e "os sacramentos da Nova Aliança". A distinção essencial que os teólogos medievais primitivos apontavam era que os sacramentos da Antiga Aliança apenas significavam realidades espirituais, ao passo que os sacramentos da Nova Aliança causam o efeito que significam. O autor franciscano do século XIII Boaventura (12211274) expõe o seguinte argumento, valendose de uma analogia da área médica;
Na Lei mosaica, usavamse unções, mas eram unções figurativas e não curavam. A doença era mortal, mas as unções eram superficiais [...]. As unções que realmente curam devem ter ao mesmo tempo a unção espiritual e o poder vivificante, foi só Cristo, Nosso Senhor, que fez tais milagres, visto que, por sua morte, os sacramentos têm o poder de trazer de volta a vida.
Esses modos de pensar permanecem característicos do catolicismo moderno. Os sacramentos transmitem a graça que representam. No entanto, muitos teólogos acrescentam aqui um fator de qualificação, observando que o indivíduo pode resistir à graça, interpondo obstáculos ao seu caminho. Assim, o Decreto sohre os sa cramentos, promulgado pelo Concilio de Trento, condena o ensinamento de que "os sacramentos da nova lei não contêm a graça que significam, ou que não conferem essa graça aos que não interpõem obstáculos". A segunda expressão é importante, porque reflete a consciência de que os fiéis individualmente podem opor obstáculos à eficácia dos sacramentos. O Concilio Vaticano II, não deixando de ressaltar a causalidade eficaz dos sacramentos, ensina como os fiéis devem dar importância aos sacramentos: Por serem sinais, [os sacramentos] também instruem. Eles não só pressupõem a fé, mas também, pelas palavras e pelos objetos, nutrem, fortalecem e expressam a fé. Por isto é que são chamados "sacramentos da fé". Os sacramentos de fato conferem a graça, mas, além disso, o próprio ato de celebrá los dispõe os fiéis da maneira mais eficaz para receber essa graça para seu próprio bem, para adorar a Deus devidamente e para praticar a caridade.
O protestantismo se viu dividido ao procurar saber o que o sacramento faz. Lutero admite que os sacramentos causam o que significam. Em seu Catecismo mais hreve (152 9), ele explica que o Batismo significa e causa o perdão divino: Pergunta: Que dons ou benefícios o Batismo produz?
Resposta: O Batismo nos dá o perdão dos pecados, salvanos da morte e do demônio e concede a felicidade eterna a todos os que crêem, como declaram a Palavra e a promessa de Deus. Pergunta: Como a água pode causar esta coisa tão grandiosa? Resposta: A água por si mesma não pode; mas pode a Palavra de Deus com e através da água e da nossa fé que confia na Palavra de Deus na água. Sem a Palavra de Deus, a água do Batismo não é senão pura água e não há nenhum Batismo. Mas quando a água está ligada à Palavra de Deus temse o Batismo, isto é, a água da graça da vida, o banho do novo nascimento no Espírito Santo.
Essas maneiras de ver permanecem como características ge rais do luteranismo até nossos dias. Todavia, existem outros autores protestantes que questionam com firmeza essa posição luterana, que pa r e ce d a r u m a s pe c t o de m a g i a aos s a c r a m e nt o s . O r e f o r m a d o r s u íç o H u l d r y c h Z w i n g l i ins is t e e m d i z e r q ue o s s a c r a m e nt o s s ão sinais e nada mais: Os sacramentos são simplesmente sinais de coisas sagradas. O Batismo é um sinal que nos compromete com o Senhor Jesus Cristo. A Lembrança mostra que Cristo padeceu a morte por nós. Esses sinais são penhor de coisas sagradas.
Z w ing li afirma, por tanto , que o Batismo e a Eucaristia (que ele chama de "Lembrança") são sinais externos de realidades espi rituais que não têm nenhum poder em si mesmos para causar o que sig nificam. O B atismo é um sinal, não uma causa, do perdão dos pe c a do s c o n c e d i d o p o r D e u s . Ess e p o n t o de v i s t a de Z w i n g l i m a n t é m sua influência no protestantismo e transparece de m odo especial no evangelismo moderno. Um terceiro ponto de vista protestante é o que expõ e João C a lv ino e seus sucessores na tradição da Refor ma. A pos ição de Ca lv ino pode ser considerada intermediária, mais ou menos a meio caminho entre a pos ição causativa de L utero e a representativa de Z w ing li. Calvino define o sacramento como "símbolo externo p elo qual o Se
nhor sela em nossas consciências suas promessas de boa vontade para conosco para sustentar a fraqueza da nossa fé". Porém, ainda que os sacramentos sejam sinais externos, ele afirma que existe um nexo tão estreito entre o simbolo e o dom simbolizado que "p odemos facil m e nte passar de um para outro". O sinal é v isivel e fisico, ao pass o que o objeto significado é invisivel e espiritual, mas o nexo entre o sinal e o objeto significado é tão estreito que se pode aplicar um ao outro. Por que colocaria o Senhor em tua mão o símbolo do seu corpo se não fosse para garantir que realmente pudesses participar desse corpo? E, se é verdadeiro que um sinal visível nos é dado para selar o dom de uma coisa invisível, ao recebermos o símbolo do corpo tenhamos certeza de que aquele próprio corpo também nos é dado.
Dessa maneira, Calvino pode manter a diferença entr e o sinal e a coisa significada, insistindo sempre que o sinal se refere ao dom que significa. Uma das notas mais características do protestantismo era sua insistência em afirmar que os leigos pudessem receb er a comunhão "sob as duas es pécies", isto é, do pão e do v inho . H a v ia um a antiqüissima tradição na Igreja do Ocidente, cujas origens não são muito claras, segundo a qual somente os sacerdotes eram autorizados a receber a comunhão sob as duas espécies, ao passo que os leigos só podiam comungar do pão. Alguns historiadores arriscam explicar que a antiga prática medieval tinha sido adotada para corrigir pro blemas de possivel abuso da bebida. Lutero insistia com firmeza que os leigos também de viam co m ung ar s ob as duas espécies. O pão e o v inho eram s inais da gr aça e do a mo r de Deus. N eg ar aos leigos o acesso aos dois s inais s acram en tais equivalia a negar que tivessem acesso às divinas realidades que esses sinais s ignificav am. A prática da "c o m unhão sob as duas es pé cies" passaria a ser um a nota característica da Re for ma. É impo rta nte apreciar a defesa teológica dessa prática, a saber: excluir as pessoas da participação em um sinal da realidade divina é o mesmo que de clarar que essas pessoas estão também excluídas daquela realidade.
E importante aqui também um debate teológico correlato, ou seja, a questão da dignidade da pessoa que preside a celebração do sacramento. Q u e
f a t o r e s afetam a eficácia d o s s a c r a m e n t o s?
No capítulo anterior, observamos algumas das questões que estão na base da controvérsia donatista. Uma delas diz respeito à dignidade ou santidade pessoal do ministro do sacramento. Os donatistas não admitiam que os sacramentos pudessem ser administrados por um traditor, ou seja, um ministro cristão cujas credenciais pessoais tivessem sido comprometidas ou manchadas devido à colaboração com as autoridades imperiais durante a perseguição de Diocleciano. As imperfeições subjetivas da parte das pessoas que administravam os sacramentos tornavam os sacramentos inválidos. Assim sendo, os donatistas afirmavam que os sacramentos do Batismo, da Ordem e da Eucaristia administrados por ministros nessas condições não tinham nenhum valor espiritual. Respondendo a esse modo de pensar, Agostinho de Hipona afirma que os donatistas colocavam excessiva ênfase nas qualidades do agente humano, dando pouco valor à graça de Jesus Cristo. Agostinho diz que é impossível aos seres humanos decaídos fazer distinções sobre quem é puro e quem é impuro, digno ou indigno. Este ponto de vista — totalmente compatível com a noção de Igre ja que Agostinho defende, isto é, "um corpo misto" constitu ído de santos e pecadores — defende que o sacramento depende não dos méritos da pessoa que o administra, mas dos méritos daquele que o instituiu em primeiro lugar, Jesus Cristo. A questão teológica em jogo é resumida por duas expressões latinas, cada uma refletindo uma diferente noção dos fundamentos da eficácia dos sacramentos. 1. O s sacram entos são eficazes ex opere operantis, ou seja, literalmente, "pela ação daqueles que os praticam". Aqui se
entende que a eficácia do sacramento depende das qualidades pessoais do ministro. 2. O s sacram entos são eficazes ex opere operato, ou seja, literalmente, pela própria ação praticada. Aqui se entende que a eficácia do sacramento depende da graça de Cristo, que o sacramento representa e transmite. A posição donatista reflete o princípio definido na expressão ex opere operantis,- a posição de Agostinho baseiase na expressão ex opere operato. Esta última noção tornouse normativa na Igreja ocidental e foi mantida pela corrente principal dos reformadores no século XVI. A posição baseada na expressão ex opere operato para a eficácia dos sacramentos foi defendida vigorosamente pelo papa Inocêncio 111 (11601216) no final do século Xll. Para ele, os méritos ou deméritos do ministro que administra a Eucaristia não têm nenhuma influência na eficácia da Eucaristia, porque os sacramentos têm seu fundamento na palavra de Deus, que não está limitada à fraqueza ou à falha humana: A e f ic ác ia d o s a c r a m e n to p r o v é m d a pa la v r a d e D e u s e n ã o d o m é r it o d o s a c e r d o t e e, p o r i s t o, n e n h u m a i n f l u ê n c ia t e m n a e f ic ác i a d o s a c r a m e n t o o f a to d e s er a d m i n is t r a d o p o r um b o m o u m a u s a c e r do te . P o r t a n t o , a a d m i n is t r a ç ã o p o r u m s a c e r d o t e i n d i g n o n ã o a n u l a a e f ic ác ia d o s a c r a m e n t o , d a mesma maneira que a doença do médico não anula a eficácia do medica m e n t o q ue e l e a d m i n is t r a . A q u e l e q ue "p r a t ic a a a ç ã o (opus operans)" p o d e s e r i m p u r o , m a s " a a ç ã o p r a t i c a d a (opus operatum)" é s e m p r e p u r a .
Semelhante posição foi adotada pelos autores da corrente principal do protestantismo no século XVI. Os Trinta e Nove Artigos da Igreja da Inglaterra (1563) definem esse ponto com clareza: Para os que recebem os sacramentos administrados com fé e de manei ra apropriada, o efeito dos mandamentos de Cristo não é impedido pela indignidade do ministro nem é diminuída a graça dos dons de Deus, por
que esses sacramentos produzem seu efeito pela instituição e promessa de C r is t o , m e s m o q u a n d o a d m i n is t r a d o s p o r pe s s oa s in d ig n a s .
O Catecismo da Igreja Católica dá uma explicação definitiva da noção ex opere operato do sacramento: C e l e b r a d o s d i g n a m e n t e c o m f é, o s s a c r a m e n t o s c o n f e r e m a g r a ç a q ue s i g n i f i c a m . S ã o eficazes, p o r q u e n e l e s é o p r ó p r i o C r i s t o q u e o p e r a : é e l e q u e b a t i z a , é e le q u e ag e n o s s a c r a m e n t o s p a r a c o m u n i c a r a g r a ç a q ue c a d a s a c r a m e n t o s i g n if i c a [ . .. ] . E s te é o s e n t i d o d a a f ir m a ç ã o d a Ig r e j a de q u e os s a c r a m e n t o s a g e m ex opere operato ( l i t e r a l m e n t e : " p o r e f e i t o d a p r ó p r i a a ç ã o r e a l i z a d a ") , is t o é , e m v i r t ud e d a o b r a s a l v íf ic a d e C r i s t o , r e a l i z a d a d e u m a v e z p o r t o d as . S e g ue - s e qu e "o s a c r a m e n t o n ã o e s t á s u j e it o à d i g n i d a d e d e quem oficia nem de quem o recebe, mas sim ao poder de Deus". Desde o momento em que o sacramento é administrado de acordo com a intenção da Igreja, o poder de Cristo e do seu Espírito age independentemente da santidade pessoal do ministro, mas os frutos dos sacramentos também de pendem da disposição de quem os recebe.
Passaremos a considerar agora duas questões teológicas que foram causa de prolongados debates no seio da Igreja. Em primeiro lugar trataremos do Batismo e depois da Eucaristia. Começaremos nosso estudo indagando que argumentos teológicos podem justificar a antiqüíssima prática da Igreja de batizar as crianças. O Ba t i s m o
d a s c r i a n ç a s j u s t i f i c a - s e ?
O Novo Testamento não faz referências específicas ao Batismo de crianças, mas também não menciona nenhuma proibição dessa prática. Aliás, existem numerosas passagens que podem ser interpretadas com o em favor dessa prática, por exemplo na alusão ao Batismo de toda uma família (que, naturalmente, abrangia também as crianças). As alusões aparecem em várias passagens, como nos Atos dos Apóstolos 16,15 e 16,33 e em 1 Coríntios 1,16. Paulo trata o Batismo com o ato espiritual correspondente à circuncisão (Cl 2,1112), sugerindo que pode também aplicarse às crianças.
A prática de batizar crianças nascidas de pais cristãos, a assim chamada prática de pedohatismo, parece ter surgido com o reação co ntra numerosas pressões. Possivelmente, os cristãos se inspiraram no ritual da circuncisão dos judeus. De modo mais geral, o Batismo infantil pode ter se originado da necessidade pastoral de pais cristãos de celebrar o nascimento de seus filhos no seio de famílias cristãs. No entanto, convém dizer que não se dispõe de comprovação certa das origens históricas nem das causas sociais ou teológicas dessa prática, o que, aliás, já dá a entender que a prática era normal, ainda que não universal, já no século 11 ou 111. Com base na exposição acima, que justificação pode ser mostrada da prática do Batismo infantil? Para responder, estudaremos a seguir uma série de racion alizações teológicas da prática do Batismo infantil, sem deixar de mencionar também as opiniões contrárias. 1. O Batismo injantil fundamenta- se na eficácia do sacramento. U questão óbvia relacionada com o Batismo infantil é a seguinte: Como a criança não possui consciência de sua fé, como se pode dizer que ela possa dar uma respo sta consciente ao Evangelho cristão? O Catecismo da Igreja Católica afirma: "O Batismo é visto sempre com relação à fé: Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua família, declara São Paulo ao seu carcereiro em Filipos. E a narrativa prossegue dizendo que o carcereiro logo foi batizado com toda a sua família". Será que o Batismo infantil não está baseado em uma visão mecânica ou "mágica" do sacramento? O catolicismo sempre se baseou no princípio de que a noção ex opere operato do Batismo afasta qualquer dificuldade nesse sentido. A eficácia do Batismo não depende da compreensão humana do modo como é praticado. Como diz o Catecismo-. "A absoluta gratuidade da graça da salvação é particularmente manifesta no Batismo infantil". Além disso, a fraqueza da fé individual é suprida pela fé coletiva da Igreja: "E só na fé da Igreja que cada um dos fiéis pode expressar sua fé". Assim, o Batismo inicia um processo de desenvolvimento na fé. Como veremos, alguns protestantes rejeitam o Batismo infantil. De modo particular, muitos evangélicos ensinam que o Batis-
mo não é um sacramento (no sentido estrito da palavra), senão um "mandamento". Assim sendo, o Batismo não transmite a graça que simboliza, mas é simplesmente a manifestação pública da conversão pessoal. Com o só a pessoa adulta é que pode converterse, o Batismo é impróprio para crianças que não chegaram ainda à idade madura. Devese ter em mente que esse ponto de vista não é universal no protestantismo. Os luteranos, seguindo o próprio Lutero, insistem que a eficácia do Batismo como sacramento significa que exerce seu efeito sobre as crianças, mesmo que não se possa discernir. Uma declaração recente do Sínodo Luterano de Missouri (uma denominação luterana americana) expõe esse argumento com clareza; Os luteranos acreditam que a Bíblia ensina que a pessoa é salva só pela g r a ç a d e D e u s e x c lu s iv a m e n te p o r m e io d a f é e m J e s us C r i s t o . O B a t is m o , conforme cremos, é um dos meios milagrosos da graça (juntamente com a P a la v r a d e D e u s e s c r it a e f a la d a ) p e la q u a l D e u s c r ia o d o m d a f é n o c o r a ç ã o da pe s s o a. E m b o r a n ã o a f ir m e m o s c o m p r e e n d e r c o m o i s so a c o n te c e ou como é possível, acreditamos (com base no que a Bíblia diz sobre o B a t is m o ) q u e , q u a n d o a c r i a n ç a é b a t i z a d a , D e u s c r i a a f é e m s e u c o r a ç ã o . N a t u r a l m e n t e , es sa f é n ã o p o d e a i n d a s er e x p r e s s a o u f o r m u la d a , m a s é real e está ali presente.
