76
d) Os equívocos a que induziu a noção de phronesis O emprego por Aristóteles da palavra phronesis para indicar o estado mais elevado da vida em sociedade – isto é, do que seria uma espécie de felicidade suprema – induziu a muitos equívocos. O sentido mais próximo da nossa compreensão seria "intuição dos valores éticos transcendentes". Ao apreendê-los, o homem estaria em condições de aquilatar plenamente da adequação de sua conduta moral. Presumivelmente, o que Aristóteles tinha em vista não era naturalmente a totalidade dos cidadãos passíveis de praticar a virtude – tenha-se presente que, no seu modo de ver, a virtude não estava ao alcance de todos, exigindo pré-requisitos em matéria de bens e saúde –, aos quais incitava com o seu discurso, mas apenas uns quantos sábios. Quando se trata das virtudes intelectuais, diz mesmo que a sabedoria é um atributo dos homens políticos e dos chefes de família, tomando naturalmente o modelo dos bens sucedidos. saber.
A phronesis seria pois uma espécie de refinamento do homem que é possuidor do
Ora, Platão empregou a mesma palavra para designar a contemplação das idéias e o próprio Aristóteles numa parte de sua vida adotou a posição platônica. Na Ética a Nicômaco, contudo, a phronesis volta a restringir-se à esfera moral. Ao rastrear a história desse conceito no pensamento medieval, Gauthier registra que nos primeiros tempos, seguindo a Cícero, o termo foi traduzido indiferentemente por prudentia e sapientia. O termo sapiência caiu em desuso, sendo substituído por sabedoria que, ao traduzir phronesis, quer dizer, a seu juízo, "um bom senso concreto, um saber vivo, um equilíbrio moral, um princípio de ação sereno e profundo, que não se poderia exprimir de outro modo, em termos aristotélicos, o que é, por oposição à sophia, a phronesis".(4) A palavra prudência, na linguagem ordinária, perdeu o seu antigo vigor. Entende Gauthier que seu significado teria sido reduzido a uma espécie de arte de evitar riscos. Tratase certamente de uma qualidade mas nunca da qualidade suprema. A questão se torna mais grave quando, traduzida como contemplação, é inserida por São Tomás num contexto teológico. Nada portanto mais distanciado das preocupações de Aristóteles. A propósito, escreve Gauthier: "A moral de São Tomás, pela circunstância mesma de que é teologia, é uma moral de Deus. Certamente que a idéia de Deus não está, de modo obrigatório, ausente de uma filosofia moral. Muito ao contrário: a filosofia moral somente se coroa se se eleva até Deus. Mas, se Deus é a última palavra da filosofia moral, é a primeira da teologia moral, razão pela qual o moralista filósofo que chega à II Parte de S. Tomás encontra-se profundamente confundido. Desde logo, é de Deus que fala S. Tomás, sem que haja considerado previamente os temas primeiros da moral: o bem ou o dever, a consciência ou a lei moral; todos estes temas, sem dúvida, encontram-se na teologia moral de S. Tomás, mas somente aparecem subrepticiamente e como que por acidente, pelo menos muito tardiamente aos olhos do filósofo. A primeira vista, a construção tomista parece calcada na Ética a Nicômaco : num, como no outro caso, não é a felicidade que se coloca ao princípio da moral? Enganosa aparência! A construção tomista retira seu princípio não de Aristóteles mas da bemaventurança do Sermão da Montanha; a análise aristotélica da felicidade somente fornece o (4)
L’Éthique a Nicomaque – Tome I – Première Partie – Introduction par René Antoine Gauthier.