2.
O batismo infantil perdoa a culpa do pecado original. Uma das co tribuições mais importantes de Agostinho de Hipona para a teologia do Batismo é o argumento de que os seres humanos vêm a este mundo já contaminados pelo pecado original. Por "pecado original" Agostinho entende a falta, defeito ou contágio desde o momento em que nasce, e não alguma coisa adquirida posteriormente na vida por meio de ação pecaminosa. Para Agostinho, a natureza humana pecadora dá origem às ações de pecado individual. O pecado causa pecados ou, para empregar uma analogia da medicina, o pecado é uma enfermidade, cujos pecados individuais são os sintomas. Para Agostinho, o Batismo perdoa a culpa do pecado original. O que acontece às pessoas que morrem sem ter recebido o Batismo na infância ou posteriormente durante a vida? Se o pecado perdoa
a culpa do pecado original, as pessoas que morrem sem batismo permanecem na culpa. O que acontece a elas? Segundo a teoria de A gostinho, essas pessoas não podem se salvar. Provavelmente, o próprio Agostinho tinha essa convicção, sendo forçado a crer que as crianças que morriam sem Batismo eram condenadas à perdição eterna. A teoria de Agostinho foi modificada à luz da pressão popular, sem dúvida ao se considerar que a posição dele era injusta. Pedro Lombardo afirma que as crianças que morrem sem Batismo recebem só "a pena da condenação", sem ser punidas pela dolorosa "pena dos sentidos", de modo que, embora aconteça, a condenação dessas crianças não impõe a experiência da dor física do inferno. Essa idéia é expressa às vezes como "limbo", mas essa teoria sobre o limbo nunca fez parte do ensinamento oficial nem mesmo do catolicismo romano. Podese entender que o Catecismo da Igreja Católica admite a ênfase da necessidade do Batismo para a salvação, sem querer, ao mesmo tempo, excluir uma graça especial de Deus para as crianças falecidas sem o Batismo. Q u a n t o às c r ia n ç a s f a l e c i da s s e m o B a t is m o , a Ig r e j a s ó p o d e c o n f iá- l as à m i s e r i c ór d i a d iv i n a , c o m o f a z n o s r it o s f ún e b r e s i nf a n t is . N a v e r d a d e , a g r a n d e m i s e r i c ó r d i a d e D e u s , q u e d e s e j a q ue t o d a s as pe s s o a s s e j a m s a lv a s , e a t e r n u r a d e J e s u s p a r a c o m as c r ia n ç a s , q u e o l e v o u a d iz e r : "D e i x a i v i r a mim as criancinhas e não as impeçais", nos fazem ter esperança de que e x i s te u m m e i o d e s a l v a ç ã o pa r a a s c r i a nç a s q u e m o r r e m s e m o B a t is m o .
3. O batismo infantil ésinal da aliança entre Deus e a Igreja. A teolo cristã sempre considerou o batismo como o equivalente cristão da circuncisão. No Novo Testamento, Paulo diz que o Batismo substituiu a circuncisão (Cl 2,1112). Nessa passagem, Paulo fala do batismo como "a circuncisão de Cristo". Considerando que na antiga Lei a circuncisão era aplicada só à criança, deveria assim haver um paralelo entre a circuncisão juda ica e o batism o infantil na Igreja. Ao desenvolver essa idéia, Zwingli afirma que o Batismo deve ser considerado o equivalente, no N ov o Testamento, do rito da circuncisão
do Antigo Testamento. O rito é mais delicado que a circuncisão, porque não envolve dor nem derramamento de sangue, e, além disso, é mais abrangente, visto que é um rito que abrange as crianças dos dois d ois sexos. A natureza natureza mais mais delicada do Ev angelho demonstrou se publicamente pela ausência de dor e derramamento de sangue no sacramento. Cristo sofreu, ao ser ele mesmo circuncidado e ao padecer a morte na cruz, para que seu povo não tivesse de sofrer dessa maneira. Zwingli também afirma que o Batismo é sinal de filiação a uma comunidade, isto é, a Igreja. O fato de que a criança não tenha consciência dessa filiação não tem importância: sabendo ou não, ela se torna m embro emb ro da com unidade cristã, cristã, e o Batis Batismo mo é a demon stração pública dessa filiação. No entanto, nem todos os cristãos estão persuadidos dos méritos do Batismo infantil. Na Igreja primitiva, Tertuliano afirmava que o Batismo infantil deveria ser adiado até o dia em que a criança pudesse "conhecer Cristo". O anabatismo, movimento dentro da Reforma protestante do século XVI, insiste que o Batismo deveria ser reservado àqueles que pudessem entender seu significado e que dessem o consentimento para ser batizados. Talvez a crítica teológica mais importante do Batismo infantil se deva ao grande teólogo protestante do século XX Karl Barth, que expõe três campos fundamentais de preocupação e crítica: 1. O Batismo Batismo infant infantil il não tem fundamen to bíblico. To das as evidências indicam que ele se tornou norma no período pósapostólico e não no período do Novo Testamento. prática do Batismo Batismo infa infanti ntill levou a desastrosos desastro sos supostos sup ostos 2 . A prática de considerar os indivíduos cristãos em conseqüência do seu nascimento. Barth afirma, de maneira que lembra muito a idéia de "graça barata" de Dietrich Bonhoeffer, que o Batismo infantil desvaloriza a graça de Deus e reduz o cristianismo a um fenômeno puramente social. 3. A prática prá tica do Batismo Batism o infanti infantill debilita o nexo central entre entre o Batismo e a condição de discípulo do cristão. O Batis
mo é testemunho da graça de Deus e marca o começo da resposta humana a essa graça. Como as crianças não têm condições de dar essa resposta, o significado teológico do Batismo se obscurece. S e C r i s t o e s t á p r e se s e n t e n a E u c a r i s ti t i a , c o m o é e s s a p r es e s e n ç a? a? A expressão "presença real" passou a denotar a idéia de que Cristo está presente, de algum modo, e até certo ponto, na Eucaristia. O Catecismo da Igreja Católica expõe essa crença fundamental com clareza e precisão: O m o d o d a pr p r e s e n ç a d e C r i s t o s o b as as e s pé p é ccii e s e u ca c a r ís ís t ic ic a s é u m m o d o s i n g u la l a r [ . .. . . ] . N o S a n t ís ís s i m o S a c r a m e n t o d a E u c a r is i s t ia i a , o c o r p o e o s a n g ue ue , j u n t a m e n t e c o m a a l m a e a d i v i n d a d e d e N o s s o S e n h o r J e s us C r i s t o [ . . . ] , e p o r t a n t o Cr isto em sua totalidade está ve rdadeira, real e substancialme nte contido. Essa p r e s e n ç a é d i t a "r "r e a l" l ", d e m o d o q ue u e n ã o s e p r e t e n d e e x c l u ir ir o s o u tr t r o s t ip ip o s de presença, como se não pudessem ser também "reais", mas porque se a f i r m a a p r e s e n ç a n o s e n t i d o m a i s p l e n o , o u s e j a , p r e s e n ç a substancial, p e l a qual Cristo, Deus e homem, se faz plena e inteiramente presente.
N a Última C eia, o Evangelho nos mostra Jesus pronunciando pronunciando estas palavras ao partir o pão na presença dos seus discípulos: "isto é o meu corpo" (Mt 26,26). A doutrina da "presença real" apóiase na idéia fundamental de que o pão e o vinho da Eucaristia são transformados no corpo e no sangue de Cristo ou que o representam de um modo tão eficaz que ele pode ser considerado presente. As palavras pronunciadas pronunciadas por Jesus Cristo sobre o pão, na U ltim ltim a C eia, e repetidas na liturgia da Igreja foram de capital importância para criar essa idéia. Foi, por conseguinte, inevitável e apropriado sob todos os aspecto s dedicar uma uma atenção toda especial especial à explicação explicação teológ ica do sentido dessa prática. O que se obteve com isso? E de que maneira o pão e o vinho eucarísticos diferem do pão e do vinho ordinários? Passaremos a estudar, a seguir, quatro modos de considerar essas questões importantes para o debate teológico.
1. Transuhstanciação. Esta explicação, aprovada pelo Quar Concílio de Latrão (em 1215), está baseada na distinção filosófica de Aristóteles entre "substância" e "acidente". A substância de uma determinada coisa é sua natureza essencial, e acidentes são as notas externas (como, por exemplo, cor, forma, cheiro etc.). A doutrina da transuhstanciação afirma que os acidentes do pão e do vinho (isto é, a aparência externa, gosto, cheiro etc.) permanecem imutáveis no momento da consagração, ao passo que a substância mudase do pão e do vinho para a substância do corpo e do sangue de Jesus Cristo. Esta é a doutrina doutrina contida con tida em um dos mais con hec idos hinos eucarísticos da Igreja Católica, o "Pange lingua" de Tomás de Aquino, composto em meados do século XIII. O hino expõe a doutrina teológ ica da presen ça real real que identi identifi fica ca ao mesm o tem po o significado significado histórico e doutrinal. O quarto verso da estrofe transcrita adiante expõe a idéia da transuhstanciação: V e r b u m c a r o , p a n e m v e r u m V e r b o c a r n e m e f f ic i t : F i t qu q u e s a n g ui ui s C h r i s t i m e r u m ,
A P a l a v r a q u e s e f e z c a r n e t r a n s f o r m a o verdadeiro pão na sua carne,e o vinho se transforma em sangue de Cristo,
Et si sensus deficit, A d f i r m a n d u m c o r s in c e r u m Sola fides sufficit
e, se os sentidos não são suficientes para satisfazer o coração sincero, só a fé já bastará.
Esse ensinamento, muitas vezes condenado pelos teólogos protestantes, foi reafirmado no Concílio de Trento: "Depois da consagração do pão e do vinho, Nosso Senhor Jesus cristo está verdadeira, real e substancialmente contido no venerável sacramento da sagrada Eucaristia sob as aparências daquelas coisas físicas". O Concílio defende vigorosamente tanto a doutrina como a terminologia da transuhstanciação. "Pela consagração do pão e do vinho, ocorre uma mudança de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo e de toda a substância do vinho na substância do sangue
de Cristo. A santa Igreja Católica muito apropriadamente dá a essa mudança o nome de transuhstanciação." 2. Transignijicação e transfinalização. Mais recentemente, a id da transuhstanciação foi reelahorada pelos teólogos da Igreja Católica, como fez, por exemplo, o helga Edward Schilleheeckx. Em Euca r isti is tiaa (1968), ele afirma que a estrutura seu importante estudo A Eucar filosófica aristotélica invocada para definir a noção de transuhstanciação causa dificuldades ao entendimento de muita gente, nesses tempos modernos. Havia necessidade de uma nova explicação que fosse capaz de conter as idéias teológicas essenciais do Concílio de Trento sem, contudo, incorporálas em uma estrutura filosófica antiquada antiquad a e vulnerável vulnerável.. Schilleheeckx ohservou uma crescente hostilidade ao uso de interpretações ontológicas ou "físicas" da Eucaristia nos círculos católicos depois da Segunda Guerra Mundial diante da "redescoherta da atividade simhólica sacramental", isso é, a constatação de que "os sacramentos são, antes de tudo, e principalmente, atos ou atividades simhólicas como sinais". Com isso, Schilleheeckx introduziu os term os "transfuncionalismo", "transfinalização" "transfinalização" e "transignificação" "transignificação" para exprimir a idéia de que o "pão e o vinho se tornam matéria de uma nova determinação de significado, não pelo homem, m as pelo pelo Sen hor que vive na Igreja, e assim esses dons se tornam o sinal da presença real de Cristo que se doa a nós." O argumento de Schilleheeckx é que a interpretação do significado do pão e do vinho eucarísticos não é arhitrária, nem é imposição humana a esses dons, mas é um ato de discernimento que a Igreja pratica, devidamente autorizada por Cristo. Schilleheeckx afirma que não existe a necessidade de invocar a noção da mudança física da suhstância do pão e do vinho. A intenção de Cristo não era alterar o sentido metafísico dos elementos eucarísticos, mas fazer que esses elementos indicassem sua presença permanente na Igreja, enquanto comunidade de fiéis. A resposta oficial da Igreja Católica a essas idéias esclareceu que eram aceitáveis, desde que fossem sustentadas no contexto da
noção noç ão tradicional de transubstanciação. transubstanciação. Se o pão pã o e o vinho se transformam de fato da maneira como o ensinamento tradicional afirma, seguese que tanto a meta como o significado do pão e do vinho também são mudados. 3. União sacramental ou consuhstanciação. Uma terceira opinião se relaciona especialmente com Martinho Lutero e é característica de uma grande parte da teolog ia luterana luterana contem porânea. Essa opinião, às vezes denominada "consubstanciação", porém mais precisamente conhecida como "união sacramental", afirma a presença simultânea do pão e do corpo de Cristo. Não há mudança de substância, de modo que estão presentes tanto a substância do pão como a do corpo de Cristo. Lutero julga absurda a doutrina da transubstanciação, por ser a tentativa de racionalizar o mistério. Para Lutero, o ponto decisivo era o fato da presença real de Cristo na Eucaristia e não uma determinada teoria sobre como era essa presença. Lutero tomou a imagem de Orígenes para confirmar seu argumento: se o ferro for colocado no fogo e aquecido fica incandescente, e no ferro incandescente se tornam presentes tanto o ferro como o calor. Por que não empregar uma analogia simples da vida cotidiana, como a de Orígenes, para ilustrar o mistério da presença de Cristo na Eucaristia, em vez de racionalizar a questão recorrendo a uma sutileza escolástica? Não é na doutrina da transubstanciação que se deve crer, mas sim que Cristo está realmente presente na Eucaristia. E mais importante afirmar este fato do que apresentar qualquer teoria ou explicaç ão do fato. fato. Este mod o de pen sar se reflete na crença luterana contemporânea de que o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue de Cristo estão presentes nos elementos externos, com e sob estes elementos de pão e vinho, mesmo que se deva reconhecer aqui um mistério divino acima da compreensão e de qualquer explicação humana. 4. Memorialismo. Para alguns autores protestantes, especialmente nas nas tradiçõ es evangélicas. evan gélicas. C risto é lembrado , em sua ausência, ausência, na assim chamada Ceia do Senhor. As raízes intelectuais dessa teoria costumam ser atribuídas aos escritos de Huldrych Zwingli, que
com essa sua teoria questiona a interpretação tradicional das palavras "isto é meu corpo". Até então, a maior parte dos cristãos en tendia estas palavras como afirmação da identidade do pão eucarístico com o corpo de Cristo. Zwingli pensa de maneira diferente. Ele afirma que a Escritura costumava fazer uso muitas vezes de linguagem figurada. Assim, a palavra "é" pode significar "é absolutamente idêntico", mas pode significar também "representa" ou "significa". Zwingli conclui que existem inúmeras passagens na Escritura nas quais a palavra "é" é sinônimo de "significa". Portanto, a questão a considerar é procurar saber se as palavras de Cristo "isto é o meu corpo" devem ser tomadas ao pé da letra ou metaforicamente. Ele não duvida muito da resposta: Nas palavras "isto é o meu corpo", a palavra "isto" significa o pão e a pa lavra "corpo" significa o corpo que foi entregue à morte em nosso favor. P o r t a n t o , a p a l a v r a "é " n ã o p o d e s e r i n t e r p r e t a d a l i t e r a l m e n t e , p o r q u e o pão não é o corpo.
Zwingli tinha outro argumento para demonstrar. Ele observa que tanto a Escritura como os credos afirmam que Cristo agora se encontra "sentado à mão direita de Deus". Zwingli não tem a menor idéia da situação deste lugar, mas não perde tempo em especular e afirma que onde quer que Cristo se encontre agora não pode estar presente na Eucaristia. Com o poderia estar presente em dois lugares ao mesm o temp o? Por esta razão, ele pro põe a doutrina da "ausência real" de Cristo na Eucaristia. Cristo, que se acha agora em outro lugar, é lembrado em sua ausência, ao mesmo tempo em que se reafirma a esperança em seu retorno futuro. Para ele a Eucaristia consistia em "proclamar a morte do Senhor até o seu retorno" (iCor 11,26). En t r o s a m e n t o
co m o texto
Em 1982, A Comissão de Fé e Justiça do Conselho Mundial das Igrejas Protestantes publicou uma declaração teológica intitulada Batismo, Eucaristia e ministério (BEM), que exerceu grande influência
nas Igrejas. Esse documento do Conselho Mundial das Igrejas, que costuma ser chamado também de "Texto de Lima", por ter sido a capital do Peru a sede da Comissão em que foi redig ido o docu mento, passou a ser um marco das discussões ecumênicas dos temas da or g anização. A declaração foi res ultado de v ários anos de es tudo e diálogo ecumênico, principalmente entre as denominações protestantes, para encontrar os princípios básicos que pudessem ser afirmados conjuntamente pelas Igrejas de tradição reformada. Lu t er a na , M e t o d is t a , A n g l ic a n a e O r t o d o x a . O d o c u m e n t o e x e r ce u grande influência por catalisar as discussões ecumênicas sobre ques tões relativas aos sacramentos e ao ministério cristão. O d o c u m e n t o e x põe u m a ju s t if i c a ç ão d o B a t i s m o e e s b o ça um a noção das difere nças ex istentes. O tex to a seguir é uma declaração sobre a identidade do B atismo. O leitor dev erá lê- la atentamente, consultando as referências bíblicas indicadas no texto. O B a t is m o é o s in a l d a n o v a v i d a e m J e s us C r i s t o . O B a t is m o u ne a pe s s o a b a t i z a d a a C r i s t o e a o s e u p o v o . A s E s c r itur a s d o N o v o T e s t a m e n to e a liturgia da Igreja descrevem o sentido do Batismo com várias imagens que expressam as riquezas de Cristo e os dons da salvação que ele distri b u i. E s sas i m a g e n s c o s t u m a m e s ta r lig a d a s a o s us o s s i m b ól ic o s d a ág u a n o A n t i g o T e s t a m e n t o . O B a tis m o é p a r t ic ip a ç ão n a m o r t e e r e s s ur r e ição de Cristo (Romanos 6,3-5; Colossenses 2,12), o banho que purifica dos pe c a d os (1 C o r ín t io s 6 , 1 1 ) , u m n o v o n a s c i m e n t o ( J o ã o 3 ,5 ) , i lu m i n a ç ã o p o r C r i s t o ( E f és io s , 5 - 1 4 ), re v es tir - s e de C r i s t o ( C á l a t a s 3 , 2 7 ) , r e n o v a ç ã o p e l o E s p í r it o ( T i to 3 , 5 ) , e x p e r i ê n c i a d a s a l v a ç ão d o d i lú v i o (1 P e d r o 3 , 2 0 - 2 1 ) , s a íd a d a e s c r a v id ão (1 C o r ín t i o s 1 0 ,1 - 2 ) e l ib e r t a ç ão p a r a a no v a h u m a n i dade em que são transpostas as barreiras de divisões, de sexo, de raça ou d e c o n d i ç ã o s o c ia l (C á la t a s 3 , 2 7 - 2 8 ; 1 C o r ín t i o s 1 2 , 1 3 ) . A s im a g e n s s ão m u i ta s , m a s a r e a l i da d e é u m a s ó.
Repasse as passagens bíblicas citadas na declaração aci m a . O p o n t o p r i n c ip a l d o d o c u m e n t o é q ue o B a t is m o re úne alg uns dos principais temas da fé cristã. O Ba tis mo é uma realidade de muitos aspectos distintos com muitas dimensões e planos diferentes de significado. Isto é o que o documento quer dizer ao afirmar que "as imag ens são muitas , mas a realidade é um a só".
Observe como o documento diz que o Batismo é um "sinal". Examine outra vez a lista de significados do B atismo que fo i elaborada em re sposta à ques tão a nte rior. Quais desses significados parecem ter um nexo óbvio com o simbolismo da água?
Lembre- se de que esse docum e nto pre tende ser e cum ê nico, pro cur ando ajudar as Igrejas a se aprox imar mais umas das outras. Leia o texto outra vez e procure s a ber se alguma denominação cristã ou algum grupo em p a r t ic u la r p o d e r i a a c h a r o t e x t o d i f íc i l o u c o n tr o v e r s o em algum ponto.
Capítulo
O céu
A m a io r pa r te da s obras s obr e a t e o lo g ia cr is tã s eg ue um m o delo dos credos e ter mina tra tando da v ida eterna. Essa m e todo log ia tradicional também foi seguida nesta introdução fun damental aos temas da teo log ia cristã. O ter mo "es catologia" (do gr eg o ta eschata, que significa 'ultimas coisas") é usado amplamente na teologia cris tã, aplicando- se às crenças a re speito do juíz o , do c éu e de outras realidades relacionadas com o fim da vida. Neste último capítulo, examinaremos alguns aspectos do pensamento cristão a respeito do tema escatológico; o céu.
A
E S PE RA N ÇA D O C É U
O c r i s t ia n i s m o é u m a r e l i g i ão de e s p e r a nç a qu e p õe s ua a t e n ç ão n a r e s s ur r e i ção d e J e s us c o m o f u n d a m e n t o d a c r e n ç a e da confiança em um Deus que é capaz de triunfar sobre a morte e in s p ir a r e s p e r a n ça a t o d o s os q ue p a d e c e m e m o r r e m . A pa l a v r a "escatologia" é usada para referir-se aos ensinamentos cristãos so bre "as líltima s coisas". A ss im co m o a "cr istolog ia" refere- se à c o m pree nsão cristã da nature za e da iden tidade de Jesus C r isto , ass im a "escatologia" refere-se à compreensão cristã de coi sas como o céu e a vida eterna.
A e s c a to log ia do N o v o T e s ta m e nto é c o m ple x a . N o e nta nto , um dos temas principais é que alguma coisa que aconteceu no pas sado inaugurou algo de novo que chegará à consumação final no fu turo. O crente cr istão é assim a panha do nessa tens ão entre o "agora" e o "não ainda". E m c er to s entido, o céu ainda não aconteceu,- em outro s entido, a atração poder os a do céu já causa impa cto em nós de uma ma neira admiráve l e com plex a e deix a- nos arrebatados, quando pensamos que lá estaremos, e também nos deixa desanimado^o c o n s t a t a r m o s q ue a li a i nd a n ão e s t am os . O
/0 \ ^
t e r m o "c éu" é us a d o f r e q üe n t e m e n t e no s e s c r i t o s ^« a u f
do N o v o T e s ta me nto a plic a do à e spe ra nça cr is tã. E m ^ t í ^ ^ n a tural pensar no céu como uma coisa futura, o pens^tm£íjra de Paulo parece incluir tanto a rea lidade futura co m o ou re ino es pir itua l que coe x is te c om o m un do m a t e ^ t x t ó ^ « Í ^ y e do t em po . A s s im, o "céu" é m e n c io n a d o c o m o f u t t ííÍ > p ^t a ç ã o do fiel — e m
2 C o r í n t i o s 5,12 e Filipense s 3^2^ /í- e c o m ü h a b it a ç ão pr e s e nt e de J e s us C r i s t o de o n d e e le v i r á“^ ^
j u í z o f ina l — e m R o m a n o s
10,6 e 1 T ess alonicenses 1 ^0 e ^^r o .
Co m o v er e rn ^ s^ m iQ ^ afirmações mais importantes de Paulo sobre o céu é a da\d£ãada^'cidadania celeste" dos fiéis (F1 3,20) e, de certa fo r ^ ^ (m ^ ^ ip a ç ã o dos fiéis na vida do céu no tempo presente. A 1,e^â^\^ 0 tre o "agora" e o "não ainda" aparece evidente nas afirm^:Ç©^q^^%ulo sobre o céu, tornando muito difícil sustentar a fia do céu com o alguma coisa que não surgirá no presente não pode ser experimentada absolutamente no tempo pre snte. Para Paulo, a esperança do céu causa impacto na vida do aqui e agora, muito embora o céu, em toda a sua plenitude, permaneça como algo que deve ser concretizado no futuro. Provavelmente a maneira mais proveitosa de fazer uma idéia das modestas afirmações do Novo Testamento sobre o céu consis te em ver o céu como consumação da doutrina cristã da salvação. Segundo essa doutrina, a presença, a punição e o po der do pecado são eliminados definitivamente, quando então se alcança a pre sença total de Deus nos indivíduos e na comunidade de fé. É esta
idéia de céu que transparece na visão do céu expost a no Catecismo da Igreja Católica-. O c é u é o f im ú lt i m o e c u m p r i m e n t o d o s m a is p r o f u n d o s d es e jo s h u m a n o s , o e s t a d o d e f e l i c i d a d e s u p r e m a e d e f i n it i v a [ . . .] e ss a c o n s u m a ç ã o s e r á a realização final da unidade da raça humana que Deus quis desde a cria ç ã o q u e i n t r o d u z i u a Ig r e j a p e r e g r i n a "n a n a t ur e z a d e s a c r a m e n to ". A q u e le s qu e e s t ão u n i d o s c o m C r i s t o f o r m a r ã o a c o m u n i d a d e d o s r e s g a t ad o s , "a cidade santa" de Deus, "a Noiva, a Esposa do Cordeiro", que não será mais f e r i da p e l o p e c a d o , p e l a m a n c h a , p e l o a m o r - p r óp r io q u e d e s t r ó i o u f er e a c o m u n i d a d e t e r r e na . A v i s ão b e a t íf i c a , e m q u e D e u s s e a b r e de um a f o r m a i ne x a u r ív e l p a r a os e l e i to s , s e r á a f o n t e d e o n d e b r o t a m a e t e r n a f e l ic i d a d e , a paz e a comunhão mútua.
Convém notar que as parábolas do Novo Testamento sobre o c é u t ê m um a n a t ur e z a c o m u m . O c é u é r e t r a t a do ne la s c o m o b a n q ue t e , f es ta n u pc i a l o u c o m o u m a c i da d e , a N o v a J e r us a l ém . A v i da eterna não é, pois, a projeção de uma existência humana individual, mas, antes, deve ser vista como participação, com a comunidade resgatada como um todo, na comunidade de um Deus que ama. Começamos nosso estudo da teologia do céu examinando a imagem bíblica de importância central para o tema.
Im a g e m
d o c é U: a
N
ova
Jerusalém
A te o lo g ia c o s tum a nos c o lo c a r e m c o m ba te c o m as im a g e ns d o m e s m o m o d o q ue n os e n v o l v e n o c o m b a t e c o m as idé ia s . J á v i mos co m o os teólog os cristãos se esf orçaram para justificar, no c a m po intele ctua l, idéias dificílimas co m o a das "duas nature zas " de Jes us Cr isto o u a da doutr ina da T rindade. Eles são chama dos ta m bém a estudar imagens como a que compara Deus com um pastor ou c o m u m p a i . C o m o a f i r m a A u s t i n F a r r e r (19041968), t e ó l o g o d e O x fo r d, o cristianism o repres enta "um re nas cimento de imagens". Muita importância foi dada às imagens para conceber e sustentar a vida cristã. Novo ímpeto também foi dado às imagens religiosas que
a Igreja herdou de Israel. No caso da noção cristã do céu, a imagem, antes que a idéia, é que desempenha um papel importante e decisivo na teo log ia cristã, a saher, a ima g e m da "N ov a Je rusalém". M u it a s pa s s a g e ns d o A n t i g o T e s t a m e n t o f a la m d a c i da d e de Jerusalém, vista como uma imagem tangível da presença e da provi dência de Deus dentro de sólidas muralhas e ainda como um marco apontando para o cumprimento das expectativas messiânicas. Jeru salém é a cidade de Da v i, na qual hahitará o futuro messias. O N o v o T es tamento dá aqui uma nov a visão, inclusiv e co m a ree lahoração notável do tema da "Cidade de Deus" descrita no Apo calipse de São João, último livro da Bíblia cristã. Para o escrito r bíblico, o cumpri mento de todas as esperanças e expectativas cristãs está centralizado na N o v a J erusalém, a cidade de Deus na qual Cr isto res suscitado reina triunfante. Esta imagem despertou uma intensa reflexão por pa r t e do s t e ó lo g o s c r is t ão s . A i m a g e m d a N o v a J e r us a l é m e x e r ce u ao long o dos s éculos um a influência notáve l e decisiv a sobre a refle xão cristã a respeito do céu. A s or ig e ns dessas im a g e ns e v oca tiv as e ncontr am- s e pr in c ipa l mente no Apocalipse. As poderosas imagens que neste livro estão contidas saturaram os hinos e a teologia do cristia nismo, particu larmente as idéias da Igreja sobre a maneira como o céu deve ser v isualizado. A cons olação do céu é posta aqui em contras te com o sofrimento, a tragédia e a dor e todo padecimento d a vida da Terra. T r a d ic i o n a lm e n t e adm ite - s e que o A p o c a l ip s e , c o n h e c i d o t a m b é m co m o livr o da Rev elação de São J oão , reflete as co ndições de ex clu são social e talvez a perseguição enfrentada pelos cristãos na região do Império Romano nos últimos anos do imperador Domiciano. Talvez a imagem mais nítida e, certamente, mais apr opriada para este es tudo seja a descr ição da No v a Je rusalém: V i e n t ão u m n o v o c é u e u m a n o v a T e r r a. P o is o p r im e ir o c é u e a p r im e ir a T e r r a p as s a r a m e o m a r j á n ã o e x is te . V i t a m b é m a c i d a d e s a nt a, a N o v a J e r u s a lé m , d e s c e n d o d o c é u, d e j u n t o de D e u s , v e s t id a c o m o a n o i v a e n feitada para o seu esposo. Então, ouvi uma voz forte que saía do trono
o
céu
e d iz i a : "E s t a é a m o r a d a d e D e u s c o m o s h o m e n s . E l e v a i m o r a r j u n t o deles. Eles serão o seu povo e o próprio Deus com eles será o seu Deus. E l e e n x u g a r á t o d a l á g r i m a d o s s e us o l h o s . A m o r t e n ã o e x i s tir á m a i s e n ã o haverá mais luto nem grito nem dor, porque as coisas anteriores passa r a m ". A q u e l e q ue e s t á s e n t a d o n o t r o n o dis s e : "E is q u e f a ç o n o v a s t o d a s as c o is a s " ( A p 2 1 , 1 - 5 ) .
N e s t a pa s s a g e m , o t e m a d a N o v a J e r us a l é m é c o n s t it u íd o de vários motivos extraídos do relato da criação, como a presença da "árvore da v ida" (A p 2 2,2), sug er indo que o céu pode ser v isto co m o a restauração da felicidade do jardim do Éden (Gn 2), quando Deus h a b it a v a c o m a h u m a n i d a d e e m h a r m o n i a . A do r , o s o f r i m e n t o e o mal do mundo decaído finalmente passaram e a criação é restaurada, voltando à sua intenção original. A N o v a J e r us além, c o m o sua c o r r e s po nde nte terres tre, é r e t r a t a da c o m o u m a c i da d e c e r c a da d e m ur a l ha s . A s e g ur a n ça é a b soluta. A cidade está no alto de uma c olina que n e nhum ex ército invasor poderá jamais atacar. As muralhas são tão espessas que não poderão ser derrubadas por máquinas de guerra,- são tão elevadas que ne nhum ser hum an o terá condições de escalar. O s doze portões são guardados por anjos. Assim como a volta ao Éden uma vez foi impe dida pelo anjo que g uardava o portão, assim a N o v a Je rusalém é defendida contra a invasão de forças sobrenaturais. É i m p o r t a n t e o bs e r v a r q ue os d o z e po r t õe s da N o v a J e r us a l é m, ainda que guardados por anjos, estão permanentement e abertos. As cidades fortificadas dos tempos antigos eram feitas de maneira a ex cluir os estranhos que ali chegassem, mas a arquitetura da Nova J erusalém parece pro jetada para acolher a todos em seu re cinto. A cidade é retratada como perfeitamente cúbica (21,36), t a l v e z s i g n i ficando que poss ui a perfe ição do T em plo quadr ado que o profeta Ezequiel viu em visões para a reconstrução de Jerus além depois da v o l t a d o e x í l i o ( E z 43,16, 48,20). A a te nção c uida dos a pos ta nessas im a g e ns dá a e nte nde r que a N o v a J e r u s a l ém de v e s er v i s t a c o m o o c u m p r i m e n t o de I sr a el pe l a
restauração de suas doze tribos (Ap 21,14). O que é mais significativo é que a Nova Jerusalém não possui um Templo (Ap 21,22). As hierarquias do culto da antiga tradição sacerdotal foram abolidas e postas de lado. Todos agora são sacerdotes e não há necessidade de Templo, porque Deus habita dentro da cidade inteira. Numa admirável transformação de imagens, a própria cidade se transformou em Templo, onde Deus é tudo em todos. Os profetas do Antigo Testamento aspiraram à reconstrução do Templo, mas agora o Apocalipse declara que o Templo é supérfluo. A realidade que aquela reconstrução prenunciava agora se realizou. Com o advento da realidade da presença de Deus, o símbolo do Templo não é mais necessário. O lugar de habitação de Deus é agora junto ao povo de Deus, não precisando mais estar contido dentro de uma estrutura física. A Nova Jerusalém é caracterizada, assim, pela presença total de Deus e pela resposta triunfante e alegre daqueles que durante longo tempo aguardaram essa experiência. Essa imagem do céu ecoa fortemente nos temas principais da teologia de Paulo, segundo a qual os cristãos devem ser considerados "cidadãos do céu" (F1 3,1921). Paulo faz uma distinção entre aqueles que "põem seu pensamento nas coisas da terra" e aqueles que são cidadãos "do céu". O próprio Paulo era cidadão romano e conhecia os privilégios que a cidadania trazia, principalmente naquelas ocasiões em que ele se viu em conflito com as autoridades romanas. Para Paulo, os cristãos possuíam algo maior: eram "cidadãos do céu". Devese entender aqui que eles têm a posse presente do céu e não alguma coisa que ainda está por vir. Embora os fiéis ainda tenham de entrar na plena posse daquilo que constitui a cidadania, eles já possuem esse privilégio. Não temos uma habitação permanente neste mundo, porque nossa habitação está no céu (F1 3,20). Como o autor da carta aos Hebreus explica, "não temos aqui uma cidade permanente, mas nossos olhos se voltam para a cidade que virá" (FJb 13,14).
o A A P A R Ê N C IA
céu
D O C O R P O H U M A N O N O CÉU
O Novo Testamento declara que os cristãos são "cidadãos do céu". Mas como devem ser os cidadãos do céu? Se o céu deve ser comparado com uma cidade humana, como são seus habitantes? O Novo Testamento tem muito pouco a dizer a esse respeito, embora dê algumas pistas, informando que esses assuntos são um mistério e não fatos conhecidos. A imagem da semente que Paulo usa em 1 Coríntios 15 foi interpretada por muitos escritores com o significando que existe algum nexo orgânico entre nosso corpo terrestre e o corpo celeste. A ressurreição poderia ser concebida, assim, como o desdobramento de um modelo predeterminado do organismo humano. Convém advertir que esta imagem deve ser considerada com a devida cautela. Embora alguns teólogos achassem que se viam obrigados a tratar esses assuntos com parcimônia, outros parecem terse sentido libertados das limitações tradicionais impostas pelo texto bíblico e assim se lançaram a especulações teológicas que podem ser qualificadas como mais estratosféricas especulações. Uma possibilidade é imaginar que as ruas da Nova Jerusalém são habitadas por almas sem corpos. Segundo esse modelo, o ser humano consta de dois elementos, o corpo físico e a alma espiritual. A morte liberta a alma do corpo material. Esta opinião tornouse lugarcomum na cultura helenística do período do Novo Testamento, mas era uma teoria rejeitada pela maior parte dos teólogos cristãos primitivos. O representante mais importante da minoria que ensinava essa teoria foi Orígenes, um teólogo inteligente e criativo, profundamente influenciado pela filosofia de Platão e que afirmava que o corpo da ressurreição era puramente espiritual. Essa teoria foi contestada pela maior parte dos autores cristãos, que insistiam que a expressão "a ressurreição do corpo" devia ser entendida como ressurreição permanente do corpo e da alma dos fiéis. Mas com que deveriam parecerse esses indivíduos ressuscitados? Muitos escritores cristãos primitivos afirmavam que os "cidadãos do céu" seriam nus como eram na situação em que se encontravam no paraíso. Mas nessa condição a nudez não causaria
vergonha nem impulso sexual, mas seria simplesmente aceita como estado natural de inocência da humanidade. Outros, porém, afirmavam que os habitantes da Nova Jerusalém estariam revestidos de indumentária finíssima, refletindo sua condição de cidadãos da cidade escolhida de Deus. Era óbvio para muitos escritores que a condição final dos fiéis falecidos não tinha importância material para sua aparência no céu. O problema surgiu como questão teológica importante durante a perseguição dos cristãos na cidade de Lião, por volta dos anos 175177. Sabendo que os cristãos professavam a crença na "ressurreição do corpo", seus opressores pa gão s queimavam os corp os dos mártires e lançavam suas cinzas no rio. Acreditavam que assim impediriam a ressurreição desses mártires, uma vez que não haveria mais corpo para ser ressuscitado. Os teólogos cristãos respondiam afirmando que Deus tinha o poder de restaurar tudo que o corpo tinha perdido pelo processo destrutivo. Metódio do Olimpo (falecido em 311) mostrou uma analogia desse processo de reconstituição que haveria de ter uma grande influência. Afirma ele que se pode imaginar a ressurreição como uma espécie de "remanejamento" dos elementos constitutivos da humanidade. Seria como uma estátua que é derretida e refundida a partir do mesmo material, mas com eliminação de quaisquer defeitos ou danos que a imagem original eventualmente possuísse: É como se um artista habilidoso fundisse o ouro ou outro material para f a z e r u m a i m a g e m n o b r e e p e r f e i ta m e n t e s i m é t r ic a e m t o d a s as sua s c a r a c te r ís t ic a s . D e p o i s , o a r t is t a r a p i d a m e n t e p e r c e b e q u e a i m a g e m f o i d e formada por alguma pessoa invejosa que não podia suportar sua beleza, n ã o t e n d o o u tr o m e i o s e n ão o de d a n i fic a r a im a g e m p o r s im p le s p r a z e r d e s a t is f a z e r à s ua i nv e j a . O a r t is t a de s e j a e n t ã o r e f u n d i r a n o b r e i m a g e m [ . .. ] . P a r e c e- m e q u e o p l a n o d e D e u s e r a b e m s e m e l h a n te a e ss e e x e m p l o humano. Ele viu que a humanidade, sua criação mais maravilhosa, tinha s i d o c o r r o m p id a p e l a i nv e j a e p e la d e s l e a ld a de . T ã o g r a n d e e r a o s e u a m o r ã humanidade que ele não poderia permitir que ela continuasse nessa con-
dição, permanecendo defeituosa e deficiente por toda a eternidade. Por e ss e m o t i v o , D e u s d i s s o l v e u a h u m a n i d a d e , r e d u z in d o - a a os m a t e r ia is o r i g i n a is , d e m o d o q ue p ud e s s e s er r e m o d e l a d a d e ta l f o r m a q u e to d o s o s s e us d e f e i to s p u d e s s e m s e r e l im i n a d o s e de s a p a r e c e s s e m . A s s i m , a f u n d i ção de uma estátua corresponde à morte e dissolução do corpo humano e a remodelação do material corresponde à ressurreição depois da morte.
S e m e l ha n t e a r g u m e n t o e nc ontr a - s e n os Quatro Livros de Senten ças, o br a - pr im a d o g r a n d e te ó l o g o d o s é c ulo X I I P e d r o L o m b a r d o . Esse livro, que serviu de manual básico para quase todo teólogo me diev al, baseou- se na teoria de que o co rpo r ess uscitado era f un damentalmente uma humanidade reconstituída da qual todos os de feitos tinham sido corrigidos: Nada que é da substância da carne da qual a humanidade foi criada será p e r d i d o , ■a n te s , a s u b s t â n c i a n a t u r a l d o c o r p o s e r á r e i n t e g r a d a p e l a r e u nião de todas as partículas dispersadas anteriormente. Os corpos dos santos ressuscitarão sem defeitos, refulgentes como o Sol, livres de toda deformação.
O l iv r o i r la n dê s d o s é c ulo X I I i n t it u l a d o O livro da vaca parda (Leahhar na Uidhre), assim chamado porque o material em que foi escrito teria sido um pedaço de couro de uma vaca d e São Ciaran em Clonmacnoise, desperta uma nova questão sobre a natureza da res surreição do co rpo. O que ac ontece se o fiel é comido? O Livro da vaca parda, que parece responder a preocupações pastorais genuínas sobre esse assunto, afirma que os vários fragmentos da humanidade, embora dispersos e decompostos, são "refundidos par a formar um novo ser belo" pelo "fogo do Juízo Final". No entan to, a obra reco nhece a importância do lugar preciso em que o fiel vem a falecer: A q u e le s q u e f o r a m d e v o r a d o s pe la s f er as e dis pe r s a d o s e m v ár io s lug a r e s ressuscitarão de acordo com a determinação do Senhor que os reunirá e renovará [...]. Neste caso, eles ressuscitarão no lugar em que foram devo rados e dispersados, porque este lugar é considerado como sua sepultura.
O u t r o p r o b le m a , e n f im , q ue m u it o p r e o c u p o u os t e ól o g o s c r is tãos é a questão da idade dos corpos ressuscitados. Se alguém morre c o m 60 anos de idade aparecerá nas ruas da No v a Je rusalém c om o um ancião? E se alguém falecer aos 10 anos será ressuscitado como uma criança? Esta questão fez muito teólogo gastar tint a, especialmen te na Idade M édia. N o final do s éculo X III, pode- se discernir um certo consenso. Como cada pessoa alcança o auge de sua perfeição p o r v o l t a do s 30 anos, os corpos deverão ser ressuscitados na forma como pareceriam ser nessa idade, mesmo que nunca ch egassem a essa idade. A e x po s ição de P e dr o L o m ba r do a esse r e s pe ito é t íp ic a de seu tempo: "Um menino que morre imediatamente após o nasci mento ressuscitará na forma que deveria ter na idade de 30 anos". A N o v a J e r us a l é m s er á, e n t ão , h a b i t a d a p o r h o m e n s e m u lhe r e s c o m a aparência que deve riam ter por v olta dos 30 anos (naturalmente, a idade com que Cristo foi crucificado), porém com re moção de toda deformidade.
O
C É U C O M O E N C O N T R O C O M O S E N T E S Q U E R ID O S
Um dos temas teológicos mais importantes relacionados com o céu é o da reunião. Talvez o aspecto mais angustiante da morte seja a separação-, ver-se obrigatoriamente, talvez irreversivelmente, arrancado da companhia dos amigos e parentes, para não poder vêlos nunca mais. Os rituais clássicos do luto e os ornamentos fúne bres exprimem o sentido de desolação que tradicionalmente acom p a n h a m a m o r t e . O m u n d o h e l é n ic o a co s tum ou- s e c o m o m i t o d o Hades, que retratava o barqueiro Caronte transportando os mortos pelo rio Estige cobrando a moeda de um óbolo que er a depositada na boca do falecido para paga r a tarifa do transporte. A o descer no outro lado (o outro mundo), o falecido tomava parte em uma reu nião de família. Essa crença fundamental inspira dois dos mais importantes d i á l o g o s d e C í c e r o , Sobre a velhice e O sonho de Cipião, que é, talvez.
m a is i m p o r t a n t e a i nd a . N e s t a úl t im a o br a , C íc e r o r e t r at a o e n c o n t r o de Cipião com importantes cidadãos romanos, no para íso, os quais aproveitam a oportunidade para lhe dar uma conferên cia sobre ética p o lít ic a . A o b r a a s s um e u m n o v o t o m q u a n d o C íc e r o de s c re v e a r e u nião de Cipião com o pai; "Vi, então, meu falecido pai, Paulo, que se aproximava, e me debulhei em lágrimas. Meu pai este ndeu o braço, abraçando- me e beijando- me, pedindo- me que não chorasse".
Esse panorama clássico de uma reunião de família no outro mundo exerceu um importante impacto no estilo e no assunto da literatura cristã da época, apesar de se basear em fundamentos teológicos distintos. Cipriano de Cartago (falecido em 258), bispo mártir do século III, tentou animar os cristãos de seu tempo para enfrentar o sofrimento e a morte naquele tempo de perseguição, apresentandolhes uma visão do céu em que eles haveriam de ver os mártires e apóstolos face a face. Mais ainda, eles seriam reunidos àqueles que amavam e a quem queriam bem. Cipriano concebe o céu como "pátria" dos cristãos, da qual tinham sido ex ilados no te m po que passaram na T erra. A esperança da volta à pátria, para se unirem de novo àqueles que conheciam e amavam, era considerada uma grande consolação nas horas de pro vação e sofrimento. Para nós, o paraíso é nossa pátria [...]. Muitos de nossos entes queridos nos aguardam lá, onde uma densa multidão de pessoas, nossos pais, ir m ã o s , f i lh o s , s e n t e s a u d a d e d e n ós , t e n d o j á g a r a n t i d o s u a s e g u r a n ç a e d e s e j a n d o n o s s a s a l v a ç ão . Q u e a l e g r i a n ã o h a v e r á a l i p a r a e le s e pa r a n ó s , quando chegarmos à sua presença e compartilharmos seu abraço!
O próprio Cipriano foi martirizado em 258, confortado, tal-
vez, precisamente com as palavras com que consolava os outros. Esse tema importante encontrase também na oração fúnebre que Ambrósio de Milão pronunciou em homenagem ao imperador Teodó sio, em janeiro de 395. Teo dósio tinha tido uma grave discussão com Ambrósio, no passado, em decorrência da decisão tomada
em 390 de fazer matar sete mil cidadãos de Tessalônica para vingar o assassinato do governador romano, Buterico. Ambrósio, depois de consultar seus companheiros bispos, informou a Teodósio que ele deveria submeterse a rigorosa penitência pública para poder voltar a receber os sacramentos. Teodósio, por fim, tinha se desvestido de todo sinal de realeza, como penitência pública de seu pecado. Na oração fúnebre, Ambrósio pediu aos ouvintes que imaginassem a cena no céu, em que Teodósio fosse visto ao ser abraçado pela esposa Flaccila e pela filha, Pulquéria, antes de se reunir ao seu pai e antecessor como um imperador romano cristão, um Constantino. O me sm o tema aparece nas noções protestantes da nature za do céu. A co nce pção prote sta nte cláss ica do céu se declara, talve z, com a m á x i m a c l a r e z a n o a u t o r p u r i t a n o R i c h a r d B a x t e r (16151691), segundo o qual a característica principal do céu é a total absorção reverenciai em Deus. Em The Saint's Everlasting Rest [ O r e po us o e t e r n o dos santos], ele afirma que o culto de Deus é a suprema atividade dos s antos no céu. N a da ex iste que possa distraí- los da ador ação de Deus que os criou e resg atou, trazendo- os finalmente para o repouso eter no no céu. A co nte m plação da esperança do céu é um antídoto contra a dor e as distrações deste mundo. A s s im c o m o D a n i e l , e m s e u c a t iv e ir o , t o d o s os dia s a b r ia a j a n e l a v o l t a d a p a r a J e r u s a l é m , a i n d a q u e d i s t a n t e d o s o l h o s , a o s e d i r i g i r a D e u s e m s uas d e v o ç õe s , d a m e s m a m a n e i r a p o s s a a a l m a d a q ue l e q ue c r ê , pr e s a n o c a t i v e i r o d a c a r ne , v o l t a r o o l h a r p a r a a J e r u s a l é m q ue e s t á n o a l to .
Durante o século XIX, começaram a surgir novas maneiras, alternativas, de representar o céu, especialmente depois da Guerra Civil americana, que tinha causado um número de bai xas sem pre cedentes, propagando a dor e o luto por toda a nação. Começou a florescer novo interesse pela espiritualidade, quando famílias deso ladas procuravam restabelecer o contato com parentes falecidos no campo de batalha. Surgiu, assim, o novo gênero de " literatura de consolação", que dava uma nova concepção do céu, principalmente c o m o r e e n c o n t r o c o m o s e n t e s q u e r i d o s . N a o b r a The Gates A ja r [ O s
o
cé u
portões entreabertos] (1868), Elizabeth Stuart Phelps (18441911) rejeita a idéia tradicional do céu como "sons de harpa e oração" e afirma que o céu é a restauração da vida e dos parentes. O céu é retratado como a extensão de uma família do século XIX, em que as criancinhas passam o tempo "comendo biscoitinhos de gengibre" e tocando num piano de jacarandá, enquanto os adultos ouvem conferências cultas de filósofos e sinfonias de Beethoven.
O
C É U E O C U L T O D A IC R E J A
Um dos aspectos mais interessantes da concepção cristã do céu é o papel que este desem penh a na formação e na sustentação do culto. Especialmente na tradição ortodoxa bizantina, o culto público da Igreja representa o aproximarse dos umbrais do próprio céu. Os fiéis são animados a se ver como que penetrando pelos pórticos do céu, vislumbrando uma parcela do culto celestial. A liturgia bizantina celebra a noção do arrebatamento ao culto celestial e o sentido de mistério que é evocado ao se transpor os limites da visão humana. Participar do culto significa, portanto, estar no lugar sagrado (Ex 3,5), um lugar em que a humanidade, a rigor, não tem o direito de estar. Sempre que a Divina Liturgia é celebrad a na Terra, as fronteiras entre céus e Terra são removidas, e os fiéis do culto terrestre se unem na eterna Liturgia Celestial, entoada pelos anjos. Nesses momentos de adoração terrestre, os fiéis têm a oportunidade de ser transportados pela música até o limiar do céu. Ao terem acesso ao lugar sagrado para tomar parte nas coisas sagradas, os fiéis adquirem ao mesmo tempo conhecimento de sua finitude e de sua condição de pecado e uma visão momentânea da glória de Deus. A idéia do acesso a o lim ia r do s ag r ado, c r uza r os pór tic o s p r o i bidos da região celestial, tem uma representação visual na estrutura do s t e m p lo s b i z a n t in o s , p r in c i pa l m e n t e p e l o m o d o c o m o o s a n t uá rio e o altar ficam separados da assembléia dos fiéis, imprimindo ao lugar do altar um ar de respeito e veneração do mis tério de Deus.
Em seus tratados sobre o culto, João Crisóstomo e o utros autores da Patrística grega costumam chamar a atenção para a importância litúrg ica desse senso do sag rado. O culto div ino é, acim a de tudo , a visão antecipada da vida e do culto celestial, uma coisa que sustenta os fiéis durante a longa peregrinação da fé.
O
C É U E O M IL Ê N IO
Os cristãos não se cansam de especular sobre as origens e os fins. Um debate escatológico particularmente intere ssante foi o que surgiu no século XIX, particularmente no seio do pr otestantismo americano, e que continua firme até nossos dias. Dado o interesse intrínse co dessa ques tão, dev ere mos es tudá- la mais de tidame nte. O debate centraliza- se em g rande parte na noç ão de "m ilênio" s e g u n d o u m a i d é i a m e n c i o n a d a n o l i v r o d o A p o c a l i p s e (20,25). O m ilên io refere- se à re stauração do r eino terrestre de duração de mil anos, separando a segunda vinda de Cristo e a s ubseqüente ins tauração de uma ordem cósmica totalmente nova. Alguns autores cristãos primitivos, como Ireneu de Lião, interpret avam esta passa gem literalmente, mas logo se desenvolveu um consen so de que se tratava de um a aleg oria. A refe rência a um per íodo de m il anos não deve ser entendida como previsão literal da duração cronológica de um reino terrestre, mas como um indício alegórico da grandiosida de do reino dos céus. Todavia, desde o século XIX, a noção do milênio registrou um retorno nas camadas do protestantismo popular, e specialmente na América do Norte. Uma das características mais distintivas do protestantismo conservador contemporâneo nos Estados Unidos é a redescoherta da idéia do m ilênio. A tualme nte os diversos círculos do protestantismo americano mostram três modos bastante distin tos de encarar essa idéia. 1.
O p o n t o de v i s t a amilenar rec usa o e n v o l v i m e n t o n a e s p e c
ção sobre o final dos tempos, alegando que essa preocupação distrai as pessoas da coisa mais impo r tante , que é lev ar uma v ida cr istã e tra
tar dos problemas do mundo. Essa posição propagouse amplamente na linha principal do protestantismo no século XVI, devendose notar, no entanto, que autores importantes como Martinho Lutero e João Calvino recusavamse a se envolver nesses debates fúteis. Embora os adversários anabatistas demonstrassem o gosto de prever uma revolução social decorrente da intervenção apocalíptica divina, a maior parte dos protestantes daquele tempo não mostrava muito interesse pela questão. Assim se seguiu até meados do século XIX, quando começou a surgir novo interesse na questão do milênio. 2. O ponto de vista pós- milenar exerceu grande influência no protestantismo americano no século XIX. Esta corrente afirma que o retorno de Cristo se dará no término de um prolongado período (não necessariamente de mil anos) de paz e justiça, comumente conhecido como milênio. Importantes teólogos protestantes conservadores, como os acadêmicos de Princeton Charles Hodge (17971878) e Benjamin B. Warfield (18511921), eram de opinião que Deus vinha realizando seus desígnios por meio de uma constante superação humana do mal, conduzindo pouco a pouco a um mundo cristianizado. O pósmilenarismo atribui à Igreja um papel importante para a transformação de todas as estruturas sociais antes da Segunda Vinda de Cristo, esforçandose para fazer nascer uma "Idade de Ouro" de graça e prosperidade com grande progresso na educação, nas artes, nas ciências e na medicina. Durante esse processo, a Igreja cresceria em poder, influência e integridade como o portaestandarte do futuro reino de Deus na terra. A credibilidade da Igreja seria gravemente prejudicada pelos sofrimentos e danos causados pelas duas grandes guerras, que aumentaram o apelo do prémilenarismo, especialmente na América do Norte. 3. O ponto de vista pré- miknar acredita que a figura conhecida como "o Anticristo" aparecerá na Terra anunciando um período de sete anos de sofrimentos, conhecido como período da "Tribulação". Esse longo período de destruição, guerras e desastres na Terra terminará finalmente quando Deus derrotar o mal na batalha do Ar magedom. Depois disto. Cristo voltará à terra para reinar por um
período de mil anos (o milênio), durante o qual as forças do mal serão finalmente subjugadas e derrotadas. O pr é - m i le n a r is m o de s cr e v e u m a v i s ão e x c e s s i v a m e nt e pe s s i mista do mundo, acreditando que as coisas estão piorando na terra e continuarão a piorar até o momento em que Deus determinar o final da história. Esse modo de pensar faz ressoar um forte senso de alienação cultural em muitas partes do protestan tismo conser vador americano, especialmente ao prever que as forças anticristãs i m p o r ão s e u p o de r n a A m é r i ca , d o m e s m o m o d o que n o m u n d o e m geral. Essa degeneração do mundo é vista como sinal de que o fim do mundo está próximo, deixando esse desenvolvimento negativo aparecer como arauto de algo positivo.
As crenças a respeito do fim do mundo têm causado forte impacto no protestantismo popular americano, como se pode comprovar pela enorme venda de romances que refletem esse ponto de vista. O livro sobre o fim do mundo de Hal Lindsey, The Late Great Planet Earth (1970), foi um dos best-sellers de sua década. Nestes últimos tempos, o sucesso de romances de Tim LaHaye e Jerry Jenkins demonstra que a teologia prémilenar mantém um elevado grau de aceitação em toda a América. A V IS Ã O B E A T ÍF IC A : V E R D e U S F A C E A F A C E
A esperança cristã é expressa, muitas vezes, como visão direta da face de Deus, sem necessidade de elementos intermediários criados. No Antigo Testamento, o favor divino é indicado pela face de Deus voltada para o indivíduo, e a rejeição é mo strada com o afastamento da face de Deus. Nas petições cúlticas desse período, a pessoa que presta seu culto a Deus deve invocar a Deus para "levantar seu semblante" (2Rs 13,4; Is 1,12; E z 32,11) como meio de garantir a aceitação das orações ou dos sacrifícios oferecidos. Se a face de Deus estivesse "escondida" ou "afastada", o fiel não teria esperança de encontrar a aceitação divina (Dt 31,17; E z 7,22).
No entanto, a imagem da face de Deus preocupa muito mais que a noção da satisfação e do favor divino. Essa imagem evoca também a possibilidade do encontro com o Deus vivo. "Ver a face de Deus" significa ter um relacionamento íntimo e privilegiado com Deus, vendo Deus como "Deus de fato é" (ijo 3,2), em vez de ter de conhecer a Deus indiretamente, por meio de imagens e sombras. Agora vem os D eus "através de um vidro fosco, de maneira obscura", mas finalmente veremos Deus face a face (iCor 13,12). O Apocalipse afirma que este será o privilégio das pessoas no céu, onde os santos finalmente "verão a face de Deus" (Ap 22,4), A es pe r ança de v er a face de De us f oi de s e nv o lv ida a m pla m e n te na tradição cristã. Em sua Carta 92, A g o s t i n h o d e H i p o n a , e s c r e vendo à nobre viúva Itálica, explicou algumas coisas que ela desejava saber sobre a esperança do céu. A g os tinho re spondeu, ex plicando em detalhes a breve afirmação bíblica sobre "ver Deus". Enquanto estamos no exílio nesta Terra, não temos "condições" e não estamos "adaptados" para contemplar a plena glória de Deus,- só quando for m o s e le v a d o s à glória e transformados é que poderemos esperar ver o resplendor e a glória de Deus em toda a sua plenitude: V e m o s a D e u s c o n f o r m e a m e d i d a p e l a q u a l s o m o s a d a p t a d o s p a r a v ê - lo [ .. .] p o r m a is q ue p o s s a m o s p r o g r e d ir , s e m p r e c a r e c e r e m o s d a p e r f e i ç ão d a s e m e l h a n ç a q ue s e r e q u e r pa r a v e r a D e u s c o m o d i z o a p ós t o l o , "f a c e a f ac e "
Q u a n d o lê s "A g o r a v e m o s a tr a v és d e u m v i d r o f o s c o,
m a s e n t ã o v e r e m o s f a c e a f a c e " (1 C o r ín t i o s
1 3 , 1 2 ) , a p r e n d e d e s ta s
p a la v r a s q ue v e r e m o s a D e u s f a c e a f a ce p e lo s m e s m o s m e i o s p e lo s q ua is a g o r a o v e m o s a tr a v é s d e u m v i d r o f o s c o . N o s d o is c a s os , a v i s ão de Deus pertence à pessoa interior, seja enquanto caminhamos nesta p e r e g r i n a ç ão a i n d a p e l a fé , v a l e n d o - n o s d o v i d r o f o s c o e d a s o m b r a , s e ja q u a n d o , n o p a ís q ue é n o s s o l ar , te r e m o s u m a v i s ão d e n o t a d a p e la s palavras "face a face".
P a r a A g o s t i nh o , a v is ão de D e u s po s s u i u m a c a p a c id a d e ún ic a de satisfazer o desejo humano, ultrapassando absolutamente a capa cidade de todo ser ou toda coisa criada. Tal visão é o summum bonum.
o sumo bem, "a luz pela qual a verdade é recebida e a fonte da qual as bênçãos são absorvidas". A g o s t in ho de s e nv olv e essa idéia ma is a dia nte no liv r o A Cidade de Deus, afirmando que a visão de Deus no céu sustenta os fiéis du rante todo o tempo de sua peregrinação pela fé: O p r ó p r i o D e u s q ue é o A u t o r da v i r tu de s e r á n os s a r e c o m p e n s a . C o m o não existe nada maior nem melhor que o próprio Deus, ele promete que e le m e s m o se d o a r á a n ós . O q u e m a is p o d e s i g n if i c a r e s ta pa l a v r a d o p r o f e ta : "S e r e i o v o s s o D e u s e v ó s s e r eis o m e u p o v o " s e n ã o "S e r e i a s ua s a t is f a ç ã o , s e r ei t u d o q ue a q ue l e p o v o h o n r a d a m e n t e d es e j a: a v i d a , a s a úd e , a alimentação, a satisfação, a glória, a honra, a paz, e todas as boas coisas "? Esta é também a interpretação certa do que diz o apóstolo: "Deus será tudo em todos". Deus será o fim de todos os nossos desejos, ele será visto sem fim, amado insaciavelmente e louvado incessantemente.
A na tur e za da v is ão de D e us des f r uta da pe los s antos no céu foi objeto de não poucos debates durante toda a Idade Mé dia. O p a p a J o ã o X X I I (12491334) p r o v o c o u u m a c o n t r o v é r s i a b a s t a n t e vigorosa com o argumento que expôs de que os santos que agora es tão "sob o altar" (expressão proveniente de Apocalipse 6,9) p o d e m encontrar consolação pela contemplação da humanidade de Cristo,depois da ress urreição e do juíz o final, eles finalme nte po der ão g o zar da aleg ria plena e perfe ita de v er Deus dire tame nte. O sucessor de J o ã o X X II , B e n to X I I ( f a le c i do e m 1342), t e n t o u a t e n u a r a s m a n if e s t a çõe s u m t a n t o c a lo r os a s pr o v o c a d a s p e l o p a p a J o ã o X X I I a o afirmar que aqueles que já tinham sido purificados podiam gozar da visão de Deus antes do fim dos tempos,- outros, contudo, teriam de esperar até o final da história, até a plena revelação da glória de Deus. Porém, insistia ele, valia a pena esperar. O Salmo 27,4 exprime o desejo de ver a Deus com estas pa-
lavras: U m a s ó c o is a p e d i a o S e n ho r , Só isto desejo:
o
céu
P o d e r m o r a r n a ca sa d o S e n h o r T o d o s os d ia s d a m i n h a v i d a , P o d e r g o z a r d a s u a v id a de d o S e n h o r .
A visão cristã do céu afirma que aquilo que o Salmista desejava por toda a sua vida será um dia o privilégio comum de todo povo de Deus: contem plar a face do Senhor e Salvador, quando entrar em sua casa para morar em paz ali para sempre. Não é acidentalmente que a Divina comédia de Dante (12651321) chega ao seu auge quando o poeta, finalmente, após viagens épicas pelo inferno e pelo purgatório, surge para contemplar "o amor que move o Sol e outros astros". En t r o s a m e n t o c o m o t e x t o
John Donne (15711631) é talvez um dos maiores poetas espirituais da língua inglesa. O poema transcrito adiante é tirado da coleção "Divine Méditations”, que trata de temas teológicos e espirituais. O soneto personifica a Morte e afirma que ela foi esmagada pela ressurreição de Cristo. O poema termina com a afirmação da derrota derradeira e da destruição da Morte pela ressurreição que revigora a esperança cristã do céu. M o r t e , n ã o t e v a n g l o r ie s , a i nd a q u e a lg u n s t e c h a m e m de p o d e r o s a e as s o m b r o s a , c o is a q u e d e f a to n ã o és . M e s m o a q u e l e q u e j ul g a s t e r d e r r o tado não morre. Pobre Morte! Nem a mim mesmo tu podes matar. Tuas im a g e n s d e s o n o o u de r e p o u s o s ã o de m u it o s p r a z e r e s e m u i t o m a i s q u e isto. Eis que logo nossos melhores homens buscam em ti descanso dos seus ossos e libertação da alma. És escrava do Destino, do Acaso, dos reis e dos desesperados, e habitas onde existe o veneno, a guerra, as doenças, e com teu ópio e tuas magias nos fazes adormecer melhor que sob teus g o l pe s . D e q u e t e o r g u lh a s ? C a i r e m o s e m u m b r e v e s o n o e de s p e r t ar e m o s n a e t e r n i da d e e j á n ã o h a v e r á m o r t e . M o r t e , t u m o r r e r á s '.
1. D e a t h b e n o t p r o u d , t h o u g h s o m e h a v e c a l le d t h e e /M i g h t y a n d d r e a df ul , f o r t h o u a r t n o t s o ,/F o r t h os e w h o m t h o u th in k 's t , t h o u d o s t o v e r t h r o w , /D i e n o t , p o o r D e a t h , n o r
A poesia religiosa de Donne é recheada de matérias, imagens e idéias bíblicas. É impo rtante observar que a tradução em inglês da Bíblia que Do nne conh ecia melhor é a grande versão do Rei Jam es 1, de 1604, publicada em 1611 e conhecida como "Bíblia do Rei James", embora na Inglaterra ela seja ainda mencionada como a "Versão autorizada". A seguir examinaremos como os temas bíblicos se encontram tratados no poema transcrito acima. Ler o seguinte versículo da Bíblia do Rei Jam es: "O último inimigo que será destruído é a morte" ( 1C or 15,26). Como esse tema da morte, considerada um inimigo, é expresso no poema? Talvez o leitor deseje 1er o conte xto em que a passagem é exposta para ver como outras imagens e idéias dessa mesma fonte são elaboradas no poema. Consideraremos outra idéia logo a seguir.
Ler os seguintes versículos da Bíblia do Rei James: "Então estará cumprida a palavra da Escritura: a Morte foi tragada pela vitória. Oh, morte, onde está o teu aguilhão? Oh, sepultura, onde está a tua vitória? O aguilhão da m orte é o peca do, e a força do p ecado é a lei. Graças sejam d adas a Deu s que nos dá a vitória em Jesus Cristo Nosso Senhor" (iCor 15,5557). Como é que o tema da vitória sobre a morte é desenvolvido no poema? De que maneira Donne desenvolve essa idéia? O leitor pode também refletir sobre o modo
y e t c ans t t h o u k ill m e ./F r o m r est a n d s leep, w h ic h b u t t h y pi ctur e s b e /M u c h pleasure,t h e n f r o m t he e , m u c h m o r e m u s t f l o w , /A n d s o o n e s t o u r b e s t m e n w i t h t he e d o g o , /R e s t of their bones, a nd soul's delive ry ./T hou art slave to Fate, C hanc e, K ings , a nd deses pe r a t e m e n , /A n d d o s t w i t h p o i s o n , w a r , a n d s i ck n es s d w e ll ,- /A n d p o p p y o r c h a r m s c a n m a k e us s l e e p as w e l l /A n d b e t t e r t h a n t h y stroke,- w h y s w e ll 's t t h o u t h e n ? /O n e s h o r t sleep past, we wake eternally,/And death shall be no more,- Death, thou shalt die.
como essa idéia se aplica a "teorias da reconciliação” que afirmam que a morte e a ressurreição de Cristo devem ser principalmente entendidas com o vitória sobre a morte, o pecado e Satanás.
Observese como Donne desenvolve a idéia de várias analogias ("imagens") da morte como a conhecemos na vida ordinária. A principal figura é a do sono, quais são as outras? Co m o se pode con siderar que o uso que Donne faz das analogias da morte se aplica ao uso bíblico e teológico das analogias de Deus?
4
Considerese a seguinte citação de Donne: "Nenhum ser vivente jamais viu Deus e pôde viver. Contudo, não viverei enquanto não vir Deus e, quando o tiver visto, não morrerei jamais". Q ue idéia Donne exprime nessa afirmação? Como é que essa afirmação se relaciona com a idéia da "visão beatífica" de que tratamos anteriormente neste capítulo? E como se relaciona com o poema de Donne transcrito acima?
Prosseguindo
Esta breve introdução aos elem entos fundamentais da teolo gia cristã teve por objeto animar e estimular o leitor, procurando mostrar como é possível examinar algumas idéias principais da teologia e interagir com alguns dos textos mais importantes nesse campo. Procurouse também avivar o desejo de aprofundar os conhecimentos, de modo que o leitor aspire sempre a algo mais, ao chegar ao fim deste livro. E isto que um pequeno livro pretende alcançar ao tratar de um assunto tão rico e complexo como a teologia cristã. Entendese que uma introdução fundamental como esta à teologia cristã apresenta muitos pontos fracos, quase sempre devidos à limitação do espaço. De início, só foi possível apresentar alguns poucos temas teológicos. Muitas outras questões restam por ser estudadas, como, por exemplo, as doutrinas da graça, da natureza humana e a compreensão cristã do lugar das outras religiões. Também as questões relativas ao "método teológico" foram tratadas superficialmente. Naturalmente, seria preciso tratar mais detalhadamente das fontes e normas da teologia. Outra grave deficiência é que dificilmente se atendeu a alguma contextualização histórica. Tanto Martinho Lutero como João Calvino são apresentados aos leitores, mas não são explicados e examinados à luz do surgimento da Renascença européia e das origens
da Reforma protestante. Tomás de Aquino também é apresentado, mas não houve espaç o para explicar o avanço do movimento con he cido como "teologia escolástica" com exposição de suas características principais, visto que seria necessário apresentar um texto introdutório bem mais longo. Este livro representa um bom com eço, mas não passa de um como que aperto de mãos para iniciar um diálogo mais aprofundado. O que é preciso fazer para continuar? Ao terminar este livro, o leitor certamente desejará prosseguir na investigação teológica. Alguns leitores desejarão ir bem mais longe. A leitura deste livro pode ter sido feita também a título de experimento, para ver se vale a pena ir mais longe. O leitor que conseguir assimilar o material tratado neste livro terá condições para lidar com a análise mais detalhada da obra mais aprofundada que escrevi, intitulada Christian T heolog y - A n Introduction (Introdução à Teologia C ristã). Já este livro menor foi planejado e escrito para levar o leitor a um entrosamento mais abrangente com a história, idéias e métodos da teologia cristã. Partindo deste nosso livro básico, o leitor perceberá que o encontro mais aprofundado com a fascinante disciplina teológica será bem mais fácil e satisfatório. M eu livro Christian T heoíogy, atualmente na quarta edição, serve para os mais variados usos e contextos, inclusive para o estudo privado individual, cursos diversos, e estudo em grupo, vindo a se tornar um best-seller em seu gênero nos meios acadêmicos e seminários, tendo sido traduzido já em nove idiomas. As três partes principais da obra dão uma vista geral da história da teologia cristã, de suas fontes e métodos e de suas idéias fundamentais. Se o leitor quiser ampliar seus conhecimentos teológicos, a obra Christian Theology é o livro indicado. Outro livro que pode ser muito útil é The Christian Theoloÿy Rea der, já na terceira edição, contendo mais de trezentos textos, cada um com sua própria introdução, com entário e questões para estudo. Cada texto foi testado com leitores para garantir que pode ser facilmente compreendido. O leitor que se sentir estimulado com o
entrosamento alcançado com os textos teológicos de cada capítulo desta introdução básica poderá tirar bom proveito da segunda obra citada, que é bem mais ampla. Pode ser que alguns leitores prefiram encerrar seus estudos neste ponto. Neste caso, agradeço por terem permitido que eu os acompanhasse nesta investigação teológica, desejandolhes bom proveito no fijturo. Ao me despedir, gostaria de citar uma passagem de Karl Barth e animálos a ver na teologia não só um instrumento útil para afirmar a vida da fé como um bem individual, mas também como instrumento de vida e testemunho da Igreja: A teologia não é um assunto particular destinado só aos teólogos, não é também um assunto particular para professores. E bom reconhecer que sempre tem havido pastores com melhores conhecimentos de teologia do que muitos professores. Por outro lado, a teologia também não é uma matéria de estudo particular para os pastores. Convém dizer que existem também muitos membros das congregações e, às vezes, congregações inteiras que se dedicam com grande entusiasmo ao estudo da teologia, enquanto seus pastores não passam de principiantes ou estranhos. A teologia é assunto para a Igreja,
Breve glossário de termos teológicos
Adocionismo Doutrina herética segundo a qual Jesus foi "adotado" como Filho de Deus em um determinado momento durante seu ministério (geralmente na hora do batismo), em oposição ao ensinamento ortodoxo de que Jesus era Filho de Deus por natureza, desde sua concepção.
Anabatismo Termo originado da palavra grega que significa "repetição do batismo", usado para identificar a corrente radical da Reforma do século XVI, segundo pensadores como Menno Simons e Balthasar Hubmaier.
Analogia da fé (analog ia Jidei) Teoria especialmente relacionada com Karl Barth, segundo a qual qualquer correspondência entre a ordem criada e Deus só é estabelecida com base na autorevelação de Deus.
Analogia do ser (analogia entis) Teoria relacionada especialmente com Tomás de Aquino segundo a qual existe uma correspondência de analogia entre a ordem criada e Deus, como conseqüência do ato criador divino. A idéia justifica teo
ricamente a prática de tirar conclusões a respeito de Deus a partir de objetos e relações conhecidos na ordem natural. Ancilla theologiae
Expressão latina que significa "serva da teologia", usada para identificar a prática do emprego de idéias filosóficas ou culturais como auxílio ou interlocutora do diálogo da teologia cristã.
Apropriação Termo relacionado com a doutrina da Trindade, afirma que, embora todas as três pessoas da Trindade sejam ativas em todas as ações externas a ela atribuídas, é apropriado pensar a respeito de tais ações como obra particular de uma das três pessoas, de tal maneira que é apropriado pensar a criação como obra de Deus Pai ou pensar a redenção como obra de Deus Filho, apesar de estarem as três pessoas presentes e ativas nessas duas ações.
Arianismo Heresia cristológica de grande importância, situava Jesus Cristo entre as criaturas supremas de Deus, negando sua divindade. A controvérsia ariana prestou importante contribuição para o desenvolvimento da cristologia no século IV.
Barthiano Adjetivo usado para descrever a visão teológica do teólogo suíço Karl Barth (18861968), principalmente quando se trata da ênfase que ele põe na prioridade da revelação e de seu foco em Jesus Cristo. Os termos "neoortodoxia" e "teologia dialética" também são usados nesse sentido.
Calvinismo Termo ambíguo, usado em dois sentidos totalmente distintos. Primeiro, referese às idéias religiosas de entidades religiosas como, por exemplo, a Igreja Reformada e de indivíduos como Theodore
Beza, profundamente influenciados por João Calvino ou por documentos escritos por ele. Em segundo lugar, o termo referese às idéias religiosas do próprio João Calvino. Embora o primeiro sentido seja mais comum, hoje se reconhece cada vez mais que o termo é ambíguo.
Carisma, carismático Termos de origem grega atribuídos especialmente aos dons do Espírito Santo. Na teologia medieval, o termo carisma é usado para designar dom espiritual, concedido a certos indivíduos pela graça de Deus. Desde o século XX, passouse a usar o adjetivo "carismático" para identificar os tipos de teologia e culto que põem ênfase particular na presença e na experiência imediata do Espírito Santo.
Cartesianismo Teoria filosófica atribuída a René Descartes (15961650), principalmente em razão da ênfase que ele punha na separação do sujeito que conhece e do objeto conhecido e também na insistência de que a existência do pensamento individual é o ponto de partida próprio para a reflexão filosófica.
Catecismo Manual popular da doutrina cristã, em geral na forma de perguntas e respostas, usado para ministrar instrução religiosa.
Católico Adjetivo usado para significar a universalidade da Igreja no espaço e no tempo, além de significar uma Igreja particular (principalmente a Igreja Católica Romana), realçando sempre o caráter universal.
Cinco vias Termopadrão aplicado aos "cinco argumentos de prova da existência de Deus" elaborados por Tomás de Aquino.
Cisma Cisão deliberada da unidade da Igreja, condenada vigorosamente pelos escritores da Igreja primitiva como Cipriano e Agostinho.
Consubstanciai Termo latino derivado do grego homoousios, que significa literalmente "da mesma substância". O termo é usado para afirmar a plena divindade de Jesus Cristo, particularmente por oposição ao arianismo.
Credo Definição formal ou resumo da fé cristã, professada em comum pelos cristãos. Os credos mais importantes são o Credo dos Apóstolos e o Credo Niceno (formulado inicialmente pelos bispos reunidos no Concílio de Nicéia).
Cristologia Parte da teologia cristã que trata da identidade de Jesus Cristo, principalmente a distinção nele da natureza humana e da natureza divina.
Definição de Calcedônia Declaração formal, proclamada no Concílio de Calcedônia, afirmando que Jesus Cristo deveria ser visto como tendo duas naturezas, uma humana e outra divina.
Deísmo Termo empregado para significar teorias de um grupo de escritores ingleses, especialmente no século XVII, cujo racionalismo previa muitas das idéias do iluminismo. Muitas vezes o termo é empregado para significar uma visão do conhecimento de Deus que lhe reconhece a condição de criador mas rejeita a noção de envolvimento divino contínuo no mundo.
Docetismo Heresia cristológica primitiva segundo a qual Jesus Cristo era um ser puramente divino, que só tinha a "aparência" de ser humano.
Donatismo Movimento centralizado na África Setentrional romana, no século IV, propugnado por Donato, que afirmava a necessidade da santidade pessoal por parte dos membros e ministros da Igreja, insistindo na necessidade de medidas disciplinares para salvaguardar o regime de santidade pessoal onde e sempre que necessário.
Doutrina das duas naturezas Termo geralmente atribuído à doutrina de duas naturezas, humana e divina, de Jesus Cristo. Outros termos com esse significado são "definição calcedônica" e "união hipostática".
Ebionismo Heresia cristológica primitiva segundo a qual Jesus Cristo era uma figura puramente humana, embora dotado de dons carismáticos particulares que o distinguiam de outros seres humanos.
Eclesiologia Parte da teologia cristã que trata da doutrina sobre a Igreja.
Encarnação Termo usado para significar a assunção da natureza humana por Deus na pessoa de Jesus Cristo. O termo "encarnacionismo" é empregado muitas vezes para significar teorias teológicas que põem ênfase especial em Deus enquanto assumindo a humanidade.
Era apostólica Período da Igreja cristã visto por muitos como definitivo, tem início na ressurreição de Jesus Cristo por volta do ano 35 e termina com a
morte do último apóstolo, por volta do ano 90 d.C. As idéias e práticas desse período eram consideradas e aceitas geralmente com grande autoridade, pelo menos em algum sentido ou em algum grau, em muitos círculos eclesiásticos.
Escatologia Parte da teologia cristã que trata das "últimas coisas", especialmente ressurreição, inferno e a vida eterna.
Escolástica Método particular da teologia cristã, atribuído especialmente à Idade Média, com ênfase na justificação racional e na apresentação sistemática da teologia cristã.
Eucaristia O termo referese, neste livro, ao sacramento conhecido também como "Missa", "Ceia do Senhor " e "Santa Comunhão".
Exegese Ciência de interpretação textual, geralmente aplicada de modo especial à Bíblia. O termo "exegese bíblica" basicamente significa "o processo de interpretação da Bíblia". As técnicas específicas empregadas na exegese da Escritura geralmente recebem o nome de "hermenêutica".
Exemplarismo Abordagem particular da doutrina da reconciliação que acentua o exemplo moral ou religioso proposto por Jesus Cristo àqueles que crêem. Homoousion
Termo grego que literalmente significa "da mesma substância" e que passou a ser amplamente empregado no século IV para designar a crença cristológica central de que Jesus Cristo era "da mesma substância de Deus". O termo era polêmico, dirigido contra a teoria de Ário, segun-
do a qual Jesus era de "substância semelhante (homoiousios)" de Deus. Ver também Consubstanciai.
Iluminismo Termo usado desde o século XIX para definir a ênfase na razão e na autonomia humana, característica muito acentuada do pensamento europeu ocidental e norteamericano no século XVIII.
Logos Palavra grega que significa "palavra" e desempenhou um papel preponderante no desenvolvimento da cristologia patrística. Jesus Cristo era reconhecido como "Palavra de Deus", a questão referiase a implicações desse reconhecimento e, de maneira especial, ao modo como o Logos divino em Jesus Cristo se referia à sua natureza humana.
Modalismo Heresia trinitária que concebe as três pessoas da Trindade como "modos" distintos da única Divindade. Uma teoria modalista típica consiste em ver Deus agindo como Pai na criação, o Filho agindo na redenção e o Espírito agindo na santificação.
Monofisismo Doutrina segundo a qual só existe uma natureza em Cristo, a natureza divina (a palavra é formada do grego monos, "única", e physis, "natureza"). Essa teoria diferia da teoria ortodoxa, defendida pelo Concílio de Calcedônia no ano 451, que ensinava a doutrina segundo a qual Cristo tinha duas naturezas, uma divina e outra humana.
Ortodoxia Termo empregado em muitos sentidos, entre os quais os seguintes são os mais importantes, ortodoxia no sentido de "doutrina certa", por oposição a heresia, ortodoxia no sentido das formas do cristianismo dominantes na Rússia e na Grécia, ortodoxia no sentido de movimen
tos dentro do protestantismo, especialmente no final do século XVI e no início do século XVII, que punham em relevo a necessidade da definição doutrinária.
Padres capadócios Termo usado para significar coletivamente os três principais escritores de língua grega do período patrístico; Basílio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa, todos do final do século IV. A Capadócia é uma região da Ásia Menor (hoje Turquia) onde esses Padres escreveram suas obras.
Parusia Termo grego que significa literalmente "advento" ou "chegada", usado para significar a vinda ou o advento de Cristo. A noção de parusia é um aspecto importante da compreensão cristã das "últimas coisas".
Patrístico Adjetivo aplicado aos primeiros séculos da história da Igreja, que se seguiram à redação do Novo Testamento ("período patrístico"). O ad jetivo qualifica também os pensadores que escreveram durante esse período ("escritores patrísticos"). Para muitos escritores, o período assim designado parece estenderse do ano 100 ao ano 451, aproximadamente — ou seja, período entre a conclusão do último dos escritos do Novo Testamento e o marco do Concílio de Calcedônia.
Pelagianismo Ensinamento de Pelágio, que procurava entender como os seres humanos podem merecer a salvação. Tratase de uma doutrina diametralmente oposta ao pensamento de Agostinho de Hipona, que insiste no papel das obras humanas, minimizando a idéia da graça divina.
Pericorese Termo que se refere à doutrina da Trindade, muitas vezes traduzido pelo termo latino circumincessio (drcumincessão). A noção básica é que todas as
três pessoas da Trindade compartilham mutuamente a vida das outras de modo que nenhuma é isolada ou separada das ações da outra.
Reconciliação O termo original inglês atonment foi cunhado originariamente em 1526 por William Tyndale para traduzir o termo latino reconciliatio, que desde então passou a significar a "obra de Cristo" ou "os benefícios de Cristo, conquistados pela morte e ressurreição de Cristo em favor daqueles que crêem".
Reformada Usase esse termo para definir a tradição da teologia que se inspirou nos escritos de João Calvino (15101564) e seus sucessores. Hoje se dá preferência ao termo "calvinista".
Reforma radical Termo empregado com maior freqüência para definir o movimento anabatista: ou seja, a ala da Reforma que foi além da doutrina de Lutero e Zwingli na doutrina sobre a Igreja.
Soteriologia Parte da teologia cristã que trata da doutrina da salvação (em grego sotería).
Transubstanciação Doutrina segundo a qual o pão e o vinho se tornam corpo e sangue de Cristo na Eucaristia, embora mantendo a aparência externa de pão e vinho.
Trindade Doutrina cristã sobre Deus que reflete a complexidade da experiência cristã de Deus. A doutrina costuma ser resumida em máximas como "três pessoas em um só Deus".
Visão beatífica Termo empregado especialmente na teologia da Igreja Católica para significar a plena visão de Deus que só é destinada aos eleitos depois da morte. No entanto, alguns escritores, inclusive Tomás de Aquino, ensinam que certas pessoas, por exemplo Moisés e Paulo, tiveram essa visão na vida terrena.
Dados sobre teólogos citados
Agostinho de Hipona (354-430) Visto geralmente como o escritor patrístico latino de maior influência, convertido ao cristianismo na cidade de Milão, no norte da Itália, no verão de 386. Regressou à África do Norte e foi eleito bispo de Hipona em 395. Envolveuse nas duas controvérsias mais importantes de seu tempo, a controvérsia donatista sobre a Igreja e os sacramentos e a controvérsia pelagiana sobre a graça e o pecado. São importantes também suas contribuições para o desenvolvimento da doutrina da Trindade e para a compreensão cristã da história.
Anselmo de Cantuária (c. 1033-1109) Nascido na Itália, emigrou para a Normandia em 1059 e entrou para o famoso mosteiro de Bec, tornandose prior em 1063 e abade em 1078. Em 1093 foi nomeado arcebispo de Cantuária. E conhecido principalmente pela rigorosa defesa dos fundamentos intelectuais do cristianismo, especialmente com respeito ao "argumento ontológico" da existência de Deus.
Ário (c. 250-c. 336) Pregador da doutrina do arianismo, forma de cristologia que se recusava a admitir que Cristo era plenamente Deus. Pouco se sabe de sua
vida, e poucos de seus escritos subsistiram. Com exceção da carta a Eusébio de Nicomédia, suas opiniões são conhecidas principalmente graças escritos de seus adversários.
Atanásio de Alexandria (c. 196-373) Um dos mais ilustres defensores da cristologia ortodoxa no período da controvérsia ariana. Eleito bispo de Alexandria em 328, foi forçado a renunciar por causa da oposição ao arianismo. Embora tivesse grande apoio no Ocidente, suas opiniões foram reconhecidas em definitivo só após a sua morte no Concílio de Constantinopla em 381.
Basílio de Cesaréia (c. 330-379) Conhecido também como "Basílio Magno", este escritor do século IV era da Capadócia, região situada na Turquia de hoje. É lembrado principalmente por seus escritos a respeito da Trindade, especialmente sobre o papel distintivo do Espírito Santo. Foi eleito bispo de Cesaréia em 370.
Biaise Pascal (16 23 -1 66 2) Influente escritor católico francês que conquistou grande reputação como matemático e teólogo. Depois da conversão religiosa em 1646, elaborou uma visão de sua fé firmemente cristocêntrica e experiencial. Seu escrito mais famoso é a coleção conhecida como Pensées, pensamentos reunidos em 1670, alguns anos depois de sua morte.
Charles Wesley (1707-1788) Escritor inglês de hinos e teólogo, conhecido por sua tendência pie tista e pela hostilidade ao calvinismo que alimentava. Com seu irmão John, contribuiu para um importante renascimento do cristianismo inglês do século XVIII.
Cipriano de Cartago (f 258) Retórico romano de grande talento, convertido ao cristianismo por volta do ano 246, eleito bispo da cidade de Cartago, no norte da Áfri
ca, em 248. Foi martirizado nessa mesma cidade, em 258. Seus escritos tratam principalmente da unidade da Igreja e do papel de seus bispos para manter a ortodoxia e a ordem.
Cirilo de Jerusalém (c. 315-386) Importante teólogo do século IV, grande defensor da ortodoxia nicena. Suas Conferências cate(^ue'ticas tiveram grande importância no estudo da teologia.
Clemente de Alexandria (c. 150-c. 215) Importante teólogo de Alexandria, dedicado especialmente ao estudo da relação entre o pensamento cristão e a filosofia grega, especialmente quanto às formas de platonismo predominantes em seu tempo.
Dietrich Bonhoeffer (1906-1945) Teólogo luterano alemão, influenciado por Karl Barth, com interesse especial no movimento ecumênico durante os anos 1930. Foi preso durante a guerra, em 1943, e enforcado pelos nazistas em 1945. Suas cartas e seus escritos elaborados na prisão contêm importantes exposições sobre o sofrimento de Deus e a necessidade da teologia de tratar da sociedade "sem religião".
Dorothy L. Sayers (18 93 -1 95 7) Romancista e dramaturga inglesa. Dedicou grande interesse à teologia cristã.
Emil Brunner (1 889-1966) Teólogo suíço que, embora influenciado pelo seu concidadão Karl Barth, desenvolveu idéias sobre teologia natural que se distanciaram das de Barth no final da década de 1930. É conhecido principalmente pela idéia fortemente personalista da revelação.
Felipe Melanchthon (1497-1560) Conhecido teólogo do início do luteranismo e companheiro pessoal de Martinho Lutero. Responsável pela sistematização da teologia luterana inicial, principalmente por meio de sua obra Loci communes (Lugares comuns), com primeira edição publicada em 1521, e sua "Apologia da Confissão de Augsburgo".
Gregório de Nazianzo (329-389) Conhecido também como Gregório Nazianzeno. É lembrado principalmente pelos "Cinco sermões teológicos", escritos por volta de 380, e pela compilação de sumários dos escritos de Orígenes, que ele tinha intitulado Philokalta.
Gregório de Nissa (c. 330-c. 395) Importante Padre capadócio, com interesse especial na relação da teologia cristã com a filosofia platônica.
Gregório Magno (c. 540-604) Conhecido também como Gregório I. Foi eleito papa em 590 e esforçouse muito para estabelecer o poder político do papado, que alcançou seu auge na Idade Média. Como teólogo é conhecido principalmente pelas obras pastorais e exegéticas.
H ugo de São Vítor ( t 1142) Teólogo de origem flamenga ou alemã, entrou para o mosteiro agos tiniano de São Vítor, em Paris, por volta de 1115. Sua obra mais importante é De sacramentis christianae fidei (Sacramentos da fé cristã), que demonstra cautela quanto aos novos debates teológicos que estavam começando a aparecer naquela época.
Inácio de Antioquia (c. 35-c. 107) Um dos grandes mártires do cristianismo primitivo, muito conhecido pelas cartas que escreveu às Igrejas da Ásia Menor. É de particular in-
teresse a vigorosa defesa que faz da realidade da natureza humana e dos sofrimentos de Cristo, em resposta àqueles que ensinavam que a condição humana de Jesus era simples aparência.
Ireneu de Lião (c. 130-c. 200) Provavelmente originário da Ásia Menor, eleito bispo da cidade de Lião, no sul da França, por volta do ano 1 7 8 . É conhecido principalmente por sua obra principal, Adversus haereses (Contra os hereges), em que defende a fé cristã contra as más interpretações e críticas de escritores gnósticos.
João Calvino (150 9-15 64) Importante reformador protestante, especialmente ligado à cidade de Genebra. Sua obra Instituição da religião cristã tornouse uma das mais influentes da teologia protestante, muito contribuindo para a elaboração da teologia reformada.
John Wesley (17 03 -1 79 1) Teólogo inglês, pastor e escritor de hinos, lembrado especialmente como fundador do metodismo. Como seu irmão Charles, foi influenciado profundamente pelo pietismo, que teve um forte impacto em sua teologia dos primeiros anos. Sua teologia encontrou a expressão em hinos e sermões e pouco em obras de teologia sistemática.
Jonathan Edwards (1703-1758) Importante teólogo americano da tradição reformada, conhecido principalmente pela defesa metafísica do cristianismo, à luz das idéias cada vez mais influentes do iluminismo, e também por suas afirmações positivas sobre doutrinas reformadas tradicionais.
Juliana de Norwich (c. 1342-c. 1415) Pouco se sabe da vida desta mística inglesa, salvo os dados que ela mesma forneceu em sua obra Revelações do divino amor. Pelo menos du-
rante algum tempo de sua vida ativa, viveu como uma pessoa solitária na cidade de Norwich.
Jürgen Moltmann (n. 1926) Um dos mais influentes teólogos protestantes modernos da Alemanha, conhecido principalmente pelas idéias sobre "os sofrimentos de Deus" e pelos estudos sobre a doutrina da Trindade.
Justino Mártir (c. 100-c. 165) Um dos mais conhecidos apologistas cristãos do século II, preocupado em demonstrar a moral e a credibilidade intelectual do cristianismo ao mundo pagão. Sua Primeira apologia revela a maneira como o cristianismo leva ao cumprimento as idéias da filosofia clássica.
Karl Barth (1886-1968) Muito conhecido como o mais importante teólogo protestante do século XX. Barth afastouse do protestantismo liberal durante a Primeira Guerra Mundial e adotou uma posição teológica que punha em relevo a prioridade da revelação divina. Sua ênfase inicial na condição de Deus "como outro" em seu comentário à epístola aos Romanos (1919) foi desenvolvida e modificada em sua obra monumental Dogmática da Igreja. Sua contribuição para a teologia cristã moderna tem sido imensa.
Karl Rahner (1904-1984) Um dos teólogos mais influentes da Igreja Católica, cuja obra Investiga ções teológicas foi pioneira no uso do gênero de ensaio como instrumento de interpretação e exploração teológica.
Martinho Lutero (1483-1546) Talvez a maior figura da Reforma na Europa, conhecido principalmente por sua doutrina da justificação só pela fé e por sua compreensão firmemente cristocêntrica da revelação. Sua "teologia da cruz" despertou grande interesse em fins do século XX. Suas famosas Noventa e Cinco
Teses sobre Indulgências (outubro de 1517) são tidas geralmente como marco do início da Reforma.
Metódio de Olimpo (f 311) Conhecido crítico da teologia de Orígenes, principalmente das doutrinas da transmigração das almas e do corpo puramente espiritual após a ressurreição. Seu tratado sobre a ressurreição desenvolve a tese da continuidade entre o corpo préressuscitado e o corpo pósressuscitado.
Nicolas Ludwig von Zinzendorf ( 1700-1 760) Escritor alemão que reagiu ao racionalismo da teologia de seu tempo enfatizando os aspectos emocionais e experimentais da fé cristã. Existe um nexo claro entre as idéias de Zinzendorf e as do pietismo. Ele é lembrado especialmente como fundador da comunidade religiosa de Herrnhut.
Nicolau Cabasilas (n. c. 1322) Teólogo bizantino, lembrado principalmente pelo ensaio Sobre a vida emCris to, no qual expõe o exercício espiritual para alcançar a união com Cristo.
Orígenes (c. 185-c. 254) Importante representante da escola alexandrina de teologia, especialmente conhecido pela exposição alegórica da Escritura e pelo uso que faz das idéias platônicas na teologia, principalmente na cristologia. Os originais de muitas de suas obras escritas em grego se perderam, e algumas delas só são conhecidas hoje graças a traduções latinas pouco confiáveis.
Paul Tillich (1886-1965) Teólogo luterano alemão, forçado a deixar a Alemanha durante o período nazista e estabelecido nos Estados Unidos. Ocupou cargos importantes no Union Theological Seminary, em Nova York, na Harvard
Divinity School e na Universidade de Chicago. Sua obra teológica mais importante é a Teologia sistemática (19511964), em três volumes, traduzida em vários idiomas, inclusive em português.
Pedro Abelardo (1079-1 142) Teólogo francês que alcançou grande reputação como mestre na Universidade de Paris. Entre suas muitas contribuições para o desenvolvimento da teologia medieval, seu escrito mais importante é o que põe em relevo os aspectos subjetivos da reconciliação.
Pedro Lombardo (c. 1100-1 160) Conhecido teólogo medieval, ativo na Universidade de Paris, nomeado bispo de Paris em 1159. Sua obra mais importante foi a compilação do manual de texto conhecido como Quatro livros das Sentenças, coleção de resumos de escritores patrísticos.
René Descartes ( 159 6-1 65 0) Filósofo francês conhecido pela ênfase que põe no papel da dúvida sistemática e na importância da "perfeição" ao tratar da natureza de Deus.
Richard Baxter (16 15 -1 69 1) Um dos mais importantes teólogos puritanos ingleses.
Robert Jenson (n. 1930) Importante teólogo luterano da América do Norte, conhecido pelas importantes contribuições para a doutrina da Trindade.
Rudolf Bultmann ( 18 84 -1 97 6) Escritor luterano alemão, nomeado para a cátedra de Teologia na Universidade de Marburg em 1921. É conhecido principalmente pelo programa de "demitologização" do Novo Testamento e pelo uso de idéias existencialistas ao expor o sentido do Evangelho no século XX.
Rufino de Aquiléia (c. 345-410) Nascido na Itália, viveu no Egito e tornouse conhecido pela exposição que faz do Credo.
Tertuliano (c. 160-c. 225) Importante personalidade da teologia latina primitiva. Produziu uma série de importantes escritos de controvérsias e apologias. Bem conhecido pela capacidade de cunhar novos termos latinos para traduzir vocábulos teológicos da Igreja oriental de língua grega.
Tomás de Aquino (1225-1274) Provavelmente o mais famoso e influente teólogo da Idade Média. Nascido na Itália, conquistou fama graças ao ensino e às obras que escreveu na Universidade de Paris e em outras universidades do norte da Europa. Sua obra mais famosa é a Summa theologiae, obra composta pelo fim da vida e não totalmente acabada. No entanto, escreveu também muitas outras obras importantes, principalmente a Summa contra Gentilesg, que representa uma afirmação importante da racionalidade da fé cristã.
Tomás de Kempis (1 380-1471) Importante representante da devotio moderna, amplamente aceito como autor da obra clássica de espiritualidade conhecida como Imitatio Christi (Imitação de Cristo).
Vincent de Lérins (f antes de 450) Teólogo francês estabelecido na Ilha de Lérins. Particularmente conhecido pela ênfase no papel da tradição contra as inovações sobre a doutrina da Igreja e tido como formulador do assim chamado "Cânon vicentino".
William Paley (1 734-1 805) Importante expoente inglês da teologia natural e do argumento do modelo.
Zwinglio, Huldrych (1484-1531) Importante reformador suíço, conhecido também como Zwinglio, principalmente ligado à negação vigorosa da presença real de Cristo na Eucaristia, teoria geralmente designada como zwinglianismo. Morreu em combate na tentativa de divulgar suas idéias reformistas em seu país natal, a Suíça.
índice onomástico
B ax te r, R i c ha r d 2 1 8 , 2 5 0
A A b r a ão 2 9 , 5 2 , 9 9 , 1 5 3, 1 5 4
B e n to X I I, P a p a 2 2 4 B e s a nt , A n n i e 4 5
A d ão 7 8 , 1 23, 1 47
Boaventura 189 A g o s t in h o de H i p o n a 8, 2 4 , 4 4 , 7 7 , 7 9 , 118, 125, 127, 137, 143, 184, 187, 193, B o n h o e f f e r , D i e t r i c h 4 5 , 4 6 , 6 9 , 1 9 9 , 2 4 5 197, 223, 240, 243
Bmnner, Emil 65, 87-89, 113, 245
A le x ande r , Sra. C e c il F. 132
B ube r , M a r t i n 6 3 , 6 4
A lig hie r i, D a n te , Divina Comédia 2 2 5
B u lt m a n n , R u d o l f 2 8 , 1 0 3 , 2 5 0
A ls to n , W i l l ia m 4 6
B u n y a n , J o h n , Pilgr im's Progress 1 84
A m b r ós io de M i l ã o
1 8 9 ,2 1 7
A ns e lm o de C a ntuár ia 8, 37 , 130- 133, 2 4 3 Á r io 1 08 , 1 09 , 2 3 8 , 243 A r is tót e le s 2 6 , 2 7 , 7 5 , 8 5 , 201 A ta n ás io
G C a b a s i l as , N i c o l a u 1 3 4 , 1 3 5 , 2 4 9
1 05 , 1 08 , 1 09 , 1 2 4, 1 27, 1 48 , C a i r d , G e o r g e 1 03
150, 244
C alv ino, J oão
1 4, 1 6, 4 0 , 4 2 , 4 7 - 4 9 , 5 6 ,
57, 77, 86, 87, 92, 113, 114, 137, 164
B
166, 176, 191, 192, 221, 229, 235, 241,
B a l tha s a r , H a n s U r s v o n 8 0 , 2 3 3 Barr, J ame s 89 B a r t h, K a r l
14, 41, 87- 90, 159- 162, 176,
247 C e c i l ia n o , b is p o de C a r t a g o
170
C h a lm e r s , T h o m a s 91
177, 199, 231- 234, 245, 248
Cicero 216,217
B a s í li o de C e s a r é ia 1 4 8 - 1 5 0 , 2 4 0 , 2 4 4
C i p r i a n o de C a r t a g o 2 1 7 , 2 3 6 , 2 4 4
C irilo de Je rusalém 168, 245
F4ipólito, T radição apostólica 23
C l e m e n t e d e A l e x a n d r ia 2 6 , 2 4 5
FHÍitler, A d o lf 89 , 11 5
Cliffor d, W . K . 30
F- [ odg e, C h a r l e s
Cong ar, Yv es 180
F- [ugo de S ão V ítor 126, 187, 188, 246
1 36 ,221
Crisóstomo 220
I
D
I n ác i o de A n t i o q u i a 1 6 6 , 1 8 9 , 2 4 6
Dar w in, Charles 34, 90-92 D e s c a r t es , R e n é 2 3 5 , 2 5 0 D íd i m o , o C e g o
1 49
I n o c ê n c i o I II, P a p a 1 9 4 I r e n e u d e L i ão
21, 22, 43, 73, 75, 1 20,
127, 150, 151, 220, 247
D o n n e , J o h n 2 25 - 2 27
J
E Edwards, J ona than 81, 247 Efr ém, o Sírio 183 Eusébio de Ces aréia 114
1 41
Jenson, Robert 152- 157, 250 Jesus C r isto 8, 1 1, 15, 18, 19, 21, 23, 38, 52, 54, 58, 61, 65, 82, 87, 95, 100, 103, 105, 106, 108- 110, 112- 114, 117- 119,
F
123, 126, 130, 133, 134, 138, 142- 144, 151, 154- 156, 176, 181, 189, 191, 193,
F ar r er , A u s t i n 2 0 9 F é lix de A p t u n g a
Jeffer son, T homa s
197, 200, 201 , 205, 207- 209, 226, 234,
170
236-239 F o r t u na t e , V e n â n c i o F ^o n ór i o C le m e n tiano 128, 129 J o ã o D a m as c e no 1 1 1 , 1 1 2 Fulbert de Char tres
122
J o ã o P a u l o II, P a p a 3 6 J o ã o X X II , P a pa 2 2 4
G
J u l ia n a de N o r w i c h 2 4 7
G e r m a n o de C o n s t a n t in o p l a 111
J ustino M ártir 26, 27, 74, 11 2, 113, 248
G o r e , C h a r l e s 1 43 G r e g ó r i o d e N a z i a n z o 1 4 4, 1 4 8 , 1 4 9 , 2 4 0 , 246 G r e g ó r io de N is s a 1 5 2 , 2 4 0 , 2 4 6 G r e g ór i o M a g n o
1 2 1, 2 4 6
G u il he r m e de O c k h a m
15
K K a n t , Im m a n u e l 2 8 K in g s l e y , C h a r le s 9 2 K iing , F“Ians 16 7
H
L
Heg el, G . W . F 28
L e e u w e n ho e k , A n t o n V a n 9 3
F i ic k , J o h n 4 3
Lew is, C . S. 84